O Pelicano e a Moça de Vestido Branco: contos e crônicas curitibanas com alguma poesia

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O PELICANO E A MOÇA DE VESTIDO BRANCO CONTOS E CRÔNICAS CURITIBANAS COM ALGUMA POESIA

FERNANDO ANTONIO PRADO GIMENEZ



Catalogação na Publicação (CIP) Ficha Catalográfica feita pelo autor G491o Gimenez, Fernando Antonio Prado, 1957 – O Pelicano e a Moça de Vestido Branco: contos e crônicas curitibanas com alguma poesia / Fernando Antonio Prado Gimenez. Curitiba: Edição do Autor, 2018. Livro eletrônico. 75 p: 14,8 x 21 cm. ISBN: 978-85-915857-5-5 1. Literatura brasileira. 2. Contos. 3. Crônicas. 4. Poesias. I. Fernando Antonio Prado Gimenez. II. Título CDD B.869.93



Para Edra


Sumário PREFÁCIO .................................................................. 7 CONTOS .................................................................... 11 FANTASIA ...................................................................................................... 12 BOA PRAÇA .................................................................................................. 14 ESPIRAL ......................................................................................................... 17 AS METAS DE EROS ................................................................................. 19 DE NOITE TODOS OS GATOS SÃO PARDOS ................................... 22 DIÁRIO DE BORDO.................................................................................... 25 FIM DA LINHA.............................................................................................. 28 NA ESTRADA ................................................................................................ 30 O PELICANO E A MOÇA DE VESTIDO BRANCO ............................. 33 O FARMACÊUTICO SINCERO ................................................................ 34 GALERIA DE HORRORES ........................................................................ 37 ESTRANHO ................................................................................................... 39 CRÔNICAS................................................................ 42 AÇÃO E REAÇÃO ........................................................................................ 43 MUNDO SEM GRAÇA ................................................................................ 46 MEMORY LANE ........................................................................................... 48 SOBRE O AMOR OU MANIFESTO DE UM APAIXONADO AOS 61 ANOS ............................................................................................................... 51 A RECONSTRUÇÃO.................................................................................... 54 CHEGANDO OU VOLTANDO? ................................................................ 55 PARA UM LEITOR DESCONHECIDO ................................................... 57


A MESMICE NO DIVERSO ....................................................................... 61 MOLA DO MUNDO ..................................................................................... 63 ELES PARECIAM FELIZES ...................................................................... 65 POESIAS ................................................................... 68 PERMUTAÇÕES .......................................................................................... 69 ELA .................................................................................................................. 70 INSPIRADO EM LEMINSKI ...................................................................... 71 POEMIM ......................................................................................................... 72 SÁBADO ......................................................................................................... 73 QUASE INVERNO........................................................................................ 74 SABOR ............................................................................................................ 75


PREFÁCIO ual é a lógica desse livro? Pode ser uma pergunta que alguém me faça. São doze contos, dez crônicas e sete poesias. São escritos que brotaram entre maio de 2017 e julho de 2018. Marcam meu primeiro ano da sexta década. E, como tenho feito nos últimos cinco anos, resolvo agrupá-los em um livro. Poderia responder a pergunta acima somente em prosa, mas prefiro fazê-lo por meio de poesias, também. Seis. Cada uma tem seu ritmo, seu sentido, sua emoção. Quatro foram escritas entre fevereiro e junho desse ano. Me retratam. Completam aquilo que meus escritos tentam transmitir. SECA Após torrentes de março Depois das águas de abril Maio surgiu seco. Um caminho se fez beco Amarrei o meu cadarço E outro se abriu.


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URGÊNCIA De sorrir De você De escrever De não partir De não viver De não correr Talvez de tudo Quem sabe do quê Urgência de urgir LUZ E SOMBRAS Antes as sombras Reais me pareciam. De repente, sem razão, Ao sol do meio dia Sob meus pés desapareciam. Me dei conta então, De que a luz que me aquecia É a mesma que sombras construía. Fez-se a luz. Sombras também. Que ironia.


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UM MINUTO A vida é um minuto De repente fico puto Me bate um luto Fico sem um puto Mas no meu canto luto Procuro um fruto O balde chuto. Uma vez, também em forma de poesia, tentei um auto-retrato. Em fevereiro de 2015. Gostei do que vi no espelho: AUTO-RETRATO Não trovejo, Tampouco relampejo Apenas vejo. Não chuvisco Nem faço rabisco Pra não correr risco. Sei que medito Às vezes, tenho dito, Me prefiro escrito.


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Enfim, você que me lê que encontre a lógica. Se é que ache necessária. Pra mim, o que escrevo é só um jeito de por pra fora o que me vem à mente. Se faz sentido ou não, pouco importa. Senti prazer na escrita. Afinal, como já disse em março de 2014, me sinto um múltiplo eu: De muitas partes, tentei me fazer uno. Não tive artes! Para uns, sou um. Para outros, outro sou. Pra você, mais um? Que na leitura, você também possa sentir prazer, é o meu desejo. Fernando Gimenez Curitiba Julho de 2018


CONTOS


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FANTASIA antasia, você gosta? Foi a pergunta que ela fez. Ele estranhou a pergunta. Viajara a negócios. O vôo atrasou. Perdeu a reunião da tarde. Fez check-in. Tomou um banho. Desceu para o bar. Quase nove horas. Ela morava naquela cidade. Frequentava o bar daquele hotel. Gostava do ambiente. Lembrava um pub. Se imaginava em Londres. Terça-feira. Noite tranquila no bar. Além dos dois, um casal de meia idade e duas moças. Falavam muito. E alto. Muito! Fingiu que não ouviu a pergunta. Ficou sem saber o que dizer. O que você disse? Ela repetiu. Fantasia, você gosta? E abriu um sorriso. Meio sem jeito, ele sorriu. Corou. Depende. Foi a resposta. Sem saber, tinha caído na armadilha. Ou mordido a isca. Você escolha a metáfora. Ela estava pronta para o bote. Fitou-o bem nos olhos. Como uma serpente, tinha um olhar paralisante. À vítima não havia outro caminho, a não ser se entregar. Venho a este bar três vezes por semana. Ela continuou a conversa. Me imagino em Londres. Notou como tem um ar de pub aqui? Ele só conseguiu balançar a cabeça. Concordou. Ia


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falar alguma coisa. Não deu tempo. Ela emendou. Há trinta anos, assisti a O último tango em Paris. Você viu? De novo, ele só conseguiu confirmar com um meneio da cabeça. Então, minha fantasia é repetir aquele encontro. Uma mulher. Um homem. Um apartamento. Nenhum nome. O que acha? Algo lhe dizia que não deveria aceitar. Mas, que homem é capaz de resistir a uma tentação desta. Ainda mais, ele. Também já tivera esta fantasia. Lembrou-se da cena da manteiga. Será que ela toparia? Pediu a conta. A dela também. Mandou registrar em seu apartamento. O caixa pediu que assinasse. Disse seu nome. Obrigado doutor Marlon. Ela ouviu. Explodiu. Porra! Caralho! De novo, Geremias! Você estragou tudo! O caixa caiu na gargalhada. Ela foi embora. Ele não teve tempo nem de piscar. Ela saiu rindo muito. Mais um trouxa caíra no golpe dela. Alcoólatra, não tinha dinheiro pra sustentar seu vício. Montara o esquema com Geremias. Ele, em troca, transava com ela aos sábados. Sem fantasia.


