LIDA SOB VISADA DA CARTA A LUA: O CAMINHO INICIÁTICO DO TARÔ NA LITERATURA BRASILEIRA
Por Fernanda L. N. de MattosRESUMO: A obra Invenção de Orfeu foi a última publicada em vida por Jorge de Lima, no ano de 1952. Embora possa ser contextualizado na historiografia do modernismo brasileiro, o extenso poema foi amplamente recebido por seus leitores e críticos como uma literatura além de moderna. Com elementos que dialogam com o neoparnasianismo, Jorge de Lima introduz um cenário místico na construção do poema que permitem, tanto por estrutura formal como lexical, estabelecer uma leitura alternativa do cânone. Por meio da comparação simbólica, pictórica e conceitual, ensaiou-se uma aproximação do sétimo canto da obra Invenção de Orfeu com a carta A Lua do tarô tradicional, ambas como ferramentas de leituras de si mesmas e do poeta alagoano. Ilumina-se, portanto, que Jorge de Lima constrói sua obra com refino técnico literário sem a colocar ausente de incógnitas da natureza humana e espiritual, uma vez que amalgama literatura ao contexto esotérico e iniciático.
Palavras-chave: Literatura, Tarô, neoparnasianismo, modernismo brasileiro
“O próprio do simbolismo é sugerir indefinidamente: cada um verá o que o seu olhar permita receber” (WIRTH, Oswald. Le Tarot des Images du Moyen Age. Paris: Tchou Ed, 1966.)
Veiculada em 1952, a obra Invenção de Orfeu é a última publicada em vida do escritor Jorge de Lima. Nascido em 1893 no estado de Alagoas e falecido em 1953 em solo carioca. Mudou-se para o Rio de Janeiro, oficialmente, em 1930 após a conclusão da faculdade de Medicina. Foi orientando de doutorado do também médico e poeta Afrânio Peixoto, tendo publicado a tese O Destino do Lixo no Rio de Janeiro. O mesmo ano que finaliza seu doutorado é o mesmo ano que faz
seu primeiro marco literário, em 1914, sob o título XIV Alexandrinos, pela editora Artes Gráficas contendo 32 páginas.
É um autor reconhecido por reunir noções plurais em sua estética e forma apesar da cronologia o inserir como autor do modernismo brasileiro. Percebe-se até mesmo pelo título que, tanto de sua primeira obra como da última, elementos parnasianos e clássicos são notórios:
na primeira, a referência da métrica silábica alexandrina de decassílabos poéticos, comum aos sonetos renascentistas e neoclássicos. E na última, a alusão a Orfeu, filho de Calíope, musa da poesia épica que habitava o Monte Parnaso, e de paternidade associada a Apolo, era um Deus músico conhecido pelo som de sua lira.
O exemplar da obra Invenção de Orfeu utilizado pelo estudo foi impresso pela editora Livros de Portugal, em 1de julho de 1952, com a capa e ilustrações de Fayga Ostrower. Contendo prefácio de João Gaspar Simões e dedicatória a Murilo Mendes, sendo o mineiro um poeta inserido no contexto modernista que era amigo próximo de Jorge de Lima. Ressalta-se que em 1935 publicaram em coautoria o título Tempo e Eternidade em edição da Livraria do Globo, e que posteriormente Murilo Mendes realizou publicações formais de fortuna crítica da última obra de seu amigo alagoano.
A apresentação do biógrafo português João Gaspar Simões logo nas primeiras linhas traz a afirmação de Murilo Mendes de que a obra precisa ser lida com “amor, ciência e intuição, e não apenas com um frio aparelhamento erudito”. Aborda a obra como uma floresta de metáforas, símbolos, ritos e mitos que se amalgamam na “ilha” que Jorge de Lima oferece ao leitor e que somente uma rigorosa exegese é capaz de revelar todos seus mistérios. É um poema extenso que reúne dicotomias paradoxalmente complementares, com componentes de sonho e realidade, de lógica e magia, de ordem e caos primordial.
O crítico também equipara a obra a demais referências épicas vistas ao longo da historiografia literária, mas concretiza que não pode esta ser uma obra épica por excelência, haja vista que não segue o gênero em sua proposta e pelo
autor ser um homem moderno. Contudo, é uma “nostalgia” sobre a conquista dessa ”ilha” que aguarda o futuro da manifestação de sua civilização, a brasileira. Com destaque para o fato de que Orfeu, como também nos clássicos épicos, é o personagem que contem seu nome no título. Entende-se, portanto, que Invenção de Orfeu, batizada por Murilo Mendes e agraciada por Gaspar Simões, está próxima do que seria uma espécie de cosmogonia da literatura brasileira, cabendo a Orfeu a posição de demiurgo: aquele que por meio da sonoridade de sua música é ao mesmo tempo criador-sinfônico e heróipersonagem.
