NEGÓCIOS
EMPREENDEDORES AMEAÇAS E SUPERAÇÕES NO ENTORNO DAS ARENAS ESPORTIVAS
Org. Vânia Maria Jorge Nassif
NEGÓCIOS
EMPREENDEDORES AMEAÇAS E SUPERAÇÕES NO ENTORNO DAS ARENAS ESPORTIVAS
Org. Vânia Maria Jorge Nassif
© 2016, dos autores Editora Pixel Conselho Editorial Daniel Mill Delano M. Beder Douglas Henrique Perez Pino (Diretor) Gladis Maria de Barcellos Almeida Glauber Santiago Supervisão e revisão Douglas Henrique Perez Pino Diagramação para o formato ePub Clarissa Bengtson Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitária da UFSCar
Negócios empreendedores : Ameaças e superações N384n
no entorno das arenas esportivas / organizadora: Vânia Maria Jorge Nassif. - São Carlos : Pixel, 2016. 333 p. Documento eletrônico.
ISBN: 978-85-69206-15-6
1. Empreendedorismo. 2. Negócios. 3. Copa do Mundo (Futebol). I. Título.
CDD: 658.421 (20a) CDU: 658.012.2
APRESENTAÇÃO O livro Negócios Empreendedores: Ameaças e Superação no Entorno das Arenas Esportivas contempla 24 casos empreendedores, dois de cada cidade sede da Copa do Mundo de 2014, organizados por regiões brasileiras. Cada capítulo apresenta, inicialmente, a arena esportiva e faz um pró-memória dos resultados dos jogos e dos países participantes. Na introdução de cada capítulo, procuramos trazer um pouco da cultura local, histórias das cidades e das arenas e importantes informações acerca do período vivenciado em cada cidade sede com o advento da Copa do Mundo de 2014. Identificamos que algumas cidades conquistaram legados e realizações. Outras, no entanto, sofreram perdas que deixaram cicatrizes. Os casos, por sua vez, trazem muitas sabedorias e competências empreendedoras, atos de coragem e aprendizagem inimagináveis, sobretudo quando a expectativa por um megaevento incita motivações, visualiza prosperidade, realizações, sonhos e melhoria de vida. Nos períodos pré-Copa, Copa e pós-Copa do Mundo, os sites oficiais que acompanharam o evento esportivo trouxeram diferentes expectativas e críticas no que tange aos investimentos de ordem estrutural (transporte, rodovias, hospedagem, alimentação, além de estádios ou arenas, local do evento), educacional (desenvolvimento de línguas, educação formal ou informal, capacitação de pessoas) política (estreitamento no relacionamento entre países), social (geração de empregos, abertura de novas oportunidades, benefícios diversos que atenda às necessidades dos habitantes) e ainda, de ordem econômica, versando sobre o crescimento dos negócios e da nação. Oposições e reações negativas frente a esses itens também foram expressivas, sobretudo com o efeito de gastos públicos excessivos. Por outro lado, quase nada é mencionado com os reveses que afetaram os pequenos negócios, que por serem pequenos, mal aparecem na mídia quando os empreendedores correm o risco de uma derrocada
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por causa do megaevento, afetando consideravelmente seus empreendimentos. O preço que se paga para se implantar um megaevento como esse é alto e poucos estudos evidenciam isso, no que tange às desapropriações, corrupção, restrições legais à comercialização de certos produtos e exploração de certos pontos comerciais, entre outros aspectos, que representam o efeito colateral, porém devastador para o pequeno empreendedor. Os casos trazem suas realidades vivenciadas, as lições de ameaças e superações, vivências de desapropriações, decepções, restrições e inibições no ato de empreender que impulsionaram os empreendedores brasileiros a buscar alternativas para o desenvolvimento e a sustentabilidade de seus negócios empreendedores. Procuramos, na medida do possível, integrar teoria e prática, contextualizando os episódios empreendedores à luz de resultados de pesquisas. O capítulo 1 – Futebol no Coração da Floresta: entre o clássico e o moderno –, aborda negócios empreendedores da Arena da Amazônia, localizada em Manaus – AM. O caso 1 traz a história de conquistas e superação de dois jovens empreendedores, Fabian e Sérgio, que desenvolveram um negócio diferenciado na área da alimentação, ao criarem a Winners Hamburgueria. O caso 2 conta a história de Jurandir, empreendedor que trocou a carreira executiva para empreender e construir o Piccolino, “pequeno no nome e grande nos negócios”. Contamos com a parceria do professor Alex Moreira e de sua aluna Morgana Falcon, ambos da Uninorte. O capítulo 2 – Na Terra de José de Alencar: Identificação, Exploração e Construção de Novas Oportunidades, apresenta a Arena Castelão, de Fortaleza – CE. O caso 1 conta a história de Manuel Félix e de sua esposa Elza, ao vivenciarem as dificuldades e obstáculos, decorrente do megaevento, sem nunca perder de vista a concretização de um sonho – ter seu próprio negócio. O caso 2 descreve a luta do sr. Marinho ao afirmar que a escola da vida forma um empreendedor e que as dificuldades contribuem para buscar novas realizações. Neste capítulo contamos com a preciosa colaboração da professora dra. Antonia Márcia Rodrigues Sousa da Faculdade Luciano Feijão de Sobral – CE. O capítulo 3 – Resiliência para Enfrentar o Progresso: o Empreendedor Potiguar em Meio à Copa do Mundo, desenvolvido no entorno da Arena das Dunas, Natal – RN. O caso 1 demonstra como os valores e princípios de um empreendedor são superiores às adversidades vivenciadas em momentos de crise. Trata-se da emocionante história de Bruno, suas ameaças e superações para prosseguir seu negócio. No caso 2, Rosivaldo relata como “virou a mesa” contando sempre com o apoio de sua família para impulsionar o negócio empreendedor e ajudar sua família. Neste capítulo tivemos o prazer de contar com a parceria de dois alunos do
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doutorado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Luis Manuel e Alisson, juntamente com o orientador, professor dr. Afrânio Araújo, que nos deu total apoio no desenvolvimento da pesquisa em Natal. O Capítulo 4 é A Gastronomia Popular: Do Empreendedorismo por Vocação ao Empreendedorismo por Necessidade, sobre o entorno da Arena Pernambuco, em São Lourenço da Mata – PE. O caso 1 conta a famosa história do sr. Mundinho e de sua esposa Maria Olindina, que com a vinda da Copa do Mundo para a vizinhança de Recife, teve seu restaurante desapropriado e vivenciou o processo de reconstrução de seu negócio, após anos de funcionamento no local onde a Arena Pernambuco foi instalada. O caso 2 traz a luta de dona Maria do Céu na reorganização de seu negócio e na superação das dificuldades para manter a competitividade. Esee capítulo contou com a colaboração e dedicação de Lednara, mestre pela UFPE, que não mediu esforços e atenção, nos amparando no desenvolvimento da pesquisa em Pernambuco. O Capítulo 5 – Kairós: O Deus da Oportunidade ou um Presente de Grego?, foi desenvolvido em Salvador – BA, junto aos empreendimentos no entorno da Arena Fonte Nova. O caso 1 conta a importância da estrutura familiar na constituição de um negócio empreendedor. Assim é a história de João Passos e Leolina sua esposa. O caso 2 traz a história do jovem empreendedor Ricardo, ousado e estratégico, que com garra construiu seus negócios para além da Copa do Mundo. Esse capítulo contou com a participação da minha orientanda Ana Lúcia Castilho da Mota, que com carinho divido minha aprendizagem. O Capítulo 6 – Tem Festa na Torre: Turistas Invadem o Vizinho Mané Garrincha aborda os negócios empreendedores no entorno da Arena Nacional em Brasília – DF. Os dois casos foram pesquisados na Feira da Torre, que fica em frente à Arena. Tanto o caso de dona Rosita como o de dona Maria das Graças, artistas e artesãs, foram marcados de comportamentos de persistências e de entusiasmo, demonstrando a importância de se dedicarem a um negócio, fazendo o que gostam e que lhes dá prazer. Esse capítulo contou com a participação do doutorando Gustavo da Nóbrega, da Universidade de Brasília, e do professor dr. Cândido Borges, da Universidade Federal de Goiás, um dos pesquisadores do projeto de pesquisa da Fapesp. O Capítulo 7 – O Furação Copa em Cuiabá: Expectativas Além do Pão e Circo, trouxe as experiências de empreendedores estabelecidos no entorno da Arena Pantanal, em Cuiabá – MT. O caso 1 apresenta a história de Suely, que contando com muita coragem e força, apoiada pela família, conseguiu superar as ameaças e buscar novos caminhos para seus negócios. O caso 2 mostra que com amor, dedicação e atenção com as pessoas é possível superar as adversidades burocráticas vivenciadas pelos pequenos negócios. Amadeu e sua esposa Ana Maria narram com muito humor
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suas façanhas na condução do negócio empreendedor. Esse capítulo contou com a participação da professora dra. Ivana Aparecida Ferrer Sila e de sua aluna Bárbarah Lucy Pinheiro de Aguiar, da Universidade Federal de Mato Grosso. O Capítulo 8 – Do Mineirão para o Mundo: A Fama e as Boas Oportunidades, apesar do 7 X 1, foi desenvolvido por um dos parceiros da pesquisa Fapesp, professor dr. Juvêncio Braga de Lima, da FUMEC de Belo Horizonte – MG, desenvolvido no entorno da Arena Minas, em Belo Horizonte – MG. O caso 1 apresenta a história de Fernanda, jovem e visionária, que abriu mão de uma carreira pública para empreender. O caso 2 mostra jovens empreendedores em ação, identificando oportunidades e criando um hostel, negócio comum no exterior, porém ainda incipiente no Brasil, visando atrair um público específico. O Capítulo 9 – A Copa no Rio de Janeiro: Pequenos Negócios Movidos a Inovação, Esporte e Cultura foi desenvolvido por um dos pesquisadores do projeto Fapesp, professor dr. Edmilson de Oliveira Lima, professor do Programa de pós-graduação da Uninove, e contou com a parceria de Larriza Thurler do Sebrae/RJ. Dois casos sui generis, com grande movimentação do público da Arena Maracanã, Rio de Janeiro. O caso 1 narra a façanha de Jorge e André ao criarem um negócio em uma das mais discutidas favelas do Rio de Janeiro – a Rocinha. O caso 2 – ostra a garra e a persistência de Marcelo ao desenvolver seu negócio no morro do Salgueiro, realizando assim não apenas seu sonho, mas de sua família. O Capítulo 10 – É Nóis na ZL: Garra e Determinação em Itaquera foi desenvolvido por um dos pesquisadores do projeto Fapesp, professor dr. Marcos Hashimoto. O caso 1 apresenta a originalidade e inovação de Wesley, empreendedor que identificou e não deixou a oportunidade passar em branco, criando o Dog da Copa. O caso 2 traz a impressionante história da francesa Terry, vítima de uma tragédia pessoal e familiar que deixou marcas, dor, perdas e sofrimento, mas que virou sua vida, quando decidiu permanecer no Brasil e começar seu próprio negócio. O Capítulo 11 – Miniaturas de Arenas e Canecas Comemorativas: Oportunidades Empreendedoras em Curitiba foi desenvolvido por um dos parceiros da pesquisa Fapesp, professor dr. Fernando Antônio Prado Gimenez, e sua companheira Sara Culti Gimenez, ambos da Universidade Federal do Paraná. O caso 1 mostra que toda iniciativa requer decisões sábias ao narrar a história de dois jovens empreendedores, Arnoldo e João Pedro, quando decidiram pelo negócio de miniaturas de estádios. O caso 2 conta a força de Gabriela ao optar por abrir sua loja estabelecida no entorno da Arena da Baixada, empreendimento tradicional com mais de 60 anos estabelecido em Curitiba e que ao superar as dificuldades e ameaças em relação a segurança, conseguiu inovar criando uma linha de produto com motivos do megaevento. O Capítulo 12 –
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As duas faces da Copa do Mundo 2014, oriundo da Arena Beira Rio em Porto Alegre, contou com a participação de dois alunos do curso de Mestrado Profissional em Administração – Gestão do Esporte da Uninove, Lucas e Yuri. O caso 1 descreve a história de Áureo, empreendedor que vivenciou adversidades e ameaças de continuidade de seus negócios, ficando impedido de trabalhar na Copa do Mundo, mesmo tendo se preparado para tal, mas que nunca deixou de acreditar em si mesmo. O caso 2 conta a história de Irineu, que com suas idas e vindas no entorno da Arena, finalmente conquistou um sonho e a estabilidade em seu negócio empreendedor. Assim, este livro faz histórias. Histórias de pessoas que fazem deste nosso país um país empreendedor, mesmo enfrentando adversidades, ameaças, obstáculos, mas que nunca desistem. Suas histórias são inspiradoras, demonstrando grande determinação e a capacidade de concretizar sonhos, ao tirá-los do papel. Mais do que isso, lições de sabedoria, ousadias frente às adversidades por meio de comportamentos de superação, ações e reações, demonstrando assim o verdadeiro potencial empreendedor que tem em cada um dos atores sociais deste livro. Assim, me sinto honrada e agradecida em trazer aos leitores histórias desses empreendedores brasileiros que vivenciaram o megaevento Copa do Mundo 2014 com tanta raça e resiliência, demonstrando a força do empreendedorismo no nosso gigante país chamado Brasil. Agradeço ainda à Fapesp – SP que sem o apoio nada disso seria possível. Muito obrigada. Vânia Maria Jorge Nassif Organizadora do Livro Pesquisadora Fapesp – SP na área de Empreendedorismo Professora da Pós-Graduação em Administração e em Gestão do Esporte – Uninove
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AGRADECIMENTOS A pesquisa Criação e Sustentabilidade de Negócios Empreendedores no Entorno da Arena de Eventos Esportivos contempla as 12 capitais brasileiras, sede da Copa do Mundo 2014. Em oito das 12 capitais buscamos parcerias para viabilizar a coleta de dados, tendo em vista que a equipe de pesquisadores deste projeto não tinha acessibilidade aos empreendimentos e também o conhecimento das cidades pesquisadas. Assim, uma das estratégias estabelecidas foi a de buscar a colaboração de acadêmicos (alunos e/ou professores) oriundos das universidades locais que se interessassem em participar do projeto. Foi muito gratificante sentir o interesse e entusiasmo dos professores e alunos que acolheram a proposta, entendendo a importância e relevância da pesquisa. Assim, tivemos todo o apoio logístico no processo de coleta de dados. E, como contrapartida, oferecemos a coautoria dos capítulos do livro de casos de suas localidades. Dessa forma, o grupo de pesquisadores do projeto, a quem agradeço com muita estima, obteve ganhos duplamente – conquistando novos parceiros, acadêmicos locais, que colaboraram com o processo de coleta, além de contribuir com o conhecimento da cultura local, hábitos, costumes – expandindo a rede de relacionamento de pesquisadores interessados no tema empreendedorismo. Assim, fazemos aqui os nossos mais sinceros agradecimentos a todos os professores e alunos brasileiros, de diferentes localidades: • Profa. Dra. Ivana Ferrer: Universidade Federal de Cuiabá (MT) • Profa. Dra. Antônia Márcia Rodrigues Sousa: Universidade de Fortaleza e Faculdade Luciano Feijão (CE) • Prof. Dr. Afrânio Araújo: Universidade Federal do Rio Grande do Norte • Doutorando Luis Vieira: Universidade Federal do Rio Grande do Norte • Doutorando Alisson Andrade: Universidade Federal do Rio Grande do Norte • Doutorando Gustavo da Nobrega: Universidade de Brasília (DF)
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• Mestre Alex Fabiano da Cunha Moreira: Uninorte/Laureate International Universities – Manaus (AM) • Mestre Nara Castro: Universidade Federal de Pernambuco • Larriza Thurler: Sebrae (RJ) • Mestre Cristina Fraga da Rosa: Universidade Federal do Rio Grande do Sul • Mestre Ana Mota: Universidade Nove de Julho – Uninove – São Paulo (SP) • Especialista Sara Culti Gimenez: Universidade Federal do Paraná – UFPR • Especialista Morgana Falcon: Uninorte/Laureate International Universities – Manaus (AM) • Graduanda Bárbarah Lucy Pinheiro Aguiar: Universidade Federal do Mato Grosso (MT) • Mestrando Lucas Reis: Universidade Nove de Julho – Uninove – São Paulo (SP) • Mestrando Yuri Spacov: Universidade Nove de Julho – Uninove – São Paulo (SP) Agradecemos ainda aos parceiros de pesquisa em empreendedorismo, que nos auxiliaram na indicação dos colaboradores locais. • Prof. Dr. Fernando Paiva Jr.: Universidade Federal de Pernambuco • Prof. Dr. Valmir Emil Hoffmann: Universidade de Brasília Agradecimento aos pesquisadores do projeto: • Prof. Dr. Edmilson Lima, responsável pela Arena Maracanã, no Rio de Janeiro • Prof. Dr. Fernando Antônio Gimenez, responsável pela Arena da Baixada • Prof. Dr. Juvêncio Braga de Lima, responsável pela Arena Minas • Prof. Dr. Marcos Hashimoto, responsável pela Arena Corinthians, em São Paulo • Prof. Dr. Cândido Borges Agradecemos também à Universidade Nove de Julho – Uninove que sediou este projeto apoiado pela Fapesp. E fazemos ainda um agradecimento especial aos 24 empreendedores das 12 cidades sede da Copa do Mundo de 2014 que disponibilizaram tempo, atenção e carinho para com a pesquisa. Sem eles não teríamos conhecido suas histórias de persistência, entusiasmo, superação, garra, determinação, experiências, dentre outros comportamentos empreendedores. Foi um dos maiores aprendizados que tive em minha carreira acadêmica, científica e profissional. Agradeço a todos os empreendedores por esse processo: • Sr. Mundinho e sua esposa, sra. Maria Olindina – Recife • Sra. Maria do Céu – Recife • Fabian Sevilla e Sérgio Thomas – Manaus • Sr. Jurandir Gaioto – Manaus
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• Henrique Dornas Dutra – Belo Horizonte • Fernanda Fonseca – Belo Horizonte • Sra. Rosita Martins Pereira – Brasília • Sra. Maria das Graças Ribeiro – Brasília • Manoel Félix Oliveira – Fortaleza • Raimundo Marinho – Fortaleza • Bruno Freire Cunha Lima – Natal • Rosivaldo Campos da Fonseca – Natal • Sr. João Passos e sra. Leolina Azevedo Passos – Salvador • Ricardo Simões – Salvador • Sra. Suely Ishizuka – Cuiabá • Sr. Amadeu Lobo Neto e Ana Maria Prazias Lobo – Cuiabá • André Martins e Jorge Barão – Rio de Janeiro • Marcelo Rocha – Rio de Janeiro • Wesley Machado – São Paulo • Terry Goldstroten – São Paulo Vale ressaltar que sem o apoio irrestrito da Fapesp não teríamos fechado essa pesquisa com tantos ensinamentos conquistados e ampliado a área de conhecimento no campo de empreendedorismo. Vânia Maria Jorge Nassif
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PREFÁCIO Foi com muita honra que recebi o convite da professora Vânia Nassif para fazer o prefácio deste livro. Diferentemente de muitas áreas acadêmicas em Administração, o grupo de professores de empreendedorismo é um grupo bastante unido, que compartilha conhecimento, organiza conferências (EGEPE) e possui até uma associação que os representa (ANEGEPE). Por essa razão, é com muita satisfação que recebo essa obra, que reúne 21 professores e pesquisadores brasileiros do tema empreendorismo, representando as cinco regiões do país. Trata-se de um mosaico rico que descreve 24 experiências empreendedoras nas cidades que sediaram a Copa do Mundo de 2014. No entanto, o livro não se limita apenas aos casos, já que cada capítulo traz uma contextualização política e econômica da região, seguida pela descrição de dois casos de empreendedores em cada cidade sede e finalizada por uma análise com base em um referencial teórico pertinente. Por isso, esse livro possui múltiplos públicos. Para os professores de empreendedorismo, trata-se de uma obra singular, que une o estado da arte teórico com casos interessantes sobre a realidade brasileira. Para os empreendedores, muito se pode aprender lendo o relato dos negócios aqui descritos. E para aqueles que apenas querem desfrutar do prazer de um bom livro, tenho certeza que irão se deliciar com um texto primoroso. Meus parabéns a todos os autores e empreendedores caracterizados neste livro. Tales Andreassi Professor e pesquisador da área de Empreendedorismo Vice-diretor e professor da FGV-EAESP
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SUMÁRIO CAPÍTULO 1: Arena da Amazônia | Manaus – AM FUTEBOL NO CORAÇÃO DA FLORESTA: UM OÁSIS
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DE OPORTUNIDADES ENTRE O CLÁSSICO E O MODERNO CASO 1 - Hambúrguer: a reinvenção da moda que ultrapassa gerações CASO 2 - Piccolino: pequeno no nome e grande nos negócios
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CAPÍTULO 2: Arena Castelão | Fortaleza – CE NA TERRA DE JOSÉ DE ALENCAR: IDENTIFICAÇÃO,
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EXPLORAÇÃO E CONSTRUÇÃO DE NOVAS OPORTUNIDADES CASO 1 - Sukilanche: construindo oportunidades empreendedoras com o jeito
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brasileiro de se reinventar CASO 2 - Churrascaria Poranga: o jeito cearense de investir no futuro
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CAPÍTULO 3: Arena Castelão | Nata l – RN RESILIÊNCIA PARA ENFRENTAR O PROGRESSO: O
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EMPREENDEDORISMO POTIGUAR EM MEIO À COPA DO MUNDO CASO 1 - Hora do Pão: é dando que se recebe CASO 2 - Rosivaldo: nascido para o comércio
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CAPÍTULO4: Arena Pernambuco | São Lourenço da Mata – PE A GASTRONOMIA POPULAR: DO EMPREENDEDORISMO
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POR VOCAÇÃO AO EMPREENDEDORISMO POR NECESSIDADE CASO 1 - Empreendedorismo por vocação: o Bode do Mundinho CASO 2 - Empreendedorismo por necessidade: Bodega do Sertão
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CAPÍTULO 5: Arena Fonte Nova | Salvador – BA KAIRÓS: O DEUS DA OPORTUNIDADE OU UM PRESENTE DE GREGO? CASO 1 - Dom Passos: do sonho à realidade CASO 2 - Um resultado amargo, só comparado ao 7 x 1 entre Brasil e Alemanha
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CAPÍTULO 6: Arena Nacional Mané Garrincha | Brasília – DF TEM FESTA NA TORRE: TURISTAS INVADEM O VIZINHO
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MANÉ GARRINCHA CASO 1 - A arte que retrata os monumentos de Brasília e do Brasil CASO 2 - A tradição da cerâmica e a inovação das bonecas
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CAPÍTULO 7: Arena Pantanal | Cuiabá – MT O FURACÃO COPA EM CUIABÁ: EXPECTATIVAS ALÉM DO PÃO E CIRCO CASO 1 - Turbulência e recondução dos negócios: a Copa que não existiu CASO 2 - Pizzaria Amadeu: hobby que não termina em pizza, mas em felicidade
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CAPÍTULO 8: Minas Arena | Belo Horizonte – MG DO MINEIRÃO PARA O MUNDO: A FAMA E AS
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BOAS OPORTUNIDADES, APESAR DO 7 X 1 CASO 1 - Turismo receptivo e Copa do Mundo: oportunidades para a Libertas
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Turismo CASO 2 - E toda a família embarca no sonho do Allbargue Hostel Bar de Aventura
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CAPÍTULO 9: Maracanã | Rio de Janeiro – RJ A COPA NO RIO DE JANEIRO: PEQUENOS NEGÓCIOS,
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MOVIDOS A INOVAÇÃO, ESPORTES E CULTURA CASO 1 - Mega Lanche’s: fazendo muito com pouco, na Rocinha CASO 2 - Caliel: padaria, família e cultura num só espaço, no Morro do Salgueiro
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CAPÍTULO 10: Arena Corinthians | São Paulo – SP “É NÓIS NA ZL”: GARRA E DETERMINAÇÃO EM ITAQUERA CASO 1 - Wdog: o dog da Copa CASO 2 - Salgado Mania: um novo sabor para a vida
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CAPÍTULO 11: Arena da Baixada | Curitiba – PR MINIATURAS DE ARENAS E CANECAS COMEMORATIVAS:
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OPORTUNIDADES EMPREENDEDORAS EM CURITIBA CASO 1 - Miniaturas de estádios: a oportunidade de consolidação de uma pequena
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empresa jovem CASO 2 - Canecas comemorativas: como aumentar o faturamento de uma
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pequena empresa longeva
CAPÍTULO 12: Arena Beira-Rio | Porto Alegre – RS AS DUAS FACES DA COPA DO MUNDO DE 2014 CASO 1 - Áureo Finato Geovanela: um empreendedor que acreditou em si CASO 2 - Irineu´s Restaurante
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Arena da Amazônia Manaus – AM
Shutterstock/Filipe Frazao
JOGOS DA COPA DO MUNDO DE 2014: Inglaterra
1x2
Itália
Camarões 0 x 4 Croácia Estados Unidos 2 x 2 Portugal Honduras 0 x 3 Suíça
Capítulo 1
FUTEBOL NO CORAÇÃO DA FLORESTA: ENTRE O CLÁSSICO E O MODERNO Vânia Maria Jorge Nassif vania.nassif@gmail.com Universidade Nove de Julho – Uninove São Paulo – SP
Autores: Alex Fabiano da Cunha Moreira a.alex@terra.com.br Centro Universitário do Norte/ Laureate International Universities Manaus – AM
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Morgana Falcon brasilfalcon@gmail.com Centro Universitário do Norte/ Laureate International Universities Manaus – AM
epois de 64 anos, o Brasil voltou a sediar uma Copa do Mundo, momento celebrado por muitos brasileiros, e questionado por outros, principalmente devido aos altos investimentos estruturais necessários para viabilizar um evento desse porte. Os brasileiros já lamentavam por viver em um país marcado por histórias de corrupção e desonestidade no trato com a coisa pública, mas mesmo assim, aos poucos, a notícia foi internalizada. Dentre os debates travados, alguns dos mais calorosos referiam-se às capitais que conceberiam as partidas, e Manaus estava entre elas. Incialmente algumas manifestações publicadas demonstravam que a capital amazonense não estava entre as mais desejadas ou queridas pelos brasileiros e até mesmo pelos próprios jogadores, e as queixas unânimes eram o clima e a distância. Manaus, capital do Amazonas, está situada na região Norte do país, possui mais de 3 milhões de habitantes, oriundos da miscigenação das três etnias básicas que compõem a população brasileira: o índio, o europeu e o negro, formando assim os mestiços típicos da região (caboclos) e dos imigrantes, especialmente japoneses, árabes e judeus. Possui o clima equatorial, e devido à proximidade da linha do Equador, a umidade é alta e o calor é constante. A cidade abriga o Polo Industrial de Manaus (PIM), um dos mais modernos da América Latina, reunindo indústrias de ponta das áreas de eletroeletrônica, veículos de duas rodas, produtos ópticos, produtos de informática e indústria química. Manaus é exemplo de superlativos naturais, que estão espalhados por todo o Estado do Amazonas. Possui os maiores mananciais de água doce, grande parte da maior floresta tropical úmida do mundo,
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Negócios Empreendedores
bem como uma flora e fauna riquíssimas em diversidade. Sua distância da capital federal é de 1.972 km e de São Paulo, 3.971 km. Postas as características geográficas, a segunda grande preocupação com relação à Copa foi o caderno de encargos da Fifa que envolvia a infraestrutura e os estádios. Nesse aspecto, como em todas as outras cidades-sedes, Manaus também apresentou atrasos no cronograma das obras, porém, o resultado de algum modo surpreendeu. A Arena da Amazônia foi eleita o segundo melhor estádio do ano de 2014, pelo site inglês Stadium Data Base. Sua concepção foi inspirada na floresta amazônica, e sua área externa possui um design semelhante a um cesto de palha indígena. Foram utilizadas algumas tecnologias inovadoras em sua construção, entre elas o sistema de reutilização de águas (para uso posterior nos banheiros ou para a irrigação do gramado), o resfriamento geotérmico, o uso de bioetanol e a ventilação natural, auxiliando tanto na redução dos consumos energéticos quanto no nível das emissões. Com custo de R$ 258 milhões acima do que foi inicialmente anunciado pelo governo em 2010, a Arena da Amazônia foi inaugurada no dia 9 de março de 2014. A obra, orçada em R$ 499,5 milhões, somando aditivo, reajustes, serviços complementares e consultoria técnica, foi entregue com um custo total de R$ 757,5 milhões, o que representa um acréscimo de 51,7%, segundo dados do Sistema Integrado de Controle e Gestão de Obras Públicas (Sicop), do governo do Estado. Dos recursos financeiros, R$ 400 milhões foram obtidos por meio de financiamento público com o BNDES e o restante por meio de recursos do próprio governo do Amazonas. A capacidade total da Arena é de 44.310 lugares. A capital agitou-se, mas dividia opiniões. Partes dos locais vislumbrou a oportunidade dos seus sonhos, enquanto outros ainda incrédulos intuíam que a Copa não passaria de um cometa, que no máximo deixaria rastros, não se sabia ao certo se positivos ou negativos. Porém, durante as duas semanas de participação em que foram realizados quatro jogos da primeira fase do Mundial, turistas, jogadores e a própria população se surpreenderam com a cidade. A diversidade turística, histórica e natural, as opções gastronômicas e acima de tudo a receptividade acolhedora da população fizeram a diferença e foram muito bem avaliadas. Ao final do torneio, Manaus foi eleita pela Fifa a melhor sede, com um dos mais ternos acolhimentos. O empreendedor local não deixou de ser afetado. Considerando a dialética homem e sociedade como premissa fundamental para a compreensão da essência do empreendedorismo, entendemos esse fenômeno como sendo a atuação transformadora da realidade, a partir da identificação das oportunidades em um determinado contexto sociocultural, que influencia e é influenciada pelas características e interesses dos agentes transformadores envolvidos.
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Futebol no coração da floresta: entre o clássico e o moderno
Fotos: Vânia Nassif
Nesse contexto, é importante considerar o empreendedor como um agente de mudança, e que por meio da organização objeto de sua ação, gera, expande ou reestrutura os recursos, mesmo diante de diversidades e de incertezas. Essa capacidade de ação é implementada por um conjunto de habilidades e competências essenciais para o desenvolvimento da ação transformadora (Moreira, 2010). A ação empreendedora está imersa em um sistema social complexo, o que focaliza, em uma perspectiva teórica, grande sintonia entre os pressupostos inerentes à abordagem das redes e à abordagem do empreendedor como agente de equilíbrio. O empreendedor atua conectando recursos dispersos, mas conhecidos, presentes em diferentes redes ou grupos sociais, lançando mão, para isso, de conexões e contatos privilegiados. Vai, dessa maneira, ocupando e preenchendo os espaços vazios, mas facilmente perceptíveis no mercado por meio da utilização desses recursos. Dessa maneira, estabelece uma busca constante pelos recursos necessários, através da dinâmica estabelecida em sua rede de relacionamentos. No entanto, o ato de empreender encontra-se também associado à habilidade de, permanentemente, forjar novos e revolucionários conceitos de negócios, reunindo recursos que poderiam parecer, à primeira vista, incompatíveis entre si (Vale, Wilkinson, & Amâncio, 2008). Nesse capítulo vamos abordar dois casos de empreendedores do setor da alimentação fora do lar que vislumbraram oportunidades para desenvolver e consolidar seus negócios. Os dois empreendimentos estão situados na Arena Mall, um centro comercial localizado a 300 metros da Arena da Amazônia, em uma das principais vias de acesso ao estádio.
Vista interna da Arena da Amazônia
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Fabian Sevilla e Sérgio Thomas, na Winners Hamburgueria Foto: Vânia Nassif
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CASO 1
HAMBÚRGUER: A REINVENÇÃO DA MODA QUE ULTRAPASSA GERAÇÕES
O
s empresários Fabian Sevilla e Sérgio Thomas são amigos de infância, e há menos de dois anos resolveram consolidar essa cumplicidade fraternal iniciando em sociedade um negócio próprio. A escolha de Manaus como uma das sedes da Copa do Mundo da Fifa 2014 se configurou como uma oportunidade de caráter único que serviu para acelerar os planos. Sérgio, já há algum tempo, alimentava a intenção de montar uma hamburgueria em Manaus, porém, deixava essa ideia de certo modo adormecida. Os percursos da vida acabaram por lhe apresentar outras oportunidades e assim resolveu aplicar suas competências empreendedoras abrindo uma peixaria em sociedade com seu amigo de infância Fabian, que já possuía know-how na área da piscicultura, tendo trabalhado em diversas fazendas especializadas na criação de peixes. Sérgio é formado em Ciências Econômicas, e antes de abrir sua primeira empresa, uma loja de móveis modulados, trabalhou como estagiário em empresas como Banco do Brasil, Caixa Econômica e Banco GM. Depois, teve uma experiência como gerente em uma concessionária de motos. Fabian é formado em Engenharia de Pesca e iniciou sua vida profissional como estagiário em algumas empresas atuantes na área de exportação de peixes ornamentais. Também trabalhou na área de manejo ambiental em algumas serrarias. Hoje, realiza consultorias em fazendas de piscicultura, orientando os clientes para a produção e venda de pescados, principalmente o tambaqui. A aliança do espírito empreendedor de Sérgio mais os conhecimentos de Fabian impulsionou o nascimento do Tambaqui Mania, um restaurante especializado em peixes da região Norte. Inicialmente o restaurante foi idealizado para ser lançado em uma dos espaços do Shopping Arena Mall, um empreendimento erguido a cerca de 300 metros da Arena da Amazônia. O atraso na finalização das obras do Mall aliado à cobrança dos amigos e a ansiedade de logo ver a empresa funcionando fez com que os empreendedores antecipassem a inauguração abrindo o restaurante em outro endereço, não muito distante. Especializada em peixes, o principal produto é o tambaqui, peixe bastante apreciado em Manaus, assado na brasa ou em caldeirada, a peixaria foi aberta em 2012 e os resultados surgiram rapidamente. Comparando com a tradição gaúcha de que domingo é dia de carne, no Norte, domingo é dia de peixe. Os resultados financeiros da peixaria animaram os sócios e acabaram
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por viabilizar, dois anos depois, o investimento necessário para o lançamento da hamburgueria, que finalmente pode ser instalada no Shopping Arena Mall. Os empreendedores avaliaram as oportunidades que se apresentavam. Percebendo Manaus como uma cidade em franco crescimento, com aspectos peculiares de uma metrópole ainda em desenvolvimento, a hamburgueria idealizada por Sérgio foi ganhando forma. Manaus é uma cidade grande, mas ao mesmo tempo é interiorana, onde se percebem facilmente algumas carências locais em termos de ofertas. Porém, ao mesmo tempo em que preservam os aspectos históricos de uma cultura típica original, o público manauara é ávido por novidades, gosta de estar na vanguarda e de consumir o novo. “De repente, surgiu uma explosão em Manaus dos restaurantes especializados em hambúrgueres caseiros, com um toque gourmet”, diz Sérgio De início, os sócios avaliaram algumas propostas de franquias, mas ao perceber que não receberiam o suporte necessário, que justificaria essa estratégia, decidiram por criar um negócio inédito. Contrataram um arquiteto para a definição do layout da loja, criaram o nome, projetaram a marca e seguiram em frente. Os sócios fizeram viagens por algumas cidades do Brasil e do exterior a fim de pesquisar as hamburguerias mais badaladas. Pesquisaram o cardápio, o layout, a temática, o comportamento dos consumidores e principalmente o ambiente de um restaurante especializado em hambúrgueres. Ao avaliar o comportamento dos consumidores, perceberam que qualquer pessoa que hoje esteja na faixa etária de 40 a 45 anos, foi em algum momento um consumidor de hambúrgueres, principalmente durante a adolescência. Recentemente, a moda do hambúrguer voltou e atingiu o gosto da geração atual. Assim, a amplitude do mercado se configura como um potencial interessante. Após muitas pesquisas, Sergio e Fabian decidiram que era chegado o momento de inaugurar a loja. A Winners Hamburgueria foi inaugurada na Arena Shopping Mall, um pequeno centro comercial, com seis lojas, em sua maioria voltadas para o setor de alimentação. Está em uma avenida movimentada a cerca de 300 metros da Arena da Amazônia, em uma das principais vias de acesso para o estádio. É uma via de mão única, que engarrafa nos horários de maior movimentação. O Mall tem fácil acesso e possui estacionamento para cerca de 40 veículos. Fabian ficou responsável pela parte operacional, principalmente o fornecimento da matéria-prima, e Sérgio pela área administrativa do empreendimento. As atividades foram divididas de acordo com a experiência de cada um, e isso garantiu um melhor aproveitamento das competências individuais, o que contribuiu para que os resultados positivos chegassem mais rápido.
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Um aspecto curioso sobre o desenvolvimento de parcerias foi a escolha do primeiro chef: um amigo, que tinha uma receita caseira de hambúrguer, e eventualmente organizava alguns encontros em sua residência, onde preparava e servia suas criações. Sérgio e Fabian eram frequentadores dessas reuniões. Com o amadurecimento da ideia, já sabiam quem seria o parceiro ideal. “Esse nosso amigo criou o cardápio, treinou os primeiros funcionários e viabilizou o nosso início”, diz Fabian.
Chegou a Copa e a Winners bombou! No dia 19 de junho de 2014 aconteceu o segundo jogo na Arena da Amazônia, entre Camarões e Croácia, que disputavam a vaga para as oitavas de final, e a Winners abria as suas portas. O movimento de clientes e vendas foi intenso. Cerca de 40 mil espectadores prestigiaram o jogo, e boa parte desses circularam pela avenida onde está localizada a hamburgueria. Muitos entraram na loja e consumiram, o que gerou para a Winners um retorno quase instantâneo de vendas e principalmente de divulgação. A quantidade de pessoas que circulou aqui na época gerou uma divulgação enorme, sem termos feito investimento nenhum em publicidade! Até hoje a Winners não tem divulgação em mídia. Hoje nosso movimento chega até a ultrapassar o do Tambaqui Mania, que já tem 2 anos. (Sérgio)
A partir desse momento, a Winners permaneceu aberta em todos os jogos que se seguiam pela frente. Os hambúrgueres conquistaram o público local, estimulado pela novidade, e os turistas, que se familiarizaram com os hambúrgueres, principalmente os norte-americanos, que foram um dos maiores públicos na cidade. A partida entre Estados Unidos e Portugal, realizada em Manaus, foi mais vista pelos norte-americanos do que a final da NBA (a liga de basquete do país) do mesmo ano. Ao todo, 18,2 milhões1 de telespectadores torceram pela sua seleção durante essa partida de futebol. O movimento sazonal de consumidores na loja trouxe muita confusão e aprendizado. É difícil coordenar os processos de produção e atendimento quando a quantidade de pedidos é exageradamente superior à capacidade de produção e atendimento. Muitas dificuldades precisaram ser gerenciadas, desde problemas com a mão de obra, até com fornecedores de bebidas, ingredientes, temperos e carne. 1 Dados do site Portal da Copa 2014.
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Em Manaus temos muitas dificuldades com a matéria-prima. Se precisa de um bacon fatiado você não encontra, e assim vai. Você precisa rodar a cidade inteira para achar um ingrediente! Manaus ainda é meio carente nesse sentido. Parte das frutas e verduras é negociada com fornecedores de outras regiões. (Fabian)
Pós-Copa: as vendas e a realidade em torno da Arena da Amazônia Manaus foi uma das melhores sedes da Copa do Mundo de Futebol no Brasil, segundo relatório divulgado pelo Governo do Estado do Amazonas. Os lucros gerados na capital foram de 325 milhões, porém o pós-Copa trouxe algumas preocupações. Os investimentos nos estádios2 foram altíssimos e a manutenção deles exige bastante recurso. Algumas partidas de futebol entre clubes de projeção nacional têm sido realizadas na Arena, além de shows esporádicos. No entanto os empresários e comerciantes que investiram em empreendimentos no entorno perceberam que em dia de realização de eventos o público se preocupa unicamente em chegar ao interior da Arena, e, além disso, as ruas próximas são interditadas, interrompendo o tráfego dos clientes. Foi um tiro pela culatra. Quando tem evento, devido à restrição da área, é muito ruim para nós, porque eles fecham todas as ruas de acesso, até nos atuais jogos nacionais. Em Manaus tudo é um grande evento, pois não tem futebol. Por exemplo, quando o Flamengo veio jogar aqui, recentemente, o público presente foi de 45 mil pessoas, recorde, maior do que na Copa. A maioria do público que passa não vem para comer, mas quer usar o estacionamento. Eles assistem à partida e quando voltam, já não param aqui. Nos eventos realizados aos sábados, o nosso faturamento cai, porque na hora do jogo as pessoas não conseguem entrar e as que entram só vêm para assistir ao jogo. (Fabian)
Manter vivo o sonho gerenciando os dois negócios Atualmente, os sócios gerenciam os dois empreendimentos paralelamente. No almoço a maior demanda é na peixaria, enquanto no jantar o movimento maior é na harburgueria. Essa divisão garante um equilíbrio na demanda e melhor planejamento para o dia a dia. Algumas práticas implementadas garantem melhor aproveitamento das capacidades individuais. Por exemplo, os sócios fazem um revezamento semanal nas empresas, e cada um permanece por uma semana inteira em um dos 2 Além da Arena da Amazônia, foram construídos mais dois centros de treinamento em Manaus.
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empreendimentos. Dessa forma eles procuram evitar a rotina, principalmente o surgimento de vícios de gerenciamento. O público-alvo é formado por diversas faixas etárias. Apesar de apresentar uma proposta moderna, a casa é muito frequentada por pessoas de 30 a 45 anos, mas não é incomum encontrar alguns apreciadores de hambúrguer na faixa de 60 a 70 anos. “Acho que os netos convidam os avôs, eles vêm, gostam e depois retornam”, diz Sérgio. A fórmula caseira dos hambúrgueres, do pão às carnes, e os complementos comprados cuidadosamente pelos próprios donos, garantem a qualidade e o sucesso com os clientes, aliados ao paladar. O sentido visual é aguçado pela estrutura de galpão, que a Winners propositadamente deixa aparente. Esse toque traz um ar moderno e eclético, que aproxima vários perfis de consumidores, fazendo do hábito de consumir hambúrguer uma diversão entre família e amigos. Apesar das dificuldades encontradas no negócio, a Winners Hamburgueria desafia-se a permanecer no mercado. O negócio atual é promissor, a taxa de fidelização e de retenção de clientes é grande, o ticket médio é interessante e o retorno do investimento está próximo de se consolidar. Sérgio e Fabian acreditam que para realizar seu próprio negócio devese primeiramente gostar daquilo que se propõe a criar. Para eles, para ser empreendedor é preciso abrir mão de finais de semana, feriados e permanecer mais afastado da vida social, além de comprometer-se totalmente com a vida da sua empresa. Outro ponto importante diz respeito a selecionar o sócio ou parceiros certos. A confiança deve ser premissa entre as partes e o comprometimento com os resultados e o crescimento da empresa deve ser constante. Por fim, mas não menos importante, o empreendedor deve pesquisar o seu mercado antes de iniciar a empresa. Deve ter todas as informações possíveis no sentido macro e microambiental, para que assim as avaliações de oportunidades e riscos sejam bem estimadas. Apesar de todas essas sugestões, nada é garantido. Mas acreditar no sonho e em seu sucesso faz toda a diferença para vencer as adversidades e os espectros de mercado. Nós sugerimos que o empreendedor encontre algo de que goste de fazer, porque não é fácil. Eu gosto bastante de hambúrguer então é algo que me complementa. (Sérgio) Somos formadores de opinião para nós mesmos. Além de gostar e acreditar no produto que vende é importante gostar desse ritmo frenético de trabalho. Trabalhar em restaurante, de domingo a domingo, é abdicar do convívio da família e não ter final de semana. (Fabian) Avalie se realmente vai encarar isso, se vai querer realmente isso para a sua vida. Para abrir um negócio não basta ter só o dinheiro e entregar na mão de um gerente. É preciso dedicar-se fielmente. (Sérgio e Fabian)
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Fotos: Vânia Nassif
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Winners Hamburgueria: ambiente “cuidadosamente despojado” atrai público de diferentes faixas extárias
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Piccolino: o “pequeno” virou referência em Manaus, tornando-se uma das mais tradicionais choperias da cidade
Foto: Vânia Nassif
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CASO 2
PICCOLINO: PEQUENO NO NOME E GRANDE NOS NEGÓCIOS
O
paulista Jurandir Gaioto é hoje um dos maiores empresários da cidade de Manaus, e na terra das Amazonas concebeu para si e sua família uma história de empreendedorismo, perseverança e prosperidade. Após dar ouvido às recomendações dos seus amigos, trocou de profissão e montou seu próprio negócio. Nascido na capital paulista, seu primeiro contato com o Amazonas foi em 1973, quando foi chamado para trabalhar na Transamazônica1 até o projeto ser abortado e apressar o seu retorno para sua terra natal. Após seu casamento, em 1975, o destino trouxe Jurandir de volta a Manaus, agora para atuar como gerente de recursos humanos na Philco, uma fábrica de eletroeletrônicos instalada no Distrito Industrial. Em seguida Jurandir foi para a Sharp, onde trabalhou por 12 anos, no mesmo ramo. Paralelamente começou a projetar sua própria consultoria de recursos humanos, pois já objetivava ser o dono do seu próprio negócio. Em meio à rotina exaustiva de trabalho, havia um momento em que Jurandir deixava de lado as preocupações do dia a dia, e, no final da tarde, encontrava-se com os amigos em um boteco localizado próximo ao seu local de trabalho. Era o momento de reunião, conversa e relaxamento. Após hibernar por um tempo, seu plano de se tornar empreendedor começou a ressurgir, e após algumas mudanças em sua vida profissional, fundou a Consultec, uma consultoria de RH. Durante algum tempo Jurandir dedicou-se somente à nova empresa. Inovou em sua carreira profissional, mas permaneceu fiel aos encontros com seus amigos. Sua rotina somente foi abalada no dia em que o proprietário do boteco surpreendeu a todos com a notícia de que o estabelecimento seria fechado. Jurandir e os amigos ficaram inconformados, pois aquele ambiente não era apenas um local para tomar a cerveja do happy hour, mas representava um elo de amizade e muitas histórias que seria quebrado e tirado daquele grupo de amigos. Foi então que um dos amigos sugeriu um novo local de encontro: a 1 O projeto original da Transamazônica era fazer uma estrada que se estenderia por 8 mil quilômetros e ligaria o Atlântico ao Pacífico, atravessando toda a América do Sul de leste a oeste. O plano foi modificado para um projeto que chegaria apenas até a fronteira do Brasil com o Peru, mas as obras pararam bem antes. Mesmo assim, com 4.223 quilômetros de extensão, a Transamazônica é uma das maiores rodovias do mundo. Ela atravessa sete Estados (Paraíba, Ceará, Maranhão, Tocantins, Piauí, Pará e Amazonas), corta 63 municípios e passa por três ecossistemas.
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loja de troca de óleo automotivo de Marco Antônio, filho de Jurandir. Na loja havia uma geladeira simples e a ideia era abastecê-la com cervejas. Os outros amigos ficaram incumbidos de conseguir algumas mesas e cadeiras plásticas. O meu filho Marco Antônio tinha uma loja de troca de óleo, no térreo de um prédio de dois pavimentos. Ao lado havia uma calçada grande, então esse meu amigo falou: “Jurandir, lá na loja do Marco tem uma geladeira. Você coloca a cerveja lá e eu consigo umas três ou quatro mesas, aí a gente coloca lá no final da tarde. O trocador de óleo vira garçom, depois de trocar óleo”. E começou assim a brincadeira. (Jurandir)
A ideia deu certo e o negócio foi crescendo. Aos poucos o grupo foi incrementando o local e trazendo até aperitivos não só para os amigos, mas para quem mais chegasse. Após um ano nesse formato, em 1996, Marco Antônio sugeriu ao pai que mudasse o bar improvisado para uma área melhor, em um pavimento acima da sua loja. Jurandir aceitou e começou a projetar com mais profissionalismo o seu mais novo negócio, isso sem deixar a consultoria de lado. Seu cardápio chamou atenção na cidade, pois ele adotou vários aperitivos mais elaborados e sofisticados, e a cada passo, a família ia ocupando espaço e tornando-se mais presente para manter o estabelecimento em rota de crescimento. Dessa forma improvisada Jurandir começava a dar os primeiros passos do que viria ser o Piccolino. Um detalhe curioso é a origem do nome que foi dado ao bar. No final de 1996 eu fui para a Itália. Nós andávamos pela manhã e, à tarde, íamos para o hotel descansar. Nesse intervalo passava um desenho, Simbad – O Marujo, e ele andava com o companheiro que se chamava Piccolino. Piccolino porque é pequenininho. Quando abri o bar, queria trabalhar com o chope da Brahma. Na época só tinha duas choperias em Manaus: a Choperia Lobo, na Getúlio Vargas, e a São Marcos, no centro da cidade. Quando eu chamei o pessoal da Brahma e mostrei o interesse em trabalhar com o chope, havia no meio deles uma supervisora que falou: “Isso aqui não interessa para a gente, é muito pequenininho”. Aí eu me lembrei do Piccolino. Eu agradeci e disse que apesar dela não ter sido tão gentil comigo, ela tinha dado o nome do bar para mim. (Jurandir)
O bar inaugurou com outro fornecedor e Jurandir seguiu em frente, aprimorando o seu estabelecimento. Juntamente com sua família, ele buscava oferecer o melhor que conhecia aos seus clientes. No segundo ano de existência, o Piccolino era referência em chope no Norte do país, vendendo mais de mil litros em cada sexta-feira. Além disso, foi pioneiro em servir pizza e chope no mesmo local.
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Intuição que não falha: a Copa do Mundo brilhou, mas não era ouro Ao longo do tempo, o espírito empreendedor de Jurandir o levou à expansão de seus negócios. Atualmente, além de sua consultoria, que ainda está em funcionamento, o Piccolino está presente em cinco pontos da cidade: Plaza Shopping Manaus e Millennium Shopping, ambos localizados em duas das principais vias da cidade; no Hotel Sleep Inn, localizado na região do Distrito Industrial; no bairro Japiim, zona sul de Manaus; e o mais recente, localizado no Shopping Arena Mall. Também construiu uma pizzaria chamada Távola Redonda, e o restaurante-pizzaria Super Mercato Pizza e Grill, localizado também em uma das principais avenidas da capital. O Piccolino Arena da Amazônia foi inaugurado justamente no dia da abertura da Copa do Mundo, em 12 de junho de 2014. Em 15 de junho foi realizado o primeiro jogo do Mundial na Arena da Amazônia, entre Inglaterra e Itália. Jurandir afirma que a Copa do Mundo não interferiu em seu negócio. Sua intuição dizia que o evento não iria trazer o retorno esperado aos empreendedores locais, por isso não investiu além do necessário, pois considerava que já possuía a estrutura adequada para atender o aumento sazonal da demanda que seria gerada. Durante as duas semanas de jogos na cidade, Manaus recebeu mais de 120 mil turistas, o que pode ser considerado um aumento considerável no fluxo, mas o que perturbava o empreendedor era como seria a realidade pós-Copa. Qual seria a justificativa para investimentos e gastos além do necessário para atender à demanda normal, do dia a dia? No período de realização dos quatro jogos, o Piccolino Arena alcançou um faturamento diário nunca antes atingido. Após a Copa, o fluxo de clientes tornou-se “normal”, segundo Jurandir. Apesar de sua empresa possuir um nome forte no mercado, da localização de fácil acesso e da Arena da Amazônia estar localizada em uma região de bairros nobres de Manaus, como Dom Pedro e Ponta Negra, Jurandir considera que os clientes somente vão ao Piccolino Arena se houver jogos ou shows no local. Caso contrário, eles preferem ir a outras filiais, como a do shopping e do hotel. “Quando não tem jogo o consumidor não tem por que vir para essa área, e prefere ir para uma das outras filiais.”
Muitos negócios, algumas adversidades e sábios conselhos Jurandir não esperava chegar tão longe e consolidar tantos negócios. Com as dicas dos amigos e apoio da família, ele acredita que o seu maior ponto forte é a intuição, que o guiou para executar todas as suas ações empresariais.
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Da amizade sincera, ele conquistou o melhor sócio, o qual participa somente da pizzaria, mas que sempre o aconselha em todos os demais negócios. É de suma importância destacar nessa história que a maioria dos investimentos realizados para iniciar todos os negócios foi com recursos próprios! Sou uma pessoa muito organizada com relação a dinheiro. Eu aprendi com meu avô a guardar metade de tudo aquilo que eu ganho e gastar bem a outra metade. Essa metade tem que ser uma reserva para atender principalmente doenças e alguma outra necessidade. A Távola e todos os Piccolinos foram feitos com recursos próprios, somente em um deles, emprestamos, porque o investimento era muito alto, então nós usamos um pedaço do dinheiro da AFEAM – Agência de Fomento do Estado do Amazonas, o qual inclusive, já está pago. (Jurandir)
É perceptível que sua grande motivação e incentivo para não ter medo de arriscar-se no mercado são os filhos e sua esposa, pois sempre objetivou oferecer-lhes um futuro tranquilo. Porém, Jurandir considera que seu único e grande obstáculo para o desenvolvimento dos negócios é a mão de obra escassa e com baixa qualificação. Mesmo preocupando-se em ensinar, orientar e acompanhar os funcionários, mostrando as melhores formas de realizar as atividades diárias, os maus hábitos e desinteresse comuns que recebe como feedback lhe trazem muitos aborrecimentos. Os desafios são inúmeros, mas Jurandir continua apaixonado por sua atividade. Ele acredita que o maior segredo para quem é ou deseja ser empreendedor é gostar do que faz e ter zelo por cada pensamento e ação que realiza. Se você pegar uma muda de laranja e adubar, podar, pulverizar e regar duas vezes por dia, daqui a três anos você terá laranja. Se cuidar direito, as laranjas te trarão dinheiro!
Jurandir faz essa comparação por experiência própria, pois ele já chegou a ter 4 mil pés de laranja, chegando a abastecer três feiras em Manaus. “Eu não fazia ideia que iria render tudo isso! As mudas principais eu fazia na minha casa, em meu quintal”, afirma. Ser empreendedor é ter boa vontade, ter inspiração e sentir-se bem consigo mesmo, pois o negócio será a sua própria trajetória de vida. O retorno é resultado de dedicação, esforço, engajamento, atitude e muito cuidado com as decisões tomadas. O zelo passa não apenas pela postura profissional, mas também com os amigos e familiares, afinal, as primeiras e fundamentais propagandas partirão deles. Se a empatia for recíproca, você terá sucesso.
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Fotos: Vânia Nassif
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O Piccolino cresceu e rendeu frutos. Hoje está presente em cinco pontos de Mananus
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CONSIDERAÇÕES FINAIS Segundo Drucker (1987), empreender diz respeito a todas as atividades dos seres humanos que não aquelas que se pode chamar de existenciais. Segundo o autor, o espírito empreendedor pode estar presente em qualquer que seja o ramo de atuação. Considerou-se nesse trabalho que o espírito empreendedor anunciado por Drucker (1987) seja, em uma visão atualizada, formado na verdade por algumas características comportamentais. Segundo o autor, são empreendedores aqueles que criam algo novo, algo diferente. Eles mudam ou transformam valores. O espírito empreendedor é uma característica distinta, seja de um indivíduo ou de uma instituição. Não é um traço de personalidade, mas sim um comportamento. A existência de empreendimento está limitada às ações de indivíduos conhecidos como empreendedores, que são os agentes responsáveis pelo desencadeamento e condução dos processos de criação de unidades produtivas. Os empreendedores, por meio de sua ação, inovam e prolongam as perspectivas do ambiente empresarial favorecendo dinamicamente o fluxo e o desenvolvimento da economia (Juliatto, 2005). Os dois casos analisados em Manaus demonstram características marcantes e distintas dos empreendedores, importantes para o aproveitamento das oportunidades que se estabeleceram a partir da escolha da capital amazonense como uma das sedes da Copa do Mundo de 2014. O primeiro caso aborda as experiências de dois empreendedores com espírito jovem e alta disposição para assumir riscos. Suas atuações em negócios próprios são recentes, mas os retornos já são perceptíveis. A primeira empresa da dupla foi um restaurante especializado em peixes da Amazônia, que rapidamente trouxe resultados financeiros. Os resultados e a sinergia entre os sócios viabilizaram a estruturação e lançamento da Winners Hamburgueria, um restaurante especializado em hambúrgueres caseiros com variados estilos e para um público eclético. A Winners era o sonho de um dos sócios. Nesse sentido, a troca de sinergia entre os parceiros assume relevância em sua prática, pois favorece a geração de ações compartilhadas, o que garantiria a sustentabilidade da empresa. Vale ressaltar que apesar de também ser constituída por relações informais, a efetividade em termos de resultados em uma empresa acontece a partir da coordenação das atividades de grupos de trabalho formalmente constituídos, das quais se geram expectativas em torno de resultados (Huggins, 2000). Durante a Copa a Winners não alcançou as expectativas almejadas de retorno do investimento, mas contabilizou bons resultados de divulgação
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espontânea, o que proporcionou economia em publicidade. A empresa possui um bom ticket médio, quando comparado à peixaria, porém ainda não é o ideal quando se considera o seu potencial. O segundo caso relata a atuação de um experiente empreendedor, que percebia o evento da Copa do Mundo como algo passageiro, com alguma possibilidade de incremento de caixa, mas sem projeção suficiente para justificar dedicação de todos os seus esforços. O Piccolino é uma das mais tradicionais e reconhecidas choperias da cidade, e nasceu a partir do aprendizado e da troca de informações e experiências construídas pelo empreendedor em seus relacionamentos sociais. Sua primeira unidade foi fundada em 1996, e em 2014 o intuitivo empreendedor abriu sua quinta loja no entorno da Arena Mall, com o objetivo de aproveitar a demanda que a Copa poderia gerar para seus produtos. Durante o evento teve ótimos resultados, mas o pós-Copa acalmou os ânimos da cidade, reajustando o mercado para o patamar normal. Os resultados de vendas foram considerados bons, mas abaixo da expectativa, o que causou certo ar de decepção com o evento. A recente produção literária sobre empreendedorismo vem mudando a visão clássica sobre o entendimento do empreendedor como um ser solitário, para uma visão que o relaciona como um agente de mudança através da cooperação construída por meio do seu relacionamento em várias redes sociais. A participação nessas redes proporciona ao empreendedor uma gama de recursos até então inacessíveis ou não desenvolvidos, tais como: informações, acesso a recursos financeiros, acesso a novas técnicas e conhecimentos, legitimação social, reputação e credibilidade (Klyver, Hindle, & Meyer, 2008). Em ambos os casos, o reconhecimento das alterações no ambiente exigiu dos empreendedores características comportamentais e elementos de preparação, pois a efetividade das ações está relacionada com o aproveitamento do potencial das oportunidades que despontam, contradizendo a perspectiva de apenas permanecer em um ambiente favorável, seguro e tranquilo de preservação de recursos para a prevenção ou respostas automáticas às ameaças (Paiva Júnior, 2004). A partir dessa atualização conceitual, o aproveitamento de oportunidades passa a ser relacionada com a sinergia entre as relações interativas estabelecidas entre os atores, e que dependem da identidade de cada um para se tornar efetiva. A capacidade de interagir ativamente encontra-se na natureza da capacidade empreendedora, da mesma maneira que a habilidade de inovar, conjugar e associar recursos distintos. Nesse contexto, o empreendedor pode ser vislumbrado como um agente de conexões capaz de forjar redes
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com diferentes graus de inovação na combinação de recursos novos e/ou antigos dispersos no mercado (Vale, Wilkinson, & Amâncio, 2008). Dessa forma, o empreendedor é, por excelência, o agente detentor dos mecanismos de mudança, com capacidade de explorar novas oportunidades, pela combinação de distintos recursos ou diferentes combinações de um mesmo recurso. A habilidade de identificar e perseguir novas formas de associação de recursos e novas oportunidades no mercado é a atividade empreendedora por excelência (Vale, Wilkinson, & Amâncio, 2008). Essa ampliação da visão sobre o tema concebe o empreendedor como um agente contrário às situações de estagnação, que busca oportunidades em seu ambiente de atuação para favorecer o aprimoramento de sua realidade e de seu grupo. O empreendedor visionário busca a sua ressignificação através da associação da ação empreendedora ao ato de servir ao outro, uma vez que, segundo Paiva Júnior (2004), a alteridade na realização significa o alcance da satisfação do próprio eu, pois pode exprimir uma diminuição dos riscos devido ao fato de não mais se perceber sozinho. Portanto, não se pode dissociar o empreendedor de sua historicidade que de maneira plausível forma os significados que evolutivamente direcionam os pensamentos, atitudes, condutas e práticas experimentais. Logo, o aprendizado também acontece por meio da interpretação dos fatos vivenciados em suas relações coletivas, que através do diálogo constante fundamentam a própria essência empreendedora e proporcionam e realização plena através de sua atividade empreendedora (Paiva Júnior, 2004). Essa perspectiva provoca o entendimento do interesse do empreendedor em construir e desenvolver novos empreendimentos. Nas duas entrevistas foi percebida que a Arena da Amazônia é bem aceita pelos empresários, porém, ao final do evento a expectativa em ralação às oportunidades da Copa do Mundo não foram atendidas. No caso da primeira empresa, a movimentação de mercado não trouxe as pecúnias esperadas pelos empreendedores, principalmente por conta da logística de fechamento do perímetro da Arena nos dias dos jogos, que dificultou o acesso das pessoas ao Mall. No caso da segunda empresa, por conta da falta de atratividade no entorno da Arena no período pós-Copa. Em ambos os casos, as lições aprendidas são bastante válidas para quem já é ou pretende iniciar seu próprio negócio. Os dois construíram suas empresas sem planejamento de negócio, porém com muita dedicação e sensibilidade para perceber e se fortalecer com as oportunidades do mercado proporcionadas por uma capital em desenvolvimento em todos os sentidos.
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REFERÊNCIAS Drucker, P. F. (1987). Inovação e espírito empreendedor: Práticas e princípios. Rio de Janeiro: Thompson Learning. Huggins, R. (2000). The success and failure of policy-implanted inter-firm network initiatives: motivations, processes and structure. Entreprenerurship & Regional Development, v. 12, n. 2, pp. 112-135. Juliatto, M. (2005). A. Identificação e Análise das Competências Empreendedoras dos Cursos Técnicos: Cefet/ SC – Unidade de Ensino de Florianópolis. Dissertação (Mestrado em Engenharia da Produção), UFSC, Florianópolis. Klyver, K., Hindle, K., Meyer, D., Klyver, K., Hindle, K., & Meyer, D. (2008). Influence of social network structure on entrepreneurship participation: A study of 20 national cultures. The International Entrepreneurship and Management Journal, v. 4. n. 3. Moreira, A. F. C. (2009). A emergência das competências empreendedoras no comportamento de dirigentes em uma rede de empresários – um estudo de caso na Rede Petro Energia. (Dissertação de Mestrado em Administração), UFPE, Recife. Paiva Júnior, F. G.(2004) O empreendedorismo na Ação de empreender: Uma análise sob o enfoque da fenomenologia sociológica de Alfred Schutz. Tese (Doutorado em Administração), UFMG, Belo Horizonte. Vale, G. V., Wilkinson, J., & Amâncio, R. (2008). Empreendedorismo, inovação e redes: uma nova abordagem. Revista de Administração de Empresas, Eletrônica, v. 7, n. 1
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Arena Castelão Fortaleza – CE
JOGOS DA COPA DO MUNDO DE 2014: Shutterstock/Jefferson Bernardes
Uruguai
1x3
Costa Rica
Brasil 0 x 0 México Alemanha 2 x 2 Gana Grécia
2x1
Costa do Marfim
Holanda
2x1
México
Brasil
2x1
Colômbia
Capítulo 2
NA TERRA DE JOSÉ DE ALENCAR: IDENTIFICAÇÃO, EXPLORAÇÃO E CONSTRUÇÃO DE NOVAS OPORTUNIDADES Autores: Antonia Marcia Rodrigues Sousa pesquisadoramarciarodrigues@gmail.com Faculdade Luciano Feijão – FLF Sobral – CE
Vânia Maria Jorge Nassif vania.nassif@gmail.com Universidade Nove de Julho – Uninove São Paulo – SPP
C
om algumas controvérsias historiográficas sobre sua fundação, Fortaleza, capital do Ceará, tem sua história marcada por projeções políticas e econômicas que envolvem uma diversidade de mitos e realidades. Tal diversidade provoca originalmente um crescimento simbólico planejado que evidenciou mais tarde o afloramento de serviços urbanos e de infraestrutura, tornando-se para as elites políticas e intelectuais um espaço de exportação de valores europeus que por algum tempo moldaram o comportamento do seu povo. As transformações sócio-urbanas alavancaram o progresso sob a égide da modernidade e as classes dominantes e emergentes foram aos poucos alterando o cotidiano da cidade. Sua história se tornou setorizada, oportunizando maior crescimento para a zona comercial, mais tarde expandindo-se para outras áreas, tornando-se tipicamente uma cidade industrial. Sua expansão e as belezas naturais atraíram atores e coadjuvantes de diversas origens na busca de romper com seus paradigmas culturais e formar novos hábitos e comportamentos na cidade luz que, como quaisquer outras grandes metrópoles, vão sendo estruturalmente modificados para atrair novos olhares. Mas, nenhum acontecimento movimentou tanto sua história quanto as decisões que levaram o Estádio Castelão a ser um dos palcos da Copa das Confederações em 2013. Porém, estava apenas iniciando a saga dos sonhos dos cearenses, que carregam sobre os ombros a história do homem sofrido que constantemente vê seus projetos assolados pela seca nordestina.
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Com as negociações veiculadas sobre os Estados que sediariam também a Copa do Mundo de 2014, o Ceará, com as suas potencialidades turísticas e artesanais, embalado por diversos sabores, cores e gingados, mostrou a irreverência e a coragem do seu povo empreendedor, que sabe sobreviver às adversidades provocadas pela natureza, utilizando-se da criatividade para transformar fragilidades em grandes oportunidades. Estava mais uma vez atraindo olhares das mais distintas potências mundiais. A decisão final foi muito comemorada nos mais diversos setores visando à possibilidade de novos investimentos para receber brasileiros e estrangeiros, dentre tais, a elite do mundo do futebol. Iniciaram-se então as obras estruturais para receber com a brasilidade cearense a Copa do Mundo de 2014. A Arena Castelão ganhou novos contornos, capacidade para receber 67 mil pessoas, com um investimento estimado em R$ 623 milhões, e foi a primeira a ser entregue, dentro dos prazos estimados. A Arena Castelão sediou seis jogos, mas foi capaz de criar e reinventar os setores econômicos nos mais distintos espaços geográficos da cidade e em seus mais específicos nichos de mercado, meses antes da sua efetivação. Embora o antigo Estádio Castelão já fosse ladeado pelo glamour do futebol, a Copa do Mundo atraiu uma movimentação comercial expressiva. No entanto, as expectativas de acertar no alvo que tinha dias contados para acabar, tornaram-se uma frustração para alguns empreendedores que criaram novos negócios ou investiram em negócios existentes. Com o término da Copa, o espaço ocupado pela Arena Castelão continuou com sua imponência, mas não apresentou um diferencial competitivo capaz de dar sustentabilidade aos negócios recém-criados. Ao contemplar os espaços percorridos por indivíduos das mais distintas nacionalidades no entorno da Arena Castelão durante a Copa, é possível entender o que levou alguns empreendedores solitários a submeter-se às diversas exigências do poder público para instalar não apenas um pequeno negócio, mas à possibilidade de eliminar barreiras econômicas e sociais na perspectiva de continuar gerando trabalho, renda e qualidade de vida. Na busca de entender os sentimentos provocados pelo término de um evento pautado em sonhos, suor e lágrimas, encontramos alguns atores carentes para expor sua saga pessoal e profissional, mas procuramos resgatar a história de superação, inovação e capacidade de correr riscos de dois grandes empreendedores que viram seus negócios serem reestruturados pelo suporte e movimentação criados por um dos maiores eventos já sediados no Ceará. No decorrer da exposição dos dois casos é possível identificar o posicionamento de Filion (1999) ao descrever o conceito de empreendedorismo, como a soma tangível e intangível de um indivíduo com competências e habilidades inovadoras, advindas de um contexto complexo de experiências
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cotidianas que envolvem oportunidades e riscos para a vida pessoal e profissional do empreendedor. Portanto, as anunciações de cada caso contemplam uma descrição fidedigna de informações relacionadas à criação do negócio, às dificuldades encontradas, às reações provocadas pelas mudanças de conjuntura internas e externas, ao modelo de gestão trabalhado de forma empírica, às ações e reações comerciais de cada empreendedor no percurso do planejamento inicial ao pós-Copa. No estágio inicial da observação dos casos, foi possível identificar características de empreendedores bem-sucedidos, visionários, líderes, com experiência no negócio, intuição, incansáveis, com grau significativo de aprendizagem (Filion, 2000), mas que não se apropriaram de forma adequada de alguns enfoques prescritivos que se propõem ao uso de técnicas e ferramentas gerenciais (Motta e Vasconcelos, 2006) capazes de solucionar problemas específicos de planejamento. Mas, mesmo com lacunas gerenciais, os empreendedores foram se utilizando dos seus modelos mentais como elementos norteadores para adequarem seus empreendimentos padrão Fifa 2014. O primeiro caso é da empresa Sukilanche, uma lanchonete que oferece lanches rápidos, criada após sucessivas identificações de oportunidades e geração de ideias de um empreendedor que vivencia distintos desafios na busca da sustentabilidade do seu negócio. Após mais 15 anos no entorno da Arena Castelão, ele encontrou na Copa 2014 elementos que fizeram acreditar no alcance das suas metas de realização pessoal. Para adaptações estruturais a Sukilanche não recebeu nenhuma contribuição do poder público, mas reestruturou seus espaços adequando-os de forma simples ao gosto do torcedor, independente da raça ou nacionalidade. Na perspectiva de atrair um público significativo, recebeu suporte da empresa Coca-Cola, que elaborou um planejamento de marketing compatível com o ambiente competitivo que formou-se nas dependências da Arena Castelão no decorrer dos jogos. O segundo caso descreve a história da Churrascaria Poranga, empreendimento criado em 2007, com uma variedade de opções, mas, com uma concentração de pratos tipicamente regionais, propondo-se a atrair uma clientela com distintos gostos culinários. Para os dois casos destacados no Ceará, os comportamentos dos empreendedores simbolizam a existência de um rompimento com os métodos de gestão vigentes, mostrando-se capazes de provocar reações complexas no exercício da atividade empreendedora (Filion, 1999, Gimenez, et al. 2001). As perspectivas positivas e otimistas vivenciadas no cotidiano dos empreendedores brasileiros estão evidenciadas no relatório Endeavor Brasil (2013), no qual 90% apontam que suas ações oportunizam, além de independência pessoal e
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Foto: Vânia Nassif
autorrealização, a geração de negócios inovadores que alavancam o crescimento e o desenvolvimento econômico das distintas regiões do país (Ucbasaran et al. 2012, Hisrich et al. 2014), melhorando a qualidade de vida de muitas comunidades que estão em processo de integração com a era da informação e do conhecimento. Em um contexto direcionado para um futuro incerto, Hisrich, Peters e Shepherd (2014) afirmam que a ação empreendedora é permeada por distintos elementos inovadores que impulsionam o comportamento do empreendedor a gerar competitividade estratégica que fortalecem o desempenho do negócio. Porém, as transições ambientais constantemente podem revelar aspectos que direcionam ao insucesso do negócio, conforme Hisrich, Peters e Shepherd (2014). Contudo, o que se pode afirmar sobre os dois casos do Ceará é que a visão dos empreendedores está embasada em um equilíbrio interno capaz de gerenciar quaisquer adversidades provocadas por aspectos ambientais incertos. Nesse sentido, nem mesmo a ausência de apoio e as exigências governamentais interferiram no comportamento dos empreendedores, dado o número de características que consolidam sua prática cotidiana, como inovação, iniciativa, criatividade, comprometimento, propensão a correr risco e persistência (McClelland, 1961). Os comportamentos apresentados pelos empreendedores mostram que muito do sucesso das micro e pequenas empresas em estágio de maturidade é creditado ao empreendedor por sua flexibilidade, criatividade (Timmmons, 2004) e capacidade de romper as diversas barreiras econômicas e sociais que se apresentam frente à identificação de oportunidades ou geração de ideias.
