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EDIÇÕES E PRODUÇÕES
Edição e projeto gráfico RODRIGO ROSA Assistência editorial IVETTE GIRALDO
Tradução MARIA CLARA CARNEIRO
Revisão LIZIANE KUGLAND e BRUNO DORIGATTI
FIGURA agradece a Maria Clara Carneiro, Guilherme Kroll Domingues, Léa Ceres da Rosa, Rogério de Campos, Rafael Coutinho, Sidney Gusman, Darío Viana, Eduardo Sant’anna, S. Lobo, Marcelo Martinez e Bruno Porto.
© (2015) Mosquito – herdeiros de Sergio Toppi Título original: Sharaz-De
Copyright desta edição © (2016) Figura Edições e Produções Impresso na Gráfica Pallotti em março de 2016
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Toppi Sharaz-de: contos de as mil e uma noites / Toppi ; tradução Maria Clara Carneiro. -- Porto Alegre, RS : Figura Edições e Produções, 2016.
1. Contos árabes 2. Histórias em quadrinhos I. Título.
16-01528
Título original: Sharaz-de ISBN 978-85-5977-000-1
Índices para catálogo sistemático: 1. Histórias em quadrinhos 741.5
FIGURA EDIÇÕES E PRODUÇÕES Rua Saudável, 202 - Medianeira Porto Alegre, RS cep 90880-140 figuraeditora@gmail.com
CDD-741.5
Apresentação
A LARGA NOITE
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FALCÃO, FALCÃO MEU AMIGO
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NÃO INVOCARÁS ESSE NOME
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EU TE CURAREI, SENHOR ESPEREI MIL ANOS
MUDGIAJD E SEU REI
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TE SEGUIREI COMO UM CÃO
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Posfácio
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UMA CIDADE DE NOME ABUNHISWAR
Biografia do autor
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Com Sharaz-De, obra-prima de Sergio Toppi, a Figura estreia no mercado editorial brasileiro. De fato, é difícil imaginar um título que combine melhor com a iniciativa de abrir uma editora — neste momento e com o nosso conceito — que este que você tem agora em mãos.
A Figura, como o nome sugere, será fundamentalmente dedicada à imagem, seja em forma de ilustrações, quadrinhos, fotos ou pinturas. Publicar livros para o fascínio dos olhos e da alma é a nossa meta. Por isso que Toppi nos representa tão bem nessa largada: ele é o tipo de artista ao qual é impossível ficar indiferente, tal a originalidade e a beleza de sua obra. Depois de quase quarenta anos sem ter um livro publicado no Brasil, é uma verdadeira honra editar este gigante das artes gráficas por aqui.
Foi nas páginas de Sharaz-De, publicada a partir de 1979, que Toppi consolidou seu estilo no qual cada página ganha a dimensão de uma obra de arte. Sua composição, que abusa das verticais e dá protagonismo à ilustração, rompeu de tal modo com os padrões da narrativa dos quadrinhos de então que fez dele um dos precursores do que hoje chamamos de “novela gráfica”. Além disso, seus complexos jogos de claro-escuro (ou o peculiar uso das cores), o vasto repertório de texturas e a original concepção de indumentárias e cenários — que mesclam o rigor documental com a mais pura fantasia — fazem de Toppi um artista tão clássico quanto revolucionário e um dos mais cultuados mestres da narrativa gráfica mundial. Sua obra, portanto, une o que há de mais sofisticado na arte da ilustração e dos quadrinhos, como já frisamos, dois pilares dessa editora. Mas a palavra “figura” também é usada para nos referirmos às grandes personagens. “Que figura!”, dizemos daquele tipo peculiar, ou “é uma grande figura”, em um contexto, quem sabe, mais reverencial. Então quero falar da personagem Sharaz-De (ou Sherazade, como a conhecemos de As mil e uma noites). Ela, assim como nós, é a jovem narradora de histórias que não surge na melhor hora. Dizem a ela para desistir de sua ideia suicida de se apresentar ao rei assassino, assim como nos disseram para abandonar o projeto de abrir uma editora no incerto mercado editorial brasileiro, sobretudo no momento econômico pelo qual atravessamos. E, bem, é verdade que as advertências fazem todo o sentido: Sharaz-De (de fato, mas no mundo ficcional) e a Figura (metaforicamente, mas no mundo real) estão arriscando o pescoço. O que nos move adiante, enfim, é uma fé em comum: a crença no poder de nossas histórias, de nossos livros, na sua força transformadora. É isso que nos faz apostar no dia seguinte, na esperança de ter sempre um novo conto pra contar. Se bem que topar com um gênio que nos ofereça riquezas inimagináveis também não seria nada mal.