A obra é dividida ao todo em dez cantos, havendo cada um seu respectivo título e com subdivisões irregulares, tanto em quantidade e extensão de segmentos quanto em estrofação. Antes de ser apresentado qualquer canto da obra, há uma ilustração que introduz ao leitor uma gravura da Fayga Ostrower como uma sugestão do que irá se desenvolver. Os cantos recebem os títulos de, respetivamente, “Fundação da Ilha”, “Subsolo e Supersolo”, “Poemas Relativos”, “As Aparições”, “Poemas da Vicissitudes”, “Canto da Desaparição”, “Audição de Orfeu”, “Biografia”, “Permanência de Inês” e “Missão e Promissão”.
O ambiente onírico já é apresentado logo com a introdução de cinco epígrafes ao todo, e estas podem ser compreendidas como paratextos que dialogam com o que será apresentado pelo autor ao curso do seu poema. São quatro epígrafes bíblicas, três do Primeiro Livro de Reis e do Livro do Profeta Isaias, e depois uma citação em francês de Onirocritique (de tradução Onirocíritca) do poeta Guillaume Apollinaire, conhecido como “poeta do encantamento”.
As epígrafes bíblicas têm a majoritariedade para
o Primeiro Livro de Reis, que conta a construção do Templo de Salomão e a Lenda de Hiram Abiff. A epígrafe do Livro de Isaías induz o início de um canto a uma nova ilha a ser descoberta. Enquanto a quinta e última epígrafe, é o trecho de Apollinaire, mergulhado de metáforas e rápidas associações imagéticas de flores, texturas e frutas. As cinco citações abordam o ato de construir, edificar e sentir – é a apresentação espiritual, material e sensorial da “ilha” em gestação.
Nota-se que as alusões bíblicas se complementam pelo sentido acerca da consonância e do tom com que será apresentado por Jorge de Lima a obra: o Templo está em construção com o melhor dos materiais e em direção ao mais alto caminho de Virtude, assim como a construção da Ilha que será descoberta e entoada pela lira de Orfeu.
Para a análise em curso, será feito o recorte do sétimo canto “Audição de Orfeu”, do primeiro ao terceiro segmento, localizado no agrupamento das páginas 241 a 256. O sétimo canto é composto ao todo de quatorze subdivisões sem regularidade de métrica e estrofação, como os demais cantos. Dentro do terceiro segmento, será feito um recorte sobre a primeira e a segunda estrofe.
O primeiro segmento é composto de quarto estrofes, com dois quartetos e dois tercetos, porém sem a formalidade do soneto. A composição rímica também não tem forma fixa, embora alguns léxicos realizem rimas, como “linguagem”, “viagem”, “além”, “aquém”, tradução”, “canção”, impressão” e “expressão”.
A linguagem parece outra mas é a mesma tradução.
Mesma viagem prêsa e fluente, e a ansiedade da canção. Lede além do que existe na impressão. E daquilo que está aquém da expressão. (LIMA, 1952, p.243)
Percebe-se que dentro dos versos há um paralelismo dos conceitos apresentados, uma vez que a linguagem é feita por meio da tradução de seus signos, assim como uma viagem é cantada na epopeia, o ato da leitura (do imperativo de “lede”) é pela impressão recebida no papel e o demonstrativo neutro “daquilo” é associado a expressão.
O emprego do demonstrativo é a chave do sentido do segmento em questão, pois “daquilo” é justamente o que não pode ser explicado e sim sentido e compreendido por meio da expressão. É, em sua leitura, um aviso ao leitor para que vá além do que a linguagem aparente o oferece, é como uma sugestão que solicita o uso da intuição para a leitura.
O segundo segmento é o menor do recorte feito em análise, contendo ao todo três estrofes de cinco versos. Logo em seu início, viagem e ilha estão unidos sintaticamente em sujeito composto dos dois primeiros versos pelo verbo de ligação “são” em elipse. Tal jogo sintático os coloca
como coautores dessa jornada que se inicia nessa segunda parte. Viagem e ilha a mesma coisa e um vento só banhando livre o poema ivre. (LIMA, 1952, p.244)
Assim como, um vento só, um ar em forma de um suspiro criativo e sozinho orienta o poema. O léxico “ivre” importado do francês é traduzido como “bêbado”. Contudo, pode nesse caso ser lido como “mergulhado” visto que a viagem e a ilha, igualmente em essência, são conduzidas por esse vento, e só por ele que é criatividade em latência, para deixar o poema mergulhado em liberdade.
