As "Fake News" pouco têm que ver com as redes sociais

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ID: 77512878

03-11-2018

Meio: Imprensa

Pág: 38

País: Portugal

Cores: Cor

Period.: Semanal

Área: 16,11 x 42,95 cm²

Âmbito: Informação Geral

Corte: 1 de 1

Filipe Carrera Professor e especialista em marketing digital

FOTOS D.R.

“As fake news pouco têm a ver com as redes sociais”

Texto Carolina Reis

As fake news (notícias falsas) e o impacto no referendo do ‘Brexit’, nas eleições de Donald Trump e de Bolsonaro deixaram o mundo em alerta para o regresso do populismo e do fascismo. Há países europeus a criar novas leis, apontando responsabilidades às redes sociais por onde as falsas notícias se espalham. Por cá, o Parlamento assumiu o tema como prioritário. Filipe Carrera, especialista em marketing digital, defende que o problema não é exclusivo da internet e que só se resolve com educação para a cidadania. PP Ficou surpreendido com o impacto das fake news nas eleições? RR Não, há anos que digo que quan-

to mais aumentar a taxa de abstenção e de desinformação dos eleitores, pior será em termos democráticos. É algo que pouco tem a ver com as redes sociais. Elas tornam fácil espalhar as falsas notícias porque temos um eleitorado menos informado, que debate menos aquilo que interessa. Donald Trump foi eleito só com 19% dos votos, ou seja, controlando 10% do eleitorado é possível ganhar eleições.

PP Mas as redes sociais não têm nenhuma responsabilidade? RR O problema é que podemos cair

numa censura. Vamos pensar, por exemplo, na dimensão de uma manifestação. Se eu for do Governo ponho a circular que participaram 20 mil pessoas, mas a oposição irá dizer que foram 200 mil. A rede social apaga qual das notícias? Qual é que é falsa? Há coisas que são, facilmente, contrastáveis, outras vão ser muito mais difíceis de distinguir. E aí o papel dos líderes de opinião, dos media é muito importante. Preocupa-me que os órgãos de comunicação social tenham recursos mais reduzidos. PP Devemos exigir mais dos media? RR Sim, porque os media é que são

os profissionais de comunicação e devem ser eles quem zela pela qualidade de informação. Temos uma redução de recursos extraordinária, mas há que dizer que a culpa também é de nós, cidadãos,

FILIPE CARRERA Responsável pela pós-graduação em Marketing Digital do IPAM, tem participado em várias palestras pelo mundo sobre os desafios da tecnologia. É autor dos livros “Marketing Digital na Versão 2.0”, “Networking — Guia de Sobrevivência Profissional” e “Comunicar 2.0 — A Arte de Comunicar no Século XXI” que nos envolvemos menos naquilo que importa. Não falo só da política, um dos grandes erros é falar do desinteresse dos cidadãos só pela política e não referir que as pessoas estão desinteressadas com um pouco de tudo. Basta ver como estão as reuniões de pais, de condomínio. Pomos um grande ênfase nas redes sociais, mas é como se na prevenção rodoviária culpássemos os carros pelos acidentes e excluíssemos os humanos. PP Mas o Facebook tem anunciado medidas de controlo das fake news. RR É uma reação natural, até de

relações públicas. Na prática, se o controlo for exercido de uma forma séria entramos no campo da censura.

PP Não é eficaz controlar as páginas que disseminam notícias falsas e mensagens de ódio? RR Nunca será. Há um diferimento

entre o momento em que é colocada a desinformação e o momento em que é apagada. Entretanto, a disseminação já aconteceu e entrou por outras redes. Todos os dias estão a nascer redes para distribuir este tipo de conteúdos. Agora, nos atentados dos EUA, a rede utilizada era específica para pessoas que faziam a apologia do ódio e ataque às minorias.

TODOS OS DIAS NASCEM REDES PARA DISSEMINAR FAKE NEWS E MENSAGENS DE ÓDIO

PP Como vê o papel do Whatsapp nas eleições brasileiras, uma rede social onde não há qualquer tipo de controlo e que foi usada para disseminar fake news? RR Escalamos mais um bocado. Na

realidade brasileira, os operadores permitem que mesmo que a pessoa não tenha internet possa aceder ao Whatsapp. Parece uma questão técnica, mas é mais do que isso, torna as pessoas mais dependentes desta rede social.

PP Portugal deveria criar um crime próprio para as fake news? RR No nosso quadro legal já existe

essa possibilidade, desde que seja informação que incita ao ódio, ao terrorismo. Neste momento, o que vemos é um mundo tão polarizado onde, por exemplo, todas as notícias falsas criadas contra Trump serão verdadeiras para as pessoas que não gostam dele. E todas as notícias falsas criadas contra a Hillary Clinton são credíveis para os apoiantes de Trump. Ao não debaterem, as pessoas vão pelo caminho mais fácil, acreditar cegamente numa política de desinformação e tudo o resto é mentira. PP O Bloco de Esquerda defende que devem ser os media a desconstruir as notícias falsas. Concorda? RR Não sei se seria economicamente

viável para os media, ainda para mais num país pequeno como o nosso.

PP Acordámos tarde para este fenómeno de desinformação? RR Sim. Estamos com uma degra-

dação das nossas democracias há muitos anos. Temos de começar pelas escolas, fazer o que foi feito, e bem, com a questão da reciclagem. Começámos pelas crianças nas escolas e elas educaram os pais.

PP Corremos o risco de eleger um populista em Portugal? RR Sem sombra de dúvida. Quanto

menos debatermos as questões que importam, mais nos abstivermos, mais criamos terreno fértil para termos um extremista, seja de esquerda ou de direita, no poder. Fugimos à questão de fundo e atiramo-nos a um culpado: as redes sociais. cbreis@expresso.impresa.pt


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