Arena Castelão
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Elza e Manuel Félix Vieira: unidos no matrimônio e nos negócios Foto: Vânia Nassif
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CASO 1
SUKILANCHE: CONSTRUINDO OPORTUNIDADES EMPREENDEDORAS COM O JEITO BRASILEIRO DE SE REINVENTAR
O
jovem agricultor Manuel Félix Vieira, rapaz simples e sonhador, com o sétimo ano do ensino fundamental completo, nasceu em Itaquari no interior da cidade de Lavras da Mangabeira, a 460 km de Fortaleza, oriundo de uma família formada por 14 irmãos. Na década de 1980, com a perspectiva de encontrar novos horizontes na cidade grande, aos 18 anos, recebeu de um cunhado um convite para gerenciar uma cantina que estava sendo criada no Centro de Estudos Dom Quintino, no bairro Quintino Cunha, em Fortaleza. Como qualquer empreendedor em início de carreira, eu assumia todas as atividades do negócio. Como pagamento do uso do espaço, exerci as funções de porteiro, vigia, bombeiro elétrico e hidráulico. (Manuel)
Com o sucesso inicial dos produtos vendidos na cantina, surgiu a necessidade de ampliar o espaço e a inclusão de produtos voltados para o cotidiano da escola, como lápis, caneta, papel, borracha, cadernos e os livros didáticos adotados na instituição. Observando a dificuldade dos pais na compra do material à vista, criei uma nova modalidade de pagamento, o crediário, tendo como ferramenta de controle as informações cadastrais dos pais registradas em uma ficha. Com esse novo método, cheguei a operacionalizar 480 vendas em crediários, divididas em quatro ou cinco pagamentos. As condições financeiras começaram a melhorar e fui aos poucos adquirindo um patrimônio formado por carro e terreno, tornando minha vida distante da realidade quando cheguei do interior em Fortaleza. Assim, em 1989, sem formação superior, me achava um prático da economia.
O espírito empreendedor e paternalista impulsionado pela necessidade e motivação de buscar novas ideias para ajudar a família está presente em Manuel. Assim, sempre que visitava a família, doava ao pai pequenas quantias para ajudar na manutenção da casa. Na mesma época, um dos irmãos, pedreiro desempregado, identificou a possibilidade de mudanças, por meio da compra de um fábrica de pré-moldados. O gerenciamento desse novo empreendimento exigiu dedicação, conhecimento e o desafio de minimizar os riscos e as incertezas, que passaram a ser enfrentadas com o apoio do irmão.
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Logo nas dificuldades iniciais, meu irmão optou por retornar ao antigo trabalho de pedreiro. Com a formação desse novo cenário, vi a necessidade de me desfazer da cantina que virou papelaria. Com a falta de apoio do meu irmão, resolvi acreditar nas minhas competências adquiridas, que me ajudaram a ter sucesso no meu primeiro negócio. Porém, as dificuldades tornaramse cada vez mais presentes na rotina do negócio, provocando o sentimento de fracasso. Foi então que após o segundo ano resolvi paralelamente arriscar meu potencial empreendedor em um terceiro empreendimento.
Imbuído pelo sentimento da identificação de novas oportunidades, o terceiro empreendimento foi a compra de duas linhas telefônicas, investimento em tecnologia de alto custo na época, embora apresentasse contrastes com relação às experiências gerenciais anteriores. Mas surgia um cenário empresarial promissor. Segui gerenciando a fabrica de pré-moldados. Foi quando recebi a proposta da compra do terreno onde atualmente é o espaço da lanchonete Sukilanche e minha residência. Com a aquisição desse imóvel, novos horizontes estavam surgindo, especificamente porque percebi uma oportunidade com um novo nicho de mercado: os torcedores que frequentavam o Estádio Castelão. Iniciei a construção de uma casa, ocasião em que perdi meu pai, uma referência de cidadão. Minha mãe aconselhou que era importante que o homem começasse a construir uma família. Partindo desse aconselhamento, direcionei meus projetos profissionais em conjunto com os pessoais. Como já namorava minha atual esposa Maria Elzanira Ferreira Vieira, carinhosamente chamada de Elza, em seis meses estávamos casados.
Construção familiar e expectativas empreendedoras A formação da família foi iniciada com a chegada de um dos herdeiros: o primeiro filho Mateus Ferreira Vieira. O nascimento do nosso filho marcou um momento histórico na minha vida profissional, com o encerramento da fábrica de pré-moldados e muitas dificuldades financeiras. Recomecei minha saga empreendedora com uma loja de esquadrias, mesmo diante de extremas dificuldades, sempre me mantive alegre, acreditando no ressurgir de um cenário social e econômico melhor para a minha família. Para minha surpresa, três anos depois nasceu Mariana Ferreira Vieira, nossa segunda filha, em meio a uma condição financeira precária. A loja de esquadrias estava completamente sem operação. Certa manhã, fui ao centro de Fortaleza e encontrei um anúncio de compra de cabelos. Então sugeri a minha esposa, que tinha um cabelo natural muito grande, que vendesse. Como uma companheira de todas as horas, aceitou a venda e consegui negociar por R$ 100. Assim, tive a oportunidade de resolver algumas pendências financeiras e comprar o básico para o enxoval de Mariana.
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Essa capacidade de catalisar mudanças mostra muito da personalidade empreendedora do Manuel, ao criar possibilidades em um ambiente de crise. É um estrategista, que busca constantemente métodos criativos para sobreviver (Gerber, 2004, p. 16), seja por meio da criação de um novo negócio ou pela possibilidade de fechar um negócio existente que está comprometendo ainda mais a saúde financeira. É o que se pode afirmar no caso da loja de esquadrias, que acabou sendo fechada por falta de perspectiva financeira. Com o fechamento da loja de esquadrias, surgiram várias ideias e nenhuma oportunidade momentaneamente. Peguei uma enxada e comecei a preparar um espaço ao lado da pista principal que dava acesso ao Estádio Castelão. Como existia um grande desnível entre o terreno e o asfalto, foi necessário fazer uma escavação de 1 metro e 70 centímetros de altura para equilibrar com o asfalto. Deixei o chão planeado, peguei uma caixa e umas prateleiras de aço e mais alguns acessórios e transformei em balcão. Nessa etapa, a curiosidade das pessoas era imensa, fazendo especulações sobre esse novo empreendimento. Na década de 1990, a fiscalização era mínima, possibilitando-me essa ação.
Percebe-se a formação de um novo negócio sustentado pela criatividade para a identificação e exploração de oportunidade. Na visão de Minello et al. (2011), o empreendedor, por meio das suas características comportamentais, podem receber influências do ambiente, sendo capaz de alterar de forma intensa o curso da ação, provocando modificações em seus propósitos iniciais. Para dar continuidade à minha nova ideia, recorri a uma amiga que tinha uma loja de variedades no bairro Quintino Cunha. Propus que ela me vendesse quatro cadeiras, 1 quilo de amendoim, 1 quilo de castanha, 1 litro de xarope de guaraná, 200 gramas de guaraná em pó e um cento de copos. No dia seguinte organizei meu novo espaço de trabalho com um liquidificador, alguns utensílios de vidros para acondicionar os produtos, organizei as cadeiras e abri o novo negócio. Não recebi um cliente. Às 18 horas ia passando um rapaz e abordei indagando se não queria tomar um pó de guaraná. Ao aceitar, demonstrou alto grau de satisfação e prometeu que passaria para comprar naquele mesmo horário no dia seguinte. Ao abrir no dia seguinte, às 16 horas, eu já consegui vender três copos para os funcionários de uma madeireira. Nos dois meses seguintes já consegui capital para pagar o primeiro investimento e comprar produtos alimentícios para casa.
Com o sucesso desse atual segmento, Manuel investiu em uma máquina de fazer pastel e agregou outros produtos, como polpa de frutas, que passaram a serem feitas artesanalmente e acondicionadas no congelador caseiro. Após três meses com a venda polpa de frutas, investi em novos equipamentos, aumentando a produção, possibilitando posicionar uma marca no mercado com o nome de Nossa Fruta. O sucesso nas vendas foi consolidado em 2004 quando cheguei a fabricar 4 mil quilos de polpa ao mês.
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Imbuído pelo desejo de crescimento, passou a refletir sobre sua situação em relação ao ponto de venda, já que toda manhã tinha o deslocamento dos equipamentos e produtos para o espaço às margens do asfalto, por proporcionar maior visibilidade.
Identificação e exploração de oportunidades na Copa das Confederações Coadunando com a ideia de mudar de espaço, Manuel soube que a Prefeitura estava negociando a regularização dos espaços públicos no entorno do Castelão em função da possibilidade de receber a Copa das Confederações. Recebi uma intimação para negociar junto à Prefeitura a indenização do terreno da casa e o ponto da lanchonete, que ficava às margens do asfalto, na avenida principal. As primeiras negociações com a Prefeitura me deixaram muito angustiado em relação aos valores ofertados, na verdade foram injustos. Não pude permanecer no local, já que uma parte do terreno seria usado para as obras de suporte à Copa das Confederações. Utilizei o espaço restante para construir uma acomodação provisória para a família e a lanchonete.
Com a consolidação do negócio e o início da reforma do Castelão, o empreendedor conseguiu se reerguer e começou a construir um espaço com um nível mais elevado, possibilitando maior visibilidade a quem passava na pista principal que dava acesso direto ao Castelão. Com a oficialização da Copa das Confederações, ele recebeu visitas de empresas do ramo de entretenimento especulando sobre a possibilidade de se instalar durante a Copa. Identifiquei uma nova oportunidade de investimento e passei a mapear o numero de hotéis e pousadas no entorno do Castelão. Observando a deficiência, preparei dois quartos confortáveis com acomodações externas, e com o apoio de um amigo, colocamos no site decolar.com. Em pouco tempo recebi, por 18 dias, dois hospedes de Belo Horizonte que estavam fazendo um serviço em uma empresa próxima à lanchonete.
As perspectivas de crescimento comerciais passaram a ser visualizadas pelos representantes da Coca-Cola. Manuel resolveu expor sua situação financeira e logo recebeu apoio, ganhando cadeiras, mesas, bonés e geladeiras. Como pequeno empreendedor sem condição de contratação, reuni minha família e coloquei como meta principal a batalha diária em busca de melhorar nossas condições. Reafirmei nossa responsabilidade em oferecer um serviço e um produto de alta qualidade para as pessoas, independente do país ou a classe social.
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No período da Copa das Confederações, como contava com um pequeno espaço em acabamento para a lanchonete, optou por vender vitaminas de frutas, sucos, pastéis, sanduíches, pó de guaraná e frutas. O negócio recebeu o nome de Sukilanche. A Copa das Confederações possibilitou um crescimento profissional e pessoal de alto valor para o empreendedor, além de continuar com o apoio da Coca-Cola. Minha relação com a Coca-Cola resultou em um convite para contar minha história na sede da empresa em Fortaleza. Conforme acordado com o diretor, certo dia o motorista chegou e me conduziu até o escritório geral da Coca-Cola e, para minha surpresa, ao chegar à empresa, fui acomodado em um auditório com mais de 200 pessoas para contar meu caso de sucesso como empreendedor. A exposição foi um sucesso, após quase duas horas de conversa fui aplaudido por todos os presentes. Essa ação consolidou de vez a parceria da Coca-Cola com a lanchonete Sukilanche.
Copa do Mundo de 2014: uma geração de oportunidades com futuro incerto A Arena Castelão influenciou na visão de futuro de Manuel em relação ao crescimento do negócio no ramo de hospedagem e restaurante. Ele não conhecia detalhes sobre a formação do potencial empreendedor, sendo caracterizado com um empreendedor com fortes características para a geração de ideias, criação de oportunidades, inovador, capaz de correr os mais diversos riscos. “Essa característica se deve ao fato de em acreditar que Deus está acima de qualquer projeto”, afirma. Mesmo diante da experiência vivenciada no decorrer da Copa das Confederações, o sonho de ter sucesso da Copa do Mundo de 2014 era permeado por ideias, incertezas e metas que marcariam o resto dos seus dias. O primeiro desafio foi atender por meio de mímica um grupo de 19 estrangeiros que acabavam de chegar ao Ceará para um trabalho temporário em uma empresa vizinha. Esse primeiro atendimento motivou o interesse deles pelos produtos e serviços, então passei a recebê-los todos os dias para lanches. E o meio de comunicação continuava o mesmo. Com o passar dos dias começamos a nos entender, mas muitas situações engraçadas foram surgindo. Por exemplo: água de coco, não demorou a entender o que queriam.
Manuel vivenciou muitas situações engraçadas provocadas pela falta de conhecimento da língua inglesa. As demandas iniciaram de forma contínua, muitas empresas começaram a se instalar no entorno da Arena Castelão, dentre elas, uma emissora de televisão do Japão, que avaliou o nosso imóvel, fechando negócio pelo período da Copa.
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O empreendedor considerou aqueles dias de glória para a reestruturação do seu negócio. Ele afirma que, a cada dia, era como se o sol não recolhesse seus raios e novas oportunidades surgiam a cada fase da Copa. Entre os jogos do dia 14 de junho a 4 de julho chegamos a hospedar 29 pessoas em grupos de países distintos, como Noruega e Japão, e de vários Estados brasileiros, como São Paulo, Pernambuco, Minas Gerais e Rio Grande do Norte. As vendas cresceram de forma assustadora, chegando a vender 110 a 120 sanduíches por dia, acompanhados de refrigerantes, cervejas e sucos. A Copa foi um grande sucesso. Passei muitas dificuldades, mas hoje chego a pensar que as experiências vivenciadas com meus sucessos e fracassos tornaram-me um ser consciente. Às vezes, precisamos que alguém leve nossa vaquinha para que possamos enxergar novas oportunidades. A cantina como meu primeiro negócio foi um sucesso, mas na época eu tinha certeza de que meu potencial estava além daquele espaço privado. Sentia a necessidade de criar, inovar e descobrir o meu real potencial como pai, marido e empreendedor.
Percebemos que as narrativas de Manuel em relação ao enfrentamento de dificuldades desde o estágio embrionário caminhando para outras fases de seus negócios estão descritas na figura do empreendedor retratada por Hit et al. (2011), ao associar a imagem de um indivíduo que descobre, avalia e explora as oportunidades para criar bens e serviços futuros, promovendo experiência e satisfação intrapessoal e interpessoal.
Considerações que nortearam a gestão do negócio A trajetória empreendedora de Manuel mostra que os empreendedores se destacam não apenas pela capacidade de criar negócios produtivos, mas por sua sagacidade em identificar oportunidades, em situações conflitantes para o mercado. Mesmo diante dos obstáculos que a vida me apresentou, acredito que as grandes conquistas vêm por meio da fé em Deus, muito trabalho, união da família e organização financeira. Ao olhar para o passado, viver o presente e pensar diariamente no futuro aconselho aos jovens, especificamente aos meus filhos, que para se conseguir algo na vida precisamos nortear nossas ações por meio de uma intensa persistência em pequenos e grandes objetivos, fortalecidos pela fé em Deus, por grande potencial, trabalho árduo e honestidade.
A superação e a socialização de experiências apresentadas no caso de Manuel coadunam com a visão de Baron e Shane (2007, p. 73) sobre
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Fotos: Vânia Nassif
a inteligência humana, ao defenderem que esta é compreendida como a capacidade de o indivíduo desenvolver habilidades, assimilar ideias complexas, adaptar-se às condições que o cercam, aprender com a experiência, envolver-se com várias formas de raciocínio e superar obstáculos. Em complemento, Rego et al. (2013) afirmam que o ato de empreender é uma ação humana, um fenômeno complexo, que envolve riscos e incertezas. Em sua grande maioria o indivíduo tem potencial empreendedor, mas não consegue enxergar as oportunidades vigentes.
Sukilanche: fruto da capacidade de Manuel criar negócios produtivos e aproveitar oportunidades
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Raimundo Marinho, na Churrascaria Poranga Foto: Vânia Nassif
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CASO 2
CHURRASCARIA PORANGA: O JEITO CEARENSE DE INVESTIR NO FUTURO
C
om mais de 15 anos no mercado, a Churrascaria Poranga recebeu esse nome em homenagem à terra natal do seu fundador Raimundo Marinho, que começou suas atividades laborais ainda muito jovem, no mesmo segmento do pai: o comércio. Garoto sonhador, Marinho recebeu autorização dos pais e aos 15 anos seguiu para o Rio de Janeiro na busca de novos horizontes, porém sua idade não o permitiu trabalhar e foi preciso retornar ao Ceará. Quando completou a maioridade, voltou ao Rio de Janeiro para realizar o sonho de ter pela primeira vez a carteira assinada. Passou alguns anos trabalhando em padaria, mas suas experiências foram além das profissionais. Com formação apenas no ensino fundamental, vivenciou um mundo de aprendizagem contínua, aproveitando as oportunidades que surgiam. Foi uma escola da vida, aprendi a trabalhar, a conviver com as diversificações do comportamento humano. Uma experiência que passou a nortear a minha vida em todos os aspectos.
Em um determinado momento, decidiu voltar para o Ceará, com a sua companheira de todas as horas, Cacilda Marinho, ou carinhosamente Cacá. Fixou residência em Fortaleza, pouco conhecia a cidade, o que tornou inicialmente sua vida mais difícil em relação a conseguir um emprego. Por diversas vezes deixou currículo nas empresas, mas não obteve êxito. Ele alega que naquela época as pessoas tinham certo receio em contratar profissionais que vinham do Rio de Janeiro, por achar que eram malandros. Esse preconceito levou Marinho a montar em 1997 seu primeiro negócio, uma lanchonete, com o apoio de um cunhado. Esse período foi marcado por uma grande recessão profissional, porque eu não tinha crédito no mercado. Passei uns três meses vivendo do cheque especial. Morávamos em uma casa alugada no bairro Castelão, paga com ajuda de uns trabalhos extras que eu fazia com pequenas filmagens.
Mesmo diante de tantas dificuldades, sempre fez um planejamento financeiro. Com esses controles, surgiu a oportunidade de adquirir um negócio no bairro de Parangaba. Nesse período, ele se deslocava todos os dias do Castelão para trabalhar em Parangaba e essa rotina tornou-se com o tempo muito cansativa, além de ter que compartilhar com sua esposa os cuidados com seu filho Victor, que tinha então 2 anos.
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Logo em seguida, surgiu outra oportunidade da compra do terreno próximo ao Castelão. Ele fez o investimento, mas foram quatro anos para iniciar a construção. Como forma de aproveitar o espaço, criou porco e galinha, que de um simples passatempo tornou-se um dos seus hobbies prediletos. Em 2007 resolveu construir a primeira churrascaria no espaço, sem financiamento de crédito, sem um estudo de viabilidade de mercado, baseado somente na aprendizagem que trouxe do Rio de Janeiro. Na época recebeu uma visita do Sebrae, mas optou em se apoiar em suas experiências passadas para implantar e gerenciar seu negócio. Mesmo diante de alguns conselhos de pessoas experientes em relação ao ponto de vendas, sempre acreditou que mudanças de cenário sempre acontecem, principalmente por estar no entorno do Estádio Castelão, a atual Arena Castelão. Com o início das obras da Arena, uma parte da churrascaria foi utilizada pela prefeitura, que o ressarciu com um valor abaixo do esperado. A saída foi se adequar à nova situação e, com base nesse processo de mudança, resolveu montar outra churrascaria no bairro Cidade dos Funcionários.
Copa das Confederações: uma expectativa pouco colaborativa A definição da Copa das Confederações no Ceará gerou grandes expectativas em relação ao crescimento dos pequenos empreendimentos, especialmente aqueles próximos à Arena Castelão. Concordo que houve um aquecimento nos negócios, mas no nosso caso ficou muito distante do cenário esperado.
Para receber a Copa das Confederações, o empreendedor manteve a mesma estrutura física, embora com a ideia de climatizar o salão para oferecer o serviço com qualidade em ambiente mais agradável. Estou sempre atento aos riscos. A expectativa que a Copa das Confederações gerou foi muito grande, principalmente por ser uma prévia da Copa do Mundo. Então ficamos cautelosos e também frustrados. Mas, não desanimamos. Para correr riscos temos que estar calçados, ter alguma reserva, caso contrário estamos tendenciosos a fechar o negócio.
Um desafio a ser enfrentado nesse ramo é a contratação de mão de obra qualificada. Atualmente, Marinho tem 77 funcionários divididos nas duas churrascarias. Procura manter o grupo de forma padronizada, o car-
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dápio com variedade de comidas regionais, além de preservar a fidelidade e a qualidade no atendimento. Portanto, para minimizar os problemas, mesmo com um escritório de contabilidade responsável pela burocracia de admissão e demissão de funcionários, Marinho criou a cultura de formar seus próprios profissionais como pizzaiolos, churrasqueiros, cozinheiros, compartilhando com as experiências dos funcionários mais antigos da casa. Ele procura adequar o comportamento e as competências de cada um de acordo com a cultura da casa, afirmando que gosta de ensinar, e essa característica creditou a ele o título de professor. Exercito essa prática nos meus dias de folga ao fazer pratos diferenciados para minha família. Adoro cozinhar, é um dos meus grandes hobbies e uma das atividades que costumo fazer nos meus dias de lazer.
O empreendedor procura manter uma rotina de vida fazendo o que gosta. Levanta por volta das 5h30, pratica exercícios e considera que essa prática é uma alternativa para suportar a pressão. Por volta das 7h30, começa as atividades de gerenciamento da empresa, que fica sob sua responsabilidade e da esposa, que costuma responder pelas burocracias. Fica orgulhoso com algumas orientações recebidas do filho, Victor, que está na cursando nutrição esportiva. Nesse ramo, precisamos diariamente acompanhar as tendências de gosto e costumes. Procuro sempre manter a churrascaria com aspecto agradável, de encher os olhos, para isso contratamos uma empresa especializada que vem duas vezes por semana e dá uma geral em todos os setores, orienta os funcionários, checa câmara frigorífica, se não tem produtos vencidos etc.
Ele acredita ser um grande empreendedor com desejo de fazer acontecer, tranquilo, com capacidade de lidar com riscos calculados, além de manter a crença de que se pode ir com muita sede ao pote. Mostra-se cauteloso no cenário econômico e, se necessário, recua para analisar as possíveis consequências quando o contexto apresenta riscos muito grandes.
Superação, comportamento empreendedor e ação social: um olhar vigilante Ao analisar o passado, Marinho avalia as dificuldades que vivenciou ao longo da trajetória como empreendedor. Porém, em nenhum momento pensou em desistir ou retomar sua vida como empregado.
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Sempre imaginei que ia crescer na vida, evitei envolvimentos em certas situações para não sair do meu foco. Sou muito feliz com a minha família. Minha esposa é a sustentação do meu sucesso, acompanha todo o processo burocrático das empresas com um equilíbrio emocional muito forte, isso ajuda bastante no gerenciamento da empresa.
Ele considera que a parceria familiar é um dos fatores importantes para o sucesso dos negócios. Mas aconselha que o empreendedor que vai iniciar um negócio precisa conhecer o ramo, além de formar um capital inicial para investir na infraestrutura, minimizando os dissabores futuros, principalmente se o local não é favorável ou quando é solicitada a sua desocupação. Importante ressaltar que o cotidiano do empreendedor é muitas vezes pautado por medos e inseguranças, não apenas de caráter profissional, mas em relação à família. No caso de Marinho, ele acredita ser fundamental alimentar o espírito otimista e acreditar em um ser superior que orienta as decisões diárias. Em complemento, alega ser importante sempre a pessoa se colocar no lugar do outro e se atentar para a necessidade de se sensibilizar para ajudar o próximo. Passei por algumas dificuldades, então conheço a realidade dos mais necessitados, independente de emprego ou problemas de saúde. Perdi meu pai e meu irmão com câncer, portanto, faço questão de fazer visitas e doações de alimento e dinheiro para instituições como o Instituto do Câncer e Instituto Moreira de Sousa, para pessoas com necessidades especiais.
A atividade empreendedora deve provocar no ser humano não apenas intenção de gerar trabalho e renda, mas a capacidade de moldar as condições ambientais por meio do olhar para as oportunidades que podem se manifestar por situações políticas, demográficas e tecnológicas (Baron e Shane, 2007).
Copa do Mundo: de uma oportunidade subjetiva a uma realidade de sonhos, vidas e carreiras A Copa do Mundo sem dúvidas está entre os eventos que fomentam trabalho, renda e muita alegria para uma nação. Como muitos dos empreendedores brasileiros, suas expectativas foram crescendo, à medida que foi se configurando o ambiente para a Copa do Mundo em Fortaleza. Um mês antes do início dos jogos da Copa já era perceptível a alegria do povo, foi muito bom, casa cheia, garçom feliz, patrão alegre, todo mundo satisfeito, tanto no período dos jogos quanto no decorrer da semana.
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A socialização passou a ser vivenciada no cotidiano dos cearenses com a presença das delegações. A irreverência de alguns grupos se associava com o jeito cearense de ser, alegre, descontraído, se tornando em algumas situações um só povo. Essa descontração foi perceptível nos mexicanos, um povo muito simpático, com algumas brincadeiras diferenciadas. O povo da Costa Rica e da Holanda demonstrou ser show de bola, muito simpático, extrovertido. Enquanto o povo da Alemanha tinha o comportamento muito fechado, em alguns momentos pareciam desvalorizar o povo brasileiro. Não gostamos da forma fria do alemão.
A convivência com distintas culturas mostrou a função dos artefatos culturais de um povo no processo de lidar com os problemas de adaptação externa e integração interna (Schein, 1985), quando indagamos sobre a atuação do empreendedor num dado contexto em uma nação experimentando a multiculturalidade. O aspecto visual do nosso cardápio contribuiu bastante para o entendimento dos pratos oferecidos, quanto à exposição dos produtos regionais e o fechamento do pedido. Colocamos à disposição duas moças como intérpretes.
A Copa 2014 deixou um grande legado para os brasileiros, especificamente para os empreendedores cearenses que tiveram a oportunidade de escrever sua história. Minha alegria é ter vivenciado aos 49 anos de idade essa história com a minha família, inclusive meu filho de 20 anos, que no futuro terá a oportunidade de contar para a família dele sobre esse momento ímpar.
Em meio a tanta aprendizagem, Marinho reafirmou o que já considerava importante: as redes de relações. Ele sempre teve atenção aos contatos em órgãos públicos, clientes e fornecedores. Na Copa, acredito que pelas dificuldades da comunicação e dinâmica do tempo, não elevei meus contatos quanto desejaria. Troquei cartão com o pessoal da Rede Globo Rio, fizemos uma boa amizade. Mas aconselho que o empreendedor esteja sempre atento às redes de relações.
No contexto geral, Marinho acredita que a Copa foi um grande sucesso, chegando a servir no último jogo 2 mil refeições, recorde na sua experiência como gestor nesse ramo. Ao mesmo tempo teve confiança que esse sucesso não veio apenas por estarem ao lado da Arena, mas pela atenção aos clientes e pela qualidade dos produtos alinhada a um preço acessível, que cuidadosamente procurou manter, independente do evento.
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Fotos: Vânia Nassif
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Churrascaria Poranga: próximo à Arena, foi ponto de contato entre diversas culturas
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CONSIDERAÇÕES FINAIS Os aspectos teóricos sugerem uma gama de comportamentos concernentes ao indivíduo que cria seu próprio negócio, tanto no contexto de empreender por oportunidade quanto por necessidade (Sivapalan e Balasundaram, 2012, Zalio, 2011, Block e Wagner, 2010). O relatório GEM (2013) apresenta de forma categórica a distinção entre esses dois tipos de empreendedores. O empreendedor que por necessidade ingressa no campo do empreendedorismo por não enxergar uma outra perspectiva de trabalho. E o empreendedor que por oportunidade envolve-se nesse processo dinâmico não pela ausência de uma opção de trabalho, mas pela capacidade de identificar oportunidades que geram aspirações e motivações pessoais. Nos empreendedores Manuel Félix, da Sukilanche e Raimundo Marinho, da Churrascaria Poranga, pode-se observar que a identificação de oportunidades e a criação dos negócios estão pautados no desejo de realizar as coisas da melhor maneira, não exatamente pelo reconhecimento social ou prestígio, mas, sim, pelo sentimento íntimo de necessidade de realização (McClelland, 1972, p. 110). Portanto, as histórias dos empreendedores de Fortaleza evidenciam posições complementares em relação à forma de empreender e aproveitar as oportunidades advindas do potencial empreendedor. Contudo, se medirem o sucesso conquistado na Copa das Confederações, em relação à Copa Mundo de 2014, são perceptíveis os distintos resultados em relação à sustentabilidade dos seus negócios. As atitudes e os comportamentos empreendedores de Manuel sobre o ressarcimento do poder público em relação à posse de uma parte do seu empreendimento para as obras estruturais da Arena Castelão foram decisivas para a reestruturação e transformação de seus negócios. Essas ações refletem no posicionamento de Schumpeter (1982) ao defender que a essência do empreendedorismo está na percepção e no aprimoramento das novas oportunidades no âmbito dos negócios, considerando a criação de uma nova forma de uso dos recursos. O empreendedor Marinho demonstra sua capacidade de agir diante de ambiente de riscos e incertezas, além de enfrentar o poder público com persistência e resiliência no processo de ressarcimento de parte do seu empreendimento mediante a reestruturação das obras do entorno da Arena Castelão. As particularidades que formam o comportamento empreendedor e as tornam capazes de modificar o ambiente são percebidas por meio da sua elevada necessidade de realização, liberdade de escolha, lócus de controle interno, criatividade e capacidade de adaptativa (McClelland, 1961, Bygrave, 2004; Timmons e Spinelli, 2006).
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Negócios Empreendedores
Acredita-se que a Copa 2014, por ser um evento mundial, tenha contribuído bastante para a transformação econômica e social dos empreendimentos no entorno da Arena Castelão, mas na descrição dos dois casos, embora a localização do empreendimento contribua bastante, as atitudes dos sujeitos envolvidos tornaram-se fundamentais para o sucesso do negócio. Com base nas narrativas, constatou-se que, para Manuel, a Copa 2014 foi um indicador de grande sucesso com repercussão nos aspectos físicos e gerenciais, que influenciou não apenas em sua vida como empreendedor, mas nos aspectos sociais e econômicos. O contexto da Copa ainda revelou um comportamento resiliente em relação à capacidade de comunicação e superação das adversidades vivenciadas no decorrer da criação de cada negócio, que de forma peculiar contribuíram para a sustentabilidade do negócio atual. Para Marinho, os resultados da Copa contribuíram para a geração de capital, formação de redes e nítida percepção acerca do seu comportamento como empreendedor. Seu perfil revela o equilíbrio entre identificação de oportunidade, realização, autonomia e liberdade com as distintas provocações ambientais, que demandam do empreendedor capacidades e habilidades para lidar com os riscos e incertezas.
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Arena das Dunas Natal – RN
Shutterstock/marchello74
JOGOS DA COPA DO MUNDO DE 2014: México 1 x 0 Camarões Gana
1x2
Estados Unidos
Japão 0 x 0 Grécia Itália 0 x 1 Uruguai
Negรณcios Empreendedores
Capítulo 3
RESILIÊNCIA PARA ENFRENTAR O PROGRESSO: O EMPREENDEDORISMO POTIGUAR EM MEIO À COPA DO MUNDO Luis Manuel Esteves da Rocha Vieira vieirarochaluis@gmail.com Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN Natal – RN
Autores: Alisson Araújo Andrade Silva Afrânio Galdino de Araújo alisson.andrade@ifpi.edu.br afranioga@gmail.com Instituto Federal Universidade Federal do Rio Grande do Piauí – IFPI do Norte – UFRN Piripiri – PI Natal – RN
Vânia Maria Jorge Nassif vania.nassif@gmail.com Universidade Nove de Julho – Uninove São Paulo – SP
N
atal é conhecida como a Noiva do Sol, apelido que ganhou por possuir cerca de 300 dias ensolarados no ano. Na 2ª Guerra Mundial, a grande região de Natal teve importante papel na vitória dos aliados pela sua localização geograficamente estratégica. Nela foi instalada uma base aérea (Parnamirim Field) para abastecimento e manutenção dos aviões norte-americanos, sendo por esse motivo a primeira cidade do Brasil a conhecer produtos como refrigerantes, chicletes, calças jeans e óculos de sol. Hoje, segundo dados do IBGE-20141, a região metropolitana de Natal possui aproximadamente 1,5 milhões de habitantes, sendo uma das suas principais fontes de renda o turismo, atraindo milhares de turistas todos os anos com a beleza de sua cultura, praias e dunas. Em 2009, a Prefeitura de Natal e o Governo do Estado do Rio Grande do Norte mobilizaram a população para fazer uma corrente pela eleição da cidade como uma das 12 sedes da Copa do Mundo de 2014. Na data do anúncio o poder público montou um grande telão nas proximidades do Morro do Careca, um dos principais cartões postais da cidade, e convocou a população para torcer por Natal2. Deu certo, a cidade foi eleita e nos anos seguintes geraram-se grandes expectativas positivas pelo que seria o legado da Copa para o seu turismo 1 saladeimprensa.ibge.gov.br/noticias?view=noticia&id=1&busca=1&idnoticia=2704 2 www.natal.rn.gov.br/noticia/ntc-542.html
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Negócios Empreendedores
e economia3. A onda positiva permaneceu até meados de 2013, com os gastos de estrangeiros no país e a satisfação dos brasileiros aumentando4. Contudo, com o aproximar do evento, parte do sonho do legado esvaneceu. Atrasos nas obras de infraestrutura fizeram o custo aumentar em dezenas de milhões para os cofres públicos5 e algumas promessas, como a duplicação de uma importante avenida de Natal, a Roberto Freire, tiveram que ser esquecidas6. Parte da população se revelou insatisfeita, com entidades sindicais e movimentos sociais se organizando em protestos durante os jogos na cidade7. Natal recebeu quatro jogos da Copa do Mundo. Para tal, precisou demolir o estádio João Machado (Machadão) e o ginásio Humberto Nesi (Machadinho)8, dando lugar à Arena das Dunas, com capacidade para 42 mil pessoas9. Nela jogaram as equipes de Camarões, Estados Unidos, Gana, Grécia, Itália, Japão, México e Uruguai. A obra de R$ 423 milhões foi considerada a mais verde e sustentável de todas as Arenas construídas para a Copa, tanto pelo reaproveitamento dos resíduos da obra, como pelo aproveitamento de elementos naturais como chuva, vento e energia solar10. A Arena é um complexo multiuso, e após os jogos da Copa, vem sendo utilizada para outros fins além de jogos de futebol de equipes locais. Em seu primeiro ano após o mundial, já foi palco de mais de 30 grandes eventos, como shows e festivais de música, e até eventos corporativos, como a Feira de Empreendedorismo do Sebrae, com um público de cerca de 20 mil pessoas11. Além da Arena das Dunas foram feitas outras três grandes obras para permitir o recebimento da Copa do Mundo de 2014. Uma delas foi a conclusão antecipada do Aeroporto Internacional Governador Aluízio Alves, cuja marca adotada passou a ser Aeroporto de Natal12. O empreendimento, que 3 tribunadonorte.com.br/noticia/copa-gera-expectativa-positiva-para-a-cidade/217360 4 tribunadonorte.com.br/noticia/gastos-na-copa-superam-expectativa/255897 5 copadomundo.uol.com.br/noticias/redacao/2013/09/25/atraso-em-obra-da-copa-faz-emprestimo-anatal-ficar-r-54-milhoes-mais-caro.htm 6 www1.folha.uol.com.br/poder/2014/06/1468970-veja-o-legado-e-os-principais-compromissos-dosgovernos-para-a-copa.shtml 7 portalnoar.com/gana-x-eua-tera-o-maior-protesto-contra-copa-mundo-em-natal/ 8 www.copa2014.gov.br/noticia/demolicao-do-machadinho-em-natal-comeca-nesta-terca-feira 9 globoesporte.globo.com/rn/noticia/2015/01/Arena-das-dunas-completa-um-ano-com-quase-ummilhao-de-visitantes.html 10 www.nominuto.com/noticias/esporte/copa-2014-revista-destaca-natal-como-projeto-maisverde/42336/ 11 www.natal.aero/br/o-aeroporto/institucional/ 12 g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2014/06/prefeitura-libera-transito-em-viadutoestaiado-ao-lado-da-Arena-das-dunas.html
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custou R$ 480 milhões, foi concluído cerca de sete meses antes do prazo. Já as outras duas obras foram de mobilidade urbana, integrando o novo aeroporto à Arena e ao setor hoteleiro, bem como prolongando a avenida Prudente de Morais, importante para o acesso à Arena. Especificamente para a cidade de Natal isso significou ganhar seis túneis e dois viadutos, obra conhecida como complexo viário Dom Eugênio de Araújo Sales. Nesse capítulo serão contadas as histórias de Bruno Freire Cunha Lima e Rosivaldo Campos da Fonseca Junior. O primeiro, fundador da Hora do Pão, uma padaria localizada a 250 metros da Arena das Dunas e em frente a um dos túneis construídos para acesso à marginal da BR 101. Já nas margens da avenida Prudente de Morais, entre um dos novos viadutos e dois túneis, de frente para a Arena, ficam os dois estabelecimentos de Rosivaldo e sua esposa Karine Meire Sabino Dantas. Durante as entrevistas observaram-se mais proximamente atributos e perfis dos empreendedores e seus empreendimentos, que Vale (2014) classifica como uma análise a nível micro. Contudo, terminou-se por permear níveis mais amplos, como a inovação dentro dessas empresas, repercutindo em diversas outras empresas, e afetando o segmento. Dentro desses conceitos identificamos a presença das características do perfil empreendedor contemporâneo mais observadas na literatura atual. No estudo bibliométrico de Filardi e Fischmann (2014), mostra-se a evolução anual das características que compõem o perfil empreendedor, citadas anualmente nas últimas décadas. No último perfil levantado por eles, as características citadas foram: inovador, tolerante a risco, proativo, interpessoal, autoconfiante, determinado, perseverante, ambicioso, independente, criativo, qualificado, experiente, planejador e organizado. Já no trabalho de Faia e Machado (2014) observa-se também que o reconhecimento de oportunidades vem sendo objeto de amplos estudos no campo do empreendedorismo nas últimas décadas, inclusive criando-se modelos de Alerta Empreendedor para os que os estão buscando, como o de Tang et al. (2012). Nas duas histórias poderemos notar claramente a predisposição de Rosivaldo e Bruno para a identificação de oportunidades, tanto as que viabilizaram o início dos empreendimentos, como também as que permitiram a contínua inovação de seus modelos de negócio. Ou seja, evidenciando a característica de inovador. Com relação à motivação desses empreendedores para começarem seus negócios, Vale, Corrêa e Reis (2014) colocam em sua pesquisa que a motivação para o empreendedorismo, diferentemente da lógica binária tradicional resumida a empreender por necessidade ou por oportunidade, na realidade poderia estar relacionada a um conjunto de 15 motivos agrupados em seis categorias:
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Negócios Empreendedores (a) influência familiar (motivos: dar continuidade ou ampliar os negócios da família; dar ocupação a familiares; possibilidade de usar experiência/influência familiar); (b) atributos/ expectativas pessoais (motivos: facilidade ou possibilidade de usar relacionamentos na área; desejo de ter seu próprio negócio/tornar-se independente; disponibilidade de tempo; aumentar renda); (c) ambiente externo/mercado de trabalho (motivos: demissão com FGTS; desemprego; capital disponível para aplicação); (d) influência externa/de terceiros (motivos: convite para participar como sócio da empresa; influência/pressão de outras pessoas); (e) insatisfação com emprego (motivo: insatisfação com emprego); (f) oportunidade (motivos: identificação de uma oportunidade de negócio; usufruto de programa de demissão voluntária). (Vale, Corrêa, & Reis, 2014, pp. 322-323)
Ao longo dos casos ficará evidente que eles não empreenderam por necessidade, e também não foi apenas a identificação da oportunidade que os levou a avançarem com seus projetos. Nas histórias de Bruno e Rosivaldo, encontraremos outras dessas seis categorias, além da oportunidade. Por fim, quer se denotar, no campo dos atributos/perfil da análise micro, uma competência fortemente observada nos dois empreendedores, a resiliência. Na literatura, por vezes tratada como perseverança, é citada anteriormente no trabalho de Filardi e Fischmann (2014). A resiliência, enquanto fenômeno subjetivo, refere-se aos indivíduos com maior facilidade de adaptabilidade e resignação aos acontecimentos potencialmente difíceis na vida, especialmente situações que geram alto estresse, esgotamento e exaustão. (Souza Cruz & Moraes, 2013, p. 59)
Na pesquisa de Souza Cruz e Moraes (2013) com empreendedores em São Paulo, a resiliência mostrou-se como característica essencial para que eles vencessem os obstáculos e obtivessem sucesso na manutenção dos seus empreendimentos, além de permitir o aprendizado com os erros de gestão e os levando a uma maior profissionalização. Na Espanha, psicólogos apoiados em outros estudos internacionais propuseram a adaptação da escala de resiliência Connor-Davidson com 900 empreendedores (Manzano-Garcia & Calvo, 2013). No estudo, a resiliência em empreendedores espanhóis provou-se estatisticamente ser fruto de três fatores: • Robustez: quando encarando situações inesperadas ou de incerteza, os empreendedores tinham um comportamento de estabelecer metas, comprometimento com suas ações e a tomada de decisões necessárias; • Desenvoltura: empreendedores resilientes possuem competências que lhes permitem lidar com situações adversas, fazendo-os sentir ser capazes de atingir seus objetivos, que eles estão no controle de suas vidas, podendo obter os resultados desejados de cada situação;
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• Otimismo a atitude positiva, frente a situações adversas ou eventos de risco, nos quais o empreendedor trabalhava para fazer além do que era simplesmente esperado, controlando sentimentos desagradáveis.
Fotos: Vânia Nassif
Vários desses elementos característicos da resiliência poderão ser facilmente observados nas histórias dos empreendedores.
Arena das Dunas
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Bruno Freire Cunha Lima, na Hora do Pão Foto: Vânia Nassif
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CASO 1
HORA DO PÃO: É DANDO QUE SE RECEBE
B
runo Freire Cunha Lima sempre pensou em ser empresário. Sua primeira experiência foi aos 15 anos de idade, com seu irmão, Augusto Cunha Lima, quando montaram uma pequena lanchonete durante a alta estação na Praia de Pirangi. Por cinco anos eles dedicaram suas férias de verão ao empreendimento. Bruno assava os sanduíches, seu irmão vendia, e todo o dinheiro ganho era investido numa poupança. Atraindo a atenção de toda a localidade, eles fizeram sucesso e sentiram a emoção do que é empreender. Alguns anos depois, com base na experiência adquirida, surgiu a ideia de abrir uma pequena padaria. Enquanto seu irmão viajava, Bruno assumiu a montagem da empresa, estudando o mercado e orçando preços de equipamentos. Com o apoio do Sebrae, montou seu plano de negócio. Ao voltar, Augusto desistiu da ideia, queria empreender em outros segmentos. Mas já era tarde. Após meses de dedicação e sonho, Bruno havia se apaixonado pelo negócio que estava idealizando e resolveu assumi-lo sozinho. Assim, aos 22 anos, ele abriu a Hora do Pão, uma padaria de destaque na cidade de Natal, que vem funcionando há 18 anos em crescimento contínuo. No início o investimento e a responsabilidade foram grandes para alguém tão jovem. O dinheiro economizado com a lanchonete estava longe de ser suficiente para a abertura do negócio. Assim, Bruno pediu ajuda aos pais, ambos professores da universidade federal, que além do apoio emocional, cederam uma loja de rua em um pequeno prédio comercial próprio, sem cobrar aluguel. Já para pagar todos os equipamentos, ele enfrentou um financiamento de valor elevado, pela Caixa Econômica Federal. Bruno estudava Administração e, na sua forma de pensar, o financiamento não era um problema, e sim solução. Mas, R$ 80 mil de financiamento, há 18 anos, era um montante relativamente elevado e o plano de negócio contribuiu com 80% do que havia planejado. Eu era muito jovem, precisava seguir o plano, não tinha opção. Eu não tinha capital e meu pai não tinha mais como me ajudar, ele já estava me ajudando demais... Só existia uma opção: dar certo!
Para o empreendedor, esses momentos iniciais foram de grande aprendizado, superação e determinação. A empresa já nasceu toda legalizada, pagando
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os devidos impostos. Durante os primeiros seis meses, para economizar com padeiro, ele mesmo ia às 4h30 assar os pães. Se você tem determinação e quer, você consegue! Eu tive muita ajuda? Tive. Só em não precisar pagar o aluguel do local, já foi uma grande ajuda. Mas tive de ter muita determinação para crescer e provar que eu era capaz de levantar a empresa sem capital e enfrentar o financiamento. Foi uma vitória.
Hoje Bruno tem 40 anos, é casado, tem dois filhos e dedica seu tempo integral à empresa, sempre buscando oferecer qualidade superior em alimentação. A padaria funciona das 6 às 21h, todos os dias, de domingo a domingo, fechando apenas nos dias 25 de dezembro, 1º de janeiro e sexta-feira santa.
Crescendo e se reinventando A empresa nasceu pequena e foi crescendo. As duas portas de entrada sempre existiram, mas o salão era bem menor. O faturamento vinha essencialmente dos pães tradicionais, mas com o tempo surgiram novos produtos. Bruno sempre viajou bastante para conhecer negócios voltados à área de alimentação, visitando feiras do segmento, buscando ideias e aprendizados. Em uma de suas viagens ele descobriu uma forma de inovar seus pães. Antes, as variações desses produtos eram muito difíceis, e o produtor precisava comprar as pré-misturas de pães. Como elas só eram produzidas no Sudeste, os elevados custos logísticos faziam com que as padarias apenas vendessem os tradicionais. Diziam a Bruno que ficaria muito caro, e por isso ele não venderia. Mas este sabia que os novos pães diferenciados, como o brioche e os pães integrais, atrairiam novos clientes. Então, contratou um fornecedor de São Paulo, pagando o frete e todas as despesas. Valeu a pena. A linha de pães da Hora do Pão cresceu, atraiu novos clientes e impulsionou a empresa. Com o tempo, os custos logísticos foram diminuindo e o crescimento da operação ajudou para que se diluíssem mais. Além disso, a própria empresa foi criando suas receitas de pão. Em um torneio de inovação em panificação, a “Copa Bunge de Panificação”, o pão de abacate e o pão de laranja com goiabada, ambos desenvolvidos na Hora do Pão, ficaram respectivamente entre os cinco melhores do Nordeste e os três melhores do Brasil. Para Bruno, as inovações na linha de pães foram uma das bases que consolidaram o crescimento da empresa. Outro grande marco de inovação foi a implantação das refeições. Também fruto de suas viagens, Bruno observou padarias expandindo sua atuação e faturamento, ao oferecer café da manhã. Determinado, ele estruturou o serviço de
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café da manhã, almoço e jantar. A Hora do Pão foi a primeira padaria de Natal a oferecer almoço, e até que o público conhecesse esse conceito, foi necessário um grande esforço de divulgação. Muitas vezes vinha com minha esposa e almoçávamos sozinhos na Hora do Pão. “Vamos almoçar? Vamos!” E comíamos as únicas refeições servidas. Os clientes chegavam para comprar pão e nós divulgávamos com panfletos, a informação tinha que chegar ao cliente. Atualmente, por dia, na hora do almoço, atendemos em torno de 200, 250 refeições.
Bruno diz não ter sonhado em chegar ao porte de hoje, mas ao viajar bastante viu as necessidades do mercado e percebeu que caso não se adequasse a elas, ficaria para trás. Prova disso é que hoje, praticamente todas as panificadoras da cidade, cada uma em sua proporção, adotaram o conceito das refeições e dos pães diferenciados. Para ele, atualmente a padaria está consolidada e seu foco agora é aumentar a satisfação do cliente e o fidelizar cada vez mais.
O desafio da Copa A Copa do Mundo foi marcante para a Hora do Pão, mas não positivamente, como se esperaria. A cidade precisou se preparar para o evento. Quanto à mobilidade, foi necessária a construção de novos túneis e acessos. A padaria está bem próxima da Arena das Dunas e todos os acessos em volta foram interditados para a reforma. Eu tenho uma clara lembrança do dia 15 de janeiro. Eu estava na praia e o telefone tocou: “Sr. Bruno, interditaram aqui na frente da padaria”. Saí da praia, cheguei aqui e, para entrar na minha empresa, tive que pedir permissão para abrirem a cancela. Vivi horas de desespero. Pensei: “O que eu vou fazer? Eu vou quebrar!”. Nesse dia eu entrei no escritório e disse ao meu cozinheiro: “Diminui a comida, para isso, para aquilo. Eu vou para a praia pensar o que fazer”.
Bruno não queria demonstrar pânico aos funcionários, ele precisava pensar com calma no que fazer antes de tomar alguma decisão precipitada. Ficando ali ele sentia que ia apenas começar a chorar, então decidiu voltar para a praia e conversar com a esposa. Quando você cai em desespero, e se agarra nele, você fica enlouquecido e não consegue encontrar qualquer solução. Se não tiver equilíbrio para tomar suas decisões, você termina se precipitando e tomando as decisões erradas. Enfim, dessa forma fui ficando mais sereno e, quando se está sereno, se pensa melhor.
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A obra precisava ser feita e a empresa precisava se adequar, contou Bruno, emocionado. As vendas caíram para 40% na primeira semana. Em vez de se desesperar, ele manteve o equilíbrio e procurou soluções. Inicialmente, entrou em contato com a construtora e o prefeito da cidade, em uma reunião, na qual decidiram que fariam o máximo para que as obras não prejudicassem a padaria. Um dos pleitos atendidos foi abrir um retorno em frente à empresa, que restaurou o faturamento para 60% do que era antes da obra. Ainda assim, não dava para cobrir os gastos. Primeiro ele pensou em montar um delivery, mas o motoqueiro também não tinha como passar pela obra. Bruno pedia a Deus que o ajudasse a encontrar alguma solução, mas aparentemente a única coisa a fazer era “enxugar” a empresa. Para se recuperar, ele precisou fazer o pior: selecionou alguns funcionários e antecipou suas férias, e desligou outros 15. Com isso, criou-se um clima muito ruim, com funcionários assustados com medo de serem os próximos a serem demitidos. Várias ações foram feitas sobre isso, para reforçar a motivação deles, mostrando que quem ficou não iria sair. Bruno dizia: “Confie em mim que vocês vão ficar, queremos garantir vocês aqui”. O custo das demissões foi altíssimo, e mesmo assim, não reduziu suficientemente os gastos mensais para alcançar o ponto de equilíbrio financeiro. Apesar de tudo, Bruno ainda investia. A obra gerava muita sujeira, assim, mesmo tendo demitido 15 pessoas, ele contratou mais uma ASG (auxiliar de serviços gerais) para manter a limpeza. Ele sentia orgulho quando o secretário da obra, um cliente frequente, se surpreendia com o salão estar tão limpo com o “poeirão” que estava lá fora. Nesse tempo Bruno abandonou seu escritório no piso superior e trocou-o por uma das pequenas mesas do salão, numa esquina próxima à entrada da loja. De lá ele observava o movimento e buscava estabelecer relacionamento com os clientes. O empreendedor diz que esta foi uma das principais razões do seu sucesso. Eu mostrava às pessoas que elas poderiam bater um papo com o dono, tomar um café comigo, pois eu as acolheria. Buscava conversar e escutar delas opiniões, para pensar como trazer mais clientes.
Ele atendia os clientes como um colaborador comum e, por vezes, perguntava por que ainda vinham, mesmo tendo todo aquele transtorno. A partir daí ele ia fazendo pequenos ajustes no seu negócio. Na pequena mesinha Bruno descobriu, por exemplo, que o pão francês não estava mais vendendo tanto, pois a Hora do Pão não estava na rota diária das pessoas para casa. Além disso, ele passou a usar melhor as redes sociais, indicando mapas de acesso e saída para os principais bairros da cidade. Foi quando surgiu a ideia de mapear e criar um convênio com as empresas ao redor da padaria, oferecendo aos funcionários dessas empresas 10%
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de desconto, além de uma sobremesa ou suco. A ideia era fazer com que as pessoas viessem a pé, porque não teriam como vir de carro, e isso também traria comodidade para a hora de almoço delas. A primeira parceria foi com o Sebrae, pois era grande o número de funcionários. Depois foram a própria Arena das Dunas, as concessionárias, Volkswagen, KIA, Fiat ao redor e demais empresas. Tudo era feito para agradar esses clientes, até sobremesa gratuita foi servida algumas vezes. O desconto de 10% reduzia em muito a margem da Hora do Pão, mas era o suficiente para melhorar o faturamento. O resultado foi tão bom que em fevereiro, o mês seguinte após o local ser interditado, todos os convênios já tinham sido firmados e a empresa equilibrava suas contas. Além disso, muitos desses clientes, mesmo após o fim da obra, continuam frequentando a padaria. Nesse momento Bruno sossegou e pensou: “Consegui chegar no meu ponto de equilíbrio, agora quebrar eu não quebro mais... até onde der eu vou garantir aqui a minha empresa”. A sorte é que as obras tinham um prazo, o início da Copa do Mundo, e dentro de seis a sete meses elas tinham de ficar prontas. E ficaram. Foi um aprendizado muito grande, esses sete meses valeram mais que quatro anos de faculdade. No final essa obra ficou muito bonita e viável para a cidade. Prejudicou-me um pouco, mas eu não posso ser egoísta e reclamar o que perdi, pois valeu a pena para a mobilidade de Natal. A Arena das Dunas ficou muito bonita, sou frequentador dela.
Vivendo uma Copa do Mundo Depois de tantos tropeços, chegou o momento da Copa. Criaram-se muitas expectativas, mas também muitos medos. O medo de precisar conter uma multidão, de não poder vender alguns produtos, de ter fiscalização. No final, não houve nada disso, foi um período tranquilo. Primeiramente, Bruno preparou sua equipe para receber o turista estrangeiro. Ofereceu seis meses de aulas de inglês para os funcionários que queriam aprender, e contratou mais dois fluentes na língua para dar suporte. Depois, estudou a cultura de alimentação do estrangeiro nas outras Copas. Descobriu que o estrangeiro não gostava de sentar para comer, que em outros eventos preferia fast-food, levar o lanche. Assim, ele criou uma promoção de combo, baguete mais refrigerante, por um preço diferenciado, para estimular a venda. “Isso foi muito interessante pelo medo de encher demais o salão, de ter 50 pessoas comendo e bebendo, e acontecer alguma briga, alguma confusão, um quebra-quebra”, afirma. Também houve refeições, um prato típico, a feijoada, e ao meio-dia, o caldo do feijão para tomar com uma cerveja. Mas a proposta era o cliente pegar o sanduíche, o refrigerante e sair.
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A Fifa criou uma certificação das empresas que forneciam alimentos perto da Arena. Criaram uma nomenclatura: A, B, C e D. A Hora do Pão foi fiscalizada pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e obteve o selo A. Isso para Bruno foi uma grande vitória. Foram poucas empresas no Brasil que conseguiram o selo A. Em Natal, foi a única padaria a conseguir, e restaurantes foram pouquíssimos. “E eu estava lá, entre os melhores”, contou com orgulho. Na época da Copa a venda de refeições não aumentou, até porque a via foi novamente interditada. Ela foi o Caminho do Gol, o acesso principal para a Arena, passavam apenas pedestres. O empreendedor conta que o faturamento foi menor que o de um dia normal, não cobrindo as despesas, mas que para ele valeu a pena ter participado desses dias históricos. No dia do jogo do México chegou a atender cerca de 100 mexicanos. No jogo da Itália x Uruguai, atendeu muitos italianos. Para Bruno foram dias tranquilos, pois as pessoas que não saíam com o lanche, sentavam e ficavam em um clima bem familiar. Enfim, no saldo, a Copa prejudicou Bruno, mas ele relata que isso fazia parte da situação e aproveitou o momento. Eu estava aqui, no local. Tive que me adaptar àquela realidade durante aqueles 15 dias. Então eu posso dizer que também aproveitei para brincar, conhecer novas culturas, trocar camisetas. Entrei no clima. Tem que ser feito? Tem! Então vamos participar! Vamos ajudar, vamos fazer com que seja o melhor!
Crenças de Bruno e a Hora do Pão Um dos pilares da Hora do Pão é a valorização e fidelização do cliente. Isso foi essencial, principalmente na época da Copa. Há feriados e horários do final de semana em que é financeiramente inviável abrir a padaria. Mas Bruno abre e explica o porquê: O sr. Barreto, por exemplo, que mora no centro da cidade, vem de táxi de lá pra cá. Não posso fechar a padaria no domingo de tarde, pois ele vem com as irmãs tomar a sopa. Chegar aqui e estar fechado seria uma decepção para ele. Então a gente tem um comprometimento com os clientes. E eles têm um compromisso comigo também! Eu não posso só pensar na hora de ganhar, as vezes eu tenho que perder também!
Bruno valoriza muito seu cliente, orientando seus colaboradores a pensarem na Hora do Pão como um anexo da casa do cliente. Então, se alguém pedir tapioca com cereais, mesmo nunca tendo visto, o colaborador provavelmente irá perguntar ao cliente como é feita essa tapioca, e tentará fazê-la, sem se importar com o custo. Segundo ele, o propósito não deve ser ganhar
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dinheiro, isto é apenas a consequência de trazer a satisfação do cliente para dentro da empresa, uma vez que aumentará sua propensão a voltar outras vezes ao estabelecimento. No que diz respeito à responsabilidade ambiental, a Hora do Pão mantém convênio, por exemplo, com uma empresa que recolhe a cada dois dias toda a gordura produzida na cozinha. Ao invés de descartar essa gordura na rede pública, esse óleo é reaproveitado para fazer sabão. Já no âmbito social, a Hora do Pão não pode contribuir doando o alimento que sobra, pois a Covisa (Coordenação de Vigilância em Saúde) orienta que este seja descartado. Mas a empresa faz doação de pães para instituições necessitadas, como o Hospital Infantil Varela Santiago, que trata crianças com câncer, a creche João Augusto, entre outras. Outro exemplo é a arrecadação do Dia Mundial da Alimentação, em 16 de outubro, quando todo o dinheiro arrecadado da venda do pão francês é doado. Neste ano foi para a Casa Durval Paiva, uma ONG que também apoia crianças com câncer. Além do dinheiro, Bruno e a esposa também recebem essas crianças na padaria, procurando proporcionar duas ou três horas de um momento diferenciado a elas. “Eu só vou parar de doar no dia que eu não puder fazer isso, mas equanto eu puder, vou continuar doando. É dando que se recebe!”
O perfil do empreendedor Para Bruno, um empreendedor é uma pessoa persistente, que vai à luta, e que tem muito equilíbrio. Ele deve sempre calcular o risco, pensando no que pode acontecer. Além disso, deve servir à sociedade, procurando fazer o bem. Bruno pensa que poderia ser um pouco mais agressivo, mas não tem ambição de riqueza. Seu sonho não é ter a maior padaria, mas sim, a melhor padaria, independentemente do tamanho. Se aparecesse uma oportunidade, ele aproveitaria, mas desde que não tivesse de abandonar os seus princípios. Os pais de Bruno sempre lhe ensinaram a ser bondoso e a não ser ganancioso. Na adolescência, até pensava em enriquecer, mas logo amadureceu e viu que a vida tem outros propósitos. Prefiro ficar onde estou para ver meus filhos crescerem e viver com eles, poder tomar um banho de piscina, poder ir ao colégio deles no Dia dos Pais. Tenho dois filhos maravilhosos, uma mulher que me ajuda demais. O que eu preciso mais?
Bruno acredita na cooperação, em ajudar uns aos outros. Ele não vê o concorrente como um inimigo, o concorrente é um amigo, um colega de
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profissão. Quando foi presidente da Associação de Panificação do Rio Grande do Norte, ele sempre procurou orientar seus colegas, seja vendendo novos produtos, como bolos, ou ensinando receitas. Uma das recomendações de Bruno era que os colegas oferecessem refeições self-service. Ele até se oferecia para apresentar a própria padaria e ensinar tudo que fosse necessário. Bruno conta que já chegou a acolher um colega de uma padaria em outro bairro por 15 dias, e ensinou tudo o que ele precisava para montar seu próprio self-service. A Associação foi muito boa pra mim, eu ajudei muitas pessoas e elas me ajudavam também, porque eu ensinava e aprendia. Eu não tenho problema de ensinar porque eu sei que amanhã vai ter alguma coisa que eu não vou saber e vou precisar de alguém pra me ensinar. Acho que a vida é assim. É dando que se recebe. Eu acho que não preciso de mais, eu tenho que ajudar! Deus foi muito bom pra mim, e naturalmente eu procuro passar isso para os meus filhos. E se tem um funcionário meu precisando, eu vou ajudar!
Enfim, Bruno nos transmite mais do que lições de empreendedorismo, ele nos dá lições de vida. Além das competências de empreendedor, ele nos mostra com base em suas crenças pessoais que a autorrealização de uma pessoa não está na riqueza. A felicidade e sucesso se alcançam sendo bondoso, compartilhando conhecimentos, fazendo a caridade e tratando bem as pessoas. A vida é um ciclo no qual você recebe o que dá, e colhe o que planta. Equilíbrio emocional é importante para enfrentar desafios, planejar e tomar boas decisões, especialmente em situações adversas. Embora o plano de negócio não seja uma ferramenta usual dos empreendedores, Bruno usufruiu parcialmente desse planejamento, especialmente por se sentir, inicialmente, um empreendedor inexperiente. Como fonte do crescimento da Hora do Pão destacou-se a inovação constante de seu modelo de negócio, sempre acompanhando as tendências e explorando novas oportunidades. Já entre os diferenciais apresentados por Bruno, estão o contato direto com o cliente e sua capacidade de ser atencioso com as pessoas. A atitude de descer para o salão da padaria, se aproximar dos clientes e atendê-los pessoalmente trouxe muito aprendizado para ele e para sua equipe de trabalho. E essa aprendizagem se estendeu para outros tipos de comportamento, como por exemplo manter compromisso, a despeito do lucro, atender expectativas sem experiências prévias e, por fim, fazer do ambiente de trabalho uma continuidade da vida pessoal, vivenciando o negócio com paixão.
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Fotos: Vânia Nassif
Resiliência para enfrentar o progresso: o empreendedorismo potiguar em meio à Copa do Mundo
Hora do Pão: pioneira em servir refeições, padaria sentiu as vantagens e desvantagens de estar próxima à Arena
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Rosivaldo Campos da Fonseca Junior: patrocínio ajudou na reforma do ponto Foto: Vânia Nassif
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CASO 2
ROSIVALDO: NASCIDO PARA O COMÉRCIO
A
literatura, de maneira geral, afirma que empreendedores sonham e realizam. O sonho de Rosivaldo Campos da Fonseca Junior era ser atleta. Durante 12 anos treinou jiu-jitsu, além de praticar outros esportes, como o surf, por exemplo. Aos 18 anos, ele foi servir na Marinha, um período que descreve como marcante em sua vida. Até então, Rosivaldo passava a maior parte do tempo em casa, fazendo as coisas de que gostava, especialmente esportes, sem ter grandes responsabilidades. Nesse período ele precisou amadurecer, momento em que começava a namorar Karine Meire Sabino Dantas, sua atual esposa, que engravidaria em logo em seguida. Assim, ao sair da Marinha, desempregado e com um filho, o sonho de praticar atletismo precisou dar lugar à responsabilidade e maturidade de trabalhar para sustentar sua nova família. Foi quando eu abri os olhos e tive que trabalhar. Comecei como ajudante geral em um mercadinho, passei um ano na Caixa Econômica como estagiário de administração, fiz curso técnico e fiquei um ano na Agência da Ribeira. Saí e trabalhei um dia como vigilante no Praia Shopping, mas não aguentei, pois a carga horária era de 12 horas em pé e eu não estava acostumado.
Após pedir demissão do emprego de vigilante, conseguiu uma colocação como promotor de vendas em um pequeno mercado onde trabalhou por dois anos. Nesse trabalho percebeu que sua promoção de vendedor estava sendo barrada pelo seu supervisor imediato e acabou pedindo demissão. Em seguida, começou a trabalhar no atacado, em outra empresa, onde também atuava com vendas e cobrança. Nesse período foi assaltado ao chegar ao banco onde fazia os pagamentos da empresa. Desgostoso com a situação, resolveu não mais realizar os serviços de pagamento e ficou apenas com a parte de vendas. Passou a não receber mais as comissões de antes e pediu demissão novamente. Logo recebeu a proposta de um amigo para trabalhar em outro atacado no qual está empregado há dez anos. Nesse período começou a empreender com um mercadinho de bairro que logo demandou mais investimentos, superior ao que Rosivaldo possuía. Foi quando ao passar pela avenida Prudente de Morais viu uma banca de revistas desativada. Assim Rosivaldo deu início ao seu lado empreendedor. Como ele mesmo relata:
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Negócios Empreendedores Num determinado dia eu passei na Prudente de Morais, essa banca estava um pouco largada aí eu falei para o dono: “Ei, essa banca aqui, por que o senhor não bota o barco pra frente nela? Ela é tão boa, bem localizada”.
No desenrolar da conversa, ele percebeu que poderia investir naquela banca. Voltou no dia seguinte e conversou novamente com o dono, que estipulou o valor de R$ 10 mil para a venda. Sem dinheiro, Rosivaldo fez uma proposta de dividir o valor em sete cheques. Caso não cumprisse o compromisso, devolveria a banca ao antigo dono. O negócio foi fechado e logo estava trabalhando com a esposa Karine. Com o tempo, passou a diversificar. Deixamos de vender revista porque não dá mais o que era antes. Aqui era mais movimentado, mas depois da obra da Arena, o movimento caiu mais um pouquinho. Mas como a gente já é antigo, já tem a clientela, o pessoal sempre procura. Só não tem mais a revista, mas o restante tem tudo: lanche, balinha...
O desafio da Copa No período de reforma para a Copa do Mundo, Rosivaldo e sua esposa passaram por dificuldades semelhantes às de Bruno, no caso anterior. Boa parte dos equipamentos e obras do complexo viário Dom Eugênio de Araújo Sales, entre eles um viaduto, dois túneis e um retorno (pontilhão), foram construídos em frente ao empreendimento do casal. Para tanto, foram fechadas diversas ruas no entorno, acabando com o movimento rodoviário. Como forma de recuperar o faturamento, eles observaram a oportunidade de ampliar a oferta de alimentação, e assim atender os operários que trabalhavam nas obras próximas. Com isso conseguiram formar uma clientela fiel, conforme relatam. Aqui fecharam a rua e não passava carro, nem ambulante, não passava ninguém. Ficavam só os operários, trabalhando sábado, domingo. Então nós passamos a servir o café da manhã, esse tipo de coisa. Eles tinham café da manhã também no refeitório, só que alegavam que lá era ruim. E aqui vendemos a um preço accessível, bem baratinho. Só para manter o pessoal. (Rosivaldo) Criamos um laço de amizade, porque todo mundo aqui gostava da gente e quando não abria final de semana, eles reclamavam na segunda-feira. (Karina)
Mas também vieram dificuldades e percalços. Rosivaldo recebeu uma intimação da prefeitura informando que a banca seria removida daquele ponto. Apesar disso, foi tranquilizado por um dos engenheiros responsáveis, que garantiu que a banca ficaria no lugar em que estava. E ficou!
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Ainda com receio de perderem a banca, e tendo em vista já vendiam mais lanches do que revistas, em janeiro de 2014 o casal alugou um ponto comercial ao lado da banca. Como a gente ficou com medo de perder a banca, eu aluguei essa loja para fazer uma lanchonete. Funcionavam as duas coisas porque ainda estava naquele processo: a banca tinha ido para lá, mas ficou toda empenada, muito feia. Eu até desestimulei e pensei em mandar ela embora.
Com a conquista dos dois pontos de venda, Rosivaldo podia diversificar os produtos que vendia e passava a ter uma garantia maior de continuidade dos negócios, pois mesmo que a banca de revistas fosse retirada do local, ele tinha esse novo ponto para atender seus clientes. Seguro com a presença do engenheiro da prefeitura, que já o havia ajudado, sem cobrar nada por isso, conseguiu mais um benefício. O engenheiro logo ordenou que a banca fosse restaurada voltando ao formato e condições anteriores. Além disso, a empresa patrocinadora da Copa do Mundo se responsabilizou por finalizar as melhorias na estrutura. Assim, finalizadas as obras, Rosivaldo ficou com os dois estabelecimentos operando em negócios distintos. A banca de revistas, chamada Banca Machadão, em homenagem ao antigo estádio, já restaurada, atuando na parte de papelaria, jornais e revistas. E o ponto comercial alugado, Sabor da Gente, focado nas demandas de alimentação. No Sabor da Gente, o casal conseguiu expandir sua atuação vendendo salgados, sopa, cuscuz, cachorro-quente, creme de galinha, macaxeira e lanches para refeições rápidas. A ampliação da atuação para a alimentação foi pensada por Rosivaldo como forma de explorar não só a demanda momentânea dos operários nas obras da Copa, mas também da população ao redor, aumentando as receitas e o ritmo de crescimento do negócio. Além disso, o empreendedor também aproveitaria melhor a oportunidade da Copa do Mundo, uma vez que conseguiria oferecer refeições e lanches aos turistas. Sua estratégia se provaria bem-sucedida.
Vivendo uma Copa do Mundo Ao iniciar a Copa do Mundo, Rosivaldo estava com tudo organizado para receber os novos clientes, apesar de algumas dúvidas sobre o que realmente poderia vender devido à falta de informação por parte dos organizadores do evento. No jogo de abertura da Copa, México x Camarões, o casal teve uma
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surpresa. As vendas superaram as expectativas. A previsão de vendas que Rosivaldo havia feito para o mês inteiro foi superada só no jogo de estreia. Foi como marcar um gol na Arena das Dunas lotada. Com a demanda muito maior de clientes, Rosivaldo teve que improvisar e acabou pedindo ajuda à família. Veio a família toda para ajudar. Tinha umas dez pessoas aqui. Trouxe até uma intérprete para poder falar. A minha sobrinha é fluente no inglês, ficou aqui comigo e me ajudava. Era sempre uma surpresa. Quando ia chegando muita gente, eu ligava pra casa: “Mãe, manda meus irmãos”. Aí minha irmã vinha, foi tudo no improviso. Ela é enfermeira e o esposo dela é médico. Vieram meus irmãos, meu pai, meu sobrinho.
Conhecendo melhor o empreendedor Durante o relato sobre a Copa do Mundo, Rosivaldo nos conta sobre sua família. Em alguns momentos fica clara a influência da mãe no desenvolvimento das suas características empreendedoras. Meu sangue corre na veia do comércio. Não sei de onde eu tirei, pois ninguém na minha casa é comerciante. Meu pai é bancário e minha mãe é dona de casa. Há um tempo a gente passou uma dificuldade muito grande. Meu pai trabalhava num banco chamado APERN, que fechou, e passou uns três ou quatro anos desempregado, acreditando que ia entrar na Caixa Econômica. Minha mãe, frente à dificuldade, passou a vender leite, confecções, tudo. Morávamos numa casa grande que tinha pé de frutas, por exemplo, manga, coco, e comecei a vender essas frutas na rua para ajudar.
Ajudando a mãe ainda quando criança, Rosivaldo desenvolveu o gosto pelo comércio. Nesse momento descobrimos que, ao contrário do que ele havia dito, sua vida de empreendedor não começou em um mercadinho de bairro, mas ainda na infância, frente aos problemas financeiros enfrentados pela família. Depois disso, ainda na adolescência, passou a vender confecções de porta em porta, como ele mesmo explica. Eu também vendi confecções. Eu tinha uns 13, 14 anos, andando pela cidade, e precisava de dinheiro para passear, treinar jiu-jitsu, coisa que eu gostava. Ia até as lojas, oferecia para os funcionários, fazia um crediário e voltava pra cobrar.
Além desses momentos em que se percebe o início do empreendedorismo, também foi possível identificar a influência familiar na construção do caráter de Rosivaldo, principalmente em dois momentos distintos. Primeiramente, quando ele é assaltado e apenas parte do dinheiro que estava em sua posse
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é levada. Os valores que conseguiu preservar, devolveu prontamente para a empresa. Ao explicar o porquê de não ter declarado a perda de todo o montante e embolsado a diferença, afirma que seus pais o ensinaram a ser um homem. O segundo momento em que podemos perceber a índole de Rosivaldo, foi durante a Copa do Mundo, ao definir os preços a serem cobrados dos clientes estrangeiros que pagavam em dólar. A gente não usou de má-fé com ninguém, não precisou lesar. Eles tinham muito dinheiro, não tinham noção de quanto valia o dólar. Se eu, por exemplo, mostrasse um salgado por cinco dólares, pra eles era pouco, e pra mim já era muito. Só que eu não vendia por cinco dólares, eu vendia o salgado por um dólar. Dizia que o salgado era um dólar, a cerveja, um dólar.
Dessa forma, mesmo cobrando um preço barato por seus produtos, Rosivaldo conseguiu ganhar um bom dinheiro durante a Copa do Mundo. Quando esta acabou, Rosivaldo foi pagar as dívidas que tinha feito com os eletrodomésticos recém-comprados para a lanchonete.