O terceiro segmento traz, propriamente dito, a percepção da ilha que foi desenvolvida durante os cantos anteriores. É a maior extensão do sétimo canto, possuindo trinta e três estrofes cada uma contendo treze versos. Similarmente aos outros segmentos, no terceiro não há estrutura rímica formal, mas com algumas ocorrências internas e externas no curso dos versos.
A ambiência fornecida pela primeira estrofe do terceiro segmento é de um lugar nebuloso e de penumbras, há uma trama dita no segundo verso como um “jogo de silêncios”. Evidenciase desse espaço a presença de que há algo que observa pelas lunetas atentas, cujo o vazio e o efêmero, aliados do referido silêncio em partida, é desenvolvido ao longo da estrofe.
Que neblina nas rocas! Que penumbras na trama dêsse jogo de silêncios!
Que lunetas atentas sobre nós!
Por que estamos assim, sem promessas,
sem o pranto noturno e seu consôlo? Céus esvaídos. Chama? Quem nos chama? Aquêle ar frio, aquêle vento estático, aquêle ser ou coisa ali no vácuo, aquela mão finada luminosa, aquêle cisne? Ó cisne nunca visto. Ó estrela temporária, mas estrela! (LIMA, 1952, p. 244)
A partir do sétimo até o nono verso, sendo duas vezes no sétimo verso, há a anáfora do pronome demonstrativo “aquele”, quatro vezes no masculino e uma no feminino. É uma ocorrência de estratégia do autor, haja vista que é o demonstrativo de distância, tanto física como tempo, mas também para elemento qualificador dos termos que estão em seguida. O ar frio, o vento estático, ser, ou coisa ali no vácuo, a mão finada luminosa e o cisne não são simples elementos. É assim posto para que uma atenção do leitor seja dada e apurada ao longo da leitura.
A sensibilidade desenvolvida na estrofe aprofunda a intuição sugerida nos primeiros segmentos. É elaborado um sentimento de solidão, incertezas, sem promessa, sem consolo e até mesmo sem pranto noturno desse que está no lugar. Curiosamente, a descrição é posta na segunda pessoa do plural pelos pronomes “nós” no terceiro verso e “nos” no sexto, e depois pelo uso do sujeito desinencial do verbo “estamos”. Tal observação contrasta com os segmentos anteriores do mesmo canto sétimo, em que outros temas como linguagem, viagem e ilha são postos como condutores dos núcleos verbais.
A colocação em segunda pessoa é deixada em aberto e questiona-se: nós? Uma vez que ao decurso do terceiro segmento do sétimo canto
a continuidade é feita em primeira pessoa como antes. Depreende-se, portanto, que “nós” é uma noção coletividade, mas que pode ser vista como unidade: sensações e vivências comuns da comunidade que podem também serem postas na esfera individual. De modo que a onisciência das lunetas, a sensação da solidão, da finitude e do vazio é inerente a qualidade da existência do homem. O homem é ainda homem, mesmo que solitário, momentâneo, incerto por natureza, como no último verso que a estrela é dita como temporária, mas mesmo assim não deixa de ser estrela.
Já na segunda estrofe, a primeira palavra é o “Eu”.
Eu tenho estrelas idas, subterradas nos temporários, teporàriamente. Potencial deus, ressono-me existido. Ó Plêiades, ó eu, para além do tão claro e luminoso raio eterno! Ó domínio da vida, permaneço!
Sou seu dilema. Sou a sempre audiência, Indefesso contôrno, drama e jogo, sou um simples pretexto a conhecer-se. E tudo é isso: pura latitude e premeditação talvez de Deus. (LIMA, 1952, p. 244-245)
É uma estrofe que repete elementos da estrofe anterior, bem como a incerteza, a finitude, a vulnerabilidade, mas as leva a outra competência. Enquanto a primeira estrofe trazia princípios da existência humana, na segunda estrofe esses princípios são ampliados a espiritualidade inerente ao indivíduo.
Há duas vezes a ocorrência da palavra “Deus”, uma no terceiro e outra no décimo primeiro, sendo a primeira com o uso da letra minúscula e
na outra letra maiúscula. O léxico é naturalmente um substantivo próprio, uma vez que é um nome atribuído a um ser divino e há a expectativa do uso somente com a letra maiúscula, o que não ocorre. Compreende-se que usar a letra minúscula tira a partícula de divindade e passa a ser colocado igualmente como um mortal. Dessa forma, está próximo desse que fala no verso e desse eu lírico que carrega, como dito, um potencial para ser deus e assim ressoa sua divina existência.