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BOA PRAÇA um sujeito boa praça. Dá-se bem com todo mundo. Quase todo mundo. Porque, cá entre nós, tem gente que nem com reza brava a gente aguenta. Não é? Então, com exceção de uma meia dúzia de gato pingado, ele leva a vida sem encrenca. Mora no centro da cidade. Perto da Praça Tiradentes. Ganhou uma quitinete de herança da única tia por parte de mãe. Sempre foi o preferido da tia. As primas e primos diziam. Os seis irmãos da mãe dele botaram doze filhos no mundo. Ele foi o décimo terceiro na família. Filho único da caçula. A tia era a mais velha. Solteira, acumulou um bom patrimônio. Fez testamento. A quitinete ficou pra ele. O restante foi dividido entre os demais. Na época do falecimento da tia, estava divorciado. E desempregado. Já tinha passado por três casamentos e três empregos. Conseguiu sacar o fundo de garantia. Pediu o seguro desemprego. Passou seis meses gastando o dinheiro. Mudou-se para a quitinete. Gostou da região da praça. Foi nestes seis meses que conheceu a Duda. O nome dela é Durval. Mas, se apresenta como Duda. Travesti. Vive da noite. Principalmente nas proximidades da Cruz Machado. Ele a


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conheceu tomando sopa na madrugada. Fazia um mês que estava morando na quitinete. Levou pra lá. Assustou-se com o que viu. Pediu desculpas. Falou pra Duda ir embora. Disse que pagava. Duda estava de boa naquela noite. Sorriu. E disse: _ Tem certeza, querido? Eu não ia cobrar de você. Ele quis saber por quê? Duda continuou: _ Faturei bastante hoje. Gostei do seu jeito. É meu número. _ Nunca fudi com um travesti. _ Uma travesti. Duda corrigiu. Completando: _ Não imagina o que está perdendo, querido. Dessa vez foi ele que sorriu. Puxou Duda por uma das mãos. Fechou a porta atrás deles. No dia seguinte, comprou flores pra Duda. Ela ficou o dia todo na quitinete. No final da tarde, se montou e disse que ia trabalhar. Passou na casa dela e trocou de roupa. Ele foi para um bar na Saldanha Marinho. Esperou Duda encerrar o expediente. Quis ir pra casa dela. Duda estava mal humorada. A noite não tinha sido boa. Tinha feito só um programa. Um turista escroto! Ele insistiu. Duda lembrou das flores. Cedeu: _ Tá bom, querido. Mas, hoje tem que pagar. Depois desistiu da cobrança. Desde então, vivem juntos na quitinete. Ele administra o faturamento da Duda.


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Hoje de manhã encontrou um amigo. Alguém tinha contado sobre a Duda. O amigo, gozador, assim que o viu, falou: _ Pô cara! Virou cafetão de viado? Ele encheu o amigo de porrada. Bem no meio de uma das galerias que termina na Presidente Faria. A turma do deixa disso conseguiu separar os dois. O amigo saiu correndo. E ele? Você quer saber, não é? É um sujeito boa praça. Dá-se bem com todo mundo. Quase todo mundo. Porque, cá entre nós, tem gente que nem com reza brava a gente aguenta. Não é?


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ESPIRAL Sono me derrubava. Queria continuar a leitura. No entanto, vezenquando, os olhos se fechavam. Com vida própria, impossíveis de controlar. Eu perdia o fluxo das palavras. Ao reabrir os olhos, não me lembrava de onde a leitura fora interrompida. Parece até que sonhava. Abandonei o livro sobre o criado-mudo. Era cedo para dormir. Comecei a escrever este texto. Um relato verdadeiro, pelo menos até aqui. Mas, a que leitor pode interessar um relato desta natureza? Mesmo que verdadeiro! Hora da invenção, então! O que posso dizer, quer dizer escrever. Outro dia, apaixonado, escrevi uma poesia. Me imaginei no lugar de um compositor, um poeta e um cineasta. Se fosse o primeiro, uma cantiga à mulher amada escreveria. Se fosse o segundo, à mulher amada do amor falaria. Se fosse o terceiro, a mulher amada na ribalta colocaria. Como não era nenhum dos três, encerrei a poesia dizendo que pela mulher amada tudo faria. Mas, onde está a invenção no parágrafo acima? Ou o que foi o fruto da imaginação? A poesia? A mulher amada? Eu? Os três? Nenhuma das alternativas devo lhe confessar. Na verdade, a única invenção de todo o escrito até aqui é a frase: hora da invenção, então! Fora


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isto, o restante é um relato verdadeiro. Mas, a que leitor pode interessar um relato desta natureza? Mesmo que verdadeiro! Hora da invenção, então! Começo de novo. Foi uma noite inesquecível. Ela foi buscá-lo de carro. Um jantar de comemoração do aniversário dele. Tinha sido três dias antes. Mas, não puderam se encontrar naquele dia. Diferente do primeiro encontro, nessa noite ele conseguiu pegar na mão dela várias vezes. Igual ao primeiro encontro, os dois não sentiram as horas passarem. Muito a contar de um tempo que não se conheciam. Enfim, ficara tarde e ela o levou de volta. Se despediram. Cada um em seu lugar, o sono demorou a chegar. Depois que chegou, foi um sono cheio de sonhos. No sonho se beijaram. Terei enfim inventado algo pra você que me lê? Ou não? Hoje estou me sentindo um pouco ardiloso. Parafraseando Pessoa, será que o sonhador é um fingidor? Que finge que é sonho, o sonho que deveras sonha? Volto pro livro. O sono se foi. Verdade ou ficção?


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AS METAS DE EROS u os conheci no primeiro momento em que se encontraram. Nem ela, nem ele perceberam que estavam sendo observados. Eu sei ser discreto. Fiquei observando como se aproximaram. Nunca tinham se visto antes. Foi o acaso o culpado. Na fila do banco, os dois tinham a mesma senha. No momento em que o número acendeu no painel, os dois se levantaram. Caixa 7 informou o painel. Ela estranhou. Ele estranhou. O bancário riu. Disse: _ Terceira vez hoje! Deve ser alguma pane no sistema. Ela foi gentil: _ Atende ele primeiro. Tenho muitas contas pra pagar. Sem jeito, ele aceitou: _ Obrigado moça. O meu é só descontar esse cheque. Assim que pegou o dinheiro foi embora. Ela se demorou. Era muita conta mesmo! Eu ia ter que dar um jeito de fazê-los se encontrarem de novo. Atrasei o ônibus dele. Não podia contar com o acaso de novo. Seriam um belo casal. Se eu fosse bem sucedido. Quando ela chegou ao ponto de ônibus, ele estava lá. Sorriram. Mas, não se falaram. Dois


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humanos difíceis. Alguém lá em cima me sacaneou. Podia ter dado uma tarefa menos complicada. Mas, eu sou teimoso! O ônibus chegou. Só aceitava cartão. Nada de dinheiro. Ele a deixou subir à sua frente. O cartão dela estava sem saldo. Foi a vez dele ser gentil. Ela disse que estava sem dinheiro. Ia descer. Ele não deixou. _ Usa o meu. Ela aceitou. Sentaram juntos no ônibus. Na verdade, o cartão tinha saldo. Eu que dei um jeito de bulir com a catraca. Um leve empurrãozinho. Travou. Parecia cartão sem saldo. Ambos iriam até o ponto final. Lá chegando, ela o convidou pra tomar um café em sua casa. Quase em frente ao ponto. _ Quero retribuir sua gentileza. _ Não precisa. Ele disse. E continuou: _ Você foi gentil comigo no banco. Ela insistiu. Ele aceitou. Ainda bem. Eu já estava ficando nervoso. Tenho que bater a meta. Dez casais por semana. Caso contrário, tenho que enfrentar a ira de alguém lá em cima. Esse é o problema com estas metas quantitativas. A gente perde a noção da qualidade. Com esses dois foi amor à primeira vista. Só que os dois tinham medo. Da outra vez, meus colegas forçaram a barra. Tanto ela,


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quanto ele, tinham sofrido muito na última relação. Eu queria muito ajudar. No entanto, a regra é clara: nós só podemos arranjar os encontros. Daí pra frente é com ela e ele. É preciso acreditar no amor. De novo! Minha parte eu tinha feito. Os dois tinham medo mesmo. Trauma é foda! Eu já não estava acreditando. Virei as costas. Comecei a ir embora. Esforço vão. É o que parecia. Alguma coisa me fez olhar pra trás. Vi que estavam de mãos dadas. Mão dada é um dos indicadores mais fortes. Pode até ter sexo, mas se não tiver mão com mão não vai pra frente. Acredite em mim. São milênios de experiência. O que me aborrece é este sistema de metas. Os caras lá de cima só querem saber de quantidade. Aí contam qualquer transadinha como um sucesso. Ledo engano. Esses casos não duram muito! Mas, dessa vez eu acertei. Pra mim o que importa é a qualidade. Dane-se o resto. O duro é que eu tenho minha meta pra cumprir. Vou hoje à noite em algum boate. Bato a meta fácil. Lá em cima ficam felizes. Eu não. Gosto de qualidade. Já falei, né?


