Bálsamo e navalha: Memórias, Ficções(?) e Poesias

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Fernando Antonio Prado Gimenez

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Para Simone Amiga que inspirou o tĂ­tulo do livro Que se fez presente como bĂĄlsamo Que me fez rir do corte da navalha


CAMINHOS

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aminho em direção ao cinema. É sábado. Manhã. Quase no destino, uma parada em um sebo. Busco livros de bolso para minha coleção. Encontro um de Afonso Romano de Sant'Anna. Como andar no labirinto. Coletânea de crônicas. Morador de Curitiba há quatorze anos, nessa caminhada matinal encontro dois conhecidos. Não é usual. Em geral, quando flano pelo centro da cidade, raramente reconheço algum rosto. Breve troca de palavras. Em seguida, cada um segue seu rumo. Enquanto espero o horário da sessão, um café acompanhado das primeiras crônicas. Na contracapa aprendo que Sant'Anna nasceu em 1937. Antecedeu-me em duas décadas. Fernanda, minha segunda filha, é de 1987. Ontem tomamos um café juntos no meio da tarde. Em 2017, ela chegará aos 30. Eu aos 60. Fazemos parte dos nascidos em anos terminados em 7. Ela terá vívido metade de minha vida. Andamos no labirinto. Às vezes juntos. Na maior parte do tempo, separados. Cada um faz seu caminho nessa linda metáfora de Sant'Anna. Mais vivido, eu já encontrei muitas paredes. Voltei parte de caminhos já trilhados. Explorei outros desconhecidos. Ela deve ter encontrado suas paredes também. Soube retornar. Tomar outras direções. De vez em quando, nos encontramos no mesmo beco. Caminhamos um pouco juntos. Mas, sabemos que os labirintos são distintos. Se tocam. Se cruzam. Se afastam. O importante? Acho que é não desistir das andanças. Cada um segue em seu labirinto. Quando é preciso, fazemos eles se cruzarem. Ontem foi o caso. Ela me chamou para um café. Eu estava precisando. Ver a filha caçula. Seu sorriso. O rosto afogueado pela caminhada. Das Mercês ao MON. Chegou acompanhada do amigo farmacêutico. Os dois apaixonados pelo flamenco. Mas, impossível viver dele nesse país. É um dos becos do labirinto. Mas, um beco muito frequentado. Todos nós temos nossos becos muito frequentados. Teimamos em voltar a eles. Com a esperança de um dia encontrar um vão, mesmo que pequeno, em uma das paredes. Caminho de volta. Entro em uma estação-tubo. Sol das 13 horas na Praça Tiradentes me convence de que a caminhada não será fácil. Nunca é. Mas, não preciso torná-la mais difícil. Depois do filme, mais um nascido em 1937 cruza meu caminho. Um desconhecido. Me pergunta quando será o carnaval em 2017. Ao ouvir minha resposta, indaga da minha certeza. Respondo que, como professor, preciso saber. Quer saber o que ensino. Pergunta-me quantos anos faltam

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para o terceiro milênio. 983. É minha resposta. Se impressiona com meu cálculo rápido. Digo que não chegaremos lá para ver como será. Concorda comigo. Me diz que dia 17 fará oitenta anos. Mais um de ano terminado em 7. Assim como Sant'Anna penso eu. Nossos labirintos se tocam nesse rápido encontro. Chega o ônibus. Embarcamos. Desço no próximo tubo. Ele segue em seu labirinto. Eu no meu. Quem sabe quando se cruzarão novamente?

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DISTRAÇÃO

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istraído, pensava na vida. Seu ponto de desembarque ficou para trás. Só se deu conta quando o sistema de som do ônibus informou: Próxima parada Estação Central. O jeito foi descer ali mesmo. Andava meio confuso ultimamente. Até um pouco místico. Eram seus últimos dias de férias. Não tinha nenhum compromisso, assim não se importou muito com a distração. Quando ficara órfão, aos quinze anos, foi morar com o avô paterno. O avô era uma figura. Não professava nenhuma crença. Mas, quando bebia uma pinga no bar, jogava a dose do santo no chão. Ele achava graça. O avô ficava bravo: _ Me respeite menino! Tentava retrucar. O avô não deixava: _ Um dia você vai entender. Ao sair da estação, dirigiu-se à esquerda, rumo à Praça Santos Andrade. Virou a esquina, mal deu três passos, a viu sentada nos degraus da lateral do prédio histórico da UFPR. Uma velha cigana, com uma saia vermelha, lenço na cabeça, também vermelho, blusa azul marinho, brincos, colares, pulseiras e anéis, todos dourados. Ao vê-lo, ela disse: _ Preciso falar com você? _ Comigo? _ Sim. Estava lhe esperando. Nesse momento lembrou-se do avô. Fazia três meses que havia morrido. Um pouco antes de morrer havia lhe falado: _ Uma mulher vai lhe procurar. Não deixe de ouvi-la. Perguntou quem seria a mulher. A resposta: _ Você não conhece. Mas, vai saber quando a vir. Desde então sonhara várias vezes com o que lhe dissera o avô. Logo ele. Raramente lembrava de seus sonhos. Agora, todo dia acordava cansado. Era como se realmente tivesse vivido os sonhos. E, ainda por cima, lembrava de todos os detalhes. Mas, estranhamente, os sonhos eram em branco e preto, sem outras cores. A cigana lhe chamou de novo: _ Vem cá menino! Com quase trinta anos, estranhou ser chamado de menino. No entanto, subiu os degraus assim mesmo. Sentou-se ao lado dela. Imediatamente ela pegou sua mão direita. Virou a palma para cima. Seguiu as linhas da mão com o indicador. Disse:

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_ Sabia! Assim que te vi. Minha intuição não falha. É você mesmo que eu procurava. Você não vinha para cá hoje, né? _ Como sabe disso? _ Tenho meu jeito de fazer as coisas. Não adianta eu explicar. _ Tá bom. O que você quer? _ Seu avô me deixou uma missão. _ Meu avô? _ Sim. Antes de morrer, conversou comigo. Pediu que lhe explicasse a dose do santo. _ Como é que é? _ Isso mesmo! Ele nunca lhe explicou. Pediu que eu lhe explicasse. Uma vez por ano me procurava. Vinha atrás de meus conselhos. Dizia que não acreditava em nada, mas o que eu lhe falava dizia fazer sentido. Nunca lhe fez mal. _ Não acredito! Meu avô? Ele nunca acreditou em nada! _ Não é verdade. Isto mudou. Foi quando ele começou a sonhar em branco e preto. Ainda jovem. Na primeira manhã que acordou, ao se lembrar disso, saiu pra rua. Me encontrou aqui nesses degraus. Eu vi que ele precisava me ouvir. Chamei. Ele se sentou nesse mesmo lugar que você está. Nesse momento, ele relaxou. Esticou as pernas. Encostou os cotovelos e as costas no degrau. _ Me conta como foi isso. Foi uma longa conversa.

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O VENTO E AS FOLHAS

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ntem eu ouvi o vento. Não senti ele passar por mim. Olhei para o alto. As folhas se mexiam. Só de uma árvore. Nas outras, as folhas não se moveram. Só naquela. Linda! Exibido, o vento me atraiu para aquela direção. Como ele conseguiu fazer aquilo? Queria me dizer alguma coisa. Não prestei atenção nele. Invisível, só se mostra indiretamente. Como não lhe dava bola, achou um jeito de me tirar de meu caminho. Fui atrás de seu som. Ou seria o som das folhas? O sol poente deixava as folhas brilhantes. Pareciam escamas de peixe. Quase me afoguei de encantamento. Me faltou o ar. O vento se exibindo para mim. E o ar me faltando. Vento não é feito de ar? A vida, às vezes, é como o vento. Passa por nós. Se não cuidamos bem nem a vemos! Mas, ela tem suas artimanhas. Parecidas com as do vento. De repente, ela guia nosso olhar. Mostra o inesperado. Mancomunada com o vento, pode até nos tirar o folego. Ontem eu ouvi o vento, vi as folhas, e me senti vivo. Depois, à noite, falei para os alunos e alunas que tinham aula comigo sobre o que acredito: a esperança de que possam aprender o que seja significativo para eles. Na minha fala, escondida, assim como o vento, uma esperança. Que eu possa ser como o vento junto às folhas. Passar por eles e, momentaneamente, ajudá-los a refletir o brilho da vida. Já me darei por satisfeito.

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FIM DE MAIO

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ão havia mais o que fazer. Ou melhor, não dava mais tempo. O que fazer sempre haveria. Mas, o tempo se esgotara. Ou melhor, vencera o prazo concedido. O tempo nunca se esgota. É fluxo permanente. Assim como a vida. Ela continua. Nós passamos por ela. Em nosso tempo. Para alguns, breve. Para outros, longo. Em geral, a duração não é uma questão de escolha. Me desvio do assunto. Vida e tempo teimam em se meter nos meus escritos. Não é hora de falar deles. Quero dizer sobre como ela reagiu ao fim de maio. Ou melhor, ao fim do último maio. Maio sempre haverá, mas como o último, talvez nenhum seja igual. No passado, também não houve. Olha o tempo espreitando para ver se encontra uma brecha nesse texto. Não vou deixar. Estou atento! No primeiro de maio, um domingo, feriado desperdiçado, acordou preguiçosa. Se bem que, aposentada, para ela não fazia diferença. No criado mudo, o vaso de flor de maio, com vários botões florescendo. Vermelhos. Alguns já tinham se apressado e floresceram alguns dias antes. A maioria, ainda era uma promessa. Além do vaso, e dela, nenhum outro sinal de vida naquele quarto. Epa! Olha a vida querendo aparecer. Já disse que não é de tempo ou vida que vou falar. Morava sozinha. Nunca gostou de animais domésticos. Assim, não tinha gato, cachorro, peixe, iguana, hamster, papagaio... uma vez pensou em adotar uma calopsita. Mas, ao ver a sujeira de grãos na gaiola da petshop desistiu. Não estava afim de buscar sarna pra se coçar. Para isso, tinha suas frieiras eventuais. Esfregar o vão dos dedos na quina do colchão era muito bom. Quase tão bom quanto sexo. Fazia tempo que não gozava dos dois prazeres. Parecia não sentir falta. Não tenho certeza. Era muito reservada. Não comentava essas coisas. Solitária, depois da aposentadoria, tornou-se ainda mais calada. Recebia poucas visitas. Uma vez por semana, a diarista. Para a limpeza mais pesada. De vez em quando, Claudete e Odária. Vinham para um lanche no final do expediente do banco. Ela tinha sido caixa por mais de trinta anos. As duas entraram no banco dez anos depois dela. Conversavam sobre os outros colegas. Claudete era viúva recente. Há seis meses o marido morrera, vítima de um câncer fulminante no pulmão. Fumante inveterado, entre a descoberta e a morte foram apenas três meses. Mas, Claudete já não demonstrava sinais do luto. Estava de caso com um colega do banco. Odária jurava que isto já estava acontecendo há muito tempo.

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Claudete negava. E logo mudava de assunto quando uma das duas amigas falavam sobre Odair, o colega do banco. Não teve filhos no casamento. O marido era estéril. Chegaram a pensar em adoção, mas nunca tiveram coragem. O marido tinha um irmão de criação que vivia dando problemas para a família. Na igreja, uma irmã que trabalhava na Santa Casa, uma vez disse a Claudete que havia uma menina de dezesseis anos que estava grávida e não queria ficar com a criança. A freira daria um jeito de lhe passar a criança assim que nascesse. Claudete ficou empolgada. Dias depois o cunhado encrenqueiro criou uma confusão danada com seu marido. Ela desistiu de adotar a criança. Odária nunca se casou. Teve alguns pretendentes ainda na juventude. Ficara noiva de José Miguel aos vinte e dois anos. Herdeiro de uma família proprietária de uma grande empresa produtora de chás na cidade. Mas, a futura sogra não aprovava o casamento. Depois de três meses de noivado, achou um jeito de mandar José Miguel para os Estados Unidos. Ele foi fazer um curso de pós-graduação em Harvard. Lá conheceu a herdeira de um grande laticínio de Minas Gerais. Se encantou com os olhos verdes da mineira de pele morena. Nunca mais voltou a Curitiba. Casou-se com a moça em Las Vegas e quando os dois terminaram o curso, foram para Minas. Ele acabou tornando-se o administrador das propriedades do sogro. A futura sogra de Odária se arrependeu. Tentou se reaproximar de Odária, pensando em um meio de trazer o filho de volta. Odária não aceitou. Desiludida, não quis mais saber de nenhum homem. Era implacável com os colegas do banco. Para sorte deles, nunca ocupou um cargo de chefia. Desde o feriado dominical, os trinta dias restantes de maio se passaram sem mudanças na rotina de Isabela. Ela mesma se concedera o prazo que estava se esgotando. Até o fim do mês daria uma solução à solidão. Assim como as duas amigas, não tinha filhos. O observava há alguns meses. No Bosque do Papa, onde ia pegar uns doces poloneses para o lanche com as amigas, o viu pela primeira vez. Foi no Bosque do Papa que comeu esse doce pela primeira vez. Nunca conseguiu guardar o nome. Era feito de uma massa fina, tipo folhada. Duas folhas, uma embaixo e outra na parte de cima, recheadas com um creme delicioso. A primeira vez que comeu foi quando o Papa veio a Curitiba e ela foi ver a missa rezada por ele. Depois passou em uma das barracas que foram montadas com comidas típicas da Polônia e comeu o doce. Descobriu que no Bosque do Papa o doce era vendido. Ficou cliente assídua.

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Uma vez, quando estava assistindo uma apresentação de música no palco do Bosque do Papa percebeu que um rapaz estava lhe olhando. Não tinha mais do que vinte e cinco anos. Era negro, alto, magro e bonito. Algumas semanas depois, quando tomava um café no Museu Oscar Niemeyer, ao lado do Bosque do Papa, viu ele passando e entrando na lojinha do museu. Ele a viu e foi em direção a ela. Isabela se levantou, passou por ele, foi ao caixa e pagou sua conta. Saiu apressada. Afogueada. O rapaz a seguiu a distância. Quando ela entrou em seu prédio, ele deu meia volta e voltou em direção ao museu. Desde esse dia, ele ficava algumas horas em frente ao prédio dela. Dia sim, dia não. Sempre na parte da tarde. Quando ela saía, ele sorria, mas nunca dizia nada. Naquele trinta e um de maio, ela saiu de casa decidida. Era um dia sim. Ela sabia que ele estaria lá fora. Ela já se acostumara com o sorriso dele. Chegara a sonhar com o rapaz sorridente. Acordara afogueada. Saiu do prédio como se tivesse um compromisso. Apressada. Olhou para onde ele sempre estava. Não viu ninguém. Ela voltou para o apartamento. Disse ao porteiro que havia esquecido a sombrinha. Desceu depois de cinco minutos. Ele não estava lá. Ela foi até o Bosque do Papa, comeu um doce, sentou em um dos bancos em frente ao palco. Chorou. Seu tempo se esgotara. Não havia mais o que fazer. A vida, porém, continuaria. Solitária.