Rodrigo Rosa
Artista gráfico e editor
A larga noite
ERA UMA VEZ, UM REI SÁBIO E PODEROSO (EMBORA, SABEMOS SÁBIO MESMO APENAS DEUS, LOUVADO SEJA). ELE REINAVA SOBRE VASTAS EXTENSÕES, DESDE O RIO GOWANDAB – QUE SERPENTEIA DAS PLANÍCIES BAIXAS ATÉ OS PICOS NEVADOS DE BASHRA – PARA ONDE OS TIGRES DA HIRCÂNIA VÃO PERDER SUA COR NO INVERNO. ESSE REI TINHA DOIS FILHOS, REIS ELES TAMBÉM. OS REINOS DELES, DISTANTES UNS DOS OUTROS, SE ESTENDIAM SOBRE TERRITÓRIOS IMENSOS E ERAM POVOADOS POR GRANDES MULTIDÕES.
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SHAHRIYAR ERA O NOME DE UM DELES, EXTREMAMENTE VALENTE E DE CARÁTER MELINDROSO…
O OUTRO SE CHAMaVA SHAHZAM’AN E ELE QUERIA MUITO BEM A SEU IRMÃO. UM DIA, SHAHZAM’AN CONVOCOU O GUARDIÃO DE SEU PALÁCIO.
QUERO VER MEU IRMÃO, O REI SHAHRIYAR. PARTIREI SOZINHO. TÃO GRANDE É MINHA SAUDADE QUE NÃO TOLERAREI ATRASOS, NEM DE SERVIÇAIS, NEM DE BAGAGENS. MEU CAVALO, RÁPIDO!
O QUE DESEJA, Ó MESTRE?
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E ASSIM, SEM COMITIVA, O REI PARTIU A TODA PRESSA: MUITO VIVO ERA SEU DESEJO DE REVER SEU IRMÃO.
ORA ESSA, O REI PARTIU SEM SUA ADAGA, PRESENTE DA RAINHA QUE ELE NUNCA DEIXA PARA TRÁS.
CALE-SE, NÃO SE META NOS ASSUNTOS DO REI, SE VOCÊ PREZA POR SUA CABEÇA.
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AS SOMBRAS DAS MURALHAS DO CASTELO AINDA O COBRIAM, QUANDO O REI SE DEU CONTA DE QUE NÃO TRAZIA SUA ADAGA CONSIGO.
… PUXOU AS RÉDEAS E RETORNOU A SEU PALÁCIO, TÃO RÁPIDO QUANTO HAVIA SAÍDO.
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O REI SHAHZAM’AN ENTROU EM SEUS APOSENTOS, ENCONTROU A ADAGA E ALGO MAIS…
PRESSA DEMAIS PARA PARTIR, MEU REI, E PRESSA DEMAIS EM RETORNAR… POR TODOS OS DEMÔNIOS DO INFERNO!...
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NO PALÁCIO SE OUVIU MUITO CHORO E MUITOS GRITOS. O CARRASCO CHEGOU COM SUA ESPADA. PELA MANHÃ, SOBRE AS MURALHAS, JAZIAM DUAS CABEÇAS. NO PONTO MAIS ALTO, A DA RAINHA.
