ANO 4 | NÚMERO 9 | MAIO DE 2008
Arigatô, doutor! A contribuição dos descendentes japoneses para a saúde pública paulista
Entrevista:
Jairo Bouer O médico que fala a língua dos jovens
Pesquisa Ibope:
Usuários avaliam os melhores hospitais da rede estadual
ENTREVISTA | JAIRO BOUER
| Saúde São Paulo | Maio de 2008
Porta-voz da juventude Seja qual for o meio de comunicação, o psiquiatra Jairo Bouer consegue falar sobre saúde e comportamento com jovens de todas as idades Maria TereSa MoraEs
C
onsultas, palestras por todo país, artigos e colunas em jornais e revistas, programas de rádio, site na internet, blog e autor de livros. Assim é a vida do médico psiquiatra Jairo Bouer, um paulistano de 42 anos, filho mais velho de uma família de judeus, que há mais de uma década se dedica a estudar, conhecer, entender e informar jovens e adolescentes sobre saúde, comportamento, emoções e sexo. Profissional multimídia, que de forma simples e direta trata de assuntos sérios, por vezes tidos como tabus para a juventude brasileira. Talvez por isso o doutor Jairo seja considerado o amigo da galera. Em entrevista à Saúde São Paulo, Jairo Bouer fala sobre saúde, comportamento sexual, emocional e cultural dos adolescentes de nosso país.
Saúde São Paulo - Sua formação acadêmica é em psiquiatria. Em que momento você optou por direcionar a sua carreira para temas como sexualidade, comportamento e a vida sexual de jovens e adolescentes? Bouer - Uma das áreas da psiquiatria é justamente a sexualidade.
Ao final da minha formação, durante a residência do Hospital das Clínicas, participei de um grupo focado na discussão e tratamento das questões de sexualidade. Quando comecei a trabalhar na Folha de S.Paulo, quase na mesma época, em 1993, fui contratado para escrever semanalmente, além de matérias de saúde geral, uma coluna específica para adolescentes. Foi aí que tudo começou.
“NOS DIAS DE HOJE, OS JOVENS SÃO BEM MAIS INFORMADOs e CONECTADOS com o mundo real. Têm preocupaçôes mais sociais”
jado muito nesses últimos anos, muitas vezes fazendo trabalhos para escolas, prefeituras, secretarias de saúde e educação e sinto que há um envolvimento de muita gente disposta e bem preparada para discutir esse tema.
Saúde São Paulo - Como você vê o comportamento social, político e sexual do jovem brasileiro nos dias de hoje? As dúvidas e questionamentos dos adolescentes de hoje são iguais aos dos jovens dos anos 80? Bouer - Essa é uma geração mais bem informada, e conectada. E você percebe isso em diversos segmentos sociais e não apenas na classe média e alta. O jovem tem preocupações mais sociais, ambientais, de direitos individuais e coletivos. Essa talvez seja sua forma de participar mais politicamente. Do ponto de vista das dúvidas sobre sexualidade e comportamento, não acho que as perguntas de hoje são muito diferentes das últimas gerações.
Saúde São Paulo - Você acha
Saúde São Paulo - A curiosida-
que há carência de profissionais de saúde dispostos e interessados em discutir o comportamento do jovem no país. Bouer - Eu acho que há muita gente fazendo trabalhos importantes com a saúde dos jovens no Brasil. Tenho via-
de, a dúvida e os questionamentos dos jovens com relação ao sexo e as emoções são as mesmas em todos os cantos do país? Quais são as semelhanças e as diferenças da juventude brasileira
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sencadeadores e interlocutores desse processo. Os amigos são acessados quanto o assunto é sexo, mas a internet, por exemplo, é um foco habitual de procura de respostas.
O JOVEM NÃO ENXERGA OU NÃO QUER VER OS quando o assunto é sexo e relacionamento? O adolescente da periferia tem as mesmas carências de conhecimento que o jovem de elite? Bouer - Eu acho que existe uma distribuição geográfica relativamente homogênea das dúvidas, curiosidades e questões de comportamento em todos os cantos do país, principalmente nos centros urbanos. Nas cidades muito pequenas ou na área rural obviamente existem outras preocupações, muitas vezes em função da proximidade da comunidade ou da menor permeabilidade aos veículos de comunicação. Na periferia, as carências de conhecimento talvez sejam um pouco mais evidentes, mas elas são semelhantes em sua essência. O que chama mais atenção nas periferias são as precocidades, tudo parece acontecer mais rápido e mais cedo, principalmente nas famílias pouco estruturadas.