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TRÊS LEMBRANÇAS DE MEU PAI

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utro dia lembrei-me de três momentos de meu pai. Em um convívio de quase cinco décadas, na relação de pai e filho, é claro que muitas histórias se passaram. Mas, pelos misteriosos e sinuosos caminhos da memória, esses três episódios se repetiram na minha mente recentemente. O primeiro ocorreu quando ainda era criança. Meu pai levou todos os filhos e mais uma moça, Maria, que trabalhava em nossa casa desde adolescente, para Ponta Grossa. Nosso destino era assistir corridas no hipódromo de Uvaranas naquela cidade. Chegamos em Ponta Grossa na hora do almoço. No centro da cidade, em frente a uma praça, me lembro bem, fomos a um restaurante. Por algum mal entendido ou má intenção do garçom que nos atendeu, quando começou a chegar a comida à mesa, foi um assombro geral. Era muita comida! O garçom pedira seis porções de cada prato. Eram um adulto, uma adolescente e quatro crianças. Depois de um rápido bate-boca, meu pai se levantou, foi à porta do restaurante, chamou um grupo de mendigos que estava na praça e fez com que a comida fosse servida a eles. Grande momento de vida! Anos depois, aos dezessete anos, eu estava estudando em São Paulo me preparando para o vestibular e concluindo o ensino médio. Meu pai foi passar um final de semana lá. Foi, de novo, para assistir corridas de cavalo. Dessa vez em Cidade Jardim. No sábado, pela manhã, passeamos pelo centro de São Paulo. Na hora do almoço, perto da Praça da República, decidimos almoçar na churrascaria Rubayat. Lá dentro fomos surpreendidos pelo ambiente refinado e alta qualidade do atendimento. Embora bem de vida, não era o estilo de restaurante que frequentássemos. Ao final do almoço, pedimos dois cafés. O garçom trouxe os cafés. Em cada pires, além da xícara, uma bala de hortelã. Nunca esqueci a frase que saiu dos lábios de meu pai: _ Já estou imaginando o quanto vão me custar essas balinhas! Um momento de humor típico do Seu Gimenez. Passaram-se muitos anos. Eu trabalhava com meus pais no Supermercado Gimenez. As gondolas, expositores e checkouts tinham sido feitas pelo Sr. Luis Morselli, amigo de meu pai, que era marceneiro aposentado. Os checkouts tinham na parte traseira umas gavetas para guardar embalagens. Esta parte tinha a forma de um banco. Meu pai costumava ficar sentado ali conversando com fregueses que entravam e saíam do supermercado. Ele tinha um jeito de sentar que se repetia sempre. Esticava o braço esquerdo para o lado

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e apoiava a mão espalmada na madeira. Havia espaço para duas pessoas sentarem. Meu pai sempre foi um homem bonito. De prosa fácil, sabia ser sedutor. Muitas freguesas, certamente, ao longo de sua vida de comerciante, sentiram de alguma forma o poder sedutor desse homem. Nessa época, em especial, havia uma freguesa, vizinha ao supermercado, que dava sinais evidentes de querer algo mais do que apenas as mercadorias vendidas pelo Seu Gimenez. Não é que, certa vez, enquanto meu pai estava sentado na ponta de um dos checkouts, em sua posição usual, com braço esquerdo estendido e mão espalmada, essa freguesa veio e sentou-se a seu lado. Com o meio da bunda bem em cima da mão dele! Os dois ficaram um bom tempo conversando. Quando ela se foi, meu pai me perguntou: _ Você viu? _ Claro. Respondi e imediatamente perguntei: _ Deu tempo de virar a mão para cima? Ele piscou e sorriu daquele jeito maroto que de vez em quando fazia. Três lembranças de meu pai. Três facetas de um ser humano. Às vezes, me pego fazendo julgamentos apressados sobre as pessoas. Mas, tento não me deixar levar por impressões parciais. Ser humano é uma tarefa complexa. Não cabemos em um só adjetivo. Pena que só temos uma vida para tentar ser melhor do que pior. Pelo menos é no que acredito. Vale a pena tentar! Quanto a meu pai, já escrevi em outro texto: alguns diziam que era uma pessoa boa; outros diziam o contrário. Eu só posso dizer que foi meu pai.

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O GATO E O SONHO

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ó se ouvia o leve ressonar do gato. Passando dos dez anos de vida, de vez em quando soltava um ronco mais forte. Em seguida, continuava ressonando. Suave. Era o turno da tarde. Eu me perguntava, se os roncos tinham a ver com sua idade. Não havia observado isto antes. Apenas nos últimos meses. Desde que caíra da janela do apartamento. Ainda bem que morávamos no primeiro andar. A queda foi de, no máximo, três metros e meio, talvez quatro. Na primeira semana, manquitolava um pouco. Depois, parou. Então, começaram os pequenos roncos. Mas, como dizia, era o turno da tarde. Acumulava energias para a noite e madrugada. Meu sono andava leve ultimamente. De madrugada, as curtas corridas do gato me acordavam. Ele gostava de disparar pelo corredor e escorregar nos tapetes da sala. Às vezes, um pouco mais de energia o levava de encontro à parede. Eu ouvia um barulho esquisito. Acho que batia a cabeça. Será que isto tem a ver com os roncos recentes? Naquela tarde, eu chegara mais cedo do trabalho. Meus horários flexíveis são uma das coisas boas dele. Abri a porta. Cinco e meia. O gato, em seu canto, embaixo de uma cadeira, nem levantou a cabeça. Abriu os olhos. Fechou. Um momento. Literalmente, um piscar de olhos. Ninguém em casa. Pensei como seria bom se fosse um cachorro. Pelo menos, as boas vindas seriam mais calorosas. Mas, não pense que reclamo. O gato se encaixa no meu estilo. Cada um por si. Quando necessitar, pede-se ajuda. É o que ele faz quando tem fome ou quer que limpe sua caixa de areia. Mia! Eu, como não mio, me contento com uns afagos que ele aceita todo dia. Antes de eu dormir, leio na cama. Ele se junta a mim. Faço uns cafunés até que ele me dá as costas e salta da cama. Me educou bem. Sozinho, já que o gato era apenas uma presença material, distinta das demais presenças, móveis e eletrodomésticos, apenas pelo ressonar, resolvi ler um pouco antes do jantar. Ler e escrever. Também fazem parte de meu trabalho. Ser pago para isso! Você acredita? Como não estava em meu horário de trabalho, peguei um dos livros de cinema. A estante fica ao lado da cadeira sob a qual o gato dormia. Sentiu minha aproximação. Outro piscar de olho. A caminho do quarto, parei na cozinha e preparei uma xícara de café. Nessas máquinas modernas. Com cápsulas. Pequenos luxos que a vida

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nos permite. Prático também. Café na mão direita, livro na esquerda, caminho para o quarto. O silêncio do apartamento me incomoda. Penso em ligar o som. Desisto. Me tiraria a concentração da leitura. Tomado o café, me estiro na cama. O gato vem atrás. Ainda não é hora. Pula na cama. Não faço cafuné. Que aguarde. Acordo de madrugada. Um peso no peito. O livro entreaberto. Não passei da página cinco. Sonhei que havia chegado em casa. O gato ressonava. Nem ergueu a cabeça quando abri a porta. Abriu e fechou os olhos. Um piscar de olhos. Outro quando peguei um livro. Fiz um café na cozinha. Me estirei na cama. O gato veio atrás. Não fiz cafuné. Que aguardasse. Acordei de madrugada. Um peso no peito. Sonhei que chegara em casa. O gato piscou. Peguei livro. Fiz café. Me estirei na cama. Gato veio atrás. Não fiz cafuné. Acordei de madrugada. Um peso no peito. Sonhei que... Dessa vez fiz cafuné no gato. Consegui me levantar. Fui até a sala. Gato piscou só um olho. Parecia irônico. Teria me enfeitiçado? Da próxima vez compro um cachorro.

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MAIS UMA DE DONA KILDA

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os noventa, muita história para contar. Quem diria que ainda haveria uma nova de que nunca havia me falado! Começo dos anos 40 do século passado. Londrina, fundada em 1934, ainda na infância. Arlindo e Ananisa se mudaram para Londrina. Vieram de Santo Antonio da Platina com os filhos mais novos: João, Almey, Caio, Amélia e Cristiano. Carlos e Kilda, os mais velhos, estudavam em Jacarezinho. Se juntaram aos irmãos e pais no final do ano escolar. Depois de se formar no ginásio, primeira turma do Colégio Londrinense, Kilda morava com os pais e irmãos na rua Mato Grosso. Começou a ser procurada por pessoas que pediam sua ajuda na escrita de cartas para familiares distantes. Lembrei-me de Dora, personagem vivida por Fernanda Montenegro, que escrevia cartas para aqueles que não sabiam escrever em Central do Brasil. Quem diria? Minha mãe viveu essa experiência na vida. Hoje lembrou-se de uma senhora que lhe pedia para escrever cartas para o irmão. Ela falava o que queria dizer e Kilda transformava a fala em uma narrativa escrita. Quando a mulher recebia cartas do irmão, trazia para Kilda ler. Um dia uma surpresa: "Por favor dê lembranças à Kilda que escreve suas cartas tão bem". Não poderia haver retribuição melhor a um trabalho que era somente mais uma das formas de solidariedade humana que abundava naquela Londrina nascente que atraía gente de todos os cantos. Gente que deixava entes queridos em terras distantes. Gente que precisava contar as novidades, chorar a saudade, compartilhar os sonhos... Ouvir histórias e narrar para outros. É uma das coisas que Kilda sempre gostou de fazer. Assim como seu pai, meu avô Arlindo. Suas histórias sempre prendiam minha atenção quando criança. Essa mulher cujo nome perdeu-se na memória soube quem escolher. Eu tento seguir a tradição. Vou narrando as histórias que ouço. É quase um vício! Mas, que posso fazer?

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DESAMOR TECNOLÓGICO

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braçados, em pé, pareciam apaixonados. Muito jovens, seguiam no mesmo ônibus que eu. Irradiavam uma felicidade incomum. Com um dos braços envolto na cintura dela, ele buscou o celular no bolso direito da calça com a mão esquerda. Com certo esforço e alguma contorção muscular foi bem sucedido. Ela quis saber quem era. Mensagem de um amigo, respondeu ele. Um pouco corado no rosto, embora quase imperceptível na sua pele mulata. Ela percebeu. Talvez tenha sentido o súbito e tênue aumento de temperatura que causara o leve rubor. Quis ver. Ele relutou, fuçou um pouco mais no celular. Ela esbravejou. Ele cedeu. Enquanto ela fazia a busca no celular, ele pediu o dela. Julgou-se com o mesmo direito. Lembrei-me de uma amiga que certa vez me disse: quem procura acha. Ao passar-lhe o celular, ela também enrubesceu. O batom exageradamente vermelho, cor de pitanga madura, não foi suficiente para atenuar a mudança de cor nas bochechas brancas da moça loira. Formavam um belo casal. Aos poucos o humor foi se transformando em um mal estar. Quase ao mesmo tempo, os dois falaram: é só um(a) amigo(a). A felicidade se evaporou rapidamente. O braço dele escorregou bruscamente da cintura dela. Viraram o rosto. Quando o sinal "fechando portas" soou, ele saltou fora do ônibus. Ela não conseguiu segui-lo. Uma lágrima em cada rosto, dela e dele, me encheram de tristeza. Eram um belo casal. De felicidade incomum e efêmera. O ônibus seguiu seu trajeto comum. Indiferente ao desamor que nele brotara.

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VIDA SURREAL

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os 17 anos, gabava-se com o amigo: _ Não consigo pegar mina da minha idade. Parecem crianças. Quando eu tinha 12, namorei uma de 17. _ Ela deve ter te traído. Tenho certeza, comentou o amigo. Os dois da mesma idade voltavam para casa ou iam para a escola. Impossível dizer com certeza, mas os uniformes escolares sugeriam as alternativas. Na conversa dos dois, dilemas do homem que parecem independer da idade: amor e sexo, fidelidade e traição. Muitos homens mais velhos dizem ou desejam fazer o contrário. Fogem das mulheres de sua idade. Mas, como já virou piada: "Correm o tempo todo atrás da Chapeuzinho Vermelho e acabam, por fim, comendo a vovozinha". As gerações mais novas que a minha parece que tinham resolvido estes dilemas. Vinte anos atrás ouvi uma jovem colega de profissão me explicar o significado de ficar. Eu perto dos 40, ela se avizinhando dos 30. Achei a novidade um pouco estranha, mas promissora. Pensei comigo mesmo, sem externar a ela nada mais que um simples: _ Interessante! Não ficamos. Nenhuma atração de ambas as partes. Assim me pareceu, Ou, como conta a fábula da raposa: as uvas estavam verdes. No entanto, essa ideia de ficar e pegar me impressionou pela possibilidade de resolver os velhos conflitos amorosos de minha geração. Se bem que, os mais cínicos, sempre falaram: _ Lavou tá novo! Algum tempo depois, lidando com filhas, sobrinhas e suas amigas no começo da adolescência, lembro de uma delas chorando, aos prantos: _ O que houve? - Fulano traiu ela. Uma delas me respondeu. _ Não sabia que tinha namorado. _ Não. Eles estavam só ficando. Ele ficou com outra. Fiz um discurso sobre o significado do ficar e a banalização do amor. Ao fim disse: _ Se você acredita em ficar, não tem sentido acreditar em traição. Não resolveu a dor da traição, mas ela parou de chorar. A conversa dos dois adolescentes me transportou no tempo. Eles são de uma geração ainda mais nova. Parece que ficam e pegam adoidado (uma gíria de minha geração).

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Mas ainda falam em traição. Tão surreal quanto "Um cão andaluz" de Buñuel e Dali. Ou até mesmo, conforme disse Viviane Forrester em seu livro "Horror Econômico", referindo-se à expressão "Empresa Cidadã". Nem o mais surreal dos artistas conseguiria criar algo assim. Interessante!