A figura estrelar se repete, agora como referência a algo que esse ser porta consigo e com alusões de uma paradoxal efemeridade. Estrelas essas que foram temporárias, mas ainda perduram. Não somente uma estrela única, mas também com outros vocábulos. Como uma constelação, o grupo de estrelas do signo de touro – as Plêiades – posta como vocativo no quarto, e “raio” no quinto verso.
O paralelismo das Plêiades e do pronome “eu” como ambos vocativos do quarto verso introduzem a noção da parcela de divina que é carregada, visto que a persona se coloca novamente em igualdade, mas dessa vez com a constelação do signo de touro. Tal relação é fundamental para o curso da estrofe, elaborada em comparações entre o ser e as estrelas: um símbolo da efemeridade material e do Intangível.
A manifestação da construção paradoxal continua no sétimo verso em “sou seu dilema” e “indefeso contôrno”, pois a dialética homemdeus é um contorno que não pode ser desenhado pela razão, por isso um dilema que curiosamente permanece. O nono verso emprega um verbo com pronome reflexivo “se” na estrutura “conhecerse” que reafirma toda a hipótese. A estrofe é conjugada na primeira pessoa do singular “eu” e o pronome está na terceira pessoa do singular e pela concordância nominal a construção deveria
estar “conhecer-me”.
A sentença “sou um simples pretexto a conhecer-se” coloca o indivíduo como Chave dos Mistérios, tanto materiais como espirituais, que ele mesmo colocou anteriormente. É a simplicidade do oculto que habita na naturalidade da vida do homem comum, que com uma faísca é levado no caminho a conhecer-se: conhecer a si mesmo, o mundo a sua volta e o que reside no oculto pelas faculdades objetivas. Toda a dialética trabalhada nas estrofes é para levar ao décimo verso: tudo é para a latitude, para cima, para o alto – lugar esse assim esperado pelo Incognoscível.
A escrita da obra de Jorge de Lima dialoga de modo claro e detalhista com temas místicos e esotéricos. Permanece evidente, portanto, que o autor não era leigo sobre os assuntos, pois a percepção de sua materialidade está para além da escrita – um pensamento mais simbólico do que verbal. Dessarte, pode ser estabelecido entre os três segmentos apresentados do sétimo canto uma semelhança intrínseca com as lâminas do tarô tradicional.
Antes de tudo, não se aplicou o uso das epígrafes bíblicas como acidente, esperava-se que o leitor soubesse realizar uma associação para com o ambiente onírico da ilha e os versos ali escritos. Jorge de Lima constrói o poema com a aproximação do próprio ato de construir referido no Livro de Reis que constrói o primeiro Templo, futuramente nominado de igreja, mas que consta na segunda epígrafe, “e destinou-o para a casa interna do oráculo” (REIS, 6 -16). À vista disso, ilumina-se na obra Invenção de Orfeu uma simbiose entre os elementos judaico-cristãos e a tradição oracular esotérica existente na Tarologia.
Circulado na humanidade sem data e sem
autoria certa de sua criação, as cartas do tarô são instrumentos seculares relidos de maneiras tão diversificadas assim como foi seu alcance pelo mundo. Em seus primórdios foram encontrados pulverizados nas regiões do Mediterrâneo, França, Egito, e ao decorrer dos tempos foi desenvolvido por inúmeras Sociedades Secretas e ocultistas de seus tempos. Para que em meados do século XVIII e XIX, o ilustrador marselhês Fautrier (COUSTÉ, 1989, p. 28), concebeu o que foi convencionado como o primeiro baralho de tarô, o Tarô de Marselha, cujo arquétipo e material pictórico originou todos os descendentes modernos e contemporâneos.
O conjunto tradicional marselhês possui setenta e oito cartas no total e sua acepção é, em majoritariedade, arbitrária e subjetiva, uma vez que combinadas formam outras explorações com novas leituras possíveis. O tarô, tendo suas cartas também chamadas de Lâminas, é muitas vezes inserido na sociedade como algo periférico e inculto devido a suas origens dúbias e a utilização tendenciosa perpetuada por séculos. Contudo, é preciso que esse olhar sobre a prática oracular seja ponderada e destituída para que sua verdadeira compreensão – a iniciação interna – se cumpra. Por meio de analogias, há uma diversidade quase que inesgotável e que precisa ser recebido com uma pureza simbólica em sua leitura.