Rosivaldo, empreendedor x funcionário Um aspecto que fica bem claro é o dilema que Rosivaldo enfrenta por dividir sua rotina entre um emprego convencional e o seu lado empreendedor. Por trabalhar como vendedor, o tempo que ele dedica ao seu empreendimento se reduz ao fim de tarde e noite de cada dia, além dos finais de semana. Para conseguir expandir seu negócio, teria que dedicar mais tempo, mas como o próprio diz, talvez seria trocar o certo pelo duvidoso. Eu ainda estou preso na empresa porque ainda tenho medo de largar o certo pelo duvidoso. É por isso que as minhas coisas não vão para frente. Porque eu não tomo partido nem de um lado e nem de outro, estou ainda em cima do muro. Para que largar o que está dando certo? De repente, quebro a cara. Ou pode dar certo mesmo, e é o que eu quero da vida.
Rosivaldo começou sua vida profissional em meio à necessidade de prover para sua família, pois ainda jovem casou e logo teve um filho. Contudo, seu empreendedorismo surgiu pela oportunidade. Ele soube analisar aquela oportunidade, o potencial da pequena banca tão bem localizada, e em meio a tantas adversidades, avançou com a aquisição do ponto. Essa atitude corajosa fez a diferença, ao invés de ter usado desculpas como não ter tempo disponível por ser empregado, ou não ter os recursos financeiros para comprar
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Fotos: Vânia Nassif
a banca, ele usou sua criatividade e os meios disponíveis para conseguir ser bem-sucedido na negociação e no empreendimento. Observamos o mesmo comportamento na Copa do Mundo, quando encarando uma elevada demanda ele voltou a se usar os meios disponíveis para conseguir atender todos os clientes, chamando os familiares para ajudar. Essas atitudes e comportamentos são reflexos da educação familiar. Desde cedo, em sua infância, Rosivaldo contribuiu para o sustento de sua família, vendendo frutas e confecções. Assim, ajudando a família a enfrentar as dificuldades financeiras, ele percebeu a importância do trabalho e desenvolveu o gosto pelo comércio. E, mais do que isso, aprendeu que honestidade e justiça estão acima de qualquer necessidade monetária, como vimos no exemplo do roubo e da precificação em dólar durante a Copa. Talvez por ter visto a dificuldade da família enquanto seu pai esteve desempregado, hoje Rosivaldo não quer trocar o certo pelo duvidoso. Assim, ele se mantém nas duas ocupações: seu emprego e o pequeno negócio.
Papelaria, revistas e alimentação: a diversificação nos negócios de Rosivaldo
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CONSIDERAÇÕES FINAIS Após os fechamentos dos casos retomamos as considerações teóricas feitas na introdução. Na pesquisa de Vale, Corrêa e Reis (2014) apontaram-se seis conjuntos de motivos para o empreendedorismo: influência familiar; atributos/expectativas pessoais; ambiente externo/mercado de trabalho; influência externa/de terceiros; insatisfação com emprego; e oportunidade. No caso de Bruno, da Hora do Pão, percebe-se claramente a influência externa/de terceiros quando o irmão dá a ideia de abrirem uma padaria em conjunto. Mas não só este. Também se identificam dois outros motivos, o da oportunidade e o dos atributos/expectativas pessoais. Afinal, quando o irmão voltou de viagem e informou ter desistido da ideia da padaria, os estudos de Bruno no segmento já haviam avançado tanto, que ele vislumbrou ser uma boa oportunidade de negócio. Além disso, já havia se estabelecido nele o desejo de ter seu próprio negócio, decidindo assim avançar com o empreendimento esboçado em seu plano de negócio. Já na história de Rosivaldo, percebeu-se a motivação da oportunidade, quando ele identifica a banca de revistas tão bem localizada e desativada. Além disso, há a questão dos atributos/expectativas pessoais, no que se refere à vontade de aumentar a renda e ter um negócio próprio. Com relação ao perfil e características dos empreendedores, conforme as elencadas por Filardi e Fischmann (2014) – ser inovador, tolerante a risco, proativo, interpessoal, autoconfiante, determinado, perseverante, ambicioso, independente, criativo, qualificado, experiente, planejador e organizado –, é possível traçar algumas conclusões. Dentre as características, destacou-se em ambos os empreendedores o caráter inovador, com Bruno desenvolvendo sempre novos produtos e serviços, e Rosivaldo mudando seu modelo de negócio para servir lanches e refeições. A tolerância ao risco também está presente na história de ambos, com Rosivaldo comprando a banca com cheques sem ter o dinheiro, e com Bruno ainda jovem enfrentando um alto financiamento para a abertura da padaria. A autoconfiança, ao acreditar que seriam capazes de ter sucesso na abertura de seus empreendimentos, com ambos apostando no sucesso e assim conseguir vir a arcar com os cheques e o financiamento. E uma outra interessante, a experiência, pois ambos já tinham de alguma forma empreendido durante sua juventude. Diferentemente de Bruno, que se mostrou planejador e organizado, com uma formação na área de negócios e sempre estudando sua atividade de negócio, denotando ser qualificado, Rosivaldo mostrou-se mais reativo, adaptando-se às oportunidades e contingências que foram surgindo no ambiente. Outro
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ponto de diferenciação é a ambição atual de Bruno que está mais comedida, já que, com a consolidação do empreendimento, atingiu a estabilidade, também desejada por Rosivaldo, sem necessitar de um segundo trabalho. Com relação à característica interpessoal, observa-se a relação de Bruno com seus consumidores, ficando no salão e buscando uma maior intimidade com o cliente, de forma a compreender as necessidades deles. Uma característica que se destacou em Bruno, mas que não se observou na revisão teórica, foi a bondade, com destaque para ajudar o próximo. Algo mais subjetivo, que influenciou no sentimento de autorrealização como empresário. Por fim, acreditamos que a característica essencial para o sucesso desses dois empreendedores foi a resiliência, uma característica associada à determinação, perseverança e criatividade, dentre o conjunto anterior. Os empreendedores resilientes acreditam, sobretudo, na capacidade de resolução que possuem e que ao desenvolver atividades nas quais acreditam e possuem o conhecimento para tal, o sucesso será consequência do conjunto de ações e crenças. (Souza Cruz & Moraes, 2013, p. 74)
Ressaltam-se também os conceitos de Manzano-Garcia e Calvo (2013), com os fatores intrínsecos da resiliência: robustez em traçar ações e tomar as decisões necessárias; desenvoltura para lidar com situações adversas e complexas de serem resolvidas, mantendo o controle da situação; e o otimismo para encarar de forma positiva essas situações, sem se abater com sentimentos desagradáveis. Apesar das diferenças das características dos empreendedores dos dois casos estudados, podemos perceber que ambos tiveram muitas dificuldades a serem enfrentadas, precisando ser muito resilientes, principalmente no período pré-Copa, devido às diversas obras que foram realizadas no entorno da Arena das Dunas. Foi o caso de Bruno, no momento que viu o acesso à sua padaria ser interditado, de tal forma que o faturamento caiu a ponto de colocá-lo em risco de falência. Nesse momento ele procurou meios para contornar a situação, não se entregando ao desespero. Se não tivesse refletido, estabelecido objetivo e tomado decisões assertivas, a Hora do Pão não estaria mais hoje encantando os consumidores natalenses. A mesma situação ocorreu na implantação do self-service, com apenas ele e a esposa almoçando no início. Ele insistiu na inovação e conseguiu torná-la viável, de forma que seu sucesso influenciou todas as demais padarias da cidade. Rosivaldo passou por dificuldade semelhante e a superou. Vale ressaltar que muitos dos outros estabelecimentos na área interditada faliram. No caso do Sabor da Gente, a alternativa foi inovar, ajustando seu modelo de negócio, tirando o foco das revistas e aumentando os lanches e refeições, de forma a atender os operários da obra. Durante a Copa do Mundo, nos dias dos jogos, os empre-
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endedores vivenciaram uma situação inversa: enquanto as vendas de Bruno, na Hora do Pão, eram menores que nos dias normais, Rosivaldo, no Sabor da Gente, conseguiu apenas no dia do primeiro jogo um volume de vendas equivalente a um mês de trabalho. Passado o evento, ambos se estabilizaram e mantêm hoje seus negócios sustentáveis. Bruno se dedicando mais à família, procurando aumentar a qualidade de seus produtos e serviços, sempre inovando e buscando ajudar o próximo. E Rosivaldo, procurando expandir a lanchonete, enquanto mantém seu emprego estável para garantir o sustento da família. Ambos felizes e realizados, aguardando poder acolhê-lo em sua visita, caro leitor.
REFERÊNCIAS Faia, V. S., Rosa, M. A. G., & Machado, H. P. V. (2014). Alerta empreendedor e as abordagens Causation e Effectuation sobre empreendedorismo. Revista de Administração Contemporânea, 18(2), 196-216. Filardi, F., Barros, F. D., & Fischmann, A. A. (2014). Do Homo Empreendedor ao Empreendedor Contemporâneo: Evolução das Características Empreendedoras de 1848 a 2014. Revista Ibero-Americana de Estratégia, 13(3), 123-140. García, G. M., & Calvo, J. C. A. (2013). Psychometric properties of Connor-Davidson Resilience Scale in a Spanish sample of entrepreneurs. Psicothema, 25(2), 245-251. Souza Cruz, M. T., & Moraes, I. M. M. (2013). Empreendedorismo e Resiliência: mapeamento das competências técnicas e comportamentais exigidas na atualidade. Pensamento & Realidade. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em Administração-FEA. ISSN 2237-4418, 28(2). Tang, J., Kacmar, K. M., & Busenitz, L. (2012). Entrepreneurial alertness in the pursuit of new opportunities (p. 80). Journal of Business Venturing, 27(1), 77-94. Vale, G. M. V. (2014). Tréplica - Afinal de contas, que bicho é esse? Tréplica sobre o empreendedor e o empreendedorismo. Revista de Administração Contemporânea, 18(6), 900-908 Vale, G. M. V., Corrêa, V. S., & Reis, R. F. D. (2014). Motivações para o empreendedorismo: necessidade versus oportunidade? Revista de Administração Contemporânea, 18(3), 311-327.
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Arena Pernambuco São Lourenço da Mata – PE
Shutterstock/Adam Gregor
JOGOS DA COPA DO MUNDO DE 2014: Costa do Marfim
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Japão
Costa Rica
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Itália
Croácia
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México
Alemanha
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Estados Unidos
Costa Rica (5) 1 x 1 (3) Grécia
Capítulo 4
A GASTRONOMIA POPULAR: DO EMPREENDEDORISMO POR VOCAÇÃO AO EMPREENDEDORISMO POR NECESSIDADE Autores: Lednara de Castro Silva naracastros@gmail.com Universidade Federal de Pernambuco – UFPE Recife – PE
Vânia Maria Jorge Nassif vania.nassif@gmail.com Universidade Nove de Julho – Uninove São Paulo – SP
O
mundo contemporâneo mostra-nos mudanças drásticas no mercado de trabalho. Ao lado do fantasma do desemprego, que assola as economias modernas, existe, também, uma mudança no perfil da mão de obra ocupada, com acréscimo no número de trabalhadores autônomos (Sebrae, 2013). É nesse ambiente que muitos vislumbram o empreendedorismo com uma via possível de inserção social e profissional. Baron e Shane (2007) definem empreendedor como aquele que faz acontecer, se antecipando aos fatos, e tem uma visão futura da organização. Vale et al. (2014, p. 315) aponta que a visão de empreendedores como pessoas atentas às oportunidades encontra amparo no pensamento econômico neoclássico. Por outro lado, Kirzber (1979) afirma que a exploração de novas oportunidades parte de iniciativas de empreendedores que estão sempre em estado de alerta e, assim, conseguem identificar oportunidades lucrativas de negócios. Diante desse cenário, o Brasil é considerado um dos países mais empreendedores do mundo, de acordo com a pesquisa GEM (2013). Essa pesquisa revela que a cada 100 brasileiros que começam um negócio próprio no Brasil, 71 são motivados por uma oportunidade de negócio e não pela necessidade. Essa realidade ganha vigor nos últimos sete anos, pois, até então, boa parte do empreendedorismo no Brasil tinha origem no empreendedorismo por necessidade.
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Por outro lado, dados do IBGE (2012) são bem claros ao destacar que a renda da população brasileira, ainda hoje, é caracterizada por altas taxas de desigualdades. Sendo assim, o empreendedorismo apresenta-se, muitas vezes, como opção ao desemprego ou ao trabalho precário. Llisterri et al. (2006) afirma que, em casos como esse, empreendedores provenientes de segmentos socioeconômicos desfavorecidos, movidos principalmente por fatores associados à necessidade de sobrevivência, estariam teoricamente imersos em ambientes pouco propícios ao desenvolvimento do empreendedorismo. No entanto, Vale e Corrêa (2013, p. 3) nos encorajam afirmando que “evidências empíricas sugerem que muitos empreendedores originários de segmentos socioeconômicos fragilizados e inicialmente movidos pela necessidade de sobrevivência conseguem criar empreendimentos sólidos e bem-sucedidos”. O empreendedorismo por oportunidade está associado a uma ideia vinculada a um produto ou serviço que agrega valor ao seu consumidor, seja através de inovação ou diferenciação. No entanto, é possível visualizar negócios empreendedores que nasceram por necessidade e que se tornaram negócios promissores (Aidar, 2007). Os casos pernambucanos aqui apresentados mostram essas duas realidades bem latentes e nos fazem refletir sobre o que realmente motiva as atividades empreendedoras, se são as motivações humanas, a necessidade de autorrealização e/ou sobrevivência. O Estado de Pernambuco sempre foi lembrado por sua gastronomia marcante e típica, que une elementos indígenas, africanos e europeus. Essa herança contempla Pernambuco como o terceiro polo gastronômico do Brasil, segundo a Abrasel – Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (2014). A palavra gastronomia se refere a tudo relacionado com a alimentação humana, bem como seus costumes e técnicas específicas para a preparação de qualquer alimento. Significa o estudo das leis do estômago, e é, antes de tudo, cultura, expressão e arte de um povo. A diversidade climática tem reflexos diretos na culinária. A seca e o clima semiárido imprimem na mesa do pernambucano uma cozinha de perenidade, ligada à conservação dos alimentos, altos teores calóricos e recursos para as constantes jornadas em busca de água. Nas áreas mais próximas ao mar, as receitas ganham em diversidade de ingredientes e cores, carregadas de sabor. Desde o litoral ao sertão pernambucano, a presença africana se nota mais forte devido aos resquícios da escravidão durante o ciclo da cana (Brasil, 2013). No século passado, o sociólogo Gilberto Freyre foi o pioneiro em defender os pequenos hábitos cotidianos para a percepção da sociedade de uma determinada
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região através de sua culinária. No livro Açúcar: uma sociologia do doce1, o autor pernambucano traçou o perfil do povo do litoral norte brasileiro por meio dos pratos típicos que integravam a culinária e se tornaram símbolo da cultura local, um esforço para apontar a existência de um paladar brasileiro histórico. Segundo a Associação Brasileira das Operadoras de Turismo (BRAZTOA), o Nordeste representa o principal polo de turismo do Brasil há décadas, recebendo 68% das viagens domésticas do país. Diante desse número, não é difícil entender a crescente quantidade de empresários que buscam oportunidades de negócios na região. Em Pernambuco, o ramo gastronômico é um dos que atrai a maior quantidade de novos negócios. O Estado concentra restaurantes tanto de culinária internacional contemporânea, como também de culinária tipicamente pernambucana. Muitos restaurantes típicos pernambucanos nasceram e nascem em quintais e terraços de famílias que agregam o talento de cozinhar à necessidade de sobrevivência. Com baixo nível escolar, boa parte da população não tem noção do que é ser empreendedor, nem da necessidade de se entender sobre a gestão do negócio. É nesse momento que percebemos a existência dos empreendedores por vocação, os que se tornam por necessidade e ainda os que realmente planejaram e, por fatores ambientais e sociais, visualizaram em determinado local uma oportunidade favorável para abrir um negócio. São vários os fatores que influenciam na decisão de tornar-se um empreendedor: fatores pessoais, sociológicos, organizacionais e ambientais. Reflexões representativas permitem caracterizar o empreendedor como um indivíduo movido pela busca da autonomia pessoal e atento às oportunidades. Os casos que serão contados nesse capítulo trazem duas histórias de empreendedores que investiram no mesmo tipo de negócio, estão situados na mesma região, mas tiveram resultados diferentes e também objetivos para o futuro diferentes. São histórias que mostram os desafios e a perseverança do povo pernambucano, temperados com um toque de empreendedorismo e necessidade de sobrevivência. O primeiro caso traz a história de Edmundo e sua esposa, Maria Olindina, proprietários do Bode do Mundinho. O segundo caso conta a história de Maria do Céu, proprietária da Bodega do Sertão. Ambos os restaurantes têm como especialidade a comida típica nordestina e estão localizados nos arredores da Arena Pernambuco, no município de São Lourenço da Mata, Região Metropolitana do Recife (RMR). São Lourenço da Mata está localizada a 20 quilômetros do Recife e possui uma população pouco maior que 100 mil habitantes. Faz divisa com as cidades de Recife, Jaboatão dos Guararapes, Camaragibe e Moreno. Com uma 1 Livro do escritor e sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, publicado em 1932, que reúne diversas receitas tradicionais de iguarias como bolos e doces das famílias tradicionais do Nordeste brasileiro.
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economia movimentada pela agricultura familiar, indústrias de transformação e comércio, a cidade vivenciou momentos de euforia ao ser escolhida como cidade-sede da construção da Arena Pernambuco. Uma alegria latente que vinha da esperança de desenvolvimento econômico e social para uma região pouco conhecida e sem valorização. A Arena Pernambuco foi construída por meio da parceria público-privada firmada entre o Governo do Estado e a construtora Odebrecht, com um custo estimado de 532 milhões. De acordo com a Secretaria Extraordinária da Copa de Pernambuco (Secopa), 594 desapropriações de imóveis das áreas em obra foram contempladas com indenizações, sendo 217 deles para a construção do Ramal Cidade da Copa, 135 para a Arena Pernambuco, 131 para o corredor Leste-Oeste, 46 para o Terminal Integrado Cosme e Damião, 45 para o Corredor Norte-Sul e 20 para o Terminal Integrado de Camaragibe. Foram gastos R$ 108,3 milhões em indenizações. Por terem seus empreendimentos localizados na área onde a Arena foi construída, Edmundo e Maria do Céu também receberam indenizações pelas desapropriações e, com o dinheiro, resolveram investir em novos negócios nos arredores da Arena, lugar já familiar para eles. Toda a expectativa para a Copa do Mundo se destacou com projetos que iriam beneficiar não só os municípios sede, mas também toda a redondeza, com a construção e reforma de aeroportos, rodovias, ampliação dos sistemas de transporte coletivo, ações de reforço na segurança pública e demais medidas que garantissem não apenas o bom acolhimento dos turistas estrangeiros, mas também produzissem um fôlego maior na economia brasileira. Os investimentos em Pernambuco se concentraram na área de mobilidade urbana. Os sete projetos aprovados incluíram melhoramento em ampliação do transporte público, como metrô, ônibus BRT e construção de viadutos e vias de acesso à Arena. As obras contabilizaram o valor de R$ 890 mil e, por falta de planejamento, até o início dos jogos da Copa as obras não haviam sido totalmente concluídas. A Arena Pernambuco foi inaugurada em 22 de maio de 2013, com 46 mil assentos, 4.700 vagas de estacionamento, 102 camarotes e uma área de arquibancada de mais de 24 mil metros quadrados. Foi palco de dois grandes eventos esportivos desde a inauguração, a Copa das Confederações em junho de 2013, e a Copa do Mundo em junho de 2014. Desde 2011 o Clube Náutico Capibaribe fechou parceria com o consórcio da nova Arena, formado pela construtora Odebrecht, a gestora inglesa AEG e o Governo do Estado, para utilizá-la como seu estádio sede. Hoje a Arena é utilizada para jogos regionais e nacionais, além de shows e outros eventos esportivos. Considerada um teste para a Copa do Mundo, a Copa das Confederações
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Foto: Vânia Nassif
foi marcada por três jogos e teve um público acumulado de 104.241 torcedores na Arena Pernambuco, incluindo turistas estrangeiros, brasileiros e moradores locais. Segundo estudo divulgado pelo Ministério do Turismo, a participação no evento em 2013 rendeu quase R$ 1 bilhão ao produto interno bruto (PIB) da capital pernambucana, além de 26 mil empregos. Apesar da injeção econômica, Recife ficou em quinto lugar entre as seis cidades-sede. Segundo a Empresa de Turismo de Pernambuco (Empetur), cerca de 400 mil turistas passaram por Pernambuco durante os jogos da Copa do Mundo. Do total, 39,31% foram estrangeiros, vindos principalmente dos Estados Unidos (44.074), México (36.448), Japão (13.868), Costa Rica (9.245) e Alemanha (9.245). A Arena Pernambuco recebeu cinco jogos. A Empetur estimou o incremento de R$ 500 milhões na economia pernambucana durante o Mundial. Passada a Copa, nota-se que nos arredores da Arena não houve nenhum investimento de novos negócios comerciais. Apenas comerciantes que já conheciam e trabalhavam na área investiram no local. Mas, mesmo com expectativas frustradas em relação aos retornos econômicos e sociais não só para São Lourenço da Mata como também para toda a RMR, alguns empreendimentos surgem com um fôlego renovado e com a sensação de dever cumprido e superação de expectativas.
Arena Pernambuco
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Edmundo e Maria Olindina: os empreendedores do Bode do Mundinho Foto: Vânia Nassif
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CASO 1
EMPREENDEDORISMO POR VOCAÇÃO: O BODE DO MUNDINHO
D
esde jovem, Edmundo Pereira de Lima sonhava em ter seu próprio negócio. Oriundo de família simples do interior do Estado de Pernambuco, perto de completar 18 anos achou que o futuro estava a mais de 2.500 quilômetros de distância, na cidade de São Paulo. Sem conhecer ninguém na cidade, Edmundo chegou a São Paulo com o objetivo de “juntar dinheiro e voltar para meu Nordeste”. Após cinco anos de trabalho na construção civil, retornou, e com o dinheiro que havia juntado todos esses anos, comprou a sua casa no Recife. Lá começava o sonho há tanto tempo esperado. Em um espaço na própria casa, Edmundo começou a montar o que seria seu primeiro empreendimento, simples, mas com determinação e com objetivos bem focados. Em 1987, o carpinteiro inventou de ser cozinheiro. Como estava apenas começando, nesse momento só havia a vontade, as ideias, mas ele gostava de cozinhar. Sem entender nada do setor, Edmundo foi buscar inspiração em outros restaurantes para montar o seu pequeno negócio. Ele ia de restaurante em restaurante, sentava, pedia um prato, via o cardápio, levava para casa o que sobrava e incrementava, criando um prato novo: Cada dia que passava eu fazia um prato diferente. Quando eu chegava nos lugares, eu pedia o cardápio e pedia um prato pra fazer melhor do que esse. No restaurante eu comia e deixava um pouquinho. Vinha pra minha cozinha, incrementava e dava um novo nome. (Edmundo)
Com essas ações intuitivas, Edmundo criou um cardápio que, desde o princípio, teve como carro-chefe a carne de bode. A ela somaram-se outros pratos coadjuvantes que também fazem parte da culinária pernambucana, como a carne de sol, o queijo de coalho, a galinha cabidela, dentre outros. Quando conheceu Maria Olindina de Albuquerque, no início de 1990, sua atual esposa e sócia, já tinha o chamado botequinho, com apenas sete mesas e um freezer, mas já era preocupado com a organização e qualidade da comida. Após o casamento, em 1992, a parceria ficou mais forte e o negócio começou a progredir. Depois de alguns anos, a contratação de mais garçons e de ajudantes na cozinha era primordial e com isso o espaço também foi ficando pequeno. Com uma forte convicção de que o que importa é a qualidade da comida e a organização, Edmundo resolveu mudar de ponto, queria algo mais arejado, maior e resolveu investir em um espaço que já era um restaurante, mas que não havia dado certo. O espaço localizado na atual BR 408, no município de São Lourenço da Mata, a 20 km do Recife, estava numa área totalmente desabitada, “era mato de um
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lado e mato do outro lado”. Era 2004. Sem pestanejar, mas com muito afinco, Edmundo mudou-se para esse novo espaço, onde os clientes comiam carne de bode e outras iguarias nordestinas embaixo das mangueiras. A tradicional sociedade patriarcal nordestina sempre associou a mulher ao ato de cozinhar e cuidar da casa. No caso de Edmundo e Maria, os papéis se inverteram. Enquanto ele se preocupava com o cardápio, as compras e a cozinha, ela cuidava da parte administrativa e financeira do restaurante. Com perfis complementares, sua esposa desde então se tornou seu braço direito nas atividades administrativas do negócio. O nome veio como um presente que trouxe sorte e personalidade ao restaurante. Como os chefes de cozinha mais famosos do mundo, Edmundo resolveu colocar o próprio nome no restaurante, ou melhor, colocar o pseudônimo carinhoso que seu tio havia inventado desde pequeno e que acabou virando um nome oficial. Surgiu assim o Bode do Mundinho. Em 2010 os jornais anunciavam que a Arena Pernambuco iria ser construída bem pertinho do Bode do Mundinho. Os comentários e as especulações vinham de todo lado. No início foi difícil de acreditar que isso iria acontecer, até fazerem o mapeamento e detectarem que o Bode do Mundinho deveria ser desapropriado. O otimismo é uma característica marcante na personalidade de Edmundo. Em nenhum momento ele cogitou a possibilidade de isso ser ruim para os negócios. Pegou o dinheiro da indenização e investiu em um terreno próximo à Arena, exatamente na BR 408, que neste momento estava sendo duplicada. “Vocês são loucos, pegar o dinheiro e investir ali, e se não der certo? A Copa do Mundo passa, e aí?” Cerca de 80% dos discursos tinham esse tom desencorajador e vinham de alguns amigos, conhecidos e parentes. Isso não amedrontava o casal, ao contrário, dava mais força, mais fôlego para a empreitada. Em seis meses já tinham o novo restaurante construído. Sem apoio técnico, nem financeiro, são incríveis as ações gestoras e empreendedoras que Edmundo e sua esposa realizaram sem nenhum tipo de instrução formal. Enquanto estavam construindo o novo restaurante eles continuaram com o restaurante anterior, se dividindo entre as duas atividades. O próprio Edmundo colocou a mão na massa para a construção do novo restaurante. Quando já estava próximo da conclusão da obra e com a necessidade de entregarem o espaço que havia sido desapropriado, eles deram férias coletivas aos funcionários. Para os empreendedores, essa atitude era a ideal para manter os funcionários que já tinham experiência. Em seis meses ele subiu isso aqui. Eu tomava conta do restaurante de lá, fiquei lá com alguns funcionários e outros a gente deu férias coletivas, que era para não perder os funcionários. (Maria Olindina)
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A execução da obra do restaurante sofreu alguns entraves no começo por conta da liberação do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente). Como a região tem uma vegetação extensa, algumas áreas são de preservação ambiental por possuir mata atlântica. Após uma vistoria no novo local do Bode do Mundinho, foi entendido que não era o caso dessa obra, pois estava sendo erguida em uma área onde já havia uma pequena construção e um sítio cheio de fruteiras, além de uma vegetação rasteira. Com a finalização da construção de um e o fechamento do outro, o restaurante tinha que começar a funcionar. Nessa época as obras BR 408 ainda não haviam sido concluídas, e por esse motivo não havia possibilidade de instalar postes de energia. Com isso, começou a surgir o maior obstáculo até então enfrentado: a falta de energia, que não deixava o restaurante funcionar. Mesmo com todas as solicitações à Celpe (Companhia Energética de Pernambuco) e ao DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) para ligação do fornecimento de energia, ficaram funcionando por oito meses com a utilização de gerador. Esse investimento era muito alto e causava um prejuízo mensal de R$ 10 mil à empresa. O desespero era tanto que Edmundo prometeu construir uma capela no lugar onde ficava o gerador, como promessa alcançada pela ligação do fornecimento de energia. Nessa época os investimentos eram altos e o retorno, baixo, a Arena ainda estava sendo construída e a BR em fase de conclusão. A confiança e a amizade foram a moeda de troca desse momento. Muitos fornecedores confiaram seus produtos mesmo sem ter prazo de pagamento. Com a chegada da energia, alguns contratos com empresas foram firmados. Primeiro, foi uma construtora que estava fazendo a finalização das obras da Arena que rendia em média 250 refeições no café da manhã e no almoço. Depois, foi uma empresa de ônibus de viagem que estava com a cozinha em reforma, que também contratou os serviços do Bode do Mundinho para fornecer 250 refeições diárias. A Copa das Confederações também serviu para consolidar as ideias de investimento de Edmundo. Com os rendimentos da Copa das Confederações, conseguiram pagar as dívidas que ainda existiam e terminaram de estruturar e equipar o restaurante, deixando-o pronto para o evento maior que iria acontecer dentro de um ano. Sempre preocupado com o treinamento dos funcionários e o planejamento, o casal começou a se preparar com antecedência para a Copa do Mundo. As parcerias com as empresas de bebidas garantiram freezers, mesas e até um toldo que ampliava a área coberta do espaço. Uma prova de fogo para o empreendimento foi a reserva do espaço para os torcedores dos Estados Unidos comemorarem e esperarem pelo jogo. O pedido vinha com uma reserva para 600 pessoas. Dona Maria sabia que tinha que se preparar:
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Tem que treinar primeiro. O funcionário precisa passar no processo e a gente vai ver se ele está pronto para trabalhar. Fechamos no mês de maio o encontro que teve dos Estados Unidos. Aí a gente foi se programando com fornecedores, porque sabia que era um evento muito grande, seriam 600 pessoas e pra isso nós teríamos que estar prontos pra receber essas pessoas e não deixar que saíssem insatisfeitos do nosso restaurante. Foi um dos melhores dias. Havia muitos seguranças, tradutores, funcionários... nesse dia trabalharam uns 100 funcionários. (Maria Olindina)
Com o objetivo de sempre atender bem os clientes servindo uma comida de qualidade, Edmundo admite que o segredo do seu sucesso foi fazer uma comida como se fosse para ele e sua família. Mas mesmo com todo esse carinho e dedicação, a veia empreendedora é quem faz o empreendimento se sustentar e prosperar. Por isso, durante os jogos da Copa, em Pernambuco, o restaurante estava sempre preparado para receber uma grande quantidade de clientes sem comprometer a qualidade da comida e o atendimento. Com esse jeitinho nordestino de ser, o Bode do Mundinho foi visitado por vários turistas estrangeiros e brasileiros, fazendo com que se tornasse reconhecido não só no Brasil, mas internacionalmente. Virou ponto de referência e marca reconhecida. O Bode do Mundinho foi muito comentado pela imprensa seja como empreendimento de sucesso, como também ponto de encontro dos torcedores estrangeiros1. Mesmo acreditando sempre no sucesso do seu empreendimento, Edmundo demostra, às vezes, uma certa incredibilidade do tamanho do sucesso. “Eu acreditava que ia dar tudo certo, mas que não teria o avanço tão grande que surgiu nessa Copa”, diz. Lembra a pergunta que faziam para Edmundo antes: “A Copa do Mundo passa, e aí?”. E aí que Edmundo com o seu perfil autodidata não deixa a “peteca cair”. Depois do grande evento esportivo, o restaurante conseguiu sobreviver, hoje conta com 30 funcionários e abre todos os dias para café da manhã e almoço. Para sempre inovar e incrementar seus pratos, Edmundo confessou continuar fazendo as visitas, como cliente, a outros estabelecimentos do setor. Com essas visitas, ele identifica novidades no atendimento e nos pratos e depois tenta implantar com mais eficiência em seu restaurante. As ideias empreendedoras e os resultados do negócio gerenciado pelo casal se tornaram um radar que contamina todos ao redor. Não só a filha, que 1 www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/06/130617_recife_copa_cc_bg www.tripadvisor.ca/LocationPhotoDirectLink-g2343200-i104177549-Sao_Lourenco_Da_Mata_State_ of_Pernambuco.html http://g1.globo.com/pernambuco/noticia/2014/06/restaurante-perto-da-Arena-pe-foi-ponto-deencontro-da-torcida-dos-eua.html
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hoje estuda nutrição, mas também várias pessoas da família, que se tornaram funcionários, e pessoas de confiança que ajudam na administração do negócio. Na região ao redor da Arena, Edmundo, que adora servir de referência, é o conselheiro dos empreendedores da área e dos amigos que vêm procurá-lo. A concorrência não os assusta. Para eles, mesmo com muitos concorrentes, o importante é fazer uma comida de qualidade com preço justo: (...) não se pode pensar só no concorrente, tem que pensar primeiramente em você. Neste ramo de restaurante, você não vai pensar: “meu concorrente vai vender isso aqui por R$ 50, eu vou vender esse aqui por R$ 45. Tem que pensar na qualidade do seu produto. E o mais importante, talvez o seu concorrente esteja vendendo mais caro, mas não tenha tanta qualidade quanto o seu; ou mais barato. O preço tem que ser justo, você tem que calcular o quanto você gastou para fazer aquele prato. Se o cliente gostou daquele prato, o prato pegou nome, aí você vai começar a ganhar em cima dele. (Edmundo)
A previsão de crescimento para esse casal autodidata e empreendedor está sempre associada aos sonhos, mas sonhos que se tornam realidade com muito esforço e dedicação. Edmundo agora aposta em outras possibilidades de desenvolvimento e avança pensando em ampliar o negócio disponibilizando outras alternativas de lazer no espaço que eles já possuem. Um tipo de clube de campo, onde as famílias podem se divertir e ao mesmo tempo degustar as iguarias nordestinas. Edmundo e Maria nos transmitem uma experiência de vida que nos faz refletir sobre as competências e talento das pessoas. Faz pensar como pessoas simples, com baixa instrução, conseguem ter pensamentos tão inovadores e empreendedores, conseguem ser multiplicadores de sucesso e apoiar o desenvolvimento local. O perfil deles reforça: (...) os empreendedores se destacam como agentes de fortalecimento das economias locais, em decorrência de seu poder de promover o crescimento econômico ligado a seus negócios, resgatando recursos, introduzindo criatividade e inovação, respondendo aos desafios que se apresentam como fonte de oportunidades, com efeitos positivos sobre a geração de emprego e desenvolvimento local. (Paiva, 2004)
Concluímos assim que: 1. a motivação do empreendedor pode ser o grande diferencial do negócio; 2. a identificação e exploração de oportunidades podem estar nos lugares mais remotos; 3. a perfil empreendedor não está associado ao nível de instrução do indivíduo; 4. disseminar conhecimento pode ser uma excelente maneira de o empreendedor se fortalecer ainda mais no mercado.
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Fotos: Vânia Nassif
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A partir do alto, em sentido horário: entrada do Bode do Mundinho; o bode, “carro-chefe” do restaurante; o salão decorado para os jogos da Copa; e a santa, onde funcionava o gerador elétrico abençoado
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A equipe bem trienada: clientes satisfeitos
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Maria do Céu, na Bodega do Sertão Foto: Vânia Nassif
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CASO 2
EMPREENDEDORISMO POR NECESSIDADE: BODEGA DO SERTÃO
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cidade de Belo Jardim fica no agreste pernambucano, a 104 quilômetros do Recife. Foi nesta cidade que Maria do Céu cresceu e ainda adolescente veio para o Recife. Filha de mãe professora e pai agricultor, Maria do Céu, 54 anos, não teve muita chance para estudar e desde cedo começou a trabalhar. Primeiro como empregada doméstica, atividade com a qual não se adaptou muito bem, e logo depois como vendedora em lojas do comércio do Recife. Com esse último trabalho começou a juntar suas primeiras economias e conseguiu comprar sua primeira casa em 1992. Nessa época, Maria estava casada e tinha uma filha pequena. Como a maioria dos nordestinos que saem do interior e vêm morar na capital, a vida de Maria do Céu nunca foi fácil. Ao se separar do primeiro marido, com uma filha de 4 anos nos braços, resolveu procurar apoio da família, que nesse momento já morava na Região Metropolitana do Recife, na cidade de São Lourenço da Mata, próximo onde hoje é a Arena Pernambuco. Nessa época, década de 1990, ninguém nem sonhava com a Copa. A região era apenas campo. Não existia viaduto e muito menos rodovias. A maioria das pessoas vivia do campo e comia o que plantava ou criava. O irmão de Maria, João, nessa época já tinha um pequeno restaurante que vendia comida nordestina. Maria começou ajudando João até que conseguiu montar seu próprio negócio, “uma barraquinha” como ela mesma diz. Já com o segundo casamento e mais uma filha, Maria do Céu trabalhava de domingo a domingo no restaurante, que tinha como carro-chefe a carne de bode e comidas regionais. Nessa época se chamava Bar do Bode. Servia comida regional na hora do almoço para as pessoas da redondeza e para os de passagem. Apesar de pequeno e modesto, Maria conseguia tirar do restaurante o seu sustento e investir na educação das filhas. Vale et al. (2014) mostram, em suas pesquisas, que esse tipo de situação contemporânea caracteriza-se como algo demarcado por um tipo de “desemprego estrutural”, e que de maneira crescente apresenta um tipo de empreendedor movido, não necessariamente pela oportunidade, e sim pela necessidade de sobrevivência, que dirigem-se para o empreendedorismo por não ter condições de se inserir no mercado formal de trabalho. A visão de uma nova realidade com a construção da Arena Pernambuco fez muitos pernambucanos vislumbrarem novas oportunidades de sobrevivência através da atividade empreendedora.
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A construção da Arena Pernambuco veio com uma nuvem de incredibilidade, que foi se clareando à medida que a BR foi ampliada, e as construções da área começaram a ser desapropriadas e as pessoas, indenizadas. Maria do Céu, que tinha seu negócio na área onde hoje fica a Arena, também foi uma das 135 que se beneficiaram. Com o dinheiro recebido, conseguiu pagar algumas dívidas e também construir seu novo restaurante, em frente à BR 408, em um terreno que já era da família e que foi doado pelo seu pai para o novo empreendimento. A euforia financeira da Copa do Mundo fez o Governo do Estado de Pernambuco cogitar a possibilidade de criar um novo polo econômico na região da Arena, mais moderno e funcional. No entanto, essa expectativa foi totalmente frustrada, a Copa não deixou nenhum legado considerável para os arredores. Não existem hotéis, centros de compras, equipamentos de lazer e muito menos opções de turismo ou prestação de serviços. Os investimentos privados se resumem a meia dúzia de restaurantes e um posto de gasolina, que já existiam antes. O Jornal do Commercio1, de Recife, e o Estadão2, de São Paulo, documentaram esse cenário enviando equipes de reportagem que através de entrevistas detectaram alguns problemas para o fortalecimento do comércio na região e também a manutenção e reforma dos equipamentos de esporte e lazer da cidade. Um deles é a dificuldade de acessar diretamente os arredores do estádio. Com relação ao fortalecimento do comércio local na região da Arena, o primeiro entrave é que a BR 408 é a única via disponível. Outro ponto desfavorável diz respeito ao número de consumidores permanentes na cidade. Enquanto a população do Recife ultrapassa a marca de 1,5 milhão, São Lourenço da Mata conta com pouco mais de 102 mil habitantes. Em relação aos investimentos em equipamentos de prática de esportes e lazer, nada mudou. Assim como as obras do Ginásio Professor Josué Pereira, que estão paradas desde janeiro de 2014. Outro espaço muito frequentado do município é o calçadão às margens do Rio Capibaribe, que serve como área de lazer. Segundo moradores, a falta de iluminação e segurança impede a circulação pelo local à noite, além da falta de limpeza e manutenção do local. Maria do Céu parece que não foi muito contaminada com essa expectativa de crescimento e desenvolvimento. Despois de construir seu novo restaurante, resolveu alugar o ponto durante sete meses e, durante a Copa 1 http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cidades/geral/noticia/2014/07/22/sao-lourenco-da-matacontinua-igualzinha-ao-que-era-antes-da-copa-136670.php 2 http://esportes.estadao.com.br/blogs/selecao-universitaria/complexo-comercial-no-entorno-daArena-pernambuco-continua-apenas-no-papel/
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das Confederações, o restaurante estava funcionando e sendo gerenciado por outra pessoa. Maria do Céu justificou sua atitude dizendo que estava cansada, que precisava descansar um pouco desse trabalho tão árduo de domingo a domingo. Calculou que o dinheiro do aluguel daria para pagar todas as suas despesas mensais. Estava cansada, (...) já que vai ser um aluguel legal, dá para pagar as despesas, meu convênio, tudo direitinho. Dá para eu ficar em casa (...) a minha vida foi só trabalho, nossa senhora, a gente trabalha de segunda a segunda, aí eu já aos 54 anos pensei em descansar e minha filha apoiou.
A princípio, o Bodega do Sertão foi chamado de Restaurante da Copa. O nome chamou a atenção da Fifa, que logo enviou representantes e pediram para retirar a placa. O nome Bodega do Sertão veio da inspiração do locatário, que por se tratar de um nome “fantasia”, Maria do Céu herdou quando pegou o estabelecimento de volta. Os atrasos e falta dos pagamentos dos aluguéis ficaram frequentes por parte do locatário, então Maria do Céu pediu o ponto de volta e resolveu assumir as rédeas do seu negócio novamente. Faltavam poucos meses para a Copa, mas ainda havia tempo para se organizar e ter um bom retorno com o campeonato. A documentação e as exigências com a vigilância sanitária foram o primeiro desafio enfrentado, mas depois de muitas idas e vindas, foi superado. O outro desafio foi a escavação de um poço artesiano para melhorar a qualidade da água. Para fazer o poço, Maria do Céu precisava de dinheiro e foi aí que surgiu a primeira parceria. A Ambev se comprometeu a financiar mais de 50% da obra, que na época teria um valor total de R$ 12 mil. Aos poucos, Dona Maria conseguiu novos profissionais para lhe dar apoio no restaurante. A antiga cozinheira voltou e se tornou seu braço direito. Maria diz que tem dificuldades em montar uma equipe profissional dedicada. Diz que os jovens de hoje não gostam de trabalhar no final de semana e isso gera uma grande evasão do emprego. Mesmo com essa dificuldade de fixação de funcionários, Maria afirma ter um bom relacionamento com eles, principalmente com aqueles que já estão trabalhando com ela desde o primeiro restaurante. Nos jogos da Copa, essa equipe teve que ser ampliada em 100% para conseguir suprir a demanda da temporada. Mesmo se organizando com antecedência, Maria não treinou os profissionais que foram contratados temporariamente. Ela relata que os cargos primordiais já eram ocupados por profissionais experientes e que a contratação da mão de obra extra havia sido apenas para trabalhos de auxílio e suporte, como limpeza dos banheiros e mesas. Uma necessidade constatada foi a contratação de tradutores para uma
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comunicação mais eficiente com os turistas americanos, mexicanos, porto-riquenhos e gregos. Os tradutores eram estudantes de instituições como Senac e Senai e formaram uma equipe que deu suporte durante todo o período. Para Maria, investir na Copa do Mundo trouxe muito retorno e o sucesso que o restaurante tem hoje se deve a esse período festivo. As parcerias com as empresas de bebidas Ambev e Coca-Cola foram essenciais para munir o restaurante com infraestrutura de freezers, cadeiras e mesas. A quantidade foi tanta que após o evento Maria até devolveu uma boa parte dos equipamentos e móveis. Para receber o apoio, o restaurante teria que vender exclusivamente produtos das marcas apoiadoras. Uma das ações do Governo do Estado para os jogos da Copa do Mundo, em Pernambuco, era treinar os profissionais que iriam trabalhar durante a Copa. Falava-se em vários treinamentos oferecidos para a rede hoteleira e empresas da região do litoral. Percebe-se uma falha ao constatarmos que os empresários e profissionais da cidade de São Lourenço da Mata não tiveram a mesma chance. Nem Maria do Céu e nem outros comerciantes da região foram contatados quando iniciaram os seus investimentos nos negócios. Provavelmente muitos microempresários da região não tiveram retorno e sustentabilidade esperados por falta de informação e formação. Hoje Maria faz a gestão do negócio sozinha de maneira intuitiva, e conta com o apoio da filha, que já tem curso superior e a ajuda não só nos processos financeiros, mas também na compra dos produtos no Ceasa. Os produtos que não são comprados no Ceasa são solicitados a fornecedores que fazem a entrega diretamente, como bebidas, carnes e sobremesas que, para ela, são produtos de qualidade garantida. Maria do Céu relata que um dos seus objetivos posteriores é utilizar a área restante do restaurante para construir uma pequena pousada e uma casa para ela no mesmo local. Nota-se na história de Maria do Céu uma vida de muito trabalho, mas um trabalho sem muito prazer e sim voltado para as circunstâncias e sustentabilidade. Influenciada pelos irmãos, ela acabou entrando para o ramo de restaurantes, mas durante toda a entrevista demonstrou uma sensação de cansaço e busca por outras alternativas de sustentabilidade. Fica bem evidente nesse trecho: (...) eu construí isso aqui e eu sabia que ia ter essa Copa (...) me arrependi de ter construído o restaurante, era pra ter feito apartamentos pra alugar, que eu ia ganhar mais e sem estresse (...) mas passou, tudo pra mim foi bom (...) mas se eu tivesse feito como meu irmão fez, que alugou os apartamentos, teria sido melhor.
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Fotos: Vânia Nassif
Concluímos assim que: 1. nem todos os empresários são verdadeiramente empreendedores; 2. as circunstâncias familiares, sociais e econômicas podem levar as pessoas a investir em empreendimentos que não lhe dão prazer e motivação; 3. a motivação pode fazer toda a diferença no perfil e prosperidade do empreendimento.
No alto, à esquerda: fachada da Bodega do Sertão e um de seus funcionários. Acima, o salão e Maria do Céu regendo a cozinha
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Negócios Empreendedores
CONSIDERAÇÕES FINAIS Embora o entorno da Arena Pernambuco tenha ficado distante do centro da capital, foi possível identificar empreendedores que foram impactados, inicialmente, de forma negativa com a vinda da Copa do Mundo para o Brasil, sobretudo por terem os imóveis dos seus estabelecimentos desapropriados para dar lugar à construção da Arena. Mas, por outro lado, eles demostraram garra e persistência para superarem as adversidades e se fazerem empreendedores de sucesso, vencendo o pessimismo e as dificuldades. Esse perfil empreendedor corrobora as pesquisas de Filion (2004), McClelland (1986) e Vale et al. (2014). Outra reflexão acerca dos achados evidenciou esperanças frustradas dos indivíduos que pretendiam empreender aproveitando os incentivos públicos e privados do evento. Embora os entrevistados tenham conquistado resultados favoráveis para seus negócios, nada aconteceu sem muita luta, muita crença e muito trabalho. A partir da análise dos casos foi possível observar pontos comuns entre eles. O primeiro está associado à motivação do engajamento na atividade empreendedora. A necessidade de sobrevivência é evidente em ambos os casos. Contudo não se pode afirmar que a noção clara da oportunidade de negócios estava presente no momento da desapropriação e reconstrução dos negócios. No caso de Edmundo, foi possível observar a identificação de uma oportunidade por meio de sua crença na potencialidade de cozinhar e na qualidade dos produtos que fazia, levando-o a decidir pela continuidade de seus negócios. Vale et al. (2014) afirma que independentemente de sua natureza, a motivação para empreender, no mundo de hoje, manifesta-se no contexto da moderna economia de mercado e que indivíduos com elevado nível de necessidade de realização e conquista apresentam maior propensão a perseguir desafios, de maneira relativamente autônoma. Tal ação é percebida quando Edmundo constrói um restaurante do zero em uma estrada que ainda estava em construção e que não tinha nem fornecimento de energia. Por outro lado, empreendedores que não percebem muito claramente essas oportunidades e apenas investem em negócios por falta de oportunidade no mercado, muitas vezes estão fadadas ao fracasso (Aidar, 2007). Os resultados dessa pesquisa corroboram com Vale et al. (2014) quando dizem que não apenas a oportunidade e necessidade abarcam o conjunto de motivação para a criação de um empreendimento e extrapola esta lógica binária sugerindo mais seis outros componentes como: identificação de oportunidade; atributos/expectativas pessoais; ambiente externo – em particular associado ao mercado de trabalho; influência de terceiros; insatisfação com emprego; e influência familiar. No caso de Maria do Céu, fica bem claro que seu perfil não só abarca a característica de necessidade de sobrevivência, mas envolve outros critérios, como insatisfação com o emprego e influência familiar. Isso fica bem claro quando nossa
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Do empreendedorismo por vocação ao empreendedorismo por necessidade
entrevistada relata que saiu do emprego e veio morar junto da família quando começou seu empreendimento, influenciado pelo irmão, que já tinha um restaurante com as mesmas características. Enquanto Edmundo pensa em expandir o negócio, criando outras alternativas de serviço, Maria do Céu pretende investir em algo diferente que não necessite de esforço diário, como o aluguel de imóveis. Os resultados obtidos sinalizam para a relevância da pesquisa, abrindo espaço para novas possibilidades de reflexões, sobretudo para pesquisas que busquem compreender o empreendedorismo nas camadas mais desfavorecidas da sociedade brasileira. Tais pesquisas podem colaborar com novos subsídios para a geração de políticas públicas de incentivo ao empreendedorismo.
REFERÊNCIAS Aidar, M. M. (2007). Empreendedorismo: Coleção Debates em Administração. São Paulo: Thompson. Baron, R. R., & Shane, S. A. (2007). Empreendedorismo: uma visão de processo. São Paulo, Thomson Learning. Brasil, Ministério da Cultura. (2003). Aromas Cores e Sabores do Brasil. Brasília. FILION, L. J. (2004). Operators and visionaries: differences in the entrepreneurial and managerial systems of two types of entrepreneurs. International Journal of Entrepreneurship and Small Business, Genebra, v. 1, n. 1/2, pp. 35-55. Freyre, G. (1997). Açúcar: uma sociologia do doce, com receitas de bolos e doces do Nordeste do Brasil. Companhia das Letras Global Report, Global Entrepreneurship Monitor, GEM (2013). Disponível em www.gemconsortium.org/docs/2409/ gem2013globalreport Kirzner, I. M. (1979). Perception, opportunity, and profit: studies in the theory of entrepreneurship. Chicago: University of Chicago Press. Llisterri, J. J. et al. (2006). Youth Entrepreneurship a Necessity or an Opportunity? A First Exploration of Household and New Enterprise Surveys in Latin America. Inter-American Development Bank Techinical Papers Series. McClelland, D. C. (1986). Characteristics of successful entrepreneurs. In Keys to the Future of American Business, Proceedings of the Third Creativity, Inovation, and Entrepreneurship Symposium. Framingham, MA: U. S. Small Business Administration and the National Center for Research in Vocational Education. Paiva Jr., F. G. (2004). O empreendedorismo na ação de empreender: uma análise sob enfoque da fenomenologia sociológica de Alfred Schultz, 2004. Tese de Doutorado em Administração, Centro de Pós-Graduação e Pesquisas em Administração. Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, Belo Horizonte. Vale, G. M. V., & Corrêa, V. S.(2013). A Evolução e Dinâmica das Motivações Empreendedoras: Necessidade e Oportunidade. EnANPAD 2013 – XXXVII Encontro da ANPAD. Vale, G. M. V., Corrêa, V. S., & Reis, R. F.(2014). Motivações para o Empreendedorismo: Necessidade Versus Oportunidade? RAC, Rio de Janeiro, v. 18, n. 3, art. 4, pp. 311-327, Maio/Jun. www.abrasel.com.br (acessado em 10/2/2015) www. braztoa.com.br (acessado em 15/4/2015) www. empetur.pe.gov.br (acessado em 8/2/2015)
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Arena Fonte Nova Salvador – BA
Shutterstock/marchello74
JOGOS DA COPA DO MUNDO DE 2014: Espanha
1x5
Holanda
Alemanha
4x0
Portugal
Suíça
2x5
França
Bósnia e Herzegovina
3x1
Irã
Bélgica (2) 0 x 0 (1) Estados Unidos Holanda (4) 0 x 0 (3) Costa Rica
Negรณcios Empreendedores
Capítulo 5
KAIRÓS: O DEUS DA OPORTUNIDADE OU UM PRESENTE DE GREGO? Autoras: Ana Lúcia Castilho da Mota ana@anamota.com.br Universidade Nove de Julho – Uninove São Paulo – SP
Vânia Maria Jorge Nassif vania.nassif@gmail.com Universidade Nove de Julho – Uninove São Paulo – SP
A
realização de um dos maiores eventos esportivos do mundo no Brasil, a Copa do Mundo de Futebol da Fifa, gerou expectativas diversas para a maioria dos brasileiros. Para uma parcela da população, a que vivia em uma das 12 cidades escolhidas para sediar o evento, a ocasião parecia ser um presente dos deuses, uma oportunidade única, daquelas que não se pode deixar passar. A circulação de milhares de turistas, brasileiros e estrangeiros, aqueceria a economia e favoreceria, em especial, quem atua no ramo de alimentação e de bares, hotéis e pousadas. Nas capitais eleitas, a expectativa de muitos empreendedores era essa. Em Salvador não foi diferente. Essa euforia não era infundada. De acordo com o Mapa de Oportunidades divulgado pelo Sebrae1, a Copa do Mundo de 2014 possibilitaria mais de 900 oportunidades de negócios para micro e pequenas empresas nas 12 cidades-sede em todas as regiões do Brasil. O impacto econômico trazido com a realização da Copa das Confederações da Fifa um ano antes, em 2013, também serviu de termômetro e contribuiu para aquecer os ânimos. Dados apresentados pelo Ministério do Turismo (MTur) 2 mostraram que, nesse evento, os turistas estran1 O Mapa de Oportunidades engloba nove setores da economia: agronegócio, comércio varejista, construção civil, madeira e móveis, economia criativa (artesanato, gastronomia, entretenimento etc.), moda (têxtil e confecção), serviços, tecnologia da informação e comunicação (TIC) e turismo. Fonte: www.sebrae2014.com.br/portal/site/Sebrae2014/sobre 2 A Copa das Confederações da Fifa 2013 gerou R$ 740 milhões de impacto econômico, sendo R$ 322 milhões diretamente na cadeia do turismo, R$ 348 milhões indiretamente e R$ 70 milhões em desembolso das equipes relacionadas ao evento. Fonte: www.sebrae2014.com.br/portal/site/Sebrae2014/lista-estudos-pesquisas
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Negócios Empreendedores
geiros tiveram gastos estimados de R$ 4.854 entre hospedagem, alimentação e transporte. Entre os turistas nacionais o gasto médio foi de R$ 1.042 entre hospedagem, alimentação e transporte, sendo que a alimentação representou o maior gasto, visto que essa é uma necessidade básica. Atender às exigências da Fifa é um dos critérios estabelecidos por essa entidade para a realização da Copa do Mundo. Assim, o antigo estádio da Fonte Nova precisou ser completamente implodido para ceder lugar à nova Arena. O investimento foi de quase R$ 600 milhões. A obra durou mais de dois anos e meio e chegou a contar com 4.500 empregados trabalhando concomitantemente. A capacidade total da Arena chegou a 55 mil torcedores com a instalação de uma arquibancada móvel de 5 mil lugares durante a realização do megaevento esportivo. Além de jogos de futebol, a nova Arena também foi preparada para acolher shows e receber até 8 mil pessoas em eventos diversos . Primeira capital do país, Salvador é o município mais populoso do Nordeste, o terceiro do Brasil e o oitavo da América Latina, contando mais de 2,6 milhões de habitantes, de acordo com o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística de 2010 (IBGE, 2010). Centro econômico do Estado, é também porto exportador, centro industrial e administrativo, além de sediar importantes empresas regionais, nacionais e internacionais. Importante destino turístico brasileiro, o interesse pela cidade se dá especialmente pelas belezas naturais, do conjunto arquitetônico e da cultura local. Outro grande atrativo de Salvador é o carnaval, uma das festas populares mais conhecidas do Brasil. A cidade recebeu aproximadamente 700 mil visitantes no período em que aconteceram os seis jogos do Mundial, sendo 70 mil estrangeiros. A ocupação da rede hoteleira nesses dias foi de 90%, perdendo apenas para a do Rio de Janeiro, que teve 92% de ocupação3. Muitos empreendimentos se prepararam para acolher os turistas que viriam assistir aos jogos. No entanto, esse resultado positivo não foi percebido por todos. Esse capítulo apresenta dois casos que retratam uma avaliação diferente de empreendedores que possuem negócios no entorno da Arena Fonte Nova, em Salvador, quanto aos efeitos positivos da Copa do Mundo de 2014 no Brasil. O primeiro conta a história de um casal de empreendedores, Lina e João, que atuam no ramo de alimentação e de hotelaria. O segundo relata o caso de um jovem empreendedor, Ricardo, que comanda uma rede de lanchonetes de uma franquia internacional. 3 copa2014.gov.br/pt-br/noticia/salvador-pesquisa-revela-que-94-dos-turistas-pretendem-voltar-a-cidade
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Kairós: o deus da oportunidade ou um presente de grego?
Empreendedorismo é um processo dinâmico de visão, mudança e criação que requer o emprego de energia e paixão para criar e implementar novas ideias e soluções criativas. Demanda, entre outros, disposição para assumir riscos calculados, mobilizar os recursos necessários e, principalmente, visão para reconhecer e explorar oportunidades onde os outros veem caos e contradição (Kuratko, 2009; Zahra et al., 2009). Esses atributos estiveram presentes na vida de Lina e João desde o início do desenvolvimento dos seus negócios. Da iniciativa para concretizar o sonho de atuar no ramo de alimentação, passando pelo arrojo de adquirir um imóvel e transformá-lo em um hotel e, por fim, na visão para identificar uma oportunidade a partir de uma necessidade local, a falta de estacionamento no centro da cidade. Importante destacar nessa história a presença forte de Lina à frente dos empreendimentos da família. Além de afinidade e tino para os negócios, que demonstrou desde cedo na loja do pai, também sua sagacidade e inquietação a fizeram buscar informações e cursos para melhor gerir os negócios. Somado a isso, como mulher e empreendedora, teve que conciliar múltiplos papéis – mãe, esposa e empresária – além de superar os preconceitos e uma visão ainda provinciana da sociedade local em relação à atuação das mulheres em negócios muitas vezes considerados masculinos. Afinal, segundo essa visão, mulher deveria ser dona de casa ou no máximo professora! Nos dias de hoje ainda é grande o peso que a sociedade dá à mulher como responsável pelos cuidados com a casa e os filhos. O trabalho doméstico ainda é associado às mulheres e é notório que elas continuam a desempenhar a maior parte desse serviço. Mesmo quando se posicionam quanto à equidade das funções e obrigações de um casal, muitas acabam por trazer internalizados os valores sociais com os quais foram educadas. Contudo, nem mesmo uma educação repressora impede mulheres empreendedoras de criar suas empresas. Assim, buscam alternativas para conciliar as dimensões pessoal, familiar e empresarial (Alperstedt; Ferreira; Serafim, 2014; Strobino; Teixeira, 2014). O segundo caso revela a atuação por meio de franchising. O sistema de franquias mostra sinais de evolução no Brasil, e já possui empresas classificadas como quarta e quinta geração. O forte crescimento do consumo, a ascensão de novas classes sociais ao mercado, assim como empreendedores que buscam seu próprio negócio são fatores que vêm influenciando o crescimento desse setor por aqui (Lima Júnior; Luna; Souza, 2012). Ricardo, formado em Administração de Empresas, depois de transitar pelo setor da construção civil – teve uma indústria de blocos de concreto
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Negócios Empreendedores
– e estagiar num grande banco, encontrou seu caminho ao se tornar um franqueado da rede de lanchonetes Subway. Seu grande diferencial – que já lhe rendeu o prêmio de “melhor franqueado do mundo” por essa rede de franquias – foi enxergar um mercado num segmento da sociedade no qual outros franqueados da marca não tiveram sensibilidade para perceber: abrir lojas voltadas para a classe C. O Brasil, por suas dimensões geográficas, tem no franchising um modelo apropriado para a expansão de muitas empresas. Prova disso é o fato de o país já ocupar a quarta posição mundial em números de unidades franqueadas. Isso significa um campo econômico muito representativo na economia brasileira. Contudo, poucos pesquisadores deram continuidade aos estudos relacionados ao tema (Melo e Andreassi, 2010). Embora com características e histórias de vida diferentes, os empreendedores que ilustram esse capítulo têm em comum a persistência, a preocupação com a qualidade dos serviços prestados, a coragem e a visão para identificar novas oportunidades no ambiente ao qual estão inseridos. Para Julien (2010), empreendedores são vistos como seres paradoxais, ambicionam tomar nas mãos o próprio destino, assim buscam incansavelmente a independência. Todavia, necessitam do meio no qual atuam para terem ideias, recursos para desenvolver organizações e novas informações para dar continuidade aos seus projetos. Nos dois casos retratados as seguir, embora as projeções feitas por entidades como o Sebrae apontassem a Copa do Mundo da Fifa no Brasil quase como Kairós, o deus da oportunidade4, e mesmo os proprietários entrevistados já tendo boa experiência em seus negócios antes da realização do megaevento esportivo e apresentando as principais características – apontadas na literatura – associadas aos empreendedores, o resultado final frustrou suas expectativas, estando mais para um “presente de grego”5.
4 Na mitologia grega, a oportunidade é representada por Kairós, uma figura quem tem uma trança na testa e é careca na nuca para nos lembrar de que a oportunidade só pode ser “agarrada” quando está vindo, pois depois que passou não temos como segurá-la. Fonte: www.administradores.com. br/artigos/negocios/kairos-a-oportunidade/49005/ 5 A expressão “presente de grego” está relacionada ao mito do Cavalo de Troia e significa uma oferta que traz prejuízo a quem a recebe. Fonte: eventosmitologiagrega.blogspot.com.br/2011/07/ presente-de-grego.html
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Foto: Vânia Nassif
KairĂłs: o deus da oportunidade ou um presente de grego?
Arena Fonte Nova
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Negócios Empreendedores
Leolina e João Passos, no Dom Passos Foto: Vânia Nassif
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CASO 1
DOM PASSOS: DO SONHO À REALIDADE
A
história de João Passos e Leolina Azevedo Passos, o casal de empreendedores proprietários do Dom Passos – lanchonete, hotel e estacionamento localizados no entorno da Arena Esportiva Fonte Nova, em Salvador –, nos mostra uma relação de cumplicidade, complementariedade e parceria. O casal é de Macaúbas, sertão da Bahia, cidade localizada a 700 km da capital. João, de família humilde, caçula de oito irmãos, teve pouco estudo e não gostava muito do trabalho no campo. Além de não conseguir se concentrar nele, gastava seu tempo divagando nos pensamentos. Essa é uma de suas 32 poesias, cuja inspiração veio quando Fabiano, um de seus filhos, se envolveu com uma banda de rock. Compôs inicialmente uma música em sua homenagem, mas depois ela tomou outra direção, falando de amor e paixão. Se você gosta de mim, volte que ainda te quero. Seja em qualquer momento, meu amor, ainda te quero. As flores nascem no campo, também nasceu no meu jardim, para alegrar seu coração quando você estiver junto a mim. Desde quando você foi embora, elas começaram a murchar. Mesmo eu irrigando todos os dias, nunca mais voltou a aflorar. Meu coração bate forte no peito e começa a me sufocar. Ando sozinho no meu quarto, logo durmo e começo a sonhar. Vejo o sol, a lua e as estrelas, vejo o vagalume no ar. Você deitada nos meus braços, depois da gente se amar, com uma mão me fazendo cafuné e com a outra a me acariciar. Não levanto meus braços para este sonho continuar. (João)
Aos 18 anos João foi tentar a vida em São Paulo, seu maior desafio. Chegou sem documento, sem estudo, sem conhecer nada e nem ninguém na cidade grande. Teve a sorte de conhecer um grupo de estrangeiros que estava abrindo um restaurante. João, que começou como ajudante de cozinha e depois foi promovido para o salão, tinha o sonho de um dia ter seu próprio restaurante. Trabalhou mais de dez anos como garçom nessa cantina italiana e lá aprendeu todas as funções e operações de um restaurante. Lá trabalhei muito, ralei. Mas, plantei, reguei, investi, construí, contribuí com o desenvolvimento do país, defendi o meio ambiente, venci. Hoje, com meus 66 anos de idade, sou um homem feliz, tenho três filhos e uma esposa que eu amo muito. (João)
Nessa mesma época, Leolina – ou simplesmente Lina – foi para Salvador estudar e começou a fazer faculdade de Letras. Essa era a única opção na época para as mulheres do sertão da Bahia, afinal, todas tinham que ser professoras! Todas, mas não Lina.
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Negócios Empreendedores Eu fugi à regra... comecei o curso, mas não concluí. Fui ser comerciante. Tive a maior dificuldade, pois trabalhar fora com três filhos... isso aqui na Bahia não existe até hoje. Minha sogra não se conformava de eu deixar as crianças para trabalhar fora. Mas, ela sabia que eu precisava ajudar o filho dela. Eu fazia as duas coisas: olhava meus filhos e trabalhava. E não sobrou tempo para mim. Meus filhos nunca me criticaram por isso, porque eles sabem que tudo que fiz foi para dar conforto a eles, faculdade, viagens. Eles não podem ficar limitados com a visão da Bahia.
Lina precisou de coragem e força para vencer barreiras, pois a cultura local e as pessoas não viam com bons olhos uma moça nova atrás de um balcão. Eu sofri muitos preconceitos e discriminação. Me olhavam com o canto do olho, novinha, e achavam que ia dar tudo errado, que meu marido ia ficar enciumado. Mas, entre nós, tudo foi sempre aberto, com bom diálogo, e esse risco eu não corri.
O casal morou em São Paulo sete meses, no início de casamento. Lina conta que seu marido admirava muito um dos donos da cantina onde trabalhava, um italiano. João se inspirava na sua garra e, principalmente, no seu exemplo, por ter vindo para o Brasil com muitas dificuldades e ter vencido. Dizia que também venceria pelo esforço e pela persistência, como o italiano, e que, com certeza, um dia teria seu próprio restaurante. João e Lina aprenderam como os profissionais paulistanos do ramo trabalhavam. Observavam o jeito com que faziam os serviços e como encaravam a vida. A rapidez e a esperteza com que atendiam os clientes a faz lembrar, de forma bem humorada, de Chico Anísio. Chico Anísio falava que o baiano é preguiçoso, não é bem assim [risos], mas tem um fundo de verdade. É um pouco acomodado, muito diferente do paulista que é elétrico, agitado e não tem hora pra nada. Paulista é rápido, até porque ninguém espera nada por lá. Aqui o pessoal não tem tanta pressa.
Em São Paulo, o casal não tinha uma vida fácil. Lina não se adaptou ao clima, à poluição e à correria cotidiana do povo paulistano. A dificuldade de viver e conviver em uma metrópole também não alegrava seu coração, que mantinha a esperança de um dia voltar para a Bahia. Assim, contando com a experiência de João como garçom, com um pouco do recurso financeiro conquistado por meio do trabalho duro e com a oferta do pai de Lina de ajudar na compra uma pequena lanchonete para iniciarem as atividades, resolveram retornar para Salvador. Voltaram levando na bagagem a experiência e a visão empreendedora adquiridas na cidade grande. Sabiam dos desafios que iriam encontrar ao assumirem um negócio próprio, principalmente em Salvador, pois acreditam que na Bahia tudo é mais difícil. Quando eles começaram o empreendimento, Lina tinha 23 e João, 28 anos.
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Kairós: o deus da oportunidade ou um presente de grego?
Como tudo começou O nome do estabelecimento, Dom Passos, vem da convivência de João com um dos donos da cantina onde trabalhou em São Paulo, um espanhol. O pessoal gostava muito de João e a recíproca era verdadeira. Os colegas diziam: “esse aqui é Dom Jesus de Dom Passos”. Aí ficavam brincando, fazendo folia com o nome dele e ele gostou... então, Dom Passos acabou dando o nome à nossa empresa. (João)
Abriram a lanchonete em 1966. Atendiam bem os clientes e começaram a inovar trabalhando com produtos de qualidade. Não era muito comum uma lanchonete simples, localizada no centro de Salvador, trabalhar no padrão de estabelecimentos de São Paulo. Afinal, este era o know-how que o casal estava trazendo para aquela cidade. Lina sempre teve muito incentivo para estudar, mas desde pequena ajudava seu pai no estabelecimento comercial. Levava documentos à prefeitura, ao contador e também atendia os clientes. Assim, encarar um ponto comercial para iniciar um negócio próprio não foi nenhuma novidade, e sim um desafio. Desse modo, nenhuma situação constrangia o casal. Com o sucesso do negócio, Lina e João não se acomodaram em ficar apenas com a lanchonete. Em 1990 identificaram outra oportunidade. Dessa vez o desafio foi bem maior, pois se tratava de um empreendimento no qual o casal não contava com nenhuma experiência. Resolveram então adquirir um imóvel onde funcionava um pensionato com inquilinos. Com muito jeito e, aos poucos, foram desocupando o prédio até que, ao esvaziar por completo, tiveram a ideia de fazer um hotel. Então, começaram sua reforma e ampliação. O hotel foi inaugurado no período do Plano Collor (1990-1993), momento de transtornos, pois muitos brasileiros ficaram sem dinheiro. Nessa mesma época, João teve problemas de saúde devido a uma queda e teve que fazer uma cirurgia de hérnia de disco por conta do acidente. Assim, abriram o hotel sem entender nada do ramo, sem nenhuma experiência e ainda por cima com a saúde abalada. Lina percebeu que tinha que buscar conhecimento para dar vida ao empreendimento que estava nascendo. Então, procurou o Sebrae e fez um curso de governança e hotelaria. Procurou os donos de pequenas pousadas e hotéis que estavam vivenciando as mesmas dificuldades e se engajou no grupo, que era composto por diferentes pessoas vindas de várias localidades. Ampliou seu network, procurou entender as dificuldades das pessoas, comparava-as com as suas e ficava atenta às soluções. Além do Sebrae, se cadastrou na Associação Brasileira de Hotéis e Pousadas e começou a frequentar as reuniões. O diretor da associação era proprietário de um grande hotel à beira-mar em Salvador e, além de administrar seu próprio hotel, tinha grande preocupação com os empreendedores do ramo, principalmente com aqueles
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que estavam iniciando pequenos negócios. João não se interessava em fazer cursos e nem em se engajar no grupo. Deixou essa missão para a esposa, embora não tenha dado muita importância para suas iniciativas nesse quesito. Mesmo Lina tendo feito alguns cursos, um dado relevante nessa história é o fato de que os empreendedores nunca fizeram um plano de negócio. Foram administrando, vivenciando os problemas e procurando a melhor saída para solucioná-los um a um. Nós temos que saber como sair dos problemas. Por exemplo, não podemos gastar mais do que ganhamos. Quando sobra um pouco, investimos, procuramos melhorar alguma coisa. Não deixo nenhum imposto atrasado, pago tudo em dia. Esse é meu planejamento. E, uma vez por ano, o contador tem que puxar tudo, certidão negativa, FGTS, INSS. Não abro mão de verificar, e o contador tem que me passar toda a situação da empresa. Não posso me dar ao luxo de algo sair errado, senão atrapalha tudo. De repente, vem uma bomba. (Lina)
Conseguiram ampliar o hotel, criaram um restaurante para atender não apenas os hóspedes, mas também o público externo. O hotel é anexado à lanchonete que foi totalmente reestruturada e reformada. Uma das estratégias desenvolvidas por Lina para ajudar nos negócios foi buscar clientes não apenas para a lanchonete, o restaurante ou o hotel. Adquiriram um terreno ao lado e construíram um estacionamento, pois perceberam que havia muitas dificuldades para carros e ônibus estacionarem no local. Esse novo empreendimento abriu uma possibilidade de prestação de serviços para o Ministério Público. Para essa parceria ser legal e ter boa demanda de carros para estacionar no local, toda a documentação dos empreendimentos devem estar dentro dos padrões exigidos. Nesse ponto, Lina é atenta e não descuida dos detalhes, faz questão de que tudo esteja correto para o bom funcionamento dos negócios. Afinal, além do Ministério Público, a Defensoria Publica do Estado também é muito exigente. Os empreendedores prezam pela qualidade dos produtos, a limpeza dos locais e o bom atendimento. Vários funcionários do Fórum e do Ministério Público frequentam o restaurante, pois apreciam a comida caseira. E tudo vai de vento em popa, como dizem os baianos.
As dificuldades enfrentadas para a sobrevivência do negócio Uma das maiores dificuldades vivenciadas pelos empreendedores no dia a dia dos negócios, além de toda a burocracia de se constituir uma empresa no Brasil, com tantas taxas, impostos e fiscalizações, é a de fazer a gestão de pessoas. Lina argumenta que não é tarefa fácil lidar com os funcionários, embora ela tenha como princípio estabelecer um clima familiar e cordial entre eles, dando todo apoio e recursos necessários, dentro do possível. Ela comenta sobre o ritmo de trabalho das pessoas:
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Kairós: o deus da oportunidade ou um presente de grego? Eu e João aprendemos a ter o mesmo ritmo. Nós encaramos qualquer trabalho. A gente se complementa. Ele entende de cozinha, então se o cozinheiro falta ele vai para a cozinha e faz a melhor comida do mundo. Se a balconista falta, eu vou para o balcão, vou para o caixa e atendo os clientes no padrão de São Paulo, com rapidez e atenção. Já os funcionários, não tiveram essa visão de negócios que João e eu tivemos. Se eles saem das suas funções, não sabem muito bem o que fazer. Eu treino, explico, dou exemplos, mas só aprende quem quer. Aqui o pessoal trabalha em outro ritmo e isso desgasta muito a gente.