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NOVE VEZES NOVE

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uando se deu conta, havia chegado aos 81 anos. Os últimos vinte e um passaram rápido. Pareceram vinte e um meses. Para a estatística previdenciária ele já significava prejuízo a qualquer sistema. Sete anos além da média de vida esperada. Desde os 36 acostumou-se a pensar sua vida em ciclos de nove anos. Naquela idade, refletindo sobre as passagens marcantes da vida, observou que a cada nove anos acontecia uma reviravolta. Aos 36 foi o desencanto com o primeiro amor. Conheceram-se quando estava com dezoito. Virgem ainda. Romântico, pensava que sexo sem amor não fazia sentido. Os amigos não se conformavam por ele nunca ter ido à zona. Mas, desde criança, foi muito dono da sua vontade. A primeira vez com ela foi desajeitado! Ela já tivera sua primeira vez. Foi compreensiva e paciente. A princípio não acreditou que nunca fizera sexo. Foi assim que, aos 18, perdeu a virgindade. Apaixonado. Aos 36, desacreditou do amor eterno. Só então entendeu Vinicius: que seja eterno enquanto dure. Ela achou outro amor. Ele foi atrás do tempo perdido na adolescência e juventude. Experimentou todas as formas do sexo. Mas, me antecipo nessa história. Ela é melhor contada em ordem cronológica. Foi assim que ele contou. Voltemos aos nove anos. O que pode marcar uma criança de forma tão indelével que sete décadas depois ainda esteja fresco na memória de um octogenário? Para ele foi a perda de um brinquedo. Aos nove, no dia de seu aniversário, ganhou de presente de um de seus tios, um aviãozinho que, movido a pilhas, girava as hélices e se movia. Ficou encantado com o brinquedo. Foi à rua brincar com os amigos. Era noite. Brincaram muito com todos os brinquedos. A última lembrança que tem do aviãozinho foi de tê-lo visto encostado na raiz de uma árvore na calçada. As hélices giravam ainda. Mas, o aviãozinho estancara na raiz. Não se movia. No dia seguinte, o avião não estava junto com os outros brinquedos. Não comentou com ninguém. Carregaria consigo esse primeiro desencanto. Esta seria uma marca da vida. Foi o batismo na solidão. Alguns acontecimentos nunca seriam compartilhados. Este foi o primeiro. Aos dezoito, conheceu o luto de perto. Um amigo de infância mudou-se da cidade um ano antes. Voltou em um caixão lacrado. Ninguém estava autorizado a abri-lo. O amigo morrera em um acidente de avião. Ficara irreconhecível. Naquele dia lembrou-se da última vez que se viram. Encontraram-se em São Paulo. O amigo quis levá-lo a um

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puteiro. Poucos meses antes do acidente. Era um sábado. Recusou o convite. Ainda era o romântico virgem. A perda da virgindade, muito diferente da perda do amigo, ocorreria alguns meses depois. Engraçado como uma mesma palavra pode se referir a sentimentos tão distintos. Aos vinte e sete, uma descoberta. Alguém lhe disse que era adotado. Sempre se achou diferente dos demais irmãos. Ficou curioso sobre seus reais antepassados. Descobriu que nascera na Santa Casa da cidade no mesmo dia em que sua mãe adotiva deu à luz um natimorto. Uma irmã de caridade ficou sabendo e convenceu uma jovem solteira que recém lhe parira a doá-lo. A jovem topou. Foi atrás da irmã na Santa Casa, mas esta já tinha morrido. Ninguém mais sabia da história. Aos vinte sete soube da mãe que nunca teve. Não disse nada para ninguém mais. O que adiantaria? Pensou e guardou a notícia para si. Ao lado do aviãozinho em algum canto da memória. Aos 36, o fim do casamento. Não tiveram filhos. Ambos estéreis. Ela quis adotar uma criança. Mas, a ideia ocorreu na mesma época em que se descobriu adotado. Disse a ela que pensaria no assunto. Nunca mais disse nada. Ela também não. Sempre carregou a dúvida: será que ela sabia que fora adotado ainda recém-nascido? Nunca perguntou. Nem ela disse espontaneamente. Parece que foi a partir desse silêncio que começaram a se afastar. Ele passou a ser cada vez mais calado. Temia que ela tocasse no assunto. Até que aos 36, ela revelou: me apaixonei de novo. Outro cara. Ele quer adotar um filho. O que você nunca quis. Ele entendeu. Saiu de casa. Mudou de cidade. Conseguiu um emprego novo. Um forasteiro em uma cidade maior em que não conhecia ninguém. Foi recuperar o tempo perdido na adolescência, juventude e parte da idade madura. Parecia até um ex-seminarista. Bem devasso. Uma vez uma moça disse que tinha engravidado dele. Riu na cara dela. Outra vez, um garoto de programa lhe perguntou: sabe por que homens como você nos procuram? Não, ele respondeu. Saudade do que já foram. Foi a resposta. Dessa vez, não riu. Nunca mais teve um relacionamento amoroso. Passou a usar os serviços profissionais. Afinal, era só sexo que buscava. Não poderia ser compreendido por ninguém. Não compartilhava sentimentos. Aos 45, continuava viril. Mas, o sexo lhe entediava. Tinha uma profissional fixa que encontrava uma vez por semana. Ela lhe chamava de querido e dizia gostar de seu perfume. Às vezes, queria que passasse a noite com ele. Dizia que não tinha marcado nenhum programa mais. Tinha reservado a noite para ele. Mas, ele não aceitava. Percebeu que ela estava se apaixonando. Se encontraram

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mais algumas vezes. Ele sempre recusava o convite para passar a noite. Depois ela sumiu. Passados dois meses, recebeu uma ligação de um policial. Ela tinha sido encontrada morta. Seu número de celular estava registrado no dela. Identificado por Querido perfumado. Eram muitos números. Deu as informações que o policial pediu. Uma semana depois viu nos jornais que ela se suicidara. Teria sido por sua causa? Mais uma pergunta que ninguém poderia responder. Aos 54, já aposentado, decidiu gastar as economias dos últimos nove anos em uma viagem. Partiu para a Europa. Queria visitar todas as capitais. O dinheiro foi suficiente para 120 dias de viagens. Na volta encontrou o aviso de que os quatro primeiros meses da aposentadoria estavam disponíveis em uma agência de banco oficial. Ele tinha que comparecer pessoalmente para abrir uma conta ou informar uma já existente. Resolveu cortar todos os laços familiares, que quase já não existiam. Há muito tempo não procurava nenhum dos irmãos ou outros familiares. Mais uma vez, mudou de cidade. Foi morar no litoral. Seguiu o clichê do sonho de boa parte daqueles que pensam em se aposentar: morar na praia. Mas, era alérgico à areia. Fugia da beira do mar. Ficou assíduo da biblioteca. Nunca gostou muito de ler. Lia os jornais, mas um dia leu um livro de Herman Hesse - O lobo da estepe. Descobriu que era um livro que fizera sucesso quando era adolescente. Estava atrasado uns quarenta anos. Ficou impressionado com a história. Passou a acreditar que tudo seria diferente se tivesse lido aquele livro quando jovem. Entrou em depressão profunda. Procurou ajuda profissional. Passou os próximos nove anos fazendo análise. Quando completou 63, descobriu-se apaixonado por sua analista. Era uma mulher madura, com pouco mais de 50 anos, para quem contara quase toda sua vida. Exceto, as partes sobre o aviãzinho, a adoção e a perda da virgindade aos 18. Inventou um monte de coisa. Afinal, em nove anos de terapia deu pra falar muita coisa. Não conseguiu se declarar para a analista. Ela era casada. No dia que tentou, gaguejou um pouco e acabou dizendo: é melhor a gente encerrar nossa terapia. Venho aqui já sabendo o que vou dizer e o que você vai comentar. Já deu. Vamos acertar as contas. Pagou e nunca mais voltou. Aos 72 anos reencontrou um amigo que fizera aos dezoito. Os dois estudaram juntos no primeiro ano da faculdade. Depois, o amigo desistiu do curso. Nunca mais se viram. O amigo era um ano mais velho. Parecia um fantasma. Magro, pálido, com olheiras profundas. Se encontraram na sala de espera de um médico. Ele reconheceu o amigo, quando a assistente anunciou o nome dele para entrar para ser

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atendido. Esperou o amigo sair. Apresentou-se. O amigo esperou ele sair da consulta. Foram a um bar à beira-mar. Ficaram horas conversando e bebendo. Trocaram telefones. No dia seguinte, recebeu uma ligação. Era uma voz feminina. A mulher do amigo informando que este falecera de madrugada. Chegara em casa, contara do reencontro e deitara. Por volta das cinco, ela ouviu um ronco estranho, virou-se para o lado do marido, e ele estava morto. Ela achou o número do telefone e resolveu lhe ligar. A morte do amigo mexeu com ele. Passou a fazer exames periódicos de seis em seis meses. Tinha uma saúde invejável. Dera sorte nos anos de orgia. Nunca se protegeu. Nunca ficou doente. Aos 81, acabara de voltar de mais uma consulta com o geriatra. A bateria de exames não revelou nada. Tudo em ordem. Mas, algo não ia bem. Ele chegava ao nono ciclo de nove anos com algo lhe incomodando. Sonhara que não conseguiria completar outro ciclo. Tinha que decidir se pagava pra ver. Isto é, deixaria a vida correr ou seria, mais uma vez, dono de seu destino. Para ajudar na decisão, pegou uma caneta e um caderno. Escreveu o título antes de tudo: nove vezes nove (memórias de um lobo solitário). E começou: no dia que completo 81 anos, faço este relato de coisas que jamais compartilhei... Encontrei o caderno junto ao seu corpo três dias depois. Os vizinhos estranharam o mau cheiro que exalava do seu apartamento. Abri e li o título e as primeiras linhas. Guardei o caderno comigo sem que ninguém percebesse. Só eu sei a história toda. Sempre quis ser escritor, mas não levo jeito pra coisa. O destino colocou uma história inédita em minha mão. Foi meu primeiro livro. Um sucesso. Será que vou me inspirar e escrever outro? Escrever é tão complicado. Por isso, fico seguindo velhinhos solitários que vejo por aí. Quem sabe encontro outra história...

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RÁDIO, LATIM, POESIA E NAMORO NA LONDRINA DOS ANOS 40

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ssa conversa foi a três. Pouco depois de ter constatado sua consciência sobre o esquecimento de fatos recentes, ela disse: _ Agora vou te contar algo que nunca falei pra ninguém. _ O que é? _ O Antonio da rádio Londrina quis me namorar. Tia Almey, que havia chegado meia hora antes, comentou: _ Isso nem eu sabia. _ Você era muito criança na época. Não se lembra de muita coisa. _ De alguma coisa eu lembro, retrucou minha tia. A partir daí, ela contou sobre como o Antonio, que apresentava um programa musical na rádio Londrina, todo dia anunciava: _ Esta música é para a senhorita Kilda Gomes do Prado. Ela disse que não namoraram. Tia Almey perguntou: _ Mesmo? Ela continuou negando. Lembrou-se dos casais de namorados do tempo do ginásio Londrinense: Paulina e Pedro; Dorotéia e Jair. Escondidos dos pais, que à época eram muito temidos. Tia Almey se lembrou de outro casal: _ Teve a Silvandira e o Milton. Ela concordou e continuou lembrando. Era o começo da década de 40. Londrina, fundada em 34, ainda na infância. A turma do ginásio Londrinense tinha um programa na rádio Londrina. Os ginasianos faziam discursos, debates, comentários. Alguns declamavam. Paulina e Kilda gostavam de declamar poesias. Ela contou: _ A gente sentava em frente ao locutor e declamava no microfone. O espaço era pequeno. Antonio deve ter se encantado com aquela senhorita de 15 ou 16 anos declamando Olavo Bilac e Castro Alves. Ela declamava com alma. Logo começaram as oferendas musicais. Mas, não passou disso. Enfrentar seu Arlindo, dono da pensão, não era tarefa fácil. Nenhum dos namoros foi em frente. Foram paixões juvenis que fazem parte da vida. Da rádio Londrina a conversa foi para o professor de Latim, doutor Clímaco, um dos primeiros médicos de Londrina, um negro vindo da Bahia. Foi deputado também. O professor de Latim tinha um carro e ministrava sempre a última aula. Ao final, os rapazes se aboletavam

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no carro e ele levava cada um em sua casa. Até que um dia as moças deixaram o professor em uma situação difícil. Em coro falaram: _ Professor, o senhor só leva os rapazes. Nós, as mulheres, mais frágeis, temos que caminhar. Dr. Clímaco não titubeou. Botou a rapaziada pra fora do carro e levou as moças. Tia Almey lembrou outra do Dr. Clímaco. Ele sempre dava nota 100 para as moças e nota 90 para os rapazes. Um dia, entregando as provas, tinha uma com 100 para um rapaz. Ele se enganara e não teve dúvidas. Pegou de volta e disse: _ Tem erro nisso. Sua nota é 90. E corrigiu. Segundo elas, ninguém reclamava. 90 era uma nota ótima para o Latim. Foi assim, nessa conversa a três, que eu aprendi um pouco mais da história da família Prado que veio para Londrina em 1940.

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AMOR, VOU CAÇAR POKEMON

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lanejava aquilo há muito tempo. O casamento que começara no paraíso chegara ao inferno. Não se entendiam mais. Depois de dez anos, nem o sexo era capaz de sustentar a união. No vigor dos trinta anos, os dois ainda transavam. Muito. Os dois gozavam e viravam pro lado. O casamento foi devido a uma gravidez precoce. Não vingou. Seis meses depois, o aborto. Decidiram ficar juntos assim mesmo. Não houve outra gravidez. Não fumava, nem bebia. Não praticava esporte. Era da casa pro trabalho. Do trabalho pra casa. Aos finais de semana, um cineminha. No meio da semana, a ida ao culto. De vez em quando, uma pizza com um casal de amigos. A vida seguia cada vez mais insossa. Mas, chegou a temporada de caça aos pokemons. Cada um com seu celular. Redescobriram a cidade. Iam a toda parte atrás deles. Sempre juntos. Parecia que algo os unia novamente. Chegou a esquecer do plano. A última vez foi no Jardim Botânico. Muita gente, além dos eventuais turistas. De repente, tirou os olhos do celular. Alguém fez a mesma coisa. Os olhares se cruzaram. Algo despertou daquela troca de olhares. No seu dia de folga, sabia que estaria só o dia todo. No café da manhã, avisou: _ Hoje vou caçar pokemon. Nunca mais voltou. Perambula pela cidade. Tem a esperança de uma nova troca de olhares. Graças ao pokemon, conseguiu escapar do inferno. Encontrará outro paraíso? Difícil. Ninguém consegue erguer a cabeça. Elas estão sempre curvadas. Na direção do celular.