Saúde São Paulo - A sexualidade é descoberta mais cedo hoje em dia? A globalização, a tecnologia, principalmente a internet são as principais fontes de informação dos jovens ou eles ainda trocam experiências e falam sobre sexo com os amigos mais experientes? Bouer - É mais precoce a descoberta da sexualidade e, os veículos de comunicação são importantes de-
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RISCOS E OS PROBLEMAS. NA HORA “H”, é como se naQUELE MOMENTO a razão e o bom senso fossem desligados em função do prazer e da emoção
Saúde São Paulo - Em tese, todos os jovens sabem, de alguma forma, como prevenir as doenças sexualmente transmissíveis e gravidez indesejada. Por que então, em sua opinião, ainda há grande incidência de casos entre os jovens? Bouer - As maiores barreiras para o comportamento seguro são as questões emocionais, que permeiam as tomadas de decisão. “Eu sei que preciso me cuidar, mas, nesse momento, não estou a fim ou não quero usar camisinha”, ou ainda, “eu topo correr esse risco em nome do meu prazer e do meu desejo, depois eu vejo o que faço para eliminar eventuais problemas”. O jovem não enxerga ou não quer ver na hora H os riscos e os problemas. É como se naquele momento a razão e o bom senso fossem desligados em função do prazer e da emoção.
Saúde São Paulo - Qual a
Saúde São Paulo - As dúvidas,
importância da família na formação afetiva e sexual dos adolescentes? Pais jovens, que tiveram filhos solteiros, por exemplo, têm mais facilidade de falar sobre sexo com seus filhos? Bouer - Por um lado, talvez pais e mães solteiras tenham mais facilidade para falar sobre sexo, pela experiência pessoal vivida, embora não acredito que essa seja uma regra geral. Muitas famílias conseguem falar tranqüilamente sobre o tema sem ter tido esse tipo de experiência. O importante é a proximidade afetiva e a troca. Essa via de duas mãos dentro de casa (abertura para o diálogo e poder mudar a partir de novas necessidades) talvez seja a melhor ferramenta para se preparar o jovem melhor para esse mundo. Jovens que não encontram espaço para falar sobre esse assunto dentro de casa e famílias muito pouco estruturadas podem acabar dificultando a vida desse indivíduo.
angústias e problemas são diferentes entre meninos e meninas? Bouer - São similares. Logicamente ainda há um ônus e uma carga de preconceitos e tabus mais forte em cima das garotas, mas os garotos também experimentam muitas angústias nessa fase.
Saúde São Paulo As meninas de hoje ainda buscam o príncipe encantado, ou esse modelo de relação não existe mais? Bouer - Muitas ainda buscam o príncipe encantado e a relação idealizada, romântica. Elas dizem que esperam o momento certo e o garoto certo. Os rapazes são mais objetivos e, em um primeiro momento, buscam mesmo uma parceira
com quem podem começar a fazer sexo e afirmar sua masculinidade.
Saúde São Paulo - De que forma as imposições de comportamento e beleza, impostos pela mídia e as insatisfações típicas da adolescência, interferem nas relações sentimentais e sexuais dos jovens? Bouer - Muito, qualquer padrão de comportamento e beleza muito rígido é cruel. As pessoas são diferentes e, a maioria não vai alcançar aquele modelo “vendido” como ideal. Essa insatisfação permanente gera angústia, ansiedade, depressão, problemas de auto-estima, busca de compensações, entre outros. Cada um deve buscar seu caminho, seu modelo, mas isso é complicado em uma fase da vida em que você ainda sabe pouco, ainda é inexperiente.