SOU UM REI RICO E PODEROSO. PORÉM, QUEM É, NO MUNDO, MAIS INFELIZ DO QUE EU?
SHAHZAM’AN RETOMOU SUA VIAGEM E O AMARGOR SEGUIA SEUS PASSOS FÚNEBRES.
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sEU IRMÃO SHAHRIYAR O RECEBEU COM GRANDE ALEGRIA, MAS RAPIDAMENTE PERCEBEU SUA MELANCOLIA.
O QUE HÁ COM VOCÊ, IRMÃO? SEU OLHAR ESTÁ DESOLADO, COMO UM POÇO SECO NO DESERTO. E A ALEGRIA DE NOSSO REENCONTRO SE DISSIPA NAS NUVENS DE SUA FRONTE. O QUE HÁ COM VOCÊ, IRMÃO?
NADA ALEGRAVA SHAHZAM’AN: NEM OS PRESENTES, NEM O ROSTO AMIGO, TAMANHA E PROFUNDA ERA SUA MÁGOA.
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SHAHRIYAR ESTAVA PROFUNDAMENTE PERTURBADO, POIS QUERIA MUITO BEM A SEU IRMÃO. ASSIM, SE MOSTRAVA BASTANTE SOLÍCITO.
TENHO UM JARDIM REPLETO DE PÁSSAROS. VÁ CAMINHAR POR LÁ, TALVEZ aí REENCONTRE A SERENIDADE.
ASSIM FEZ SHAHZAM’AN. PASSEOU LONGAMENTE PELAS SENDAS PERFUMADAS. MAS NEM ISSO APAZIGUOU SUA DOR.
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UM DIA, ELE CHEGOU A UM PONTO DO JARDIM ONDE NUNCA HAVIA ESTADO, E VISLUMBROU UM PAVILHÃO ESCONDIDO SOB AS ÁRVORES.
HAVIA UMA PEQUENA JANELA POR ONDE VIU A RAINHA, A ESPOSA DE SEU IRMÃO. E, COM ELA, UM SERVIÇAL DO PALÁCIO.
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SUA MÁGOA FICOU ENTÃO MAIS LEVE, POIS ALGUÉM NO MUNDO ERA TÃO INFELIZ QUANTO ELE.
SHAHZAM’AN, DIGA-ME, O QUE ACONTECEU A VOCÊ? POIS OS SINAIS DA DOR DESAPARECERAM DE SEU ROSTO!
É ISSO MESMO, IRMÃO, MAS LHE PEÇO: NÃO ME PERGUNTE A RAZÃO.
SHAHRIYAR PEDIU TANTO E TÃO BEM, QUE SHAHZAM’AN LHE REVELOU A VERDADE. NO PALÁCIO DE SHAHRIYAR TAMBÉM HOUVE GRITOS E LÁGRIMAS. LOGO O CARRASCO CHEGOU COM O SABRE AFIADO.
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NA MANHÃ SEGUINTE, SOBRE OS MUROS DO PALÁCIO, HAVIA DUAS CABEÇAS. BEM ACIMA, A DA RAINHA.
O REI SHAHRIYAR DESPEDIU-SE DE SEU IRMÃO E FECHOU-SE EM SEUS APOSENTOS POR UM LONGO PERÍODO. FOI AÍ QUE ELE CONVOCOU O CHEFE DE SUA GUARDA.
COMO DESEJAR, PODEROSO SENHOR. CHAMEM O ARAUTO, IMEDIATAMENTE. EIS-ME AQUI, SENHOR, QUAL É SUA VONTADE?
NO DIA SEGUINTE, O ARAUTO SURGIU NA PRAÇA DA CIDADE.