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CRÔNICA DE UMA DESMEMÓRIA ANUNCIADA

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e repente ela se deu conta de que está perdendo a memória. Me perguntou: _ Você vai comprar lazanha? Ou vai fazer? Antes que respondesse, emendou: _ Ah! Já almoçamos. E continuou: _ Estou perdendo a memória. Esqueço e tenho consciência que esqueço. A partir daí me contou sobre um episódio com seu pai que ficara completamente esclerosado. Certo dia, um velho conhecido, que não o via há mais de quarenta anos, passou no supermercado de meu pai indagando sobre seu Arlindo. Meu pai lhe respondeu que era seu genro. O homem manifestou a vontade de rever o velho amigo. Meu pai alertou que ele não seria reconhecido. O homem insistiu. Minha mãe, então, o levou até a casa de meus avós que não distava muito da nossa, cerca de 150 metros. Ela também comentou que meu avô já não reconhecia ninguém. Lá chegando, o homem se apresentou para minha vó como um velho conhecido de meu avô. Novamente, ele foi alertado da situação de meu avô. Assim mesmo, o homem quis rever o amigo do passado. Quando entrou no quarto, meu avô se dirigiu a ele: _ Oi Fulano. Quanto tempo a gente não se vê. Para surpresa de todos, a conversa continuou: _ Você me conhece Arlindo? _ Claro. Trabalhamos na roça juntos há mais de quarenta anos. Ao terminar de me contar esta história, minha mãe arrematou: _ Será que eu duro mais dez dias sem perder toda a memória. Minha resposta não podia ser outra: _ Claro. Ainda vai nos contar muita história. Como esta que acabou de lembrar. Ela arrematou a conversa: _ Só me lembro do passado. Esta é a crônica de uma desmemória anunciada. Que ela demore a chegar completamente. Mas, assim como ocorreu com meu avô, haverá momentos que a lembrança do passado desmentirá a falta de memória.

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Enquanto isso, sigo minha sina de escriba dessas memรณrias que ela vai lembrando. Registro para que, no futuro, a desmemรณria nรฃo impere.

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O OUTRO

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e olhou no espelho. Era outro. Quer dizer, era ele mesmo. Mas, não se reconheceu. Ou melhor, não queria se reconhecer. Queria ser outro. Era esta a verdade. Não havia nada de errado ou mágico naquele espelho. O que via era a mesma pessoa da fotografia no celular. Não fazia nem uma hora que fizera a selfie. Não gostou do que viu. Foi atrás do espelho. A imagem refletida era dele mesmo. Se imaginava outro. Subitamente, esmurrou o espelho. Junto aos estilhaços no chão, gotas de sangue. No fragmento maior, o outro olhou para ele. Na ponta do nariz, uma mancha vermelha. O sangue. Viu um nariz de palhaço. Riu. Franziu os olhos. Enxergou melhor. Não era um palhaço. Deixou de sorrir. Saiu do quarto. Bateu a porta. Exclamou: _ Idiota! Sempre que passava por um espelho, a esperança renascia. Ver o outro. Nunca conseguiu. Às vésperas da morte, instruiu os amigos: _ Quero um caixão com um espelho na parte interna da tampa. Se eu abrir os olhos, pode ser que veja outro. Os amigos atenderam ao pedido. O mais cínico, justificou-se: _ A esperança é a última que morre. Vai que...

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MEU TIO CHRISTIANO

A

vida é imprevisível. Tio Christiano, o irmão mais novo de minha mãe, faleceu hoje. O caçula de sete irmãos, tio Christiano foi um homem que defendia suas ideias com paixão. Como dizia minha mãe, era um esquentadinho. Ao mesmo tempo, sempre foi justo e procurava o bem comum de todos. Aliás, felizmente, este jeito de ser é uma marca dos Prado. Herança da forma como todos foram criados por Vó Ananisa. Ela, também, foi uma mulher justa. Alguns anos atrás, quando comemorei 50 anos, escrevi um texto - Lembrança de Ananisa - em que registrei a crença nos valores que ela nos transmitiu que me permitiam não me arrepender do que fiz no passado e acreditar em um mundo melhor no futuro. Muito religiosa, católica, buscava a seu jeito um mundo mais justo. Sem fé nenhuma, tento seguir seus passos nessa vida que vou levando. Às vezes, guiado pela paixão, outras, guiado pela razão. Como um Prado. Tio Christiano, quando nos reencontrávamos, me abraçava e me beijava no rosto. Fazia isso com todos. Passava um afeto especial. Fará falta. Da minha infância me lembro de um momento único com ele. Tinha uma lambreta e, certa vez, foi dar uma volta com um monte de filhos e sobrinhos. Tinha criança pendurada em tudo o que é lugar daquela lambreta. Uma aventura inesquecível! Em Londrina, pensando em como dar essa notícia triste para minha mãe, comecei este texto. Ainda não sei como daremos a notícia a ela. Forte, sei que ela sofrerá, mas terá ânimo para seguir sua jornada que já passa dos 90 anos. Também não sei como terminar este texto. Queria ter a crença em uma vida após a morte. Se a tivesse, imagino Tio Christiano com sua lambreta dando voltas com um monte de crianças sorrindo... Fazendo suas peripécias. Por aqui fará muita falta!

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O CINÉFILO SOLITÁRIO

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iu-se no espelho. Os cabelos brancos desalinhados revelavam, além da idade, os efeitos do vento forte. Naquela tarde abafada, a ventania anunciava uma chuva forte. Ela o pegou no meio do caminho. Conseguiu se proteger da chuva nas marquises dos prédios antigos da cidade. Esgueirou-se entre as árvores e chegou pouco molhado à entrada do cinema. Era o último cinema de rua. Um sobrevivente à sanha das imobiliárias que buscavam novos espaços para as igrejas que se multiplicavam quase que de forma incontrolável. Isso o incomodara bastante. Mas, com o passar dos anos, percebeu que era uma transformação inevitável. Logo, aquele cinema seria outro templo religioso. O incômodo vinha de acontecimento marcante em seu passado. Em algum momento entre a infância e a adolescência trocou a missa da manhã dominical pelas matinês do cinema em sua cidade natal. Durante muitos anos, não entrou mais em uma igreja para rezar. Perdera a fé que nunca tivera. Depois de muito tempo, voltou a entrar em igrejas. Como turista. Ou então em casamentos. Algumas vezes como padrinho. Não pode evitar alguns pedidos de parentes ou amigos. A ocupação das salas de cinema pelas religiões lhe soava como uma vingança de deus. Se existisse. O cinema esteve presente em vários momentos significativos de sua vida. Mas, não se tornara um ganha-pão. Teve essa ilusão na juventude. Mas, acabou seguindo outros caminhos. O cinema se tornou um refúgio. Mas, você quer saber de hoje, não é? O passado longínquo não lhe interessa. Ele se viu no espelho. E daí? É o que você quer saber. Vamos lá, então. Ele passou a mão direita sob o cabelo. Tentou ajeitá-lo. Percebeu a umidade em pequenas gotas que, sob a luz, refletiam-se prateadas. Reproduziam o grisalho do cabelo. No espelho, percebeu também as manchas da pele da mão. Cada vez mais pintada de um castanho claro. Outra marca da passagem do tempo. Entrou na sala. Já escura. O filme não foi capaz de acompanhar. Em sua mente, outro filme se exibia. Uma a uma, as mulheres que afetara na vida foram surgindo. Não foram muitas. Elas falavam, mas ele não ouvia. Pelos gestos que faziam, percebia a raiva que acompanhava as falas. A única que não falava nada era a que tinha lhe ensinado a beijar. Aos 19 anos, ainda virgem, ele a conheceu nas aulas de matemática da universidade. Não faziam o mesmo curso, mas a

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disciplina era do ciclo básico. Ela passou um sábado inteiro com ele. Prometeu voltar no domingo. Não apareceu. Na segunda-feira, na aula de matemática, ela disse que lhe usara para fazer ciúmes ao namorado. No domingo fizeram as pazes. Ele achou graça. Nunca esqueceu de Maria. Acordou sorrindo. Nunca as ouvira. Só podia estar só naquela altura da vida. Na tela do cinema passavam os créditos do filme ao som de uma marchinha: A e i o u dabliou na cartilha da Juju... Deu tempo de ver que era de Lamartine Babo e Noel Rosa. Do filme pouco viu. Era sobre uma mulher e um homem que conversavam, mas pareciam não se escutar. Já conhecia essa estória. De longa data. Já passara dos oitenta. Há alguns anos mudara para aquela cidade. A carga da mudança foi pequena. Uma mala de roupas. Alguns objetos pessoais que guardara ao longo da vida. Alugou um pequeno apartamento mobiliado modestamente. Seu plano de saúde tinha validade nacional. Conveniente para os checkups anuais. Continuava com uma saúde invejável. Para ele parecia outra vingança divina.

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CHUVA NA RODOVIÁRIA

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ois pardais fogem da chuva. Farelos no chão, embaixo dos bancos da rodoviária, são um banquete. Duas pombas se juntam ao festim. As quatro aves não se incomodam com o movimento dos passageiros. Devem ser comensais habituais. É provável que tenha me enganado. Não fogem da chuva. Seu comportamento me sugere que, faça chuva ou faça sol, frequentam esse espaço regularmente. Ao menos, mais frequentemente do que eu. Passo por aqui a cada duas ou três semanas. A chuva se torna mais forte. Deixo de observar os pássaros. A fauna humana que se junta é mais variada. O número de pessoas vai aumentando. Provavelmente, alguns me farão companhia no ônibus que parte às dez horas. Idosos, jovens, casais, solteiros, baixos, altos, gordos, magros, grisalhos, morenos e imberbes. Sou o único com barba. Para uns a viagem deve ser de retorno. Meu caso, que volto para casa. Alguns devem ir para voltar em breve. Hoje ninguém chora. Não deve haver ninguém que se destine a lugares longínquos ou que parta em definitivo. Poucos passageiros com muitas malas. A maioria deve voltar logo. Mas, são apenas hipóteses. Sempre pode haver alguém que resolveu deixar tudo para trás. Tem um ali falando sozinho. Ou está acompanhado por alguém que só ele vê. Nenhuma lágrima. A única água que cai é a chuva. Seu ruído na cobertura é cada vez mais forte. Algumas goteiras surgem. Evidenciam as falhas do telhado. As humanas nem sempre são tão expostas. Principalmente as de caráter. Mas, aqui não é o espaço para falar disso. Hoje, estou operando no modo descritivo apenas. Uma trabalhadora enxuga as poças que se formam. Acho que vai ter que repetir o gesto muitas vezes hoje. A chuva não dá sinais de querer ir embora. Na rodoviária, assim como o motorista, a chuva não é passageira. Eu sou. Meu ônibus chegou. Vou deixar a chuva por aqui. Assim espero.

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DIA DAS MÃES

la virou uma biscate. Todo fim de tarde ia encher a cara no bar da esquina. Caçando macho. Arrumou um velho. Quando encontrava ele, não dormia em casa. Ia se esfregar com ele. Passava em casa de manhã. Toda amassada e descabelada. Tomava banho. Ia pro trabalho de cara limpa. Biscate. Eu? Tinha que cuidar da filha. Nem sou o pai. Quer dizer, acho que não. Biscate. Quem vai saber de quem é a menina. Três anos. Coitadinha. Perguntava da mãe. Que que eu podia dizer? Falava que estava trabalhando. Biscate. Quando saía do emprego, pintava a cara e passava aquele batom vermelho. Vermelho puta. Quase nunca via a menina acordada. Antes de sair, dizia que amava a gente. Pedia pra eu cuidar dela. Mas, de que jeito? Nem dinheiro ela me dava mais. Gastava tudo em pinga. Eu fazia uns bicos pra poder dar o que comer pra menina. De vez em quando ficava na porta da igreja com ela. Pedia. Pedir é melhor que roubar, não é doutor? Ela tinha vergonha. A menina. A biscate nem sabia. Acho que me matava se soubesse. Mas, como que eu ia fazer? Ela não dava mais dinheiro pra mim. Ainda tinha coragem de me pedir pra cuidar da menina. Biscate. Outro dia chegou bêbada. Uma hora da manhã. Não achou macho que a quisesse. Veio se esfregando em mim. No começo eu resisti. Mas, a carne é fraca, doutor. Tava a perigo. De madrugada, acordei do lado da biscate. Peladinha. Dei mais uma. Ela parecia morta. Fria. Fedia a cachaça. Meu sangue ferveu. Enchi ela de porrada. Achei que ela fingia. Devia tá sonhando com o velho dela. Mas, ela já estava morta. Biscate. Agora tenho que me virar pra cuidar da menina. Três anos. Coitadinha. Perguntava da mãe. Eu dizia que estava no trabalho. Biscate. E agora? No dia das mães vai ter festinha na escola. A biscate não vai. Tá morta. Não podia esperar passar esse dia. Não. A biscate tinha que morrer antes. Agora tô aqui preso. Mas, o doutor acredita em mim, não? O que vou dizer pra menina? Coitadinha. Que vai ser dela? Biscate.

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EM QUE MARES?

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lexander tem dificuldades de falar com Dirk, seu amigo que capitaneia um navio transportando carga de um museu em algum mar qualquer. A conexão da internet é instável. Ele vê o amigo, mas este só ouve sua voz. Dirk quer esquecer o passado. Falar só do presente. A conexão é perdida. Alexander lamenta: _ Foi tão rápido. Nem pude lhe perguntar em que mares navega. Assim começa Francofonia, documentário de Alexander Sokurov, uma produção franco-germano-holandesa que assisti hoje. Belíssimo passeio pelo Museu do Louvre e parte de sua história durante a ocupação nazista de Paris. O lamento de Alexander me leva ao passado recente. Ontem. Final da tarde. Pouco mais de cinco horas. Peço ajuda de Leandro, doutorando em Administração, sobre como preparar dados em uma planilha para análise de redes. Rodrigo, também doutorando, ao lado de Leandro, comenta: _ Navegando outros mares, professor. Rodrigo se refere a passagem de um livro de Rubem Alves que usei em um de nossos encontros na disciplina de Empreendedorismo no semestre passado. Rubem Alves se refere ao professor como um navegante de muitos mares que tenta ensinar aos alunos o que sabe sobre os mares. Mas, em algum momento, alguém pergunta sobre um mar desconhecido para o professor. O professor, então, reconhece a ignorância e diz: _ Esse mar não conheço. Mas, posso lhe dizer como explorei mares não conhecidos. Assim, você pode explorar também mares que não navegou. Nessa passagem Rubem Alves ilustra, com uma imagem tão bela, a segunda fase da vida do professor que Roland Barthes chamou da fase de ensinar o que não sabe. Sugerir caminhos para que o estudante, de forma autônoma, construa seu próprio conhecimento. Assim, interpreto o que me dizem Alves e Barthes. O episódio de ontem me lembra que os jovens também são navegantes que me ajudam a navegar mares desconhecidos. Ainda bem que a conexão não se perdeu. Generosos, Leandro e Rodrigo, me guiam por mares que desejo explorar. Entro na terceira fase da vida do professor que Barthes chamou da fase do esquecer o que sabe. É o esquecimento que permite o rearranjo da forma de ver o mundo. Esse rearranjo depende de explorar novos mares. Muitos mares!

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Sigo nessa viagem. Quase sempre bem acompanhado de outros marinheiros que compartilham comigo seus saberes. Que a conexão não seja tão instável quanto a de Alexander e Dick é o que desejo. À falta de uma bússola, me guio pelos que já exploraram mares desconhecidos.