Saúde São Paulo - Você é um profissional multimídia. De todas as atividades que desenvolve, qual a que te dá mais satisfação? Bouer - Todas. Depois de muito tempo tentando achar um caminho de satisfação profissional, sinto que o que faço hoje em sala de aula, no consultório, na internet, em rádio, em TV, nos livros, são facetas de um mesmo trabalho: tentar comunicar saúde e prevenção, não só informando, mas gerando uma reflexão, uma busca por uma postura mais ativa por parte do jovem no cuidado com ele mesmo.
emergencial pode se tornar rotineiro entre os adolescentes? Bouer - Acho que a exemplo do que ocorre na França e em outros países, a pílula do dia seguinte deveria ser de mais fácil acesso aos jovens em situação de emergência, assim como concordo com a distribuição de camisinha em ambientes em que o jovem costuma freqüentar, como clubes, baladas, escola, festivais, entre outros. Mas acho que as duas políticas devem estar associadas a um forte trabalho de prevenção. Não adianta só aliviar os sintomas e as angústias, temos que ir mais fundo nas causas, não é mesmo? Prevenção é fundamental.
Acho que algumas políticas públicas deveriam ser discutidas e ampliadas em relação a temas importantes para o jovem, como impacto do álcool, cigarro e outras drogas, a gravidez na adolescência, as diversas violências e a própria questão da prevenção em DST e aids
Saúde São Paulo
Saúde São Paulo - Como você
- Qual sua opinião sobre a pílula do dia seguinte? Você acha que esse método
vê as políticas públicas de assistência à saúde do jovem e adolescente no país? Bouer - Acho que talvez devêssemos ampliar e garantir o acesso dos
jovens aos serviços públicos de saúde. Partes de ambulatórios e postos de saúde poderiam ter serviços exclusivos para nossos jovens, onde eles pudessem ter acesso a informações, camisinha, consultas e atendimentos sem passar por constrangimentos que, muitas vezes, os afastam desses serviços. Isso já acontece em algumas cidades e esse modelo talvez pudesse ser mais socializado. Acho que algumas políticas públicas deveriam ser discutidas e ampliadas em relação a temas importantes para o jovem como impacto do álcool, cigarro e outras drogas, a gravidez na adolescência, as diversas violências, a própria questão da prevenção em DST e aids.
Saúde São Paulo - Você acha que há pouco espaço para se falar de saúde e sexualidade na TV brasileira? Bouer - Sim, acho que a TV, por ser uma concessão pública e por ter a penetração que tem nos domicílios brasileiros, deveria dedicar muito mais espaço à educação e a discussão de temas como sexualidade e comportamento.
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CURIOSIDADES | SAÚDE SÃO PAULO
HERANÇA DE A Medicina não é fruto de um
Arthur Chioramital
A
distância e a falta de comunicação entre os povos fez com que cada civilização criasse hábitos e práticas bastante específicas e individuais. Essa diferenciação permitiu o aparecimento de formas completamente diferentes de vestir, falar, comer, acreditar em um deus e, como já era de se esperar, curar as pessoas. Nem só de pílulas coloridas, injeções e cirurgias se faz a nobre arte da medicina. Antes de qualquer coisa, tire da cabeça a idéia eurocêntrica de que os primeiros médicos surgiram no velho continente. Muitos elementos da medicina moderna foram criados por civilizações mais antigas que as européias. Isso mesmo, a história da medicina ao redor do mundo é cheia de capítulos interessantes e a maioria deles foi escrito na metade oriental do planeta.
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Da Índia, vem a ciência da saúde mais antiga da humanidade. Com mais de mil anos de existência a medicina Ayurvedica prega o equilíbrio entre o corpo, a mente e o espírito. Seus conhecimentos se dividem em duas principais escolas: charaka e sushruta.