Lina atribui a si algumas qualidades como gestora, por exemplo, o fato de ser paciente, humana e generosa. Embora não aprecie ter que controlar as pessoas e as situações, sabe que essa função é fundamental, pois nem todos os funcionários são responsáveis como deveriam. Nos finais de semana ou quando tem feriado prolongado – períodos em que mais precisam dos colaboradores –, quase sempre não conta com o grupo completo, tendo que sobrecarregar alguns para suprir os faltosos. Os funcionários acham que eu sou viciada no trabalho. Acham que eu exagero. Mas na verdade faço o que gosto, não reclamo de nada. Sigo o modelo de São Paulo, que é um jeito de me diferenciar do pessoal daqui.
Outra dificuldade relatada por Lina é a própria política local. Ela conta que o centro de Salvador ficou muito abandonado, tiraram as repartições públicas e levaram para o centro administrativo. E considera que a vinda do Shopping Center Iguatemi foi o divisor de águas, pois passou a ser o novo centro empresarial da Bahia. Embora esse fato tenha diminuído a frequência de pessoas nos empreendimentos, também serviu de estímulo para recriarem o negócio. Assim, resolveram investir, melhorar as instalações visando atrair o público local e aqueles que frequentavam a Arena Fonte Nova, próxima do Dom Passos.
Sustentabilidade... além do econômico, cuidando do ambiente e do social O casal adquiriu há muito tempo um sítio, distante 6 km de Salvador. Tiveram visão ao investirem nesse empreendimento. Além de ser o recanto da família para o descanso e o lazer e o local onde curtem os animais, tem também funcionalidade para os empreendimentos. O lixo orgânico advindo do restaurante e da lanchonete é levado para lá. Parte dele é para alimentar os animais. O que não levam para o sítio é embalado para depois ser recolhido pela prefeitura. Essa atitude de selecionar o lixo também não é muito comum na Bahia, mas o casal faz questão de colocar essa missão em suas agendas, pois assim conseguem preservar o meio ambiente.
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Negócios Empreendedores
Em relação às ações voltadas para as causas sociais, investem nos funcionários. Têm alguns projetos sociais, mas ainda pretendem fortalecê-los. O que vigora na atualidade é o auxílio extra que proporciona aos funcionários, ajudando-os na área da saúde, quando o convênio corta benefícios. Conseguem agilizar aposentadoria para pessoas incapazes de exercer trabalho, ajudam com medicamentos e outros tipos de auxílios. Têm intenção de planejar melhor as ações sociais e ambientais, mas não sabem por onde começar. Esse dilema é comum entre os empreendedores, pois as políticas públicas, além de não cumprirem suas prerrogativas, não contribuem oferecendo diretrizes para o cidadão participar de ações para o bem comum.
E veio a Copa do Mundo para Salvador Muitas promessas foram feitas à população após a confirmação de Salvador como uma das 12 sedes da Copa do Mundo no Brasil. No entanto, o entorno da Arena não foi beneficiado como previsto no projeto. O metrô estava parado há 13 anos e apenas uma linha foi colocada em funcionamento. Para os turistas que vieram ao evento o resultado foi bem interessante. Mas, as linhas do metrô que beneficiam a população, independente de eventos esportivos, não foram nem mesmo iniciadas. Vários investimentos, como hotéis, shopping centers, restaurantes e comércios, foram projetados e não saíram do papel. A esperança de todos, depois do deslocamento dos órgãos públicos para o Centro Empresarial Iguatemi, era a sua revitalização, principalmente com a construção da Arena Fonte Nova. Nos dias dos jogos, o comércio sentiu uma queda nas vendas, pois as lojas foram fechadas. Nada pode funcionar. O Caminho do Gol trouxe muitas dificuldades para o comércio local. Para os comerciantes locais foi o mês mais fraco do ano. Para o Dom Passos, o setor de restaurantes sofreu uma queda nas vendas do almoço, o hotel teve ocupação parcial e tudo foi voltando à normalidade após a Copa do Mundo, ou seja, final de agosto e início de setembro. Na verdade, não tivemos o esperado. Por termos um hotel aqui ao lado da Arena, não correspondeu à nossa expectativa. Se nós não tivéssemos o restaurante, que graças a Deus é o melhor aqui da região, pois nossa comida é de qualidade, teríamos tido prejuízo. O hotel teve ocupação parcial e não estávamos esperando por isso. (Lina)
Ou seja, os pequenos empreendedores do entorno da Arena Fonte Nova cultivaram esperança, investiram nos negócios, mas não tiveram o retorno esperado. Criaram expectativas e os resultados frustraram, deixando
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apenas a lembrança de milhares de passantes que se dirigiam para assistir ao espetáculo futebolístico.
Aprendizagem e ações para o futuro Lina e João são gratos pelas oportunidades conquistadas. Trabalharam muito, mas sabem que têm ainda muita luta pela frente. Abriram caminho para o filho que se tornou sócio dos empreendimentos, empregaram parentes próximos e afirmam que o sonho está apenas começando. E seus filhos contribuem com os sonhos e os ajudam a sonhar. Um desejo latente de Lina é conhecer a Disney e levar os netos. Quer ser uma mãe moderna, que usa tecnologia para se comunicar com seus familiares. O casal deixa um legado para seus filhos, funcionários, amigos e parentes próximos: mostrar que, com trabalho, tudo se conquista. Mas, para tal, afirma ser necessário abrir mão de muitas coisas, do lazer e, eventualmente, até da família.
Foto: Vânia Nassif
Um dia, fiquei muito emocionada com uma fala de meu filho, que soube reconhecer nosso valor e nossa luta. Disse: “Mãe, sem você e o barbudo [João], nada disso poderia ter sido feito. O que temos hoje, devemos à luta de vocês, à visão e à fé que tiveram para construir o Dom Passos”.
Dom Passos: o empreendimento é o orgulho da família e um legado para os filhos
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Ricardo Simões, franqueado da Subway Foto: Vânia Nassif
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CASO 2
UM RESULTADO AMARGO, SÓ COMPARADO AO 7 X 1 ENTRE BRASIL E ALEMANHA
Q
uem circula pela cidade de Salvador, dificilmente voltará para sua casa – ou hotel, se for um turista – sem ter passado em frente a uma das cerca de 25 lojas do grupo de lanchonetes fast food Subway. Dessas, 11 pertencem ao empresário Ricardo Simões, o que faz dele, aos 27 anos de idade, possivelmente o maior franqueado individual da capital baiana. Fundada em 1965, nos Estados Unidos, a rede de franquias Subway iniciou suas operações no mercado brasileiro em 1994, oferecendo sanduíches com o conceito de comida leve e saudável, alimentação prática, mas preocupada com a saúde do consumidor. Hoje a marca Subway® é a maior rede de sanduíches em formato “submarino” – pão longo, cortado ao meio e recheado com saladas, carnes e temperos – do mundo, com mais de 40 mil instalações1. Ricardo é formado em Administração de Empresas pela Universidade Salvador – UNIFACS, mas foi em casa, com os pais, que recebeu as primeiras lições de empreendedorismo. Movido pela necessidade, o pai batalhou na vida e demorou a se formar. Já foi dono de mercado e corretor de imóveis, até que se tornou um bem sucedido empresário no ramo de construção civil, especializado em refrigeração de grandes ambientes. A mãe também é empreendedora nata e administra um pequeno negócio. O DNA da família para os negócios impulsionou Ricardo desde pequeno. Seu primeiro projeto, uma indústria de blocos de concreto, não chegou a decolar. Ele esteve à frente da gestão, prestou consultoria, mas depois se afastou, deixando a empresa seguir seu rumo. Enquanto cursou a faculdade, Ricardo foi estagiário no Citibank por quase dois anos, uma experiência que, segundo ele, pouco lhe valeu nas escolhas futuras que faria na vida profissional. Da amizade com um dos primeiros franqueados da Subway em Salvador, nasceu concretamente a chance de ter um negócio promissor. E com um diferencial, que só um empreendedor com percepção de mercado poderia atribuir ao seu negócio: abrir lojas Subway voltadas para a classe C. “Eu abracei a oportunidade e fui a primeira pessoa que entendeu que a Subway poderia atender esse público. Hoje, 80% delas têm foco nas classes C e até D”, afirma. Em 2010, com apenas 22 anos, recém-formado e tendo o estágio no ramo financeiro como experiência mais significativa, Ricardo deu os primeiros passos so1 Disponível em www.subway.com.br/historico#restaurante, acesso em 18/5/2015, às 11h18
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zinho e abriu sua primeira franquia, localizada perto do Aeroporto Internacional de Salvador, em um ponto tão pequeno que o escritório funcionava dentro do estoque. Apesar de se sentir “muito verde”, contou com a diligência da mãe e os conselhos do pai. Ambos foram importantes para tirar as dúvidas operacionais e técnicas do filho, no estágio inicial do negócio. Sem nenhuma vivência no ramo de alimentação, Ricardo aprendeu “na marra” sobre sanduíches, molhos, saladas, carnes, tônicas, brownies e tantos outros produtos que compõem o cardápio da rede. Além disso, contou com a estrutura que a Subway oferece aos franqueados. “É sensacional. Acho que a franquia da Subway hoje, junto com o McDonald’s, é a melhor estrutura de franqueados do Brasil”, afirma.
A formação do negócio Um dos grandes desafios de quem deseja empreender diz respeito ao investimento inicial necessário para concretizar o negócio. Para levantar capital e investir nas duas primeiras lojas, abertas no intervalo de apenas uma semana, 50% dos recursos foram provenientes da família e ou outros 50% foram levantados junto a banco. Ricardo saltava de paraquedas, em um terreno desconhecido, mas com equipamentos de segurança. A autoconfiança, característica essencial e necessária a qualquer empreendedor, era marca registrada do jovem franqueado. Mais do que isso, Ricardo revelava outro traço de sua personalidade: “Meu ego na época era muito grande. Eu achava que era indestrutível, que dava conta de tudo e mergulhei de cabeça. Felizmente, deu tudo certo”. Mas autoconfiança não garante que tudo em um negócio possa dar certo e Ricardo revela que erros de fato existiram. Não quer dizer que não tenha dado algo errado no caminho, mas acho que foi muita teimosia da minha parte dizer que eu poderia ser um empreendedor e encarar. Aprendi com meus próprios erros a ponderar a autoconfiança ao longo do tempo. Hoje eu penso duas vezes antes de fazer alguma coisa.
Mesmo empreendedores com autoconfiança são passíveis de erros. No caso de Ricardo, ele conta o que considera o grande erro de sua vida. Resistente à formação de sociedade, Ricardo já teve experiência com sócios para abrir uma empresa de cachorro-quente na Bahia. Ele pesquisou uma empresa de Curitiba e levou a marca para Salvador. Formatou toda a parte de logística e de fornecedores e tornou-se o franqueador, além de ter as lojas próprias. Era sócio-investidor, com 33% das cotas, mas não geria o negócio.
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Kairós: o deus da oportunidade ou um presente de grego? Foi um erro muito grande, pois eu não conseguia estar na operação, porque já estava envolvido na Subway. Eu formatei o negócio, mas ele desandou e eu não concordava com a forma como trabalhávamos: com pouco investimento em marketing, sem trabalhar no pós-venda e reduzindo o custo. Então saí depois de dois anos. Qualquer novo negócio tem que ter um investimento muito grande em marketing. Não tem que se pensar tanto em custo, quando ele acarreta em perda de qualidade. E isso estava sendo feito, então eu me chateei. Esse negócio foi uma grande perda financeira para mim.
Manter-se na Subway era certeza de ganhar e contemplaria a obstinação de Ricardo em estar à frente de todas as etapas do negócio: formatar, determinar como seria o atendimento, quais produtos vender e de quais fornecedores comprar. Ele fez tudo isso naquilo que considera “seu erro”, mas não participou da gestão. Deixei meus sócios tocarem o negócio. Eles são extremamente competentes, só que pensavam um pouco diferente do que eu penso. Então, como eu não concordava mais com as diretrizes e como eu não estava vendo uma perspectiva de melhora em curto prazo, eu preferi sair, mas o negócio existe hoje e ficou famoso. A gente chegou a abrir quatro lojas, hoje são três.
Os tropeços da Copa: resultado amargo Nos anos que precederam 2014, muitos dos empreendimentos brasileiros foram movidos pelo maior evento de futebol do planeta: a Copa do Mundo da Fifa. Com Ricardo não foi diferente. Cinco das suas 11 lojas foram abertas no entorno da Arena Fonte Nova, em Salvador, uma das 12 cidades-sede da Copa. “Praça da Sé, Barbalho, Santa Izabel, Pitangueiras de Brotas e Nazaré”, ele enumera os bairros onde se instalou. As demais lanchonetes se situam em outras regiões, sem influência direta com o evento. Antes do evento mais esperado do ano, porém, o Brasil sediou entre 15 e 30 de junho a Copa das Confederações, um bom laboratório para testar o potencial dos negócios, e que rendeu bons resultados, “pelo fato de ser mais curta que a própria Copa do Mundo”, acredita Ricardo. A peculiaridade desse evento reside no fato de ter atraído menos turistas de fora e ter movimentado mais as pessoas da própria cidade de Salvador. “Criou-se aquele alvoroço, as pessoas gastaram dinheiro, pararam de fazer contas e agiram como se fossem turistas viajando em sua própria cidade.” Mas ainda era grande a expectativa com o enxame de turistas para a Copa do Mundo. Mesmo sem ter grandes eventos mundiais, os anos de 2012 e 2013 haviam sido generosos com o ramo de fast food e deram excelentes resultados. Em 2014, os ventos soteropolitanos sopraram a favor dos negócios até março. Em abril, o clima de euforia com os preparativos para a Copa foi arrefecido com uma greve da Polícia Militar da Bahia, que começou no dia 15 e durou pouco mais de 43 horas, mas deixou muitos estragos. Segundo reportagem publicada no portal de notícias G1, enquanto o governo do Estado e a PM não chegavam a um acordo, foram registrados 39 homi-
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cídios (uma média de 20 por dia, contra 3,91 em 2013), 60 carros foram roubados apenas no primeiro dia da paralisação e, no comércio, supermercados e lojas foram arrombadas e saqueadas, deixando a população atônita e uma enorme sensação de insegurança na cidade2. “Cheguei a fechar minha loja durante 15 dias, então tive o maior prejuízo nesse mês”, conta Ricardo. Apesar dos fatos adversos, a esperança de virar o jogo na Copa estava de pé. Em maio, o mercado seguiu morno. E finalmente chegou o mês do grande evento, mas, lamenta Ricardo, a guinada não aconteceu. Eu perdi venda antes da Copa. Minhas lojas não venderam e, mesmo durante a competição, tive apenas uma loja boa, isso porque ela estava dentro da Fifa Fan Fest, na Praça da Sé. Em junho e julho tivemos médias muito boas para essa loja, mas as outras foram muito fracas.
O panorama mudava em dias de jogos – e foram seis na Arena Fonte Nova. “Quando tinha jogo, o movimento na loja mais próxima da Fonte Nova era sensacional! Nos outros dias, era péssimo. Então, se eu botar a Copa no balanço, foi péssimo.” O faturamento foi cerca de 35% pior do que no ano passado. Um resultado amargo, só comparado ao 7 X 1 entre Brasil e Alemanha. Durante a Copa, uma curiosidade com relação ao público que circulava em torno da Arena e consumia na Subway era o fato de serem consumidores locais. Ricardo percebeu que o turista ia aos jogos, frequentava a Arena, bebia no estádio e saía após o jogo para outras regiões. Sua loja enchia de gente, mas eram pessoas até conhecidas, que frequentavam habitualmente o local. Uma das expectativas de quem apostou suas fichas na Copa era o legado que o evento deixaria: melhoria na mobilidade urbana e na infraestrutura, turistas retardatários circulando e consumindo na cidade, população local ainda descobrindo e explorando as novidades que foram feitas sob medida no “padrão Fifa”, entre outras heranças da maior festa mundial do futebol. No entanto, o pós-Copa mostrou-se igualmente fraco para Ricardo. Acho que o pessoal gastou muito dinheiro. Depois o país entrou em recessão, tivemos eleição e crise no governo. Tudo isso gerou insegurança no povo brasileiro, principalmente em gastos com fast food, que é algo que se pode diminuir se quiser e passar a comer em casa.
O perfil de empreendedor: gestão por metas e mérito Motivar. Esse verbo sintetiza boa parte das ações orquestradas por Ricardo à frente dos seus cerca de 130 colaboradores. Entre suas maiores competências, o em2 http://g1.globo.com/bahia/noticia/2014/04/acaba-greve-da-policia-militar-da-bahia.html, acesso em 18/5/2015, às 11h22
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preendedor se destaca pela capacidade de agregar funcionários e manter a motivação deles sempre em alta, dando esperanças para quem pertence à classe C ou D ascender para a classe B. Como não pode acompanhar de perto a rotina de 130 funcionários, Ricardo realiza uma reunião semanal com seus gerentes e atribui a eles a missão de transmitir não somente suas orientações, como sua visão de empreendedor. Recursos humanos respondem por 90% dos desafios de gestão dos negócios de Ricardo. Uma das estratégias motivacionais adotadas por ele é trabalhar com o objetivo de alcançar metas e remunerar por isso. Em um segmento que paga salário mínimo, esses são mecanismos relevantes. Ricardo aponta uma dificuldade no perfil de empregados que administra. As pessoas têm receio de assumir responsabilidades e alguns fogem de querer algo melhor da vida. Por outro lado, se o funcionário já está satisfeito com o que tem e com o que ganha, é muito difícil motivá-lo. A pessoa se demite aqui e vai trabalhar numa padaria ao lado para fazer exatamente a mesma coisa. Só que a padaria ao lado abre aos domingos, mas ele prefere trabalhar lá, mesmo sabendo que não vai ter perspectiva de crescimento. Mesmo sabendo que o cara só tem uma padaria e que a mãe dele é gerente, que o tio é caixa. Ele prefere ser empacotador, ganhando R$ 724. Ele não prefere vir para cá seguir sete liderados, trabalhar com meta sobre meta. Meu atendente não busca isso.
Se existe algo que inquieta um empreendedor é quando ele não consegue fazer com que o funcionário pense com a cabeça do dono. Para dar o exemplo, Ricardo é incansável na tentativa de mostrar o caminho aos seus colaboradores. Eu participo de todas as etapas produtivas do meu negócio. Da montagem ao atendimento, até a possível venda de uma loja. Agora mesmo eu estava lá batendo prego nos armários que chegaram, desmontando loja, fazendo instalação elétrica. Tudo sou eu que faço. Hoje eu não consigo mais frequentar a operação, mas quando eu fazia parte dela, e eu era o gerente de loja, era mais fácil mostrar o caminho a ser feito. Hoje eu não consigo fazer com que meus gerentes transmitam a mensagem correta até o atendente.
Quem quer seguir os passos de Ricardo e investir no ramo de fast food, é importante levar em consideração que sábados e domingos são os dias preferidos de muita gente para sair, se divertir, comer um lanche, enquanto o dono do negócio trabalha. Atuar nesse ramo tem seu preço, explica Ricardo. Tenho amigos que na sexta à tarde vão beber uma garrafa de vinho. Acho que o seu perfil tem que se encaixar com o negócio. Por exemplo: eu não poderia ser dono de uma clínica estética, pois teria que fazer tudo com tranquilidade, procurar me cuidar. Meu perfil não é esse. Eu preciso de muito dinamismo para tocar 11 lojas. Acordei às 6h, carreguei folha, vim pra cá, tenho uma reunião, vou voltar para a loja e provavelmente vou passar no banco no caminho. Eu preciso cuidar das empresas. Nem todo dia é assim. No final do ano eu vou passar o réveillon fora.
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Segundo o Sebrae3, as principais vantagens de se investir em uma franquia são: iniciar um negócio contando com a credibilidade de um nome ou marca já conhecida no mercado, contar com o apoio do franqueador, contar com a existência de um plano de negócio, ter maior garantia de mercado – uma vez que o franqueado pode aproveitar a vantagem competitiva de seu franqueador, que já testou seus produtos e marcas – ter melhor planejamento dos custos de instalação, economia de escala, independência jurídica e financeira e ter a possibilidade de pesquisa e desenvolvimento. Seguir um modelo de gestão ditado pela franquia é de se esperar de qualquer franqueado. Mas não de Ricardo. “Eu sou um dos franqueados mais chatos que existe na Subway porque eu tenho o meu jeito de gerir”, assume o empreendedor, que em 2014 ganhou o prêmio de “melhor franqueado do mundo”, no grupo. “A gente ganhou o prêmio pensando um pouquinho diferente”, diz. Nas franquias de Ricardo, a satisfação do cliente e a retenção de custos andam de mãos dadas, por mais antagônico que seja esse binômio. O primeiro item é o que persegue Ricardo. Já o segundo, é de responsabilidade dos gerentes.
A luta para ser competitivo No mundo corporativo, compliance quer dizer agir de acordo com leis e regulamentos internos e externos. Na prática, as empresas precisam interpretar as leis que regem suas atividades, ter um controle interno eficiente e mitigar os riscos operacionais. Dessa forma, elas podem comprovar para o mercado que agem em conformidade jurídica e normativa, o que é indispensável para as boas práticas de governança, e se tornam mais competitivas. No ramo de alimentação, controles rigorosos de higiene são indispensáveis no trato com os alimentos. A vigilância sanitária é atuante e já visitou as lojas de Ricardo diversas vezes. Eventualmente precisamos fazer adaptações, mas nunca tivemos problemas com a Vigilância Sanitária nem com qualquer outro órgão público, como Ministério do Trabalho ou Procon. Tem que existir essas regulamentações, mas gostaria que não fossem só para a gente. Às vezes a impressão que dá é que só fiscalizam a gente, o McDonald’s ou o Burger King, e não os estabelecimentos menores. Muitas vezes os menores estão aqui do meu lado vendendo a Coca-Cola a R$ 2 e a gente não consegue chegar a esse preço porque tem diversos outros custos, como com registro de funcionários, por exemplo. Os custos com CLT são monstruosos e, pisou aqui, tem que estar com a carteira assinada. Essa é uma regra da nossa empresa. Mas na barraca do acarajé, trabalham tio, mãe, primo, e isso é uma dificuldade competitiva que a gente tem. 3 Disponível em www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/artigos/Franquia:-vantagens-e-desvantagens. Acesso em 15/5/2015, às 18h23
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Mas, afinal, que vantagem um franqueado da Subway leva com relação ao vendedor informal de acarajés? Ricardo justifica: Querendo ou não, a gente tem todo o poder da marca por trás. O Brasil está hoje entre as três maiores franquias do Subway no mundo, ao lado e Estados Unidos e Canadá. Nosso povo gostou muito dos nossos produtos, principalmente quando a gente trouxe o sanduíche quente.
A aceitação é intrigante, inclusive pelo fato de uma rede de franquias norte-americana de sanduíches em formato submarino fazer sucesso na terra do acarajé, uma iguaria símbolo da Bahia e com forte apelo cultural. Para se ter uma ideia, em 2005, a baiana do acarajé foi reconhecida como patrimônio cultural do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Segundo o Portal Brasil4, O ofício envolve rituais de produção, de arrumação do tabuleiro, de preparação da mesa e o uso de trajes próprios. Com vestimentas brancas, enfeitadas com colares de contas e panos coloridos, as baianas encantam os turistas com a alegria e o famoso tempero dos bolinhos feitos de feijão fradinho e fritos no azeite de dendê, o acarajé. A iguaria também foi reconhecida como Patrimônio Cultural de Salvador pela Câmara Municipal.
É a cultura global se hibridizando com a cultura local e conquistando seus espaços no coração, na mente e, por que não dizer, no paladar dos brasileiros.
A luta permanente e inglória por ser sustentável Outra questão tratada de forma global e que afeta diretamente o âmbito local é a sustentabilidade. Como destinar adequadamente as toneladas de lixo geradas pelas lojas da Subway? Ricardo explica que a coleta seletiva é uma questão recorrente e já foi adotada em diversas fases da vida da empresa. “Só que quem recolhe não é seletivo”, critica, referindo-se à inexistência de uma política municipal de coleta de lixo orgânico e reciclável. Para a gente fazer coleta seletiva, teríamos que levar o lixo até o aterro sanitário. Isso só acontece em Salvador. Em São Paulo se consegue fazer coleta seletiva, em Recife se consegue fazer coleta seletiva. Aqui a gente conseguia colocar as quatro lixeiras plásticas para separar o lixo, só que o problema era que o lixo ia para onde estavam todos os outros. O caminhão do lixo passava e não fazia a separação. Então, a única loja que tem coleta seletiva hoje é a do shopping porque o shopping faz isso pra gente. O custo ficaria inviável se a gente tivesse que passar em todas as lojas. 4 Disponível em www.brasil.gov.br/turismo/2013/11/baiana-do-acaraje-e-patrimonio-cultural-dobrasil, acesso em 18/5/2015, às 12h27
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Outro fator da sustentabilidade que está sendo estudado pelo empreendedor é a adoção de energia solar. Vamos instalar placas de energia solar e vender energia solar para a própria Kwell. Vamos economizar energia de dia, porque minha capacidade de energia é maior do que o consumo da Subway. Então, a gente venderia a energia excedente para a Kwell para de noite recomprarmos essa energia. O meio termo disso seria positivo pra gente. A gente não pagaria energia e geraria energia limpa no lugar. Esse estudo já está sendo feito e, se der tudo certo, no meio do ano que vem [2015] a gente põe em prática.
Ricardo implementou em suas lojas da Subway um política para os próprios colaboradores serem investidores. Uma antiga estagiária, contratada quando cursava administração na Universidade Federal da Bahia (UFBA), atualmente é uma das suas principais gerentes e está abrindo a loja da Boca do Rio, um bairro popular de Salvador. Dentro de seis meses, ela terá que apresentar ao empreendedor o projeto de uma empresa, na qual ela vai ter 20% dessa sociedade.
Centralizador e inquieto: os temperos do empreendedor Ricardo deixa transparecer seu perfil centralizador, embora já tenha tentado descentralizar as decisões. Em vão. É ele quem toma conta das rotinas das lojas, contrata e demite. Das poucas tarefas que conseguiu se liberar de fazer, uma delas é o atendimento. Para isso, busca transmitir um pouco da sua cultura gestora para os gerentes. Ser perfeccionista é outra de suas características, mesmo em questões que poderiam parecer despercebidas. No trato com os funcionários, Ricardo se chateia quando não sabe o nome de algum deles. “Essa é uma das coisas que eu mais me apego. Eu gosto de entrar na loja e saber o nome de cada um e saber se está tudo certo com eles. Isso é decorrente do meu perfeccionismo.” Se essa é uma característica positiva, é preciso ponderar até que ponto o perfeccionismo é construtivo. No caso de Ricardo, ele reconhece que já perdeu funcionários por não saber administrar as diferenças e ter pesado na mão nas puxadas de orelhas. Principalmente no começo, eu não entendia que as pessoas não eram do mesmo jeito que eu. Tive que aprender na marra que cada um tem seu tempo de cumprir a tarefa. Isso não quer dizer que ele é melhor ou pior. Eu às vezes tenho um gerente que no primeiro mês está um espetáculo, mas tem gerente que leva uns três meses para ficar um espetáculo. Então, cada um tem seu tempo para cumprir a tarefa. Não adianta querer que todas as pessoas sejam iguais a você. Eu acho que o negócio não suportaria 130 Ricardos.
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Mesmo que tenha amadurecido em compreender as diferenças e o ritmo de cada funcionário, Ricardo não tolera a repetição de erros. É muito forte essa regra aqui dentro da empresa: o erro não pode ser repetido. Errou uma vez... se errar na segunda, tem que vir com uma desculpa muito boa, porque eu não tenho muito espaço para tolerar o tempo inteiro. A gente tem uma tolerância muito grande para uma segunda chance.
A tal segunda chance nem sempre acontece de forma imediata. Às vezes, por querer buscar outras oportunidades ou estar cansado de trabalhar aos sábados e domingos, o funcionário pede desligamento. Quando acontece de querer retornar, tem portas abertas. Hoje está difícil arranjar emprego que dê perspectiva que nossa empresa dá. Eu tenho diversos casos de gerentes que voltaram até melhor do que saíram. A gente costuma dar uma segunda chance, mas a gente não dá muita margem a erros repetidos e preguiça. Preguiça é uma coisa que não é aceita aqui dentro.
Se os erros não têm muito espaço, por outro lado, Ricardo procura exaltar os acertos. Quando alguém se esforça para ser perfeccionista, pode esperar o elogio do chefe. Ou mesmo uma premiação surpresa. “A gente dá troféus, dá prêmio de melhor gerente todo ano”, explica. Quatro anos atrás, uma de suas gerentes foi premiada com uma viagem ao Rio de Janeiro, com hospedagem no Copacabana Palace, acompanhada do namorado. “Esse ano os gerentes se motivaram três vezes mais. A melhor gerente do ano preferiu ganhar um chá de bebê, ao invés de diárias de hotel”, conta. Para mensurar a performance dos gerentes, Ricardo estabelece uma escala de 0 a 100 e recompensa seus colaboradores. O gerente pode levar R$ 550, 600, 750 de uma remuneração variável, fora o básico. Se bater a meta, leva os 10% do contracheque mais todos esses valores. O sub-gerente leva 30% disso. Os atendentes levam 10% do salário. A gente tem o “melhor funcionário do mês” e o de “melhor loja”. Trimestralmente iremos sortear TV, telefone, tablet. Para o melhor funcionário do mês, acho que o principal é a foto. O McDonald’s faz muito bem isso. Põe sua foto para todo mundo ver que você é o melhor funcionário do mês. Quando o cliente vê e identifica o funcionário, é muito bom para ele.
O reconhecimento, não somente perante os colegas como também perante o cliente, é considerado um troféu, mais significativo do que dinheiro. Para Ricardo, só fazendo isso e acrescentando R$ 50 no contracheque já é válido. Eu limito um pouco essa remuneração em dinheiro. Não tenho interesse de praticar o pagamento de quatro vezes o salário dele. Esse é o caso de sucesso do grupo de Jorge Paulo Lemann: as pessoas começam a ganhar demais e começam a não ter mais aspirações daqui pra frente.
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Negócios Empreendedores No momento que a gente aumenta o salário, tem que transformar a cabeça desse funcionário dizendo que ele pode ser mais do que aquilo para ele buscar ainda mais!
O perfeccionismo de Ricardo não diz respeito só à atuação de terceiros. Olhando para os próprios atos, Ricardo pode ser considerado o rei das planilhas. “Eu faço planilha de tudo! Seu eu espirrar, vai estar escrito em algum lugar que eu espirrei. Eu sou meio metódico quanto a isso. Pode ver essa parede... são todas de números e gráficos.”
O futuro do incansável empreendedor e os conselhos para quem inicia O empreendedor diligente pensa em como estarão seus negócios daqui a um, cinco, dez, 20 anos. A visão de Ricardo para a Subway é que ela se mantenha no porte ou no faturamento atual. “Eu não tenho vontade de abrir mais lojas, pois acho que botar todos os ovos no mesmo cesto é até perigoso”, pondera. Suas perspectivas para novas lojas só se forem localizadas em pontos muito estratégicos. Para os próximos cinco anos, Ricardo pretende apostar em outros setores. “Meu sonho sempre foi ter uma indústria”, revela. E dentro de dez anos, se a resposta mais óbvia seria “crescer”, ele surpreende, com sua permanente inquietação: O que eu gostaria de fazer nos próximos dez anos provavelmente seria botar uma pessoa nessa cadeira aqui e ela gerisse meus 130 funcionários, para que eu pudesse empreender. Qualquer empreendedor nato não empreende para ficar rico. Empreende porque gosta.
Ricardo, empreendedor contumaz, revela no final de seu depoimento mais uma de suas investidas do passado. Ele teve uma súbita passagem pelo ramo de entretenimento e decidiu promover festas. Como eu sou um pouco perfeccionista, quis fazer a melhor festa de Salvador. Trouxe o ex-BBB Diego Alemão e fechamos o Hotel Fiesta aqui em Salvador. Foi uma coisa legal, não perdi dinheiro nem ganhei, mas foi uma perda de tempo. Foi mais uma aventura que eu fiz para ver se o negócio daria certo.
Como não se satisfez com o resultado, deixou de lado a “diversão”. Hoje, o dinheiro que ganha é usado para reinvestimento, empreendendo novamente. “Há quatro anos estou com esse negócio [Subway] e não tenho um real no caixa. O dinheiro entra aqui e a gente reinveste.” Atualmente ele está começando o que chama de “empreiteirazinha”. Leia-se: construir as próprias lojas. “Tenho uns terreninhos, que estamos pensando em comprar para começar a construir para a gente mesmo. Construir galpão, alugar, construir as nossas lojas. Tudo isso com recursos de investimento da Subway.”
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O acúmulo de experiência empresarial em 27 anos de vida credencia Ricardo a deixar algumas recomendações a quem quer empreender. “Pense duas vezes. Você não vai dormir mais e irá trabalhar de domingo a domingo”, profetiza. E segue: Forme sua equipe e traga-os para perto; nunca confie demais, mas não precisa ser general; tenha flexibilidade; converse com seus funcionários, pois tem que haver proximidade entre patrão e funcionário; não crie barreiras de comunicação entre os níveis hierárquicos. Minha porta não tem chave e é proibido bater. Os funcionários simplesmente entram na minha sala. Quando a gente se fecha demais ou se coloca num nível alto, talvez os problemas da base, que fazem diferença, não chegam às nossas mãos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS A trajetória dos três empreendedores de Salvador, o casal Lina e João e o jovem Ricardo, apresenta algumas semelhanças e também singularidades. Os três iniciaram seus negócios ainda jovens, com 23, 28 e 22 anos, respectivamente. No entanto, João saiu cedo de casa, indo tentar a vida em São Paulo. Lina, após se casar, também foi morar na maior capital do país com o marido. Lá, o casal aprendeu sobre o jeito, o ritmo e a visão dos profissionais paulistanos que trabalham no ramo de alimentação. Essa experiência contribuiu muito quando decidiram começar seus próprios empreendimentos. Ricardo, por sua vez, nasceu em uma família de empreendedores e com ela teve suas primeiras referências sobre como gerenciar negócios bem como empreender. Também fez curso superior em Administração de Empresas, o que lhe possibilitou outros conhecimentos essenciais. Além disso, tão importante quanto suas referências iniciais e sua formação pessoal – ou talvez até mais – foi poder contar com o apoio financeiro e a retaguarda dos pais para iniciar e desenvolver seus negócios. O começo não foi fácil para Lina e João. Os recursos para abrir seu primeiro empreendimento vieram das economias feitas durante o período de trabalho duro em São Paulo e da ajuda do sogro. Não podiam errar, pois provavelmente não teriam outra chance. Resolveram encarar o desafio apostando em Salvador, uma cidade com características bem diferentes das que conheceram na capital paulista, especialmente quanto ao gerenciamento dos recursos humanos e à qualidade dos serviços prestados. Optaram por inovar e investir em qualidade, contrariando a crença local. Acertaram! Visão semelhante teve o franqueado da Subway ao fugir do padrão da marca e inovar focando na Classe C. Observamos assim outros dois aspectos em comum entre os empreendedores pesquisados: visão para enxergar uma oportunidade onde a maioria não consegue perceber e coragem para inovar, seja no processo (utilizando produtos diferenciados), seja no mercado (buscando um público específico).
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A despeito do sucesso do primeiro empreendimento, o casal sempre esteve atento para novas oportunidades e desafios. Foi assim com a aquisição de um imóvel para abrir um hotel e depois ao criar um restaurante e abrir um estacionamento, visando não apenas atender seus clientes, mas também atrair novos. Mesmo sem experiência no ramo hoteleiro, apostaram no potencial da região. Todavia, não deram um mergulho no escuro. Lina buscou conhecimento e orientação profissional em entidades que são referência nesse setor. Também se aproximou de outros empreendedores do ramo para trocar experiências e minimizar erros. Acertaram novamente! Nesse sentido, o caminho escolhido por Ricardo foi diferente. Depois de algumas tentativas frustradas, preferiu a segurança e o know-how de uma marca reconhecida internacionalmente. Investiu em uma franquia. No entanto, não sem imprimir sua marca pessoal. Estabeleceu um jeito de gerir diferente do que propõe o próprio franqueador. Quebrou um paradigma e foi premiado por seus resultados! Em relação à sustentabilidade, mais especificamente aos pilares ambiental e social – visto que o pilar econômico é mister para qualquer empreendimento se manter no mercado –, os empreendedores têm visões parecidas. Buscam implementar ações visando contribuir para a preservação ambiental do planeta e também procuram propiciar benefícios extras e investir no desenvolvimento pessoal e profissional dos seus funcionários. Acreditam que esse deva ser mais um diferencial, todavia, se queixam da falta de apoio e orientações do poder público. As duas histórias narradas até aqui revelam a persistência, a coragem, a visão e a competência desses três empreendedores para concretizar seus objetivos e sonhos. Apresentam trajetórias permeadas por desafios, dificuldades e alguns erros, mas principalmente por acertos e aprendizagens. Podemos afirmar então que representam histórias bem sucedidas. No entanto, durante o período da realização da Copa do Mundo no Brasil, os resultados obtidos, ao contrário do que imaginavam, não foram animadores. Após ótimos resultados em 2012, o aumento nas vendas na Copa das Confederações, em 2013, e um início de ano promissor, em 2014, Ricardo, naturalmente, acreditou que durante e após o esperado megaevento esportivo, com tanta divulgação, os resultados seriam ainda melhores. Também Lina e João – assim como muitos outros comerciantes e empreendedores de Salvador –, confiaram nas promessas de investimentos feitas à população pelos governos municipal, estadual e federal. É difícil apontar especificamente os fatores que influenciaram um resultado abaixo das expectativas dos empreendedores pesquisados. Seus empreendimentos vinham conquistando bons resultados antes da tão aguardada Copa do Mundo. Contudo, analisando seus relatos e observações, podemos obter algumas pistas. Ao descreverem o que aconteceu (ou o que deixou de acontecer) durante a realização da Copa do Mundo em Salvador é possível notar que alguns procedimentos
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Kairós: o deus da oportunidade ou um presente de grego?
provavelmente não tenham sido levados em consideração ou passaram despercebidos aos três empreendedores. Por exemplo, estabelecer um plano de curto e médio prazos com estratégias específicas focadas nas principais características do megaevento. Ter uma atenção especial com as exigências, regras e estratégias estabelecidas pela Fifa, especialmente para quem atua no entorno das Arenas. Buscar conhecer melhor o perfil do torcedor que acompanharia os jogos da Copa do Mundo em Salvador. Outro ponto importante é que, talvez – em virtude do assunto Copa do Mundo estar presente de alguma forma na maioria das rodas de conversas e discussões e da grande visibilidade e destaque do evento em todas as mídias – Lina, João e Ricardo, talvez tenham deixado de lado suas principais características como empreendedores: visão para enxergar boas oportunidades – antes, durante e depois da realização do megaevento – e coragem para inovar e propor algo novo, afinal, tratava-se de um contexto diferente com um público diferente. Quiçá tenham acreditado que o evento por si só pudesse garantir os excelentes resultados almejados por todos. Entre tantas outras, a persistência, a coragem e a capacidade de superar desafios e dificuldades são importantes característica de empreendedores de sucesso. Embora os resultados obtidos não tenham sido satisfatórios, Ricardo, autoconfiante, perfeccionista e inquieto não se abate e já faz planos para os próximos anos, manter a franquia de Subway e alçar novos voos no ramo industrial. Lina e João, como sempre, são gratos pelas oportunidades que aparecem. Acreditam que todo aprendizado é válido. Afinal, como afirma o jargão esportivo, também se aprende na derrota!
REFERÊNCIAS ALPERSTEDT, G. D.; FERREIRA, J. B.; SERAFIM, M. C. Empreendedorismo feminino: dificuldades relatadas em histórias de vida. Revista de Ciências da Administração, v. 16, n. 40, p. 221-234, 2014. IBGE. Censo 2010. www.censo2010.ibge.gov.br/sinopse/webservice/ Acessado em: 14/maio/2015. JULIEN, P. A. Empreendedorismo regional e a economia do conhecimento. Tradução de Maria Freire Ferreira Salvador. São Paulo: Saraiva, 2010. KURATKO, D.F. Entrepreneurship: Theory, process, practice (8th ed.). Mason, OH: Southwestern / Cengaga Publishers, 2009. LIMA JÚNIOR, A. S.; LUNA, R. M.; SOUZA, A. R. Evolução do sistema de franquias no Brasil. REMark - Revista Brasileira de Marketing, São Paulo, v. 11, n. 1, p. 94-112, jan./abril, 2012. MELO, P. L. R.; ANDREASSI, T. Publicação Científica Nacional e Internacional sobre Franchising: Levantamento e Análise do Período 1998 - 2007, RAC, Curitiba, v.14, n. 2, art. 5, p. 268-288, mar./abril, 2010. STROBINO, M. R. C.; TEIXEIRA, R. M. Empreendedorismo feminino e o conflito trabalho-família: estudo de multicasos no setor de comércio de material de construção da cidade de Curitiba. R. Adm., São Paulo, v.49, n.1, p. 59-76, jan./fev./mar., 2014. ZAHRA, S. A.; GEDAJLOVIC, E.; NEUBAUM, D.; SHULMAN, J. Atypology of social entrepreneurs: Motives, search processes and ethical challenges. Journal of Business Venturing, v.24, n.5, p. 519-532, 2009.
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Tem festa na Torre: turistas invadem o vizinho Mané Garrincha
Arena Nacional Mané Garrincha Brasília – DF
JOGOS DA COPA DO MUNDO DE 2014: Suíça 2 x 1 Colômbia
2x1
Equador Costa do Marfim
Camarões 1 x 4 Brasil
Shutterstock/AGIF
Portugal 2 x 1
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Gana
França 2 x 0 Nigéria Argentina 1 x 0 Bélgica Brasil 0 x 3 Holanda
Capítulo 6
TEM FESTA NA TORRE: TURISTAS INVADEM O VIZINHO MANÉ GARRINCHA Vânia Maria Jorge Nassif vania.nassif@gmail.com Universidade Nove de Julho – Uninove São Paulo – SP
Autores: Gustavo da Nóbrega gustavojdnobrega@gmail.com Universidade de Brasília – UnB Brasília – DF
Cândido Borges candidoborges@ufg.br Universidade Federal de Goiás – UFG Goiânia – GO
B
rasília, com sua arquitetura revolucionária, seus prédios padronizados e largas avenidas, hoje com mais de 2 milhões de habitantes1 e meio século de existência, é um exemplo da capacidade criativa e obstinação do brasileiro. A curta história da cidade é uma miscelânea de idealismo, persistência e sonho. O nome Brasília para a futura capital federal apareceu em um folheto anônimo em 1822 e, a partir dessa data, surgiram vários projetos propondo a interiorização da capital. A efetiva construção da cidade veio com a eleição de Juscelino Kubitschek em 1956. Uma equipe de talentos foi convocada por ele para seguir o plano urbanístico de Lúcio Costa e a orientação arquitetônica de Oscar Niemeyer. A inauguração da cidade ocorreu em 21 de abril de 1960, quando finalmente o Brasil ganhou uma nova capital. Hoje Brasília possui um PIB per capita de R$ 64.633,002, o maior do país e o dobro do PIB per capita de São Paulo, e o maior índice de desenvolvimento humano (IDH)3 entre as capitais dos Estados brasileiros. Entre as edificações arquitetônicas de Brasília, duas ganham destaque. O Estádio Nacional Mané Garrincha e a Torre de TV. O Mané Garrincha é 1 Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan): www.codeplan.df.gov.br/areastematicas/demografia.html. Acesso em 12/3/2015 2 Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan) - www.codeplan.df.gov.br/areastematicas/demografia.html. Acesso em 12/3/2015 3 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) - www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/ censo2010/default.shtm. Acesso em 10/3/2015
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Negócios Empreendedores
uma Arena multiuso que compõe o Complexo Poliesportivo Ayrton Senna, formado também pelo ginásio de esportes Nilson Nelson e pelo Autódromo Internacional Nelson Piquet. Inaugurado em 1974, com uma capacidade para 45.200 pessoas, o Estádio Mané Garrincha recebeu esse nome como forma de homenagem a um dos maiores jogadores que o Brasil já teve, que com seus dribles encantava torcidas e entortava adversários. Para receber os jogos da Copa do Mundo, o antigo Mané Garrincha foi colocado abaixo e um novo foi construído em seu lugar, com capacidade para receber aproximadamente 72.788 pessoas. Durante o evento, adotou-se apenas o nome Arena Nacional, pois a Fifa proíbe que as Arenas dos jogos tenham nome de pessoas. Além de ser a segundo maior Arena construída para os jogos, perdendo apenas para o Maracanã, a Arena Nacional foi eleita uma das mais bonitas e funcionais da Copa. Ao entrar nela, os torcedores se deslumbram com o gigantismo da Arena, que, com o rebaixamento do campo, não aparenta do lado de fora o seu real tamanho. Novos estacionamentos e modernos espaços exclusivos, como tribuna de honra, tribuna vip, lounge vip e auditório, fazem parte da sua infraestrutura. Estrategicamente localizada, fica próxima dos principais hotéis e shoppings de Brasília, do Congresso Nacional, do Centro de Convenções Ulisses Guimarães, do principal parque da cidade, o Sarah Kubitschek, além de outros pontos turísticos, como o Museu do Índio, Monumento JK e a Feira da Torre. Como o próprio nome indica, a feira ganhou esse nome por estar situada aos pés da torre de TV de Brasília, um dos monumentos mais procurados na capital federal, com média de mil visitantes por dia. A sua história remonta ao início da década de 70 quando os primeiros artesãos fixaram as suas barracas na parte superior da torre e lá permaneceram até o ano de 2010. Por ocasião das comemorações dos 50 anos de Brasília, os feirantes foram transferidos para a plataforma inferior, ocupando um espaço maior, com quiosques padronizados, ampla praça de alimentação e infraestrutura com banheiro, estacionamento e obras de acessibilidade, como escada rolante entre a feira e a torre. A feira oferece aos visitantes um panorama amplo do artesanato brasileiro que inclui esculturas de madeira, móveis, trabalhos com barro, rendas e tecidos vindos das diversas regiões, além de uma culinária diversificada. Esse capítulo discorre sobre dois casos de empreendedorismo na Feira da Torre, abordando a origem do empreendimento, o seu desenvolvimento, o reflexo da sua localização próxima a uma Arena esportiva da Copa do Mundo, bem como o impacto desse evento sobre o negócio. No relato dos casos, a Arena
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Nacional será chamada de “Mané Garrincha”, o nome anterior, que é a forma como as empreendedoras dos dois casos e a população do Distrito Federal continuam tratando o estádio. Você vai conhecer a trajetória de duas artesãs: Rosita Martins Pereira e Maria das Graças Ribeiro. Nos dois casos é possível ver empreendedoras determinadas, apaixonadas pelos produtos que fazem e pelo local onde estão instaladas – a Feira da Torre –, e a participação da família nos respectivos negócios. Conheça a visão de Rosita e Maria com relação à realização dos jogos da Copa nas proximidades dos seus empreendimentos, além da preocupação delas com a sucessão familiar na gestão do negócio.
Fotos: Vânia Nassif
Arena Nacional Mané Garrincha
Torre de TV de Brasília: vizinha da Feira da Torre
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Dona Rosita: artesanato que representa BrasĂlia e o Brasil
Foto: Vânia Nassif
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CASO 1
A ARTE QUE RETRATA OS MONUMENTOS DE BRASÍLIA E DO BRASIL
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osita Martins Pereira traz o DNA de um pioneiro, seu pai, que a exemplo de milhares de nordestinos foram decisivos na construção de Brasília. Tratados como candangos, rótulo dado para diferenciá-los dos funcionários transferidos da ex-capital federal, Rio de Janeiro, para a nova capital ainda em construção, aqui permaneceram e pelos seus trabalhos suportando as intempéries de habitat totalmente diferente dos seus transformaram-se em verdadeiros heróis. O slogan que soava como pejorativo é hoje sinônimo de elogio e os descendentes dizem com orgulho: “Sou filho de candango, sou candangueiro”. Rosita é uma delas e sua história comprova isso. Chegou em Brasília em 1961 trazida pelo seu pai e não demorou muito a encontrar emprego no comércio. Nessa época, sua mãe, Beatriz Pereira da Silva, já trabalhava na Feira da Torre como artesã e Rosita a ajudava nos fins de semana quando o movimento era maior. A empreendedora aponta dois fatores que a motivaram a optar pelo artesanato: o incentivo da família e de colegas e o gosto pessoal. Em virtude da idade avançada de dona Beatriz, chegou o momento em que ela deveria sair do controle do empreendimento. As pessoas ligadas à mãe de dona Rosita gostaram da ideia de ver a sua filha continuar o negócio. Além disso, outro quiosque na Feira da Torre pertencia a uma irmã que também atuava como artesã e incentivou Rosita a substituir a mãe na barraca. Ao assumir o negócio, nos meses seguintes, Rosita não fez nenhum planejamento ou pesquisa de mercado formal para identificar gosto ou preferência do consumidor e decidir como o empreendimento deveria ser estruturado e gerenciado. “Eu fui conversando com os clientes, ouvindo as suas necessidades, crescendo gradativamente, não tive uma programação. Aprendi a fazer no dia a dia”, afirma Rosita. Inicialmente Rosita trabalhava com bola de gude e Durepoxi. Com o passar do tempo, a empreendedora foi acrescentando outros materiais e atualmente trabalha com serigrafia, bijuterias, além de pedra-sabão, fazendo monumentos referentes a Brasília e ao Brasil. Os monumentos em pedra-sabão são o carro-chefe do quiosque e originaram o slogan que o empreendimento utiliza: Brasília-Brasil. Ao falar sobre a história da Feira da Torre, a artesã a divide em dois momentos. O primeiro quando a feira era organizada na plataforma superior da Torre e o segundo, na atual localização, na plataforma inferior. Na opinião dela,
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essa mudança da plataforma superior para a inferior foi muito difícil porque ninguém queria sair de onde estava. Na superior, existia fidelidade de clientes há décadas. Os quiosques eram mais próximos uns dos outros, o que permitia maior contato com clientes e feirantes. Dona Rosita enfatiza que o ambiente era como se fosse uma grande família e diz que foi muito difícil mudar para a plataforma de baixo. Apesar de a feira estar, atualmente, mais organizada, com quiosques padronizados, além de uma ampla praça de alimentação, a artesã ressalta que ainda existem clientes que não sabem onde os feirantes se encontram. E complementa: “Você pensa que isso aqui é primeiro mundo, mas não é. Quem está em um lugar privilegiado, faz alguma coisa, mas quem está afastado e não tem incentivo, acaba sem fazer nada”. Segundo Rosita, a mudança da plataforma superior para a inferior não a onerou com a aquisição de um novo espaço. Entretanto, os feirantes ainda lutam para fazer algumas modificações nas barracas, que são padronizadas, e conseguir melhor infraestrutura dos banheiros e melhoria da segurança. Ao ser questionada sobre algum ponto positivo da mudança da plataforma superior para a inferior, Rosita fala sobre o espaço que, segundo ela, é até grande demais. Quase imediatamente compara com o passado: na plataforma superior, era melhor financeiramente e nas relações humanas. “Todos teriam mais oportunidades se a feira tivesse continuado onde era antigamente”, acredita. Para vencer adversidades, Rosita revela seu segredo. “É necessário ter sabedoria, firmeza e carinho com o cliente, além de ouvir as pessoas mais experientes para ter ideias. Pode ser que ninguém esteja vendendo, mas eu consigo vender por causa do tratamento que dou ao cliente”, afirma. A artesã ressalta outros fatores para o seu sucesso: coragem, disposição, paciência e persistência. “Não gosto que o cliente saia sem ver tudo o que tenho a oferecer.”
Os efeitos da Copa do Mundo A Copa do Mundo deixou em Rosita tanta saudade quanto a época em que a feira era na plataforma superior. “A Copa foi maravilhosa”, diz. Houve um clima amigável durante o evento, as pessoas de fora se sentiam como se estivessem em casa. Antes dos jogos, o ponto de encontro era na Feira da Torre e os turistas vindos de todos os lugares ficavam concentrados em clima de festa. Apesar da grande incidência de turistas, o período da Copa não foi tão atípico em relação ao contato com estrangeiros, uma vez que a Feira da Torre é um ponto turístico da capital federal. Rosita atende esse público o ano inteiro,
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vendendo suvenires. O que mudou, durante o evento, foi quantidade de turistas, muito superior às outras épocas do ano. Um dos únicos obstáculos durante o período da Copa consistia na comercialização de artigos como a camisa da Seleção Brasileira e o mascote da Fifa, o Fuleco, que só podiam ser vendidos com autorização prévia. Mas isso para ela não foi um problema, pois os produtos que tradicionalmente vendia não traziam mensagens vetadas pela Fifa. Suas obras fazem alusão ou representam os monumentos de Brasília e do Brasil, por isso ela podia comercializar livremente. Esses produtos também atraíram os clientes, o que fez com que as vendas subissem durante a Copa. “Vendi muito. Minha loja foi muito visitada e filmada”, ressalta a empreendedora. Segundo Rosita, a Arena Mané Garrincha virou atração turística, então sua influência para a Feira da Torre continua positiva mesmo após o término do evento. E ela acredita que ainda pode melhorar: basta haver mais eventos na Arena.
A família e o futuro A família está presente em toda a trajetória de Rosita, que sucedeu a mãe. Sua irmã e companheira de feira tem outro quiosque e credita a sua atividade ao fato de ter conseguido dar uma boa condição de vida à sua família. Ao falar sobre o trabalho que realiza, não economiza palavras e afirma que “gostar é pouco”. Na verdade, ela o ama. Graças ao seu negócio, conseguiu educar filhos e netos, e vê todos cursarem uma faculdade. Família e negócio se misturam inclusive na parte financeira do empreendimento, pois não existe uma separação entre o dinheiro da empresa e o da família. O controle entre o que entra e o que sai é feito por ela própria e seus filhos. Se Rosita deu continuidade ao que sua mãe começou, não está longe o momento em que ela terá que passar seu empreendimento para um sucessor, pois dentro de poucos anos deverá se aposentar. Pelas regras da feira, os artesãos não podem vender o ponto, pois não são proprietários do espaço, apenas têm a concessão. Na aposentadoria do empreendedor, este pode passar a concessão a um descendente ou retornar a barraca ao governo do Distrito Federal, que é a concedente. Com dois filhos e dois netos – uns estudando e outros trabalhando fora, mas todos a ajudando em alguns momentos – a empreendedora tem esperanças de que, ao chegar o momento da sucessão, eles estejam prontos e dispostos para assumir o lugar dela.
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Negócios Empreendedores
CONSIDERAÇÕES FINAIS O caso de Rosita é um exemplo claro de como um empreendimento familiar é um contexto distinto para o desenvolvimento do empreendedorismo (Habbershon & Williams, 1999). Esse contexto singular pode ser observado pelo fato de a mãe de Rosita, dona Beatriz, ter sido uma das primeiras empreendedoras da Feira da Torre e os clientes dela terem passado para a filha. Adicionalmente, os outros feirantes reconhecem o pioneirismo de dona Beatriz, o que coloca a filha em posição de destaque no grupo dos feirantes da Torre. Outra particularidade da empresa familiar é o fato de a próxima geração administrar o negócio de maneira similar à anterior em virtude das fortes tradições e valores (Poza, 2007). Apesar das mudanças realizadas, a própria artesã ressalta que foram graduais e nunca se distanciaram do negócio principal da empresa: lembranças de Brasília e do Brasil. A família constitui um ambiente propício para o desenvolvimento de vários empreendimentos em virtude da capacidade dos membros da família em descobrir, mobilizar e alavancar recursos ou capacidades controladas por eles (Habbershon, Williams, & MaCMillan, 2003). A irmã de Rosita também possui um quiosque e comercializa produtos de artesanato. Segundo ela, a influência da mãe foi positiva, uma vez que a experiência dela ajudou no início do negócio. A sucessão empresarial é um dos tópicos mais discutidos no contexto das empresas familiares, uma vez que um dos principais motivos de falência delas consiste em um planejamento sucessório pouco elaborado (Brochaus, 2004). Mesmo quando o fundador transfere o negócio para outra geração, pode-se observar a influência dele por meio de sugestões que às vezes acontecem até mesmo em ambientes informais, como na residência. Apesar de Rosita ter assumido a administração total do negócio, é comum a mãe, mesmo com uma idade avançada, ir à feira e dar sugestões sobre como os objetos devem ser posicionados para chamar a atenção dos turistas, os itens que merecem maior ou menor destaque, entre outros fatores. O ambiente de trabalho na empresa familiar também possui particularidades em virtude de se concentrar, em um mesmo local, membros da família e empregados que não possuem vínculos de parentesco. Em virtude do pequeno porte do negócio de Rosita, todos os membros envolvidos na firma são familiares. Esse fato permite gerar um ambiente de confiança por causa dos relacionamentos que acontecem não somente na empresa como também em casa e durante passeios. Dessa forma, as pessoas se conhecem melhor, o que sedimenta a confiança e a lealdade, além de permitir uma comunicação com maior privacidade (Lyman, 1991). A Copa do Mundo representou uma oportunidade para aumentar as vendas. A experiência da artesã ao lidar com estrangeiros permitiu que ela se
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sentisse confortável e segura para o desafio de atender uma maior quantidade de turistas ao mesmo tempo. É possível inferir que o conhecimento tácito e a experiência da empreendedora ao atender turistas estrangeiros possibilitaram capturar as oportunidades derivadas do evento. É possível concluir com a análise desse caso: 1. as fortes tradições e valores existentes nas empresas familiares (Autio & Mustakallio, 2003) podem gerar uma cultura organizacional conservadora e incapaz de realizar as mudanças necessárias para o desenvolvimento do empreendedorismo. Apesar de não ser possível afirmar que, no caso de Rosita, a cultura organizacional seja conservadora, as mudanças por ela implementadas foram graduais. Outras poderiam ser sugeridas, como o uso intensivo da internet para a divulgação do seu trabalho; 2. vários recursos associados ao desenvolvimento do empreendedorismo na empresa familiar, como a rede de relacionamentos e conhecimento tácito (Habbershon & Williams, 1999), podem ser transferidos entre gerações, o que constitui um valioso capital para o empreendedor da próxima geração, que já herda todos esses contatos; 3. a paixão dos membros da família pelo negócio e a preocupação em preservar o legado das gerações anteriores faz com que tais membros tenham um nível de comprometimento para a sobrevivência e desenvolvimento do negócio, sendo capazes de trabalhar todos os dias da semana com uma jornada de trabalho superior à de um empregado não membro da família; 4. a harmonia existente entre a família e a empresa é fundamental para o crescimento sustentável das empresas familiares e pode trazer vantagens competitivas; 5. a empresa familiar constitui uma fonte de emprego para os membros da família. Essa característica é ainda mais importante, principalmente em épocas de recessão econômica e queda no nível de emprego, como a que o Brasil enfrenta nesse ano de 2015. Em algumas situações, o crescimento do número de membros da família envolvidos no negócio é superior ao próprio crescimento da empresa (Sharma, 2004). Dessa forma, o apoio da família é fundamental para que esses outros membros iniciem o seu próprio negócio. Essa realidade é possível de constatar no caso de Rosita, uma vez que, apesar de antigamente estarem envolvidas no mesmo negócio, atualmente, tanto ela quanto a irmã possuem cada uma o seu quiosque.
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Dona Maria tem como carro-chefe espetinhos de cerâmica para petiscos e bonecas
Foto: Vânia Nassif
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CASO 2
A TRADIÇÃO DA CERÂMICA E A INOVAÇÃO DAS BONECAS
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aria das Graças Ribeiro, ou simplesmente Maria, como é conhecida a mineira criada em Inhumas, Goiás, é igual a tantas outras Marias que vieram para Brasília em busca de oportunidades, trazendo muita disposição, talento e esperança de ter uma vida melhor. Do seu tempo de criança, em Inhumas, trouxe a vocação e a paixão pelo trabalho com a cerâmica, seu principal produto na feira: “Quando criança, eu gostava de brincar fazendo panelinha de barro, casinha e outras figuras sem saber bem o que aquilo viria a significar no futuro”, conta. Como legítima candanga, ela não se atemorizou com a cidade grande. A exemplo dos pioneiros, partiu em busca de emprego e iniciou cedo como babá, mas não permaneceu nessa atividade. Casou-se e teve a sua primeira filha em 1974. Foi então que sentiu necessidade de trabalhar em uma atividade que lhe proporcionasse melhor renda para complementar suas despesas. Assim, juntouse com sua irmã mais velha, Elaine Ribeiro, que já tinha um espaço na Feira da Torre, onde fazia e vendia bonecas. Mais tarde, em 1984, Maria decidiu ter o seu próprio espaço na feira. Com seu espírito empreendedor, constatou ser difícil enfrentar a concorrência de 32 bonequeiras com domínio total na comercialização de bonecas de tecidos. Isso a motivou a trocar o tecido pelo barro. Além do mais, essa matéria-prima era mais barata e atrativa. Resultado: a artesã ingressou no ramo da cerâmica. Ela ressalta, com ar de triunfo, como conseguiu seu espaço na Feira da Torre: “Não tive ajuda de ninguém, só de Deus. Bastou passar na Secretaria de Desenvolvimento Social, mostrar o meu trabalho e, na semana seguinte, eu já estava no meu cantinho”. O dia 5 de março de 1991 tem um significado especial para ela por ter sido a data que marcou o seu ingresso como profissional no setor da cerâmica. Ainda hoje, quando queimo barro, tenho a mesma emoção daquele dia. Difícil foi convencer a Elaine, que achava a ideia arriscada. Procurei apoio da minha outra irmã e juntas fomos ao barreiro extrair a matéria-prima. Quando fiz o trabalho, a emoção tomou conta de mim e fiquei uma noite sem dormir, de tão empolgada que estava. Eu mesma tirei o barro, mas hoje eu compro já marombado. Também já marombei muito.
Maria não molda mais as suas peças de cerâmica, etapa do processo produtivo que terceirizou, mas continua fazendo o design, a queima do barro
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Negócios Empreendedores
Foto: Vânia Nassif
e a finalização do artesanato. Ainda hoje, é tomada por grande sentimento de realização e se emociona ao queimar suas peças. Atualmente, o negócio de Maria pode ser dividido em dois segmentos: a produção e venda de peças de cerâmica, cujo carro-chefe é a venda de espetinhos para petiscos, decorados com frutas, pássaros e outros motivos, e a revenda das bonecas de pano de Caruaru, município do agreste pernambucano. A ideia das bonecas surgiu das suas visitas a exposições fora de Brasília, onde tinha contato com esse tipo de artesanato. A fim de fazer a divulgação de suas peças de cerâmica e buscar aprimoramento do seu trabalho, participou de várias exposições. Em 1994, três anos após iniciar o seu trabalho com cerâmica, levou o seu material para eventos em Recife (PE), Rio de Janeiro (RJ) e São Paulo (SP). Em 2010, encerrou o ciclo de participação em exposições devido à falta de apoio institucional e em razão de um acidente que sofreu em uma das viagens, em Olinda (PE). A artesã sempre trazia de Recife duas ou três caixas de bonecas de Caruaru como presente e o sucesso desse produto junto aos parentes e amigos era tanto, que Maria decidiu vendê-las. Para turbinar os negócios, tentou realizar parceria com uma colega que já vendia bonecas, mas não conseguiu, pois ela achava caro o preço das peças. Maria arregaçou as mangas e decidiu seguir adiante sozinha. O negócio deu tão certo que, hoje, metade do seu faturamento é proveniente da comercialização das bonecas de Caruaru. Assim como Rosita, o quiosque de Maria também foi deslocado da plataforma superior para a inferior. Mas, nesse caso, ela gostou da mudança, uma vez que seu espaço passou de 4 m² para 12 m², e ficou mais organizado e mais asseado, o que impulsionou suas atividades. Além disso, ela menciona como
Espetinhos para petiscos, decorados com frutas, pássaros e outros motivos
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um dos destaques do seu negócio, a exclusividade dos seus espetinhos com frutas de cerâmica, comercializado apenas por ela na feira. A artesã enumera dois fatores de sucesso para o seu negócio: o bom relacionamento com os clientes e a embalagem que utiliza para seus produtos, feitas com garrafas PET. Essa ideia surgiu para evitar a quebra das cerâmicas, protegendo melhor o material. “Alguns clientes receiam comprar o produto pensando que pode quebrar, mas quando verificam o tipo de embalagem que eu utilizo, acabam comprando”, explica. Nesse contexto de transformações e desafios, cabe uma pergunta: o que leva o empreendimento de Maria a sobreviver? Ela atribui a pulsação do seu negócio ao fato de trabalhar muito e se sentir satisfeita por gerar renda e ajudar a sua irmã, que hoje está inativa em virtude de uma enfermidade, e às famílias de Caruaru, que fornecem as bonecas para ela. Dentre suas qualidades pessoais, ela destaca o altruísmo e a capacidade de perdoar. “É preciso ter um coração bom, ajudar quem precisa e fazer o bem sem olhar a quem. Meu coração é muito bom. Eu fico com raiva, mas na mesma hora passa.”
A proximidade da Arena Mané Garrincha e o efeito Copa do Mundo A empreendedora avalia positivamente a construção da Arena Nacional Mané Garrincha, mas menciona que o movimento de turistas na Copa do Mundo concentrou-se na praça de alimentação da Feira da Torre, impactando pouco o seu negócio. Para ela, o saldo final da Copa do Mundo permaneceu praticamente o mesmo em relação ao movimento do ano anterior. “Não aumentou tanto assim. Eu estava olhando o meu caderno de 2013 a 2014 e vi que tive a mesma média de vendas”, diz. Diferente de Rosita, em que os produtos fazem alusões aos principais monumentos de Brasília e do Brasil, os artesanatos de Maria não remetem aos pontos turísticos do país. Ela destaca que, no período da Copa, a sua principal ação consistiu em decorar o quiosque. Entretanto, os produtos não foram adaptados ou transformados para a temática da Copa do Mundo. Teria sido esse um dos fatores pelos quais a sua venda nesse período pouco se diferenciou em relação ao ano anterior? Vale a reflexão. Segundo Maria, o setor que mais lucrou com a Copa do Mundo foi o de alimentos e bebidas. Na Feira da Torre, esses estabelecimentos ofereceram refeições a preços mais atrativos e com a melhor relação custo-benefício entre os seus concorrentes nos arredores da Arena.
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A família e o futuro A família de Maria é composta pelo marido, Adeilton José, e três filhos. A filha mais velha, Andréia Ribeiro, tem 38 anos e trabalha no setor de turismo. O do meio, André Ribeiro da Silva, de 36 anos, faz doutorado na UnB (Universidade de Brasília) em Educação Física e é professor nessa área, além de vender suplementos. O mais novo, Anderson Ribeiro, 31 anos, é advogado. O marido faz restaurações em peça de cerâmica e Maria o ajuda, pegando as peças na feira, a pedido dos clientes, e levando-as para ele restaurar em casa. Filhos e marido não estão envolvidos no dia a dia do empreendimento e a artesã da família conta com uma pessoa que a ajuda em média duas vezes por mês, aos domingos, dia de maior movimento. O fato de os filhos estarem bem encaminhados profissionalmente gera um sentimento contraditório em Maria. Por um lado, o orgulho pelo fato de ter conseguido dar uma boa a educação a todos eles, graças ao seu trabalho e de seu marido. Mas, por outro lado, ao trilharem caminhos profissionais distintos, e com sucesso, nenhum deles deseja sucedê-la no artesanato. Dessa forma, há uma incerteza sobre o futuro do negócio.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Burns (2005) enumera algumas características do empreendedor que são perceptíveis no caso de Maria: (a) necessidade de realização; (b) locus interno de controle; (c) habilidade em viver com incerteza e tomar riscos calculados; (d) senso de oportunidade; (e) autoconfiança e (f) espírito inovador. Ao discorrer sobre o primeiro dia em que preparou o barro e a emoção que ainda sente hoje, mesmo após 20 anos, é possível perceber o sentimento de realização da artesã ao executar o seu trabalho. Burns (2005) afirma que a realização para o empreendedor pode ter diferentes representações, tais como a satisfação em atingir um índice alto de lucratividade, empregar o seu centésimo funcionário ou abrir mais uma filial. Para Maria, esse sentimento consiste em realizar uma bonita peça de cerâmica da qual ela se orgulha, por ser exclusiva e original na feira. Ninguém tem uma peça igual à dela! A simplicidade de Maria esconde a sua autoconfiança e capacidade de influenciar o seu próprio futuro, o que Burns (2005) define como locus interno de controle. A artesã afirma com tranquilidade que não vê dificuldades para manter o seu negócio, apesar de serem notórios os vários desafios que os empreendedores de qualquer ramo enfrentam para manutenção e crescimento da empresa.
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É possível concluir com a análise desse caso: 1. as características pessoais do empreendedor permitem com que ele enfrente períodos de incerteza e de turbulência com a confiança de que poderá superá-los; 2. o sentimento de realização para o empreendedor pode ter diferentes significados, como construir uma bela obra de artesanato ou ajudar os outros; 3. as características associadas ao desenvolvimento do empreendedorismo sofrem mutações de acordo com o ciclo de vida do empreendedor, uma vez que a (a) propensão de tomar riscos calculados, (b) proatividade e (c) postura agressiva (Lumpken & Dess, 1996) mudam à medida que o empreendedor passa de um estágio inicial para um estágio mais maduro no seu ciclo de vida; 4. paciência, persistência e capacidade de não desistir frente às adversidades parecem ser características que distinguem os empreendedores que conseguem manter o seu negócio durante longos períodos daqueles que não sobrevivem por muito tempo; 5. deve-se encarar com naturalidade e normalidade o fato de que membros da próxima geração não desejem participar da gestão da empresa familiar, como é o caso de Maria.
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Tem festa na Torre: turistas invadem o vizinho Mané Garrincha
Arena Pantanal Cuiabá – MT
Shutterstock/alarico
JOGOS DA COPA DO MUNDO DE 2014:
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Chile
3x1
Austrália
Rússia
1x1
Coreia do Sul
Nigéria 1 x 0 Bósnia e Herzegovina Japão 1 x 4 Colômbia
Capítulo 7
O FURACÃO COPA EM CUIABÁ: EXPECTATIVAS ALÉM DO PÃO E CIRCO Ivana Aparecida Ferrer Silva ivanaferrer21@yahoo.com.br Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT Cuiabá – MT
Autoras: Vânia Maria Jorge Nassif vania.nassif@gmail.com Universidade Nove de Julho – Uninove São Paulo – SP
Bárbarah Lucy Pinheiro de Aguiar lucy_babi@hotmail.com Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT Cuiabá – MT
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ediar um megaevento esportivo em uma capital periférica do Brasil soou positivamente à maior parte dos habitantes de Mato Grosso. Como tantas outras cidades que se reconstruíram turisticamente pela projeção e investimentos existentes nos eventos mundiais, seria a chance de Cuiabá, motivada pela paixão nacional, diversificar sua matriz produtiva, trabalhar as idiossincrasias em atrativos turísticos, originando benefícios socioeconômicos e ambientais, expectativa dos mais racionais, aqueles com feeling empresarial. O Estado possui um potencial turístico subutilizado e recebe um fluxo pequeno e regular de turistas há décadas, atraídos pela exuberância da fauna e flora, porém nunca planejou adequadamente o segmento turístico. Melhorar a infraestrutura urbana e logística1 seria uma possibilidade de alavancar esse processo de estímulo à indústria sem chaminés. A vitória na disputa para ser sede da Copa foi muito comemorada. Receber a elite do futebol mundial foi o ápice para 569.830 residentes na capital do Estado e para os habitantes dos 140 municípios de Mato Grosso. Seria o consolo para essa população que viu um futebol de glórias e disputas se desfalecer em função de dirigentes e gestores amadores. O evento resgatou a profissionalização dos times tradicionais e o surgimento de outros times já profissionalizados desde sua origem em municípios do interior e da capital. 1 Aeroportos, rodovias, transporte público de qualidade na rede urbana e intermunicipal, VLT (Veículo Leve Sobre Trilhos), viadutos, pontes e trincheiras, aparelhando a rede hoteleira com novos investimentos, capacitação do capital humano para a hotelaria, construção da Arena Pantanal, entre outras obras.