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TRÊS FRASES OUVIDAS EM ÔNIBUS

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e sinto cronista do transporte coletivo. A proximidade com o outro, embora apenas física, estimula minha audição que, por sua vez, de vez em quando, dispara minha imaginação. À semelhança de um voyeur, mas sem a conotação sexual, ao menos assim imagino, pode ser que esteja me tornando um ecouteur. Brinco com o verbo ecouter, ouvir, do francês. Escuto e tenho prazer na escuta. Muito diferente do sexo, mas bom também. Uma frase solta, em um meio de conversa, já me transportou para o mundo da imaginação solta e livre. Foi o que aconteceu quando, indo para o trabalho na universidade, ouvi uma voz feminina exclamar: _ O problema é o menos infinito! Dessa frase construí um breve texto que está em alguma parte de minha página do facebook e, também, em meu blog brevestextos.blogspot.com. Aliás, me delicio com as tecnologias de comunicação de que dispomos. Qualquer um pode se tornar um editor de seus próprios textos nos dias atuais. Publico o que escrevo sempre que quero. Livre e autônomo, assim como é @ eventu@l leit@r que encontrar um de meus blogs. Lê o que quer e quando quer. Experimente você também. Em meus quatro blogs, mais de trinta mil acessos a meus textos já aconteceram. Usufruo meus quinze minutos de fama no mundo virtual. Voltando ao ônibus. Desde então, adquiri o hábito de tentar ouvir o que se fala nos ônibus. Me tornei um ecouteur. Passei a registrar as frases soltas em meu celular. Pode ser que se transformem em novos textos. Ficam, assim como embriões, incubadas em meu processador de textos esperando o momento de se desenvolverem e ganharem um corpo em forma de escrita. As três primeiras que anotei foram: _ Não curto muito meu pai. _ Já comeu ela? _ Se você vai descer no próximo eu aceito. Estranhamente, compartilham o fato de tratarem da relação entre humanos. Distintas relações que revelam fragmentos do que somos. A primeira soou dolorosa para mim. Uma jovem assim falou para um rapaz. Não curtir muito o pai! Me pareceu triste! A segunda soou deliciosamente escrachada. Retrato da banalidade das relações? Ou apenas um efeito da dinâmica hormonal de três adolescentes indo de casa para a escola?

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Por fim, a última um retrato pouco usual da cordialidade que ainda habita o transporte coletivo. Um passageiro ofereceu seu lugar a uma idosa. Esta recusou. Ele disse que desceria na próxima estação. Nesse caso, ela aceitou. Assim sigo meus trajetos nos ônibus curitibanos. De ouvidos bem abertos. Um ecouteur! Sempre atento ao que me ensinam frases entreouvidas e que, apenas aparentemente, são desconexas. Ao contrário, todas conectadas nesta jornada humana que não me canso de admirar. E escutar.

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MANHÃ DE SÁBADO

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nna é apresentadora de um noticiário de algum canal de televisão na Dinamarca. Com Erik, arquiteto e professor, é mãe de Freja, uma adolescente, entre quatorze e quinze anos. Os três vão ver a casa que Erik herdou com a morte do pai. A princípio a ideia é vende-la. Mas, Anna convence que devem morar na casa. Fazer uma comunidade de amigos. Erik resiste à ideia. Anna diz que já falou com Ole, amigo do casal. Assim começa o filme dinamarquês "Comunidade" que assisti hoje de manhã no cinema. A comunidade vai se formando aos poucos. O último a se juntar a ela é Allon. Imigrante, se comunica com dificuldade na língua do país. A mesma dificuldade que enfrenta em conseguir trabalho. Sua renda vem de trabalhos avulsos e incertos. Questionado por que quer se juntar à comunidade, de forma surpreendente e incompreensível para todos, responde e logo após começa a chorar: _ Eu preciso chegar. Mais uma vez, como já me aconteceu antes, penso comigo: _ Esta pequena frase vai me fazer escrever algo. O que eu não podia prever, a essa altura do filme, é que, mais à frente, em outra cena, mais uma pequena frase se juntaria a esta. Erik se mostra ser um professor arrogante. Após ter humilhado um aluno durante uma aula, é procurado e questionado por Emma. Terceiro-anista que cursava sua disciplina sobre Arquitetura Racional. Não faço a mínima ideia do que isso seja. Depois de questionar Erik, Anna quer discutir seu projeto com o professor. Algo inspirado na arquitetura de Le Corbusier. De forma, de novo, aparentemente arrogante, Erik afirma que não deve ter nada dela no projeto. No entanto, mesmo um professor arrogante, pode ser um educador eficaz. Nem sempre, é minha opinião. Na verdade, raras vezes. Erik a questiona: _ O que a empolga? _ Não sei, Emma responde. A pergunta de Erik, mais do que a resposta de Emma, junta-se à fala de Allon. O filme, que já ganhara minha simpatia nas cenas iniciais, me seduz por completo. É um filme que instiga a reflexão sobre a vida. Terminado o filme, nessa manhã de sábado, o primeiro da primavera de 2016, caminho em direção à Praça Ozório, no centro de Curitiba. Penso em algum lugar para almoçar. A princípio, busco algum lugar com comida japonesa. Ao chegar à praça, me decido pela feijoada light

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do Arrumadinho. Outra opção seria a comida árabe do Armazém Califórnia. Mas, já estive lá outro dia. Por uma feliz coincidência encontrei Thálita, Marcos e Eduardo. Doutorandos em Administração da UFPR. Tornaram menos solitário meu almoço naquele dia. Companhia agradável de jovens inteligentes que essa vida de professor me permite encontrar. Há treze dias estou sozinho em Curitiba. Sara foi para Maringá fazer companhia à mãe que teve um problema de saúde. Amanda viajou também. Sobramos Tobias, um gato persa, e eu. Entre os miados dele, tento adivinhar se tem fome ou quer um cafuné. Adora um cafuné. Eu não durmo sem lhe dar um pouco. Sempre sobe à cama quando me deito. De vez em quando ainda está lá quando acordo. Mas, volto a esta manhã de sábado. Peço meia feijoada. O garçom me informa que será 70 por cento do preço da inteira. O que fazer? Não vou dar conta de uma inteira. Uma caipirinha foi pedida antes. Essa é inteira! No caminho do cinema até o Arrumadinho me vejo refletido na vitrine de uma loja. Todo de azul. Calça jeans e camisa azul de mangas compridas. Ao sair de casa, a manhã de primavera ainda estava um pouco fria. Até os aros de meus óculos são azuis. Gosto do azul, mas os óculos foram escolha de Sara. Compondo com o azul, o grisalho de cabelos e barba. Não me pareceu uma figura feia. Na verdade, me surpreendi com o que vi. Não sei por que, minha memória me levou para algum período entre 1974 e 1976. Nesses anos, entre os 17 e 19 de idade, vivi em São Paulo, primeiro, e depois, São José dos Campos. Muitas vezes me desloquei, sozinho, para a região da Consolação e Paulista. Ia ao cinema. Sempre sozinho. A paixão pelo cinema, que começou na adolescência, aumentou nesses anos. Desde então, me parece, que assim como Allon, preciso chegar. Mas, não sou um imigrante. Aonde preciso chegar? Ao que me empolga. Esta é a resposta. Diferentemente de Emma, creio saber a resposta. O bom disso tudo é saber que a vida é o que me empolga. Nada pode ser melhor. E, enquanto professor, vivo a esperança de poder ser útil na descoberta do que pode empolgar aqueles que estudam comigo. Depois da segunda caipirinha é hora de pagar a conta. Preciso comprar a ração do Tobias. Hoje pela manhã, antes de sair, servi a última porção. Se não comprar, terei certeza que à noite, mais do que cafuné, o miado significará fome. Ou saudade da Sara, que nunca deixa faltar a ração. Pena que não sei miar. Saudades de Sara

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CENA PORTUGUESA

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o Bar da Estação em Olhão. Um cachorro, um bebê de um mês no carrinho, a mãe do bebê a fumar à porta, o velho proprietário, dois clientes locais, um jovem loiro ao celular em uma das oito mesas. Entra um brasileiro. Faz um cafuné no cachorro que está no meio do caminho. Espera o velho vir atendê-lo. Pede um café. Pergunta o preço. Paga setenta centavos de euro. Conta as moedas com dificuldades, pois ainda não liga valor a tamanho. Um turista francês lendo Tendre est la nuit de F. Scott Fitzgerald em formato de bolso. Bebe café e fuma sentado junto a uma das quatro mesas externas. Em outra, duas mulheres, talvez mãe e filha. Pelo diálogo com o velho parecem freguesas habituais. Manhã de céu azul e sol. Quase nenhuma nuvem. Chega o trem para Vila Real de Santo Antonio. O brasileiro embarca. Assim como quase duas dezenas de passageiros. São onze e quarenta e cinco. A viagem deve durar cerca de uma hora. Pouco mais. Na primeira estação, Fuseta, um passageiro desembarca antes que o fiscal consiga verificar seu bilhete. Ao menos é o que sugere seu olhar furtivo e a pressa com que desce. Impressão reforçada por seu constante olhar para trás enquanto caminha em direção à saída da estação. No vagão, o brasileiro observa e ouve os demais. À exceção dos que conversam, tenta adivinhar entre os calados, quais são locais e quais são turistas. Aquele homem de meia idade, barba por fazer e carrancudo, será português? Aposta que sim. Parece um exercício fútil. Mas, o que não é? A imaginação humana cria propósitos para uma sequência aleatória de eventos. Apenas para manter a sanidade. Mas, a quem queremos enganar, senão a nos mesmos. O brasileiro segue a vida. Ou é a vida que segue o brasileiro? Parece ouvir alguém dizer: _ Corta! Foi um longo plano sequência. A estação é Tavira. No vagão, além do brasileiro, restaram uma idosa e uma linda jovem negra. Embarcada na estação anterior. Nas suas orelhas brilham brincos perolados. O contraste com a pele da moça é magnético. O brasileiro não pode deixar de olhar na sua direção. Encontrar a beleza seria este o propósito? O brasileiro tenta se enganar mais uma vez. Não se conforma com a inexistência deste. Quando ergue os olhos, vê a jovem negra se afastando da estação. Ele nem percebera a parada. Foi um baixar de olhos tão rápido. Escreveu algo ao celular. Desolado, sem

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compreender bem o que sente, segue sua busca. Não chegou a sua estação final. Quase chegando a seu destino. Uma força o faz redefini-lo. Desconhecida. Irá cruzar o rio para pisar mais uma vez em terras espanholas. Parte em busca do barco que o levará ao encontro de algo. Não sabe o que. Se vê refletido na divisória transparente do vagão. Atrás de si, algo que não reconhece. Um vulto desaparece assim que percebe ter sido notado. O brasileiro desvia o olhar. _ Mais um fruto da sua imaginação. Diz para si mesmo. O que não é?

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A PSICÓLOGA CEGA, O BEBÊ COM UMA SÓ MEIA E UM FILME ARGENTINO Tomás tem um passado que volta à tona em seus pesadelos. Ao se esconder em uma pequena cidade do interior argentino encontra Nancy. Uma paixão desperta entre os dois. Mas, entre eles há um mundo de violência que não permitirá que fiquem juntos, a não ser em algum futuro distante. Essa trama é parte de Kóblic, filme argentino, em que Ricardo Darín é o protagonista que tenta construir uma vida escondida dos militares durante a ditadura argentina. Ele fora piloto de aviões da marinha argentina e participara, mesmo que involuntariamente, do derrame dos corpos dos opositores do regime militar argentino. Presos e torturados no auge da violência ditatorial eram descartados em alto mar. Na angústia da memória, um lampejo de felicidade no encontro do casal. Na verdade, essa paixão é apenas um detalhe na trama do filme. Mas, é o que se conecta com os outros personagens do título desse texto. A essa altura, você deve estar curioso sobre qual a conexão que pode haver entre um bebê, uma psicóloga e um filme argentino. Para poder compreender, creio que devo voltar aonde tudo começou. O filme argentino se juntou aos dois personagens no meio da tarde. Antes disso, houve um almoço em um restaurante em um shopping curitibano. Foi lá que, em meio a uma conversa, ouvi que uma mulher estava perdendo a visão. Um comentário entreouvido me revelou que ela é psicóloga clínica. Imediatamente pensei na conveniência dessa situação para um paciente envergonhado precisando revelar algo do passado. Com uma psicóloga cega, não precisaria enfrentar o olhar de outro, mesmo que profissional, no momento da revelação de um pecado, mesmo que não capital. Lembrei-me de minhas idas a uma psicanalista vinte anos atrás. Ela não era cega. Tinha que expor minhas memórias a alguém cujo olhar cruzava com o meu. Envergonhado. Minhas memórias poderiam explicar o que tentara. Depois de alguns meses, decidi terminar o tratamento. Propus minha própria alta à profissional que me acompanhara em uma crise. Eu percebera que as sessões passaram a ter um ensaio prévio em minha mente. Já sabia o que diria e já sabia, de antemão, o que me seria dito. Manipulava a psicanalista, que, tenho certeza, competente como era, já percebera isto também. Ela não hesitou quando propus encerrar a terapia. Carregaria comigo as memórias e as rugas da vida. Como todos nós.

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Na próxima cena, não do filme, ainda no restaurante, olho em diagonal para uma mesa de onde viera o som de um choro de criança. Vejo uma jovem mãe, com um bebê no colo, com poucos meses de idade. A criança tinha apenas uma meia em um dos pés. O outro, descalço, liso, sem nenhuma ruga. Com aquele tom entre o vermelho e o rosa que a pele das crianças exibe, principalmente nas extremidades. As rugas do nascimento já desaparecidas nos poucos meses de vida, pouco mais de ano se contarmos os meses de gestação no ventre da mãe. Praticamente sem memórias ainda. A mais grave, talvez, a da violência do nascimento. Essa criança não teria nada para contar à psicóloga cega. Carregava ainda poucas rugas e nenhuma vergonha. Foi então que, depois do almoço, parto em busca de um filme para rechear o meio da tarde de sábado. A sessão começaria em trinta minutos. Tempo suficiente para ir ao banheiro e depois, com mãos lavadas, tomar um machiatto e folhear o jornal. Nesses trinta minutos pensei na psicóloga cega e no bebê com uma só meia. Imaginava como poderiam estar conectados. Tempo esgotado, entro na sala de cinema. O café já havia pagado ao pedi-lo. Nos primeiros momentos do filme, imediatamente o personagem de Darín se conecta aos outros dois. São elos de uma corrente cujas conexões são imperceptíveis. São como os elos de uma corrente que surge de uma impressora 3d. Vi uma assim em reportagem sobre esta invenção humana. Era impossível detectar qualquer sinal de interrupção nos elos que se juntaram naquela corrente. Era como se tivessem nascidos assim. Os três personagens se juntam aos elos de minhas memórias. Impossível ver a separação entre eles. São parte de minha trajetória. Juntam-se às memórias de quase 60 anos de vida. Incorporam-se nas rugas da pele que revelam o passar dos anos. Seguem comigo. Povoarão, ainda, em alguns momentos, sonhos ou pesadelos que surgem nos momentos do sono.