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DE NOITE TODOS OS GATOS SÃO PARDOS la queria vê-lo à luz do dia. Haviam se conhecido à noite. Em um bar. Depois de terem assistido uma peça no teatro Guaíra. Nenhum dos dois costumava sair à noite. Dormiam cedo. Mas, naquela noite eles tinham ido ao teatro. Sozinhos. Ainda não se conheciam. A peça era Gata em teto de zinco quente, em uma versão adaptada para o século 21 a partir da clássica peça de Tenesse Williams e sua filmagem em 1958 com Elizabeth Taylor e Paul Newman dirigidos por Richard Brooks. A adaptação tinha ficado um pouco estranha. Perdera muito da dramaticidade do texto original e do filme. No entanto, o teatro estava lotado. Os papeis principais eram representados por um casal famoso das novelas brasileiras. Isso, todavia, não interessa pra nossa história. Na confusão da saída de quase mil pessoas, os dois se esbarraram e a bolsa dela caiu no chão. Ele foi rápido. A pegou antes dela. Ela agradeceu. Ele imediatamente perguntou se ela havia gostado da peça. Ela fez um muxoxo e disse: _ Não muito. Ele concordou: _ Eu também não.


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Continuaram saindo. Sem se falar. Na porta central, ele foi à esquerda. Ela na outra direção. Por incrível que possa parecer, se encontraram na entrada do bar que ficava duas quadras distante do teatro, bem no meio da rua paralela aos fundos do teatro. Caminharam a mesma distância em direções opostas. Essa seria uma observação que ele faria quando tiveram que dividir uma mesa no bar. O bar estava lotado. A hora que chegaram um casal estava se levantando. O garçom pensou que estavam juntos. Se olharam. Riram. E disseram ao mesmo tempo: _ Por que não? O garçom não entendeu. Conduziu ambos à mesa. Deixou o cardápio. Voltou um pouco depois. Os dois descobriram algo em comum, além do desprazer com a peça: comida árabe. Só que ela não comia carne. Dividiram um mix de pastas. Ele pediu também um quibe assado. O ambiente do bar era iluminado por luzes amarelas. E, não muito iluminado. Havia uma certa penumbra que dominava o ambiente. Ela não havia prestado muita atenção nele na saída do teatro. Mas, com a coincidência de chegarem ao mesmo tempo, ficou curiosa. Ele também. Depois de quase duas horas de conversa, parecia que se conheciam há muito tempo. O


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bom humor foi constante na conversa. Riram muito da atuação canhestra do jovem casal de sucesso nas novelas. Não tinham nenhum talento para o teatro. Na hora de ir embora, os dois pensavam em um jeito de se reencontrarem. Ela lembrou do ditado popular: à noite todos os gatos são pardos. Queria vê-lo à luz do dia. Ele só queria ter a chance de vê-la de novo. Alguma coisa lhe dizia que seria bom. Quase que ao mesmo tempo, falaram: _ Domingo de manhã tem apresentação da orquestra. Você não quer vir? Sorriram. Combinaram de se encontrar na entrada. Os lugares eram livres. Se encontraram. Assistiram ao concerto. Foram almoçar juntos. Ela não quis sobremesa. Ele, louco por doce, deixou de pedir o tiramisú que era a especialidade do lugar. Tomaram café. Na saída, ela disse: _ Você é muito bonito à luz do dia. Ele ficou sem jeito, corou, sorriu e beijou as mãos dela. E foram felizes para sempre.


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DIÁRIO DE BORDO ão queria muita conversa. Já haviam decorridos mais de oitenta quilômetros de viagem. O ônibus estava quase lotado. Na parte superior apenas duas poltronas desocupadas. Na inferior não pude saber. Era o espaço das cabine-camas. O dos que podiam pagar o dobro da passagem. Uma das únicas situações em que os pobres ficam por cima. Tentei puxar assunto perguntando se morava no nosso destino. Não, foi a resposta. Vinha de cidade próxima ao ponto de partida. Ia a trabalho para o destino. Quis perguntar qual, mas me senti intrusivo. Essa minha maldita educação inglesa! Pode ser que o silêncio tivesse sido causado por mim. Antes do embarque, eu lia um livro. Fui o primeiro a embarcar. Continuei lendo. Ela chegou depois. Sua poltrona era ao lado da minha. Junto à janela. Fui me levantar, mas ela disse que ainda não. Ia buscar uma coberta para mais tarde. Disse que o ar condicionado lhe causava frio. Minutos depois voltou com a coberta na mão. Acomodou-se ao meu lado. Eu continuei a leitura. Na tv interna começou um desenho animado. Mais uma sequencia da Era do Gelo. Mais uma possibilidade de ar frio?


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Assisti um pouco. A transmissão ficou instável. Cheia de interrupções. Peguei o livro e concluí a leitura. Só faltava o epílogo. Há muito tempo não via um livro cuja parte final se chamasse epílogo. Mas, e o epílogo dessa história qual será? Ainda tem mais quatro horas de viagem! Você deve estar curioso, não é? Aguenta firme. Vou lhe dar algumas possibilidades: 1. O motorista reiniciou o mesmo filme após o seu término. Descobri que era A era do gelo: big bang. Assisti o filme todo e dormi o resto da viagem. Um pouco ao estilo novela das seis. 2. A temperatura interna caiu muito. Ela ofereceu um lado da coberta. Reclinamos as cadeiras. E, tudo começou com as mãos dadas. No destino, nos despedimos sem ao menos perguntar nomes. Uma homenagem ao Último Tango em Paris. 3. Ela continuou calada. Passou o tempo todo tentando acessar o wifi do ônibus. Sem sucesso, depois da parada conversamos até o destino. Nada especial. 4. Nenhuma das anteriores. Resolvi escrever este texto. Enquanto escrevo fico imaginando qual o trabalho dela que justifique essa viagem. Pensei que podia ser uma dançarina das boates do centro de Curitiba. Voltando de uma visita aos pais que moram no interior. Eles pensam


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que ela é comerciária. Um pouco ao estilo daltoniano. Outra opção é ser cuidadora de idosos. Trabalha em uma instituição sem fins lucrativos. Como o salário é baixo, faz uns bicos como massagista para aumentar a renda. Especializada em falsa massagem tântrica. Um pouco ao estilo rodriguiano. A terceira opção é ser profissional da estética. Depiladora. Aos fins de semana vai pra sua cidade natal, atender amigas e familiares. Na capital tem um namorado que não trabalha. Ela o sustenta. Tem vontade de largá-lo. Não consegue. Vive à beira de um ataque de nervos. Um pouco ao estilo almodovariano. Ela, de repente, me perguntou se eu tinha conseguido acessar a internet. Disse que não. Gosto de escrever, falei pra ela. Escrevo uma estória. _ Posso ler? Ela me perguntou. E completou: _ Sou professora do ensino médio. Português. Estou indo para um treinamento de como ensinar redação. E agora? O que respondo? Me fudi! Um pouco no estilo woodialleniano.