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Negócios Empreendedores
Mato Grosso despontou economicamente, nas últimas décadas, como um Estado próspero, graças à produtividade recorde de commodities exportadas em escala. No entanto, o agronegócio viabiliza pontualmente saltos em crescimento econômico e dissemina impactos sociais e ambientais não contabilizados. Apesar do crescimento econômico significativo, há uma trajetória de dependência, uma economia baseada no setor primário, agroexportador de produtos sem valor agregado, e concentração extremada de renda e externalidades não contabilizadas e que impactam significativamente sua exuberância e fragilidade ecossistêmica. Abriga distintos ecótonos e abarca pelo menos três biomas: o Cerrado, o Pantanal e a Amazônia. A região do Araguaia também é considerada bioma por alguns teóricos. Seu processo histórico recortado por políticas públicas intervencionistas de colonização recebeu migrantes de muitas regiões, em especial sulistas e nordestinos. A formação autóctone dos povos da região mescla traços indígenas, afro e de povos ibéricos, os primeiros colonizadores, compondo um caldeirão de influências, linguajar, sabores e hábitos voltados à valorização da vida, hospitalidade e cooperação, favorecendo a boa convivência. Assim, promover a indústria do turismo sustentável versava a diversificação da trajetória produtiva, estimulando um planejamento endógeno, valorizando as características socioculturais e conservando a biodiversidade local. Além da motivação em recuperar o futebol profissional no Estado de Mato Grosso. Cuiabá sediou quatro jogos do mundial. A movimentação comercial teve início alguns meses antes do evento. Nos dias de jogos, a cidade foi divulgada, televisionada e apresentada ao mundo. Cuiabá, é o centro geodésico da América do Sul, situada entre os paralelos 15 e 20, no local do antigo estádio José Fragelli, (popular Verdão), a moderna Arena Pantanal foi edificada. O glamour conquistado pela valorização da região ficou evidenciado nos investimentos e melhorias efetivados pelos micro e pequenos empresários, grande parte do segmento de bares e restaurantes que possuem negócios no local. O antigo Verdão era visto como um monumento arquitetônico subutilizado, em função de sua estrutura obsoleta e grandiosa, muito dispendiosa para ser mantida. O antigo estádio, apesar de ter sido palco de grandes campeonatos regionais, shows, congressos, não era viável financeiramente pelos custos fixos de manutenção. A área adjacente também abriga outros equipamentos públicos como o Ginásio Poliesportivo Aecim Tocantins, Parque Aquático, Corpo de Bombeiros e Policia Militar, fato que contribuiu para o aparelhamento esportivo do local.
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O furacão Copa em Cuiabá: expectativas além do pão e circo
No pós-Copa a região se tornou um ponto de lazer e entretenimento nos fins de tarde e finais de semana, e muitas tribos se reúnem para a prática de esportes e confraternização. Reinaugurada em 2 de abril de 2014, com um investimento na ordem de R$ 570 milhões, a nova Arena tem capacidade para aproximadamente 42 mil torcedores. Seis meses após a Copa do Mundo, no entano, foi interditada por problemas estruturais2. A Copa do Mundo em Cuiabá teve o aporte de dois atores fundantes: os cidadãos e os empresários. O altruísmo do povo cuiabano, que se desdobrou em paciência e cooperação no período pré-Copa pelo transtorno causado pelas obras de mobilidade urbana e durante o evento por acolher o turista com toda simpatia e respeito. E o empresário empreendedor, que foi inovador e cooperativo com tamanha exigência do poder público. Esse contexto coaduna com o que Baron e Shane (2007) explicam sobre uma associação de fatos e ações para a compreensão da mudança no ambiente visando à exploração de oportunidades. Esse capítulo resgata dois casos de empresas que viram na Copa do Mundo a oportunidade de alavancar seus negócios. Ao longo da descrição dos casos procuramos explicar a criação do negócio, a fase de desenvolvimento e preparação, os problemas enfrentados pelos empreendedores e as medidas de gestão por eles adotadas, procurando consolidar os negócios, conforme apontado por Borges, Filion e Simard (2013). Durante as entrevistas foi possível perceber que ambos os empreendedores não fizeram um planejamento para os eventos da Copa do Mundo. De acordo com Baron e Shane (2007), são poucos os empreendedores que organizam seus negócios por meio de um planejamento, embora este seja um dos caminhos necessários para trazer segurança e equilíbrio aos negócios. Os empreendedores de Cuiabá adaptaram seus negócios conforme foram sendo afetados por obras públicas ou intervenções burocráticas. O primeiro caso é da Ecodesign, uma loja de artesanato que estava estabelecida há 15 anos no Aeroporto Internacional Marechal Rondon, cujos lojistas tiveram que participar de um processo licitatório em função das contingências oriundas do efeito Copa, o que inviabilizou o negócio naquele ponto. Uma verdadeira história de sobrevivência e sustentabilidade no mercado, pois os turistas que vieram tinham o foco exclusivo nas partidas de futebol, bares e restaurantes. Nesse período, a Ecodesign não recebeu em suas novas instalações turistas interessados pelo artesanato local. O público que veio para a Copa focou, especialmente, nos jogos. Os impactos negativos produzidos pela mudança de 2 http://veja.abril.com.br/noticia/esporte/Arena-pantanal-e-interditada-seis-meses-apos-a-copa/. Acesso em 10/6/2015
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Negócios Empreendedores
localidade fez com que os sócios remodelassem a cartela de produtos e clientes, diversificando o escopo empresarial. Já no segundo caso percebemos a criação e inovação do negócio no ramo de restaurante, especializado em pizzas. Os proprietários da Pizzaria do Amadeu perceberam oportunidades com a vinda da Copa do Mundo para Cuiabá e, pelo fato de estarem localizados no entorno da Arena Pantanal e tendo concorrentes do ramo por perto, entenderam que fazer investimentos na estrutura seria um avanço para a empresa, uma vez que conquistar clientes apenas por meio de preços não resultaria no sucesso esperado. Embora tenham vivenciado diferentes dificuldades, se sentiram beneficiados com o evento da Copa, pois receberam muitos turistas devido à expertise de Amadeu, que soube inovar e chamar a atenção dos torcedores estrangeiros. Brush, Green, Hart (2002) pontuam que investimentos em contínuas inovações e diferenciação em produtos, processos e preço permitem às empresas se tornarem mais competitivas em seu mercado. E foi o que a Pizzaria Amadeu fez neste período da Copa do Mundo em Cuiabá. Os empreendedores relataram que não contaram com o planejamento e comprometimento por parte do governo para oferecer um suporte efetivo e ainda tiveram uma alta demanda de exigências para participarem das celebrações. No que tange à sociedade de Cuiabá, faltou governança e atitude, pois a população aceitou passivamente todos os desmandos públicos que ocorreram nas obras de infraestrutura urbana, e a cidade, até hoje, praticamente um ano após os jogos, ainda sofre com a não conclusão, interdição e falhas nos projetos executados na capital. Acreditava-se que a exposição na mídia iria consolidar definitivamente o Estado de Mato Grosso como um roteiro turístico de renome nacional, devido às belezas naturais da região com seus biomas únicos, uma cultura advinda da miscigenação de etnias e a alimentação regional. No entanto, tais expectativas não se tornaram realidade. Os casos trabalhados foram considerados de destaque, pois revelaram comportamentos empreendedores dos proprietários, inseridos em um ambiente de transformações, exigências processuais e custos de transação, convergindo com os pressupostos de Shaver e Scott (1991). Contudo, esses empreendedores souberam gerar sustentabilidade em seus negócios. De acordo com Schlange (2009), a ideia de sustentabilidade voltada para o empreendedorismo é primariamente adotada em conexão com a sobrevivência da empresa no sentido de se criar um negócio que sustente a si próprio, além do triplo conceito de sustentabilidade (econômico, social e ambiental) sustentada pelos autores dando sentido a um meio de aumentar e/ou desenvolver os negócios, aliados à criação de valor.
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O furacão Copa em Cuiabá: expectativas além do pão e circo
Fotos: Vânia Nassif
Assim, o sucesso desses processos está ligado a um conjunto de fatores como a inteligência prática, criativa e analítica (Sternberg, 2004), cujos empreendedores souberam captar uma necessidade de contexto e utilizaram a criatividade para inovar ao oferecer produtos típicos da região.
Arena Pantanal
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NegĂłcios Empreendedores
Suely Ishizuka; a volta por cima de uma guerreira Foto: Vânia Nassif
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CASO 1
TURBULÊNCIA E RECONDUÇÃO DOS NEGÓCIOS: A COPA QUE NÃO EXISTIU
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uely Ishizuka nasceu em Rondonópolis, um dos mais importantes municípios do Estado, localizada a 219 quilômetros de Cuiabá, é descendente de japoneses e teve uma educação rígida e coesa. Quando casou, em 1980, mudou-se para a capital e, da afinidade do casal com o artesanato, nascia aquela que seria uma das primeiras lojas do segmento na cidade, instalada no então Aeroporto Marechal Rondon, que em 1996 se tornaria internacional. Assim como eu, meu ex-marido também gostava muito de artesanato. A gente começou a amizade com um artesão que fazia pássaros em madeira e surgiu a ideia de irmos a feiras para expor. Fomos praticamente os fundadores da Feira de Artesanato Arte na Praça, promovida pela AMPA [Associação Mato-Grossense de Produtores Artesanais], que funciona aos finais de semana na praça Santos Dumont.
Ao se divorciarem, em 1995, cada um seguiu seu próprio rumo. O ex-marido passou a cuidar de outra empresa que tinha, no ramo de arcondicionado, e Suely assumiu sozinha a loja de artesanato. A necessidade de prover seus quatro filhos, em época difícil, fazia dela uma mulher forte para superar todas as dificuldades pessoais e financeiras. Cada vez mais, Suely foi se envolvendo em projetos voltados para o desenvolvimento do artesanato regional de Mato Grosso. Enquanto comandava a loja, participava de feiras e chegou a fazer parte da presidência da AMPA durante quase dez anos. “Quem me ajudou bastante na época foi o J.O., que hoje trabalha na secretaria do turismo”, afirma. Atualmente, a Feira de Artesanato Arte na Praça faz parte do calendário cultural e turístico de Cuiabá. No aeroporto, havia uma boa demanda de produtos artesanais regionais, afinal, o turista sempre busca um pequeno suvenir para levar de recordação da sua viagem. A loja de Suely estava no lugar certo e no momento certo. As atividades começaram de forma simples e lenta, pois parte das mercadorias que vendia era consignada, e assim foi possível viabilizar um capital de giro e crescer financeiramente. Suely assumiu diversos riscos, mas de forma controlada conseguiu superar as dificuldades e se consolidar no mercado. Por mais de 15 anos ela conduziu sua empresa, até que obstáculos intransponíveis começaram a aparecer.
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Negócios Empreendedores
O revés da Copa e a reinvenção do negócio A Copa do Mundo de 2014, que surgia como uma oportunidade para o Mato Grosso, desconstruía toda a realidade empresarial da loja de artesanato, e Suely receberia um duro golpe. Depois de 15 anos no mesmo local, e com a iminência da realização do maior evento mundial de futebol, seu ponto teria que passar por uma licitação. Quem pagasse mais, fincaria o pé no local, por onde, só em 2013, circularam cerca de 2,81 milhões de pessoas1. Com a possibilidade de a Copa do Mundo vir para cá, os empresários pensaram que o aeroporto era uma mina de dinheiro e quem estava lá teria que se sujeitar a pagar um aluguel de R$ 24 mil. Isso foi licitado. Meu aluguel simplesmente passaria de R$ 1.500 para R$ 24 mil!
Impossibilitada de bancar um custo fixo de aluguel tão exorbitante, Suely foi obrigada a sair do aeroporto. “Para mim, foi como separar um pai de um filho”, revela. Repensar o negócio, em todos os aspectos, seria inevitável. Só para citar um exemplo, basta analisar o perfil de clientes do aeroporto, que é bem específico, e apenas eventualmente retornam ao ponto. Por parte da empreendedora, não existia a preocupação em fidelizar, construir uma rede de relacionamento ou disponibilizar serviços diferenciados. Em um novo ponto, onde quer que a loja se instalasse, o público seria novo e diferente. No ciclo de vida do negócio, esse foi o momento de começar um novo planejamento e gestão. A experiência de 20 anos trabalhando no ramo de artesanato deu confiança a Suely, afinal, era preciso juntar forças para começar tudo de novo, do zero, e decolar novamente. Da união com dois novos sócios – seu genro João Carlos da Silva, advogado, e sua filha Cristiane Seiko Ishizuka da Silva, administradora de empresas e designer de interiores –, nasceu em 2012 a Ecodesign. Estrategicamente localizada na Praça João Bueno, nas proximidades da Arena Pantanal e ao lado da Casa do Artesão, a loja de artesanato regional ampliou o mix de produtos, ganhou uma pitada de requinte com relação ao antigo ponto e passou a ser amparada pela aplicação de técnicas e métodos de gestão e planejamento. Suely contava com uma curva de aprendizagem e de experiência que estava construída e consolidada por ter atuado em feiras e eventos culturais regionais. 1 www.aeroportosdomundo.com/americadosul/brasil/aeroportos/cuiaba.php#sthash.4BEE5fY2.dpuf. Acesso em 11/6/2015
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O furacão Copa em Cuiabá: expectativas além do pão e circo
Inicialmente era apenas uma loja de artesanato regional. Com o tempo, sentimos a necessidade de montar o ateliê e oferecer todos os tipos de lembranças, inclusive personalizadas para empresas, noivas e festas.
A gestão do empreendimento passou a ter o suporte gerencial e de conhecimento teórico e prático antes não adotados, já que no início o negócio era empreendido por necessidade. A partir desse momento, os sócios passaram a perceber melhor o mercado e tentaram fazer uma leitura prognóstica do ambiente que influenciaria a empresa. Como as expectativas com o megaevento movimentou toda a cidade, o negócio foi planejado levando em consideração as consequências da Copa. A Ecodesign se profissionalizou, a interação entre os sócios possibilitou a capitalização da empresa, suporte gerencial e jurídico fomentado pelos próprios sócios, que sempre buscaram melhorias e formação continuada. Em função disso, eles mesmos perceberam a necessidade em reconduzir os negócios e ampliar o mix de produtos e serviços a serem oferecidos para conquistar novos clientes. A loja passou a oferecer produtos mais refinados, com pérolas, e caixas personalizadas de madeira. Com as sobras dessas madeiras, Suely passou a fabricar viola de cocho e outros instrumentos típicos da música regional. “Existe uma preocupação nossa com a questão ambiental. Quem faz artesanato, trabalha sempre com sobras”, afirma. Além disso, Suely se manteve atuante em atividades sociais na região. Em outubro de 2014, por exemplo, expôs produtos regionais na XXVI Confam (Convenção das Federações das Associações de Mulheres de Negócios e Profissionais do Brasil), promovida pela BPW – Cuiabá/ MT (Associação de Mulheres de Negócios e Profissionais de Cuiabá), em um hotel na cidade. A Ecodesign também recebeu recentemente reitores das escolas técnicas federais, ocasião em que foram servidos licores, bolo de queijo, bolo de arroz e foi promovido o artesanato regional. “Dessa forma, eles conheceram um pouquinho da nossa cultura”, diz a empreendedora. Esse é mais um exemplo de como Suely é atuante. Apesar das expectativas de bons negócios com o início da Copa, segundo a concepção da empreendedora, o evento não trouxe nenhuma espécie de benefício para o empreendimento. Visitas de turistas? Nem uma sequer. As obras de infraestrutura que poderiam fomentar o artesanato e outras atividades culturais para a região não foram concluídas, prejudicando a visibilidade do negócio. A expectativa ilusória de turistas fre-
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quentando a loja e possivelmente movimentando o comércio da cidade foi frustrada. Até mesmo os eventos culturais promovidos pelo Governo do Estado tiveram pouco movimento. O turista veio para Cuiabá com o objetivo específico de assistir aos jogos. “A Copa teve pouco efeito para nós”, lamenta a empreendedora. As apostas com a promoção do turismo em Cuiabá não tiveram êxito, e a fragilidade das instituições e o descaso do poder público local inviabilizaram a projeção midiática do Estado de Mato Grosso.
A aparição na TV Em meio às dificuldades desse empreendimento, é necessário destacar um aspecto: a ampliação do mix de produtos foi fundamental para oxigenar os negócios. Mas só isso não bastava. Enquanto via as oportunidades da Copa se esvaírem, os empresários perceberam a necessidade de lançar um produto no mercado para atrair a atenção de novos clientes. Foi nesse momento que surgiu uma ideia de confeccionar e comercializar santas e figuras religiosas. Produzidos sob demanda, esses produtos se tornaram referência e ganharam visibilidade nacional ao serem exibidos em um programa matinal de grande audiência em emissora de TV. No dia de Nossa Senhora Aparecida eu mandei uma santa para o programa de Ana Maria Braga. Ela mostrou nosso trabalho na TV e desde então a santa se tornou o nosso carro-chefe. É uma peça que enche os olhos, não tem uma pessoa que não fique encantada com as imagens dos santos.
Aquilo que poderia parecer um milagre – a visibilidade da Ecodesign na TV, quase por obra do acaso –, na verdade tem uma razão pragmática. Os empreendedores acreditam que o sucesso do negócio se dá pela confiança que os clientes têm na empresa. Além disso, não se pode desprezar o conhecimento e a experiência demonstrada pelos empreendedores, principalmente pelas novas ideias e pelo arrojo para criar algo novo e virar o jogo, num momento em que perdiam a partida. Considerando toda a aprendizagem que vivenciou, Suely aconselha novos empreendedores a ter coragem para enfrentar as adversidades, conhecer bem o negócio e o produto com o qual irá trabalhar, aprender a gerenciar o portfólio, para não deixar a obsolescência atingir seus produtos, e empreender sempre.
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Foto: Vânia Nassif
O furacão Copa em Cuiabá: expectativas além do pão e circo
A aparição da santa na TV marcou uma nova fase nos negócios. Milagre? Não. Credibilidade!
Considerações sobre a consolidação do negócio A partir desse caso de superação, percebeu-se que a identificação de uma oportunidade é uma das fases iniciais para a criação de um negócio, conforme Shane e Venkataran (2000). E, para tal, o empreendedor precisa estar sensível e atento aos acontecimentos do mercado para identificar novos desafios, fatos econômicos, sociais e ambientais para atingir a sustentabilidade empreendedora. De acordo com Baron e Shane (2007), a capacidade de empreender é inerente ao ser humano, contudo algumas pessoas possuem características específicas que corroboram para descortinar insights, aproveitar oportunidades, viabilizar as novas combinações e inovar. Essa capacidade de empreender condiz com o perfil de Suely, que passou por rupturas na família, criou quatro filhos, buscou forças para lutar, desmontar o seu empreendimento, agregou novos sócios e reconstruiu seu negócio de forma a torná-lo sustentável.
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Negócios Empreendedores
Ana e Amadeu Lobo, da Pizzaria Amadeu’s Foto: Vânia Nassif
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CASO 2
PIZZARIA AMADEU’S: HOBBY QUE NÃO TERMINA EM PIZZA, MAS EM FELICIDADE
A
Pizzaria Amadeu’s foi inaugurada em 2007, em Cuiabá, e é administrada pelo casal Amadeu Lobo Neto e Ana Maria Prazias Lobo. O que era um hobby na juventude tornou-se o negócio da família. Eu ia para o baile com os amigos e, quando chegava em casa, de madrugada, reunia os conhecidos e colocava as pizzas para assar no forno de minha mãe. Todos saíam maravilhados com o sabor da massa e dos recheios. (Amadeu)
Com o passar do tempo, o hábito de fazer pizzas para a família e para os amigos era frequente. Quando se casou com Ana Maria, ele continuou a fazer pizzas na casa dela, com o objetivo de agradar os sogros. Nesse meio tempo aconteceu de uma irmã mais nova de Ana Maria, que estava estudando em Roma, vir para o Brasil anunciar o seu noivado com um italiano. O casal Amadeu e Ana foi então para a Itália e lá eles experimentaram a pizza que era servida no almoço junto com outros petiscos. Eles acharam a pizza maravilhosa, e então Amadeu resolveu pedir a receita e começou a testar as massas com algumas modificações, até encontrar o ponto que todos gostaram. Assim, aprendeu novos segredos e voltou para o Brasil testando massas e fazendo adaptações. A pizzaria despontou depois que Amadeu se aposentou, pois ele era funcionário público no Estado de São Paulo, e todo ano ele ia passar as férias em Barra de São Miguel, uma praia de águas quentes no litoral alagoano, perto de Maceió, um lugar encantador onde sua família reservava em torno de 15 a 20 dias para descansar. No momento de sua aposentadoria, Amadeu falava para a família que queria morar na praia. No entanto, Ana Maria tinha um consultório de psicologia consolidado com muitos pacientes, e foi difícil convencê-la a deixar tudo em São Paulo e concretizar seu sonho de morar na praia. Mas a vontade de Amadeu prevaleceu e eles resolveram mudar para a praia onde passavam férias, em Alagoas. Chegando lá, montaram uma pizzaria. O primeiro ano de funcionamento do negócio na praia foi muito bom, no entanto a cidade era muito pequena, e os picos de movimentos aconteciam no final de ano e no período do carnaval. Na ausência desses eventos a monotonia era total, e a pizzaria acabou fechando. No segundo ano morando na Barra de São Miguel, Amadeu resolveu montar outra pizzaria que funcionava só nos finais de semana, pois no restante dos
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Negócios Empreendedores
dias não tinha movimento, exceto em época de alta temporada. Contudo, eles não se adaptaram ao estilo de vida no litoral. Seus irmãos que eram de Cuiabá os incentivaram a se mudar para lá. Em princípio ofereceram uma oportunidade para trabalhar na indústria com o irmão. Mas Amadeu nunca desistiu da ideia de ter um negócio próprio e, de preferência, uma pizzaria, já que tinha ganhado experiência trabalhando no ramo no litoral. Em Barra de São Miguel, a pizzaria funcionava embaixo de uma tenda, com uma cobertura de 36 m². O casal resolveu trazer a tenda para Cuiabá e começar a vender pizza na tenda. Não houve uma razão específica para a criação do negócio e sim uma vontade de trabalhar fazendo algo prazeroso. No entanto, o casal, mesmo sem formação em gestão, se mostrou empreendedor, criando um sistema inovador com rodízio de pizza e adotando a estratégia do preço acessível. Como a pizzaria estava localizada em um bairro residencial, tiveram que buscar um diferencial até se tornarem conhecidos. A meta foi trabalhar com produtos de primeira qualidade e consideram que este tem sido um dos ingredientes para o sucesso do empreendimento. Na época da abertura da pizzaria, o sistema de rodízio era exclusivo na capital. Adotaram o menor custo benefício, preservaram a qualidade e mantiveram o mesmo preço durante quatro anos, até que a concorrência chegou copiando o modelo de negócio. “Ficamos conhecidos como a pizzaria ‘nove e noventa’”, diz Ana Maria. No estabelecimento, era possível encontras pizzas de todos os sabores, de mozarela a frutos do mar. Porém, como os custos dos insumos foram aumentando, eles verificaram qual pizza tinha menor aceitação para eliminar custos. Então, a estratégia do casal foi a de ir driblando algumas altas para continuar com o preço, que era muito competitivo. Num breve período, surgiram várias pizzarias com o sistema de rodízio e essa competição fez com que o preço do rodízio aumentasse nove centavos, já que a concorrência ofertava o valor de R$ 13,90 no entorno, fomentando um desenvolvimento local. A concorrência acirrada no local não impediu o crescimento da pizzaria. Pelo contrário, fez com que o negócio reforçasse a sua fama na região. O diferencial para que isso ocorresse, segundo Amadeu, foi um conjunto de fatores que fomentaram o sucesso do comércio consolidando sua marca em Cuiabá. Ele relata que não sofre prejuízo com a concorrência, pois um dos seus grandes diferenciais é o atendimento e a simpatia no tratamento de seus clientes, ofertado por sua esposa. “Eu amo meus clientes, eu falo tudo para eles, eles
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me abraçam, me beijam, eu trabalho dando festa em casa, não parece que é restaurante”, diz Ana Maria. Além do atendimento diferenciado, outro fator de sucesso é a massa das pizzas. Uma massa única que foi adaptada ao longo dos anos, uma receita com princípios italianos, que é mais digestiva e leve. O terceiro fator considerado de sucesso para o empreendimento é o preço, ótimo e convidativo para os clientes. E o quarto fator é a criatividade de Amadeu, que sempre busca inovar em seus processos produtivos, estando à frente da concorrência. Uma dessas inovações foi disponibilizar uma máquina que servia refrigerantes e sucos em máquinas self-service para acompanhar o rodízio, sendo que nenhuma pizzaria na região faz isso. Esse é também um diferencial frente aos concorrentes. Com a pizzaria crescendo, surgiram as primeiras necessidades de reforma, começando pela ampliação da cozinha, porém como o local ainda era alugado, Amadeu e Ana Maria procuraram comprar o imóvel para fazer a ampliação da pizzaria. E conseguiram. Além da concorrência, que impulsionou as mudanças, outro desafio é com a rotatividade de funcionários. Eles buscam manter uma equipe fixa e utilizam freelancer para atender às demandas contingenciais da pizzaria. Os empresários acreditam que os fatores que fizeram e que fazem com que a pizzaria ganhe nome em Cuiabá são o preço convidativo, a massa mais leve e digestiva e o atendimento diferenciado comandado pela sua esposa Ana.
Os bons ventos da Copa do Mundo Após dois anos de reforma, o local ganhou capacidade para 300 pessoas, o que possibilitou acomodar mais clientes durante os jogos. O sucesso do local no momento da Copa do Mundo começou com a visita de um japonês que queria fazer uma reserva na pizzaria para torcedores durante o evento. Entretanto, os empreendedores não haviam se preparado para a Copa a tempo, e a reforma estava em fase de finalização. Apesar das obras de mobilidade urbana que ocorreram na capital por conta da Copa do Mundo, o comércio não teve prejuízos graças à expertise do casal, que se motivou com o evento e adotou várias estratégias de vendas para chamar a atenção dos turistas que transitavam no entorno da Arena Pantanal. Isso se configura como características fundamentais do empreendedor que consegue criar um equilíbrio em suas ações, assumindo uma postura positiva em meio ao ambiente de turbulência, que no caso de Cuiabá foram as obras e imposições públicas.
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É claro que tiveram algumas dificuldades a enfrentar, como as exigências do poder público, que foram consideradas abusivas pelos empreendedores, exigências essas que nunca foram cobradas ou compensadas de nenhuma forma. Muitas das imposições nem foram fiscalizadas após o término da Copa, no entanto, os empresários tiveram que realizar investimentos pesados em um curto espaço de tempo por conta das exigências públicas. A burocracia e as taxas, aliadas à manutenção do pessoal, causaram dificuldades no negócio. No entanto, o evento da Copa do Mundo serviu para beneficiar ainda mais a pizzaria. Dois meses antes da Copa, o casal de sócios não tinha feito nenhum planejamento para o evento em Cuiabá. Eles estavam apenas preocupados com a reforma do seu comércio, até que receberam a visita de um japonês querendo contratar a pizzaria para a Copa do Mundo. Amadeu não sabia se aceitava ou não a contratação, mas, por fim, se posicionou de forma positiva e até pensou em elementos surpresas relacionados à nossa cultura, samba, bebidas... assim, recepcionaram 200 torcedores japoneses que compareceram após o jogo Japão x Colômbia. Ana Maria conta como o encontro virou uma grande festa: Procurei trazer alegria para o grupo. Comecei a fazer um carrinho, dando os braços para um e outro para correr no salão. Eles foram entrando na brincadeira. Contratamos a bateria da escola de samba e eles adoraram, estavam muito felizes, agradeceram a hospitalidade, pois chegaram tristes e foram bem recebidos. Pedi para uma passista ir ao centro do salão dançar com eles, tiraram fotos, e por volta das 10 horas e pouco chegou aqui o Keisuke Honda, o jogador que fez o gol.
Essa visita inesperada fez com que formasse um aglomerado de japoneses no local e com isso Ana Maria ganhou presentes, como fitas do Japão, faixas de samurai, leques. A contratação da escola de samba foi uma das estratégias da pizzaria, pois além dos japoneses, apareceram australianos e chilenos no local. Tiveram que fazer mais de 500 pizzas para atender a todos em uma única noite. Outro diferencial da pizzaria foi a caipirinha, bebida típica brasileira que foi vendida em copos fabricados em São Paulo, como suvenir, com o logotipo da pizzaria. “Eu gostei desses jogos, que foram um evento promocional. Vou ser sincero: eu ganhei muito dinheiro, ganhei bastante dinheiro mesmo”, revela Amadeu. A expertise de Amadeu proporcionou ganhos financeiros com os jogos, porém os proprietários enfrentaram alguns problemas. A exigência que o poder público impôs no último momento antes da Copa fez com que os empreendedores dispusessem de recursos que no momento eles não tinham para adaptar o comércio local para o evento. Tais adaptações nunca foram fiscalizadas, pondo em cheque a questão se eram realmente necessárias. Por exemplo, a obrigatoriedade da co-
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brança de taxa de serviço de 10% e a criação de um cardápio para cegos. Além disso, a propaganda era proibida. Então o Amadeu teve uma ideia: Não podia fazer propaganda, então eu bolei só uma setinha indicativa, escrito: Arena Futebol. Escrevi nas plaquinhas e coloquei quatro plaquinhas dessas em um rapaz sentado na esquina para que conduzisse a torcida a passar em frente ao meu restaurante, porque nem isso eles acharam que iria ser permitido, mas não tinha propaganda nenhuma.
Com essa estratégia, a circulação de pedestres aumentou no local e despertou o interesse de algumas empresas maiores, como a Ambev e a Coca-Col,a a procurar a pizzaria. Aí veio a Ambev para fechar pacote com eles... dois televisores. Eu disse “não, nesse estabelecimento não tem televisor, pois ela vai fazer com que uma pessoa fique diante de uma novela meia hora a mais. Meu sistema é rodízio, quanto mais rodar, mais eu ganho, então por isso eu não tenho televisão aqui, e não tenho e não vou ter, eu acho que é contra-producente para meu negócio, se meu estilo fosse um bar a turma ficaria, mas a venda de cerveja é muito pouco”. (Amadeu)
Esse comportamento do empreendedor revela que ele tem grande conhecimento do seu negócio e sabe o que realmente funciona para obter lucros. Embora trabalhem com o foco no econômico e na obtenção de lucros, fazem um trabalho social interessante: oferecem pizzas para o pessoal da limpeza pública e para os policiais que fazem ronda no local, pois acreditam que essa medida traz mais segurança para os seus clientes. A pizzaria tem ainda uma parceria com uma instituição religiosa na cidade vizinha de Cuiabá, Várzea Grande, recebendo freiras e padres para o jantar, além de oferecerem queijos, presuntos, lasanhas, macarrão e pizzas. As freiras vêm de vez em quando comer pizza, e acabam levando algumas pizzas. Às vezes vêm 30 para comer. Na segunda-feira eu faço um pouco a mais e dou aos padres. Até o padre da Catedral vem aqui... aí eu falo: “Mas eu estou chique, viu?”. Agora vem também um monte de padre nesse fim de ano. Eles me ligaram para fazer festa aqui com 40 padres. (Ana Maria)
CONSIDERAÇÕES FINAIS Os dois casos analisados em Cuiabá demonstraram diferenças marcantes com o impacto da Copa do Mundo de 2014 no Brasil. Um caso de sucesso, como observado na história dos proprietários da Pizzaria do Amadeu, que conquistou clientes, ampliou os negócios, obteve público e lucros.
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Negócios Empreendedores
Por outro lado, vivenciamos, por meio dos relatos, os dramas de Suely, que perdeu seu espaço no aeroporto de Cuiabá em função de licitações e exigências sem fundamentos, pois atuava na área há 15 anos. Enquanto Suely teve que reinventar seu negócio, começar do zero, abrir para a entrada para sócios e modificar seu portfólio de produtos, diminuindo sua identidade como empresa de artesanatos típicos da região do Pantanal, Amadeu conquistou um espaço que não tinha planejado. Será que o ramo de atividade – artesanato e alimentação – influenciou no impacto dos negócios? Ou a localização dos pontos foi impactante para o sucesso de um e a dificuldade de outro no período da Copa do Mundo? Apesar da incoerência e dos desmandos dos gestores públicos com o advento da Copa do Mundo, houve oportunidades aproveitadas por outros empreendedores também estabelecidos no entorno da Arena Pantanal, como também impactos negativos identificados no período pré-Copa. Um deles refere-se à especulação imobiliária, aumento da empregabilidade pelos postos de trabalhos abertos nas obras de mobilidade urbanas, aumento do custo de vida, migração em massa de trabalhadores, inclusive estrangeiros de países menos favorecidos como o Haiti, países sul-americanos e países africanos. As alterações e desvios no trânsito também provocaram transtornos para muitos empresários, além de mudanças de estabelecimentos comerciais, devido à queda no fluxo de pessoas que transitavam pelas avenidas principais. Para muitas regiões, megaeventos são fatores determinantes de estímulo à indústria do turismo e melhora da capacitação profissional do capital humano local, que se qualifica para esperar os visitantes. De acordo com Hall (2006), Rogerson (2009) e Spilling (1996), esses megaeventos, sobretudo na área do esporte, propiciam um impacto considerável sobre o desenvolvimento socioeconômico, bem como nas localidades em que são realizados. Por outro lado, se os gestores públicos são ineficientes em gerenciar tal oportunidade, ela se torna perdida, podendo trazer prejuízos com consequências desastrosas para a sociedade. Nesse sentido, as críticas evidenciadas na capital de Mato Grosso apontam para as dificuldades vivenciadas pela população com o não cumprimento dos planejamentos públicos firmados quando Cuiabá foi eleita uma das cidades-sede da Copa do Mundo de 2014. Assim, foi possível observar que menos de 50% das obras públicas foram finalizadas. Os gestores públicos poderiam ter se apropriado das exigências do padrão internacional Fifa e preparado a cidade e o Estado para potencializar novos negócios, empreender e agregar os aspectos positivos dos investimentos trazidos à região e projeção na mídia, além de congregar esforços para aparelhar empresários e
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estimular o espírito empreendedor das pessoas do lugar. Faltou um ambiente institucional sinérgico que pudesse fomentar a ação empreendedora por parte do setor privado, fragilizado pela inoperância dos gestores públicos. Nesse sentido a capilaridade trabalhada por autores neoschumpeterianos não aconteceu em Cuiabá. Segundo Nelson (1993), o desenvolvimento regional pode ser otimizado por meio da sinergia entre atores sociais. O Estado, responsável por aplicar e fomentar políticas públicas que beneficiem a coletividade, as empresas, transformando conhecimento em produtos e serviços, e as universidades, criando e disseminando conhecimento. No entanto, em pleno século XXI, em um evento mundial, a iniciativa privada, os empresários empreendedores, conforme Schumpeter (1985), foram os atores fundantes que viabilizaram serviços e produtos a serem oferecidos ao público que esteve em Cuiabá na durante a Copa do Mundo Fifa 2014. E o grande diferencial foi exercido pela sociedade ao receber o turista.
REFERÊNCIAS Baron, R. A., & Shane, S. A. (2007). Empreendedorismo: uma visão de processo. São Paulo: Thomson Learning. Borges, C., Filion, L. J., & Simard, G. (2013). Criação de Empresas: um processo mais rápido e fácil resulta em empresas de melhor desempenho? Revista de Ciências da Administração, v. 15, n. 35, p. 196-207. Brush, C. G., Greene, P. G., & Hart, M. M. (2002). Empreendedorismo e construção da base de recursos. Revista de Administração de Empresas, v. 42, n. 1, jan/mar, p. 20-35. Hall, C. (2006). Urban entrepreneurship, corporate interests and sports mega-events: the thin policies of competitiveness within the hard outcomes of neoliberalism. Sociology. Review, 54: 59–70. Nelson, R. (1993). National Innovation Systems: a comparative analysis. New York: Oxford University Press. Rogerson, C.M. (2009).Mega-events and small enterprise development: the 2010 Fifa World Cup opportunities and challenges. Development South African, 26 (3): 337 – 352. Schumpeter, J. (1985). Teoria do desenvolvimento econômico: uma investigação sobre lucros, capital, crédito, juro e o ciclo econômico. 2a. ed. São Paulo: Nova Cultural. Shaver, K., & Scott, L. (1991). Person, Process, Choice: The Psychology of New Venture Creation. Entrepreneurship: Theory & Practice, v.16, n.2. Spilling, O. (1996). The entrepreneurial system: on entrepreneurship in the context of a mega event. Journal of Business Research., 36: 91-103. Sternberg, R. J. (2004). Successful Intelligence as a basic for entrepreneurship. Journal of Business Venturing, 19, 189-201.
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Fotos: Vânia Nassif
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Pizzaria Amadeu’s
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O furacão Copa em Cuiabá: expectativas além do pão e circo
Japoneses, australianos, chilenos e colombianos fazem festa na pizzaria
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A Copa no Rio de Janeiro: pequenos negócios, movidos a inovação, esportes e cultura
Minas Arena Belo Horizonte – MG
JOGOS DA COPA DO MUNDO DE 2014:
Shutterstock/AGIF
Colômbia
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3x0
Grécia
Bélgica
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Argélia
Argentina
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Irã
Inglaterra
0x0
Costa Rica
Brasil (3) 1 x 1 (2) Chile Brasil
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Alemanha
Capítulo 8
DO MINEIRÃO PARA O MUNDO: A FAMA E AS BOAS OPORTUNIDADES, APESAR DO 7 X 1 Autor: Juvêncio Braga de Lima juvencio.lima@fumec.br Fumec – Fundação Mineira de Educação e Cultura Belo Horizonte – MG
Vânia Maria Jorge Nassif vania.nassif@gmail.com Universidade Nove de Julho – Uninove São Paulo – SP
O
empreendedorismo como campo de estudos envolve concepções que procuram sintetizar o fenômeno de criação e sustentabilidade de empresas. Originalmente, surge associado ao efeito do empreendedor no desenvolvimento econômico, à medida que cria negócios que geram valor econômico. Há tendências a se discutir sobre as características e competências dos empreendedores quando se aborda o fenômeno do empreendedorismo. Um debate significativo foi aberto por Gartner (1985) ao afirmar que o importante é o que o empreendedor faz e não aquilo que ele é. O que fez a empreendedora e criadora da empresa Libertas Turismo? Como agiu para criar sua empresa? O que tem feito para dirigir sua empresa? Como considerou o evento esportivo Copa do Mundo no Brasil e em especial em Belo Horizonte? E quanto ao Allbargue Hostel Bar de Aventura? O caso evidencia uma situação idiossincrática, a criação de uma empresa em sociedade, por um grupo de jovens, que partilharam suas ideias como uma base de um modo de específico de fazer negócio. Isso se reflete no nome da empresa. Nessa iniciativa se comportaram como atores empreendedores (Watson, 2013), agregando um sentido que os predispôs a agir em um determinado caminho, no caso pela inclusão da aventura associada ao hostel e bar, sentido imbricado à criação de um negócio diante de uma situação criada pela Copa do Mundo. A criação de uma empresa de forma coletiva pode envolver debates, como foi esse caso, e isso pode ser uma situação em que se expressam paixões dos empreendedores (Cardon et al., 2005). Essas paixões se imbricam ao surgimento de uma oportunidade efetiva, o evento esportivo, aparecendo como um fenômeno exógeno.
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Negócios Empreendedores
Mas a oportunidade criada (Edelmann & Yli-Renko, 2010), concebida pelos sócios empreendedores, traz a imagem de um ambiente específico do turismo de aventura, de modo a marcar o foco nesse objeto específico para conferir identidade à empresa. Na mesma perspectiva de Gartner (1985), Shane e Venkataraman (2000), agregaram ao debate a perspectiva da oportunidade, afirmando que o campo de estudos do empreendedorismo deveria enfocar como os empreendedores descobrem, avaliam e exploram essas oportunidades.
Belo Horizonte e as expectativas da Copa do Mundo A Copa das Confederações, realizada no Brasil entre 15 e 30 de junho, como um teste para a Copa do Mundo, movimentou R$ 3,87 bilhões em Belo Horizonte, com criação de 55.878 vagas de trabalho, impactando direta e indiretamente na economia do Estado de Minas Gerais1. Antes da realização da Copa do Mundo, o Ministério do Turismo projetava que Belo Horizonte receberia 384.728 turistas no período, sendo 300 mil estrangeiros e um ingresso de R$ 6,66 bilhões na economia mineira2. O conjunto de obras previstas em Belo Horizonte, com prioridade para infraestrutura, além da reforma do estádio Mineirão, fez parte da matriz de responsabilidade, documento assinado entre o Ministério dos Esportes, prefeitos e governadores das doze cidades-sede da Copa. Obras de mobilidade urbana, visando à melhoria do trânsito, custaram à prefeitura R$ 210 milhões a mais que o previsto. Isso foi objeto de debates e a prefeitura ressaltou ser natural que um documento assinado em 2010 sofresse reajustes3. Ao longo do período que antecedeu a Copa, várias reportagens mostravam que havia atrasos de execução e se duvidava da disponibilidade de obras para uso pela população e turistas presentes na cidade. A imprensa exerceu seu papel apontando atrasos, como reportagem que mencionava que dez das 19 obras para a Copa não ficariam prontas conforme cronograma4. O Aeroporto de Confins não teria 100% da ampliação concluída a tempo. Já o BRT, sistema de transporte rápido por ônibus batizado de Move, estava previsto para começar a funcionar antes da competição, mas foi concluído parcialmente. Das ações incluídas inicialmente na matriz da Copa, apenas quatro foram concluídas: a reforma do Mineirão, a ampliação do Bulevar 1 Jornal Estado de Minas, 7/4/2014 2 Jornal Estado de Minas, 15/5/2014 3 Jornal Estado de Minas, 10/3/2014 4 Jornal Estado de Minas, 3/1/2014
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Arrudas, a expansão da Central de Controle de Trânsito da BHTrans e o Centro de Comando e Controle Regional de Minas Gerais. O Aeroporto de Confins teve 88% das obras concluídas em maio de 2014. As obras foram objeto de fiscalização intensificada do Tribunal de Contas da União, que relatava que o principal problema foi a falta de planejamento. Mas isso veio associado aos custos majorados e o TCU conseguiu economizar, com fiscalização adequada, cerca de R$ 700 milhões. Belo Horizonte e Região Metropolitana de BH integram um potencial significativo para realização de eventos, considerando a existência de 385 espaços, entre centros de exposições, centros de convenções, auditórios e espaços múltiplos. O setor turístico movimentou R$ 774 milhões em 2013, pois a cidade foi alvo de 11 eventos internacionais. Avaliando apenas o turismo de negócios, foi gerada uma receita de R$ 1,05 bilhão, com presença de 990.421 turistas, que deixaram um gasto individual de R$ 146,49 por dia de estadia, com uma permanência média de 7,3 dias. Estudos feitos para medir a competitividade de destinos turísticos apontam que a cidade de Belo Horizonte obteve um índice geral de 78,5%. Turistas avaliaram aspectos como infraestrutura, serviços, atividades turísticas, marketing e promoção do destino. Na mesma pesquisa a média brasileira foi 59,5% e a média das capitais brasileiras foi de 68,2%.
Minas Arena e a Copa do Mundo em Belo Horizonte O Estádio do Mineirão foi inaugurado em 1965. Para a Copa do Mundo de 2014 sofreu uma reforma para adaptação aos padrões exigidos pela Fifa, mantendo-se a fachada externa original, que havia sido tombada pelo Conselho de Patrimônio Histórico de Belo Horizonte. O Mineirão é uma Arena multiuso com elevados padrões de qualidade. Toda sua tradição esportiva e cultural ganha com o que há de mais moderno em termos de conforto e tecnologia. Foi reconstruído, alterando sua cobertura, vestiários, arquibancadas, estacionamentos e esplanada. A Arena conta com 64,5 mil lugares. Tem ainda 98 camarotes com 2.024 assentos5. O investimento ficou na ordem de R$ 695 milhões e a reforma foi feita por meio de um consórcio formado por três empresas de engenharia, o Consórcio Minas Arena, que deve explorar o estádio por 25 anos. O Mineirão foi palco de seis jogos da Copa do Mundo e deve receber mais algumas partidas por ocasião das Olimpíadas 2016, considerando que a competição de futebol será descentralizada. 5 www.minasArena.com.br/mineirao/estadio/
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Fernanda Fonseca: turismo receptivo preenche nicho em Belo Horizonte Foto: divulgação
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CASO 1
TURISMO RECEPTIVO E COPA DO MUNDO: OPORTUNIDADES PARA A LIBERTAS TURISMO
A
Libertas Turismo foi fundada em Belo Horizonte em 2012, dois anos antes do início da Copa do Mundo no Brasil, e está inserida em uma atividade em pleno desenvolvimento na capital mineira1. Até fevereiro de 2015 a cidade sediou 61 eventos, com aumento de 27% em relação ao ano anterior. Em 2014 foram 1.009 eventos, entre seminários, encontros, feiras, congressos e simpósios. A Libertas Turismo foi criada por Fernanda Fonseca. Sua trajetória nesse campo tem raízes familiares e de sua origem civil, dado que é natural da cidade de Tiradentes, onde teve a primeira experiência profissional vinculada ao turismo. A cidade de Tiradentes é considerada ícone do turismo em Minas Gerais, fazendo parte das cidades históricas do ciclo do ouro no Brasil. Seu interesse pela recepção de turistas nasce dessa vivência inicial, sobretudo em um momento em que ocorreu uma espécie de renascimento da atividade turística na cidade, enfatizada pela experiência de sua família de ter negócios na cidade. Isso a despertou para a busca de formação universitária na área de turismo, diplomando-se como turismóloga. Por razões familiares, complementou seus estudos com uma especialização em turismo na França, que é um dos destinos turísticos que mais recebe visitantes, anualmente, no mundo. Associada à formação inicial como turismóloga, a empresária teve experiências profissionais em todos os elos da cadeia produtiva, tais como companhias aéreas, agência emissiva, empresas de turismo receptivo, inclusive ocupando cargo de gerente, além de empresas de comunicação e recreação. A experiência profissional após as atividades de formação se inicia ao assumir uma diretoria de turismo no Governo de Minas Gerais. Essa diretoria era voltada para o denominado turismo receptivo, buscando capacitar agentes dessa cadeia, caracterizando os destinos turísticos como produtos turísticos. Isso a levou a ter uma compreensão desse mercado de turismo receptivo, envolvendo-se em atividades junto ao Sebrae, a fim de organizar a oferta desses produtos. Com a expectativa da Copa do Mundo no Brasil, e tendo Belo Horizonte como uma das cidades-sede, Fernanda teve uma segunda experiência relevante, atuando no consórcio Minas Arena. Essa atividade ampliou sua visão sobre a 1 Fonte: caderno de dados do Observatório do Turismo da Belotur, Belo Horizonte, 2015.
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potencialidade da Arena Mineirão como produto turístico. Essa observação privilegiada da problemática do turismo receptivo em Belo Horizonte levou-a a ter mais clareza para tomar a decisão de atuar nesse campo, mudando da experiência de empreendedor público para empreendedor privado. Apesar de ter clareza quanto à oportunidade, ouviu comentários de amigos, colegas de trabalho e de pessoas próximas que ela não deveria ingressar nesse ramo, considerado saturado. Por outro lado, também houve comentários favoráveis, além da possibilidade de dialogar com pessoas do ramo, que não fossem seus concorrentes. Mas, a ideia de ter uma empresa própria era antiga, ainda do tempo de empregada no setor público, reforçada pelo treinamento recebido no curso Empretec, do Sebrae. Uma reflexão que ocorrera durante a formação recebida ensejava se perguntar por um horizonte de 25 anos sobre sua mobilidade e esse foi o ponto que a levou pensar: “Agora tenho de me mover. Resolvi sair do governo, porque não era carreira pública que eu queria fazer”. E isso era reforçado pelos amigos e pessoas do meio, colegas e ex-colegas: “Todo mundo falou: ‘É a sua cara, se você abrir um receptivo você vai efetivamente começar a transformar o mercado em Minas’”. Mediante a decisão de empreender, fez um plano de negócio. Mas, Fernanda analisou que o plano, apesar de sua formação e experiência, não se prestou a uma prática efetiva de planejamento. Considera, entretanto, que a empresa está bem, após dois anos e meio de funcionamento, mas poderia estar melhor, caso tivesse praticado o planejamento. A empresa nasceu com financiamento e foi constituída por uma equipe de duas pessoas. Apesar da reflexão sobre o não planejamento efetivo, segundo a empresária, a empresa andou bem e a equipe foi ampliada de duas para quatro pessoas, todas com áreas de atuação definidas. A necessidade de boa condução da Libertas Turismo a fez decidir abandonar o emprego e se dedicar plenamente às atividades da empresa. Foi um período de implantação e desenvolvimento. Do ponto de vista das instalações, antes partilhando uma sala com outra empresa, ao final de seis meses já contava com duas salas de trabalho. Essa ampliação do espaço contribuiu para as definições de funções das pessoas que ali trabalhavam, propiciando clareza para o desenvolvimento do negócio principal, ou seja, os eventos, enquanto vertente do turismo receptivo. Eu tenho poucos novos produtos, e tirei vários da prateleira. Passeios de natureza e aventura eu não faço. Meu negócio é cultura, gastronomia e eventos. Fomos concentrando nisso, e aí melhorei alguns produtos para que eles sejam muito bons, únicos, e tirei outros que não traziam retorno, faziam a gente gastar uma grande energia, além de não termos know-how nem bons parceiros.
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O desenvolvimento é marcado por uma crescente estruturação no espaço físico, equipe consolidada e com funções claras, definição de cargos e salários, tudo configurado em um planejamento estratégico efetivo com um horizonte de cinco anos. A consolidação contou com atividades de promoção e marketing feitas por meio de uma assessoria de imprensa. Assim, há um conjunto de inciativas que envolvem essa inserção no mercado e a demarcação de um espaço, com participação em feiras, eventos, encontro de negócios, busca de associações, participação em entidades de classe, com inserção efetiva em networks. Isso se conjuga com dois espaços significativos de comercialização de produtos: de um lado, grandes operadoras de viagens vendem os produtos da Libertas; de outro, na atualidade, é a única empresa que tem venda on line. Isso é feito em um site em quatro idiomas, formatado para atrair muitas visitas e levar às efetivas compras, por esse canal ou por e-mail e telefone. O cotidiano da empreendedora é marcado por ações gerenciais e a distribuição de atividades aos demais colaboradores. A empresa trabalha com muitos fornecedores e isso exige acompanhamento especial e, sobretudo, um trabalho de back office no relacionamento com clientes. Também há ações de colaboradores na captação e operação e a gestão inclui o acompanhamento do mercado. Para a empresária, o mercado que aparentemente seria fácil, não é. Assim, é preciso focar em serviços genéricos. Mas, para Fernanda, isso tem que ser dosado, sobretudo no acompanhamento de concorrentes e reavaliação de parcerias: Acho que já cometi o equivoco de focar nos concorrentes, de estar mais preocupada com eles do que com o meu cliente, por exemplo. Você tem que estar de olho, observar, mas não focar. Hoje, depois de tantas decepções, mesmo com parcerias eu vejo esses problemas. Se é para a produção, a organização do destino é fundamental, enquanto para a comercialização e operação, não. Quanto mais levar para Belo Horizonte, melhor. Dou entrevista, vou a eventos, me associo com a concorrência, em termos de promoção. Porque primeiro vem o destino, depois vêm as empresas, depois a escolha do mercado.
Dificuldades existem em qualquer negócio. Mas a empresária avalia que sua experiência como gestora pública levou-a a sentir mais dificuldades. Antes, via toda a cadeia produtiva como seu objeto de intervenção, os concorrentes incluídos. Mas, ao entrar no mercado, sentiu a dificuldade em lidar com algumas das características dela, como por exemplo, a de buscar esses contatos, a rede e a colaboração. Assim, algumas características pessoais que, ao mesmo tempo, eram facilitadoras de sua inserção no mercado, dificulta-
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ram suas ações, no momento de suas atividades empreendedoras. Fernanda acredita que gastou muita energia por não ler bem as exigências do mercado, o que ela considera mensagens subliminares, energia, paixão, gostar muito daquilo que faz e acreditar no valor no setor, por vezes, a deixando-a sem uma visão realística e necessária da situação. Alega que esse ambiente concorrencial é causador de uma grande dificuldade, como no caso de contratação de um funcionário vindo da concorrência. Fez grande investimento na pessoa, mas ele ficou menos de um mês no posto, já negociando com outra empresa concorrente. Considera isso como uma de suas limitações e também a do setor, sobretudo ao perceber que do lado institucional, a visão era outra, diferente de quando está à frente de seu negócio e tendo que, por vezes, “bater na concorrência”. Ela afirma que em algumas atividades de parceria sempre puxava os concorrentes para cima, resultando em mais benefícios para eles do que para a sua empresa. Para Fernanda, essa cooperação limitada em Minas Gerais é resultante de uma característica cultural, que vem do ciclo do ouro, em que se um empresário tem oportunidade de prejudicar o outro, ele o faz. Isso dificulta as atividades que visam à valorização do destino turístico, cujo benefício vai para todos do setor. Outras dificuldades seriam naturais no campo dos negócios, como a inadimplência, porém são situações mais fáceis de serem resolvidas. Fernanda reconhece a importância de estar à frente de uma empresa inovadora, sendo convidada para representar Minas Gerais em eventos, reconhecida no mercado, além de ter uma empresa que valoriza a sustentabilidade social, econômica e ambiental. O meio ambiente faz parte de nosso planejamento. Por exemplo, temos saquinhos para os turistas colocar o lixo no local certo e trabalhamos com papel reciclado. Trabalho também a questão social, dando palestra para jovens empreendedores e estudantes de turismo. E trabalho com a comunidade, porque a Libertas é um motor de desenvolvimento local. Se eu começar a levar mais gente para aquele destino, mais pessoas serão beneficiadas. Então em alguns destinos eu quero capacitar, treinar, mostrar o que o turismo gera. Os destinos que eu mais trabalho são os de ações sociais. Mas, preciso colocar em prática essas estratégias dentro do nosso planejamento.
A Copa do Mundo pode ter sido uma motivação a mais, que apressou a decisão de Fernanda em criar a Libertas Turismo, dois anos antes do início do evento, com o diferencial do foco da empresa no turismo receptivo, preenchendo um espaço na cidade de Belo Horizonte. Para Fernanda, “a Copa foi pior do que a gente imaginava. Mas abrir a empresa só por causa da Copa do Mundo, não era um bom negócio. Muita gente que comprou carro extra, que investiu na Copa, se frustrou”.
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Por outro lado, houve vantagens significativas decorrentes da Copa, na avaliação da empresária, do ponto de vista operacional: Eu, por exemplo, tinha feito contratos de locação de veículos com antecedência para a Copa. Por entender desse mercado, eu fui conservadora, felizmente, e não tive prejuízos nessas contratações. Um mês antes da Copa as demandas começaram a se efetivar e eu corri atrás dos meus fornecedores. Havia muitos disponíveis e mais baratos do que há seis meses. Foi um bom período para testar nossa operação, 100% exitosa.
A Libertas Turismo se beneficiou com a Copa pelos efeitos futuros possíveis, dado o tipo de público por ela atendido enquanto empresa de turismo receptivo, como sintetiza a empresária:
Foto: divulgação
Então eu não tive nenhum problema na Copa do Mundo. A gente operou com capacidade máxima e atendeu clientes estratégicos, vips e grandes empresários. Foi aí que eu comecei a ter uma leitura real do mercado, e nisso a Copa ajudou. Minas foi muito divulgada, as pessoas sabem do 7 a 1 no Mineirão e isso posicionou Belo Horizonte. Nesse sentido, divulgar a cidade foi positivo, mas não mudou a minha vida financeira esse ano.
Fernanda e os benefícios da Copa: “Meu negócio é cultura, gastronomia e eventos”
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Mariana Zupo, Henrique Dutra, Pedro Perone e Gabriela Dutra: Allbargue Hostel, entre parentes e amigos
Foto: divulgação
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CASO 2
E TODA A FAMÍLIA EMBARCA NO SONHO DO ALLBARGUE HOSTEL BAR DE AVENTURA
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Allbargue Hostel Bar de Aventura foi criado por quatro sócios: um jovem, sua irmã, uma amiga e um primo. A ideia original veio de Henrique Dornas Dutra, que tinha uma vivência em intercâmbio internacional como jovem estudante no exterior. Na ocasião, ainda secundarista, pôde ver como funcionavam albergues e grande parte deles tendo um bar associado. Henrique trabalhava em uma fundação do Estado de Minas Gerais até antes do início da Copa do Mundo. No primeiro semestre de 2014, começou a discutir com pessoas ligadas a ele a possibilidade de realizar aquilo que considerava um sonho antigo, o de abrir um albergue e passar a gerenciá-lo. A perspectiva da Copa do Mundo de Futebol levou à intensificação da discussão com pessoas próximas, em especial a amiga e o primo. Sem qualquer experiência gerencial, o grupo começou a se reunir e traçar planos cada vez mais próximos da realidade, com a possibilidade de abrir o negócio para receber turistas que viriam para a Copa. A emoção dominou esse período inicial. “Se tem hora para a gente abrir esse negócio é agora, vamos lá”, disse Henrique. A ideia inicial já comportava o bar, que na visão do empreendedor garantiria o sucesso do negócio: “Com o clima boêmio de BH, a gente pensou em juntar o útil ao agradável, até mesmo porque é difícil um bar dar errado na cidade”. Nessa perspectiva foi importante o diálogo mantido com amigos e parentes, recebendo opiniões diversas na concepção de como planejar e do que agregar ao negócio. Amigos numa roda de bar conversavam, davam opiniões, a gente contrapunha ou concordava. E íamos pegando as ideias deles, ou aquilo que eles achavam importante ter, como a gente deveria fazer o planejamento, essas coisas. Porque a gente era cru mesmo. (Henrique)
Apesar desse clima de conversas, rodadas de opiniões, deve ser ressaltado que o empreendedor e seus sócios começaram a fazer um plano de negócio seis meses antes da abertura da empresa: Montamos o plano de negócio e fomos atualizando constantemente. Chegamos a levar para um consultor do Sebrae, que achou a ideia muito interessante, com pouquíssimas falhas. Só que entre o plano de negócio e a realidade, é completamente diferente. E de outubro até abril, quando a gente alugou esse lugar aqui, iniciaram as obras e o albergue começou a tomar forma, foram uns seis meses.
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Esse processo foi marcado por uma indecisão: iriam ou não buscar financiamento com investidores-anjo em São Paulo? E acabaram tentando obter, mas sem sucesso, financiamento público. Então, foi fundamental o apoio financeiro de familiares, os quais se tornaram a fonte de capital inicial. Bancos, investidores-anjo, fomos procurando, mas estava difícil. Banco? BDMG, BNDES, eles falam que incentivam novos negócios só para quem já está funcionando. Até que nossos familiares resolveram bancar. Tiraram todas as economias que tinham, zeraram a poupança e acreditaram no nosso negócio. Assim, conseguimos realizar. Procuramos investidor em outubro do ano passado, decidimos em dezembro que não ia dar certo. Em janeiro eles nos procuraram, mas preferimos ignorar. Com o dinheiro que conseguimos, em menos de dois meses colocamos tudo em ordem. (Henrique)
Na mesma perspectiva, do ponto de vista comercial, tentaram fazer contato com as empresas de bebidas na tentativa de conseguir apoio para instalação de freezers, mas nada foi conseguido. Todos os equipamentos foram adquiridos pelos proprietários. O Hostel Bar iniciou suas atividades uma semana antes do início da Copa do Mundo. Com foco no albergue e no funcionamento do bar, agregaram à identidade do projeto a ideia de associar o albergue com a hospedagem de pessoas interessadas no esporte de aventura, característica do grupo de sócios. Relataram que, no início, o bar representou uma grande carga de trabalho e recorreram aos amigos e familiares pedindo ajuda: Eles ajudaram muito, dando força pra gente, principalmente na época da Copa quando ficava sempre cheio aqui. Era primo ajudando, primo servindo, mãe no caixa, mãe na cozinha, tia ajudando, foi muito bacana. Todo mundo abraçou a ideia e ajudou a gente. Ainda ajudam! (Henrique)
Durante a Copa do Mundo, serviram café da amanhã e lanches ao longo do dia. Isso estava previsto no contrato social. O plano de negócios serviu apenas como uma ideia orientadora, pois na prática a situação foi bem diferente, principalmente no quesito das atividades de hospedagem e do bar. O desafio seguinte era como trabalhar no período pós-Copa. “O albergue não ia se sustentar sozinho. Muitos abriram e, depois da Copa, metade deles já havia fechado as portas”, afirma Henrique. Assim, apesar de a atividade principal ser o albergue, ficou claro que o bar seria o carro-chefe do empreendimento e decidido que não mais abririam a empresa para lanches ao longo do dia. A primeira venda ocorreu com a inauguração do albergue e bar, sobretudo o bar, pois nessa data ainda não havia hóspedes. A presença de clientes e
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amigos foi surpreendente e isso se revelou como desfio de logística, precisando contar com a participação de amigos e familiares nas atividades cotidianas do atendimento. No período da Copa, a equipe efetiva para o desenvolvimento de atividades foi composta pelo sócio fundador e um funcionário argentino. Os demais sócios trabalhavam nas atividades do bar, no período noturno, pois tinham outras atividades profissionais ao longo do dia. No final de 2014, o Allbargue estava consolidado como um empreendimento. Segundo o empreendedor, as ações de marketing foram realizadas por meio de redes sociais. Não conseguiram fechar contratos com sites de hospedagem antes da Copa e, diante de vinda dos primeiros hóspedes e da difusão por meio da mídia espontânea, tudo começou. A gente apareceu no jornal, em dois canais de televisão e na Veja BH, tudo espontaneamente. Nós não procuramos nada. E em função da primeira reportagem que saiu no jornal, todos esses outros meios de comunicação que queriam fazer reportagem sobre albergue vieram nos procurar. Isso nos ajudou muito ser reconhecidos. (Henrique)
O Allbargue segue, pós-Copa do mundo, com o bar funcionando e tem a presença eventual de clientes do albergue. Os sócios estão pensando em abrir novo ambiente na parte superior do imóvel, diminuindo uma parte do albergue. A possibilidade de ampliação do bar na área do albergue não significa a descontinuação dessa atividade. Eu acho que o mais importante hoje é a identidade do negócio. A galera curte muito a ideia, e aqui já está ficando conhecido como Allbargue mesmo, bar com albergue. Pela identidade do negócio, tem que se manter o albergue. (Henrique)
Mas também está claro que a experiência marcou os jovens empreendedores que refletem sobre uma ideia inicial de expandir, abrindo outras unidades com a mesma proposta. O desafio, na atualidade, seria a retomada do plano de negócio inicial como parâmetro e os empreendedores têm consciência disso. Para o entrevistado, “nós não estamos conseguindo pensar, estamos só fazendo”. Uma das dificuldades enfrentadas diz respeito ao funcionamento de um bar com toldo, usando o passeio. No entanto, isso precisa da autorização da prefeitura. Quanto à concorrência, segundo o empresário, isso não o preocupa, considerando que há uma imagem de Belo Horizonte como a cidade dos bares, e isso leva a uma maior facilidade de cativar a clientela. O bom atendimento marcou as atividades do bar desde o seu início, isso sendo, na visão do empresário, calcado num certo “jeito familiar”, por terem contado com a presença de membros da família, participando de modo informal nas atividades de atendimento.
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O turismo de aventura está vinculado à preocupação do grupo com o meio ambiente. Nosso compromisso com a sustentabilidade é certo. O único lixo que nós mandamos para o caminhão é o lixo da cozinha. O restante, nós reciclamos. Em 2007, 2008, nós tínhamos uma ONG que fazia projetos sociais. Então temos a intenção de reestruturar. Hoje reciclamos todas as latinhas e garrafas, mas a gente quer expandir.
A criação do empreendimento foi vinculada à oportunidade da Copa do Mundo. A ideia de juntar as atividades de albergue e bar visava, no início, garantir sustentabilidade do negócio, considerando que o mercado de albergue em Belo Horizonte era restrito. Nessa perspectiva, ficou claro que a inauguração a 12 dias do início da Copa do Mundo trouxe uma atividade intensa, tanto em termos de lotação do albergue como das atividades do bar e lanchonete. A inauguração trouxe mais de 200 pessoas aqui. Como a gente ainda não tinha mão de obra, foi uma loucura. Era eu na churrasqueira o tempo inteiro, tudo lotado de churrasco, não conseguia nem ver direito. E desde então, a gente funcionou a Copa inteira, principalmente por conta do albergue. O bar virou ponto de encontro para o pessoal assistir jogos. Nós somos um albergue pequeno, com dez leitos. Ficamos lotados todos os dias da Copa, inclusive com gente dormindo em colchão inflável aqui embaixo, quando o bar fechava. (Henrique)
Esse dinamismo inicial da atividade do empreendimento revelou o acerto da abertura do negócio com a realização da Copa. Ao mesmo tempo, havia algo de atrativo para os hóspedes, associado à cidade de Belo Horizonte: Os turistas curtiram muito o ambiente e a cidade. Pelo que eu escutei, das cidades-sede, uma das que eles mais curtiram foi Belo Horizonte, pela recepção que eles tiveram do povo mineiro, pelas festas aqui na Savassi, pela comida. (Henrique)
CONSIDERAÇÕES FINAIS Os casos revelam situações particulares em relação à oportunidade surgida com a Copa do Mundo no Brasil. Em um deles, ficou claro que experiências anteriores contribuem na criação de empreendimento. Mas, as adversidades vivenciadas por Fernanda demonstraram que as características empreendedoras são fundamentais para desenvolver e manter um negócio em longo prazo. O surgimento de um evento foi sim visto como uma oportunidade, conforme a concepção de Alvarez e Barney (2007). Mas, ficou a lição de que um empreendimento não deve ser inspirado com foco em um evento específico e sim para perpetuar, visando atender à demanda do mercado como um todo.
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O outro caso traz algumas particularidades vivenciadas por um grupo de jovens empreendedores, cujos sonhos e muito debate, mesmo sem experiências, transformaram-se em realidade. A manutenção da identidade ficou como uma marca do empreendimento. Passa, por vezes, por uma tentativa em associar a atividade econômica com um projeto de vida. Olhando para os dois casos, constatamos que os jovens empreendedores perseguem sonhos, independente de experiências anteriores. Fernanda ancorou suas ações em suas experiências profissionais anteriores. Já Henrique e os sócios identificaram uma oportunidade de negócio sem terem tido experiências, mas se espelharem em modelos visualizados no exterior. Ambos, no entanto, perceberam que a vinda da Copa do Mundo para Belo Horizonte poderia trazer prosperidade para seus negócios. Há uma perspectiva profissional, como parte dessas trocas com seus consumidores, refletindo em uma orientação de vida para ambos (Watson, 2013). Os empreendimentos criados, inspirados pela Copa do Mundo e tidos como oportunidades, permitem elaborar um debate sobre a noção de oportunidade durável (Singh, 2011), pois o evento passou, mas as atividades continuam. A oportunidade, de fato, existe, e empreendedores se mobilizaram para agir em função dela (Shane & Venkataraman, 2000). Assim, os jovens empresários, ao programarem o desenvolvimento de uma atividade, vislumbrando o futuro, se comportaram como atores empreendedores, com um projeto de vida embutido na proposta profissional. Nesse sentido, cabem as perguntas feitas por Cardon et al. (2005): Que escolha fizeram? Como pensaram isso em grupo? Quais as suas experiências anteriores? Como identificaram a oportunidade? Esses questionamentos deveriam ser uma constante na vida dos empreendedores, conforme Edelmann e Yli-Renko (2010). Entendemos então que a consideração do indivíduo em Gartner (1985) sobre as experiências anteriores é muito mais complexa do que a simples experiência em relação ao ramo de negócio. O debate acerca da oportunidade identificada ou criada (Edelmann e Yli–Renko; Alvarez e Barney, 2007) se apresenta de modo específico. Qual oportunidade foi explicitada? Seria apenas o evento da Copa do Mundo? Aparentemente, sim, diante do funcionamento efetivo de um dos empreendimentos, abrindo 12 dias antes do início do evento esportivo. Por outro lado, é importante também refletir sobre o empreendedorismo sustentável sob a perspectiva de seus aspectos econômico, social e ambiental, sobretudo quando associado à ação do empreendedor cujo intuito é o de entender não somente a identificação e exploração de oportunidades, mas também a criação de novas oportunidades.
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Fotos: divulgação
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REFERÊNCIAS Alvarez, S., & Barney, J. (2007). Discovery and creation: alternative theories of entrepreneurial action. Strategic Entrepreneurship Journal, v. 1, n. 1-2, pp. 11-26. Cardon, M. S., Wincent, J.,Singh, J.,& Drnovsek,M. (2005). Entrepreneurial passion: the nature of emotions in entrepreneurship, Academy of Management Proceedings: Best Conference Paper. Edelman, L., & Yli-Renko, H. (2010). Entrepreneurial perceptions on venture-creation efforts: bridging the discovery and creation views of entrepreneurship. Entrepreneurship Theory & Practice, September, pp. 833-856. Gartner, W. (1985). A conceptual framework for describing the phenomenon of the new ventures creation. Academy of Management Review, v. 10, n. 4, pp. 696-706. Katsikis, I. N, & Kyrgidou, L. P. (2007). The concept of sustainable entrepreneurship: a conceptual framework and empirical analysis. Academy of Management Proceedings. August 1, v.1, pp. 1-6 Shane. S., & Venkataraman, S. (2000). The promise of Entrepreneurship as a field of research. Academy Management Review, v.25, pp. 217-226. Singh, R. P. (2011). A Comment on Developing the Field of Entrepreneurship Through the Study of Opportunity Recognition and Exploitation. Academy of Mangement Review, pp. 10-12 Watson, T. J. (2013). Entrepreneurship in action: bringing together the individual, organizational and institutional dimensions of entrepreneurial action. Entrepreneurship & Regional Development, v. 25, n. 5-6, pp. 404-422.