DA ÍNDIA VEIO A CIÊNCIA DA SAÚDE MAIS ANTIGA DA história da HUMANIDADE De acordo com charaka, a saúde e a doença não são predeterminadas e a vida pode ser prolongada pelo esforço humano. Sushruta define como finalidade da medicina curar as doenças do doente, proteger quem está saudável e prolongar a vida. O Ayurveda, ou conhecimento da vida (ayur = vida, veda = ciência ou conhecimento) afirma que exis-
tem três humores biológicos no nosso corpo, também conhecidos como doshas. São eles: vata, que possui o elemento ar predominante; pitta, onde o fogo é o principal; e kapha caracterizado pela água. Desequilíbrios nos doshas geram alterações patológicas no corpo físico. Assim, vata em desequilíbrio leva ao emagrecimento, debilidade, aversão ao frio, tremores, constipação, alterações no sistema nervoso, tonteira, colite, formação de gases e reumatismo. Pitta em desarmonia produz olhos e pele amarelados, fome em excesso, sede aumentada, febre, sensação de calor corporal, inflamações, infecções, azia e queimações. Kapha alterado gera fraqueza do sistema digestivo, palidez, calafrios, tosse com formação de mucosidades nos pulmões, sonolência, obesidade, hipoatividade das funções orgânicas e preguiça. Para restaurar o equilíbrio dos doshas a medicina Ayurveda utiliza uma série de tratamentos como plantas medicinais, dieta, exercícios físicos, meditação, yôga, astrologia hindu, massagem, aromaterapia, gemoterapia (tratamento com metais e gemas) cirurgia e psicologia. “Na ciência védica é muito importante que a pessoa tenha uma vida guiada pela sabedoria, que irá proporcionar um bem-estar em todos os níveis do individuo, físico, psico-emocional, social e espiritual, que é o objetivo final do Ayurveda”, afirma o Bokkulla Ramathandra
TODOS OS POVOS único país ou civilização e agrega elementos de inúmeras culturas Reddy, pesquisador da Associação Brasileira de Ayurveda. Ainda na metade oriental do mundo desenvolve-se outro conjunto de práticas milenares na arte de curar. A medicina tradicional chinesa é a denominação usualmente dada ao conjunto de práticas médicas em uso naquele país, desenvolvidas ao longo dos milhares de anos. É considerada uma das mais antigas formas de medicina oriental. Sua filosofia deriva do Taoismo e reflete a crença chinesa de que as experências humanas individuais são uma projeção dos princípios da causalidade que regem o ambiente e os corpos. Para os chineses esses princípios causais correspondem à expressão dos destinos decretados pelo céu (Tao). Ou seja, a doença é considerada uma espécie de punição divina. Entre seus princípios está o estudo da relação entre o Yin e o Yang (as duas forças complementares que compõem tudo o que existe), da teoria que relaciona as partes do corpo e os órgãos com os cinco elementos (madeira, fogo, terra, metal e água) e do sistema de circulação da energia pelos Meridianos do corpo humano. “A Medicina tem como base o reconhecimento das leis fundamentais que governam o funcionamento do organismo humano e sua interação com o ambiente segundo os ciclos da natureza. Ela procura aplicar essa compreensão tanto ao tratamento das doenças quanto à manutenção da saúde”, diz Hong Jin Pai, coordenador geral do Centro de Esstudos Integrados de Medicina Chinesa. Os chineses não foram os únicos
a acreditar que os males do corpo estavam ligados ao mundo metafísico. Egípcios e Mesopotâmicos, uns mil anos antes de Cristo, também enxergavam um lado litúrgico nas práticas médicas. Mas engana-se quem pensa que o aspecto religioso impediu o aparecimento de técnicas e medicamentos.