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FIM DA LINHA aquela dia, acordou mais cedo. Um sonho que inspiraria Buñuel e Dali tornara o sono agitado. Viajava de ônibus pela avenida principal da cidade. Uma passageira, idosa, acima dos 70, se transformava em uma gata cinzenta. Agressiva. Avançava contra ele. Só recuava quando ameaçada por uma faca. De onde surgira essa faca? Não conseguia localizar sua origem. Acordava suando. Assustado. Logo adormecia novamente. O sonho se repetia. A cada ataque da gata velha ele se aproximava da catraca do cobrador. Ficava no meio do ônibus. Da última vez, notou um maço de dinheiro no chão. Presas por um elástico, eram notas de cinquenta reais. Pelo volume devia ser mais de mil reais. No último ataque da velha gata ao invés de ameaçá-la com a faca abaixou-se. Pegou o dinheiro. Na confusão ninguém notou. A gata velha pulou por cima da catraca e saiu em disparada pela porta que se abrira. Os demais passageiros desceram. Todos. Era o ponto final. O motorista gritou lá da frente: _ Fim da linha. Carro vai recolher. Todos têm que descer. Ele quis sair. Na porta, no degrau mais baixo, a velha gata. Mostrava os dentes. Não parecia


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agressiva. Ao contrário, parecia sorrir. Olhava para o dinheiro que ainda estava na mão dele. O motorista acelerou, mas o ônibus não saiu do lugar. Impaciente. Falou pra ele: _ Tem que descer meu chapa. Pisou no primeiro degrau. A gata velha avançou. Ele escorregou. Caiu no infinito. Acordou como se estivesse caindo de verdade. Uma sensação de impotência. Lembrou-se do rosto do motorista no sonho. Era um rato. Igual ao que vira na tarde anterior no meio da rua. Quis sair da cama. Não conseguiu levantar. O peito sentia a pressão de uma haste metálica. A cabeça, no lugar do travesseiro, repousava sobre uma tábua. Sem tinta. Era uma ratoeira. Imensa. Na porta do quarto, a idosa lhe sorria. Era mesmo o fim da linha? Não. Era dia de pagar o aluguel da pensão Gata Velha. Onde os ratos se escondem!


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NA ESTRADA o rádio do carro, ele buscava uma nova estação. Já estava muito distante do ponto de partida. O sinal da estação anterior já estava muito fraco. Irregular e cheio de ruídos. A única que sintonizou com clareza tocava música sertaneja. Apesar da rima – clareza sertaneja – não era seu tipo de música. Lembrou-se do pendrive que uma amiga lhe dera. Ela sabia de seu gosto. Devia ter músicas que lhe agradavam. Sinalizou, saiu para o acostamento, parou o carro e foi procurar o pendrive no porta-luvas. Encontrou. Deu um suspiro. Quando estava colocando no rádio, ela apareceu. De repente. Bateu com a mão na janela do passageiro. Ele se assustou. Ela sorriu. Ele abaixou o vidro. Ela se desculpou: _ Moço, não queria te assustar. _ Não tem problemas. Eu estava distraído. Não lhe vi se aproximando. _ Saí daquele mato agora. Estava apertada. Ela pediu carona. Ele perguntou pra onde ela ia. A próxima cidade foi a resposta. _ Fica uns 90 quilômetros daqui. Disse ela. E continuou: _ Pra onde o moço tá indo?


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_ Tô sem destino. Qualquer rumo tá bom. Sobe aí. Quando ela se sentou ao lado dele, mais um susto. Ela usava um shortinho minúsculo. A pele era branca, quase como leite. Lisinha. Nenhuma marca de pelo. O rosto estava na sombra quando se falaram. Era branco também. Usava uma camisa vermelha, Masculina. Com botões entreabertos logo acima dos seios. O short era de jeans. Velho. Desbotado. Nos pés, sandália rasteirinha. Tiras de couro enroladas até pouco acima dos tornozelos. Parecia uma miragem. Imediatamente, ele sentiu o pau intumescer. Fazia tempo que não transava. Estranhou. Na idade dele, isso já não acontecia com frequência. Quase 70 anos. Mas, gostou. Sentiu-se mais vivo Parece que ela notou o volume na calça dele. Desviou o olhar. Mas, não corou. Deu partida no carro. Sinalizou, avançou e retomou o asfalto. Passava um caminhão. Ele não viu. O motorista buzinou forte. Conseguiu desviar do carro. Gritou: _ Barbeiro filho de uma puta! Ele, instintivamente voltou para o acostamento. Parou o carro. Muito assustada, a moça empalideceu. Ficou ainda mais branca. Como se isso fosse possível. Ele sentiu o pau amolecer. Ela notou de novo. Dessa vez não desviou o


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olhar. Pôs a mão esquerda sobre a coxa dele. Aproximou o rosto. Beijou a boca. A princípio ele se assustou. De novo. Mas, relaxou. Da boca, ela desceu para o pau. Depois que ele gozou, ela baixou a janela do carro. Cuspiu. E disse: _ Agora vamos. Você estava precisando disso. Eu também. _ Vamos disse ele. Sinalizou, acelerou o carro, entrou no asfalto. Outro caminhão. Um basculante. O motorista não conseguiu frear nem desviar. O carro ficou esmagado. Quando os corpos foram retirados, os bombeiros estranharam o sorriso no rosto dos dois. Um comentou com o outro: _ Parece que estavam felizes! O outro confirmou: _ É. Deve ser bom morrer feliz! No rádio, que, estranhamente, não desligara, uma música do Chico. Tua cantiga. Quando te der saudade de mim Quando tua garganta apertar Bastar dar um suspiro Que eu vou ligeiro te consolar...


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O PELICANO E A MOÇA DE VESTIDO BRANCO la parecia uma noiva. Mulata. Usava um vestido todo branco. Curto. Olhava as aves aquáticas no Passeio Público. Entre elas, um pelicano. Meio rosado. Será que todos os pelicano são dessa cor? Aos poucos, entediada, ela caminha em direção ao portal da saída. O pelicano não se vira. Continua virado para o interior do parque. Mas, contorce o pescoço. A cabeça vem toda para trás. Em direção ao solo. Parece querer enxergar por baixo do vestido da mulata. Pelicano safado! Ela? Tomou o rumo da catedral. Iria atrás do noivo? Fui atrás. Entrou na catedral. Eu também. Fez o sinal da cruz. Eu não. Ajoelhou-se. Me sentei. Contorceu o pescoço. Sua cabeça caiu em direção ao piso. O pescoço longo como o do pelicano. Ao seu redor, velas acesas surgiram. Do Passeio Público, ressoou o grasnado do pelicano.


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O FARMACÊUTICO SINCERO lguns colegas já haviam notado. Os fregueses começavam a reclamar. Mas, para ele não havia nada demais. Sempre fora assim. Se perguntava: _ Nunca haviam percebido? Já trabalhava naquela rede há quase oito anos. Era uma farmácia de bairro. O mais distante do centro. Muitos clientes antigos. Quase toda semana iam comprar algum remédio. Gostavam de lhe pedir orientação sobre os medicamentos. O posto de saúde vivia lotado. Ele bem que podia ajudar. Era o que eles pensavam. Mas, de vez em quando a sinceridade dele os deixava boquiabertos. Ele não gostava muito quando alguma frequesa chegava e falava: _ Ando com umas tonturas ultimamente. O que pode ser? _ Não sou médico, ele respondia. Por que a senhora não vai no posto de saúde? A última vez fora com Seu Gervásio. Ficara viúvo há menos de um ano. Com mais de 70, enquanto a mulher vivera, a rédea fora curta. Mais de cinquenta anos juntos. Leopoldina, esse era seu nome, não dava moleza para o marido. Ciumenta. Era cinco anos mais velha que ele. Sexo era coisa do passado! Para ela. Gervásio