Henrique e o Allbargue Hostel: albergue e bar, no clima boêmio de Belo Horizonte
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MARACANÃ Rio de Janeiro – RJ
JOGOS DA COPA DO MUNDO DE 2014: Argentina
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Bósnia e Herzegovina
Espanha 0 x 2 Chile Shutterstock/ Thiago Leite
Bélgica 1 x 0 Rússia Equador
0 x 0 França
Colômbia 2 x 0 Uruguai França 0 x 1 Alemanha Alemanha 1 x 0 Argentina
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Capítulo 9
A COPA NO RIO DE JANEIRO: PEQUENOS NEGÓCIOS, MOVIDOS A INOVAÇÃO, ESPORTES E CULTURA Autores: Edmilson Lima edmilsonolima@gmail.com Universidade Nove de Julho – Uninove São Paulo – SP
Larriza Thurler larriza@gmail.com Sebrae/RJ Rio de Janeiro – RJ
C
apital do Estado do Rio de Janeiro, a cidade de mesmo nome tem aproximadamente 6,5 milhões de habitantes. É um dos principais destinos turísticos do hemisfério sul terrestre e também a capital brasileira mais conhecida pelos estrangeiros – muitos até acreditando que seja a capital nacional, mesmo depois de ela ter cedido o posto a Brasília, em 1960. Carioca é o gentílico que se refere aos naturais da cidade, em alusão histórica àqueles que tomavam água do rio Carioca, principal fonte de água doce da população até o século XIX, quando ainda era canalizado pelo Aqueduto da Carioca, atuais Arcos da Lapa. Por outro lado, fluminense é o gentílico para os nascidos no Estado, inclusive os cariocas – de modo semelhante ao que ocorre com paulista, aplicável também aos paulistanos. A cidade é um centro cultural, financeiro e econômico de destaque no país, além de ter um rico acervo histórico (merecedor de mais atenção e cuidados) principalmente do período (pré-)imperial, este concentrado no centro e nas cercanias do Paço Imperial. O esplendor do desenvolvimento desse acervo histórico tomou uma forte crescente com a presença da família real portuguesa na cidade, a partir de 1808, ali refugiada das forças napoleônicas chegadas a Portugal. Nesse período, o Brasil teve na cidade a sede de todo o império português, composto de muitas conquistas mundo afora. Cidade de grandes contrastes sociais, principalmente entre “o morro e o asfalto”, que são áreas de residência respectivamente dos mais pobres e dos não
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tão desafortunados, a capital tem as maiores favelas brasileiras, concentradas nos morros, assim como índices de violência urbana dos mais elevados no país. Episódios da grave violência carioca ganham muito frequentemente os noticiários e páginas de jornal nacional e internacionalmente. Sobre essa questão, imaginou-se com justa razão que o receio de serem vítimas de roubos, sequestros e outros crimes no Rio, e em menor grau em outras cidades-sede, afugentaria muitos turistas ou deixaria em estado de alta insegurança aqueles que iriam ao Maracanã para assistir aos jogos da Copa do Mundo de 2014. Além disso, o risco de terrorismo que habitualmente cerca os grandes eventos internacionais da atualidade foi mais uma preocupação. Frente a esses desafios, a seleção da Inglaterra, concentrada no Rio de Janeiro, foi acolhida com fortíssimo esquema de segurança, que envolveu, além de outros recursos, um esquadrão antibomba, agentes da Polícia Federal e o exército. Com mais requinte e imponência, o mesmo se viu com a seleção norte-americana, concentrada na cidade de São Paulo. Foi com muita alegria, mas, depois, também com apreensão, que a cidade do Rio de Janeiro viveu a passagem dos meses até a realização da Copa do Mundo, com jogos escalados para o estádio do Maracanã. A alegria se deveu principalmente ao orgulho comum aos brasileiros em geral por podermos receber um evento tão importante e ter ali perto de muitos, mesmo que sob os olhos de nem tantos no estádio, a apresentação dos grandes nomes do futebol mundial. Entre estes, estavam os jogadores da seleção brasileira, que todos queriam ver brilhar frente aos estrangeiros. Não se podia desconfiar até então que, inversamente, a equipe brasileira se deixaria humilhar num jogo de semifinal em Belo Horizonte, na histórica goleada de 7 a 1 imposta pela Alemanha, ironicamente vestida com as cores do Flamengo. A apreensão ocorreu principalmente devido aos muitos atrasos nas obras de estádios e de infraestrutura da cidade, como se viu em muitas outras cidades-sede no país, para receber torcedores brasileiros e estrangeiros. Temia-se um grande vexame frente ao mundo num megaevento de preparação envolta em graves suspeitas de corrupção nas obras e que dava mostra de limitada capacidade de gestão pública. Custos e prazos previstos foram sucessivamente ultrapassados. De 12 Arenas pelo Brasil, apenas duas, Castelão e Mineirão, foram entregues no prazo previsto para dezembro de 2012. Esse prazo foi estabelecido pela Fifa com base nas datas do evento teste que antecede a Copa do Mundo, a Copa das Confederações, realizada em boa parte para dar uma margem de tempo para aplicação de correções ou planos de contingência, que poderiam até mesmo envolver a realização da Copa do Mundo em outro país. Com tamanhos atrasos e desmandos brasileiros, parece que nunca se teve tanta necessidade desse recurso de segurança na realização de uma Copa do
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Mundo. No Rio, a reforma do Maracanã foi dada como finalizada às vésperas da Copa das Confederações, em 2013. Quanto ao Galeão, repetindo o ocorrido com outros aeroportos brasileiros que deveriam ser modernizados e ampliados, temia-se que os atrasos impedissem o recebimento adequado do grande contingente de passageiros esperados para a Copa. Ao longo das duas Copas, não houve grande dificuldade na gestão do fluxo de recebimento dos turistas. Mas ainda próximo ao fim de 2015, depois dos megaeventos (pasmem!), envergonham os brasileiros o estado do aeroporto com contínuos riscos de apagão elétrico, assim como a existência de tapumes escondendo obras inacabadas até mesmo em corredores e de infiltrações que levam água de chuva para os salões de atendimento a passageiros. Aumentando a intensidade das emoções cariocas e nacionais ao longo da preparação para os dois megaeventos e acrescentando a elas uma pitada de ideologia, populares principalmente de esquerda protestavam intensamente nas principais capitais contra as Copas, inclusive no Rio. Com boa dose de razão, consideravam que os recursos demandados por elas poderiam ser mais bem aproveitados na solução de históricas carências nacionais, como a precariedade da educação e da saúde públicas. Para superar resistências contra os eventos e os procedimentos emergenciais para finalizar obras, o governo fluminense fez como o federal, enfatizando os benefícios potenciais da principal competição: “A Copa do Mundo é uma oportunidade histórica de acelerar o desenvolvimento econômico e urbano e representa uma chance de catalisar investimentos e consolidar legados concretos para as cidades-sede” (EGP-Rio, 2012). Sob tal influência, mas também com a tradicional esperança brasileira (resistente até mesmo a desastres dados como certos), o povo carioca mantinha a expectativa de que a cidade ofereceria ao mundo pelo menos condições aceitáveis para o campeonato internacional. Contudo, em abril de 2014, noticiou-se que até mesmo o ministro da Aviação Civil reconhecia o risco de apagão no aeroporto em plena Copa1. As notícias também relataram mais problemas graves das infraestruturas de transporte terrestre e aérea2 e confirmaram a suspeita de superfaturamento na reforma do Maracanã, orçado inicialmente em incríveis R$ 705 milhões e chegando ao espantoso custo final estimado de R$ 1,2 bilhão3. Em junho, na 1 http://g1.globo.com/economia/noticia/2014/04/ha-risco-de-galeao-ter-apagao-na-copa-diz-ministro. html visitado em 1 de junho de 2015 2 http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2014-04-21/aeroportos-e-rodoviaria-longe-do-padraoFifa.html visitado em 1 de junho de 2015 3 http://globoesporte.globo.com/futebol/copa-do-mundo/noticia/2014/04/tce-aponta-maracanasuperfaturado-em-r-673-mi-e-problemas-na-reforma.html visitado em 1 de junho de 2015
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estreia da Arena no evento, houve uma grande surpresa, mas não exatamente por problemas da obra. Apesar da positiva lotação com pouco mais de 74 mil pessoas, torcedores estrangeiros burlaram o acesso e entraram para ver o jogo, um fotógrafo denunciou o furto de parte de seu equipamento no interior da Arena, faltou comida para os torcedores em parte dos restaurantes internos e houve confronto de manifestantes contrários ao evento com parte dos mais de 3 mil policiais que isolavam o estádio4. Persistentes em seu otimismo, como a população em geral, proprietários-dirigentes de pequenas empresas dos mais variados setores e localidades do Rio de Janeiro viram na Copa do Mundo uma oportunidade de melhoria dos negócios com seus clientes habituais e ainda mais com turistas. Como se percebe também em outros capítulos desse livro, essa atenção ao ambiente e a identificação de oportunidades é uma característica central do empreendedorismo (Baron e Shane, 2007), podendo se manifestar em maior ou menor grau nos diferentes proprietários-dirigentes de pequenos negócios. O enfrentamento de riscos calculados é outra característica do empreendedorismo que se mostrou em muitos desses proprietários-dirigentes dados os perigos e incertezas, a falta de adequado planejamento do poder público e a ausência de uma política clara de trato com a classe empresarial visando-se a Copa. Tal característica, também destacada por Baron e Shane (2007), foi necessária particularmente para aqueles cujos negócios estavam instalados com muita proximidade das Arenas esportivas. Outros capítulos desse livro ilustram isso, mostrando o caso de alguns que sofreram as graves consequências da desastrosa gestão da preparação para o evento, ocorrendo até mesmo o fechamento de negócios sem compensação financeira e com grande prejuízo. Por outro lado, muitos pequenos negócios avançaram em sua preparação para aproveitar oportunidades geradas pelo evento sem se expor a um grande risco. Os motivos disso variaram, por exemplo, de porque não tinham grande dependência ou proximidade em relação à Arena – como o Bode do Mundinho em São Lourenço da Mata (PE) – a porque seus dirigentes não viram razão de fazer mudanças e investimentos vultosos pensando no evento – como os dois casos do presente capítulo. Os casos selecionados para tratar da Copa do Mundo no Rio de Janeiro aproximam-se, portanto, daquela que parece ser a realidade de uma grande massa de pequenos negócios brasileiros cujos dirigentes não foram muito ousados pensando especificamente na Copa. Contudo, ambos, referentes a uma 4 http://espn.uol.com.br/noticia/418457_maracana-tem-festa-mas-estreia-na-copa-tambem-cominvasao-fotografo-roubado-bares-sem-comida-e-confusao visitado em 1 de junho de 2015
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lanchonete e a uma padaria, são negócios muito inspiradores quanto a como ser inovador e diferenciado mesmo em um setor tão tradicional quanto o da alimentação. Tendo esses pontos fortes, as duas empresas tiveram suas atividades feitas especificamente para a Copa como um diferencial a mais a lhes dar melhor divulgação e a reforçar sua imagem no mercado. Mesmo que os casos não a explicitem claramente, um importante ganho obtido com o êxito foi o aumento da autoconfiança e o fortalecimento da autoimagem dos empreendedores e de sua equipe de trabalho nas duas empresas. Os dois casos desse capítulo mostram que as atividades promovidas por seus dirigentes para a Copa do Mundo não foram planejadas, repetindo muito do que fez ambos os negócios evoluírem ao longo de seu histórico. No entanto, tal repetição é mais flagrante no caso Mega Lanche’s, da favela da Rocinha. Ele tem como um dos fatos emblemáticos do modo de administração emergente (sem planejamento) dos dirigentes a decisão de a lanchonete funcionar 24 horas por dia porque o balcão frigorífico comprado por eles não cabe em seu pequeno espaço de atendimento ao público. Desse fato, surgiram não intencionalmente outras atividades administrativas da empresa, como o uso de uma TV que atrai pessoas interessadas nas lutas do UFC transmitidas pela madrugada e também pelas transmissões da Copa, pessoas que acabam consumindo lanches. A adaptação oportunista é, pois, um elemento que ajuda a explicar a evolução da Mega Lanche’s e boa parte do seu sucesso, algo que Bhidé (2000) descreve como sendo comum no histórico de muitas empresas de sucesso, inclusive da Microsoft. Quando se trata de estratégias emergentes, mais elementos do caso podem ser mais facilmente compreendidos usando-se também as contribuições de Lima (2000) e Mazzorol e Reboud (2009). Uma grande semelhança da Mega Lanche’s com a segunda empresa desse capítulo, a Padaria Caliel, além da realização de iniciativas não muito ousadas para aproveitar oportunidades da Copa, é a forte implicação social dos negócios. Enquanto a primeira faz um intenso trabalho de promoção de atividades esportivas e de apoio a atletas na Rocinha, a última é muito envolvida na realização de atividades culturais para a comunidade do Salgueiro. Os dois negócios geram, por sua implicação social, um tipo particular de vantagem competitiva chamado vantagem colaborativa (Johnsen e Ennals, 2012), ampliada pela Mega Lanche’s na Rocinha com o apoio à realização de uma minicopa enquanto a Copa real ocorria. Consegue-se gerar vantagem colaborativa lidando-se com arranjos colaborativos que vão além das transações de mercado (com clientes, fornecedores...) em suas atividades. Ela emerge da colaboração com o meio social ou comunidade, normalmente envolvendo uma
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ativa vontade de estar em interação construtiva com tal meio, contribuindo para seu desenvolvimento (Johnsen e Ennals, 2012). Adicionalmente, com sua implicação social, as duas empresas mostram características de organizações híbridas por apresentarem em seu modo de atuar a coexistência de diferentes lógicas condutoras de suas atividades (Besharov e Smith, 2014) – principalmente as lógicas empresarial e social. Casos que ilustram essas características incomuns em pequenas empresas são muito raros, principalmente quando se trata do Brasil, onde contribuições importantes para se entender esse fenômeno organizacional são feitas em trabalhos de Thomaz Wood Jr., professor da FGV – um deles é Wood (2010). Dentre os dois casos, o da Padaria Caliel é o mais expressivo em hibridismo, inclusive por contar com uma lógica extra, a familiar. Uma leitura atenta identifica até mesmo atores mais diretamente ligados a cada uma das três lógicas na Caliel: os dois sócios-proprietários principais (Marcelo, mas principalmente Emerson) como portadores da lógica social sustentadora das atividades culturais da padaria; Marcelo, seus pais e uma tia como portadores da lógica familiar; e Marcelo com o apoio dos empregados como principais portadores da lógica empresarial, que sustenta a preocupação de manutenção de atividades lucrativas para manter o todo funcionando. Nota-se aí com facilidade que há ao menos um dos atores mais significativamente dividido entre as lógicas: Marcelo. O hibridismo e a vantagem colaborativa são novas linhas analíticas promissoras para o estudo de práticas ainda negligenciadas, mas importantes, no empreendedorismo e na gestão de pequenas empresas. São particularmente importantes num contexto de economia emergente, como o brasileiro, devido ao corrente cenário de pobreza e alta restrição de recursos agravado pela ação desorganizada (ou inação) do Estado – como mostram diferentes problemas ocorridos nos preparativos para a Copa do Mundo. Nesse meio, faz-se mais comum que empresas com mais integração social local, como as micro e pequenas empresas, tendam a realizar atividades de apoio ao desenvolvimento socioeconômico, por vezes até assumindo atividades típicas do Estado (mas negligenciadas por ele), como iniciativas de cunho cultural. Com os dois pequenos negócios de morros cariocas, essa parte do livro traz uma viva ilustração de como o aproveitamento das oportunidades da Copa do Mundo ocorreu até mesmo em locais nada óbvios para um possível afluxo de turistas para o evento. Os casos traçam o histórico de desenvolvimento das duas empresas, colocam em destaque o que fizeram e os resultados obtidos com seus dirigentes pensando na Copa do Mundo, e são finalizados com uma abordagem de suas perspectivas para o futuro.
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Jorge e André mostram com orgulho o logotipo da empresa
Foto: divulgação
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CASO 1
MEGA LANCHE’S: FAZENDO MUITO COM POUCO, NA ROCINHA
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onquistados pela praticidade de morar na Rocinha (maior favela brasileira, com cerca de 70 mil habitantes, segundo o IBGE, e mais de 100 mil, segundo moradores), para se deslocar na cidade do Rio de Janeiro André Martins e Jorge Barão fizeram como muitos na cidade maravilhosa: deixaram a Baixada Fluminense para se estabelecer na comunidade. Iniciaram uma sociedade em sua lanchonete inovadora, a Mega Lanche’s, em agosto de 2011. Aprendendo um com o outro e contando com o apoio de pessoas de sua rede de relação e também do Sebrae, os sócios empreenderam uma sequência de pequenas inovações impactantes e responsáveis por significativo desenvolvimento dos negócios e ganhos para a comunidade – também chamadas de inovações frugais. Um dos pontos fortes de seu trabalho é a recepção na lanchonete de grupos de turistas estrangeiros. A Copa do Mundo de 2014 foi especialmente favorável ao atendimento desse público, muito atrativo pelo valor médio de compras elevado. O uso de uma página no Facebook incluindo a divulgação dos produtos com bom humor, fotos de clientes e personalidades e a divulgação de iniciativas de apoio ao esporte foi uma inovação frugal que capitaneou uma série de outras. Isso fez com que as vendas não se limitassem apenas às “pessoas que só aparecem na loja se estiverem com fome perto dela”, como diria André. Tráfego significativo de visitantes na página é assegurado pela divulgação de notícias sobre lutadores amadores de MMA e praticantes de outros esportes residentes na comunidade. Eles recebem um apoio ou patrocínio modesto dos sócios, com quem frequentemente nutrem uma relação de amizade, além de se beneficiarem com a divulgação de sua imagem na internet. O chamariz virtual levou ao aumento real das vendas, boa parte delas ocorrendo no atendimento on line pela página para entregas em domicílio. O telefone tem também um importante papel. Com ele, guias turísticos avisam o horário em que grupos de visitantes estrangeiros estarão na comunidade e chegarão à lanchonete. Isso dá partida à preparação de seus pedidos com antecedência razoável e assegura atendimento com rapidez e qualidade a um grande número de pessoas. Com ampla experiência no trabalho em lanchonetes adquirida desde seus 15 anos de idade, inclusive como proprietário, Jorge Barão contou-nos
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sobre sua vida profissional e a Mega Lanche’s. André Martins fez o mesmo. Um pouco mais novo do que Jorge, ele conta com múltiplas experiências que variam do emprego na área de laticínios de um supermercado a dono, com a esposa Andreia Andrade, de uma barraca móvel de cachorro-quente, passando também por proprietário de um local de jogo em videogames. Com base principalmente em entrevistas realizadas com os dois sócios, o presente caso de ensino em Administração narra o histórico da Mega Lanche’s, de André e de Jorge. O caso dá atenção a fatos particularmente relevantes para o empreendedorismo e a gestão de micro e pequenas empresas em um meio adverso, de baixo desenvolvimento socioeconômico. Evidencia, em especial, modos de se fazer muito com pouco, o valor das pequenas e impactantes inovações (ou inovações frugais) e como é possível um pequeno negócio, ao invés de empregar o planejamento, utilizar modos de se administrar e estratégias emergentes rumo ao sucesso. No caso, a inovações são frequentemente ligadas a um modo de se praticar o marketing e à geração de vantagem colaborativa para a empresa nas ações sociais que realiza em sua intensa relação com a comunidade local. Apesar de sua importância, a administração muito pouco ou nada planejada, assim como tal modo de se praticar o marketing e se gerar vantagem colaborativa, é ainda amplamente negligenciada na pesquisa e no ensino brasileiros.
O início dos negócios em sociedade Em 2014, Jorge está na primeira metade da quarentena e André é cinco anos mais jovem que ele. Sem nunca terem se conhecido antes de se mudarem para a comunidade da Rocinha, ambos viveram em São João de Meriti, Baixada Fluminense, e até mesmo frequentaram o mesmo colégio, o Fluminense. A tão falada violência do tráfico de drogas na comunidade não lhes pareceu um problema para nela viverem, pois, na verdade, lá reinava a mesma lei do sossego comum nas demais favelas cariocas. Com punição severa ou até a morte, os donos do morro (chefes do tráfico) não permitiam na localidade qualquer atividade criminosa além do tráfico que controlavam. Não havia ali roubo, assalto ou estupro, por exemplo. Os raros momentos de grave violência que afetava os moradores com tiroteios e balas perdidas eram aqueles de incursão da polícia para capturar bandidos ou, de madrugada, na tentativa de tomada dos pontos de tráfico por uma facção criminosa rival. A mudança de André ocorreu em 1996, ocasião em que ele atravessava a fase de três anos de trabalho em supermercados da Zona Sul
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carioca, em bairros como Leblon, Copacabana e Ipanema. Para ele, morar na Rocinha era muito mais lógico e prático do que em São João de Meriti, dada a distância dessa cidade em relação à zona sul carioca. Ironicamente, após ter ido morar na Rocinha, abriu um negócio em sua cidade de origem, voltando a ter moradia distante do trabalho. O motivo é que ele frequentemente ajudava vizinhos levando videogames à Baixada Fluminense para reparo ou desbloqueio1 e viu nisso uma oportunidade. Em 2000, decidiu tornar-se dono de um local para jovens e adolescentes jogarem usando alguns desses equipamentos. Não bastassem seus desafios de logística, começou a visitar a cidade de Cachoeiras de Macacu, no pé da serra da cidade de Nova Friburgo (RJ), e lá decidiu abrir sua segunda loja de jogos. Essa ficou então instalada a cerca de 100 km de distância da primeira. Em cada uma delas, chegou a ter dez televisores e dez videogames e alugava por hora aos clientes a vasta coleção de cópias de games que tinha. Foram quatro anos como microempresário de casa de videogame. No início de 2004, já tinha completado esse ciclo de negócio e migrado para o conserto e o desbloqueio de videogames, o que fez até 2009. A experiência seguinte foi a que mais o ajudou a fazer a transição para a atividade atual com a lanchonete, como ele mesmo conta: Eu trabalhava com cachorro-quente, só que isso era muito limitado. Eu só tinha um produto para oferecer à clientela e eu trabalhava em uma barraca. Aquilo dá muito trabalho. E quando você trabalha com perecível, tem que comprar e preparar pra entregar [o produto sem demora] ao cliente. Ainda tinha que tirar a barraca de lugar, levar, limpar porque ficava guardada, envolvida em uma lona, exposta ao tempo. Então me dava muito trabalho a preparação antes de começar a trabalhar, e aquilo me incomodava. E, em frente à minha barraca de cachorro-quente, era a loja da Mega Lanche’s [que estava em dificuldade].
André chegou a ter empregados, não mais de um por vez, mesmo operando um negócio tão pequeno e informal. Lembra-se muito bem de uma situação que é frequente em localidades sob o domínio de traficantes: perdeu um bom auxiliar para o tráfico, atraído pela possibilidade de ganhos maiores. Contudo, o rapaz era muito habilidoso no futebol. O esporte acabou por lhe dar oportunidades mais interessantes, que o tiraram do crime e o levaram para outro Estado do país. Em André, tornou-se então uma forte marca a crença que já tinha: o esporte é ótimo para dar boas perspectivas de vida e afastar pessoas do crime. 1 Desbloqueio de videogame: recurso para habilitar o aparelho a executar um jogo reproduzido não oficialmente.
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A Mega Lanche’s tinha sido fundada em 2006 por Jorge e um irmão, que estavam diretamente envolvidos em sua operação, e contava também com um cunhado na condição de sócio-investidor. Foi exatamente a ideia de abrir a lanchonete que justificou a mudança de Jorge para a comunidade da Rocinha. Ele aproveitou que o cunhado conhecia alguém de lá querendo alugar uma loja em condições atrativas. Por não se envolver na gestão ou nas operações, o cunhado pouco ia à lanchonete. O negócio baseava-se sobretudo na experiência acumulada por Jorge em atividades operacionais de seus empregos em diferentes lanchonetes. Seu irmão tampouco tinha conhecimento de administração. Segundo o relato de Jorge, o início das atividades na Rocinha foi um grande desafio por não conhecerem as pessoas do local. Contudo, a lanchonete era uma novidade e vendeu muito, logo que foi aberta. O sucesso inicial foi gradualmente transformando-se em pesadelo ao longo de cinco anos. Os problemas administrativos acumularam-se. Ao mesmo tempo, dois dos sócios mantiveram-se com a necessidade de ser remunerados pela empresa e o cunhado continuava interessado em fazer suas retiradas financeiras. Um problema central foi a necessidade de mais criatividade e de habilidade de gestão para manter o crescimento (ou ao menos a estabilidade em nível satisfatório) da clientela, das vendas e dos lucros. Para tanto, por se tratar de um negócio muito pequeno, menos sócios e uma melhor complementaridade de competências entre eles seriam características desejáveis. Por trabalharem um próximo ao outro, Jorge e André em pouco tempo começaram a conversar. Rapidamente tornaram-se amigos após notarem que tinham um passado com tanto em comum. Outra coincidência é que ambos tinham grandes preocupações quanto a seus negócios. Jorge e seus sócios estavam prestes a fechar a lanchonete por falta de vendas suficientes. Ao mesmo tempo, Jorge precisava aumentar seus ganhos porque seria pai em breve. André temia uma eventual ação de fiscalização na comunidade após a pacificação2 da Rocinha, prevista para 2011, que o impediria de continuar com sua barraca de lanches na rua. Nesse contexto, alugou um espaço ao lado da Mega Lanche’s e relançou a venda de cachorro-quente em seu novo ponto fixo. Incrédulo quanto 2 Pacificação: enfrentamento e expulsão (às vezes envolvendo mortes e prisões) das forças do crime organizado de um território, principalmente daquelas relacionadas ao tráfico de drogas, para sua ocupação por forças policiais e pelas autoridades legalmente constituídas. Alguns dos objetivos declarados pelo Estado para a pacificação são a diminuição dos índices de violência na localidade e a melhoria da qualidade de vida da população local, ao possibilitar mais oferta na comunidade de serviços públicos, infraestrutura urbana, projetos sociais, esportivos e culturais, assim como investimentos privados e oportunidades de desenvolvimento.
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à possibilidade de sucesso de seu vizinho, Jorge o provocou: “Sua loja é do tamanho do banheiro da minha, não vai funcionar”. De fato, o local parecia em princípio ser suficiente apenas para o estacionamento de uma moto, e com aperto. No entanto, vendo-se forçado ao pior, Jorge passou a ver as coisas com outros olhos. Fechou a lanchonete e aceitou um convite de sociedade que já havia recebido de André, que queria diversificar seus produtos, juntar forças e ter mais potencial de crescimento. O novo negócio, de saída, teria a importante vantagem de trabalhar com custos mínimos, inclusive por ainda não ter empregado e por usar um local de aluguel muito mais barato. O espaço para os clientes consumirem seu lanche seriam a calçada e a rua, com cadeiras dispostas em frente à lanchonete. Ainda no ano de 2011, os sócios lançaram sua microempresa com o mesmo nome fantasia da lanchonete anterior. As instalações da antiga Mega Lanche’s passaram a ser usadas por uma espaçosa loja de colchões. André dá mais detalhes sobre o início dos negócios em sociedade: Aí passamos por um momento em que ele [Jorge] teve que me ensinar muita coisa, pra eu poder entender como funcionava [o negócio] – eu não queria ser um peso ao lado dele, mas poder ajudar. Montamos a loja e eu preferi manter o nome [Mega Lanche’s] porque era uma referência, entendeu? Eu achava que aquele nome iria chamar atenção, e o pessoal iria voltar. Só que a diferença de uma loja muito grande pra uma muito pequena era enorme! Ali tinha trabalhado um relojoeiro – acho que por mais de 20 anos. Então, quando nós montamos a loja, as pessoas iam lá pra consertar relógio. Esse foi o primeiro grande obstáculo.
Com sua experiência, Jorge se encarregou dos deslocamentos para fazer as compras de matéria-prima e atuou como principal chapeiro-balconista3. Tornou-se também o responsável pela formação de outras pessoas que desempenhariam as mesmas funções ao balcão, a começar por André, reconhecedor de que “não sabia nem mesmo fritar um ovo”. Nos momentos em que se ausentava para fazer compras nas feiras ou outros locais, Jorge era substituído por André. Contudo, os dois não tardaram a contratar o primeiro empregado e, pouco depois, mais outros. A formação da sociedade ocorreu sobre bases muito modestas. Jorge nela ingressou com sua experiência e sua força de trabalho. André fez o mesmo, mas com um adicional: suas economias em moedas de um real que enchiam uma garrafa PET de dois litros, algo que não devia ultrapassar R$ 1.000,00. Jorge dá mais detalhes: 3 Chapeiro: aquele(a) que trabalha preparando alimentos sobre uma chapa metálica aquecida. Balconista: aquele(a) que trabalha ao balcão. Chapeiro-balconista: aquele(a) que é chapeiro e balconista.
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Ele disse: “Pô, Jorge, eu tenho esse dinheiro aqui”. Entramos em contato com o pessoal que vendia freezer. Veio um rapaz aqui que vendia balcão [frigorífico] e André comprou o freezer no nome dele. Parcelou com cheque e, no dia a dia, a gente foi lutando. Foi bem difícil. Pagamos todo mundo. A gente trabalhava bem mal, anotava as vendas em cadernos, tudo à caneta. Depois nós fomos melhorando.
Jeitinhos, criatividade e crescimento Jorge e André trabalharam muito para superar seus primeiros desafios. Seis meses já haviam se passado da abertura da lanchonete e precisavam atrair muito mais pessoas querendo lanchar, não consertar relógio. Para tanto, foi muito útil sua sagacidade explorando os limites da legalidade. Impulsionados por André e pensando no formato das duas grandes rochas dos morros da Urca e do Pão de Açúcar, que compõem um dos cartões-postais do Rio de Janeiro, fizeram o logotipo da Mega Lanche’s com um M que ficou parecido com o do logotipo do McDonald’s. Isso surtiu um efeito quase instantâneo. A venda de lanches cresceu muito, com a associação imediata que as pessoas faziam da lanchonete com a marca famosa. O logotipo foi usada por quatro meses. Foi o suficiente para se diminuir sensivelmente a confusão do ponto de venda com uma relojoaria. Apesar do avanço, o faturamento ainda não lhes parecia satisfatório. A essa altura, André já tinha tomado grande gosto pela solução de problemas de marketing e vendas. De suas conversas com Jorge e da interação com vários donos de barraca de lanche, sabia que o X-Tudo4 era normalmente campeão de vendas. Mas isso não ocorria na Mega Lanche’s, loja cuja marca, segundo André, tinha um histórico interessante, mas era em geral vista como apenas mais uma dentre tantas outras simples no mercado. Para ele, a solução seria adotar mais medidas bombásticas em relação à imagem da lanchonete e aos nomes dos lanches. Dá mais detalhes: Comecei a pegar gosto por resolver problemas, esses desafios com grandes ideias. E isso se tornou um vício. Até hoje a gente procura os problemas pra transformar em uma grande ideia, ou seja, a gente faz da dificuldade a superação. Era uma loja muito pequena que não vendia bem. Tinha o nome de um negócio que já tinha falido e não tinha cliente fidelizado. (...) Eu passei uns dois, três meses tentando ver como a gente iria resolver [o problema de vendas]. E aí a gente, com os mesmos ingredientes, puxou a alface pra fora, a mesma alface. O molho que ia dentro ficou por cima. O nome X-Tudo virou Mega (do nome da loja) 4 X-Tudo: X de cheese (queijo em inglês) e Tudo significando que o lanche tinha quase de tudo um pouco em sua montagem.
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A Copa no Rio de Janeiro: pequenos negócios, movidos a inovação, esportes e cultura Boladão (uma gíria que na comunidade dá a impressão de grande quantidade). E o sanduíche ficou bem mais robusto, mas com os mesmos ingredientes. Hoje, a gente vende três vezes mais esse sanduíche do que qualquer outro da loja. Eu já tive dias de somar todos os sanduíches e não bater a quantidade do Mega Boladão.
Uma clara divisão de funções estabeleceu-se desde o início, segundo as melhores competências de cada sócio: Jorge posicionou-se como comprador e responsável pela supervisão e pelo treinamento da mão de obra; André, como administrador, com grande foco em marketing e vendas. Segundo relatos de André, a coincidência de ter alguém do Sebrae/RJ (Serviço de Apoio à Micro e Pequenas Empresas no Estado do Rio de Janeiro) como vizinho e cliente da lanchonete foi de muita utilidade no desenvolvimento da empresa. Nilton, a quem André se mostra muito agradecido, o estimulou a buscar o apoio do órgão para seus negócios. A partir daí, no início de 2012, o microempresário começou a participar das palestras e cursos oferecidos pela entidade, o que evoluiu para o trabalho de seus consultores na lanchonete. Um dos impactos positivos do apoio da entidade destacados por André é a adoção de planilhas Excel. Elas permitiram o abandono dos antigos seis cadernos de anotações que consumiam duas horas dos sócios por dia nos controles financeiros. Com o que aprendeu a partir das atividades do Sebrae/RJ, inclusive sobre o que é ser e como ser empreendedor, André diz ter obtido mais facilidade para gerar inovações que aumentam a receita da empresa. Uma das inovações frugais determinantes para o avanço dos negócios foi o uso do Facebook a partir de 2012, segundo o que ele descreve: A gente tinha que ter um site. Mas eu não costumava abrir site. Acho site um pouco complicado e tem pouca informação. E, naquela época, estava começando a explodir a coisa do Facebook. Foi quando eu achei melhor montar uma página no Facebook. Minha esposa montou pra mim e não funcionou porque só quem mexia na página era ela. Eu percebi que eu tinha que ter um atrativo pra poder chamar atenção (...). Eu precisava fazer com que as pessoas, ao terem fome, se lembrassem da minha loja em qualquer parte da Rocinha e viessem a mim. Então comecei a trabalhar com os posts. Fazia coisas usando animações, atualidades, mas sempre na linha do humor. Eu brincava com novela, com alguns personagens de desenhos animados... e o pessoal começou a gostar. A página começou a encher [de pessoas] e a coisa evoluiu bem. Eu percebi que não conseguia trazer a Rocinha toda pra dentro da minha loja, mas eu teria uma forma de levar a minha loja até a Rocinha. Foi quando começamos a atender [pegando pedidos] pelo chat do Facebook – e acho que fomos os primeiros a fazer isso. (...) E a coisa se tornou um sucesso. Passamos a vender muito. (André)
A comunidade respondeu positivamente à inovação. Algum tempo mais tarde, o sucesso foi reconhecido pela seção Inovação e Tecnologia da revista Exame PME, que mostrou, em junho de 2014 (edição 74), a empresa como um exemplo no qual houve dobra das vendas com o uso do Facebook. Isso
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sucedeu outras matérias. Contudo, os sócios queriam mais vendas a cada avanço e André já se via sem criatividade para atrair mais clientes. No mesmo ano de 2012, o acaso trouxe a inspiração para se lançar uma nova onda de crescimento, como André relata: Foi aí que veio a ideia de um amigo meu, o Diogo Marques. Hoje a gente trabalha em parceria, ainda temos um trato de patrocínio. Ele ia fazer uma luta de MMA aqui na Rocinha e eu perguntei a ele: “Está preparado pra lutar?” Ele respondeu: “Estou pronto. Mas é muito difícil porque a gente que é amador, não tem empresa ajudando”. Ele não estava me pedindo patrocínio, estava desabafando como um amigo. E ali eu vi uma oportunidade. Ele me disse: “Por exemplo, estou precisando tomar esse suplemento aqui [mostrou uma anotação] e eu tinha que comer uma comida mais leve, mas estou do mesmo jeito, porque eu não tenho condições [recursos para isso]”. E eu: “Espere aí. O lanche mais leve eu tenho e a grana pra esse suplemento eu também tenho. Você usaria um boné da loja [em troca desse patrocínio]?” Animado, ele me respondeu: “Pô, claro. Mesmo que você não me dê algo, eu coloco, porque você é meu amigo”. Ele avançou na vida e está até fazendo faculdade agora.
Gradualmente, a Mega Lanche’s foi se tornando uma base de apoio e de promoção para esportistas amadores de diferentes modalidades. Pouco do que a microempresa oferece a eles implica em auxílio financeiro direto. Mais comumente, o apoio ocorre na oferta de uniformes a equipes para competição, participação de uma equipe da própria empresa em competições e ampla divulgação dos esportistas no Facebook. Isso dá aos atletas mais chance de projeção no esporte e o reconhecimento de muitas pessoas da comunidade, o que os anima a perseverar ainda mais nas atividades esportivas. Em seu crescente gradual, a Mega Lanche’s entrou também no caminho do apoio à realização de eventos esportivos na Rocinha ou a seus moradores para competirem fora da comunidade. Foi o que ocorreu, por exemplo, com o incentivo e a divulgação dados a muitas crianças, adolescentes e jovens da comunidade para participarem do 1o Circuito Tio Ley de Bodyboarding, ocorrido em maio de 2013 na praia de São Conrado, próxima à favela. Outro exemplo refere-se ao apoio e à divulgação do evento Favela Kombat Rocinha, realizado em março de 2013. Muitas fotos que destacam a parceria da empresa nesses e em outros eventos esportivos podem ser vistas em www.facebook.com/mega.lanches.7/photos_albums. Com a rede de relações desenvolvida pelos sócios da empresa, é comum que consigam contar com a visita de renomados atletas (de MMA, futebol etc.) à comunidade. Na ocasião, fazem aparições em eventos esportivos e/ou simplesmente passam pela lanchonete, onde dão autógrafos e posam para foto com crianças, jovens e adolescentes. Isso é previamente divulgado pelo Facebook da Mega Lanche’s e gera grande afluxo de pessoas à lanchonete.
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Com atividades desse tipo e as demais de apoio ao esporte, a empresa frutifica ainda mais sua interação mutuamente benéfica com a comunidade, o que lhe dá a chamada vantagem colaborativa5. Ao mesmo tempo em que desempenha um relevante papel social, obtém reforço de sua imagem e alimenta o crescimento de seus negócios. Em novembro de 2014, Jorge e André mostram orgulhosos dois símbolos do crescimento da empresa: o liquidificador de cerca de cinco litros de capacidade usado no início dos negócios e outro, mais novo, de 25 litros. Engana-se quem pensa que o antigo local do relojoeiro é a única instalação usada pela Mega Lanche’s. Ela conta também com dois outros locais separados. Do outro lado da rua em relação à lanchonete, à esquerda, em um corredor entre casas modestas, a microempresa tem seu escritório com cerca de 15 m2. Naquele mesmo lado da rua, mas à direita, em outro corredor entre casas muito simples, encontra-se sua espaçosa cozinha industrial, de cerca de 60 m2. Na porta da cozinha, encimada por uma grande placa com o logotipo da Mega Lanche’s, lê-se a mensagem “TEMOS VAGAS: chapeiro, suqueiro, atendente, balconista. Salário da categoria – carteira assinada no ato da admissão”.
A Mega Lanche’s nas Copas das Confederações e do Mundo Havia alguns anos, já se sabia que o Rio de Janeiro seria uma das cidades-sede das Copas respectivamente em 2013 e 2014, com jogos no estádio do Maracanã. Como no restante do país, o povo carioca esperava um aumento expressivo do número de turistas, principalmente para 2014, e se preparou para uma grande festa. Também como se viu pelo Brasil, houve na cidade grande preocupação com atrasos na finalização da infraestrutura dos jogos e para o turismo, em especial com relação ao aeroporto do Galeão. Independentemente disso, já é prática corrente no país que se faça ao menos alguma decoração ou atividade diferente nas ruas, no comércio e nas empresas em geral por ocasião desses jogos mundiais. Assim, já para a Copa das Confederações, a Mega Lanche’s usou muito verde e amarelo em sua loja. Por ocasião de um torneio de futebol na Rocinha em período próximo a essa Copa, obteve autorização dos organizadores para inserir nas laterais do campo faixas com palavras de torcida pelo 5 As organizações ou empresas que obtêm vantagem colaborativa lidam com arranjos colaborativos que vão além das transações de mercado em suas atividades. Elas tecem colaboração com o meio social ou comunidade, o que normalmente envolve uma vontade de estar em diálogo com esse meio e engajamento em seu desenvolvimento. Essas considerações vêm da publicação de Johnsen e Ennals (2012).
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Brasil, ladeadas pelas logomarcas da lanchonete e da competição internacional. No entanto, o principal trabalho de marketing com a Copa foi o uso maciço no Facebook de peças de divulgação bem humoradas e com fotos de jogadores da equipe brasileira. De todo modo, todos os esforços de ampliação e de aproveitamento do clima de festa da Copa das Confederações foram direcionados especificamente para a própria Rocinha. Não houve a intenção de atrair clientes de outras localidades. Segundo André, “a comunidade é uma área relativamente fechada, com moradores que tendem a fazer todas as suas compras ali mesmo e sem intensa circulação de pessoas de outros locais do Rio”. Por isso, o marketing para explorar o clima daquela Copa foi centrado especificamente na favela. Por outro lado, é comum que se vejam turistas estrangeiros visitando o morro. E eles foram mais numerosos na Copa do Mundo, algo que justificou o emprego de medidas especiais para o evento de 2014. Como se viu ao longo da Copa das Confederações, a Rocinha tende a receber mais turistas estrangeiros quando há eventos na cidade que os atraem. Jorge, André e sua equipe buscaram ter mais facilidade para atender grandes grupos deles depois de algumas experiências difíceis próximo à Copa do Mundo. O primeiro passo foi ter uma isca para os clientes estrangeiros. Assim, a fachada da loja foi pintada com as bandeiras dos países que lembram mais diretamente as seis línguas que André acreditava serem as mais faladas pelos estrangeiros visitantes da comunidade: Estados Unidos, Israel, Alemanha, Itália, França e Espanha. Abaixo de cada bandeira, lia-se “bem-vindo” nas respectivas línguas. A tática com as bandeiras para melhorar vendas na Copa do Mundo foi muito eficiente. No entanto, houve grande confusão nos primeiros contatos com a nova clientela por falta de entendimento de línguas estrangeiras. A solução foi, sem demora, fazer cardápios simples, com os produtos numerados e escritos nos seis idiomas. A partir daí, tudo se resolveu pelo mero entendimento de um número, referente ao produto pedido pelo cliente. Grandes grupos de estrangeiros passaram a ser comuns em frente à Mega Lanche’s, a maioria tomando açaí. Repetiu-se assim o que já se via em maio de 2014, quando grupos de turistas se reuniram para tomar açaí na Mega Lanche’s. André dá detalhes: Isso provocou um boom na loja e me ensinou a trabalhar com esses turistas. (...) A cada verão, vou fazer um trabalho em massa com o turismo pra poder pegar essa clientela. Com a Copa, a Rocinha encheu de turistas e eu vi essa oportunidade. (...) Com o turista, eu tenho um preço diferenciado porque o produto dele é diferenciado. Depois que eu trabalhei com a Copa do Mundo, eu entendo que o atrativo pro turista é o açaí.
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A Copa no Rio de Janeiro: pequenos negócios, movidos a inovação, esportes e cultura Ele come sanduíche, bebe água mineral, mas o açaí é o forte. Com a estrutura que montamos, a loja mostrou ser capaz de atender essa clientela. Assim, agora já conseguimos antecipar o pedido dos turistas, ou seja, o guia me liga e diz “estou levando 40 turistas aí daqui a pouco”. (...) O açaí do gringo é até a metade do copo e a outra metade é de frutas, porque ele quer conhecer as frutas típicas [do nosso país]. (...) E é um produto que eu não vendo aos moradores daqui, porque precisa ter um preço mais elevado, (...) cerca de 50% mais caro.
As vendas a grupos de estrangeiros ocorrem durante o dia, quando passam em visita turística pela Rocinha. Não por acaso, o recorde de vendas da loja no período da manhã foi batido durante a Copa. As vendas à comunidade feitas na lanchonete são mais comuns à noite. Assim, poucas vezes o atendimento aos estrangeiros dificulta o trabalho dirigido ao cliente local. Além da venda programada com a chamada telefônica dos guias turísticos, outra iniciativa que emergiu no início do intenso trabalho provocado pela Copa do Mundo foi a colocação de uma TV na lanchonete combinada ao sorteio de cornetas e camisetas da Copa. Mais clientes permaneciam no local e também consumiam durante e após os jogos por poderem assisti-los ali mesmo. Daí derivou-se a prática de também atrair mais clientes para assistir lutas de MMA, principalmente quando são de lutadores apoiados pela lanchonete. Divulgados pelo Facebook, os momentos de grande concentração de clientes ajudam a frutificar ainda mais os esforços de marketing. Outra iniciativa da empresa foi relativa à minicopa realizada na Rocinha com equipes portando o nome de cada país da verdadeira Copa do Mundo e segundo uma tabela de jogos que imitava as primeiras fases desta. A Mega Lanche’s apoiou a realização do evento e teve até mesmo sua própria equipe, que jogou com o nome da Holanda e terminou o campeonato em segundo lugar. Como sempre, nessa situação de apoio, proliferaram no local dos jogos camisas e bonés com o logotipo da lanchonete. Os aprendizados gerados com as Copas foram importantes legados para a equipe da Mega Lanche’s e para a comunidade, que já pensam nas Olimpíadas de 2016. André acredita que serão muitos clientes mais, já que o evento ocorrerá todo na cidade do Rio, diferentemente das Copas.
Na casa de máquinas, fazendo os negócios funcionar Jorge assegura o funcionamento da empresa no dia a dia com o acompanhamento de perto das atividades dos funcionários e principal-
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mente com as atividades de compra e de gestão financeira. Enquanto André se concentra em pensar e agir quanto a novas formas de melhorar os resultados, com iniciativas estratégicas muito apoiadas em marketing e relações públicas, ele cuida das atividades operacionais diárias. Discreto, muitos acreditam que Jorge é um gerente, não sócio na empresa. Sua disposição para trabalhar é algo que impressiona. Questionado sobre seu modo de atuar, é rápido na resposta: “Estou dentro, a qualquer hora! Não tem tempo ruim [pra mim]!” Com o mesmo ânimo com que diz isso, descreve seu dia típico de trabalho: Minha rotina é assim: eu venho pra loja umas 7, 8 horas da manhã; vou à lanchonete e faço o caixa do dia anterior, vejo o que está faltando, vejo as mercadorias que têm na loja; vou à cozinha ver as mercadorias que temos, pra saber o que repor; converso com a funcionária da cozinha e venho pra cá, pro escritório; faço a contabilidade, conto o dinheiro, separo dele o que precisamos para pagar e para reservar; daqui, eu ligo pro André se for preciso, antes de sair pro Ceasa [“feira por atacado” – Centro Estadual de Abastecimento] por volta das 9 horas (nesse horário, o trânsito fica melhor aqui na Lagoa); (…) estou de volta 1h30, 2 horas da tarde (se o trânsito estiver livre, levo uns 40 ou 50 minutinhos de lá pra cá); peço a um funcionário pra descarregar o carro; vou à cozinha falar com as funcionárias e vou à loja ver se está tudo certo; almoço por volta das 15h; depois, fico pra lá e pra cá entre cozinha e lanchonete, acompanhando o movimento; vou ao contador quando tem algo a resolver com ele. Vou quase todos os dias ao Ceasa. Não tem dia específico, vou dependendo da necessidade da lanchonete.
Os sócios confiam na forte parceria de trabalho que têm. Jorge afirma com ênfase seu reconhecimento de que as iniciativas que seu sócio toma para ampliar as vendas têm sido positivas para os negócios. Por sua vez, André dá regularmente provas de segurança quanto ao desempenho e o comprometimento de Jorge. As competências e atividades de ambos são complementares. Por esses motivos, dão grande liberdade de trabalho um ao outro para desempenharem suas funções, sem verem como frequentemente necessário dar sugestões um ao outro ou debaterem o que deve ser feito. Isso não significa que deixam de manter um ao outro bem informado sobre o que querem fazer e como fazer. Nessa interação contínua, qualquer informação relevante ou necessidade de ajuste é comunicada e tratada sem demora. No fim de 2014, a Mega Lanche’s empregava 12 pessoas, número que chegaria a 20 em fevereiro de 2015. Uma das peculiaridades que fazem com que um negócio aparentemente tão pequeno tenha tantos empregados é o fato de a loja ficar aberta e operando 24 horas por dia. Esse modo de trabalhar foi consequência de uma pequena dificuldade técnica: os dirigentes não conseguiram encontrar e comprar um balcão frigorífico com
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medidas adequadas para que coubesse na loja e esta pudesse ser fechada à noite. Outra peculiaridade é o trabalho intenso de cozinha, necessário para o atendimento dos clientes que pedem pelo Facebook ou por telefone. De todo o pessoal da empresa, apenas três mulheres têm trabalho em posto fixo, fazendo bolos e doces. Para os demais, os postos e horários são rotativos, intercalando atividades tanto na loja quanto na cozinha. É um modo de não sobrecarregar qualquer dos colaboradores e de preservar a motivação deles no trabalho. Rian, o gerente, é um colaborador-chave do pessoal da Mega Lanche’s. Faz o acompanhamento mais próximo do trabalho dos demais de modo a dar tranquilidade aos dirigentes quanto aos pormenores operacionais. André é só elogios quanto ao gerente: Ele é quase como um dono aqui. Tudo que vamos fazer ou que queremos mudar, tem a opinião dele. (...) É um dos motivos da Mega Lanche’s ser o que é. (...) Ele vai fazer dois anos conosco. O atendimento dele é diferenciado. Ele respira a loja [o tempo todo], acorda pensando na loja.
A postura dos sócios quanto às relações com os colaboradores é de proximidade e cordialidade, sendo um dos pontos altos da descontração com eles a festa de confraternização do fim de cada ano. Com facilidade, percebem as mudanças de humor do pessoal e buscam ajudá-lo no que for possível diante de problemas familiares ou outros. Procuram remunerá-lo além do básico da categoria se veem mérito na equipe. A prática simples de fazer provisões financeiras, muito negligenciada nas pequenas empresas brasileiras, mostra-se importante para dar sossego aos dirigentes quanto à cobertura dos custos previstos para cada mês, mesmo que elevados. As vendas durante a Copa do Mundo foram fundamentais para oferecer à empresa um maior capital de giro, que se renova continuamente e facilita as provisões. Cada dia é dia de reservar um pouco de recurso para que tudo seja pago sem atraso e dificuldade. Bem-humorado, Jorge diz: “Se o mundo acabar hoje e Deus disser que só entra no céu quem estiver com as contas em dia, não teremos problema”.
Visões e ações para o futuro Jorge vê grande potencial de aperfeiçoamento das operações da Mega Lanche’s com investimento na obtenção de mais espaço, principalmente da loja e do carro para fazer as compras, e de equipamentos mais modernos.
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Por isso, considera a conquista de mais recurso financeiro um elementochave para o futuro próximo dos negócios. Tais investimentos diminuiriam qualquer limitação de produção e de atendimento que refreie a pulsão de crescimento característica em André. Entre outras oportunidades visadas, as Olimpíadas se aproximam com a promessa de ótimas vendas. André acredita ser importante dobrar o número atual de dois projetos de apoio a equipes infantis de esporte e também ampliar a variedade de esportes para contato e benefício mútuos com atletas para levar à comunidade mais interesse por modalidades olímpicas. Contudo, seu plano mais ousado é a criação de uma rede de franquias, que ele acredita que seria facilitado se fizesse um curso superior em Administração. Mostra-se otimista: Em mais uns três anos, a gente iniciará dois tipos de franquia: um para shopping e locais de praia e outro para comunidades pacificadas. Para cada tipo, serão duas variações: loja grande e loja pequena.
A primeira iniciativa nessa direção é o registro da marca da lanchonete no INPI (Instituto Nacional de Propriedade Industrial), o que já está em conclusão com auxílio do Sebrae/RJ. De saída, alguns desafios já se mostram e deverão tomar muito do tempo dos dirigentes nos próximos anos. Poderá a Mega Lanche’s oferecer produtos e preços padronizados para públicos de perfis tão diferentes, inclusive quanto à renda? Se esse não for o caminho escolhido, diferenças de preço e/ou de produto em locais de uma mesma cidade como o Rio de Janeiro não provocarão insatisfação nos clientes? Para assegurar uniformidade dos produtos de diferentes pontos de venda, a empresa conseguirá fazer bem a transição para o nível tecnológico e profissional da produção industrial e da distribuição centralizadas? Se não houver centralização desses processos, será possível assegurar um nível uniforme de qualidade nos diferentes pontos de venda? Dado que a atuação da empresa e suas estratégias de crescimento são cultural e socialmente enraizadas na comunidade da Rocinha, será possível atuar de modo similar em outras localidades? Será a empresa alvo de preconceito em relação a suas origens quando do esforço de instalar novas lojas fora de comunidades pacificadas? Outro desafio é a precária segurança da Rocinha, como se lê em notícias de jornal sobre a comunidade. Após a instalação da Unidade de Polícia Pacificadora – UPP em novembro de 2011, o morro deixou de ter dono. Em outras palavras, ele não tem mais uma cúpula do crime que dirige atividades de tráfico e impõe a “lei do sossego”. Passaram a ocorrer roubos, assaltos, estupros e outros crimes com certa frequência na comu-
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nidade, visto que a polícia não está presente em todos os espaços críticos da localidade e assim não consegue coibir completamente o crime. Não é raro que se vejam nos jornais notícias sobre confrontos armados ali entre polícia e bandido. Os criminosos agora atuam cada um por si, sem comando de um só dono do morro, enfrentando policiais quando julgam necessário. Os riscos de morte de moradores com balas perdidas parecem mais altos. A segurança da comunidade é até tema de graves escândalos. Isso se viu claramente com a incriminação de policiais da UPP da Rocinha por tortura e sumiço do morador e ajudante de pedreiro Amarildo de Souza, em 2013 – uma curiosidade é que seu filho é um praticante de luta e de futebol patrocinado pela Mega Lanche’s. Para enfrentar esses e outros desafios, a visão dos dirigentes ganhou mais fonte de inspiração e de referência para se aperfeiçoar com uma nova oportunidade oferecida à Mega Lanche’s pelo Sebrae/RJ. A instituição proporcionou aos dirigentes da empresa, como fez também com outros empreendedores promissores, o convívio e a troca de experiências com um dirigente de negócios de grande sucesso no mesmo setor de atividade. No segundo semestre de 2014, a Mega Lanche’s recebeu a visita do diretor executivo da franquia Megamatte (115 lojas), Julio Monteiro, e André pôde visitar essa empresa em seguida, ciceroneado por Julio. A interação entre “os dois Megas” e muitas imagens da Mega Lanche’s são apresentadas no Youtube, num vídeo concebido pelo Sebrae. Para vê-lo: www.youtube.com/watch?v=FCjqB_1IgF86. Contudo, apesar dos avanços feitos até agora, muito resta a se definir para o futuro da Mega Lanche’s, inclusive quanto a dificuldades ainda inimagináveis que enfrentará e ao sucesso que pode estar a sua espera. Que futuro terão, dentro e fora da Rocinha, a empresa e seus esforços de crescimento?
6 Quando da realização de um vídeo anterior sobre microempreendedores individuais também pelo mesmo órgão de apoio a pequenas empresas, em 2013, André pôde conhecer Rosiley, funcionária do Sebrae Nacional, que se deslocou de Brasília ao Rio para tratar da produção do vídeo. Na ocasião, ela insistiu que ele estivesse nas imagens falando de seus negócios. André diz não se esquecer de um dos momentos de conversa com ela, em que o olhou firmemente nos olhos dizendo que ele e a Mega Lanche’s tinham um grande potencial, devendo assim seguir em frente, trabalhando com confiança e afinco, para explorá-lo o melhor possível. Segundo ele, esse momento foi um grande impulso por ter ouvido de uma pessoa tão distinta algo que nem ele mesmo tinha ainda visto em si e na empresa.
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Marcelo Rocha realiza o sonho da família e funda a Padaria Caliel
Foto: divulgação
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CASO 2
CALIEL: PADARIA, FAMÍLIA E CULTURA NUM SÓ ESPAÇO, NO MORRO DO SALGUEIRO
Q
uando se fala no morro do Salgueiro, muitos pensam imediatamente em samba. Afinal, ele é berço da Acadêmicos do Salgueiro, uma das mais tradicionais escolas de samba do Rio de Janeiro. Mas a comunidade de cerca de 5 mil habitantes é muito mais do que isso. Culturalmente rica e variada, é uma das regiões de ocupação originalmente precária na cidade que mais claramente teve início com o povoamento de ex-escravos a partir do início do século XX. Portanto, as manifestações culturais afro-brasileiras são fortes na localidade, principalmente quando se trata do Caxambu do Salgueiro, grupo da dança folclórica chamada caxambu ou jongo. O Caxambu tem espaço de encontro e de dança já cativo na Padaria Caliel, promotora de diferentes eventos culturais na favela, como um sarau mensal de poesias. Sim, trata-se de uma microempresa rara. Além de ser um negócio de rápida ascensão, é uma padaria de amplo enraizamento na cultura comunitária, cujas manifestações apoia continuamente. O negócio, que tem no logotipo o desenho de sua primeira batedeira com uma asa do anjo Caliel, beneficia-se de considerável atenção da mídia. É tema frequente nos jornais ou mesmo revistas cariocas, principalmente na divulgação de exemplos de revitalização dos bairros ou de boa comida e eventos culturais de estabelecimentos das favelas pacificadas1. Observando-se tamanha projeção da microempresa, contudo, não se podem imaginar os desafios enfrentados pelas pessoas que a fundaram. O presente caso de ensino trata desses desafios e descreve a trajetória da Padaria Caliel e de seus dirigentes, evidenciando uma forma de empreendedorismo que se nutre, entre outros aspectos, de intensa atividade social e de apoio à cultura local. Essa implicação sociocultural gera vantagem colaborativa2 para a empresa e constitui um exemplo de facilitador para o empreendedorismo e a 1 Pacificação: enfrentamento e expulsão (às vezes envolvendo mortes e prisões) das forças do crime organizado de um território, principalmente do tráfico de drogas, para sua ocupação por forças policiais e pelas autoridades legalmente constituídas, possibilitando mais oferta de projetos sociais e serviços públicos. 2 A obtenção de vantagem colaborativa depende de arranjos colaborativos que vão além das transações de mercado e do interesse no lucro. Origina-se da colaboração com o meio social ou comunidade, o que envolve uma vontade de estar em diálogo com esse meio e o engajamento em seu desenvolvimento (ver Johnsen e Ennals, 2012).
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gestão de micro e pequenas empresas em contexto adverso, como se pode ver em regiões violentas e carentes de desenvolvimento socioeconômico. A padaria se localiza a poucos quilômetros do estádio do Maracanã e contou com iniciativas de seus dirigentes para impulsionar os negócios ao longo de dois megaeventos que usaram o estádio: a Copa das Confederações, em 2013, e a Copa do Mundo, em 2014. Por isso, o caso também coloca em destaque como os negócios foram influenciados por essas Copas.
Gradualismo e trabalho contínuos: da extrema dificuldade aos negócios em família Na pacata cidade de São Pedro dos Ferros (MG), Adão Serafim da Rocha começa a trabalhar cedo, com 10 anos de idade. Oitavo irmão a nascer de um total de 12, ajuda a família no plantio de arroz, feijão, milho e outros alimentos em suas próprias terras. A partir da mesma idade e até seus 16 anos, também trabalha próximo a sua casa para uma empresa, no plantio e no trato de eucaliptos. Um pouco antes dos 18 anos, perde o pai em um assassinato. Além da consternação, sua família sofre com o agravamento de sua modesta condição de vida. A saúde começa a lhe faltar, devido ao trabalho árduo e à sua alimentação precária. Em 1971, com 19 anos, chega ao estado de anemia aguda e vê-se obrigado a se mudar para o Rio de Janeiro e ser internado no Hospital Souza Aguiar. Na nova cidade, pode contar com o apoio da mãe e de três irmãs que lá já vivem há alguns anos, empregadas como domésticas. Foi o jeito que acharam para escapar à vida dura e às graves privações que enfrentavam em suas terras mineiras. Adão passa sete difíceis meses de sua vida no Souza Aguiar. Sem obter a devida recuperação, é internado em sequência em outras casas de saúde ou hospitais: Santa Terezinha, Ambulatório São Francisco Xavier, Casa de Saúde Grajaú... Lembra-se claramente dos quase três anos de sofrimento e internações. Casado em tenra idade antes de ir para o Rio de Janeiro, seu matrimônio não resiste a tal provação ao final de três anos, mesmo com a mudança da esposa para ficar próximo a ele. Não querendo ficar só, conhece sem demora aquela que seria a mãe de seus filhos. Inicia uma união estável com Nilce em 1972, já assumindo como filha uma menina de menos de 1 ano de sua companheira. Enfim recuperado, em 1973, vai trabalhar como faxineiro em uma empresa de terraplenagem e engenharia. De lá, ainda nesse ano, emprega-se como faxineiro em uma empresa de serviços terceirizados de limpeza, como já faz Nilce. Executa seu trabalho em várias empresas clientes de seu empregador. Em uma delas, uma seguradora, gostam tanto de seus serviços que o contratam em 1975 para fazê-los de modo contínuo nas instalações de sua repartição gráfica.
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Suas várias carteiras de trabalho – os apontamentos dos empregos ao longo dos anos não couberam em apenas uma ou duas – indicam que, em março de 1979, transfere-se para o Supermercado Nova Olinda. Assim, seus empregos se repetem no bairro do Andaraí ou proximidades, a cerca de três quilômetros a pé de sua moradia localizada no morro do Salgueiro. Rapidamente assume no supermercado uma função no balcão de venda de frios, até agosto de 1981. A vida o leva lentamente àquilo que seria sua grande paixão, mas já estava a sua volta nas atividades de complementação de renda de três irmãs, quituteiras nas horas vagas: a produção e a comercialização de alimentos. Em novembro de 1982, começa na Padaria Francesa (rua Barão de Mesquita, 821, bairro do Andaraí) o seu emprego mais longo, de 20 anos. Conquista o trabalho por influência de uma de suas irmãs, que é doméstica na casa de um dos dois sócios do negócio. Uma curiosidade é que nenhum dos sócios é francês. Um é português e o outro, brasileiro. Na padaria, inicia como ajudante de mesa, vira forneiro e, depois, ganha mais autonomia aprendendo a preparar todo tipo de produto de panificação. Adão descreve seu aprendizado: Lá, eu fazia todo o tipo de pão... francês, careca, doce, pra hot-dog, hambúrguer... Tinha o confeiteiro que fazia bolos. Eu ajudava nisso também, aprendi a fazer [coisas de confeitaria]. E lá eles [os sócios] davam liberdade pra gente trabalhar, fazer o que quisesse.
Em paralelo ao seu trabalho regular, a partir de 1991, Adão produz artigos de panificação e confeitaria para vender no Salgueiro com a ajuda dos filhos. Mostra assim ter o espírito aguerrido de um trabalhador incansável. Frequentemente, vai até 1h30 da madrugada fazendo seus produtos, mas tendo que iniciar às 6h sua jornada diária na Padaria Francesa. O emprego muitas vezes lhe toma mais de oito horas de labor diário, não sendo rara a dobra de turno devido ao absenteísmo ocasional do padeiro da noite. A vida de Adão e de sua família é simples e difícil. Contudo, tem muitas felicidades. São algumas a união com Nilce, que é formalizada como casamento em 2008, e a presença em casa da filha Sandra Rocha e dos filhos Marcelo Rocha, nascido em 1979, e Alessandro Rocha, quatro anos mais novo. Estar com os filhos tem um sentido muito especial para o casal, principalmente depois da perda de sete outros filhos no parto ou pouco tempo após. No ano de 2015, em retrospecto, Adão diria que o emprego era sua maior fonte de rendimentos, já que “[a venda no morro] era coisa de criança, uma diversão pra eles [que os vendiam pela localidade], não tinha aquela responsabilidade...”. Isso revela que a paixão de Adão vai além de produzir e vender pães
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e doces e do sonho que já acalenta de ter uma padaria em família. Sua paixão inclui a preparação dos filhos para a vida e para o trabalho. A dimensão lúdica dessa preparação, não exatamente prevista e programada por Adão, faz com que as tarefas das crianças e adolescentes sejam descontraídas e prazerosas. Isso contribui para que Marcelo desenvolva uma atitude positiva em relação ao trabalho em geral e, mais especificamente, às atividades da família para manter a birosca criada por Adão em 1995. Nela, além de produtos de panificação e de confeitaria, a família vende bebidas e artigos de mercearia. O filho dá detalhes das brincadeiras que se combinavam com o trabalho sério: Era muito louco porque a gente vendia e brincava também, né? A gente era criança, e criança quer brincar. Mas também tinha a responsabilidade de chegar em casa e prestar contas [das vendas – quanto vendeu e quanto recebeu pelas vendas] (...). A gente tinha essa responsabilidade, desde criança, mas se revezava [nas vendas] para brincar de pique; tinha os parceiros, jogo de carta... Tinha também competição de quem vendia os pães mais rápido – e não era só entre irmãos, era com primos também, amigos de infância... Era um grupinho, tanto que se você perguntar aí, na comunidade, eles conhecem a minha história; sabem que, hoje em dia, a gente tem essa padaria aqui e que não é só pelo simples fato do morro estar pacificado. Tem um histórico empreendedor na família, entendeu? É um sonho que está sendo realizado.
Em 1999, com melhor condição financeira, a família muda-se para um terreno maior na comunidade. Para facilitar o preparo das massas de panificação e de confeitaria, Adão adquire uma batedeira de segunda mão. Obtém o equipamento com o prestador de serviços de manutenção da Padaria Francesa, cujo negócio inclui compra, reforma e revenda de maquinário. Mesmo não sendo uma batedeira grande, marca a transição das operações artesanais para um processo menos manual. Por compartilhamento contínuo e progressivo com a família, o que era um sonho inicialmente apenas do pai passa a ser uma visão (ou visão estratégica, como alguns dizem) da família. Foi desenvolvida a clareza de como todos queriam que fosse, em detalhe, a futura padaria, quais seriam os produtos e como seriam produzidos, quem trabalharia no negócio, quem seriam os clientes e como poderiam ser atendidos. O crescimento dos filhos e a melhoria financeira da família abrem novas possibilidades rumo à realização da visão. Tal avanço ocorre de modo gradual na família de pouca escolaridade e modestos salários. As restrições de sua vida humilde amenizam-se com o lento acúmulo de pequenos ganhos, contatos e conhecimentos adquiridos no emprego de Adão e na birosca. O aprendizado e a rede de relação mostram-se de grande utilidade para se evitarem riscos desnecessários e erros nos negócios – em especial nos que teriam maior dimensão sob a liderança de Marcelo no futuro.
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Alessandro é o que mais ajuda no pequeno comércio, pois não frequenta a escola, abandonada antes de completar o primeiro grau, contrariando os pais. Adão diz que o filho repete muitos casos da vizinhança: “É a realidade da comunidade; as crianças estudam pouco e aqueles que não gostam de estudo acabam se espelhando no exemplo que não devem”. Espelhando-se também em outros casos comuns em um contexto pobre e altamente criminalizado, Alessandro envolve-se com pessoas do tráfico de drogas. Desaparecido a partir de 2012, circula no morro a informação de que foi executado por determinação de um tribunal do crime local. É no que a família acredita. Com o fechamento da Padaria Francesa do Andaraí, em 2003, Adão é contratado pelo filho de um dos seus ex-patrões em outra padaria, dessa vez no complexo de favelas do Alemão. Isso marca sua memória, pois ocorre pouco tempo após a morte do jornalista investigativo Tim Lopes, no Alemão, por ação do tráfico. O fato recebe ampla e prolongada cobertura da mídia nacional. O novo emprego dura pouco, pois a empresa vai à falência em pouco tempo. Já com mais de 50 anos, seu próximo emprego impressiona pelo grande esforço braçal que exige. Adão volta a trabalhar no mesmo endereço da Rua Barão de Mesquita quando ali já funciona uma madeireira. Valente para se manter sempre empregado, afirma: “Onde surgia uma vaga [de emprego], eu estava encarando. Não tinha desse negócio [de moleza], não! (...) Aí, nessa madeireira, eu trabalhei seis, quase sete anos. Ali o serviço era pesado”. Para chegar à aposentadoria pelo INSS em 2014, ainda trabalha como porteiro em um prédio do Andaraí por três anos e, enfim, deixa de lado a vida de empregado. No entanto, mantém-se sempre como padeiro ao lado da família, atividade em que tem a ajuda da esposa desde que esta se desligou em 2009 da empresa de limpeza – ela aposenta-se por idade em 2015. A grande diferença é que, por iniciativa de Marcelo, a família transforma a birosca na sonhada padaria, que é aberta no início de 2013.
Criação e rápido desenvolvimento de um negócio sonhado em família Marcelo dá passos importantes que contribuem para a transformação do sonho em visão compartilhada em família e, depois, na realização da visão. De 2004 a 2012, ele trabalha no Rio de Janeiro como auditor-assiste interno em uma grande rede de lojas de vestuário para a classe média. Seus interesses e conhecimentos em administração de empresas crescem no emprego. Reforçando esse aprendizado, faz o curso de Administração da Unisuam (Centro Universitário
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Augusto Motta), no bairro de Bonsucesso, com uma bolsa de estudo de 70% obtida com o apoio de uma ONG. Ele apresenta algumas de suas motivações para ter um emprego e estudar: Da maneira que estava o nosso [negócio], não tinha muito jeito. Era uma birosca (...) e eu queria algo mais, trabalhar num lugar em que eu pudesse juntar um dinheiro, que pudesse somar com o que [a gente] já tinha aqui, pudesse juntar com o do meu pai, pra poder aumentar aquele montante e realizar nosso sonho – e ter novas experiências também. Esse período [no emprego e na faculdade] foi ótimo, eu conheci novas pessoas. Essa empresa [que me empregou] me ajudou também a pagar a parte [das mensalidades] da faculdade que a bolsa não cobria.
Forma-se em 2011. Não cabe em si de felicidade, pois enfrentou muitas dificuldades antes de chegar a essa realização. Fez o segundo grau em curso supletivo, pois tinha parado de estudar para ajudar a família. Dentre seus muitos conhecidos de infância da comunidade pobre do Salgueiro, apenas um formou-se como ele. Chegado o ano de 2012, Marcelo está decidido a fundar uma padaria para voltar a trabalhar com os pais. Para tanto, conta com o apoio de três amigos, que lhe emprestam 35% do capital necessário, e da família, que participa com 10%. Não diferencia a família de si mesmo na criação do negócio, afirmando que “o alinhamento que existe entre nós [pai, mãe e eu] é tão forte, que é uma coisa só; transcende essa questão do papel [qualquer formalidade] – essa santíssima trindade está dando certo”. No mais, além de 40% em economias pessoais, 15% dos recursos vêm de um empréstimo bancário feito em seu próprio nome e que deve ter suas últimas parcelas liquidadas no início de 2016. Isso totaliza os 100% de recursos para a troca da birosca por uma padaria nova. Após oito meses de obras, por fim, 20 de janeiro de 2013 é o dia de abertura da padaria nomeada Caliel e, não por acaso, o dia comemorativo de São Sebastião (ou Oxóssi na Umbanda). Esse é o padroeiro da cidade do Rio e do morro do Salgueiro. Com a procissão do santo que passa pela porta da nova empresa, a família é agraciada com uma breve parada do padre e dos fiéis para uma bênção de inauguração. Marcelo fala sobre as mudanças ocorridas: Foi uma mudança brusca, né? O negócio ficou fechado durante oito meses pra essa reforma. Então, compramos maquinário novo; a masseira não é mais aquela ali [não é mais a primeira batedeira]. A antiga está só de exposição [na entrada da loja]. Eu tenho masseiras novas, tenho forno. O forno não é mais a gás. O forno é elétrico agora, dentro das normas técnicas exigidas. Todo o maquinário é novo. Queremos, além de [atender à comunidade], receber clientes de fora [do morro], pra mostrar um pouco da nossa cultura. (…) O Salgueiro não é só samba, tem N manifestações culturais.
O processo de pacificação da comunidade tem um papel relevante para o novo negócio, pois Marcelo diz que não faria o investimento nele sem o aumento de po-
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tencial de crescimento oferecido pela pacificação. Tal processo dá mais tranquilidade a pessoas de outros locais para visitarem o Salgueiro. Aos que são da comunidade, dá mais segurança de que não haverá, pelas ruas, criminoso ostentando armas ou confrontos armados e balas perdidas. Em momentos de conflito armado nas favelas, as empresas locais têm suas portas fechadas para se evitar perdas materiais e de vidas. Portanto, há grande impacto negativo da violência sobre os negócios nessas localidades. Para Marcelo, um dos principais ganhos da comunidade e de seu negócio com a pacificação foi que ali se recuperou o direito de ir e vir. Com oito meses de operação, o novo negócio chega ao ponto de equilíbrio financeiro, ou seja, seu faturamento se iguala ao total de seus custos. A partir daí, como o faturamento continua a crescer, começa a ser possível a obtenção de lucro. Um dos amigos financiadores do negócio é Emerson Menezes, fonte de 20% dos recursos usados na construção e na fundação da padaria. Contudo, dada sua grande proximidade com a família e mais com Marcelo, ele se envolve pouco a pouco na administração da empresa. É sua primeira experiência desse tipo. Um dos benefícios do envolvimento de Emerson na gestão do negócio é que o interesse e o trabalho qualificado do jornalista e organizador de movimentos e programas sociais são aproveitados em prol do desenvolvimento da microempresa. Uma das atividades que mais atraem a mídia e geram publicidade para a Caliel teve seu embrião concebido no contato com uma das muitas pessoas que Emerson acrescentou à rede de relação de Marcelo e sua família. No dia da inauguração, em janeiro de 2013, uma amiga e ativista social, Denise Santos, instiga os dois amigos a fazerem regularmente na padaria um sarau de poesias, que seria chamado de Quintas Poéticas. O evento é iniciado em maio de 2013 e passa a ocorrer na terceira quinta-feira de cada mês. Já homenageou alguns compositores de samba do Salgueiro (a homenagem ao fundador da escola de samba, Djalma Sabiá, atraiu muitos jornalistas e público), colocou em evidência a inspiração de crianças, adolescentes e outras pessoas da comunidade, mas, mais frequentemente, tem colocado em foco o trabalho de reconhecidos escritores brasileiros. Ainda em 2013, ao lado de sonhos, pães variados e quitutes, dentre outras delícias, o almoço passa a ser mais um atrativo a impulsionar o negócio, tendo a costela ao bafo como grande destaque. É também mais um objeto de divulgação e matérias de jornais, como se vê no caderno Guia das Comunidades, do jornal O Dia3. São quatro ou cinco pratos comerciais diferentes por dia, capitaneados pelo prato do dia. Por exemplo, esse prato é feijoada na sexta-feira e costela no bafo no sábado; em outro dia, há também frango com quiabo. Marcelo dá mais detalhes sobre o cardápio: 3h ttp://blogs.odia.ig.com.br/guia-das-comunidades/category/comer-beber/, visitado em fev/2015
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Além do prato do dia, temos todo dia filé de peixe, omelete (pode ser de bacalhau, de queijo ou de presunto). (...) Eu sempre coloco o cardápio na porta. Então, quando o cliente chega, lê esse cardápio ou chega e nos pergunta. Se quiser algo que não tá no cardápio, a gente faz, se estiver ao nosso alcance: uma farofa diferenciada... sei lá... Eu tenho sempre linguiça de Minas; pode ser uma porção de linguiça de Minas, que eu divulgo bastante.
O almoço atrai um público heterogêneo. Este varia do mais simples morador do morro, passando por oficiais e outros policiais da UPP instalada na comunidade, a pessoas de confortável condição social, como turistas e visitantes de outros bairros do Rio. Os horários de refeição são momentos de eclético convívio social entre pessoas de diferentes raças, credos, origens e idades. Aumentam a variedade dos frequentadores as atividades culturais e de apoio à cultura, como as Quintas Poéticas e os encontros do Caxambu do Salgueiro. Ela se eleva ainda mais com o entra e sai de crianças e adolescentes atraídos pelo balcão de livros e gibis do projeto Troca-Troca de Livros, que tem a padaria como uma base no Salgueiro. Esse é um projeto da prefeitura da cidade realizado em diferentes bairros e estabelecimentos.