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PRESSUPOSTOS

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o restaurante, um casal é servido de suas bebidas. A garçonete coloca o suco de laranja à frente da mulher. Em seguida, traz o vinho verde e serve uma taça para o homem. Assim que ela se vira, as bebidas são trocadas pelo casal. A garçonete, ao invés de perguntar, supôs que o vinho teria sido a escolha do homem. Um pressuposto guiado pelas práticas sociais usuais. Mas, nem sempre acertamos em nossos pressupostos. Ao servir os pratos, a garçonete foi mais cautelosa. As escolhas tinham sido: picanha e olho de bife. Ao trazer a picanha, ela perguntou para quem era. Da mulher. O homem escolhera o olho de bife. Estou em Portugal, no aeroporto de Lisboa. A essa altura você deve estar imaginando que o homem dessa história sou eu. E, com certeza, se perguntando quem seria a mulher. Minha esposa deve ser a resposta que surge em sua mente. Mais uma vez, se você imaginou assim, se enganou. Mais um pressuposto deve ter lhe encaminhado a uma conclusão errada. Com tantos detalhes, só quem viveu a história poderia narrá-la. É como você poderia justificar sua imaginação. Eu comi lombo de bacalhau e tomei cerveja. Sozinho. Enquanto espero minha conexão, tenho tempo de sobra para observar o movimento ao meu redor. Como em um filme, vejo o que se enquadra em meu campo de visão. O que está fora do campo, não posso enxergar, mas posso imaginar. O piscar de olhos de um e o sorriso da outra são o que vejo. Ela muito jovem. Ele perto dos cinquenta. O que imagino não vale a pena revelar. Provavelmente, meus pressupostos me enganarão!

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ANDAR (N)O MUNDO PROCURANDO BELEZAS

"A

ndar o mundo procurando belezas". Esta é uma fala de Anita para João no último filme de Jorge Furtado, Real Beleza. Esta frase me impressionou profundamente. Aliás, não é a primeira vez que falas de personagens em filmes assumem um significado especial para mim, inspirando-me alguma reflexão. Só que neste caso, prefiro a frase com um "n" antes de "o mundo". Andar o mundo me passa uma ideia de transitoriedade apressada, apenas passar, sem muito compromisso, a não ser o de realizar uma tarefa. Andar no mundo, ao contrário, significa, ao menos na forma como estou sentindo, o viver no mundo, transitório também, é verdade! Mas, menos apressado, buscando sentir a vida em sua plenitude, com seus altos e baixos, com seus prazeres e dores, com sorrisos e lágrimas... Com um propósito que é muito mais que realizar uma tarefa. Mas, estou colocando o carro na frente dos bois. Voltemos ao início. O filme de Jorge Furtado foi lançado no último dia 6. Tive a oportunidade de assisti-lo ontem. A trama, além de Anita e João, envolve Pedro, marido de Anita, e a filha deles, Maria. A sinopse do filme, no Adoro Cinema, conta: "João (Vladimir Brichta) é um fotógrafo decadente, procurando uma nova modelo para relançar a sua carreira. Ele parte para o sul do Brasil, onde fotografa dezenas de adolescentes, até se encantar com a beleza de Maria (Vitória Strada), que deseja transformar em modelo internacional. Mas Pedro (Francisco Cuoco), o pai da garota, se opõe à carreira profissional da filha. Durante uma viagem de Pedro, João tem um caso amoroso com Anita (Adriana Esteves), mãe de Maria." (http://www.adorocinema.com/filmes/filme224751/). Como toda sinopse, não diz muito, mas serve para revelar parte da trama, preservando o essencial na escuridão. É claro que o filme é mais do que isso! Fazendo jus ao título, o filme é de uma rara beleza. Há muito não assistia a uma produção brasileira com fotografia tão bela, tanto em interiores quanto exteriores. O roteiro é bem elaborado e conta de forma competente uma trama que envolve conflitos diversos: uma filha adolescente querendo seguir um caminho mais livre; um profissional da fotografia que faz o que não deseja; uma mulher casada com um homem mais velho lutando entre a gratidão e o desejo; o olhar possível e a impossibilidade do olhar... Tudo isso é narrado por meio de belas imagens usando referências à arte da fotografia e literatura de forma intertextual. Há um diálogo maravilhoso entre Pedro e João, quase ao final do filme, em que um

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trecho de obra clássica da literatura mundial é usado como uma fala de Pedro. Paro com o spoiler por aqui! O filme me agradou muito. Em alguns momentos, a beleza das imagens era tão intensa que, de forma inusitada para mim, meus olhos marejaram. Cinema cumprindo sua dupla finalidade: entreter e fazer pensar. A fala de Anita para Jorge ocorre nos seus primeiros contatos, quando este está lhe dizendo o que faz como fotógrafo. Foi como se um estopim se acendesse e começasse a se queimar em meu cérebro levando a alguma coisa. Na explosão, chego a esse texto. Mas, como disse, prefiro a forma andar no mundo procurando belezas. Esta fala me fez pensar em minhas andanças no mundo. Não foram tantas quanto eu ainda pretendo, mas já foram algumas. Todas marcantes em algum sentido. Ao longo de minhas viagens, me habituei a comprar pelo menos um livro da literatura do país que estou visitando. A mais antiga compra de que me lembro foi quando estive em Dublin, há mais de vinte anos atrás. Uma tempestade se avizinhava em minha vida. Não era marítima! Ou seja, não seria na travessia do mar da Irlanda, mas chegaria um dia. Talvez, por isso, a compra desse livro esteja fresca ainda em minha memória. Naqueles dias, comprei em Dublin, o livro Dubliners de James Joyce. Uma coleção de quinze contos publicada em 1914. Mais recentemente, poucos anos atrás, enquanto participava de um congresso em Lima, no aeroporto encontrei na livraria os dois volumes de contos de Julio Ramón Ribeyro intitulados La Palabra del Mudo. Lendo essa coletânea, publicada pela primeira vez em 1973, me emocionei com as histórias contadas por esse escritor peruano. No Brasil, quando estive em Aracaju, pude comprar diversos folhetins de cordel. Uma maneira deliciosa de conhecer a história e o povo de uma localidade. Em 2015, tive a oportunidade de fazer duas viagens: Montevidéu e Atenas. De cada viagem, além das boas memórias, trouxe um livro. De Montevidéu, mais um livro de contos: Montevideanos de Mario Benedetti. Também, um mestre do texto breve, Benedetti me emocionou com o que li. De Atenas, uma obra prima que estou chegando ao final: Report to Greco de Nikos Kazantzakis. Nessas leituras, encontro algumas belezas dos lugares que visito. Belezas que estão nos livros, estes que são parte da Real Beleza que Jorge Furtado nos trouxe. Uma coisa me deixou muito incomodado na sala de cinema ontem. Na parte inferior da tela, do lado esquerdo, há um sinal luminoso indicando a saída. Um péssimo local para se preocupar com a

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segurança da plateia! Muitas vezes, esse sinal luminoso se intrometia nas imagens que eram projetadas. Mas, estava ali indicando um caminho em caso de crise. Mas, na vida, não temos desses sinais luminosos! Os caminhos são de nossa escolha. Ando no mundo procurando belezas. Seja no cinema, seja na literatura, seja nos estudos da Administração que já fazem parte de minha vida há 38 anos. Tenho encontrado algumas. Felizmente!

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VONTADE JUNTA NECESSIDADE COM OPORTUNIDADE? Chove. Céu nublado. Um cinza quase branco. Trovoadas discretas, junto com o barulho da chuva, me despertam. Basta uma palavra. Hoje foi chove. Em meu celular, faço o registro. Outras se juntam. São como a chuva e as trovoadas. Necessidade ou vontade? O que motiva a escrita? Rio sozinho. Ainda bem que é cedo. Fora de casa. Ninguém para comentar: _ Ficando maluco? Rindo à toa! Logo cedo! Explico. Quem me conhece já sabe. Você, talvez não. Estudo empreendedorismo. Necessidade ou vontade me fizeram lembrar uma pergunta que se faz nesse campo: necessidade ou oportunidade? São tidas como as duas principais motivações do ato de empreender. Para alguns, são como o dia e a noite, ou vampiro e luz do sol. Nunca estão juntas. Mas, eu acho que são como a chuva e as trovoadas. Às vezes estão juntas. Nem sempre, mas pode acontecer. Quer um exemplo? A busca da oportunidade vem com a necessidade de empreender. Juntas elas dão uma vontade de agir na pessoa que é quase irresistível. Pronto juntei as três! Nada mal para um texto que começou meio molhado. Nesse domingo de manhã, me sinto à vontade para juntar palavras. Mas, essa é outro tipo de vontade. Ou não? Chuva parando. Aproveito a dica. Vou parando por aqui. Só faltava o título. Foi o que você leu primeiro, mas foi o que escrevi por último. Quando escrevi chove, não tinha a mínima ideia do que vinha pela frente. Mais uma leve trovoada se junta ao ponto final. Ponto.

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EM TRÂNSITO

O

título desse post tem múltiplos significados. Encontro-me no aeroporto de Brasília, aguardando o voo para Curitiba. Acabo de chegar de Lisboa onde fiquei por três dias. Na linguagem da aeronáutica, estou em trânsito. Ficarei nessa condição por pelo menos cinco horas. Tempo mais que suficiente para pensar, escrever, tomar cerveja... Na sala de espera, vou comprar uma longneck e a vendedora me informa que se tomar quatro, a quinta é de graça. Sozinho, não sei se darei conta do recado.... Enquanto isso vou escrevendo. Sóbrio ainda, pois mal comecei a beber da primeira longneck. Mas, estar em trânsito tem muitos significados. Não é só o aeronáutico. Alguém mais trágico poderia dizer que na vida estamos todos em trânsito. Seja de forma lenta, ou rápida, passaremos pela vida, indo do nascimento à morte. Não quero me alongar nesse significado. Está além de minhas preocupações. E, ademais, não estou interessado no além! Me interessa essa vida da qual sou consciente. Haverá outras? Para alguns, sim. Para mim, não sei! Vai além - eis o além de novo - de minha capacidade de imaginação. Algumas vezes, sinto que gostaria de ter o conforto dessa crença, mas não consigo. Aos 58 anos, a quase meio caminho dos 59, estou em trânsito. De onde será que vem nosso costume de marcarmos nossa passagem pela vida em tempos anuais? A cada começo de ano, não me refiro ao do calendário, mas a cada começo de novos anos de vida, parece que é inevitável que reflitamos sobre o que foi feito no ano anterior e o que queremos para o próximo. A cada 365 dias, transitamos entre o que queríamos ser e o que conseguimos ser. Para mim, a diferença é sempre brutal! Mas, adepto da emergência - daquilo que emerge em nossa lida com o cotidiano - como modo explicativo da vida, oposto ao deliberado, não me surpreendo. No trânsito anual, a cada 365 dias, nosso destino é refeito e reimaginado constantemente. Ainda bem, se tudo corresse como o planejado acho que eu morreria de tédio. Seria um triste fim para o tipo de trânsito que comentei acima. Nessa altura do texto, estou na segunda longneck. Será que darei conta das quatro primeiras, para ganhar a última? Tempo é o que tenho de sobra. Não sei se sobrará lucidez ao final do texto! O que me lembra de um novo significado para trânsito: ir da lucidez à embriaguez. Espero ser capaz de parar a meio caminho. Será que conseguirei?

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Mas, voltando ao tédio, ou melhor à fuga do tédio, lembrei-me de uma passagem que li no livro de Jean-Claude Carrière – A Linguagem Secreta do Cinema – quando estava voando de Curitiba para Lisboa. Uma obra magistral que me marcou. Carrière discorria sobre o poder das imagens, e lembra que, mesmo poderosas, estas têm limites. Para ele, o tédio é uma das sentinelas que, quando parecemos estar entorpecidos, cochilam dentro de nós. De repente, ele desperta. De forma absolutamente bela, eis como Carrière descreve o despertar do tédio: Podemos estar entorpecidos, mas as sentinelas cochilando dentro de nós ainda estão lá. Dentre estas, a principal é o tédio, o velho e bom tédio, esta nossa maravilhosa capacidade de perder o interesse, de instintivamente recusar a mediocridade que nos é oferecida. O tédio é nosso fiel aliado, nossa linha de frente em defesa, aquela que os inimigos têm dificuldade de ludibriar (p. 67). Me impressionei com a forma positiva com que Carrière se refere ao tédio. Mais à frente, na mesma página, ele descreve o surgimento do tédio em uma sala de cinema: O tédio é puro, incorruptível, irrefutável. É acompanhado por sinais físicos, visíveis, contra os quais toda argumentação é inútil. Começa como uma sensação de vazio na boca do estômago, seguida de perto por um rápido piscar de olhos, precursor do bocejo. A atenção vagueia, o olhar perde o foco, começamos a reparar nas pessoas ao redor, na sala de exibição, nas luzes tentadoras indicando discretamente a saída; nos perguntamos que horas devem ser, para qual restaurante seguir depois do cinema, pensamos até na rotina do dia seguinte. Lá no fundo, torcemos para o filme se acelerar e chegar logo a uma conclusão, gostaríamos de ser uma hora mais velhos... Me emocionei ao ler este trecho, ainda no avião de Curitiba para Lisboa. Me emocionei porque me vi nele! Hoje, quatro dias depois, vejo o trânsito significado nas palavras sobre o tédio de Carrière. O trânsito do desejo em direção ao afastamento, à repulsa, talvez até ao asco... Carrière fala do cinema, mas de forma metafórica, o tédio, enquanto trânsito, pode significar a busca do novo, do diferente, do não entediante em qualquer dimensão de nossa vida. Trânsito também! Vou pegar a terceira longneck. Esse calor de Brasília estimula a sede! Já volto. Pego uns petiscos para acompanhar a cerveja. Prudência e caldo de galinha não fazem mal a ninguém! Ainda sóbrio, chego ao trânsito que me inspirou este texto. Comecei minha carreira docente na Universidade Estadual de Londrina em