“aS TÉCNICAS E CONCEITOS QUE CONHECEMOS HOJE FORMAM UMA GRANDE COLCHA DE RETALHOS VINDOS DOS QUATRO CANDOS DO MUNDO”, AFIRMA lYBIO jR, DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE HISTÓRIA DA MEDICINA Os egípcios foram uns dos primeiros povos a registarem por escrito seus conhecimentos médicos e farmacológicos. Isso permitiu a fusão e o acúmulo de informações sobre ervas e suas aplicações medicinais, além de possiblitar o desenvolvimento de práticas e instituições que, não só resistiram à passagem do tempo como também se espalharam para o resto do mundo. “A biodiversidade da savana e da selva permitiu aos egípcios corelacionar doenças com peçonhas e vermes, originando desde produtos anti-sépticos, que se transformaram em culinários, até o consumo de subprodutos animais, como o
mel, o leite e o sangue. Além disso, o atendimento clínico socializado, a vigilância sanitária, a cirurgia, a farmacoterapia, o hospital e o ensino universitário encontrados hoje podem ser identificados, em espantosa contemporaneidade, na medicina egípcia”, afirma João Amilcar Salgado, pesquisador do Centro de Memória da Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. A medicina só vai se dissociar da religião com a entrada dos gregos no jogo. São eles que criam o conceito de medicina como é conhecido hoje. A expansão da civilização helênica, seguida pelo largo alcance do império romano, introduziu o conceito ocidental de doença e cura em inúmeras partes do mundo e possibilitou sua fusão com as tradições e práticas locais. Ocidentais ou orientais, novas ou velhas, globais ou locais. As práticas que compõem e possibilitam o nobre ato de curar foram construídas ao longo dos séculos. Com o tempo, elas se espalharam por diversas regiões e foram adquirindo a cor local. Tradições se somaram às descobertas e possibilitaram o surgimento de inúmeros avanços. “A medicina, como todas as outras ciências, não é fruto de um único povo ou civilização. Ela agrega elementos de inúmeras culturas e carrega consigo a herança de muitos povos. As técnicas e conceitos que conhecemos hoje formam uma grande colcha de retalhos vindos dos quatro cantos do mundo”, afirma o Professor Lybio Jr., Presidente da Associação Brasileira de História da Medicina.
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MATÉRIA DE CAPA | SAÚDE SÃO PAULO
Medicina à m
Na comemoração dos 100 anos da imigração japonesa, histórias de d
Denilson Oliveira
E
m 28 de abril de 1908, no porto de Kobe, no Japão, cerca de 23 famílias embarcavam na maior viagem de suas vidas. No oriente, deixavam as lembranças da terra natal e rumavam para o outro lado do mundo, com destino ao Brasil. Após 52 dias cruzando oceanos e passando por uma dezena de portos, 782 pessoas desembarcavam no cais de número 14 do porto de Santos. Na ocasião, um repórter do jornal Correio Paulistano descrevia o acontecimento: “...Nestas suas bagagens trazem as roupas indispensáveis e objetos de uso diário como pasta para dentes, um frasco de conservas, um de molho para temperar comida, uma ou outra raiz medicinal, as indispensáveis e esquisitas travesseiras, pequeninas e altas, de madeira forrada de veludo ou de bambu fino, flexível; cobertores, acolchoados, ferramentas pequenas (por sinal que as de carpinteiro são muito diferentes das nossas...)”. Mas não era só isso que esses imigrantes tinham na bagagem. Eles também traziam a esperança de uma vida nova, após o Japão enfrentar anos de dificuldade
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econômica com o fim da guerra contra a Rússia, em 1905. Como a vinda dessas famílias era parte de um acordo de imigração feito entre o Estado de São Paulo e o governo japonês (na época o Brasil sofria uma carência de trabalhadores rurais, uma vez que o governo italiano proibiu a imigração de sua gente subsidiada pelos paulistas), da Baixada Santista seguiram para a Hospedaria de Imigrantes, na bairro do Brás, na Capital. De lá, foram encaminhados para centenas de fazendas de café no interior. A partir daí, começaram a traçar seus destinos na nova terra prometida.
“Temos como princípio os valores, O respeito pelas pessoas e muitA dedicação em tudo o que É FEITO por nossos pacientes”, Helena Sato Hoje, 100 anos depois, de simples trabalhadores da lavoura, os descendentes desses primeiros imigrantes estão presentes em diversas áreas. Da engenharia, passando por outra dezena de profissões, eles são destaques. Na saúde, não poderia ser diferente. “Talvez muitos japoneses se destaquem em suas profissões porque temos como princípio os valores, respeito pelas pessoas e muito dedicação em tudo o que fazemos”, diz Helena Sato, pediatra e coordenadora de imunização da Secretaria Estadual de Saúde.