Dois futuros sócios construindo um melhor amanhã O ambiente de violência é uma forte característica do morro antes da pacificação. Marcelo o enfrenta desde a sua infância, encontrando nele uma imponente barreira para seu desenvolvimento como pessoa. O mesmo ocorre com muitos mais a sua volta. Já aos 8 anos de idade, tem um dos seus maiores traumas impostos pela violência urbana. Saindo da Escola Municipal Bombeiro Geraldo Dias – uma das joias do Salgueiro, por ser um belo prédio histórico com fachada restaurada – no fim de uma de suas tardes de aula, ele e seus colegas deparam com o corpo de um bandido estendido no chão. É um dos resultados da ação da polícia no alto da favela, quando ainda tem a prática de descer com os corpos de criminosos e deixá-los no pé do morro para posterior remoção. Tempos depois, um amigo de infância envolvido com o tráfico de drogas é morto em conflito também com a polícia na porta de sua casa. Marcelo nem a família puderam interceder em seu favor, apenas testemunham o resultado fatídico e fazem a limpeza do local após a retirada do corpo. Antes da pacificação, ocorrida em setembro de 2010, os momentos mais perigosos para os moradores da comunidade são justamente aqueles em que nela há incursão da polícia contra traficantes. Fora tal situação, as regras desses criminosos impõem certa tranquilidade, pois proíbem furtos, roubos e outras agressões contra moradores em sua localidade. Também é um momento de alto risco para os moradores quando uma
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facção criminosa de fora invade a área para se apoderar da base do tráfico local. O Salgueiro é palco desse tipo de acontecimento principalmente nos anos 1990. Com consternação e tristeza, Marcelo lamenta esses problemas: Imagine você crescer nessa realidade... Sem falar que dezenas de amigos meus foram mortos ou presos. Poucos aqui são os que conseguiram concluir o segundo grau. Faculdade, eu acho que tem [pouca gente que fez]. Que eu conheça, tem duas pessoas: eu e mais um amigo meu [professor de artes plásticas em uma escola municipal].
Ao longo dos anos, a família Rocha sofre ao lado de Marcelo a perda de muitos conhecidos e amigos, além daquela de pessoas da própria família, levadas por problemas de saúde ou também pela violência. A partir dos 12 anos de idade, Marcelo sai pelo morro ou proximidades para vender pães, doces, salgados ou para simplesmente entregar encomendas desses produtos preparadas por seus pais. A atividade paralela aos estudos dura de 1991 a 2003, quando começa a trabalhar como auditor-assistente interno. Para terminar o primeiro grau, ingressa na escola Euclides de Figueiredo, localizada na praça Sáenz Peña, Tijuca. Deve se deslocar até o pé do morro, pois sua escola anterior oferece apenas educação infantil e ensino fundamental. Em seguida, deixa de estudar para ajudar os pais. O segundo grau é realizado mais tarde por supletivo, o que o habilita a buscar a educação superior. Estudante de rendimento médio, ele é do tipo reservado – meio mineiro, diria ele –, mas faz alguns amigos em cada nível de estudo. Já formado em Administração e munido das experiências que o emprego lhe deu, sente-se pronto para conduzir a realização do sonho da família. Dentre aqueles que lhe fazem empréstimos pessoais para tal projeto, Emerson é o único a se tornar seu sócio, além de ajudá-lo na administração. Os dois se conhecem desde 2006, quando foram apresentados entre uma cerveja e outra em um bar por amigos em comum, num grupo de pessoas interessadas em atividades sociais e culturais. Nascido em 1972, Emerson é originário do subúrbio de Irajá, mas está muito frequentemente presente no Salgueiro a partir de 2011, motivado inicialmente pela amizade com a família Rocha. É graduado de 2010 em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela Facha (Faculdades Integradas Hélio Alonso). O histórico de Emerson é muito diferente do de Marcelo. Em sua infância, aproveita as horas fora da escola para brincar com primos, vizinhos e seu irmão, uma pessoa especial devido a problemas psíquicos. A rica convivência com o irmão ensina-lhe, entre outras coisas, a estar atento ao próximo e ter a mão estendida a ele. Começa a estagiar no Centro de Pesquisa da Petrobras – Cenpes aos 17 anos de idade, assim que conclui um curso técnico em química na Escola Técnica
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Rezende-Rammel. Após o estágio, é contratado sucessivamente por empresas de terceirização de serviços e, por meio delas, soma 18 anos (estágio incluído) de atividades no centro de pesquisa. Lá, trabalha em projetos variados, sobre temas como biotecnologia, tratamentos ambientais, utilização de materiais lignocelulósicos e obtenção de etanol e biomassas para geração de energias renováveis. Em 2006, com 34 anos, inicia a realização do grande desejo de fazer um curso superior. Em 2009, estagia na Superintendência de Políticas Públicas para a Juventude da Secretaria Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos. Naquele mesmo ano, precisa substituir uma gerente, que é afastada de suas funções. É nomeado para o posto dela, exercendo a função de assessor de comunicação por quase quatro anos. Trabalha intermediando as interações da superintendência com a imprensa, monitorando o clipping de notícias que saem na mídia sobre o órgão e coordenando a troca de informações de imprensa com secretarias estaduais e municipais. Forma-se em 2010. Seus últimos dois anos no trabalho incluem também atividades para auxiliar na substituição do superintendente quando de suas viagens. Durante seu mandato, a superintendência cria o projeto dos Centros de Referência da Juventude - CRJ e instala 11 dessas unidades em comunidades carentes do Estado, a maioria na região metropolitana da capital. Num CRJ, são oferecidas a cada comunidade atividades de reforço escolar, esporte, lazer, aulas de música e/ou aulas de dança, dentre outras, mas segundo o interesse e as necessidades manifestadas pelos moradores. Fato comum no sistema político brasileiro, o fim do seu mandato é determinado pela chegada de um novo superintendente, que troca todo o pessoal administrativo e muda as prioridades na execução de projetos. Impactos mais graves ocorrem no início de 2015. A mudança de governador após as eleições de outubro de 2014 leva à troca do secretário de Estado em sua área e à descontinuidade dos CRJ. Com a nova configuração de comando, o governo do Estado para o projeto dos CRJ após transferir sua atribuição à Secretaria de Esporte, Lazer e Juventude. Fecham-se suas 11 unidades e ocorre o desligamento de todo o pessoal que nelas trabalha. Uma moradora da comunidade de Manguinhos dá o seguinte relato ao jornal O Dia sobre o CRJ de seu bairro: “Ali funcionava um curso de MMA que tinha ex-traficantes jovens como frequentadores. Isso era importante porque ajudava na luta contra as drogas. À noite, em frente ao Centro, você não vê mais jovens saindo das atividades”4. 4 As informações sobre a descontinuidade dos CRJ provêm do jornal O Dia: Nascimento, C. Estado Fecha Centros Sociais em Comunidades. O Dia online, 22 de janeiro de 2015. Site visitado em 6 de março de 2015: http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2015-01-22/estado-fecha-centros-sociaisem-comunidades.html
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A Copa no Rio de Janeiro: pequenos negócios, movidos a inovação, esportes e cultura
Emerson conta sobre seu esforço para que fosse instalado um CRJ no Salgueiro: Por conhecer um pouco a comunidade, sabia que tinha aqui uma juventude muito ociosa. Tinha não, tem, né? Há também crianças e adolescentes com poucas atividades pra além da escola. Eu, nessa função na superintendência, pleiteava pra cá um CRJ (...). Mas ele não foi executado devido ao número [baixo] de habitantes aqui da comunidade, que na época não chegava nem a 5 mil.
A oferta de atividades na comunidade, em especial para jovens, é uma preocupação também de Marcelo. Pouco antes da inauguração, ele pede um auxílio especial a Emerson, que conta: Ele queria que tivesse alguma coisa aqui que desse outra cara [à empresa], que pudesse trazer algo a mais pra comunidade. Então, em conversa antes mesmo da reinauguração, propus que nós fizéssemos esse varal [de fotos na parede], porque eu já tinha umas fotos da comunidade. Foi bem interessante. Logo na reinauguração, a comunidade se viu [nas fotos]. E isso já de cara melhorou a autoestima de muitos moradores. Até hoje, vêm e se procuram [nas fotos do varal], e se apontam. Vêm com visitantes, com parentes que são de fora do morro e dizem assim “Olha, eu tô aqui. Minha vó tá ali, minha falecida vó.” ou (...) “Olha ali o Miudinho.” (que é compositor do Salgueiro), “Olha ali um dia que eu participei do terço.” [da reza com o terço, sim, pois a Caliel também cede espaço para orações católicas]”. E eles vêm e dizem isso com muito prazer. É uma coisa que nos alegra muito. A partir de então, Emerson está sempre atento para identificar oportunidades de promover ações culturais na padaria. Elas são possíveis principalmente porque os sócios ainda não têm a condição financeira necessária e o pessoal preparado para o negócio permanecer aberto ao público depois das 17h todo dia (Marcelo o abre todo dia às 6h). Portanto, boa parte das atividades culturais ou outras não relacionadas ao trabalho da padaria são realizadas a partir desse horário de fechamento. Emerson é colaborador no colegiado do Fórum Nacional, dado seu histórico de trabalho em prol dos jovens em comunidades carentes e seu ativismo sociocultural no Salgueiro. O fórum é uma associação de pensadores e atores sociais de campos como a sociologia, economia e ciências políticas criada em 1998 para oferecer propostas concretas de aperfeiçoamento da sociedade brasileira (ver www.forumnacional.org.br). Em publicações em que é citado ou mesmo na descrição do autor em textos que escreve para revistas e livros, Emerson é frequentemente identificado como liderança comunitária, representante do Salgueiro. No entanto,
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prefere a designação ativista sociocultural, por vê-la como mais fiel ao papel que tem desempenhado.
Ascensão adicional com as Copas da Confederação e do Mundo Os preparativos de 2013 para a Copa do Mundo na cidade do Rio de Janeiro ganham mais seriedade no trabalho dos organizadores e clima de festa para o povo com a aproximação da Copa das Confederações. Trata-se, afinal, do megaevento de teste das condições do país para realizar o campeonato mundial do ano seguinte. O pessoal da Caliel acompanha o clima de otimismo do morro esperando uma vitória brasileira frente às demais equipes das confederações. Capricha na decoração da loja em verde e amarelo e festeja com a comunidade a progressão da seleção nacional no campeonato. Contudo, a iniciativa que lhe dá mais visibilidade e capacidade de atração de clientes é um delicioso quitute especialmente preparado para a ocasião: o canarinho, um bolinho de aipim com bacalhau que homenageia a seleção chamada de canarinho por sua tradicional camisa amarela. É o atrativo em destaque da padaria no Circuito Gastronômico da Tijuca, programado e promovido pelo Sebrae/RJ para ocorrer ao longo do megaevento de 2013. A inclusão da Caliel no circuito é facilitada por sua participação na ACIT, a Associação Comercial e Industrial da Tijuca. A promoção gastronômica é divulgada pela imprensa citando a Caliel, como ocorre na revista Veja Rio5. Marcelo acredita que umas 13 matérias, não apenas sobre o circuito, saem em revistas e jornais de 2013 com informações sobre a padaria. O quitute é um sucesso. Atrai majoritariamente os moradores do próprio Salgueiro, que o preferem com cerveja bem gelada. Muitas matérias mais citam a Caliel em 2014, inclusive por sua participação no Rio Show de Bola. Esse é outro projeto do Sebrae/RJ para que os pequenos negócios cariocas aproveitem bem a ocasião de um campeonato mundial com jogos previstos para o Maracanã. Questionado por que a imprensa dá grande divulgação aos produtos especiais da Caliel para as Copas, Marcelo dá uma resposta simples. Para ele, o motivo principal não é a promoção feita com esses produtos em si, mas um reflexo das Quintas Poéticas, que conquistaram jornalistas e os fizeram dar atenção especial às atividades da padaria. Acrescenta que também ajuda o fato de Emerson ser jornalista e ter uma rede de relação com outros colegas de profissão. 5 Ver também no site: http://vejario.abril.com.br/materia/cidade/tijuca-tem-festival-gastronomicoem-homenagem-a-copa-das-confederacoes/ visitado em fev. de 2015
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O quitute para a Copa do Mundo, uma tartelette frutada de pêssego e figo (verde e amarelo!), é um produto que Adão já sabe fazer sem dificuldade e que é outro sucesso. Sorridente, Marcelo dá testemunho desse sucesso no vídeo promocional do projeto6. Porém, mais uma vez, o grande sucesso ocorre principalmente com a clientela local e, em parte, com pessoas de outros bairros da cidade. Segundo Marcelo, a padaria recebeu apenas um grupo de turista atraído pela promoção da Copa em 2014, apesar da ampla divulgação para as duas Copas assim descrita por ele: Nosso nome ficou num guia distribuído pelo Sebrae e num caderninho da Riotur. Isso foi distribuído em restaurantes do Rio de Janeiro. Saiu em alguns sites também. O jornal O Globo compartilhou isso, deu uma mídia bem interessante, bem vasta, para esses dois circuitos. (...) [Há vários problemas que atrapalham; por exemplo,] se você for olhar as placas [de trânsito] indicando, lá pela Tijuca, no Maracanã, no entorno aqui, sobre como chegar ao Salgueiro... Procure uma! Não tem formas mais práticas do turista chegar ao local. A gente tá falando de uma favela, não é um restaurante na Zona Sul. (...) Isso atrapalhou e atrapalha ainda.
Ganhos importantes para o desenvolvimento da Caliel são destacados por Marcelo como resultados das atividades especiais das duas Copas: Mais uma vez, vou citar a palavra parceria [pois criamos bons laços de cooperação]. No dia do lançamento [do Rio Show de Bola], eu me vi ao lado [de donos] de grandes restaurantes conhecidos. E éramos só três ou quatro de comunidades [favelas]. (…) Pro histórico da minha empresa, isso foi fantástico – fora que a gente aprendeu a criar padrões, como receber turistas, recebemos um cardápio traduzido pro inglês e pro espanhol, que o Sebrae desenvolveu. Isso mexe com nossa autoestima. Mexeu com a autoestima do meu pai, que é o idealizador [da empresa], dos funcionários. Foi bem legal.
Empreendedores a se forjar no calor de ainda mais desafios Se a criação e o desenvolvimento de uma microempresa brasileira já é difícil, dada a complicação burocrática combinada a pesados impostos e encargos, o que pensar daquelas das favelas do país? Nesses locais, somam-se aos problemas transtornos dos mais prosaicos, como falta d’água e de saneamento adequado, até problemas urbanos potencializados, como a violência extremada, a alta densidade de população carente e a falta de lazer e educação ao alcance de todos. Nas comunidades pacificadas cariocas, ao menos já se comemora a forte amenização da violência. Mas os moradores querem mais. Justamente, falta d’água e de saneamento adequado são dos maiores problemas do Salgueiro 6 www.youtube.com/watch?v=IMnxfrFuoyA
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identificados por Marcelo. Para a Caliel, fica a frequente escassez de água na lista do maior vilão quanto à infraestrutura de trabalho. Há ainda grande falta de mão de obra qualificada para uma padaria no morro. No entanto, como revela o histórico dos criadores da Caliel, eles já superaram muitas dificuldades. Sentindo-se fortalecidos após tê-las vencido, acreditam que podem ir muito além sob a liderança de Marcelo, que fala do espírito empreendedor e guerreiro seu e de sua equipe: Tenho certeza, eu nasci pra ser empreendedor. (...) Temos um histórico [disso] na família. Meu bisavô, lá em Minas, era fazendeiro. Meu pai teve esse histórico aí... A história da minha família é de superação. Isso aqui é um empreendimento tocado pela família. Na cozinha, é a minha tia, irmã do meu pai, que é a cozinheira, juntamente comigo [Marcelo também é cozinheiro]. São primos que me ajudam, são tias que me ajudam fazendo salgados. Na padaria, quem toca fazendo as massas é meu pai, que é o padeiro, com o auxílio da minha mãe. Eu fico aqui na gerência e no atendimento [dividindo o posto com Emerson]. (...) Eu poderia não estar aqui, meu pai poderia estar deprimido, poderia não conseguir segurar a barra que a gente enfrentou. Mas digo que somos vencedores, pois estamos aqui para contar nossa história. E tá sendo bacana!
Portando essa flâmula viva do gosto por desafios, a equipe Caliel preparase para dar novos passos firmes no desenvolvimento dos negócios: (A) integrar Emerson formalmente como sócio; (B) melhorar as condições de trabalho do pessoal, inclusive oficializando a contratação de cada colaborador no posto correto; (C) adquirir outro veículo para substituir o Fusca renovado de Marcelo e assim fazer entrega de pães a mais restaurantes além de um único que já faz compra por atacado nas imediações da Tijuca; (D) concluir obras já iniciadas do terraço da padaria para ter mais espaço de festa e outras atividades, inclusive de réveillon, aproveitando a vista privilegiada da cidade e do Maracanã a média distância; (E) ampliar o horário de funcionamento para o fim da noite. Essas mudanças exigirão mais faturamento da empresa para cobertura dos custos adicionais de contratação, salários, encargos, contador e impostos, assim como para realização dos investimentos dos itens C, D e E. Elas revelam uma vontade de se fazer um novo salto – talvez mais audacioso do que a substituição da birosca – para outro patamar qualitativo e quantitativo dos negócios. Certamente, isso imporá o aumento da complexidade administrativa e dos riscos do empreendimento, além de contas mais caras a pagar, que exigirão o aumento do faturamento. Sem esse avanço no faturamento, nada mais se realiza de modo financeiramente sustentável. Aliás, o número de pessoas trabalhando na padaria já se mostra elevado para permitir adequada remuneração do pessoal, principalmente dos sócios e daqueles que estão no coração do negócio, a produção de pães: seu Adão e dona Nilce, como são conhecidos.
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Nesse cenário de novos horizontes vislumbrados para o futuro, mas com pouca folga financeira atual, muitas questões podem nos comprimir os neurônios, as quais podemos destacar: 1. Sendo o aumento da venda de pães por atacado e a ampliação do horário de funcionamento da padaria as vias aparentemente mais diretas e lógicas para a necessária ampliação do faturamento, (1a) os dirigentes conseguirão atrair e remunerar mão de obra adicional qualificada para realizar esses avanços? – Lembremos que o Salgueiro não parece ser fonte desse tipo de mão de obra. (1b) Será possível adquirir e manter um veículo utilitário para fazer entregas? Quem o conduziria? (1c) Quem poderia ser o gerente ou o dirigente responsável por gerir a padaria após as 17h, dado que ainda não há gerente no negócio e os dirigentes já estão muito atarefados? (1d) Como dar conta da gestão de pessoas, que costuma ser apontada como a maior dificuldade em um negócio de intenso contato com o público, principalmente quando se trata de uma microempresa majoritariamente familiar? 2. Ampliando-se o turno de trabalho e, com isso, possivelmente também a ocupação dos sócios, (2a) que espaço será utilizado pelas atividades culturais e outras que não são de negócio na Caliel? Seria o espaço disponibilizado pelas obras do terraço? Tal espaço seria acessível por fora da padaria, sem incomodar a clientela dela? (2b) Que cuidados deverão ser tomados quanto à segurança na padaria para o trabalho em período noturno? Que riscos envolverá a necessidade de se confiar em não dirigentes para conduzir os trabalhos quando os dirigentes não puderem estar na padaria? Seria interessante servir jantar à clientela? Como isso poderia ser feito de modo eficiente e lucrativo? No período noturno, não haveria o risco de os serviços de bar tomarem destaque com uma clientela incompatível com os clientes dos serviços de restaurante e de padaria? 3. Que questões estratégicas devem ocupar a mente dos diretores agora para que garantam um futuro com ainda mais sucesso? Que recomendações poderíamos lhes dar? Seria possível se pensar em filiais para o futuro? E em franquia? Após tantos desafios já enfrentados no passado e diante de um futuro promissor, a equipe da Padaria Caliel mantém-se com grande disposição para continuar a avançar.
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Foto: acervo pessoal
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Alegria na formatura de Marcelo, junto aos pais
CONSIDERAÇÕES FINAIS Igualmente ao que se aplica a toda a cidade do Rio de Janeiro, a aprendizagem ocorrida nos dois negócios retratados nos casos em suas atividades voltadas à Copa poderá lhes ser útil na preparação e nas ações com vistas às Olimpíadas de 2016. Certamente, entre a cidade e as empresas, mudam a dimensão e a complexidade dos fatores, podendo para a cidade se repetir muitos dos problemas ocorridos nos preparativos da Copa, como já afirmam jornalistas. Por ser esse megaevento programado para ocorrer de modo concentrado apenas na cidade do Rio, a intensidade do trabalho de preparação também tende a ser maior, assim como o potencial de melhores negócios para as empresas locais. Bom seria que a reconhecida esperança carioca (e brasileira) não precisasse novamente se amparar na boa dose de sorte. Esta ajudou a cidade e o país a, enfim, realizarem uma Copa sem grandes incidentes e que, para surpresa internacional, acabou não figurando nos noticiários globais como um grande vexame.
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Para não dependermos tanto mais da boa sorte, é necessário que as empresas, os municípios e o país se inspirem amplamente de bons exemplos de qualidade na gestão. Várias lições importantes nesse sentido podem ser retiradas dos casos Mega Lanche’s e Caliel. Mesmo que o planejamento não apareça como destaque para o sucesso dessas empresas, fazer muito com pouco e desenvolver atividades com vista também ao amplo impacto social positivo que podem produzir são ensinamentos que as duas podem oferecer ao povo, ao Estado e aos políticos brasileiros. Estes devem também aprender a planejar e a executar projetos complexos. Essa dimensão da aprendizagem necessária poderá, eventualmente, ser buscada em outras nações reconhecidas por seus bons tratos dos bens públicos e da qualidade de vida da população.
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Do Mineirão para o mundo: a fama e as boas oportunidades, apesar do 7 x 1
Arena Corinthians São Paulo – SP
Shutterstock/AGIF
JOGOS DA COPA DO MUNDO DE 2014:
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Brasil
3x1
Croácia
Uruguai
2x1
Inglaterra
Holanda
2x0
Chile
Coreia do Sul
0x1
Bélgica
Argentina
1x0
Suíça
Holanda (2) 0 x 0 (4) Argentina
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Capítulo 10
“É NÓIS NA ZL”: GARRA E DETERMINAÇÃO EM ITAQUERA Autor: Marcos Hashimoto prof.hashimoto@uol.com.br Faculdade Campo Limpo Paulista – Faccamp Campo Limpo Paulista – SP
Vânia Maria Jorge Nassif vania.nassif@gmail.com Universidade Nove de Julho – Uninove São Paulo – SP
S
ão Paulo é a maior cidade do país. Fundada em 1554 por jesuítas portugueses, possui hoje o 10º maior PIB do mundo. Seus mais de 20 milhões de habitantes a posiciona como a oitava maior aglomeração urbana do mundo. É também o centro financeiro do país, onde fica a sede da BM&F Bovespa, a segunda maior bolsa de valores do mundo. Em termos de atividade empreendedora, a cidade ocupa a 13ª posição no ranking de ecossistemas para startups do Startup Genome1, sendo a cidade latino-americana melhor colocada no ranking. O bairro de Itaquera, na zona Leste de São Paulo, com aproximadamente 520 mil habitantes, sempre foi conhecido como uma periferia pobre e com pouco potencial de desenvolvimento econômico. Por muito tempo, era rotulado como “bairro dormitório” de São Paulo, pois as pessoas moravam na região e iam trabalhar em outros bairros. A chegada do metrô e a construção da Arena Corinthians mudaram tudo. Embora as mudanças tenham acontecido apenas no decorrer dos últimos três anos, o impacto foi imenso, gerando mudanças comportamentais no mercado em pouco tempo. Uma dessas mudanças foi a construção do Shopping Metrô Itaquera, ao lado da estação terminal da linha 2 do metrô e a menos de um quilômetro da Arena Corinthians. A Arena Corinthians, popularmente conhecida como Itaquerão, é de propriedade do Sport Club Corinthians e tem capacidade para acomodar mais 1 http://techcrunch.com/2012/11/20/startup-genome-ranks-the-worlds-top-startup-ecosystemssilicon-valley-tel-aviv-l-a-lead-the-way/ (2013)
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de 48 mil torcedores. Inaugurada em maio de 2014, foi escolhida como palco da cerimônia de abertura da Copa do Mundo da Fifa e recebeu seis partidas da competição. A construção da Arena, sob responsabilidade da Construtora Odebrecht, foi cercada de atenção da imprensa e de algumas ocorrências como um acidente que matou dois operários e que repercutiu no mundo inteiro, suspeitas de irregularidades no contrato e problemas com as condições de segurança do estádio. Em visita ao local, não foi possível identificar negócios no entorno mais próximo da Arena. Talvez pelo pouco tempo de existência do estádio, poucos empreendedores tenham tido a oportunidade de explorar o local para estabelecer negócios que aproveitem as oportunidades geradas pelos jogos. Por outro lado, nos dias dos jogos, fica evidente como os vendedores ambulantes, de food trucks a camelôs, surgem para oferecer seus produtos ao público de torcedores. Esse movimento, entretanto, só passou a acontecer após a Copa do Mundo. As restrições impostas pela prefeitura e pela Fifa reduziram em 91% a liberação de licenças aos ambulantes, que, por falta de articulação em setores de atuação muito pulverizados, acabaram perdendo as boas oportunidades que o evento propiciaria. Ampliando o raio de cobertura, chegamos ao local com maior potencial para encontrar bons casos de negócios, o Shopping Metrô Itaquera. Inaugurado em novembro de 2007, logo se tornou uma referência em uma região carente de bons centros comerciais. Com localização privilegiada, na saída da estação Itaquera do metrô, ao lado de um terminal de ônibus, um terminal de trem e do Poupatempo – serviço do Governo do Estado de São Paulo para facilitar o acesso do cidadão às informações e serviços públicos –, o empreendimento recebe em média 65 mil consumidores todos os dias, a maioria pertencente à classe média. No Shopping encontramos os dois casos que ilustram esse capítulo. O primeiro retrata a experiência do empreendedor Wesley Machado que, depois de passar anos tentando fazer acontecer uma ideia na qual ninguém mais acreditava, encontrou na Copa do Mundo a oportunidade que ia mudar o seu negócio. Usando muita criatividade e técnicas apuradas, a Wdog, um quiosque de hot dog, revolucionou o mercado de comidas temáticas com o Dog da Copa. Embora já instalado no Shopping desde 2013, Wesley fez um bom planejamento e uma boa preparação para diferenciar o seu produto para aproveitar o evento esportivo. Criou uma série de novos sanduíches, temáticos, com os pães nas cores das bandeiras dos países participantes e ingredientes típicos da culinária desses países. Com pouco esforço, sua iniciativa gerou muita mídia espontânea por meio dos mais diversos veículos de comunicação agilizando, por meio da inovação, o processo de mudança cultural e reposicionamento de um produto no mercado. Seu quiosque se tornou uma referência na Copa,
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“É nóis na ZL”: garra e determinação em Itaquera
atingindo o pico de 600 sanduíches em um único dia e garantindo seu lugar definitivo no mercado de sanduíches rápidos. A história de Wesley mostra como a perseverança, a humildade, o senso de oportunidade e a criatividade atuam juntas para pavimentar uma história de sucesso. O segundo caso é de Terry Goldstroten, que usa o seu negócio de franquias, da rede Salgado Mania, como uma forma de demonstrar sua gratidão. Gratidão pela oportunidade de nascer novamente e reiniciar sua vida em um país que acolheu essa estrangeira e salvou sua vida depois de um atentado que quase lhe tirou a vida. 4-3-2-1: quatro anos em coma por ter levado três tiros na cabeça e mais dois anos em recuperação de uma nova chance de viver. Primeiro como balconista da loja, depois como empreendedora da sua própria franquia e hoje na formação de novos empreendedores para sua rede de lojas da marca, cumprindo o que ela julga como desígnios do destino de ajudar pessoas que, como ela, precisam de uma chance para recomeçar. Seu trabalho é acolher pessoas que passaram por traumas muito fortes, treiná-las e colocá-las à frente de uma nova loja. Ela já tem oito lojas e quer chegar a 30. A loja do Shopping Itaquera é a sua principal, onde ela começou sua jornada, onde ela fica a maior parte do tempo e onde treina os novos gerentes. A Copa foi uma oportunidade perdida, pois ainda estava em recuperação, mas já tem planos para explorar o público que vem para os jogos na Arena Corinthians, com ofertas especiais de produtos para os dias de jogos. Talvez seja a única dos empresários da região que não vê os torcedores que consomem seus produtos como meros clientes e sim como potenciais sócios.
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Wesley Machado: a reinvenção do cachorro-quente em sua loja Wdog Foto: divulgação
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CASO 1
WDOG: O DOG DA COPA
W
esley Machado sempre sonhou em ter um negócio próprio. Formado em Administração de Empresas, com duas pós-graduações, uma em marketing e outra em logística, já trabalhou em várias empresas multinacionais, farmacêuticas e de bebidas. Ele sempre foi empreendedor. Com 7 anos já vendia bala, mas sempre gastava o dinheiro. Já teve um lava-rápido, com a irmã, mas nunca se dedicou integralmente ao negócio. Achava que tinha que escolher um negócio que pudesse ser só dele e que desse muito resultado. Ele sempre gostou de salsicha, comia fria, sem lavar nem cozinhar. E um dia achou que o negócio tinha que ser esse. Então percebeu uma lacuna no mercado. Quando se fala em hambúrguer ou pizza, tem-se sempre uma referência, mas para hot dog não, percebe Wesley. Ninguém tem uma marca conhecida. Wesley pesquisou por um ano o mercado, verificou a concorrência e resolveu investir em um negócio de hot dog com o objetivo de se tornar uma referência no Brasil. Definiu o tipo de lanche que poderia oferecer e criou o Wdog, uma opção de diferente de hot dog. Era a hora de ser empresário, pôr a cara para bater e acreditar no sonho. Com 38 anos, começou a trabalhar no seu projeto. Sua experiência em multinacionais ajudou bastante. Wesley participou de grandes projetos e sabia como fazer um bom planejamento. Estudou muito o tema, escrevia seu projeto de madrugada e idealizou o pão, os molhos, que até hoje faz em sua casa. Ele sabia muito bem o que queria para o negócio: uma rede de quiosques de hot dog em shoppings. Wesley viu que nenhum shopping vendia hot dog. Foi em 20 shoppings oferecer o negócio, 19 disseram não. Diziam para ele que esse alimento é um conceito ainda vinculado ao carrinho, barato, de rua. Wesley nunca pensou em desistir. Mudou seu negócio várias vezes, inclusive com as sugestões recebidas pelos administradores dos shoppings. Ele implantou novidades no cachorroquente tradicional, tornando o lanche um produto diferenciado, mais adequado para o público de shopping. Wesley queria mudar o conceito de consumo de hot dogs. Apenas o Shopping D aceitou sua proposta. O lanche do Wdog é bem diferente do tradicional, e tenta conciliar o lanche tradicional que o público queria, mas com algumas coisas novas. O pão do Wdog, por exemplo, é diferenciado. Para Wesley, todo lanche começa
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Negócios Empreendedores
com o pão. Ele mesmo fabrica o seu pão. O segundo diferencial é a salsicha, grelhada. A salsicha cozida é boa para comer em casa, na rua jamais, por causa da bactéria salmonela. Os tradicionais carrinhos de cachorro-quente não têm higiene, não trocam a água, usam a mesma água várias vezes para economizar. É essa excelência que leva a Wdog vender hoje 150 unidades por dia em média.
O aprendizado Algum tempo depois o empreendedor abriu a loja no Shopping Metrô Itaquera e depois uma loja na zona Norte, tudo isso em apenas seis meses. A ansiedade de começar logo e crescer rápido quase levou Wesley a pôr todo o negócio a perder. Ele não conseguia atender as três lojas ao mesmo tempo e viu que treinar funcionários não era uma tarefa tão fácil como ele imaginava. Para ele, mão de obra qualificada com bom nível é a principal fraqueza de um negócio nascente. Ele passou por essa experiência e teve que admitir que não daria certo daquele jeito e que seria obrigado a fazer algumas mudanças para ajustar seu modelo de negócio. Foi um importante aprendizado, que trouxe muita maturidade para o empreendedor. Embora a ideia e a repercussão inicial fossem muito boas, para fazer dar certo ele precisaria dar um passo para trás. Verificou o desempenho das três lojas, identificou qual delas tinha mais potencial em termos de circulação de pessoas e fechou as outras: a de rua na Zona Norte e a do shopping D, ficando só com a do Shopping Metrô Itaquera, que mantém até hoje. Embora o custo seja muito alto no shopping, o resultado lá é melhor porque é passagem obrigatória do Poupatempo. Wesley verificou que tem muita gente que vai ao Poupatempo e não sabe que tem um shopping do lado, passa pela área dos quiosques e estranha que não tem mesa naquela “praça de alimentação”. Nesse aprendizado, Wesley adquiriu uma dívida alta que está sendo quitada. Por esse tipo de situação, muitos empreendedores desistem logo no primeiro ano, pois não têm coragem de recuar. No entanto, ele aprendeu a ter humildade para ver o que estava errando, embora ainda não tenha recuperado o investimento por causa dos erros que cometeu no passado. Ele não tem problema em admitir isso porque sabe que era necessário organizar a casa para retomar o crescimento. Há um ano e meio, ele está se dedicando integralmente ao quiosque remanescente, mas a melhoria é gratificante quando seus clientes não vão para outro lugar e preferem comer no Wdog. Quanto aos funcionários, Wesley acabou se especializando em treiná-los. Hoje ele tem duas funcionárias e está o tempo todo as orientando. Ele sabe
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que precisa treinar bem os funcionários porque o negócio não pode depender do empreendedor. Ele sai o tempo todo para administrar o negócio, buscar material, ir ao banco, por isso os funcionários precisam ser bem treinados para ele ter mais tranquilidade, mas sem largá-las totalmente. Além disso, a Wdog nasceu para ser franquia então é preciso capacitar as pessoas para que possam assumir suas próprias franquias depois de bem treinadas por ele. Ele está capacitando as atuais funcionárias com a visão que vai abrir outra loja e uma delas vai assumir a loja nova, como sócia operadora, que não precisa investir dinheiro. Por isso, Wesley agora não contrata pessoas em busca do perfil de atendente, ele procura o perfil de vendedor. Para ele, todo bom vendedor é bom antedente, mas nem todo bom atendente é bom vendedor. O vendedor precisa vender para ganhar, pois é comissionado, o atendente não, e assim se tornam ótimos sócios franqueados. Wesley aprendeu com a prática que não é fácil ser empreendedor. Ele gastou muito tempo para montar o negócio, cometeu muitos erros, amadureceu, aprendeu, evoluiu. Para crescer no modelo de franquia, ele já contabilizou mais de 500 interessados. Com uma rápida conversa, ele percebe o perfil do interessado e, se não tiver o perfil empreendedor, ele desencoraja a pessoa a seguir com seus planos. Fala para não perder o tempo dele e buscar fazer outra coisa da vida. Ele sente o peso da responsabilidade de não deixar o sonho do franqueado ser destruído. “Tomo muito cuidado a quem entregar a franquia. Eu analiso caso a caso e só vou entregar nas mãos de pessoas que sei que vão tocar bem.” Indicadores socioeconômicos apontam que o rendimento médio dos chefes de família na região de Itaquera é R$ 730,89, contra R$ 1.325,43 no município de São Paulo1. Mas quando começou, Wesley percebeu que todas as classes têm direito a ter acesso a coisas boas. Se elas têm condições, elas querem experimentar produtos de qualidade. Seu lanche é vendido a R$ 15 em média. As pessoas podem até achar caro, mas depois que experimentam, acham que vale o preço, reconhecem a qualidade. Apesar disso, 40% do que a Wdog deixa de vender é por preço, porque a referência de cachorro-quente é barato, pelo estereótipo do pão prensado na rua. Essa obsessão de Wesley pela qualidade se deve às suas crenças com relação ao negócio próprio. Criado para não ter dinheiro como principal motivação, Wesley se sente estimulado pelo reconhecimento e vê na excelência o caminho para alimentar sua motivação. Essa constatação veio na forma de uma carta recebida do presidente de uma empresa onde trabalhou, elogiando seu 1 Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) - Censo Demográfico 2000. Disponível em ww2.prefeitura.sp.gov.br//arquivos/secretarias/governo/sumario_dados/ZL_ITAQUERA_Caderno23.pdf
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empenho no processo do ISO 9000. Aquilo foi tão importante para ele, que chegou a pendurar a carta em um quadro na sua casa. Por essa motivação e sua formação em Administração de Empresas, Wesley escreveu o plano de negócio da Wdog, mas com o tempo percebeu que é só um papel, e que na prática a construção do negócio é muito diferente. Em suas projeções, ele acreditava que abriria o negócio todos os dias, às 10h, não ia vender nada, e às 11h ia vender cinco lanches. Às 12h venderia 15, e assim por diante até o final do dia, às 22h. Seguindo essas contas, chegaria tranquilamente ao final do mês com 6 mil hot dogs vendidos. Ele não achava nenhum absurdo vender 95 lanches em uma hora, e acabou assumindo essa premissa em suas projeções, que, obviamente, não se tornou realidade. Ainda, hoje, três anos depois, o Wdog ainda não tem essa produção. Ele foi adaptando e alterando o plano de negócio com o tempo e incorporando seu aprendizado e experiência sobre o negócio Agora, pode ser bem mais preciso na expectativa de vendas. Para ele, o empreendedor não pode ser excessivamente otimista nas suas projeções, pelo contrário, deveria ser mais pessimista e até subestimar sua expectativa para decidir se vai continuar no negócio caso venda apenas R$ 200 em 18 horas de trabalho.
A oportunidade da Copa A Wdog está no Shopping Metrô Itaquera desde maio de 2012, ou seja, não teve a Copa do Mundo como motivação, mas o empreendedor não deixou a oportunidade passar em branco, era imperdível. Pesquisou os concorrentes e viu que ninguém tinha vontade de fazer nada. Então ele resolveu fazer. Desenvolveu um projeto diferenciado, lançando os Lanches da Torcida. Os pães tinham as cores de cada país, os ingredientes eram típicos de cada país. Tinha o Hot Dog Brazil, feito com feijoada; o Japão, com hot roll, sukiyaki e molho tare; o americano, com cole slaw, cheddar e barbecue; o México, com chilli, guacamole, Doritos e pimenta dedo-de-moça; o alemão, com salsicha frankfurter, chucrute e cebola caramelizada; o Argentina, com anéis de alho; e o Itália com porpeta. Alguns lanches não vinham nem com salsicha. Tudo foi cuidadosamente planejado, um cardápio exclusivo em inglês, preços em dólar, uniforme, oito pessoas para atender (cinco no quiosque e mais três do lado de fora). Wesley sabia que o turista não queria ficar se comunicando com gestos, mímica, então escreveu uma plaquinha I speak English e colocou na frente do quiosque. Wesley ligou para a TV Globo. Passou por umas 20 pessoas na empresa até chegar à pessoa certa. O repórter falou que ia visitar o quiosque, mas só ia
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gravar se fosse verdade. Ele veio, experimentou o lanche e ficou apaixonado e ainda pediu exclusividade na matéria. A reportagem passou numa quarta-feira de manhã, e ao meio-dia já tinha uma fila de 100 pessoas para comer o lanche. A Wdog então virou uma referência na mídia durante a Copa. Só na Rede Globo foram cinco matérias, incluindo Fantástico, SP TV, Jornal da Globo e SporTV. Depois vieram as outras emissoras, como Fox Sports, Band e Record. E 11 emissoras internacionais gravaram matérias, além dos sites, jornais e revistas. A certa altura, a fila de jornalistas todos os dias era tão grande que o shopping o proibiu de dar entrevistas. A reportagem tinha que passar pela assessoria de imprensa do shopping primeiro para agendar a gravação da matéria. Ninguém mais no shopping apareceu na mídia, só a Wdog. A movimentação foi enorme. As pessoas viam na televisão e vinham experimentar, mesmo fora dos dias de jogos. Vinham com a família, de várias cidades e Estados do país. Nos dias de jogos, ele arrebentava. Não dava para descansar nem um minuto, mal dava tempo para ir ao banheiro. O torcedor que tinha ingresso para três ou mais jogos ia comer lá, não queria outro lugar. Wesley critica empresários que falam que a Copa foi ruim para os negócios. A Copa do Mundo foi um grande evento para todos os empreendedores que souberam explorar a oportunidade, mas para um quiosque de 9 metros quadrados foi proporcionalmente inesquecível. A imprensa ia para Itaquera e não tinha com quem falar, só tinha o Wdog. Um destaque foi uma matéria do Jornal da Globo, citando que o Wdog era padrão Fifa porque o empresário se preparou para o evento. O resultado foi muito bom, e ele chegou a vender 600 dogs em um dia. Mas a exposição na mídia foi ainda melhor, pois repercute depois do evento. Ele exemplifica. Depois da Copa, ele tirou os produtos de linha, mas algum tempo depois apareceu um rapaz de Orlando, na Flórida, perguntando sobre o dog de feijoada, dizendo que veio para Itaquera só para conhecer o lanche. Wesley fez um acordo para ele voltar no dia seguinte que prepararia para ele. O rapaz veio com mais 10 pessoas e ainda levou seis dogs para viagem. Esse foi só um caso. A demanda pelos lanches temáticos continuou, forçando Wesley a voltar com o brasileiro e o argentino, e depois o alemão, mas sem os pães coloridos, apenas com os ingredientes típicos.
Sobre o futuro O plano de crescimento da Wdog é por meio da rede de franquias. Além do modelo de franqueado, Wesley concebeu um segundo modelo, que é o sócio-investidor, na qual três investidores entram com cotas para um novo
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quiosque, mas a operação do quiosque é de Wesley. Dessa forma, ele acredita que a loja atinge o resultado muito mais rápido. Ele não precisa de um tempo de adaptação. Por mais que dê um bom treinamento para o franqueado, no começo ele sempre vai tremer, vai enfrentar dificuldades, vai aprender batendo cabeça. Nesse modelo, a rentabilidade é muito melhor do que o mercado, o que ele espera para atrair os investidores. Para investir no quiosque, o valor médio é de R$ 120 mil, pronto para operar. Esse investimento é recuperado em 24 meses em média em lojas nos shoppings, o que não é muito extenso e está dentro da média para franquias no setor. Em loja de rua, se tem a vantagem de oferecer um mix maior de produtos, mas leva mais tempo para dar retorno, pois o giro é menor. O investidor pode esperar 2,5% ao mês de retorno sobre o capital investido, o que, segundo ele, é melhor do que qualquer aplicação, embora acredite que seja muito abaixo do que vai retornar na prática. Se o negócio der esse retorno, o investidor vai ficar feliz, mas se for o dobro, o investidor vai querer investir bem mais, por isso Wesley acredita que é melhor manter a expectativa baixa para minimizar o efeito do risco e assim surpreender o investidor para ele continuar investindo em novas lojas. Wesley quer investidores, mas não quer ter sócios. Trabalhando com a irmã, ele descobriu que trabalha melhor sozinho, independente. Se ele tiver que mudar um lanche, ele simplesmente muda, sem perguntar se pode, exercendo sua autonomia, sua capacidade autodidata, de aprender sozinho. Para ele, se a coisa der certo, todo mundo ganha, mas se der errado, só ele é prejudicado, sem impactar ninguém. Ele cita um exemplo. Quando disse como seria o dog da Copa falaram que ele estava louco. Onde já se viu feijão no pão? Muito menos com pão verde e amarelo. Wesley diz que conversa com muita gente, ouve todos, pede conselhos, ideias, mas se orgulha de tomar a decisão sozinho, por sua própria conta. Com o sucesso do dog da Copa e sua predisposição em inovar e quebrar paradigmas, ele precisa continuar tendo liberdade para inovar e acredita que o caminho é continuar se diferenciando por meio de dogs temáticos. Nesse caminho, se tiver que dividir as decisões com sócios, não vai conseguir inovar. Se ele tivesse sócio, o dog da Copa nunca se tornaria realidade. E ele já tem algumas novidades preparadas para lançar: um deles é o dog corinthiano, com pão preto e branco, para a Libertadores. Ninguém segura o Wdog!
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Fotos: divulgação
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Os pães redondos e os ingredientes temáticos fizeram a fama da Wdog na Copa
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Terry Goldstroten: a incrível gratidão pela vida e a capacidade empreendedora à frente da Salgado Mania
Foto: divulgação
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CASO 2:
SALGADO MANIA: UM NOVO SABOR PARA A VIDA
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ma tragédia marcou a vida da francesa Terry Goldstroten. Em visita ao Brasil, em 2007, com os pais e o marido, ela se encantava com os principais pontos turísticos do Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo, sua última parada antes de voltar para a França. Tudo ia bem, até que eles perceberam que o motorista de táxi os levou para um lugar que não se parecia nem um pouco com a avenida Paulista, pelo contrário, cada vez mais distante do centro da cidade, chegando a um bairro pobre, deteriorado, escuro e, pior, à noite. A despeito das perguntas e reclamações, o taxista parecia não entender ou fingia não entender. Terry, cada vez mais preocupada, imaginou no começo que o taxista havia se perdido, mas inevitavelmente lhe passou pela memória os conselhos dos amigos: “Cuidado no Brasil, estrangeiros são alvos fáceis de bandidos”. Seu marido, já alterado, gritava com o motorista, tentando obrigá-lo a parar. E o taxista enfim parou em um lugar escuro, abandonado, de onde surgiram alguns tipos muito estranhos. Imediatamente ela orientou os pais e o marido a separarem dinheiro, relógios e joias. Sua esperança era que se entregassem tudo, logo os deixariam em paz. Ela nunca imaginaria que o pior poderia acontecer. Foi tudo muito rápido, eles começaram a gritar com o marido dela. Apesar de Terry dominar a língua, eles falavam muito rápido e com muita gíria. Talvez ele tenha escondido algo deles, ela não tinha certeza. A única coisa que ela nunca esqueceu foram os estampidos na sua orelha. Depois disso ela não se lembra de mais nada. Quando acordou, levou um susto. Estava sozinha. O corpo todo doía, ela não reconheceu o lugar, mas parecia ser um hospital. Teve dificuldade de se movimentar, parecia não ter domínio do corpo. Tateou no escuro e apertou alguns botões. Subitamente a luz se acendeu, forçando-a a fechar os olhos para conseguir ver uma enfermeira boquiaberta. Terry tentou falar, mas só conseguiu balbuciar alguma coisa em francês. Tudo se apagou novamente e, quando acordou de novo, viu um monte de gente à sua volta. Um senhor falou em português para ela se acalmar, perguntou se ela entendia sua língua e começou a explicar o que estava acontecendo, bem devagar. Ela levou três tiros na cabeça, e foi salva porque foi socorrida a tempo por testemunhas no local. Duas notícias que quase a levaram a desmaiar novamente: ninguém de sua família sobreviveu e ela ficou dormindo por quatro
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anos. Terry acredita ter entrado em estado de choque, pois não se lembra do que aconteceu depois. Lembra-se, entretanto, da longa rotina de adaptação, de fazer os músculos voltarem a funcionar, das sessões de terapia e das curtas saídas da clínica de recuperação, onde ela ficou por dois anos inteiros, período que levou para se recuperar, física e mentalmente, da tragédia que virou a sua vida. Seu forte sotaque, apesar de falar dez idiomas, denuncia sua origem. Seu olhar melancólico mostra o amadurecimento forçado que o sofrimento trouxe. As fotos de antes da viagem evidenciam como o corpo sofreu com a luta pela sobrevivência, mas, apesar de tudo o que passou, demonstra um sentimento de gratidão pela vida e pelas pessoas que a ajudaram. Apesar do trauma, Terry se encantou com os brasileiros, com sua solidariedade e carinho. Fez várias amizades na clínica, entre pacientes, funcionários e visitantes. Recebeu muita ajuda de pessoas estranhas que se sensibilizaram e se solidarizaram com a sua história. Algo que ela nunca viu em nenhum lugar que conhecia, principalmente na Europa. Para receber a indenização do governo pelo acontecido, teria que continuar no país, mas ela ficaria de qualquer jeito, já havia decidido.
Um recomeço Uma das pessoas com quem fez amizade na clínica lhe ofereceu um emprego quando ela teve alta. Não era grande coisa, mas era um começo. Assim começou seu contato com a Salgado Mania, como balconista da loja do Shopping Metrô Itaquera, que ficava próximo da clínica. Sua experiência na França como Oficial da Justiça a ajudou bastante. Ela logo se destacou e recebeu uma oferta da proprietária para se tornar sócia da franquia e abrir com ela mais lojas em outros shoppings. Não foi difícil para Terry pensar e aceitar a proposta. Ela adora coxinha e viu que brasileiro gosta deste tipo de comida, que qualquer hora pode vender, é rápido e barato, uma comida que não depende de modismos, sempre tem demanda e não está sujeita à sazonalidade. A sua participação como sócia aconteceu há cinco meses e, apesar de ser a primeira experiência como empreendedora, já tem oito lojas em outros shoppings. Terry vê nesse negócio uma oportunidade para cumprir o que ela julga ser sua missão de vida, que, segundo ela, Deus lhe sinalizou ao salvar sua vida. Assim como ela recebeu a ajuda dessas pessoas, e de sua sócia que lhe deu a oportunidade de recomeçar a vida com a loja, ela tem se dedicado a receber jovens com necessidades pessoais, dar treinamento, ajuda financeira e apoio para que se tornem gerentes de outras lojas da franquia.
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“É nóis na ZL”: garra e determinação em Itaquera Gosto desse trabalho porque gosto de contato com gente, às vezes recebo alguém que está sem emprego há cinco meses, jovem, então eu ajudo, dou oportunidade e, quando dá certo, me sinto feliz. Uma vez veio aqui uma senhora com dificuldade, eu dei treinamento por três meses e ela foi para uma loja como gerente. Essa moça (aponta para sua funcionária) é muito inteligente, mas não foi fácil para ela me pedir emprego.
Para Terry, muita gente precisa de dinheiro, está em dificuldade e desesperado, sem saber o que fazer. O pouco que vão ganhar é um salário bom, assim, valorizam e não desperdiçam. Ela quer dar oportunidade para essas pessoas. Ela mesma passou por isso quando decidiu que não voltaria para sua terra. Por algum tempo ficou perdida, sem saber o que fazer, questionando a si mesma se não valeria a pena voltar para o seu país, que já conhecia, onde tinha amigos e onde poderia conseguir um emprego na sua área. Seu amor pelo Brasil falou mais forte e lhe deu paciência para aguardar a oportunidade chegar, mesmo que não fosse exatamente o que gostaria. Ela sabia que tinha competência para fazer de um simples emprego de balconista algo de futuro promissor. Assim, Terry aprendeu a ler e interpretar as pessoas. Nem sempre ela acerta. Às vezes, as pessoas parecem ter vontade e disposição, mas não conseguem aguentar o treinamento e as responsabilidades, mas os casos de sucesso são muito recompensadores. Saber que conseguiu mudar a vida de quem estava quase sem esperança, de estender a mão para quem valoriza esse estímulo e aproveita a chance de recomeçar a vida do zero com todas as suas forças, deixando o passado para trás e redescobrindo a vida, como ela própria, é um sentimento inigualável.
O negócio Sobre o negócio, todos os produtos são preparados em uma central no Tucuruvi, bairro da zona Leste de São Paulo, e de lá vai para todas as lojas. A receita é própria, nada é comprado pronto. Sua sócia compartilha a visão e a causa social de Terry, está trabalhando com a abertura de outras lojas e cobre a falta de funcionários ou complementa a equipe em dias de pico, como nos dias de jogos no Itaquerão. Embora Terry também ajude a sócia na abertura das lojas, ela prefere trabalhar na formação dos novos gerentes na loja do Shopping Metrô Itaquera. Todas as pessoas que ela ajuda começam como funcionários e ela ensina fundamentos de atendimento e gestão. Ela se orgulha de dizer que consegue fazer o trabalho de três funcionários e quando um funcionário consegue aprender a fazer o trabalho de três como ela, então está pronto para ter a própria loja. Isso pode levar alguns meses ou até mais de um ano.
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Esse sucesso, entretanto, não é fácil de atingir e manter. Como qualquer negócio, sempre existem dificuldades. Na Salgado Mania, elas já tiveram problemas de roubo, falha de equipamentos e até problemas com a chuva, pois o quiosque fica com a porta voltada para a rua. Com uma chuva forte, a água invadiu o quiosque e elas perderam muitas coisas. Para superar estes desafios, Terry acredita muito em ter fé, não esmorecer, aprender com o sacrifício e seguir adiante. Poucas pessoas podem falar isso com tanta convicção e confiança quanto Terry. Como Terry não cuida da parte financeira, ainda não tem números precisos sobre a necessidade de investimento inicial ou o tempo médio de retorno sobre o investimento, sobretudo porque a rede é bastante flexível em termos de modelo operacional e pode acomodar desde food truck até atendimento a festas. Ela vê o kit festa como um produto com grande potencial de crescimento, principalmente em situações emergenciais. Ela percebeu que o brasileiro não tem o hábito de se planejar para festa e está sempre em apuros com um monte de gente em casa e sem comida. Por várias vezes ela já salvou pessoas que vinham e pediam grandes quantidades, 300, 500 salgadinhos, para fazer na hora. Às vezes levava um tempão, ficava depois que a loja fechava, mas ela atendia a todos, não importava o horário. Certa vez ela ficou até meia-noite para atender um cliente, mas ele ficou tão agradecido que agora sempre vem de metrô para comprar salgado na loja dela. Com essas experiências, Terry vai aprendendo mais sobre os brasileiros e se apaixonando mais ainda por esse povo. Nesse aprendizado, que serve como pesquisa de mercado para ela, ela conversa o tempo todo com as pessoas e já percebeu que em dias de jogos as coxinhas são as campeãs de vendas. Também pretende incluir no mix de produtos sorvetes e batata frita. Por falar em jogos, embora tenha perdido a oportunidade da Copa, pois ainda estava em recuperação, a empreendedora acredita muito no impulso que a Arena Corinthians propiciará para a Salgado Mania. O que aprendeu nos dias de jogos serviu para planejar uma reforma para mudar alguns detalhes que vão melhorar a operação e facilitar o atendimento, quando tem um grande movimento. Ela percebeu que as pessoas chegam mais cedo nos dias de jogos para passear no Shopping e comer antes da partida. Muitos consideram que a comida no estádio é muito cara e preferem comer no Shopping.
Sobre o futuro Terry pensa em crescer, não só nessa loja, mas na franquia como um todo. Ao todo, a rede tem 15 lojas e Terry tem planos para contribuir com
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o plano da franqueadora de aumentar em mais 30 lojas até o final de 2015, principalmente em outros Estados do país. Por outro lado, ela busca uma vida um pouco mais tranquila. Ela aprendeu a valorizar a vida e quer usar o negócio para conhecer mais gente, quer se divertir tocando seu negócio, quer ser feliz ajudando pessoas. Quer continuar tendo contato com clientes e já pensa em abrir um negócio diferente para explorar mais essa possibilidade de fazer o que gosta. Essa nova possibilidade, que ela afirma não existir no Brasil ainda, é uma creche 24 horas, voltada para pessoas que não têm horário fixo de trabalho e precisam deixar os filhos em algum lugar. Será um serviço que vai buscar a criança em casa, ou os pais podem deixar os filhos para dormir, se precisar, e que vai oferecer serviços profissionais, como ensino de idiomas, por exemplo. A Salgado Mania foi o primeiro passo em sua carreira empreendedora, mas ela descobriu que sua vocação não é vender salgados e sim ajudar pessoas. Nessa linha, de empreendedorismo social, Terry tem outras ideias de negócios, que podem ser aproveitadas por pessoas diferentes. Agora ela não pensa mais nas pessoas como clientes ou como futuros funcionários. Ela tem o olhar clínico para tentar identificar potenciais sócios. Por isso, aproveita toda e qualquer oportunidade para conhecer pessoas novas, não em lugares onde só vai encontrar pessoas abastadas, mas nas comunidades mais carentes, da periferia, prestando atenção nas conversas, vendo onde estão as pessoas batalhadoras, com muita boa vontade, sem preguiça e que só lhes falta a vida dar um sinal, uma pequena oportunidade, uma pequena chance para virarem o jogo. Terry se vê como um anjo que pode trazer essa luz para quem precisa. Talvez as condições locais do bairro e da Arena levaram Terry a se tornar corinthiana de coração, e ela nem gosta de futebol, mas se identifica com esse espírito sofredor e aguerrido do time e da torcida. Veste a camisa do time nos dias de jogos e, mesmo sem entender direito o jargão, procura conversar e se enturmar com os animados torcedores. Isso é bom para o negócio, é claro, mas, quem sabe se entre eles não encontra um potencial sócio?
CONSIDERAÇÕES FINAIS Embora sejam duas histórias muito distintas entre si, elas guardam lições inesquecíveis que refletem a garra e determinação do empreendedor brasileiro, mas acima de tudo, a influência do espírito aguerrido da zona Leste de São Paulo, conhecida como a cidade dormitório dos paulistanos
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que enfrentam até duas horas de transporte público de baixa qualidade para chegar ao trabalho e encontrar, na Arena Corinthians, a redenção de seu bairro, a esperança renovada na valorização da região por meio dos incentivos econômicos que as mudanças socioculturais e socioeconômicas trarão. Os dois empreendedores estudados são “estrangeiros” na zona Leste, mas ambos encontraram no bairro não só o caminho para construírem seus negócios, como o caminho para crescer por meio da formação dos jovens futuros sócios na franquia deles. Isso é empreendedorismo, a capacidade não só de iniciar e se estabelecer, mas ter planos claros sobre o futuro do negócio (Filion, 1999). Identificação e exploração de oportunidades é o traço principal de Wesley Machado. Ele confirmou estudos de Companys e McMullen (2007) que, tão importante quanto identificar uma boa oportunidade, é todo o esforço para explorá-la e aproveitar todo o potencial que ela apresenta. A inovação em desenvolver um negócio que não existe, quiosque de hot dog em shoppings, já mostrou que o empreendedor não veio para ser mais um e sim para mudar hábitos de consumo de alimentação fora de casa. A grande cartada que sedimentou de vez o negócio foi a Copa do Mundo. Já no caso da empreendedora Terry, notamos um dos caminhos pelos quais o empreendedor forja sua determinação e perseverança. A motivação do empreendedor no empenho de sua atividade está relacionada com um forte vínculo com algo que ele considera importante (Carsrud & Brannbrack, 2010), nesse caso, o valor que Terry atribuiu à vida, por conta de um trauma emocional muito forte pela qual ela passou, que envolveu perda de entes queridos e a quase perda de sua própria vida. O senso de gratidão pela vida sobrepujou o sofrimento da perda e deu um sentido à sua vida, sedimentando a sua determinação em continuar no caminho de ajudar as pessoas, independentemente de ter sido ajudada por elas ou não. Ainda no hospital, ela poderia perfeitamente dar vazão a essa determinação por meio do trabalho social, mas quis o destino que ela encontrasse a oportunidade empreendedora no seu emprego como balconista na franquia Salgado Mania. Essa motivação para empreender ganha mais relevância quando percebemos o seu papel para manter os ânimos do empreendedor em momentos de dificuldade, principalmente para alimentar a perseverança em insistir com uma inovação no negócio que mexe com a cultura e o comportamento do público (Kassarjian, 1971), que pode até mudar, mas é preciso muita paciência. Wesley teve que ter muita paciência – talvez ainda precise dela – para gerar uma mudança no comportamento do público-alvo. Quem consome cachorro-quente,
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não está em busca de algo muito diferente do tradicional pão com salsicha, mostarda, catchup e maionese. As variações de batata frita, vinagrete e purê de batatas já foi uma grande inovação que se incorporou no padrão de hot dogs há mais de 20 anos. Wesley propõe um novo patamar na inovação do produto com ingredientes inusitados e produtos de alta qualidade, alçando o hot dog à mesma categoria de sofisticação para a classe média que outros produtos populares, como a mortadela e a Tubaína já alcançaram, rompendo com o paradigma da comida barata e popular. Como a muitos empreendedores o negócio não apresentou o comportamento esperado depois de implantado, pressupostos equivocados sobre a receptividade do produto levou a grandes perdas no começo. Ao lançar um produto inovador, sem referência em experiências similares, é um risco muito alto, sobretudo produtos que impõem uma mudança no posicionamento de mercado (Bessant & Tidd, 2007), como o Wdog. O preço que Wesley pagou foi quase a falência. A capacidade de superar as dificuldades e reverter uma situação negativa é um dos traços mais comuns entre empreendedores bem sucedidos (Minello, 2010). Wesley teve a humildade de reconhecer seus erros na fase inicial do negócio e fechar duas unidades para se concentrar em uma unidade apenas confronta autoconfiança, otimismo e orgulho típicos do empreendedor iniciante, e foi uma atitude corajosa que trouxe maturidade para o empreendedor seguir em frente, com o pé mais no chão e sem ilusões de grandes resultados no curto prazo. Concentrar a atenção em um único negócio leva a um aprendizado riquíssimo, sobretudo ao diagnosticar o ponto chave do sucesso de todo negócio de varejo, e ao mesmo tempo, o calcanhar de Aquiles de todos eles, a mão de obra qualificada. Wesley acertou ao dedicar tempo e esforço na capacitação e treinamento de bons atendentes e recrutar pessoas com perfil de vendas. Sua visão de futuro por meio de rede de franquias ajudou a estreitar os caminhos possíveis para se concentrar nessa única e mais importante função, porque Wesley vê muito mais potencial em seus funcionários treinados para serem operadores das novas franquias do que na seleção de franqueados de fora. Esse é outro ponto em comum entre Wesley e Terry: a crença no modelo de franquias como estratégia de crescimento e o enfoque na formação do capital humano como meio para garantir a preservação do modelo nesse processo de crescimento, uma abordagem já estudada na literatura e defendida por Hoy e Shane (1998). Terry treina, capacita e orienta pessoalmente pessoas com dificuldades e necessidades, para então encaminhá-las por meio
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de uma unidade da franquia Salgado Mania. Nesse caso, o negócio próprio representa um modelo social usado pelo empreendedor para cumprir sua missão. Existem empreendedores que iniciam uma rede de franquias e alimentam o seu crescimento para criar oportunidades para as pessoas darem um rumo em suas vidas (Gomes, 2005). Os produtos diferenciados, exclusivos para a Copa, foi outra ação inédita e ao mesmo tempo audaciosa. A experiência leva a maioria dos empreendedores a não se arriscar com eventos pontuais como a Copa do Mundo, mesmo sabendo das oportunidades perdidas. Wesley, calejado com os erros do passado, não só planejou bem os lançamentos, como se dedicou ao que julgava mais importante fator de sucesso de sua empreitada, a divulgação por meio de mídia espontânea, iniciativa corroborada por Santos (2010). O esforço de conseguir uma primeira matéria na TV Globo rendeu frutos que geram resultados até hoje. Embora Terry não tenha vindo por causa da Copa e nem tenha aproveitado essa vitrine no seu negócio, ela encontrou no país o caminho para reunir sua causa pessoal de ajudar pessoas, a empatia criada com o povo brasileiro e sua vocação natural de se relacionar e compreender pessoas. O interesse em abrir a creche 24 horas demonstra que seu interesse é maior nesse caminho do que o negócio em si. A Copa do Mundo deu ao Brasil a oportunidade de abrir suas portas a milhões de estrangeiros como Terry, que, em pouco espaço de tempo, puderam conhecer a hospitalidade, o carinho e a gentileza do povo brasileiro. Muitos estrangeiros se identificam tanto com esses traços culturais que decidem estabelecer suas vidas aqui. A despeito das dificuldades para abrir e manter um negócio próprio (Kelley et al., 2014), os estrangeiros que decidem empreender no Brasil veem o estilo de vida, as oportunidades e o tamanho do mercado como principais atrativos para iniciar seus empreendimentos. A localização privilegiada da loja, tanto pelo fato de estar no Shopping Metrô Itaquera, ao lado do hipermercado Extra, como por estar a poucos minutos da Arena Corinthians e do metrô, possibilitam aos empreendedores experimentar novos produtos e serviços, adequados à particularidade desse público, formado pela classe C, com picos de consumo em dias de jogos e predominantemente do gênero masculino. Essas características levaram Wesley a constituir um caminho de diferenciação para seu negócio, os dogs temáticos. O dog corinthiano é sua próxima investida, mas ainda é incerto o potencial de competitividade que essa estratégia trará. Se a mídia continuar interessada nesse tipo de novidade, a mídia espontânea pode ser a garantia de viabilidade, mas
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Wesley sabe que trazer novos clientes é só uma parte do negócio, mantê-los e estender o potencial para a rede de franqueados é outra história. O treinamento e a qualidade dos produtos são os pontos chaves que Wesley confia nessa estratégia. Para Terry, além do desenvolvimento de novos produtos especificamente para esse perfil de público, existe o fato de estar em meio a outros lojistas, o que também caracteriza um público particular, com o qual se pode trabalhar a estratégia de fidelização, com promoções exclusivas, como os pacotes especiais de dez salgados ou duas minipizzas a R$ 4,99, válido apenas em uma faixa específica de horário e para lojistas identificados. Ambos os empreendedores citam a franquia como modelo de expansão para o futuro. Embora não explorado nesse caso, a rede Salgado Mania já era um exemplo bem sucedido de franquia, em parte pelo modelo de negócio tão flexível quanto versátil, quanto sua linha de produtos, permitindo negócios móveis, quiosques em shopping e atendimento em quantidade para festas. Caracterizado pelo baixo risco, o modelo de franquias é o preferido por uma considerável parcela da população com potencial empreendedor no Brasil. Segundo Lima Junior (2012), a adoção de um modelo já testado e provado reduz consideravelmente os riscos de fracasso, mas reduz também a possibilidade do empreendedor de o promover inovações e adaptações ao mercado. Por outro lado, empreendedores de franquias geralmente ganham poder de influência na flexibilização do modelo na medida em que vão se inserindo cada vez mais no negócio como um todo, ganhando poder de sugerir e propor ideias aos franqueadores (Olivo, 2012). Terry e sua sócia possuem mais da metade das franquias da rede e consequentemente podem propor adaptações e exceções ao modelo existente. Wesley também pensa no modelo de franquias, mas adaptado para ter sócios investidores ao invés de franqueados. É um modelo que parece viável, mas é um processo mais lento do que os modelos tradicionais de franquias. A grande dúvida é a estratégia de saída dos investidores, que não parece ainda muito clara para Wesley. Assim como outras iniciativas do empreendedor, seu negócio segue o caminho efectual (Sarasvathy, 2001), ou seja, vai sendo construído a partir do aprendizado e da experiência, sem muitos detalhes no planejamento futuro. Por isso, só o tempo dirá se essa proposta dará certo ou não. Afinal, o investidor está mais acostumado com o modelo causal, o que pode sacrificar a tão valorizada autonomia do empreendedor que o permite tomar decisões arriscadas e incertas. O quadro a seguir resume as principais conclusões desse estudo:
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EMPRESA
CONCLUSÃO
WDOG
Inovar é bom e é importante, mas é preciso saber como sustentar a inovação ao longo do tempo;
WDOG
Se a oportunidade é boa, é única e ninguém mais percebeu, vale dedicar o esforço e o tempo necessários para explorá-la;
WDOG
A humildade de reconhecer os erros e voltar atrás em algumas decisões pode acarretar em perdas, mas pode ser o único caminho para prosseguir o crescimento;
WDOG
Planejamento baseado em premissas incertas deve ser o tempo todo revisto;
WDOG
É preciso persistência e paciência para quebrar paradigmas impostos por hábitos culturais;
WDOG
Expansão por franquias com capital de terceiros requer algumas revisões no modelo de negócio e na postura do franqueador;
Salgado Mania
Existe a possibilidade de o empreendedor de franquias promover e implantar inovações ao franqueador;
Salgado Mania
A motivação do empreendedor pode ser diferente do propósito do negócio;
Salgado Mania
O papel social do negócio pode ser uma fonte de inspiração do empreendedor;
Salgado Mania
Algumas características empreendedoras podem ser forjadas por circunstâncias adversas;
Salgado Mania
O negócio precisa procurar se adaptar ao mercado local e seu comportamento.
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Miniaturas de Arenas e canecas comemorativas: oportunidades empreendedoras em Curitiba
Foto: Mauricio Mano - Atlético Paranaense
Arena da Baixada
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Curitiba – PR
JOGOS DA COPA DO MUNDO DE 2014: Irã 0 x 0 Nigéria Honduras
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Equador
Austrália 0 x 3 Espanha Argélia
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Rússia
Negรณcios Empreendedores
Capítulo 11
MINIATURAS DE ARENAS E CANECAS COMEMORATIVAS: OPORTUNIDADES EMPREENDEDORAS EM CURITIBA Autores: Fernando Antonio Prado Gimenez fapgimenez@gmail.com Universidade Federal do Paraná – UFPR Curitiba – PR
Sara Culti Gimenez sara.gimenez@hotmail.com Universidade Federal do Paraná – UFPR Curitiba – PR
C
riar uma nova empresa exige que o empreendedor tome decisões sobre uma série de assuntos. O foco central desse processo decisório é a busca da sustentabilidade em longo prazo da organização nascente. Um dos primeiros aspectos com que se defrontam os empreendedores é a escolha do campo de atuação da empresa. Outro aspecto relevante na criação de uma nova empresa está associado com a adoção de tecnologias que tornem possível levar aos mercados escolhidos a oferta de produtos ou serviços da nova organização. Nesse domínio, há pelo menos dois tipos de decisões: escolher as tecnologias que permitirão a fabricação de produtos ou a prestação de serviços, dependendo da natureza da empresa; e a adoção de tecnologias de distribuição que garantam a entrega dos produtos ou serviços no momento desejado pelos clientes. Um terceiro grupo de decisões fundamentais para o estabelecimento de um novo empreendimento no mercado diz respeito à divisão de tarefas e definição dos processos de trabalho que serão necessários para um funcionamento eficiente da nova empresa. Essas decisões acabam se materializando em escolhas sobre as competências e conhecimentos que as pessoas que se juntarão à organização, seja como sócios ou colaboradores, devem possuir para que a empresa nascente seja bem sucedida. Borges, Filion e Simard (2013) apontaram que o processo de criação de uma empresa, em geral, passa por quatro etapas: iniciação, preparação, lançamento
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Negócios Empreendedores
e consolidação. Para cada uma dessas etapas, há a necessidade da aplicação dos mais variados tipos de recursos. Os recursos que compõem a base para um novo empreendimento são humanos, sociais, financeiros, físicos, tecnológicos e organizacionais, podendo ser categorizados como simples ou complexos. Segundo Brush, Green e Hart (2002), recursos simples são tangíveis, descontínuos e baseados na propriedade, enquanto os recursos complexos são intangíveis, sistemáticos e baseados no conhecimento. Outra forma de diferenciar os recursos necessários à criação e desenvolvimento de uma nova empresa é a distinção entre recursos utilitários e instrumentais. Os utilitários são aplicados diretamente no processo produtivo ou combinados para desenvolver outros recursos, enquanto os instrumentais são usados para fornecer acesso a outros recursos (Brush, Green e Hart, 2002). De forma resumida, pode-se então considerar que um empreendedor quando está envolvido na criação de uma nova empresa procura buscar, articular, integrar e aplicar recursos diferentes que podem ser simples, tais como matéria-prima ou dinheiro. Depois, deve definir as capacidades e competências que permitirão sistematizar procedimentos. Estas são essencialmente baseadas em conhecimento, sendo, portanto, recursos complexos. Por fim, o empreendedor para garantir a sustentabilidade da empresa no longo prazo deverá envidar esforços contínuos de inovação e diferenciação, permitindo à empresa se tornar mais competitiva em seu mercado (Brush et al., 2002). Qualquer iniciativa empreendedora se vincula a uma oportunidade para empreender, sendo a descoberta de oportunidades a questão central da atividade do empreendedor (Filion e Dolabela, 2000). Essa descoberta de uma oportunidade é que vai permitir o início do processo empreendedor conforme delineado por Borges, Filion e Simard (2013). Mas as etapas sugeridas por esses autores servem também para esclarecer como ocorre a exploração de oportunidades de ampliação do escopo de atuação de uma organização já existente. Ou seja, quando uma nova área de negócio surge em uma empresa já existente, tem-se a presença de um processo empreendedor que ocorrerá da mesma forma que a proposta por Borges, Filion e Simard (2013). A diferença é que nesse processo não há o surgimento de uma nova empresa, mas a criação de uma nova linha de produtos ou serviços que podem contribuir para a sustentabilidade da empresa em longo prazo. Essa noção do processo empreendedor associado à exploração de oportunidades foi proposta também por Shane e Venkataraman (2000). Para eles, o empreendedor identifica e explora as oportunidades, descobrindo, avaliando e explorando bens e serviços futuros. A realização da Copa do Mundo no Brasil em 2014 foi um período de muitas oportunidades para o surgimento de novas empresas ou de exploração de possibilidades de ampliação de empresas já existentes. No caso da cidade
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Miniaturas de Arenas e canecas comemorativas: oportunidades empreendedoras em Curitiba
de Curitiba houve uma movimentação em diversos setores empresariais para aproveitar o período de realização da Copa do Mundo com a vinda de turistas para a cidade, cujo objetivo foi o de ampliar o faturamento das empresas locais. Nesse contexto, este capítulo relata os resultados de um estudo feito com duas empresas que aproveitaram a realização dos jogos da Copa do Mundo em Curitiba para explorar oportunidades distintas de negócios. O objetivo do estudo foi verificar como a realização da Copa do Mundo em 2014 permitiu tanto a oportunidade de empreender por meio da tentativa de consolidação de uma empresa recém-criada, quanto por meio da ampliação da linha de produtos ofertados por uma pequena empresa varejista que existe há mais de 60 anos. Com essa finalidade, o capítulo está estruturado em mais quatro seções além dessa introdução. Na próxima seção, descreve-se brevemente a cidade de Curitiba, a Arena esportiva onde foram realizados os jogos e apresentam-se alguns dos efeitos positivos relatados na imprensa com a realização de jogos da Copa 2014. A terceira seção é dedicada à descrição do processo empreendedor que levou à consolidação de uma nova empresa que teve seu início no ano de 2011. O caso de uma empresa varejista cuja proximidade com a Arena esportiva permitiu a oferta de um produto específico para os turistas é relatado na quarta seção. Por fim, a última seção traz as considerações finais desse estudo apontando sua contribuição para o campo do empreendedorismo.