No conjunto de setenta e oito cartas, na reunião de cinquenta e seis Arcanos Maiores, a Lâmina A Lua, de número XVIII, ilustra todo o cenário dos três primeiros segmentos do sétimo canto de Invenção de Orfeu de Jorge de Lima. Em sua iconografia tradicional consta um rio ou lago, centralizado com duas torres paralelas e no alto uma lua cheia, que por vezes é preenchida com um rosto feminino. É noite, de céu em breu, podendo ou não conter nuvens e brumas, e na região ao
redor da água, são presentes três animais: um lobo e um cão nas extremidades, e uma lagosta ao centro.
A carta d’A Lua é uma das mais temidas pelos estudiosos do oráculo em virtude de sua complexidade. Em uma abrangente concepção, representa um estado de consciência confuso. É o momento quando a vida é reprimida pela a sensação de enfrentar o desconhecido e permeada de insegurança. É em essência a alegoria da viagem iniciática pela associação com o trânsito e a passagem pelas águas: o renascer da matéria primordial. É o mergulho necessário no inconsciente para que a imaginação e a sensibilidade sejam despertadas comprovando que as sombras, tanto mentais como físicas, são penas o reflexo da verdade. Pois uma vez que é aceita a nova vida pelo neófito, é preciso caminhar pela dúvida, pelo incerto e pelas ilusões. A carta recorda, por fim, que o verdadeiro desafio é mergulhar nas profundezas de sua individualidade.
Esse processo ocorre no sétimo canto da Invenção de Orfeu. Nos dois primeiros segmentos do canto em questão é o aviso dado pelo autor de que não é somente utilizado linguagem para ler o que guarda nas páginas, mas sim uma viagem “ivre” (mergulhada) em intuição. Para que no terceiro segmento seja dado início a exploração da ilha, mas também de si mesmo, uma busca ao mesmo instante interna e externa. Logo no início do terceiro segmento, no primeiro verso analisado, é dada a ambiência física da carta d’A Lua pelos léxicos “neblina”, “penumbras”, “trama”, “silêncios” e também pela construção imagética que é estimulada: a sensação de ser observado, um céu esvaído, estar com frio, o vácuo da solidão e uma atmosfera hostil.
Recorda-se que essa primeira estrofe é posta na segunda pessoa do plural, indo além
da noção de indivíduo único. Tal formulação é compreendida uma vez que as indicações apresentadas são comuns e inevitáveis a todos os seres, a melancolia, viver em incertezas e momentos de ilusão. Todos estão sujeitos a “mão finada luminosa” que assimilada a carta descrita é equivalente a própria lua, que observou todos os milênios da humanidade, reconhece seus segredos, seus medos e a tenebrosidade das índoles.
Na segunda estrofe, a relação mística faz-se mais notória. A persona assume a posição em primeira pessoa do singular novamente e confessa ter “estrelas idas, subterradas”, que assim coma a lua que tem suas fases e mistérios a serem contados. E assume a posição de parcela divina, contexto elaborado anteriormente, que denota a marca do processo iniciático: o reconhecimento da eterna permanência. Posto que este é o “domínio da vida”, o eu lírico realizou o mergulho nas profundezas de si, e também da ilha.
Conclui-se que a arte da Literatura e a arte da Tarologia não estão tão distantes entre si, mas que ambas podem ser vistas como auxílio de leituras, interpretações e as duas instrumentos de expressão da humanidade. Visto que o estado da dúvida, de incerteza e da natureza enganosa é em si o dilema do eterno e efêmero no qual a vida tem seu alicerce. Assim, a obra Invenção de Orfeu de Jorge de Lima mostra, e que ilustrado na carta d’A Lua, há o indefeso contorno, oblíquo drama e jogo, que os olhos não podem perceber, mas que sempre há um simples pretexto a conhecer-se, e talvez intencionado por Deus.
Fernanda L. N. de Mattos é Graduanda de Letras - Português/Literaturas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
REFERÊNCIAS
BARTLETT, Sarah. A Bíblia do Tarô. Tradução de Eddie Van Feu e Patrícia Balan. São Paulo: Editora Pensamento, 2011.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 49ª Ed. São Paulo: Cultrix, 2013.
COUSTÉ, Alberto. Tarô: ou Máquina de imaginar. Tradução de Ana Cristina César. 3ª Ed. São Paulo: Editora Ground, 1989.
LIMA, Jorge de. Invenção de Orfeu. Rio de Janeiro: Editora Livros de Portugal,1952.
HUGGENS, Kim. DUNNE. Eric C. Tarô Illuminati. Tradução Bianca Rocha. São Paulo: Editora Madras, 2015.
Bíblia Sagrada. 7ª Ed: Brasília: Edições CNBB. Editora Canção. 2008