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agosto de 1981. Quatro anos antes, havia escolhido cursar Administração porque estava trabalhando com meus pais no pequeno supermercado que tiveram em Londrina. Pensava em auxiliá-los na gestão da empresa. Todavia, dois ex-professores, Nardir e Genésio, me convidaram para ser auxiliar de ensino no Departamento de Administração. Não fiz concurso, naquele tempo esta não era uma prática institucionalizada. Seis meses depois de ter sido contratado, houve uma regulamentação da carreira docente, e fui beneficiado por já estar trabalhando na universidade. Fui enquadrado no primeiro nível da carreira docente. Um privilégio que pode parecer, para muitos, algo errado. Mas, sem falsa modéstia, acho que Nardir e Genésio estavam certos, eu tinha que fazer o trânsito da pequena empresa familiar para a docência. Em determinado tempo, deixei as atividades na pequena empresa dos meus pais e passei a me dedicar somente à universidade. Creio que fui bem sucedido! Mas, não posso deixar de reconhecer, que outro poderia ter sido bem sucedido também. Carrego essa pequena (?) culpa! Somente 31 anos depois, fiz meu primeiro concurso, o de professor titular da UFPR. A docência tem sido um trânsito muito significativo em minha vida. Estou nele há mais de trinta anos. Uma longa estrada que tenho percorrido. No caminho encontrei pessoas maravilhosas. Encontrei as odiosas também! Mas dessas me esqueço logo. Epa! Acho que não deveria escrever essas coisas! Será que, no trânsito entre sobriedade e embriaguez, já estou mais próximo da última? Acho que não. O discurso ainda me parece lógico! Mas, não tenho certeza que sou o melhor juiz disso! Nos últimos quinze anos, me envolvi com o ensino de mestrado e doutorado em Administração. No entanto, o tédio parece ter acordado. Essa maravilhosa força de que fala Carrière! De uns tempos para cá, comecei a sentir os sinais físicos de que falou Carrière. Principalmente um vazio na boca do estômago! E, também, um desejo muito grande de que o filme acabe logo! Tenho procurado as luzes que indicam o caminho da saída. Bocejos têm sido frequentes. Simone, minha amiga, diria que tenho olhado muito para o teto. Este, segundo ela, é um claro sinal que dou, sempre inconsciente, de que algo ou alguém perdeu meu interesse. Eu prefiro dizer que tenho déficit de atenção. Obviamente não diagnosticado! Mas, o que fez com que o tédio despertasse? Essa pergunta, que talvez você me faça, aliás, com todo o direito, merece uma resposta. A minha resposta tem a ver com o fato de que transformaram o gênero do filme. O que era uma aventura, algumas vezes com um pouco de

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drama, foi transformado em filme de horror. Eu nunca gostei de filme de horror! A aventura do conhecer foi transformada no horror de publicar. Ao longo dos anos, houve um redirecionamento da pós-graduação stricto sensu em Administração no Brasil. Aos poucos, nós professores, fomos nos transformando em produtores de textos que têm que ser publicados, custe o que custar. A escrita deixou de ser a consequência de reflexões e estudos e passou a ser uma obrigação. Nosso papel passou a ser o de um transformador: transformamos pessoas em escrevinhadores de artigos. Por incrível que pareça isso é uma exigência para a concessão do título de mestre ou doutor a que os alunos devem cumprimento! Está nos regulamentos de muitos cursos (será que em todos?) a obrigação do aluno comprovar a publicação ou, pelo menos, o encaminhamento de algum texto para publicação em periódico nos chamados extratos superiores do Qualis. Parece que ficou em segundo plano ajudar pessoas a se formarem como mestres e doutores. Nessa sala de exibição, não havia como o tédio não despertar! Com o tédio, vem um novo trânsito: quero voltar a ser apenas professor de Administração. Quero compartilhar com os estudantes uma jornada temporária sobre o que significa a Administração. Como praticá-la? Quais as possibilidades e os limites de um agir administrativo em tempos de desenvolvimento sustentável? Tenho que deixar a pós-graduação stricto sensu. Minha relutância em publicar o que não julgo publicável poderá prejudicar a avaliação do programa. Me volto para o ensino de graduação. Se, ao longo dessa jornada, um aluno ou uma aluna sentir que está pronto ou pronta para escrever alguma coisa, espero poder ajudar. Mas, não posso mais continuar nesse filme de horror! Só posso escrever quando sinto que tenho algo a dizer. Gostaria que esta fosse uma escolha dos alunos também. Foi o que fiz há poucos dias quando resolvi descobrir sobre o que se escreve no tema do empreendedorismo sustentável no Brasil. Cá entre nós, vi tantos textos que foram escritos para cumprir tabela! Os textos revelavam sua intenção oculta: marcar pontos na avaliação do programa de pós-graduação. De ponto em ponto, a pós-graduação enche o papo! E o saco dos leitores! Ups! Será que o teor alcoólico está subindo mais do que o aceitável? Minha ida a Portugal foi para apresentar um texto na 5a. Conferência Ibérica de Empreendedorismo que aconteceu em Oeiras entre os dias 15 e 16. Nesse texto há uma história que queria contar. Não é o melhor texto que já fiz na minha vida, mas é um texto que saiu de

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minhas entranhas. Tinha que vir a público! Será que vai se tornar um artigo em alguma revista científica? Talvez sim, mas se vier a ser publicado, o que menos interessa é o status da revista no Qualis da Capes. O que me interessa é aprofundar o entendimento de uma experiência empreendedora à luz de algumas proposições conceituais. E, com sorte, ser capaz de ir além delas. Está chegando a hora de ir buscar a quarta longneck. Mas, encerrarei este texto antes disso. Não acredito que seja possível retornar aos filmes de aventura com um pouco de drama. O caminho da pósgraduação stricto sensu está predestinado, o gênero dominante é e será o horror. Nos anos que me restam na atividade docente, voltarei a focar exclusivamente na graduação. Nesse nível de ensino, farei ensino, pesquisa e extensão. Na pesquisa, a iniciação científica, uma aventura com alguma ação e um pouco de drama. Depois, quando estiver me aproximando da aposentadoria, partirei para mais um trânsito: fazer algo no campo do cinema. O que será? Ainda não sei. Se você se lembra, algumas linhas atrás, falei que sigo a emergência. Algo surgirá e não será entediante! Enquanto isso, se você quiser conversar comigo, sobre administração, sobre cinema, sobre a vida, qualquer coisa, desde que não seja futebol, religião e política, você sabe: a porta de minha sala está sempre aberta. Se eu olhar para o teto, me puxe para baixo. Tenho certeza que algo interessante você tem a me contar! Vou pegar a quarta longneck. Ainda há tempo de sobra antes de meu embarque com destino a Curitiba. Vou garantir meu direito à quinta garrafa. Hic!

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NAMOROU, PERDEU VIDA! OU, A ADMINISTRAÇÃO, TESTEMUNHA OCULAR DO EMBATE ENTRE SUSTENTABILIDADE E COMPETIVIDADE

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eve início, na tarde de hoje, a série de quinze encontros de minha nova disciplina no Doutorado em Administração da Universidade Federal do Paraná. Thálita, Rodrigo, Eduardo e Luiz Aurélio são os quatro doutorandos que se juntaram a mim nessa jornada de estudos sobre Empreendedorismo, Sustentabilidade e Inovação. Nosso objetivo é usarmos as quinze semanas entre hoje e o começo de dezembro para ler, discutir e refletir sobre textos que tratem das possíveis relações entre os três temas. Adotamos uma dinâmica que venho sugerindo aos meus alunos há algum tempo: cada um de nós é responsável pela leitura de um conjunto de textos, elaboração de um resumo, e apresentação do conteúdo para os demais. Em conjunto, passaremos por sessenta textos publicados no Brasil e exterior nos últimos quinze anos. Hoje, tratamos dos primeiros cinco textos: dois brasileiros e três estrangeiros. Entre as discussões que os artigos suscitaram, acabei sugerindo que parece haver uma tensão entre as noções de sustentabilidade e competitividade que precisa ser resolvida. A sustentabilidade pode ser vista como um estado futuro desejado, resultante de um processo de desenvolvimento sustentável, que reflete um equilíbrio entre as dimensões sociais, ambientais e econômicas da vida organizacional e, de forma mais ampla, da sociedade. Ora, conciliar justiça social no acesso aos frutos do labor humano, com a preservação do ambiente em que vivemos e, ao mesmo tempo, ser eficiente na utilização de recursos financeiros, fazendo com que ganhos econômicos sejam maiores que os gastos, não é tarefa trivial. Em um dos textos que lemos, os autores sugeriram a articulação da sustentabilidade com modelos de negócios inovadores. Na essência, o argumento deles pode ser sintetizado na ideia de que a sustentabilidade será uma maneira de tornar os negócios mais competitivos. Mas, é a competitividade consistente com a busca da responsabilidade social, um dos pilares do desenvolvimento sustentável? Em minha opinião, não! Ser competitivo, no limite, é tentar atrair o máximo de riqueza gerada em determinada atividade empresarial para um empreendimento. Ora, essa lógica, pode levar, por exemplo, à

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eliminação de concorrentes, à geração de oligopólios ou monopólios. Essa eventualidade pode ser vista como uma realidade socialmente justa? Penso que não! Fiz esta provocação, ainda pouco elaborada, para os meus companheiros de estudo nesses temas. No mínimo, merece uma reflexão, embora deva reconhecer que há muitos aspectos a serem analisados. No entanto, minha intuição me leva a confiar muito nesse sentimento que brotou em meu cérebro nesta tarde. Em outro texto, quatro pesquisadores brasileiros abordaram a questão da inovação sustentável a partir de uma perspectiva centrada na Teoria Institucional. Ao comentarem sobre o que levaria as organizações a agirem de forma sustentável, sugeriram duas explicações. Estas são baseadas na ideia do isomorfismo organizacional. Para nossos colegas, as empresas fazem ações de responsabilidade social e ambiental motivadas por pressões coercitivas da sociedade ou de outras organizações mais poderosas, o chamado isomorfismo coercitivo. Outra fonte é o chamado isomorfismo mimético, ou seja, algumas organizações imitam o comportamento de outras que, aparentemente, foram bem sucedidas em ações dessa natureza. Não sou um profundo conhecedor da Teoria Institucional, mas me chamou a atenção que os pesquisadores não fizeram nenhuma menção a um terceiro tipo de isomorfismo que, se não me engano, é um dos pilares das explicações institucionais dadas à vida organizacional: isomorfismo cognitivo/normativo. As organizações podem se tornar semelhantes em suas ações devido à ação de grupos de pessoas que tiveram processos formativos semelhantes em que foi dada ênfase a determinadas normas que devem ser observadas na realização de atividades empresariais. É o caso, por exemplo, de uma formação superior em determinado campo de conhecimento que acaba uniformizando a forma de agir dos profissionais, mesmo que em diferentes organizações. Foi nesse momento, que um segundo incômodo em relação à sustentabilidade voltou a se manifestar em meu cérebro. É um incômodo quase físico! Ora, se pretendemos levar as empresas a se comportarem de forma sustentável, precisamos convencer os futuros administradores que sua prática profissional deverá ser orientada por princípios consistentes com o desenvolvimento sustentável. Esse é o papel principal das escolas de Administração! Estamos conseguindo fazer isso? Acho que não!

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Nosso encontro terminou às cinco horas da tarde. Passo em minha sala, termino um trabalho que estava fazendo, vou para o ponto de ônibus, embarco no Portão/Cabral, chego no Terminal Cabral e às seis e quinze estou a caminho de casa em um Inter2. Me coloquei em pé, próximo a uma das portas, pois desembarcaria no próximo tubo. Não pude deixar de ouvir a conversa de dois adolescentes, perto dos seus 16 anos. Um deles comentava com o outro como estava super atarefado. Tanta coisa para fazer, estudar inglês, aprender computação, tarefas das disciplinas, a importância de dominar o Excel, o Office, mesmo que só o básico. Contou para o amigo: _ Meu pai trabalha em uma grande empresa. Sempre tem oportunidades de estágio. Outro dia, tinha dois candidatos em iguais condições, mas um deles dominava o Excel, a outra não. Quem ficou com a vaga? O rapaz que sabia Excel. A menina dançou! O amigo só ouvindo. O outro continuou: _ 24 horas é pouco. Se você dorme, não faz! Se faz, não dorme! _ É. Disse o outro. O tempo é curto. Ainda mais agora que estou com namorada. _ Namoro? Namorou, perdeu vida! Fiquei estupefato com a resposta do primeiro. Chegamos ao tubo onde eu desceria. O jovem com namorada desceu à minha frente. A namorada esperava por ele na saída do tubo. Ela até que não era muito bonita, mas pensei comigo: _ Quem está perdendo vida é o idiota que ficou no ônibus! Estamos fazendo muito mal aos nossos jovens com essa conversa de competitividade. Vamos falar mais de sustentabilidade para eles?

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O OLHAR DO FOTÓGRAFO, EU, MINHA SOMBRA E O DANÇARINO DO DESERTO: UMA CONFIGURAÇÃO

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oje fui ao cinema. Na sala de espera, enquanto aguardava a liberação de entrada, fui observar algumas fotografias de Marcel Gautherot, fotógrafo de origem francesa, que em 1939 veio para o Brasil e acabou ficando por aqui. Esta foto reproduzida abaixo me chamou a atenção. Parece que o olhar do fotógrafo enquadrou aquilo que via em três retângulos sobrepostos. Na parte superior, o céu, um pouco ameaçador. Na inferior, as águas revoltas de um rio. No meio, pessoas em casas e barcos. Na exposição a foto tem o título de Cidade Flutuante. Ao voltar para casa, descubro que a fotografia é uma das que compuseram a exposição Marcel Gautherot – Norte, realizada em 2009 e 2010 pelo Instituto Moreira Sales. Ela, também, integra o livro de mesmo título lançado em paralelo com a exposição.