OUÇAM, OUÇAM, ESTA É UMA ORDEM DO GRANDE REI SHAHRIYAR: A CADA NOITE LHE SERÁ CONCEDIDA UMA MOÇA E O REI PARTILHARÁ COM ELA SEU LEITO. NA AURORA, QUANDO O SOL TOCAR AS PAREDES DO PALÁCIO, SUA CABEÇA SERÁ CORTADA. QUE CADA UM SE PREPARE PARA OBEDECER, VOCÊS OUVIRAM: POIS ASSIM É A VONTADE DO REI E VOCÊS NÃO TÊM NADA A ACRESCENTAR OU A REPROVAR.
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POR TODA PARTE HOUVE GRANDE AFLIÇÃO, E A INFELICIDADE ATRAVESSOU A SOLEIRA DE MUITAS CASAS ONDE HAVIA MULHERES JOVENS E BELAS.
MAS O REI NÃO QUERIA OUVIR O LAMENTO DE SEU POVO – SÓ DEUS É MISERICORDIOSO –. TODA NOITE, ELE PARTILHAVA SEU LEITO COM UMA JOVEM MULHER. ENQUANTO A AURORA ADENTRAVA OS CONFINS DE SEU REINO, A MÃO DO CARRASCO LHE RETIRAVA A VIDA.
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FOI ASSIM QUE NAS CIDADES DO REINO Nテグ SE OUVIRAM MAIS VOZES MELODIOSAS NEM PASSOS GRACIOSOS. OUVIA-SE APENAS O PRANTO DAQUELAS A QUEM A IDADE PROTEGIA.
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EM UM CANTO LONGE DALI, PARA ALÉM DOS MONTES DE BARAN-TAG, ONDE PEIXES DE ESMERALDA NADAM EM LAGOS INACESSÍVEIS, VIVIA UM NOBRE SENHOR. ELE TINHA UMA FILHA DE NOME SHARAZ-DE. GRANDE ERA A CONSOLAÇÃO QUE ELA TRAZIA A SEU PAI. MAS, UM DIA, ELA FOI PROCURÁ-LO E FALOU-LHE ASSIM:
ESCUTE, MEU PAI, EU LHE PEÇO QUE ME CONDUZA À CASA DO REI, MESMO QUE ISSO LHE CAUSE GRANDE DOR.
QUE PALAVRAS LOUCAS: SE VOCÊ VAI À CASA DELE, ELE TOMARÁ A SUA BELEZA E DEPOIS A MATARÁ.
TALVEZ ELE NÃO FAÇA DESSA FORMA, Ó PAI. EU LHE PEÇO QUE ACEITE MEU PEDIDO.
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O PAI CONSENTIU, ENFIM. E, COM A MORTE NA ALMA, ELE A LEVOU AO PALテ,IO.
QUANDO CHEGARAM, ELE SE DESPEDIU DE SUA FILHA, PENSANDO QUE NUNCA MAIS A VERIA.
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NAQUELA MESMA NOITE, SHARAZ-DE FOI CONDUZIDA AO REI, E PARTILHOU COM ELE O LEITO REAL. DEPOIS, NA NOITE AINDA PROFUNDA, ELA COMEÇOU A LHE FALAR.
MEU SENHOR, SE SEUS OLHOS VIRAM EM MIM GRAÇA, ESCUTE-ME COM BENEVOLÊNCIA, POIS LHE PEDIREI ALGO E ESPERO QUE NÃO ME RECUSARÁ.
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É MADRUGADA, SENHOR, AS FERAS NOTURNAS AINDA REINAM. A AURORA QUE ME TRARÁ A MORTE AINDA ESTÁ BEM LONGE. Ó MEU REI, CONSINTA QUE, PARA ADORNAR AS HORAS VINDOURAS, EU LHE CONTE AS HISTÓRIAS MAIS ANTIGAS E SINGULARES, ATÉ QUE O DIA LEVE A MINHA VOZ E A MINHA VIDA.
QUE ASSIM SEJA, SE FOR SEU ÚNICO PEDIDO.
EU LHE CONTAREI A HISTÓRIA DO PRÍNCIPE SUDUQWA-AL-ZAMAN E DE SEU FALCÃO. ESCUTE, Ó SENHOR.
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