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pensava que ainda dava no coro. Queria se aventurar. Alguns amigos chamavam para ir ao Passeio Público. Mas, os dois aposentados, Leopoldina não deixava ele ir para lugar nenhum sozinho. Quando ela morreu, ele chorou. Mas, por dentro, sentia um certo alívio. Livre enfim! Estava decidido a ir atrás das moças no Passeio Público. Um dos amigos tinha lhe recomendado que tomasse sildenafila. Ele estranhou o nome. O amigo explicou; _ É o genérico de viagra. Nunca ouviu falar? _ Já. Mas, nunca usei. Você sabe como a Leopoldina era. Não me dava folga. E, com ela, já não rolava nada. _ Então, vai na farmácia e pede. Disse o amigo. Pergunta pro farmacêutico que dosagem ele recomenda. Na sua idade, acho que tem que ser pelo menos 50 miligramas. _ Não precisa receita? _ Não. Respondeu o amigo e se despediu. Tinha que ir na padaria. Gervásio se empolgou com a notícia. Foi atrás do farmacêutico. Meio envergonhado, esperou a farmácia ficar vazia. Tinha uma vizinha lá dentro. Esperou ela sair. Chegou junto ao balcão e falou:


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_ Tenho uma dúvida sobre um remédio. Não sei se posso usar. Uma tal de sil alguma coisa. Esqueci o nome. _ Para que serve? Perguntou o farmacêutico. Gervásio ficou encabulado. Até meio corado. Deu um sorriso, meio sem jeito, e disse: _ È para levantar o falecido. E fez um gesto com o braço de baixo para cima. O farmacêutico deu uma gargalhada. Disse: _ Seu Gervásio, no seu caso nem Jesus salva. Vai jogar dinheiro fora. Gervásio insistiu: _ Um amigo disse que é muito bom. Que funciona. Mas, o farmacêutico estava mal humorado naquele dia. Arrematou: _ No estoque só tem de 25 miligramas. Pro senhor tem que ser no mínimo 100. E, olhe lá. Não garanto que vá resolver. Gervásio saiu puto da vida. Devia ter sido praga da Leopoldina. Nem morta, a desgraçada lhe dava sossego. O pior é que no bairro só tinha aquela farmácia. Mas, não desistiu. Partiu em direção ao ponto de ônibus e disse para si mesmo: _ Lá no centro tem um monte de farmácia. Em alguma deve ter o que preciso. É hoje!


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GALERIA DE HORRORES reunião começara há dez minutos. De repente, ele se deu conta da fileira oposta. Bem à sua frente. Pareciam um bando de aves de rapina. Narizes aduncos. O inverno, no seus primeiros dias, já exigia capotes e blusas mais pesadas. Eram como plumagens. Cores variadas. Uma galeria de horrores. Lembou-se do último domingo. Uma tarde no Passeio Público. Fora sozinho. Gostava de observar o espaço maior. Uma enorme gaiola. Dedicada às grandes aves. As grades tinham quinze ou vinte metros de altura. Sem cobertura. Sempre se indagara por que as aves ficavam naquele espaço. Devia ser por causa da comida fácil. No espaço urbano é difícil para aves de rapina encontrarem o que comer. Ali, todo dia, os tratadores não falhavam. Distribuição farta. De vez em quando, até pequenos roedores vivos eram soltos. Uma agitação entre as aves. As mais ágeis faziam a festa. Ao contrário das aves de rapina na reunião, eram até bonitas. Mais que isso. Tinham uma elegância que faltava às outras. De repente uma ideia. Precisava alimentar as aves da galeria de horrores. Elas já estavam


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agitadas. Falou sobre maior liberdade para aprender. Foi um alvoroço. Todas voaram para cima da presa. Ficou destroçada. Mas, manteve um sorriso estranho na face. Lembrou-se da elegância das aves do Passeio Público. Voltaria lá no próximo domingo.


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ESTRANHO oi tudo muito rápido. Acordou na mesma hora de sempre. Depois do banho, um café com leite e um pãozinho com manteiga que comprara no final da tarde do outro dia. Em menos de meia hora saiu para o trabalho. O pão estava borrachudo. Do jeito que gostava. Era um sujeito estranho em alguns gostos. Gostava de ver o pão esticando enquanto puxava a mão a cada mordida. Acordou assustado naquela manhã. Mais uma vez um sonho sem saída. Via-se caminhando em uma cidade desconhecida. Na calçada, irregular e estreita, uma multidão caminhava em sentido contrário ao seu. Resistia ao fluxo, seguia adiante, mas acabava em um beco sem saída. Quando tentava retornar, a mesma multidão vinha contra ele. Resistia novamente e chegava ao mesmo beco sem saída. Na quinta vez, acordou sobressaltado. Sentia o rosto molhado de suor. O gato, que subira na cama, lambia seu rosto. Sentiu-se aliviado ao ver-se seguro na cama. Espreguiçou-se ao mesmo tempo que o gato saltava fora da cama. No relógio, antigo, os ponteiros marcavam seis e quinze. Outro gosto estranho. Nunca conseguiu dormir com as luzes


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piscantes de um relógio digital. O tique-taque do antigo embalava seu sono. No meio do caminho, que fazia sempre a pé, o inesperado. Sete e quinze. Morava perto do trabalho. Não mais do que um quilômetro. Uma multidão caminhava em sua direção. Indagou-se se ainda sonhava. Mas, certamente não. A calçada era ampla e regular. Não era a do sonho. Olhou para baixo. A viu sobre o pé esquerdo. Enrolada em seu sapato de verniz branco e preto. Era um sujeito de gosto estranho. Na sua frente as pessoas continuavam passando. Era uma massa uniforme e coesa. Uma barreira quase intransponível. Espremeuse no canto da farmácia, encostado na porta metálica ainda fechada. Sobre o único degrau que dava acesso a ela quando aberta. Queria agitar o pé para livrar-se dela. Não tinha espaço. Não tinha saída. Sentiu ela enroscar-se em sua canela. Fria e gosmenta. Ela subia lentamente por sua perna. Sem saída, jogou-se embaixo da multidão que continuou uniforme e coesa. Agora, ao movimento ritmado juntara-se um pequeno deslocamento vertical. Para cima. Para baixo. Ritmo imperturbado. Acordou em uma cama. Pensou que estava sonhando. Não. Era de hospital. A enfermeira ao seu lado sorria de forma estranha. Lambeu os


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beiços com uma língua bipartida. Viperina. Mas, não no sentido figurado. Mirou em sua canela e deu o bote. Estranhamente, ele teve um orgasmo. Tinha gostos estranhos. No caixão manteve um leve sorriso. Estranho. Mas, assim era ele.


CRÔNICAS


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AÇÃO E REAÇÃO Ela me disse: _ Quando tocamos alguém, tocamos algo que nos tocará de volta. A conversa era sobre relacionamentos em uma idade mais madura. A impossibilidade deles, a essa altura da vida, basearem-se apenas no sexo. Imediatamente lembrei-me de Merlí. Uma das personagens mais sedutoras que já vi nas telas. Professor de filosofia, carismático, provocador, manipulador e, acima de tudo, sedutor. Na trama da série da Netflix se envolve com Gina, mãe de um dos alunos. Em um dos episódios, ele resiste, quase estoicamente, a se declarar amando Gina. A princípio, se aproximara dela pelo sexo, assim como fizera com outras personagens. Mas, no caso de Gina parece ser diferente. Se bem que sobre Merlí nada pode ser afirmado com certeza. Ao menos, enquanto a série não chegar ao fim. Pensei que, se fosse da vida real, Merlí concordaria com a qualificação que ela deu ao amor em um comentário em uma rede social: dulcíssima prisão. Se bem que a personagem de Merlí não usa as redes sociais. Crítico feroz delas.