Fonte: http://mauriciostycer.ig.com.br/2009/11/25/a-floresta-pelaslentes-de-gautherot/

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Ao vê-la, veio de imediato à minha mente a ideia de configuração, perspectiva de análise organizacional que aplico em meus estudos recentes sobre empreendedorismo e gestão de pequenas empresas. Essa ideia, diz respeito à busca da percepção de totalidades ou todos integrados que podem variar no tempo e no espaço, mas que contém certa estabilidade que não é eterna. É uma forma de superar, ou complementar, o olhar analítico que predomina na construção do conhecimento em estudos organizacionais. Em outras palavras, é a busca da síntese, um olhar holístico que enxerga as partes, mas não as desvincula do todo que integram. Para mim, é impossível que este registro feito por Marcel Gautherot na Amazônia Brasileira em 1944 seja decomposto em partes, apesar de meu olhar analítico ter sido hábil na visualização dos três retângulos de tamanhos praticamente iguais. Se recortássemos essa fotografia em três, cada um de seus terços não teria nenhum significado, o significado vem de sua integração. O mesmo ocorre com minha busca das configurações organizacionais. Não consigo mais atribuir significado as dimensões que compõem a vida organizacional de forma isolada. Elas só fazem sentido quando articuladas em um todo integrado, ou seja, em uma configuração. Configurações, em geral, envolvem, estratégia, estrutura, liderança, ambiente, tecnologia, entre outros aspectos das organizações. Assim, não foi nenhuma surpresa que ao ler a apresentação sobre o livro com as fotografias de Gautherot, encontrei a palavra síntese no meio do discurso. Sintetizar é a ação do configuracionista. Veja só: Gautherot voltou repetidamente à Amazônia, fascinado pela paisagem vasta, instável e anfíbia, que desafiava seu olhar europeu e o convidava a uma verdadeira aventura da sensibilidade. O resultado é uma vasta produção de imagens, em que Gautherot a um só tempo trava contato com a nova paisagem brasileira e reflete sobre sua própria memória pictórica ocidental. Ao fazê-lo, Gautherot deixa para trás as fronteiras entre os gêneros fotográficos e cria uma nova síntese de retrato e paisagem, documento e abstração, forma e caos. (http://www.lojadoims.com.br/ims/produto.cfm?id=27583). Pois então, muito antes de voltar para casa, ainda sem ter entrado para ver o filme, resolvi tirar uma fotografia da Cidade Flutuante de Gautherot exposta na sala de espera do cinema para montar um texto sobre configurações. Para isso, fiz uso de meu celular. O resultado foi horrível, pelo menos do ponto de vista estético. Você pode conferir abaixo. Como a fotografia de Gautherot estava protegida por uma moldura de vidro, as condições de iluminação do ambiente fizeram

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com que minha sombra se projetasse sobre aquilo que queria fotografar. Não houve jeito de minha sombra sair da fotografia.

Como você pode ver, o resultado ficou muito ruim. Seria impossível demonstrar as três partes da fotografia e sua síntese. Tento, mais duas vezes. Nenhuma melhora no resultado. A sala do filme é aberta e eu desisto. O filme que fui assistir é o Dançarino no Deserto. Produção norteamericana, baseada na vida do dançarino Afshin Ghaffarian, que impedido de dançar no seu país de origem, o Irã, arrisca tudo junto com alguns amigos para criar uma companhia de dança e fazer ao menos uma apresentação. Quando criança, Afshin é fisicamente punido por um professor que o vê dançando em sala de aula. Mas, outro professor vai ajudá-lo nos primeiros passos da arte. O filme me emocionou muito por trazer à baila a questão da liberdade individual. O primeiro e único espetáculo que Afshin consegue realizar com seus amigos no Irã foi representado no filme por uma coreografia tão bela e emocionante que foi impossível não ficar com os olhos marejados. Representação magistral do embate entre liberdade e opressão. Caminhando pelo centro de Curitiba, indo do Crystal para a Praça Tiradentes, os acontecimentos da noite vão se repetindo em meu

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pensamento. No meio do caminho, encontro Admir Pancote, mestre em Administração pela PUCPR, e amigo que prezo muito. Brevemente menciono a ele sobre o filme, como me emocionara, e que caminhava ao ritmo de minhas reflexões. De repente, sintetizo o óbvio. Pelo menos para mim. Minha sombra é parte de mim. Ela, sem mim, não existe e, tampouco, eu sem ela. Mesmo ao meio dia, com o sol a pino, ao levantar o pé do chão, dando um passo, lá está a sombra escondida. Ora, a fotografia que tirei com meu celular é também uma configuração, mas uma configuração diversa da que vi na Cidade Flutuante. Em tudo que vejo, sempre haverá uma parte de mim. Contar para alguém algo que vi, vai além do que eu vi objetivamente, pois carrega junto a representação que faço daquilo que vi. Assim, minha fotografia não ficou esteticamente adequada, mas como metáfora não há nada melhor. Nesse texto, você pode ver a reprodução da fotografia original e aquela com minha sombra. Meu falar sobre ela, carrega os significados que lhe atribui. Assim, como falar sobre o filme tem a carga da minha relação com quem me ajudou a construir conhecimento. Nesses devaneios, acabo chegando à forma com que lidei, e continuo fazendo, com aqueles que estudaram ou estudam sob minha orientação. Faço um esforço contínuo para que esta seja uma relação de liberdade. Não posso esperar que os estudantes vejam aquilo que vejo, pois cada um de nós tem sua própria trajetória. Cada um carrega sua sombra que sairá nas fotografias que fizer. Da mesma forma, os estudantes não podem esperar que eu lhes ensine a ver. Isso depende da trajetória de cada um e das sombras que estiverem carregando. Então, o que esperar dessa relação? Que eu possa, através de exemplos, mostrar os caminhos alternativos que já percorri e que eles, por meio de suas escolhas, construam seus caminhos próprios. Livres, eles e eu, para vivenciar uma relação em que ser humano significa praticar, a cada momento, a solidariedade e o respeito pelo conhecimento que é a construção de cada um.

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REFLEXÕES CARNAVALESCAS III: GRANDES OLHOS, UM PROFESSOR DE PÓS-GRADUAÇÃO

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ste texto que escrevi direto no celular, enquanto tomava um machiatto no Café da Catedral é minha terceira reflexão de carnaval. Uma ficção baseada em fatos reais misturados com alguns imaginários. Me diverti demais escrevendo esse texto. Vai dedicado a todos os meus ex-orientandos de pós-graduação, incluindo aqueles que até hoje não publicaram nada comigo. Grandes Olhos é professor de pós-graduação. Desde que escrevera um artigo vinte anos atrás passou a enfrentar um bloqueio criativo. Recebera um parecer negativo quando tentou publicar este artigo no periódico científico mais famoso em seu campo de estudo. Para ele, o texto que escrevera era perfeito. Publicar naquela revista seria o auge de sua carreira. No seu país ninguém tinha conseguido tal façanha. Mas, os pareceres dos avaliadores foram impiedosos. Grandes Olhos ficou arrasado. Pensou em mudar de profissão. Mas, como? Não sabia fazer outra coisa! Fora professor a vida toda. Seu trabalho era avaliado pelo que escrevia. Até aquele dia conseguira manter uma produção aceitável. Dentro do padrão que era esperado. No começo do bloqueio criativo, não se preocupou muito. Outros colegas já haviam passado por isso e superado o bloqueio. Ele também seria capaz de fazê-lo. Depois de doze meses, ficou desesperado. Pela primeira vez ficara abaixo do padrão esperado. Seu relatório chamou a atenção da chefia e de seus colegas. Grandes Olhos ficou muito envergonhado. O que fazer? Felizmente, os deuses não abandonam os bons. Por essa época, o sistema nacional de avaliação da pós-graduação em seu país teve um grande redirecionamento. Os programas de pós-graduação seriam avaliados, também, pelo número de textos que seus alunos publicassem. Isto foi uma revolução na pós-graduação. De repente, todos os professores passaram a exigir que os alunos escrevessem trabalhos para concluírem as disciplinas. Os trabalhos deveriam observar o formato de artigos que seriam submetidos a algum periódico. Além disso, em muitos programas de pós-graduação do país, passouse a exigir que os pós-graduandos comprovassem o envio de um texto, em coautoria com orientador ou orientadora, antes da realização das defesas públicas de suas dissertações ou teses.

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Olhos Grandes achara sua salvação. Nada mais natural que ele passasse a ser coautor dos artigos que os alunos escreviam para sua disciplina. Ora, sem seus ensinamentos os artigos não seriam escritos. Faz vinte anos que Olhos Grandes não escreve uma linha. Mas, nunca publicou tanto em sua vida. Não precisou mudar de profissão. Ultimamente anda muito empolgado. Em sua disciplina, encontrou uma jovem extremamente talentosa. Está pensando naquele periódico de novo. Eles que aguardem sua obra prima! (Inspirado no filme Grandes Olhos de Tim Burton)

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PRAIA Na areia da praia Vi uma arraia Uma moça de saia Outra de tomara que c a i a PASSEIO SENSUAL Busco meio De em seu seio Dar um passeio Me incendeio Sem nenhum receio De ti não apeio Sem rodeio Teu corpo é veio Que sacia meu anseio

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ME DIGA VOCÊ Se da consciência nada se esconde Como se quebra desencanto? Como se desata desconfiança? Como se desfaz desilusão? Como se esquece decepção? Não me venha com religião Tampouco esse papo de perdão Na vida chego à conclusão De que alguns do mal são Estão além da recuperação. Assim, guardo na memória Que constrói a minha estória Diversos espantos Misturados com encantos E outros entretantos. Mas, se você tiver magia Me diga esta alquimia Para que não espere o dia Que a consciência esvazia.

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PARA PALOMA Nesse vasto mundo, Me inspiro no poeta, Que nรฃo era Raimundo. Seja curva, seja reta Faรงa seu trajeto, seu caminho Certa de meu carinho. Espalhe seu encanto, Faรงa chuva, faรงa sol, Pois sufoca qualquer pranto Que apareรงa no caminho. Nesse vasto mundo, Lhe acompanhe meu carinho. Esparrame seu sorriso Sempre que for preciso. Se sentir saudade, Nesse vasto mundo, Pense em meu carinho E siga seu caminho. Onde quer que esteja, Se fizer escuro Neste vasto mundo, Lembre de meu carinho, Pode ser uma centelha Que ilumine seu caminho. Vai, filha, em seu caminho Certa de meu carinho.

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SEM TÍTULO Em meu cio De você Me vicio Em minha ânsia Por você Minha ganância Em meu logo Em você Me afogo IDENTIDADE Outro vejo Noutro me vejo Trovejo, relampejo, ventanejo Enfim, sem pejo Outro me vejo.

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CRISE DE IDENTIDADE Quisera outro ser Para não lhe doer. Que possa outro vir Para lhe ver sorrir. Quisera não pensar Para saber amar. Como outro ser Se não o que só sei ser? O que só me fiz ser? Quisera outro ser...

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ESSA MENINA Na piscina Ela me fascina Na esquina Ela me ensina Na rotina Ela me escrutina Na matina Ela me desatina Repentina Me sabatina A vida clandestina Toda a jogatina O caso com a Tina Eu? Sorrio de como se obstina Abraรงo a cintura fina Quando se atina Se entrega libertina.

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GARIMPO DE PALAVRAS Foi tão estranho. Busquei pelas palavras, Me senti fanho. Foi tão louco. Busquei pelas palavras, Me senti rouco. Foi tão repentino. Busquei pelas palavras, Me senti sem tino. Foi tão suspeito. Busquei pelas palavras, Me senti sem jeito. Foi tão voraz. Busquei pelas palavras, Me senti sem gás. Foi tão demente. Busquei pelas palavras, Me senti ausente. Foi tão gozado. Busquei pelas palavras, Me senti transtornado. Foi tão forçado. Busquei pelas palavras, Me senti cansado. Fingi que não buscava As palavras, de repente, Como gemas, eu lavrava.

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DIÁRIO DE BORDO Cogito Digito Quase vomito. Reflito Aflito Surge algum escrito. Rumino Ilumino Continuo menino. Penso Senso Na viagem, tenso. Tento, Atento Versos invento Aborrecimento Engarrafamento Na estrada, lamento. Escureceu Para espanto meu Meu pé adormeceu. Livro já li Vou logo ali Fazer xixi. Fui...

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VÃ FILOSOFIA Na boca, travo de romã Na alma, prece vã Na vida, tanto afã Uma busca sã? MEMÓRIA De repente Do passado sobrou Só o que quis a mente Infeliz mente. SILÊNCIO Olhos fechados Som nenhum Morri?

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OUTONO Folhas já secas Vento de outono Céu azulento. OUTONO SOMBRIO Tão sombrio Outono começou Quase não sorrio. DOMINGO DE VERÃO Sol tão ardente Gato tão preguiçoso Manhã de verão. ACASO Encontro tosco Você sorriu, eu também Virou enrosco.

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DÚVIDA I Gota a gota Ou é goteira Ou conta-gotas DÚVIDA II Ponto a ponto Será que costuro Ou escrevo um conto? INFANTIL No domingo Chove Pingo a pingo

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SORRISOS Como uma brisa, sutil Daquela criança, infantil Do palhaço, de repente sumiu Me dê um sorriso É só o que preciso Para recuperar o siso Que não seja irônico Um pouco cômico Para espantar pânico Que seja singelo Para um mundo mais belo Eu lhe apelo Assim, quem sabe O palhaço nos abre O sorriso que lhe cabe E a dor se acabe

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NONSENSE Meio sem jeito Um pouco contrafeito Foi atrás do seu direito Pareceu teimosia Enfrentou até aleivosia Não deu vez pra apatia Fez de um tudo Enfrentou topetudo Até de peito desnudo Enfim se rendeu Sentindo que perdeu Muito mais que um camafeu Nessa vida esquisita Estamos só de visita Não há quem resista Começou sem saber como Pra acabar só faltava um gomo Que comeu o gnomo.

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PENSANDO Pensando na vida.... Pessoas que vêm... Outras que vão... Marcas que ficam... Desencontros... Encontros... Intenções, planos, desejos... Desatenções, aeroplanos, bocejos... Unha encravada... Palavra empenhada... Vontade contrariada... Frieira teimosa... Coceira gostosa... Irra! Que é isso? Vida! Beijo de filha... Abraço de amigo... Sorriso, gargalho... Me espanto... Não canto... Fico no meu canto.... Lembro, esqueço... Ouço, vejo, entendo? Nem sempre... Às, vezes, finjo... Mas, não me arrependo...

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AFORISMOS SOBRE A DÚVIDA Tem tanta falsidade no mundo que, às vezes, até disso duvida. Foi tão sincero que nem ele mesmo acreditou. O sorriso era tão artificial quanto as próteses que usava na boca. Jurava lealdade até debaixo d'água, mas não resistiu quando lhe molharam as mãos. Preferia ser surdo a ter que ouvir certas promessas. O que é melhor: uma dúvida certa ou duas incertas?

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OUTROS AFORISMOS A ficção é, para muitos, fonte da convicção. Saiu da escola com olhos bem treinados. Mas, tão míopes! Sem poesia não se imagina uma utopia. Sem utopia não há porque caprichar na caligrafia. Às vezes corremos tanto que ao chegar esquecemos porque partimos. Estava tão cheio de si e, ao mesmo tempo, tão vazio. Fez um discurso tão sem nexo, que o côncavo virou convexo.

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AFORISMOS. MAIS ALGUMAS TENTATIVAS Algumas coisas esquecemos, outras teimam em ser lembradas. O problema é que na vida não escolhemos em que categorias elas vão ficar. Sem qualquer medida, não fez o que era preciso. Só o impreciso. Acreditava tanto na construção social da realidade que se esqueceu de olhar para os lados ao atravessar a rua. Já não acredita tanto! Teve uma vida límpida como água pura. Inodora, insípida e incolor. Morreu de tédio! Pensar é como amar. Não há como explicar. Você aprende na prática. De vez em quando, dói.

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Fernando Antonio Prado Gimenez Curitiba: Edição do Autor, 2017 ISBN: 978-85-915857-4-8


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