Curitiba e A Copa do Mundo de 2014 Curitiba, capital do Estado do Paraná, tem 1.746.896 habitantes e concentra uma região metropolitana composta por mais 28 municípios. Essa região, segundo dados do Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social – IPARDES, tem um elevado grau de urbanização e apresentou um PIB per capita em 2011 de R$ 31.188,001. Dados disponíveis no site da Agência Curitiba revelam que os municípios da Região Metropolitana de Curitiba concentram 64% da população urbana do Paraná, tendo crescido 3,5 vezes desde a década de 19702. Curitiba tem uma boa infraestrutura de transporte, uma rede hoteleira com capacidade de oferta de 18 mil leitos segundo a ABIH – Paraná (Associação Brasileira da Indústria de Hotéis) e foi escolhida como uma das cidades-sede da Copa 2014. O IDH – Municipal de Curitiba em 2013 foi de 0,823, o maior 1 www.ipardes.gov.br/perfil_regioes/MontaPerfilRegiao.php?Municipio=921&btOk=ok 2 www.agencia.curitiba.pr.gov.br/publico/conteudo.aspx?codigo=42
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Negócios Empreendedores
do Estado e décima colocação entre todos os municípios do Brasil, segundo o ranking do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento)3. O estádio onde foram realizados os jogos da Copa 2014 em Curitiba – Estádio Joaquim Américo Guimarães, mais conhecido como Arena da Baixada – é de propriedade do Clube Atlético Paranaense. Conforme descrito no Portal da Copa, sua localização privilegiada, no bairro Água Verde, que é parte do centro expandido da capital paranaense, permite o acesso a uma variada oferta de transporte público e estacionamentos coletivos. De igual forma, a Arena da Baixada é muito próxima da região hoteleira de Curitiba, ficando a 18 quilômetros do aeroporto Afonso Pena. A Arena da Baixada foi inaugurada em 1999 e passou por reformas que durou um ano e meio. O evento teste da Arena da Baixada foi em 29/3/2014 com um jogo entre o time dono da casa e o Corinthians, que terminou com a vitória do time visitante por 2 x 1. Na obra trabalharam mais de 5.500 operários, com um investimento de R$ 360 milhões. A capacidade de público após a reforma do estádio ficou em 43 mil pessoas4. Os preparativos para a Copa 2014 e sua realização trouxeram efeitos positivos para a cidade e para o Estado do Paraná, especialmente do ponto de vista econômico. Por exemplo, conforme noticiado no Portal 20145, iniciativa do Sindicato da Arquitetura e Engenharia (SINAENCO), o setor de bares e restaurantes investiu, em todo o Paraná, R$ 500 milhões em infraestrutura física, reordenamento de cardápio, qualificação de mão de obra e introdução de novos pratos para receber os turistas e torcedores da Copa do Mundo. A estimativa era que Curitiba receberia cerca de 400 mil turistas6. Outro exemplo de oportunidade percebida por empreendedores, ainda com relação ao turismo, foi descrita em notícia de 12/5/2014, relatando o desenvolvimento de um aplicativo para guiar os turistas em passeio autoguiado pelo centro histórico de Curitiba. Esse aplicativo permite ao turista conhecer o setor histórico da cidade, enquanto caminha e ouve histórias do local. O serviço foi oferecido entre 10 de junho e 15 de julho. As gravações trazem depoimentos de artistas de rua, jornalistas, músicos, fotógrafos, poetas e pessoas ligadas à vida cultural de Curitiba7. 3 www.pnud.org.br/atlas/ranking/Ranking-IDHM-Municipios-2010.aspx 4 www.copa2014.gov.br/pt-br/sedes/curitiba/Arena 5 www.portal2014.org.br/ 6 www.copa2014.curitiba.pr.gov.br/noticias/empresarios-do-setor-de-alimentacao-investem-parareceber-turistas/32813 1/1 7 www.copa2014.curitiba.pr.gov.br/noticias/aplicativo-ajuda-turista-a-conhecer-setor-historico-decuritiba/32870
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Miniaturas de Arenas e canecas comemorativas: oportunidades empreendedoras em Curitiba
Avaliação feita com dados do Ministério do Trabalho e Emprego demonstrou que Curitiba foi a cidade que teve melhor desempenho na geração de empregos. Segundo o texto, dados do Ministério do Trabalho e Emprego mostravam que Curitiba teve um crescimento de 1,88% no saldo de empregos (diferença entre o número de vagas abertas e fechadas), quando comparado com igual período do ano anterior. Por outro lado, a média das outras 12 cidades ficou em 0,73%, o que significa que Curitiba teve um crescimento 2,5 vezes maior do que as outras cidades. Em termos absolutos, esse desempenho significou a geração de 14.265 vagas na cidade8. Durante a realização da Copa 2014, o setor de bares e restaurantes foi impactado positivamente em termos de movimento também. Dados da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes – Seção Paraná (Abrasel-PR) evidenciaram que houve um aumento médio de faturamento de 30% nos dois setores9. O comércio popular também se beneficiou para a Copa 2014 em Curitiba. No Mercado Central da Cidade, os comerciantes tinham seus quiosques repletos de produtos produzidos para a Copa do Mundo, tais como camisetas, bonés, toalhas, produtos cerâmico em geral, entre outros10. Também o artesanato foi impactado positivamente na Copa 2014. No dia 24/4/2014, uma notícia informava sobre os planos de uma artesã curitibana em relação à Copa 2014. Ariane, uma artesã que integrava o projeto Sou Curitiba, desenvolveu um porta post-it e marcador de livro com diferentes ilustrações das principais atrações turísticas de Curitiba. Sou Curitiba é “um projeto de economia criativa com o objetivo de desenvolver suvenires de qualidade e, através da comercialização destes produtos, fortalecer a imagem da capital paranaense como destino turístico”. Esta foi uma iniciativa do Sebrae/PR, realizada em parceria com a Prefeitura de Curitiba, por meio do Instituto Municipal de Turismo, do Instituto Pró-Cidadania de Curitiba, da Fundação de Ação Social e a Fundação Cultural, além da Universidade Federal do Paraná11. Foi nesse ambiente favorável que ocorreram as iniciativas empreendedoras analisadas nesse estudo. Os dois casos são relatados nas próximas seções.
8 www.copa2014.curitiba.pr.gov.br/noticias/curitiba-e-a-sede-da-copa-com-melhor-desempenho-nageracao-de-empregos/33551 9 www.copa2014.curitiba.pr.gov.br/noticias/copa-aumenta-em-30-o-movimento-de-bares-e-casasnoturnas-de-curitiba/33384 10 www.copa2014.curitiba.pr.gov.br/noticias/mercado-central-esta-lotado-de-produtos-verde-amarelopara-torcedores/33023 11 www.copa2014.curitiba.pr.gov.br/noticias/artesa-aposta-no-turismo-da-copa-para-vender-novosprodutos/32688
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Negรณcios Empreendedores
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CASO 1
MINIATURAS DE ESTÁDIOS: A OPORTUNIDADE DE CONSOLIDAÇÃO DE UMA PEQUENA EMPRESA JOVEM
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m 2011 a B2X ARTE foi criada por dois jovens empreendedores a partir de um projeto de fazer miniaturas de jogadores de clubes de futebol. Arnoldo Bley Junior e Pedro H. S. Brollo, na faixa dos 34 anos, conheceram as miniaturas de jogadores de futebol em viagens fora do Brasil e resolveram implantar a novidade no Brasil. Haviam percebido que este tipo de produto era uma moda que atraía muitos compradores no exterior, especialmente colecionadores. Mas a ideia não deu muito certo. Na verdade a gente pensava que existia uma carência de suvenir no mercado no caso de clubes e times de futebol, e a gente teve a ideia porque na Europa e Estados Unidos colecionavam, mas isso não acontece aqui no Brasil. Só que a gente começou a ver que aqui no Brasil é diferente dos Estados Unidos, aqui o jogador fica seis meses, ele vai do estrelato a pino muito rápido. (Arnoldo) O tempo de vida do jogador no Brasil nos clubes é muito pequeno. A importância do jogador é pequena em termos de propaganda, diferente da Europa, que tem jogador que o mundo inteiro conhece, se torna um astro do futebol, até você mesmo que não gosta de futebol já ouviu falar. Aqui no Brasil às vezes o próprio time que você torce não sabe o nome dos jogadores, então isso lá não existe. (Pedro)
Mas o insucesso inicial não desanimou os dois jovens empreendedores. A empresa começou como uma atividade paralela a suas principais ocupações e não era a fonte de renda única de ambos. Um deles, Pedro, é formado em Administração, com pós-graduação em logística, já tinha experiência anterior com importação e exportação, uma vivência na área de comércio exterior que se mostraria muito importante para a empresa. Arnoldo é formado em Direito e tem uma franquia de lingerie. Diz que sempre gostou de ter seu negócio próprio. Quando começaram a B2X ARTE não haviam pensado explicitamente nas oportunidades que a Copa 2014 traria para a empresa. Mas, segundo Arnoldo, quando resolveram direcionar a empresa para a fabricação de miniaturas de estádios, seguindo a sugestão de um diretor de clube de futebol, amigo de um deles, procuraram a Globo Marcas, que estava fazendo o licenciamento da Fifa no Brasil. Em suas palavras,
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Negócios Empreendedores havia uma ideia, mas não tão firme, até porque a gente estava para conhecer um pouco como funcionava e a Copa, sim, era uma oportunidade. A gente começou até para compreender o mercado, como funciona, seu potencial e com isso fomos aprendendo até por questões da Copa, não chegar cru e ter expertise, aí entramos em contato com a Globo Marcas que é da equipe de licenciamento da Fifa no Brasil, apresentamos nosso produto, eles gostaram, aprovaram e aí a gente desenvolveu as 12 Arenas da Copa.
No site da empresa1, encontra-se a seguinte descrição de suas atividades: A B2X ARTE foi criada em 2011 com a finalidade de atender o mercado brasileiro com produtos licenciados, gifts e brindes promocionais personalizados. Trabalhando com produtos personalizados em resina, acrílico, PVC e gifts como cartões 3D, ear phones entre outros. Além do fornecer produtos oficiais de grandes clubes de futebol brasileiro, no ano de 2013, a B2X ARTE tornou-se empresa licenciada oficial da Fifa para a Copa do Mundo Brasil 2014 para a produção de miniaturas dos 12 estádios do mundial.
A criação da empresa O processo de criação da empresa não exigiu um volume de recursos financeiros muito grandes no seu começo. Segundo os dois sócios, não houve a necessidade de obter recursos de outras fontes. Todavia, a partir das negociações para ofertar as miniaturas de estádios de futebol durante a Copa 2014, tiveram que buscar recursos na forma de empréstimos. Nesse momento, segundo relatado por eles, contaram com o apoio do Banco do Brasil, por meio do gerente da conta da franquia de um dos sócios. A fase inicial da empresa foi precedida de um processo formal de planejamento com análise de necessidade de investimentos. Para o desenvolvimento das miniaturas de estádios para a Copa, os estudos foram mais aprofundados. Primeiro a gente pegou as cidades e já sabia quantos jogos teriam, então eram 12 produtos e a gente sabia qual produto deveria produzir, nas cidades com mais jogos mais produtos, menos jogos menos produtos. O Maracanã era o que venderia mais porque era o símbolo, era o Estádio Oficial, o mais conhecido, ele representava quase 60% de nossas vendas, se a gente produzisse mais agora venderia tudo, mas a gente não pode mais, o licenciamento era até junho... estratégia de potencial foi ver a quantidade de jogos, estruturas de Copas anteriores e o apoio da Globo Marcas que nos passou números de Copas anteriores, percentual de compras da população e analisar que cada país muda, se pegar a África não tem nenhuma tradição em futebol. O Brasil é diferente. (Arnoldo)
A entrada do mercado com a miniatura de jogadores de futebol foi por meio de venda para as lojas oficiais dos clubes de futebol. Mas, serviu mais 1 www.b2xarte.com.br
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Miniaturas de Arenas e canecas comemorativas: oportunidades empreendedoras em Curitiba
como experiência de aprendizagem, pois cometeram alguns erros e acabaram tendo prejuízo. Geralmente os clubes têm uma rede de lojas oficiais, esse foi o start para começar as vendas. Os clubes aqui do Paraná têm pouquinhas lojas, mas a gente se baseou nisso para ver a quantidade de produção. (Arnoldo) Nós erramos, nós não tínhamos noção de volume de compra. Nós fizemos mais do que poderíamos vender, foi um investimento, mas deu prejuízo. (Pedro) Na verdade a gente foi aprendendo com o tempo mesmo. A prática nos deu diretriz, fomos remodelando o negócio. (Arnoldo) ... teve lançamento no clube, jogador autografou, mas foi o ano da queda, o time estava mal, tudo isso influenciou no negócio. Se o time está bem é diferente. A gente trabalhou com o Estádio do Criciúma e do Coritiba, o time caiu para a subdivisão. (Pedro)
O funcionamento da empresa parece depender de uma boa capacidade de articulação e negociação com fornecedores e distribuidores. A B2X ARTE não se envolve no processo produtivo, que é executado por um fornecedor da China. A distribuição também é terceirizada. Os dois sócios dividem o acompanhamento de todas as atividades da empresa. Conforme Pedro, ele cuida da parte do comércio exterior, logística, armazenagem e parte administrativa. Arnoldo é responsável pela parte técnica, primeiros contatos comerciais, busca de novos negócios e oportunidades. O funcionamento da empresa foi assim relatado por Arnoldo: Bom, tem a parte de licenciamento que a gente entra em contato direto com os clubes, e no caso da Fifa, com a Globo Marcas, licencia o produto, mostra o que a gente vai fazer e aí vem o desenvolvimento do produto. Nós desenvolvemos o produto com esse fornecedor da China, vamos lapidando a imagem e depois a gente recebe a amostra e aprova junto ao clube. Feito isso, começa a produção, nosso fornecedor eu conheço, fui pra China... A gente faz a comercialização e terceiriza a maioria das partes. Tem um armazém terceirizado que faz a distribuição, então a gente recebe o pedido, passa para o armazém fazer a separação e aí vem a transportadora e coleta. A gente cuida da parte comercial e gerencial.
Segundo um dos sócios, o processo de venda é muito simples: “O cliente faz o pedido do estádio pelo representante, que encaminha para o galpão e a transportadora passa e pega, não tem muito segredo. Os representantes fazem os mercados menores, as grandes redes são o nosso contato direto”. Além disso, a empresa também possui um canal de venda direta ao consumidor por meio do
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Negócios Empreendedores
site na internet2. Uma característica da empresa é que, em função da terceirização de todas as atividades, no momento dessa entrevista não conta com empregados. Mas um dos sócios afirmou que em breve será necessário. Para as vendas, a empresa conta com o trabalho de sete representantes comerciais contratados.
Mídias tradicional e social impulsionam divulgação A comunicação com o mercado se dá por diversas formas. Na entrevista, os dois sócios mencionaram o uso do Facebook, página da empresa na internet com loja virtual, e a divulgação da empresa com link nas páginas dos clubes de futebol. Também participam de programas esportivos em transmissoras de rádio. Na época da Copa, houve a participação em sorteios na Rede Globo. A experiência com o mercado da Copa levou a uma preocupação maior com o planejamento. Segundo os dois sócios, agora planejam com mais cuidado os próximos passos, refletindo sobre o que querem, aonde querem chegar, o que fazer para desenvolver um novo brinde, que parceiros buscar. Tudo isso de forma escrita. O foco, como disse Pedro, está no mercado: “A gente olha a necessidade do mercado. Agora têm acontecido novos contatos e isso ajuda a gente a entender a deficiência do mercado”. As expectativas que ambos tinham com a oportunidade de licenciar um produto com a marca Fifa era entrar em grandes lojas do varejo. Embora não tenham revelado números, os resultados na avaliação de ambos foram muito bons. Segundo eles, uma das oportunidades que a Copa poderia nos trazer era justamente entrar nos grandes players, até então só tinha um que era a “Nadir”, loja virtual que é uma das mais respeitadas nessa área. Para a Copa a gente visualizou uma abertura maior de mercado e foi o que aconteceu. (Arnoldo) Resultados muito bons, a gente entrou na Saraiva, Senac São Paulo, Americanas.com, Wallmart, aeroportos que eram oficiais. Um dos principais motivos para a gente fazer isso era evidenciar nossa marca, conseguir entrar em vários pontos de venda e ter o máximo de canal de distribuição possível. (Arnoldo) A gente não conseguiu entrar em todos os lugares onde queria, mas temos contato com supermercados e postos de gasolina, por exemplo. Não que eles compraram, mas com a abertura da Copa, conseguimos ter os contatos, algo difícil nesse trabalho. (Pedro) 2 www.b2xarte.com.br
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Miniaturas de Arenas e canecas comemorativas: oportunidades empreendedoras em Curitiba
Apesar de todo o clima de investimento com a Copa 2014, houve um aspecto que, na opinião dos dois sócios, prejudicou a empresa, que poderia ter tido resultados ainda melhores. Os movimentos populares de protestos antes da realização da Copa causaram um pouco de receio entre os comerciantes em geral. Isso está retratado nos depoimentos a seguir: ... houve a rejeição do povo com a Copa em geral e a gente estava trabalhando com um produto que era mais batido, tipo “dinheiro público está indo para os estádios”, tivemos dificuldades por isso. (Arnoldo) Se a Copa tivesse apoio popular quando a gente assinou o contrato, em 2012, o retorno para nossa empresa teria sido muito maior. A Copa no Brasil aconteceu, na verdade, duas semanas antes. Na nossa homepage era só xingamento: “Por que vocês não fazem escola?”, “por que vocês não fazem hospitais?”. Quando começou a Copa, não teve mais xingamento, só pessoal curtindo e comprando. (Pedro) Os lojistas ficaram com receio, o volume de vendas poderia ter sido muito maior se todo mundo tivesse uma expectativa positiva da Copa. (Pedro)
Mas, na opinião de Arnoldo, o resultado positivo não se restringiu ao aumento do faturamento. A empresa também se tornou mais conhecida no mercado. Para ele, ... aumentou nosso faturamento, mas o principal hoje é que a gente tem um cartão de visita de respeito, empresas estão nos procurando justamente para fazer brindes promocionais, querem fazer um mascote da empresa. Pra gente é muito melhor, porque estamos fazendo produção sob encomenda.
Ao final da entrevista, os dois apontaram dois fatores que consideravam importantes no processo de criação e desenvolvimento da empresa. O primeiro foi a pesquisa constante de informações pela internet. Segundo eles, “um meio barato de obter informações”. O outro foi o fato de começarem esse negócio em paralelo a suas ocupações anteriores: “Se não tivéssemos nossos empregos a gente tinha quebrado. Fomos cautelosos e persistentes”. Atualmente a empresa é a principal ocupação de ambos. A consolidação da empresa parece estar se encaminhando bem. No site dela, a informação mais recente é que foi licenciada para desenvolver produtos para um dos maiores eventos musicais do mundo, o Rock in Rio. O caso da B2X ARTE evidenciou que a realização da Copa 2014 no Brasil foi um evento que gerou uma oportunidade de negócio para a empresa, permitindo que esta evoluísse em seu processo empreendedor, atingindo seu estágio de consolidação conforme Borges, Filion e Simard
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Negócios Empreendedores
(2013). De uma atividade paralela, a empresa tornou-se a principal ocupação dos dois sócios. A história de criação e consolidação da B2X ARTE demonstrou também que um processo empreendedor se realiza por meio da articulação e integração de diferentes recursos. Nessa empresa, pode se ver a utilização de competências e conhecimentos anteriores dos sócios, junto com recursos financeiros e tecnológicos. Além disso, nesse caso, parece estar presente um aspecto central que é a articulação de diferentes parceiros em um processo altamente terceirizado. Esse fato nos remete ao que a literatura em empreendedorismo tem tratado de capital social dos empreendedores. Um dos fatores de sucesso na criação de novas empresas é o capital social (Borges e Filion, 2012). O capital social pode ser conceituado como a rede de relações do empreendedor e os recursos que podem ser mobilizados por meio dessa rede na construção e crescimento da empresa (Borges e Filion, 2012). O capital social facilita aos potenciais empreendedores tanto a identificação quanto a aquisição de diferentes tipos de recursos. Fazendo um paralelo com os pressupostos de Anand, Glick e Manz (2002), essa é uma característica marcante da B2X ARTE. O capital social da organização refere-se ao conhecimento e à informação aos quais as organizações podem ter acesso, utilizando suas conexões formais e informais com agentes externos – como clientes, mão de obra terceirizada de outras organizações e assim por diante (p. 60).
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Fotos: divulgação
Miniaturas de Arenas e canecas comemorativas: oportunidades empreendedoras em Curitiba
Miniaturas das Arenas da Copa: articulação e integração de recursos na B2X ARTE
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CASO 2
CANECAS COMEMORATIVAS: COMO AUMENTAR O FATURAMENTO DE UMA PEQUENA EMPRESA LONGEVA
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Copa 2014 não foi um momento de oportunidades apenas para empresas nascentes. Como relatado anteriormente, empreendedores estabelecidos há mais tempo na cidade também se beneficiaram com esse grande evento esportivo. Entre esses negócios, o caso da Kilouças chama atenção pelo fato de ser uma empresa em um ramo de atividade no qual, a princípio, não parecia haver nenhuma possibilidade de ganho com a realização da Copa em Curitiba. Ao contrário, atuando no ramo de varejo de utilidades domésticas, tais como panelas e louças em geral, a empresa, que tem uma filial bem ao lado da Arena da Baixada, estava ameaçada de sofrer prejuízos com a Copa. As notícias que se tinham à época é que todo o comércio no entorno das Arenas esportivas seria fechado durante os jogos da Copa. Felizmente, para Gabriela Toledo, uma das proprietárias do negócio, isso não aconteceu e ela teve a oportunidade de incluir em sua linha de produtos as canecas licenciadas pela Fifa e fabricadas pela empresa Oxford. Conforme depoimento de Gabriela para o Portal da Copa: A ação não foi pensada como uma estratégia de marketing. Nós apenas decidimos aproveitar a oportunidade de atender os turistas, já que o que vendemos normalmente não teria muitos atrativos.
A lojista teve a ideia enquanto assistia a uma palestra no Sebrae em que se abordou o aproveitamento de oportunidades de negócios oferecidas pela Copa. Além de investir no licenciamento, a empresária também deu especial atenção ao relacionamento com os torcedores estrangeiros: imprimiu um pequeno panfleto com informações em quatro idiomas (português, espanhol, inglês e russo) e ofereceu um serviço de entrega nos hotéis1.
Tradição que renasceu das cinzas A Kilouças é uma empresa que está no mercado há mais de 60 anos, comercializando panelas e utilidades domésticas. Seu mercado alvo envolve 1 www.copa2014.curitiba.pr.gov.br/noticias/lojista-inova-e-aproveita-oportunidade-oferecida-pelacopa/33414
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públicos diversos, como restaurantes, empresas e pessoas em geral, mas principalmente a dona de casa. A missão da empresa, definida em seu site na internet, é atender os clientes mais exigentes, aliando a qualidade dos produtos ao preço justo. A empreendedora recebe os clientes de maneira acolhedora, conhecendo muitos pelo nome. Tem sua loja matriz, situada na região mais central de Curitiba, próxima ao marco zero da cidade, na Praça Tiradentes, com um ar de bazar, que retrata a forma como ela foi criada na década de 1950 do século passado. É uma típica loja de varejo que se encontra nas regiões centrais de muitas cidades brasileiras. Além da matriz situada no centro de Curitiba, a empresa conta com duas filiais. Uma no bairro Água Verde, no entorno da Arena da Baixada, e outra no Pinheirinho, bairro com uma população de menor renda e bem distante do centro da cidade. A criação dessa filial não foi resultado de um processo de planejamento ou de deliberação formal. Como ocorre em muitas empresas desse tipo, as decisões são tomadas de forma emergente conforme vão surgindo as oportunidades. Nesse caso, Gabriela fez o seguinte relato: Aqui do lado havia uma cervejaria, próxima do centro. Há 15 anos, o bairro Água Verde era muito deserto, só tinha a praça, então fizemos o depósito aqui. Antes disso o depósito era no Hauer, e era muito longe do centro, inviável o tempo de deslocamento. Surgiu a oportunidade de comprar esse lugar, que era o depósito antigamente. Construímos essa loja aqui no mesmo terreno. Então foi por proximidade mesmo, não teve pesquisa de mercado, foi intuitivo. Não houve planejamento, temos até hoje os livros de contabilidade, era tudo feito à mão, as notas todas datilografadas, tudo manual.
Uma situação semelhante ocorreu com a abertura da loja no Pinheirinho: Abrimos uma loja há pouco tempo no Pinheirinho com o mesmo perfil... mas vai dando certo, as pessoas precisam de utilidades domésticas. A loja do Pinheirinho também foi uma oportunidade de compra, um tio do meu marido que é dono da loja Armarinhos Bandeirantes tinha o imóvel lá e ofereceu para meu marido, daí ele achou que seria um bom negócio.
Gabriela contou que a empresa está na terceira geração, atualmente comandada por seu marido, neto do fundador da empresa. Ela é formada em comunicação e trabalhava em uma agência de publicidade anteriormente. Mas, após ter engravidado do segundo filho, resolveu parar de trabalhar para terceiros e veio ajudar na empresa do marido. Gabriela resumiu a criação da empresa: O avô do meu marido veio do Líbano e abriu a loja de tecido no centro. Um belo dia a loja pegou fogo. Quando ele estava se refazendo, chegou outro amigo do Líbano.
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Miniaturas de Arenas e canecas comemorativas: oportunidades empreendedoras em Curitiba Bom, então a Kilouça do centro era a esquina inteira, aí ele dividiu para o amigo dele também poder trabalhar e ele montou um bazar. Era uma loja que tinha de tudo, vendia brinquedos na época de Natal e Dia das Crianças e chocolate na Páscoa. Quando meu sogro assumiu, e depois com meu marido, começou a direcionar para as utilidades domésticas. Ele realmente tinha muito tino para o comércio e ficou quase 50 anos à frente da loja. Não tenho a data certa, não é da minha época. Meu sogro abriu novas frentes, a gente tem fabricantes que são nossos fornecedores até hoje. Em 2009 meu marido assumiu a direção da loja e aí eu vim pra cá. Essa loja que é a filial tem 10 anos, antes aqui do lado era o depósito da loja matriz no centro.
A angústia da Copa: abre ou não abre? A realização dos jogos da Copa 2014 em Curitiba trouxe muita insegurança para a filial da Kilouças nas proximidades da Arena da Baixada. A notícia mais ouvida era de que, por motivos de segurança, todas as atividades comerciais no entorno da Arena esportiva seriam fechadas durante a realização dos jogos. Essa situação preocupava Gabriela. Foi uma agonia porque a gente não tinha muita informação. A gente ligava no Portal da Copa na Secretaria, isso na segunda semana de maio 2012, e perguntava como iria ficar, se poderíamos abrir ou se a rua seria fechada. Ninguém sabia responder nada com certeza. Depois, ligaram do Sebrae, aí já tínhamos vistos as canecas, mas a informação que a gente tinha era que não ia poder abrir o comércio nos dias de jogos. A gente teria que pôr uma lona preta na fachada da loja, pois a Fifa não queria, o espaço já era da Fifa . Tínhamos que fazer cadastro para poder entrar, era tipo um cinturão de segurança.
Com a confirmação de que o comércio poderia funcionar normalmente, veio a reflexão sobre como aproveitar a oportunidade com um fluxo muito grande: Fomos numa reunião no Sebrae e eles disseram que poderíamos abrir. Então a gente pensou: vamos fazer um folder, a caneca a gente já tinha definido e estava licenciada, as pessoas não vão comprar panela de ferro para assistir aos jogos da Copa. Criamos o folder em português, espanhol, inglês e russo conforme as seleções que vinham jogar aqui.
Nessa ocasião, segundo Gabriela, eles tiveram o apoio do escritório regional do Sebrae em Curitiba no planejamento de como criar uma oportunidade para atender os turistas. Gabriela diz que resolveram contratar uma intérprete para os dias de jogos e criaram o serviço de entrega das compras nos hotéis onde os turistas estavam hospedados. Do ponto de vista de volume de negócios, a oportunidade não foi tão significativa. Mas, em termos globais, o resultado, de prejuízo com a realização da Copa em Curitiba, transformou-se em faturamento adicional para a empresa. Segundo Gabriela,
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a gente comprou 300 canecas e sobraram 20. Vendemos para turistas estrangeiros, moradores da cidade e da região. Então pessoas de outros bairros de Curitiba que vinham aos jogos, ou conhecer o estádio, tirar fotos, acabaram conhecendo essa loja, conheciam apenas a do centro. Com isso o prejuízo que a gente estimou não foi tão grande e a movimentação foi muito legal no mês da Copa. O turista chegava aqui e a gente tinha condições de atender e falar a língua dele, isso foi muito bacana. Para o cálculo das canecas a gente pensou: bom, vai ter que ter, então é melhor sobrar que faltar, foi no achômetro.
Como uma empresa tradicional de varejo, a Kilouças não tem uma estrutura administrativa complexa. Gabriela e o marido dividem a gestão da empresa. Para o aproveitamento da oportunidade criada pela Copa 2014 não foi feito nenhum plano de negócio. Segundo Gabriela, isto não foi possível porque não havia informações disponíveis. Não houve necessidade de ampliação do número de empregados na loja, apenas a contratação de uma intérprete para atendimento dos turistas nos dias de jogo. Também, não foi feita nenhuma ação de comunicação ou publicidade específica. “Nossa única ação ou estratégia foi oferecer algum produto para o turista ou quem viesse aproveitar a Copa”, diz Gabriela. O processo de venda na empresa é feito exclusivamente de forma presencial nas três lojas. Mas, embora haja planos para criação de uma loja virtual, Gabriela aponta algumas dificuldades para isso: A venda é só na loja por enquanto, estamos com toda a estrutura virtual hoje para fazer venda on line, o que falta pra gente é a estrutura física, uma pessoa, um departamento que possa atender direto, porque humanamente eu não consigo pensar na loja, na comunicação, na venda e no site.
O cliente que retorna só para bater um papinho A concorrência que a empresa enfrenta vem principalmente das grandes redes de lojas de departamentos e de supermercados, que oferecem, em geral, os mesmos produtos a preços menores. Para enfrentar essa situação, Gabriela diz que a Kilouças tem foco no atendimento. A gente lida com grandes mercados que vendem garrafas térmicas, panelas, talheres e tal. O que temos são produtos concorrentes, mas a gente não tem como competir com o preço, mercados fazem compras muito grandes e têm geralmente um preço melhor. Mas isso não é uma regra, a gente compara, faz pesquisa, embora nosso foco seja o atendimento. Nós conhecemos muito bem o produto que a pessoa está comprando, damos todas as informações e isso não tem nos mercados. O nosso atendimento é o nosso diferencial e não é o mercado que regula meu preço.
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Miniaturas de Arenas e canecas comemorativas: oportunidades empreendedoras em Curitiba
Esse aspecto de atuação do pequeno varejo já fora mencionada por Gabriela em outro momento, quando comentava sobre a necessidade de ampliar o mercado de atuação da empresa. A proposta agora para a loja é trazer o consumidor jovem. A gente já tem quase 70 anos, precisamos renovar esse público, mas ao mesmo tempo temos que continuar atentos às senhorinhas e aos senhorzinhos que encostam aqui no balcão e querem bater papo. Talvez porque a gente seja uma empresa familiar acaba dando essa atenção. Tinha um senhor que vinha todo sábado com o gatinho dele e a mulher, e tudo o que ele comprava dava problema, mas era para ele poder voltar no sábado seguinte e bater um novo papinho. A gente tem variedade de produtos, então vende mesmo. Mas também tem aqueles que vêm e dizem: “Não é bem isso que eu procurava”.
Indagada sobre planos para o futuro e razões para o sucesso da empresa, Gabriela respondeu que pretende incrementar ações de comunicação com o mercado e inovar em algumas práticas comerciais. Quanto ao sucesso, em sua opinião, este vem de uma preocupação em manter a situação sob controle, contando com o apoio de funcionário de confiança que está há décadas na empresa. Agora a gente contratou uma agência para fazer a comunicação, a criação do Facebook, isso é uma inovação também para entrar em contato com o público mais jovem. Algumas senhorinhas têm Facebook, entram e curtem a nossa página. A gente está fazendo propaganda no rádio e panfletos como nunca fizemos antes. Para esse final de ano fizemos Chá Bar para despedida de solteiro para os homens, eles estão fazendo suas festinhas, comprando tábua, espeto pra churrasco, taças, copos, facas e tal. Estamos estruturando com listas e convites, e isso nunca foi feito aqui. Outra coisa que estamos implantando é tentar rastrear a qualidade no atendimento para saber quais pontos estão bons e quais melhorar. Fizemos um formulário de satisfação para o cliente responder. Estamos há tantos anos no mercado, não podemos perder a mão, vamos devagarinho, o sucesso é relativo, precisa ter uma estrutura de crescimento sólido. Até posso abrir 10 ou 15 lojas, mas manter pode ser difícil, como a loja do centro. Abrir a loja é o menor dos problemas, mas você ter funcionários de confiança é bem difícil. A gente tem o senhor Chico, que é o nosso consertador de panelas, ele está com a gente há quase 30 anos, e o Adolfo, há 15 anos. Eu brinco com eles que vou pôr plaquinha de patrimônio porque isso é raro e muito difícil ter.
A forma como a Kilouças aproveitou a realização dos jogos da Copa 2014 em uma Arena próxima de uma de suas lojas é um exemplo de como podem ser aproveitadas oportunidades de negócios para contribuir na sustentabilidade em longo prazo de uma empresa. Embora cercada por incertezas, devido principalmente à possibilidade de a loja ter que cerrar as portas durante os dias de jogo, as ações
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executadas pelos proprietários da Kilouças evidenciaram uma capacidade de reagir de forma consistente e rápida. As compras efetuadas para oferecer um produto licenciado pela Fifa aos turistas que eventualmente entrassem na loja durante os dias de jogo deram um resultado positivo para a empresa, embora de montante não muito significativo. O comportamento exibido pela Kilouças foi consistente com seu modo informal de atuação no comércio varejista há mais de 60 anos. De certa forma, este pode ser considerado um processo emergente de decisões estratégicas, conforme apontado por Mintzberg (2001).
CONSIDERAÇÕES FINAIS Os dois casos analisados relatam situações de aproveitamento de um grande evento esportivo para o desenvolvimento de ações empreendedoras. Embora eles tratem de empresas que atuam em setores muitos distintos e em momentos diferentes de seus estágios de vida, há semelhanças e diferenças entre os casos que merecem ser destacadas. Em primeiro lugar, a essência da ação empreendedora em ambos os casos tomou a forma de um processo de ampliação da linha de produtos ofertada pelas empresas em seus mercados. No caso da B2X ARTE, a ampliação dos tipos de produtos foi propiciada pela possibilidade de fabricação de miniaturas das doze Arenas localizadas nas cidades que sediaram os jogos da Copa 2014. Por outro lado, para a Kilouças, houve a possibilidade de ofertar, por um período de tempo limitado, canecas licenciadas pela Fifa com design diferenciado de seus produtos. Mas, embora as ações empreendedoras tenham sido semelhantes, o escopo de mercado nos dois casos foi muito distinto. A Kilouças teve sua atuação focada em seu mercado local, mais especificamente no entorno da Arena da Baixada. O mercado alvo da B2X ARTE, por outro lado, foi nacional, o que significou a possibilidade de um faturamento muito maior. Por fim, o que os dois casos permitiram revelar é que ações empreendedoras que aproveitem oportunidades criadas por eventos esportivos podem ser de naturezas distintas e possuir efeitos temporais diversos. Nos casos em análise, houve uma ação empreendedora que permitiu a consolidação de uma empresa recém-criada, com efeitos de longo prazo, e outra ação empreendedora que aumentou o faturamento de uma pequena empresa longeva por um período de tempo muito curto.
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Fotos: divulgação
Miniaturas de Arenas e canecas comemorativas: oportunidades empreendedoras em Curitiba
Canecas vendidas na Kilouças, licenciadas pela Fifa, e folder em cinco idiomas
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Arena Beira-Rio Porto Alegre – RS
JOGOS DA COPA DO MUNDO DE 2014: França 3 x 0 Honduras Austrália 2 x 3 Holanda Coreia do Sul 2 x 4
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Nigéria 2 x 3 Argentina Alemanha
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Capítulo 12
AS DUAS FACES DA COPA DO MUNDO DE 2014 Vânia Maria Jorge Nassif vania.nassif@gmail.com Universidade Nove de Julho – Uninove São Paulo – SP
Autores: Lucas Reis lucas@lucasreis.com.br Universidade Nove de Julho – Uninove São Paulo – SP
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Yuri Spacov yurispacov@gmail.com Universidade Nove de Julho – Uninove São Paulo – SP
urante a Copa do Mundo, realizada de 12 de junho a 13 de julho de 2014, a Polícia Federal registrou a entrada de 101,4 mil estrangeiros no Rio Grande do Sul. Argentinos, franceses, norte-americanos, australianos, argelinos, alemães, holandeses, entre pessoas de outras nacionalidades, puderam conhecer a capital dos gaúchos, uma Porto Alegre de 1.409.939 habitantes, conforme censo do IBGE de 2010. A cidade foi sede de cinco jogos do maior torneio internacional de futebol. O Estádio Gigante Beira-Rio, casa do Sport Club Internacional, foi a sede gaúcha da Copa, tendo recebido jogos de três campeões mundiais: França, Argentina e Alemanha. Com a visita também das seleções da Holanda, Argélia, Coreia do Sul, Nigéria, Honduras e Austrália, cinco continentes estiveram representados na cidade. A média de torcedores nos jogos do Beira-Rio foi de 42 mil em cada partida. Vinte e dois gols foram marcados nos cinco jogos, média superior a quatro tentos por jogo. Além de jogos emocionantes, Porto Alegre foi palco de um dos lances mais originais do mundial. Com um trajeto de 3,5 quilômetros do Mercado Público — no Centro Histórico de Porto Alegre — até o Beira-Rio, o Caminho do Gol foi uma rota exclusiva para pedestres, aberta durante os dias de jogos, para que os torcedores pudessem se deslocar com segurança para assistir aos jogos sem ter que sofrer com eventuais problemas de trânsito. O trajeto também foi espaço para muita festa. Ao longo do Caminho do Gol o torcedor contava com serviço de lanches e refeições dos próprios comerciantes da
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localidade e também de ambulantes credenciados pela prefeitura. Apresentações culturais ao longo do trajeto valorizaram os artistas de rua gaúchos, com shows musicais, teatro e números circenses. O Caminho do Gol também contou com policiamento, atendimento para emergências, sanitários e postos de informações turísticas distribuídos ao longo de todo o percurso, uma área especial para os pedestres. O consumidor se torna peça fundamental para empresas inovarem em atender as necessidades e desejos de um determinado público-alvo, deste modo, o cliente contribui com o processo de desenvolvimento de produtos – PDP (Matias, Silveira, & Brandão, 2015). Isso tudo sem falar na festa espontânea protagonizada pelos próprios torcedores que percorriam o Caminho do Gol antes dos jogos, com destaque para holandeses, argentinos e alemães. Nos horários em que não havia jogos, a Fan Fest foi ponto de encontro dos turistas, que também foram atraídos pela peculiaridade do centenário Mercado Público e do Acampamento Farroupilha no Parque da Harmonia, evento normalmente realizado em setembro, mas que teve uma edição especial durante a Copa do Mundo, para mostrar a culinária, a música e a indumentária do gaúcho tradicional aos visitantes. À noite, o bairro boêmio Cidade Baixa, localizado próximo ao Centro Histórico, foi um dos principais palcos de convívio entre brasileiros e estrangeiros. Com toda essa variedade de atrações pela capital, sobrou pouco destaque para os estabelecimentos comerciantes das cercanias do Beira-Rio. Mas cabe referir que a Arena tem, de um lado, a margem do Lago Guaíba e, do outro, o Parque Marinha do Brasil, ou seja, são poucos os restaurantes, bares e lancheiras dos arredores. Para o tradicional Mek Aurio, “lancheria” com 30 anos de funcionamento quase no pátio do Beira-Rio, o que parecia nos anos anteriores à Copa do Mundo um motivo de empolgação acabou por virar uma situação amarga, em decorrência da burocracia da administração pública. As políticas públicas se mostram um obstáculo ao empreendedorismo brasileiro, razão pela qual a improvisação se tornou ferramenta básica para a solução de problemas empresariais, reestruturando o mínimo de operacionalidade com o menor desgaste político possível. A realidade é que o processo de reforma sofre a ação de uma força antagônica de contrarreforma em que os avanços modernizantes esbarram na reação dos setores tradicionais que querem manter o poder político e burocrático (Castor, 2004). Quanto ao estádio do Internacional, o projeto para reforma manteve a estrutura do Beira-Rio, mas incluiu modernização das arquibancadas, troca dos sistemas elétricos e hidráulicos, complementação dos sistemas de
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Foto: divulgação
informação, substituição do gramado, construção da cobertura com estrutura metálica e membrana, além de um edifício garagem. O investimento foi de R$ 330 milhões e proporcionou à instalação esportiva capacidade para 50 mil torcedores.
Estádio Gigante Beira-Rio
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Mek Aurio e o novo espaço: a reconstrução de um sonho arruinado pela Copa Foto: divulgação
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CASO 1
ÁUREO FINATO GEOVANELA: UM EMPREENDEDOR QUE ACREDITOU EM SI
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o início da adolescência, aos 14 anos de idade, Áureo Finato Geovanela já sabia o que queria: possuir um negócio próprio e dirigir a vida. Decidiu sair da pequena cidade de Lajeado, no interior do Rio Grande do Sul, em 1981, para ir em busca de desafios e sonhos na capital Porto Alegre. Um empreendedor inato é indomável, e seus pais sabiam que impedir a decisão de Áureo traria decepção e tristeza ao garoto. O pai de Áureo aceitou a decisão dele assegurando-o que, se algo desse errado, ele teria as portas de casa sempre abertas para retornar. E a mãe, mesmo com o coração apertado, não conseguiu retroceder o desejo do filho. O único conselho que ela deixou foi para o rapaz terminar os estudos. Áureo estudou pouco. Saiu do interior do RS com apenas a 5ª série do ensino fundamental. É nesse cenário de despedida que começa a trajetória de tenacidade, dedicação e honestidade do empreendedor proprietário do trailer Mek Aurio. Como havia prometido para sua mãe, mais tarde, em 2000, voltaria para a escola e iniciaria o curso supletivo, concluindo o ensino médio. Assim que chegou a Porto Alegre, a primeira impressão de Áureo foi que grandes descobertas estariam por vir. Seu primeiro trabalho foi em um armazém de secos e molhados que pertencia ao sogro de um amigo. Porém, para quem detém espírito empreendedor, era pouco. A vontade de ser dono de seu próprio negócio permeava sua mente. Quatro anos se passaram e Áureo ainda estava trabalhando no armazém, angustiado por estar no seu limite e ansioso para uma oportunidade surgir e se tornar um empreendedor. Em 10 de agosto de 1985 a tão esperada hora chegou. O primo de Áureo adquiriu um trailer de lanches em frente ao Estádio Beira-Rio e o convidou para ser sócio. Os quatro anos de trabalho no armazém possibilitou a compra apenas de 10% do trailer, com o primo sendo sócio majoritário, com 90%. Mas, como todo exímio empreendedor, Áureo é um ferrenho negociador, e combinou em trabalhar no trailer obtendo mais 10% do negócio. O primo aceitou a negociação e Áureo passou a deter 20%. No entanto, após seis meses, o primo desistiu do negócio. Para algumas pessoas isso poderia significar o fim de tudo, mas não para um rapaz que almejava ser um grande empreendedor como Áureo. Assim, aos 19 anos de idade e cinco
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anos após sua chegada em Porto Alegre, o jovem que saiu de Lajeado sem saber ao menos o que era leite em saco, se tornava proprietário do trailer de lanches em frente ao Beira-Rio. A partir desse momento, a vida de Áureo teve foco somente no trailer, obstinado por um excelente atendimento e pelo desejo de ser o melhor “X lanche” de Porto Alegre. Eu abria às 10h30 da manhã e ia até às 2h da madrugada todos os dias. Quando não tinha ninguém, eu me dirigia ao mercado para comprar mercadorias com meu pouco dinheiro. O que eu vendia até o meio-dia, comprava em produtos para vender a noite. Uma época muito difícil, em que eu não conhecia o ramo, mas eu queria vencer, essa era minha luta. Quando eu comecei com o trailer, sempre quis ser um dos melhores X de Porto Alegre. Hoje ele está entre os melhores X da região, caminhando para ser o melhor.
Áureo passou a dominar não apenas o negócio, mas também o ramo de atuação. No mesmo local, permaneceu por 28 anos e o seu trailer empregou 13 funcionários, contribuindo com a empregabilidade local, impactando consequentemente nas questões socioeconômicas da pequena região.
Vasculhando e aproveitando oportunidades A vida para Áureo foi sua maior escola. Autodidata, ia buscando informação, conhecimento, observando o que as pessoas faziam. Teve que conquistar espaço em um ambiente novo, sem entender nada sobre lanches e sem experiência para lidar com o público. Ele afirma que, quando veio para Porto Alegre, era muito tímido e ficava constrangido quando tinha que falar com as pessoas. Mas, a vida foi ensinando e ele percebeu que boa comunicação era um requisito fundamental para sobreviver, principalmente numa função de atendimento. Assim, Áureo foi rompendo as dificuldades, principalmente de relacionamento, e começou a fase de fazer networks. Entendeu que esse era o caminho e que sem amigos, clientes e fornecedores não iria caminhar para lugar algum. Com a contribuição dos clientes, pedindo ajuda e feedback, foi melhorando o atendimento e os lanches, cada vez mais requisitados, como relata. Como no início tinha pouco movimento, sentava ao lado do cliente e perguntava o que ele tinha achado do lanche. Ficava sempre pensando no que melhorar, a fim de aperfeiçoar cada vez mais o meu trailer, com ótimo atendimento e lanches saborosos.
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As duas faces da Copa do Mundo 2014 E também observei os locais próximos a nós, para ver como eles preparavam os lanches, quando meu primo era sócio.
Áureo relata que em 1985 o entorno do Estádio Beira-Rio era precário. O local onde estacionava o trailer de lanches era de chão batido e quando chovia formava uma lama densa. Mas, desconhecia o fato quando havia escolhido esse local. A vontade de conquistar o próprio negócio era tão grande que deixou de lado a pesquisa da localização e o movimento de transeuntes, que naquela época era fraco em dias sem partidas de futebol. Além dessas dificuldades, Áureo passou por apertos financeiros nos três primeiros meses, quando comprou a parte do trailer de seu sócio, devido à instabilidade financeira daquele período – 1986 e 1987. Para pagar o primo, Áureo precisou fazer empréstimo em um banco. Conforme o serviço foi se refinando, a clientela começou a aparecer. Por outro lado, o empreendedor procurou sempre estabelecer uma relação de cumplicidade e confiança junto aos fornecedores, como um lema de seu negócio. E, assim, permaneceu com laços fortes por mais de 29 anos. “Certas coisas na vida a gente adquire, e outras dependem de conquistar a confiança e admiração de terceiros. Comigo não é diferente. Sou honesto e meus fornecedores acreditam em mim. Isso me redeu bons frutos”, afirma. Áureo sempre se preocupou em ser transparente para conquistar seus fornecedores. Quando não tinha dinheiro para pagar as mercadorias – ovo, salsicha, pão ou condimentos –, os vendedores protelavam o pagamento sem ônus. Mek Aurio tinha a estrutura de 4 metros de comprimento com duas portas frontais e uma lateral, empregando 13 funcionários. Desde o começo das atividades, o proprietário sempre se preocupou com a regularização do trailer com os órgãos públicos. Áureo pagava aluguel mensal para a prefeitura em acordo permissionário de atividade comercial – uma lisura necessária e admirável em empreendedores que almejam o sucesso de forma plena. A intenção de crescer fez o empreendedor procurar o Sebrae para obter levantamento de mercado e da concorrência e informações sobre atendimento. “Pena que, quando comecei, não havia essa consultoria do Sebrae”, lamenta. Áureo foi procurado pela Coca-Cola e Kaiser para vender esses produtos com exclusividade. Ele afirma ter sido o primeiro comerciante a ter a exclusividade da cervejaria, quando ela almejava penetração no mercado gaúcho. Esses acordos renderam lucro para o trailer e crescimento de longo prazo, porém, com a Kaiser não foi tão fácil alcançar rentabilidade.
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Negócios Empreendedores Eu fui o primeiro em Porto Alegre a ser exclusivo da Kaiser, só que a fama dela é péssima. Imagina 26 anos atrás, quando ela entrou no mercado, ninguém queria tomar. Nós, gaúchos, somos muito fechados, e vender Kaiser deu trabalho. Tive que ser bom vendedor e convencer o público, pois para mim era a melhor e única cerveja que eu tinha. Vendi grandes quantidades, então eles me deram um dinheiro pela exclusividade e meu trabalho.
Outro acontecimento oportuno que impactou diretamente na rentabilidade do trailer Mek Aurio foi a chegada de um dos maiores circos do mundo, o Circo Tiane, que se instalou próximo ao Beira-Rio. De maneira perspicaz, Áureo aproveitou ao máximo essa temporada, combinando o ótimo atendimento com a excelência nos lanches. Com o lucro obtido, comprou seu primeiro carro – uma Variant –, o que deu mais liberdade e autonomia ao empreendedor. Antes, ele dependia do carro de amigos e parentes para o transporte das mercadorias.
E veio a Copa do Mundo para o Beira-Rio: um sonho que se tornou pesadelo Para muitos brasileiros, a vinda da Copa do Mundo para o Brasil era um sonho. No entanto, em 30 de outubro de 2007, o Brasil foi anunciado, pelos organizadores da Fifa, como sede do megaevento esportivo. As opiniões divergiam entre prós e contra na cidade de Porto Alegre e vários movimentos aconteceram na capital, muito em função da falta de informações precisas sobre tal evento. Mas, Áureo recebeu a notícia com enorme satisfação e percepção de oportunidade, chance de crescimento e ampliação do negócio. Mais ainda, quando soube que o evento seria realizado no Beira-Rio. Assim que soube que o estádio passaria por grandes reformas, Áureo entrou no clima de renovação. Procurou o Sebrae e a prefeitura para desenvolver um projeto inovador para o trailer de lanches. Consciente de que seu ponto sofreria mudanças, esperou pacientemente pela posição da prefeitura, que em 2010 sinalizou a nova localização. Áureo tinha permissão da prefeitura de trabalhar naquele local, com todas as obrigações quitadas, mas, devido a exigências da Fifa e dos órgãos locais, considerando as benfeitorias da Arena, o trailer seria deslocado cerca de 150 metros e ficaria estabelecido em frente ao parque da Marinha. O projeto foi realizado com profissionais especializados seguindo a exigência da prefeitura, que renovaria o contrato permissionário após a aprovação do que seria apresentado aos responsáveis legais.
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Áureo se engajou no polo gastronômico de Porto Alegre, facilitando assim a elaboração do projeto com os profissionais do Sebrae, além de contar com um arquiteto e um engenheiro para o projeto estrutural. Foi tudo feito de modo minucioso seguindo as exigências e necessidades legais. O projeto seguiu o rigor solicitado, com a anuência do prefeito, que prorrogou seu contrato com validade até 2017, com probabilidade de renovação por mais cinco anos, estendendo para 2022. Assim que o contrato foi assinado e todos os termos legais desembaraçados com a prefeitura, Áureo iniciou os trâmites para mudança de localização. No entanto, para que essas mudanças ocorressem, necessitava lidar com algumas burocracias frente à SMAM (Secretaria Municipal do Meio Ambiente) para a efetivação da mudança. Quando o projeto foi entregue a essa secretaria, começou o pesadelo. O projeto transitou de um lado para outro sem nenhum esclarecimento ou diálogo. Até que, em 2013, Áureo conseguiu uma reunião com o secretário de meio ambiente, na qual lhe foi informado que o trailer não seria mais estabelecido no local determinado pela prefeitura. O secretário alegou que a localização era nobre para ser instalado o Mek Aurio e, sem alegações legais ou informações de qualquer natureza, a secretaria não permitiu a mudança. Como um sonho ruim, Áureo perdeu o espaço de seu suado estabelecimento para um dos patrocinadores da Fifa, apesar de a permissão junto à prefeitura ter sido renovada até 2017, e o proprietário jamais ter sido inadimplente tributário. “No meu entender foram interesses particulares. O projeto estava correto, aprovado e assinado, elaborado por arquiteto e engenheiro. No final, quem ficou no local do meu trailer foram os patrocinadores da Fifa”, afirma. A história é marcada por frustração, indignação e revolta, sentimentos causados pelo descaso do poder público, que provoca vergonha em dizer que moramos num país em que a lei não tem valor e nem a menor importância. Um sonho de 28 anos alicerçado por lutas, dedicações e hombridade foi destruído para a realização de um evento de apenas 30 dias. O último dia de funcionamento do Mek Aurio foi em um domingo, durante um jogo do Internacional. O clima estava estranho, inefável, ninguém acreditava que na manhã seguinte o trailer seria demolido. Todos trabalharam com a melhor performance para uma despedida inesquecível. Após fechar o trailer, foram retirados os equipamentos e materiais de estoque. A rede GNT de televisão fez a cobertura da demolição do trailer, postaram imagens na internet, porém, Áureo prefere evitar vê-las. O em-
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preendedor voltou no dia seguinte, e nada mais existia. Haviam passado o trator em 30 anos de trabalho, dedicação e comprometimento. Áureo não suportou e desabou em lágrimas, lembrando a trajetória da sua vida intrínseca ao trailer que mudou sua história pessoal. Em 30 de outubro, Áureo retornou ao local para fixar um banner no poste, indicando o novo local do Mek Aurio, ainda sem previsão para abertura. No momento dessa entrevista, em novembro de 2014, seis meses após a demolição, o sentimento do empreendedor era de otimismo, apesar de tudo que acabara de passar. Quanto aos funcionários, Áureo manteve o pagamento do salário de cada um por alguns meses. Quando estavam com empregos encaminhados, o empreendedor decidiu demiti-los, deixando-os como primeira opção de contrata ção assim que o trailer reabrir. Havia 13 funcionários registrados, com média de 12 anos no emprego. Não trabalhei na Copa por causa dessa nossa política e por causa dos políticos. Eles não definem nada, e tudo é gerado por interesses. Eu queria trabalhar na Copa, desejava apresentar meu produto aos turistas. O X gaúcho que a gente tem, você não come em lugar nenhum, só aqui no Rio Grande do Sul.
Áureo é um empreendedor inato, e traz o comprometimento como a principal virtude para o sucesso. Acreditar no próprio potencial e almejar fazer sempre o melhor de si, independente da profissão ou atividade, seja um atendente de trailer ou um advogado, é o caminho do sucesso. É isso que Áureo deixa como conselho aos jovens empreendedores, pois foi assim que ele conquistou respeito e admiração com o seu empreendimento. Socialmente, Áureo emprega ações na comunidade, mantendo times de futebol masculino, feminino e infantil desde 2002. Essa foi uma forma que ele encontrou de ajudar as crianças carentes dos bairros próximos do trailer. As aulas e jogos acontecem todas as manhãs de sábado, com cerca de 50 crianças e jovens. Além dessa ação, o empreendedor contribui financeiramente com um asilo da região e fomentou a instalação de uma academia ao ar livre no Parque da Marinha. Assim, retribui à sociedade o sucesso alcançado.
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Irineu Severo dos Santos: festa argentina durante a Copa, no Irineu’s Restaurante Foto: divulgação
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CASO 2
IRINEU´S RESTAURANTE
A
história de vida do Irineu Severo dos Santos pode ser traduzida como a de muitos brasileiros desse imenso país. Homem honesto e com muita raça, que saiu sozinho de Candelária, do interior do Estado de Rio Grande do Sul, onde trabalhava no campo para tentar a vida na capital. Irineu chegou a Porto Alegre nos anos de 1980 para arriscar uma vida melhor, assim como muitos migrantes. A ida à capital do Estado tinha um objetivo, ou melhor, um sonho: trabalhar numa grande empresa cervejeira. Assim ele o fez. A gente trabalhava com agricultura de soja, arroz, trigo e milho. Meu sonho era trabalhar na companhia de cerveja e comecei lá como operário de terceira, que faz o serviço desde a limpeza do banheiro até o cozimento de cerveja. Fui trabalhando, caprichando, meu chefe foi gostando de mim e cheguei a um determinado estágio.
O início do empreendedorismo Irineu chegou a Porto Alegre com 19 anos. Em pouco tempo atingiu o cargo de supervisor na cervejaria, na qual ficou 14 anos. Contudo, já queria montar um negócio próprio. Foi então que pediu para sair da cervejaria, pois queria fazer algo novo. Em 1994, entre as inúmeras possibilidades, decidiu que empreenderia no ramo alimentício. A ideia do restaurante veio espontaneamente, embora tenha feito a seu modo uma pesquisa, chegando à conclusão de que “comer é necessário e todos precisam se alimentar”. Então foi à procura de um local para abrir o restaurante. Essa busca durou em torno de três meses. Achou um local bem modesto, às margens do Estádio Beira-Rio, e prontamente o alugou. Esse novo sonho foi construído sozinho, sem sócios. O começo não foi fácil, pois não tinha experiência com essa nova função. Como no ponto alugado já funcionava um restaurante, achou por bem manter o cardápio da antiga proprietária para conhecer melhor os clientes. Com o tempo foi se organizando, deixando o local mais agradável, e sempre escutando a opinião dos clientes, uma das suas características muito marcantes. Afinal, conhecer as necessidades e desejos dos consumidores é sempre importante para qualquer negócio.
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Um de seus clientes, que almoçava todo dia no restaurante, chamou Irineu e sugeriu algumas alterações. Irineu, tu és novo, guri. Quer uma opinião de um cara mais velho? Vai ao mercado e compra um arroz melhor, um feijão melhor, uma carne melhor, e tu vai ver como vai mudar teu negócio. O cliente gosta de comer comida boa!
Irineu não teve dúvidas e, no outro dia, quando foi ao mercado para abastecer o restaurante, comprou produtos de melhor qualidade. Isso transformou a realidade do restaurante. Em duas semanas, passou de cinco refeições por dia para 50. Irineu gosta de tratar bem seus clientes, olhar nos olhos deles e sentir que o freguês está satisfeito com o serviço. Quando um cliente dá esse tipo de retorno, ele se dedica com mais afinco ao seu negócio e consegue conquistar mais e mais clientes. Contudo, no imóvel alugado faltavam alguns requintes. Quando chovia, havia inúmeras goteiras. Num acordo entre Irineu e o proprietário do imóvel, Irineu faria melhorias na casa e o proprietário consertaria o telhado. Mas, nesse meio tempo, o dono do estabelecimento faleceu, a reforma não aconteceu e o filho do falecido solicitou o imóvel, ocupado por Irineu há cinco anos, o que o tornava bem conhecido naquele ponto da cidade. Sem possibilidade de negociação, deixou o lugar e voltou à estaca zero, pois havia perdido tudo. Diante desse problema, Irineu procurou por inúmeros lugares em Porto Alegre onde pudesse reabrir seu restaurante, no entanto, não achava nada adequado à sua situação. Irineu se viu numa posição desesperadora e passou vários dias em casa sem esperança e em depressão. Foi quando recebeu uma carta do banco, disponibilizando uma quantia para ele recomeçar o seu negócio. Isso foi a volta para um novo estado de espírito. Lembrou-se de uma distribuidora de água que ficava próxima ao Estádio Beira-Rio e conseguiu alugar o imóvel. Irineu voltou a sonhar. “A proprietária não fez nenhuma objeção. Comecei a colocar meu projeto em ação: reformei a loja, comprei equipamento e fui trabalhar de novo.” Seu restaurante na loja 654, próxima do Estádio Beira-Rio, prosperou muito. Ele comprou uma casa e um carro novo, e tudo estava caminhando bem. Em 2010, ao receber a notícia de que Porto Alegre seria uma das sedes da Copa, começou a pensar na repercussão que poderia trazer. “Comecei de novo a procurar um lugar maior para poder atender a essa possível demanda”, explica.
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A busca pelo crescimento Por ser uma pessoa bem conhecida na região e com boa comunicação, Irineu entrou em contato com um conhecido do ponto 720, na mesma rua, que estava alugando ou vendendo o local. Se ele fosse vender, eu compraria. Paguei com tudo que tinha: vendi meu carro novo, usei um dinheiro guardado, peguei mais dinheiro emprestado... fiquei muito apertado. Comprei com a visão da Copa, pois fiquei em frente ao Beira-Rio. Gastei muita grana de novo, mas consegui comprar.
O novo negócio foi conquistado, mas também vieram consequências. Irineu teve dificuldades para atravessar o ano de 2013. Ficou com muitas dívidas com a compra do novo ponto e a reforma do imóvel, além de ter que equipar o restaurante. Entretanto, os riscos já eram esperados, mas havia a expectativa de prosperar com a vinda da Copa do Mundo. Para a reforma do restaurante, Irineu contou com a ajuda do gerente do banco que fez o possível para que seu sonho se transformasse em realidade. Por outro lado, Porto Alegre e a Arena Beira-Rio precisavam se adequar às exigências da Fifa. A reforma no entorno da Arena Beira-Rio trouxe benefícios para Irineu. Duas empresas (Tono Ouro e Supepa), responsáveis pela obra, procuraram o restaurante para servir almoço aos funcionários, e isso fez com que o volume servido chegasse a 300 por dia. Esse impulso foi primordial para amenizar as dificuldades financeiras do negócio e Irineu se estruturar melhor. Nesse período, surgiu ainda outra oportunidade: os funcionários da empresa responsável pela reforma da Arena começaram a frequentar o restaurante nos finais de semana para confraternização. A obra da Arena Beira-Rio, seguida da reforma do entorno, diminuiu muito a minha clientela, pois as pessoas tinham dificuldade de vir até o restaurante. Mas a parceria com as empresas deu um impulso no meu negócio. Eu estava muito endividado e não tinha dinheiro suficiente para bancar a reforma. Mas, com luta e passando muita dificuldade, consegui finalizar a minha obra.
O sucesso do restaurante A situação vivenciada por Irineu proporcionou a ele segurança e aprendizagem. Aliado a isso, seu histórico de boa pessoa e cumpridor de responsabilidades contribuiu na superação das dificuldades, pois sua postura séria e
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comprometida era um meio de conquistar a confiança de seus fornecedores, além de manter bom relacionamento com seus concorrentes. “Apesar das dificuldades, fui sempre transparente e honesto com meus fornecedores. E isso foi que ajudou. E não precisei disputar preços com meus concorrentes, todos estavam lutando muito.”
E veio a Copa do Mundo... Mesmo não acreditando que a Copa do Mundo atrairia um público maior que seu habitual, nos dias dos jogos Irineu foi surpreendido. E fez alguns investimentos para recepcionar o público. Convidou o filho de um amigo, fluente em inglês, para ajudar nos pedidos das refeições, colocou o cardápio em inglês, treinou os funcionários para serem corteses com os torcedores e diversificou o cardápio para atrair diferentes públicos. Irineu contou vários episódios que viveu no período da Copa do Mundo. O caso dos argentinos foi o mais peculiar. Embora tenha sido alertado sobre o comportamento arruaceiro dos hermanos, foi surpreendido com comportamentos corteses e amigáveis. O empreendedor conta que o grupo trouxe muita alegria para o entorno da Arena Beira-Rio e fez refeições no restaurante. Num certo momento, comentaram que não tinham onde dormir. O inverno em Porto Alegre estava rigoroso e Irineu acolheu o grupo de 300 argentinos em seu restaurante, abrindo espaço para que todos se acomodassem. Todo mundo falava dos argentinos, que vinham aqui para quebrar tudo, mas foi uma maravilha. Estavam preocupados com o local para dormir. Quando eu disse que eles poderiam se acomodar no restaurante, eles não acreditaram. Eu fechei o restaurante com todos lá dentro e eles ficaram muito gratos.
No dia seguinte, Irineu abriu um pouco mais cedo do que o habitual, por volta das 6h. Não foi preciso pedir que saíssem. Todos se levantaram e foram embora, porém quando o restaurante voltou a funcionar, voltaram para tomar café. De maneira geral, a Copa do Mundo foi interessante para Irineu.
E depois da Copa do Mundo... Mesmo depois da Copa, o movimento do restaurante manteve-se, e Irineu continuou servindo 300 almoços diários. O local tem aproximadamente 85 a 90 lugares. O espaço também oferece café da manhã e fecha somente às 21h30.
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Os clientes do período da noite são bem diversificados, entre vizinhos e pessoas de outros estabelecimentos. Os jogos do Internacional também são um grande atrativo para o restaurante. Hoje Irineu possui seis funcionários. O cardápio é elaborado semanalmente e o planejamento das metas e resultados é feito a cada seis meses, tudo com base nas experiências de Irineu. Ele alega, no entanto, que sente falta de se capacitar, pois acredita que correria menos riscos e acertaria mais nas suas ações. Afirma ainda que estar instalado no entorno da Arena Beira-Rio é um privilégio e que o local é de grande importância para o bom andamento de seus negócios. Irineu se mostrou uma pessoa otimista, mesmo tendo que enfrentar por diversas vezes diferentes tipos de dificuldades. As lições que conquistou com as difíceis experiências trouxeram muita aprendizagem. “Só o trabalho e a integridade ajudam as pessoas a vencer”, acredita. É possível concluir que: 1. inovar é bom e importante, mas é preciso saber como sustentar a inovação ao longo do tempo; 2. se a oportunidade é boa, única e ninguém mais percebeu, vale dedicar o esforço e o tempo necessários para explorá-la; 3. a humildade de reconhecer os erros e voltar atrás em algumas decisões pode acarretar perdas, mas pode ser o único caminho para prosseguir o crescimento; 4. planejamento baseado em premissas incertas deve ser revisto frequentemente; 5. é preciso persistência e paciência para quebrar paradigmas impostos por hábitos culturais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Os dois casos analisados na capital gaúcha evidenciam situações paradoxais. Áureo vivenciou uma grande frustração, tendo que aprender a lidar com o descaso do poder público e com o fechamento de seu estabelecimento. Por outro lado, sob circunstâncias desafiadoras e de difíceis soluções, Irineu conseguiu com muita luta obter sucesso e rentabilidade no período da Copa e também após a realização do evento.
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As atitudes de enfrentamento mais utilizadas frente ao insucesso são identificação projetiva, atuação e afiliação, o que significa que o empreendedor durante o fracasso empresarial projeta a outro a responsabilidade pela situação, age sem o devido planejamento ou reflexão, porém, busca ajuda para minimizar o cenário (Scherer & Minello, 2014). Os dois empreendedores apresentaram situações particulares, mas com algumas similaridades, como por exemplo o fato de terem saído, ainda jovens, de cidades do interior do Rio Grande do Sul em busca de um sonho de empreender na capital. Ambos tiveram pouca oportunidade de estudos e começaram a trabalhar como empregado de outras empresas. No entanto, a oportunidade surgiu para os dois. Áureo saiu de Lajeado aos 14 anos, rumo à capital gaúcha, com um grande ideal de vida: ser proprietário de um negócio. Por cinco anos trabalhou em um armazém e quando o seu primo o convidou para ser sócio de um trailer de lanches em frente ao Estádio Beira-Rio, Áureo não pestanejou, agarrou a oportunidade e rapidamente se tornou o único dono, mantendo o seu estabelecimento por 28 anos ininterruptos. Buscou se aperfeiçoar e capacitar os funcionários do trailer almejando sempre a melhoria do atendimento do seu negócio. Esse empreendedor vislumbrava a Copa 2014 e desejava que o mundo tivesse a oportunidade de conhecer os lanches do Mek Aurio, porém, a poucos meses do início do evento, o trailer de Áureo, o sonho que ele manteve afinco por 28 anos, foi demolido pela prefeitura de Porto Alegre mesmo os documentos de funcionamento estando devidamente corretos. A perturbação emocional durante a descontinuidade do negócio, momento no qual empreendedores se sentem fragilizados e sem saída, surge caracterizada pela depressão pessoal em decorrência da repercussão do insucesso empresarial, porém, a resiliência se mostra em contato com os objetivos e vontade de superação a fim da continuidade do próprio negócio (Scherer & Minello, 2014). Já Irineu, manteve seu sonho inato de empreendedor durante 14 anos, período em que trabalhou em uma cervejaria. Essa experiência foi essencial para ajudá-lo no início da sua jornada. Começou o próprio negócio em um local muito simples, porém, obteve final trágico. Com sua força de vontade e alegria em servir os clientes, conseguiu forças para se reerguer e recomeçar seu negócio, reabrindo em outro local. Sua habilidade com o público foi primordial para o crescimento do negócio e, ao vislumbrar a Copa, mudou novamente de localização. Passou por um período conturbado, quase fechando suas portas, no entanto, fé e trabalho nunca faltaram para Irineu e, com a colaboração de parceiros, fez o seu restaurante prosperar.
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A onipotência é um comportamento evidenciado no insucesso empresarial, ou seja, a arrogância do indivíduo influencia nas decisões, desmotivação de funcionários e insatisfação de clientes, constituindo desse modo o insucesso empresarial (Minello & Scherer, 2014). Em relação às características comportamentais, a arrogância, a onipotência e a atuação do empreendedor se destacam como fatores que conduzem ao insucesso. Elementos como gestão financeira e controle interno, falta de conhecimento técnico e de experiência e pressão emocional também podem influenciar negativamente a gestão do negócio. Outra questão que compromete o sucesso é a falta de compreensão do ambiente mercadológico com intuito de identificar as necessidades do mercado, e não simplesmente atender desejos pessoais (Minello, Alves, & Scherer, 2012). Esses dois casos evidenciam que empreender no Brasil é viver em um campo cheio de armadilhas, pois os dois empreendedores entrevistados não possuem características que põem em risco o insucesso do negócio como citado acima. No entanto, o mesmo local explorado por dois empreendedores distintos traz realidades e dificuldades diferentes. Como uma moeda, a Copa do Mundo de 2014 mostrou suas duas faces, a do sucesso para um e a do insucesso ao outro. Não por falta de planejamento ou capacitação, mas por forças macroambientais incontroláveis, como a burocracia pública, que incidem nos negócios em todo o país.
REFERÊNCIAS Castor, B. V. J. (2004). O Brasil não é para amadores: Estado, governo e burocracia na terra do jeitinho (2a ed.). Curitiba: Travessa Editores. Matias, A. P., Silveira, R. B. da, & Brandão, M. M. (2015). Envolvimento do Consumidor no Processo de Desenvolvimento de Produtos Como Medida de Sucesso: Um Estudo Com Empresas Participantes dos Prêmios Finep e Nacional de Inovação. Revista de Administração E Inovação, 12(1), 1–27. Minello, I. F., Alves, L. D. C., & Scherer, L. A. (2012). Fatores que levam ao insucesso empresarial: uma perspectiva de empreendedores que vivenciaram o fracasso. BASE - Revista de Administração E Contabilidade Da Unisinos, 10(1), 19–31. 13p. 1 Diagram. doi:10.4013/base.2013.101.02 Minello, I. F., & Scherer, I. B. (2014). Características Resilientes do Empreendedor Associadas ao Insucesso Empresarial. Revista de Ciências Da Administração, 16(38), 228–245. Scherer, I. B., & Minello, I. F. (2014). Características do Comportamento Empreendedor Durante o Insucesso. Pensamento Contemporâneo Em Administração, 8(3), 23–36. http://politicaemfoco2014.blogspot.com.br/2014/08/1014-mil-estrangeiros-no-rio-grande-do.html www2.portoalegre.rs.gov.br/portal_pmpa_novo/default.php?p_noticia=169356 www.brasil.gov.br/esporte/2014/08/rio-grande-do-sul-apresenta-numeros-e-legados-da-copa
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Fotos: divulgação
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Localização privilegiada, a poucos metros do gigante Beira-Rio
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