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Nosso reencontro foi recente. Facilitado pelas redes sociais que Merlí tanto crítica. Ambos sabíamos que essa aproximação poderia levar ao sexo. Mas, não foi no primeiro encontro. Este foi o começo da sedução. Mútua. Sabíamos o que buscávamos. Não tínhamos consciência plena do que aconteceria depois. Esta era a razão da conversa. Um pouco ao estilo Gina e Merlí. Mas, voltando ao começo, você pode estar se perguntando da razão do título. Por que ação e reação? É que quando ouvi o que ela disse, lembrei-me do velho princípio da física: a toda ação corresponde uma reação. É claro que nossa conversa não tinha nada a ver com a física, com a matéria. Ou apenas com o sexo. Desejo levou ao beijo. Beijo trouxe o toque. Toque despertou tesão. Tesão levou ao orgasmo. Pronto. Nada disso! O buraco é mais embaixo! E aqui estou sendo metafórico e não literal. Faça o favor! E daí? Você me pergunta ansiosamente. Calma, chego lá. Na minha idade me permito ir mais devagar. Em tudo! Esse final carrega múltiplos sentidos e foi de propósito. Pura provocação nessa altura do texto. Tocar alguém não é só um ato físico. Também tem múltiplos sentidos. É sobre um desses outros sentidos que ela falava.


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Hoje de manhã, voltando da feira, duas mulheres passaram por mim, e ouvi de uma delas: _ É o princípio da ação e reação. A gente faz algo e logo vem a reação. Causa e efeito. Pois é! Parece que foi o nosso caso. Nos tocamos. E não só fisicamente. Está sendo bom. Em algum momento, talvez, tenhamos que decidir sobre resistir ou não à dulcíssima prisão. Por enquanto? Vamos nos tocando. Em todos os sentidos.


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MUNDO SEM GRAÇA eios exuberantes. Pareciam querer saltar pra fora da camiseta preta. Decote arredondado quase incapaz de contê-los. Bronzeados. Foi difícil acreditar que fossem naturais. Deveriam ter sido incrementados com algum implante de silicone. Se bem que ela era uma mulher alta. Acima de 1,85 metros. É óbvio que não medi a altura dela. Mesmo porque, se tivesse a oportunidade, preferiria medir o busto. Devo confessar que, até eu que nunca fui muito atraído por mulheres de seios volumosos, tive que admirar o que vi. Eram realmente grandes e proporcionais à altura dela. E belos. Sinuosos. Caminhávamos em direções opostas. Me pergunto se a admiração que senti foi visível. Em poucos segundos, em uma distância de não mais que cinco metros, após desviar o olhar e voltar a mirá-la, os seios estavam encobertos por uma fina blusa preta de lã. Sem nenhuma razão para tal, me senti envergonhado. Nunca a vira. Será que ela ficou com medo de algum ataque repentino. Impossível! Era pouco mais de uma da tarde. Estávamos na calçada de uma rua muito movimentada. Sol brilhante!


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Apesar de ser o primeiro dia de inverno, o calor do sol estimulava um descobrir-se. Mas ela se cobriu. Mal resisti à vontade de dizer-lhe que os seios não mereciam ficar totalmente ocultos. Ademais, os raios solares ajudariam a manter a bela cor do bronzeado. No entanto, ao passar ao seu lado mantive-me calado. Nesses tempos ambíguos em que vivemos, é cada vez mais arriscado elogiar a beleza. Seja de uma mulher ou de um homem. Tive medo de ser chamado de velho tarado! De que ela confundisse a admiração do belo com assédio. Me satisfiz com a oportunidade de ver a beleza efêmera. Efêmera porque foi rapidamente escondida. Efêmera, também, porque a natureza é implacável com nós humanos. Tem no tempo um aliado que dificulta a permanência da beleza na maioria de nós, meros mortais. Segui meu caminho com minhas preocupações mais cotidianas. Resolver um problema de plug inadequado de uma máquina de lavar. Cono substituí-lo? Por enquanto, são decisões mais urgentes. Preciso lavar roupa. Já a graça do mundo, é algo em que pouco posso interferir. Posso apenas constatar o óbvio: o mundo vai ficando cada vez mais sem graça!


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MEMORY LANE Ontem, em São Paulo, resolvi passear um pouco pelo bairro da Liberdade. Aos 16 anos, poucos meses antes de chegar aos 17, fui estudar em São Paulo. Na transição da adolescência para a juventude, anos de formação para a vida adulta, viver sozinho em São Paulo foi parte fundamental de minha história. É claro que fui bancado por meus pais nesse período que, felizmente, tiveram condições de pagar por meus estudos e moradia. Fui para concluir o segundo grau e, ao mesmo tempo, fazer cursinho para me preparar para o vestibular de engenharia. Morava na pensão da Dona Genoveva e seu Orlando na rua Tamandaré, muito próximo do curso Anglo onde estudava. Fui até lá ontem, mas a pensão não mais existe. Nesse retorno ao passado, down the memory lane, como dizem os ingleses, fui de metrô até a estação Liberdade e desci pela rua Galvão Bueno até a rua Tamandaré.


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No caminho, passei por um bar/restaurante japonês que, provavelmente, é o mesmo em que tomei saquê quente pela primeira vez. Se não me engano, na companhia de Edson Romero Ugolini, Sergio Bordin e, talvez Eduardo Franzon. Londrinenses que também moravam na pensão. Franzon dividiu quarto comigo, mas não ficou muito tempo por lá. Quase na esquina da Galvão Bueno e Tamandaré, encontrei a velha banca de revista na qual comprei muitos gibis e livros. Foi nela que comprei um livro de João Cabral de Melo Neto, cujas poesias me emocionaram ainda jovem. Naquele ano, eu guardava uma nota de 1 cruzeiro por dia, e quando tinha juntado um pouco comprava um gibi ou livro nessa banquinha. Foi o único período da vida em que consegui guardar algum dinheiro, mesmo que por períodos curtos. Enfim, fiz o mesmo caminho de volta. Como fazia aos domingos quando ia, ou em direção


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aos cinemas do centro, ou em direção à Avenida Paulista e rua da Consolação para chegar ao cine Belas Artes. De vez em quando ia a um cinema que ficava ao lado da Praça da Liberdade, que exibia filmes japoneses. Mas, era nessa esquina que eu, jovem andarilho dominical, escolhia o caminho a ser trilhado.


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SOBRE O AMOR OU MANIFESTO DE UM APAIXONADO AOS 61 ANOS Outro dia fui diagnosticado como apaixonado. Não perguntei se é doença. Creio que não. Acho que é mais um jeito de ser. Assim, não preciso me preocupar com a cura. No entanto, como apaixonado achei que deveria escrever sobre o amor. Tanto já se escreveu sobre o amor. Há, ainda, algo novo a ser dito? Novo? Não sei! Mas, algo a ser dito? Certamente. Na semana que vem completo o primeiro ano de minha sétima década de existência. Chego à versão 6.1. Nesse tempo de vida, experimentei diversas formas de amor: maternal, paternal, fraternal, filial, platônico, entre outros. Até mesmo o filosófico. Aquele que surge da vontade de conhecer e entender a vida. Nesse tipo de amor corre-se o risco da paixão. Paixão pela vida! O platônico foi na juventude. Quando não fui capaz de vencer barreiras que impediram que o transformasse em outra forma. É o amor que foi sem nunca ter sido! E o que dizer do amor religioso. Religioso? Você pode me perguntar. Confesso que não sei se essa é a melhor palavra. Talvez espiritual? Sem crença religiosa, sinto dificuldade em qualificar


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esse amor. Mas, é o amor ao próximo que aprendi nas aulas de catecismo ainda criança. Na religião que ainda adolescente perdeu sentido para mim. Dela sobrou essa noção de uma forma de amor. Talvez, a melhor essência do que tentaram me ensinar nas aulas de catecismo. Esse amor que se manifesta na solidariedade pelo outro. É o amor pregado por Confúcio, Cristo e muitos outros humanos que procuraram transcender à vida orgânica e material. E a amizade? Essa forma de amor que, ao contrário do que afirma o Facebook, é rara. Não se encontra facilmente. É gema preciosa que precisa ser garimpada. E, quando encontrada, lapidada. No estado bruto já é belo esse amor. Com o tempo, seu brilho se acentua. E continua brilhando mesmo quando os sujeitos desse amor estão distantes. Já senti, também, aquele que Vinicius desejou que fosse "eterno enquanto dure". Aquele que surge primeiro como paixão. Não foram muitos. Como chamas, também não foram infinitos. Como chamas, ainda, arderam. Muito quando acesas. Bastante quando se apagaram. Arder quando se apaga? Impossível! Talvez no mundo da lógica. Porém, quem já viveu esse amor sabe o que quero dizer. São formas diferentes de