Formada pela Faculdade de Medicina do ABC, essa sansei (neta de japoneses) conta que sua família, mesmo não preservando todas as tradições da cultura nipônica no dia-a-dia, exigia que estudar e fazer uma boa carreira eram uma condição: “Meus pais sempre diziam sobre a importância disso. Ter uma profissão era uma forma de inserção e sobrevivência numa sociedade, num país com uma cultura e costumes diferentes e muito distante da sua terra natal.” Yassuhiko Okay, vice-diretor da Fundação Faculdade de Medicina da USP, também aponta a questão da responsabilidade para o sucesso dos descendentes na área da saúde. “Minha família sempre incentivou isso em nosso caráter. Aprendi que ser responsável é estar sempre presente, de assumir e cumprir os compromissos. Hoje a questão do dever é muito forte dentro de mim, e isso reflete em minha profissão”, diz. Assim como a história de Helena Sato, sua colega de profissão, Okay conta que seu pai valorizava os estudos. “Mesmo não sendo uma pessoa letrada ele dizia: Eu trabalho e vocês vão à escola”, diz o pediatra, que orgulha-se em ser o primeiro filho de japoneses a ocupar o cargo de professor titular em pediatria na USP. Além disso, ele afirma que muitos princípios da medicina praticada no Japão já foi encorporada em muitos tratamentos, não só no Brasil, mas em outros países também.“Nas faculdades, somos formados a partir dos fundamentos da medicina alopática. Mas hoje os tempos são outros e com o tempo descobriu-se a importâncias de outras medicinas, principalmente a oriental”. Como
oda oriental
descendentes que dedicaram seus trabalhos à saúde pública paulista ção e determinação típicas dos orientais. Mesmo de família simples, seu pai era um corretor, o rapaz era considerado um prodígio: tinha uma boa formação cultural, editava um jornal falava inglês fluentemente, algo raro entre os jovens de seu tempo. Naquela época, as especialidades na área médica eram muito restritas. Mesmo assim, o recém-formado médico, especilizouse em cirurgia. O médico não se destaca somente em sua área de formação. Como era tenente formado pelo Centro de Preparação dos Oficiais de São Paulo (CPOR), Udihara foi convocado a representar o Brasil durante a Segunda Guerra Mundial. No campo de batalha, ele não exerceu sua função
Arquivo/FMUSP
exemplo, ele cita terapias usadas para se combater o estresse cotidiano, como a meditação e a acupuntura (essa última utlizada como auxiliar em outros diversos tratamentos). Para se formar como médico, deixou a cidade de Catanduva, e veio para São Paulo. O curso foi concluído em 1964. Naquele ano, ele garante que dos 80 alunos formados, nem 10% era de descendentes japoneses. “Mas se olharmos a quantidade de estudantes de medicina vindos de famílias orientais desde o primeiro japonês a se formar como médico no Brasil, esse número cresceu bastante”, afirma. O primeiro estudante Quando fala no primeiro descendente a concluir o curso de medicina, Okay se refere a Massaki Udihara, que em 1939 formou-se pela 22ª turma da Faculdade de Medicina da USP. Udihara é um exemplo da dedica-
Udihara: o primeiro a se formar
de médico, mas sim de combatente. Sua experiência foi toda detalhada em um diário e seus relatos deram origem ao livro “Um Médico Brasileiro no Front”, lançado pela Imprensa Oficial em 2002. “Ele abriu as portas para todos nós”, diz Shinichi Ishioka, da Associação dos Antigos Alunos da Faculdade de Medicina da USP. Ao lado do médico Itiro Suzuki, eles lançaram um livro em comemoração aos 100 anos da imigração japonesa, reunindo histórias sobre a passagem dos descendentes do Kasato Maru pela instituição. A publicação traz dados sobre todos os 1.291 estudantes que se formaram depois Udihara e também mostra a
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Helena Sato: os avós vieram da lavoura para cidade
evolução do número de japoneses nas salas de aula da faculdade. De 23, entre 1939 e 1959, a 259 entre 2000 e 2007. Além disso, traz a história de alguns estudantes ilustres, como Isao Udihara, irmão de Massaki, formado em 1945, e Tidu Nomiyama, primeira japonesa a receber o diploma de médica, um ano antes. “Outro dado curioso que observamos durante nossa pesquisa foi como o perfil desses jovens foi mudando ao longo do tempo. De nomes totalmente japoneses no início, hoje temos misturas bem brasileiras, como João da Silva Oyama”, brinca Suzuki. A saúde dos imigrantes Desde a chegada dos primeiros japoneses ao Brasil, os problemas de saúde já estavam entre as principais dificuldades enfrentadas por eles. “As condições de higiene e saúde não eram as melhores no navio que os trouxe desde o Japão”, diz Midori Kimura Figuty, pesquisadora do Memorial do Imigrante. Diversos relatos também ilustram essa situação. Segundo o diário de bordo de Ryu Mizuno, um dos organizadores da viagem, era comum os imigrantes sofrerem de mal estar generalizado. “Tudo em conseqüência dos fortes ventos que faziam o navio jogar”, dizia ele. Mas além dos casos de enjôo, comum a longas viagens de navio, os passageiros do Kasato Maru também sofriam com a falta de higie22 | Saúde São Paulo | Maio de 2008
Itiro Suzuki e Shimichi Ishioka: estão editando um livro sobre os descendentes de japoneses na Faculdade de Medicina da USP
ne da embarcação, além de casos de desidratação, infestações de piolho e também beribéri. Ainda de acordo com a pesquisadora, apenas um médico foi designado para cuidar de tantos passageiros durante todo o trajeto até o Brasil. “Seu nome era I.Iwama, e fazia parte da tripulação do navio. Ele não desembarcou em Santos e desde então não se teve mais notícias sobre ele”, afirma.
