G N A R U S |2
Sumário Ao leitor................................................................................................................................................................................................. 3
Fernando Gralha O ameríndio e a nação (re)inventada na obra do poeta e escritor Joaquim de Sousândrade: alcances e limites (1860 – 1900)...................................................................................................................................................................................................... 5
Ramon Castellano A ampliação do conceito de elite na historiografia pós-moderna............................................................................................ 13
Rodrigo Amaral Cuba ilhada: relações comerciais no período especial em tempos de paz: alianças entre cuba e uma venezuela bolivariana (1999 – 2005) .................................................................................................................................................................. 18
Rennan de Azevedo Ramos Cotidiano policial e revolta da vacina............................................................................................................................................. 24
Daniele dos Reis Crespo Rodrigues João O tridente de ferro: as forças políticas do comunismo brasileiro.............................................................................................. 34
Bruno Capalupo Entrevista: Perter Burke...................................................................................................................................................................... 41
Jessica Corais e Fernando Gralha Cinema, materialidade textual e história cultural: algumas ponderações críticas sobre a relação história, cinema, pesquisa e ensino................................................................................................................................................................................. 44
Alexander Martins Vianna Resenha: Um convite à leitura de “Martinho Lutero, um destino”............................................................................................ 50
Patrícia Woolley Cardoso O Centro de Memória de Realengo e Padre Miguel no contexto da crise da memória social............................................ 54
Jordany Mouzer de Souza Augusto César Malta de Campos: Um Fotógrafo ......................................................................................................................... 58
Fernando Gralha
G N A R U S |3
AO LEITOR
E
screver História. Desde que o homem começou a escrever entrou em um caminho sem volta no ato de elaborar com mais complexidade seus pensamentos, escrever é diferente de falar. Nos primórdios da humanidade todo o conhecimento era transmitido oralmente, no falar, neste tipo de conhecimento sempre predominou a mitificação do pensamento, mythos significa “palavra”, “o que se diz”, a palavra tinha como sustentáculo um ser vivo, que impregnava sua fala de todas as suas impressões e crenças, nada que a metodologia da História oral hoje não resolva, mas a questão aqui não é essa, e sim a importância da escrita como elemento importante na transição do pensamento humano do mito à razão. Ainda assim, a escrita tem suas origens no pensamento mágico, reservado aos sacerdotes e reis, “hieróglifos” significa “sinais divinos”. É, como sempre, na Grécia antiga, mais precisamente no período micênico, que surge uma escrita com objetivo de registrar as atividades administrativas da aristocracia palaciana, esta escrita desaparece com a invasão do Dórios no séc.
XVII a.C. para ressurgir somente no séc. IX ou VIII a.C. por influência dos fenícios. É neste ressurgimento que a escrita ganha os contornos que nos interessam aqui, pois ela não está mais ligada apenas ao pensamento esotérico e à classe dos escribas, sempre ligada ao poder, segundo Paul Vernant “a escrita não terá mais
por objetivo constituir para o uso do rei arquivos no recesso de um palácio; terá correlação doravante com a função de publicidade; vai permitir divulgar, colocar igualmente sob o olhar de todos, os diversos aspectos da vida social e política”.1 O que está em destaque é a dessacralização da escrita, que a partir de então origina uma nova idade mental porque exige de quem escreve uma atitude distinta daquele que apenas fala. A escrita fixa a palavra e logo o mundo para além daquele que a pronunciou e, portanto, exige máxima exatidão e 1
VERNANT, J.P. As origens do pensamento grego. 2. Ed. São Paulo. Difel, 1977. p. 25.
G N A R U S |4 clareza, o que incita o pensamento crítico. Além disso, a retomada posterior do que foi escrito, não só por coevos, mas por diversas gerações, abrem horizontes do pensamento, propiciando o distanciamento do vivido, o confronto das ideias, a ampliação da crítica. A escrita nasce como perspectiva maior de abstração, uma reflexão da palavra que tenderá a modificar a própria estrutura do pensamento.
Rodrigo Amaral, que nos apresenta uma ampliação do conceito de elite na historiografia pós-moderna através de uma longa pesquisa nos arquivos sobre a escravatura, a outra é da Professora Daniele Crespo, que tendo como pano de fundo a Revolta da Vacina discorre sobre as relações de poder entre a população e a principal força de repressão e controle do Estado, a polícia.
Refletir, olhar para trás e contar uma História, desde Heródoto, este é um dos ofícios do historiador, escrever a História, mas o que nos separa da ficção? O que faz de nosso discurso legítimo? Há muito tempo já abandonamos a ideia da verdade única, o paradigma rankeano de que os fatos falam por si caíram por terra, sabemos da impossibilidade de compreender todos os aspectos formadores de um grupo, comunidade, população, ações, gestos, e toda atuação humana, pois o passado passou, trabalhamos com o que sobrou dele. Fazemos escolhas, elegemos o aspecto do passado que nos interessa, sim, História é escolha do historiador, é ele que vai determinar a escrita da História. A partir daí entra a ciência, o método, trabalhar com imagens? Um método. História oral? Outro método. História política? Outro. Economia? Mais outro e assim por diante. Não esqueçamos do conselho básico da escola dos Annales, converse com outras disciplinas, a filosofia, a psicologia, a arqueologia, e tantas outras. Junte tudo isso a muita leitura da produção dos colegas historiadores, muitas horas nos arquivos e debates nos seminários, encontros acadêmicos nas Anpuh’s da vida e pronto, está aí um trabalho historiográfico, uma escrita da História.
Na área da teoria temos dois trabalhos diretamente ligados à escrita da História, na coluna “No escuro do cinema” o artigo do professor Alexander Martins trata o papel do discurso fílmico, sua função na historiografia e sua relação com o ensino de História, trabalho profundo e que vai gerar, com certeza, novos debates. Outro importante trabalho é o da Professora Patrícia Woolley, na seção “Resenha” a historiadora faz um retrato acurado da obra de Lucien Febvre “Martinho Lutero, um destino”, seu texto claro e consistente nos convida a leitura do clássico de forma quase irrecusável. Além destes temos outros exercícios da escrita da História muito bem relatados aqui, um deles é o da coluna do Centro de Memória de Realengo e Padre Miguel, onde o professor Jordany Mouzer discute o cenário dos centros de memória e suas técnicas arquivistas nas relações entre História e memória. Finalizando temos dois artigos polêmicos sobre as questões das relações de poder na América Latina com personagens ainda muito importantes no contexto das relações políticas, Brasil, Venezuela, Cuba e E.U.A, que são, sem dúvida, ainda os grandes atores das Américas.
Este número está recheado destes exemplos, para começar temos na entrevista um mestre dos debates sobre a escrita da História, Peter Burke nos concedeu a honra de configurar em nossas páginas e fala com propriedade do ofício do historiador. Abrindo a revista temos a pesquisa do professor Ramon Castellano, resultado de um trabalho com a obra do poeta e escritor Joaquim de Sousândrade e a formação dos conceitos de nação no Brasil século XIX. Junto a esta temos mais duas pesquisas de fôlego, a do Professor
Enfim, esperamos que percebam que a escrita da História tem muitos rostos e que, para os historiadores alcançarem um trabalho consistente, devem escolher, dentre muitos, que aspectos da vida de uma coletividade irão pesquisar, sempre com muito cuidado. Que este número seja mais uma prazerosa viagem ao rio do conhecimento, o A-Letheia de nossa musa Mnemósyne.
Fernando Gralha