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ardência. A primeira é gostosa. A última dolorosa. Mas, acima de tudo, ardências. E agora? Como que isso termina? Esse texto, quero dizer. Não o amor! O amor sempre se faz presente. Em suas múltiplas formas. Nunca termina. Será que me coloquei em uma enrascada ao querer falar sobre o amor em prosa? É um tema só pra poesia? Nesse formato, já tentei. Não sei se fui feliz! Mas, ardente? Sim. Um discípulo/aprendiz não muito bem sucedido de Neruda, Vinicius e Florbela. Então... Parece que estou lhe enrolando, não é? Mas vamos ao ponto final. O que eu queria dizer mesmo é que é impossível viver a vida sem as múltiplas formas do amor. E ela brilha ainda mais quando uma dessas chamas, que não são infinitas posto que são chamas, se acende em nós. Eu sigo em busca dessa chama. Em busca dessa ardência. Sem ponto final!


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A RECONSTRUÇÃO Reconstruir depende do que sobrou. Depende também do que queremos resgatar do que já foi. Pode parecer uma reforma. Mas, ao contrário desta, a reconstrução é, inicialmente, não voluntária. Se impõe. A reforma não se impõe. É escolha. Depois de iniciada, contudo, se abre para nossas escolhas. Fica com um certo ar de voluntária. Mas, na raiz, na origem, sabemos que não é. A reconstrução menos difícil é a da terra arrasada. Quando não sobra nada, não há o que preservar. Tudo pode ser reimaginado. Tudo pode ser diferente do que já foi. Não há compromissos com o que já foi. O foda mesmo é quando a destruição é parcial. Nos escombros vemos reflexos do que foi. A tentação de recriar o que já foi é enorme. Quase irresistível! Das ruínas, imaginamos o ressurgimento das mesmas paredes, das mesmas cores e, até, das mesmas dores. Mas, e se o que já foi teima em não se moldar à reconstrução? Nessas horas, por mais que doa, o melhor é eliminar os escombros. Destruir o que sobrou. E criar o novo. De novo.


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CHEGANDO OU VOLTANDO? Mais uma viagem. No hotel as perguntas de sempre na ficha da recepção. Turismo ou trabalho? Nenhuma das opções. Me lembro do filme "viajo porque preciso, volto porque te amo". Deveriam por estas opções na ficha: precisão ou amor. Me lembrei do verso do poeta: navegar é preciso, viver não é preciso. Será uma precisão no sentido de exatidão? Ou de premência, urgência? Tenho amigas que pensam que o poeta disse que é exato. Navegar é exato, viver não é exato. Seria tão chato se fosse verdade! Exato demais! Prefiro a minha precisão. Nada exata. Só me leva. Faz tanto sentido. Navegar é preciso. Viver é dor no siso. Navegar é desejo. Viver é bocejo. Navegar é ardência. Viver é só permanência. Navegar é anseio. Viver é cheio de freio. Navegar é tentação. Viver é negação. Navegar é fruição. Viver é decepção. Navegar é voar com eros. Viver é cair no colo de tanatos. Chegando ou voltando? Sabe que nem eu sei! Nesta altura da vida acho que não há lugar onde não tenha estado. Mesmo que imaginado. Assim, é sempre uma espécie de volta. Em cada


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lugar um "volto porque te amo". Mesmo que não saiba quem. Em cada destino um "viajo porque preciso". Mesmo que não saiba por quê. Afinal, navegar é preciso.


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PARA UM LEITOR DESCONHECIDO ermino de ler O melhor de Caio Fernando Abreu contos e crônicas. No ônibus. Quase perco meu ponto de descida. Felizmente, alguém fora do ônibus acenou e ele parou. Levanto. As portas de descida também se abrem. Devem funcionar automaticamente. Ou então, foi gentileza do motorista que me percebeu. Levantei e me pus frente à porta. Pensei em acionar o botão de parada. A porta se abriu antes de fazê-lo. Me distraíra pensando que deveria deixar esse livro na estação Central. Nela há um espaço onde livros podem ser deixados e pegos. Por qualquer um. Livros não foram feitos para ficar guardados. Em estantes. Em qualquer lugar. Eles precisam circular. Como um tesouro a ser compartilhado. Porque se você pensar bem, nada vale um tesouro guardado! Vai acumulando sujeira. Pó. Melhor que caia nas mãos de um leitor. Ou leitora. Desconhecida. Desconhecido. Talvez aquela adolescente que volta pra casa depois das aulas no Colégio Estadual. Poucas amigas. Sempre distraída. Sentada perto das janelas. Fora da sala, o jardim. A avenida. O constante ir e vir de ônibus e carros. Se sente prisioneira. O professor chama a atenção. Maria


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Cláudia! De novo olhando pra fora. Depois vai mal na prova e não sabe porquê. Escreve poesia. Acho que vai gostar da crônica Carlos chega ao céu. Ou será aquele senhor que vai ao Passeio Público. Dia sim. dia não. Vezenquando (empresto uma palavra que aprendi com Caio Fernando Abreu) para em um bar na Presidente Faria. Toma uma cerveja. Come torresmo. No fim do dia. Observa as pessoas andando apressadas. Voltam para casa depois de um dia de trabalho no centro. Aposentado. Não aguenta ficar em casa. Quarenta anos trabalhando como porteiro. Ficou sabendo que o prédio onde trabalhava passaria a ter portaria eletrônica. Não quis ser demitido. Uma humilhação. Segundo ele. Se aposentou. A mulher fica em casa. Para ele, recomendo o conto O coração de Alzira. Pode ser, ainda, aquele bancário. Carrega o título de gerente de contas. Mas, não se ilude. Hoje em dia, quase todo bancário é gerente de contas. Pelo menos os que sobraram. Que ficaram no emprego. Muitos foram demitidos. A culpa dizem, é do avanço tecnológico. Não sei não! Tenho minhas dúvidas. Todo dia tem uma meta a atingir. Seguro de vida. Crédito consignado. Fundo de investimento. Tantas siglas na sua jornada. CDB. SELIC. RDB. BTN.


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PQP. Opa, esta não! Para ele, recomendo Os sapatinhos vermelhos. Está precisando de um pouco de graça e sacanagem na vida. Ou pode ser aquela senhora que volta da feira. Carrinho transbordando. Por cima, uma caixa de caquis. Vermelhinhos. Devem estar muito doces. Ela ocupa o lugar destinado aos portadores de necessidades especiais. Sentada. Carrinho a seu lado. Volta da Praça Dezenove de Dezembro. Às segundas há uma feira com preços subsidiados. Nesses tempos bicudos, qualquer economiazinha ajuda. Vai gostar de ler As corujas. Tenho certeza que depois vai ler de novo. Para os filhos. Uma menina e um menino. Assim que chegarem em casa. Mas, não vai ser fácil. Eles só querem ficar mexendo no celular. Mas, eu tenho uma preferência. Não dos contos e crônicas do livro. Todos me afetaram. Me fizeram sorrir. Me entristeceram. Ou me iluminaram. Minha preferência é por uma leitora ou leitor. Alguém que tenha acabado de sair de uma sessão de clarividência. Você já percebeu como há uma oferta muito grande desse tipo de serviço em Curitiba. Eu, que ando muito pela cidade, vejo sempre pequenos cartazes em muros e postes. Uma infinidade deles. Tantos nomes. Rita Paula. Dona Joana. Pai Tomás. Cacique Pedro. E por aí vai. Acho


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que é mais uma evidência dos tempos bicudos que vivemos. São diversos os problemas que podem ser resolvidos. Amor. Trabalho. Mal olhado. Inveja. Doença. O que mais gosto é uma unanimidade. Nos cartazes. Trago ele ou ela de volta. Pagamento só após o retorno. Ah! O amor! Esta coisa indispensável na nossa vida. Quando falta apelamos pra tudo. Pois é. Eu queria que esse livro fosse colhido por alguém que tivesse ouvido algo assim: Tenha fé e paciência. A vida vai melhorar. A qualquer momento algo vai se transformar. Você vai ser feliz de novo. Que o livro de Caio Fernando Abreu seja este momento!


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A MESMICE NO DIVERSO iversidade. Gente de todas as formas. Meu olhar não consegue encontrar nada extraordinário. O comum impera. Não era o que esperava. Afinal é um festival de blues e jazz. O comum é feio. O menos comum também. O mais comum? Pior ainda. Serão meus olhos? Teria ficado mais míope? A beleza está me chegando fora de foco? Faz tempo que não consulto meu oftalmologista? Espero que não seja nada grave. Mas o comum é assustador. Mudando de assunto. Mas, continuando no diverso. De pato pra ganso. A vida é muito longa para essa mesmice. Sete dias em uma semana. Cinquenta e duas semanas no ano. Às vezes cinquenta e três. Já se foram umas três mil e vinte sete semanas. E, se você pensar bem, uns 90 por cento delas foram muito iguais. Só dez por cento de diferença. Haja tédio. E todo esse tédio, por quê? Porque alguém botou na cabeça que precisamos das instituições para viver em sociedade. E, já que as instituições precisam de repetição e constância para serem dignas desse título, haja mesmice. E segue a vida. Se repetindo. Ainda bem que de vez em quando o diverso aparece. Salve o


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diverso! Vida longa. E que não vire mais uma instituição. E, pensando bem, até eu me repito. Se você refletir o suficiente, vai enxergar nesse texto, a minha mesmice: caminho. Qual? Para onde? Por quê?


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MOLA DO MUNDO izia à amiga. Ele me pergunta se ainda sinto algo pelo outro. Digo que não. Não quero magoar ele. Mas, você sabe né? Quando vejo ele. Minha perna amolece. Tudo amolece. Quando me dou conta, acordo na cama dele. É um vício. Mas também é o único. A amiga só escutava. Não falava nada. Percebeu que eu ouvia. Piscou para mim. A outra não percebeu. Devo ter ficado com o rosto vermelho. Afogueado. Não pude evitar. Ouvi a conversa no ônibus. Elas estavam na minha frente. Os três em pé. Carro lotado. De frente para elas, era como se participasse da conversa. Era mais um monólogo. Ela continuou. Perguntou a opinião da amiga. Mas, antes da outra responder falou do corno. É um fofo. Tadinho! Não queria fazer isso com ele. Não aguento. Quando vejo já abri as pernas Vadia. Foi a única palavra que saiu da boca da amiga. Seguida de duas gargalhadas. Eu ri também. Fazer o quê? Sexo, a mola do mundo. Foi o pensamento que me ocorreu. Não importa como. Nem onde. Ou com quem.


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Minha solidariedade de macho, de repente, me fez entrar na conversa. Tenho certeza que o fofo também dá umas por fora. Falei em voz alta. Ela me olhou. Ficou de boca aberta. Incapaz de qualquer som. A amiga deu mais uma gargalhada. Desci do ônibus que acabara de chegar a meu tubo. Dei uma gargalhada. Guardei na memória aqueles olhos arregalados e a boca aberta. Foi quase tão bom quanto sexo. A mola do mundo.


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ELES PARECIAM FELIZES les pareciam felizes. Foi o que ela disse. Ao passarem por mim, não pude deixar de ouvi-la. Ao seu lado um rapaz. De mãos dadas. Sobre quem era o comentário? Esta pergunta me veio à mente. Não tive como saber! Como não conhecia nenhum dos dois, não pude perguntar. Segui no meu trajeto. Em direção oposta ao do casal. Mais à frente, não mais que trinta metros, um cartazete grudado a um poste chama minha atenção. Minha imaginação dispara. O comentário dela tinha que ver com esse cartaz. Estavam muito próximos. Tinham recém passado por ali. Ela devia estar falando de algum casal que fora ou poderia ser ajudado. Veja o cartaz:


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Você sabe como sou curioso. Tive que ser rápido. Fiz a fotografia do cartaz. Me pus a caminhar rapidamente atrás do casal. Nossa distância era em torno de 60 metros. Passeavam. Sem pressa. Quando cheguei perto, ouvi o que ele disse: _ Estavam juntos há tanto tempo, né? _ Quarenta ou quarenta cinco anos. Não tenho certeza. Ela respondeu. Fiquei feliz. Ainda falavam do casal. Devia ser o mesmo do primeiro comentário. Você não acha? Impossível que já estivessem falando de outro. Diminuí o passo. Ela continou: _ Uma hora tinha que acontecer. _ Quase uma vida juntos. Tempo pra caralho! _ Não gosto quando você fala palavrão. _ Desculpa. Foi a resposta dele. Ela continuou: _ Foi um final bonito. Os dois foram encontrados abraçados e mortos. Depois de uma noite de amor. Estavam pelados. _ Puta que pariu! Exclamei em voz alta. Os dois viraram pra trás. Eu me desculpei. Veja você, que azar! Não tinha nada a ver com o cartazete. Curitiba é inundada por esse tipo de anúncio. Já falei disso antes. Eu curioso pra saber se funciona. Porra! Ainda bem que você não se incomoda com palavrão.


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Tem uns até que dizem que o pagamento só é feito após o resultado. Se o amor não voltar, não paga. Me pergunto se tem alguma garantia. Vai que volta e depois vai embora de novo. Sei lá! Um dia posso precisar. Nunca se sabe! Felizmente, estávamos em uma esquina. Eles seguiram em frente. Virei à esquerda. Estava perto do Passeio Público. Era feriado. Fui dar uma volta. Lá sempre vejo ou ouço alguma coisa que pode dar uma boa estória. Qualquer dia publico um livro. Já tenho até o subtítulo: contos e crônicas curitibanas com alguma poesia.


POESIAS


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PERMUTAÇÕES Curvas no corpo Imagens na mente Desejos na boca Curvas na mente Imagens na boca Desejos no corpo Curvas na boca Imagens no corpo Desejos na mente


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ELA Ela queria um pingente Era tão exigente Fiquei indigente Ela queria um brilhante Era tão gritante Fiquei periclitante Era queria um anel Era tanto mel Fiquei pinel Ela queria um colar Era tão solar Me pus a esmolar


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INSPIRADO EM LEMINSKI Confia Todo que vigia Nostalgia


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POEMIM Foi assim Você sem mim Só enfim Não quis assim Nem outrossim Talvez seja o fim Demais pra mim Não tive seu sim Meu curumim Li um pasquim Bebi cauim Estraguei meu rim Do pirlimpimpim Inspirei um pouquim Fiquei louquim.


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SÁBADO Foi no ônibus Trocaram olhares Sorriram Um desceu Outro não Não aconteceu


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QUASE INVERNO Quase inverno Nuvens escondem lua Passos apressados na rua Quase inverno Lรกgrimas escorrendo Salgam canto da boca Quase inverno Cรฃo ladra na noite Lua escapa das nuvens


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SABOR Seu sexo sabe a pimenta Me espanto como me esquenta Seu sexo sabe a melado Me lambuzo por todo lado Seu sexo sabe a hortelã Me inspiro toda manhã Seu sexo sabe a anis Me lembro de sonhos juvenis Seu sexo sabe a chocolate Me escondo do cão que late Seu sexo sabe a manga Me enrosco em sua canga Seu sexo sabe a uva Me derreto em sua vulva Seu sexo sabe a jambo Me acordo todo mulambo Seu sexo sabe ao que quero Me entrego sem lero-lero Seu sexo sabe a loucura Me salvo, é minha cura.



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