Durante a viagem imigrantes sofreram com a falta de higiene da embarcação e os constantes enjôos, além de casos de infestações de piolhos e também beribéri Outro dado curioso é que o Kasato Maru, antes de fazer a histórica viagem, era um navio-hospital russo, aprisionado em Port Arthur, na Austrália, após o conflito entre Japão e Rússia. Helena Sato lembra da dificuldade enfrentada por seus avós, quando chegaram do Japão no início do século 20. Encaminhados para uma fazendo no interior, eles fugiram para San-
tos e em seguida para o Rio de Janeiro. Lá, a avó paterna da pediatra foi babá e também trabalhou numa fábrica de tecidos. Já o avô, exercia a função de mecânico de barcos. Depois disso o casal se mudou para São Paulo, e, no bairro de Itaquera, tiveram frutas e criavam galinhas. “Mesmo com o sustento garantido, lembro da minha avó dizendo como era difícil o acesso aos médicos. Muitas vezes, tinham que tratar casos febris com compresas e chás caseiros.” Para Shinichi Ishioka a dificuldade de comunicação era um dos principais obstáculos enfrentados por esses japoneses. Foi aí que a colônia se viu obrigada a trazer médicos do Japão para cuidar dos colonos doentes. “Mas como o diploma expedido do outro lado do mundo não era válido aqui, muitos tiveram que fazer a faculdade novamente no Brasil.” Entre os principais problemas enfrentados por aqueles que trabalhavam nas lavouras de café estavam: a precariedade das condições em que eram obrigados a viver e as picadas de animais peçonhentos, como cobras e aranhas. Diante dessa situação, a comunidade japonesa no Estado, através da Sociedade Japonesa de Beneficiência no Brasil, passou a arrecadar fundos e, em 1933, durante a comemoração dos 25 anos de imigração,
O corpo de enfermagem do hospital Sta. Cruz inaugurado pela colônia japonesa em 1939
foi lançada a pedra fundamental do Hospital Santa Cruz, no bairro da Vila Mariana, na Capital. Até o imperador do Japão colaborou para a construção do edifício. Primeiro empreendimento nipobrasileiro antes da Segunda Guerra Mundial, o hospital abriu suas portas em 29 de abril de 1939. Entre os imigrantes, era carinhosamente chamado de “nihon niyoin” (hospital japonês). Considerado referência em cirurgias e com uma das melhores escolas de enfermagem do início dos anos 40, o Santa Cruz passou por uma intervenção federal a partir de
fevereiro de 1942. “Como o Japão fazia parte dos países do Eixo, os dirigentes brasileiros tomaram a unidade, assim como aquelas mantidas por alemães e italianos”, conta Paulo Yakota, presidente do Hospital Santa Cruz. Felizmente, a intervenção terminou em e novembro de 1944, meses antes o fim do conflito. Aliás, dessa época tensa, Yassuhiko Okay se lembra muito bem. “Durante a guerra, minha família morava em Catanduva. Eu me recordo que tínhamos um rádio e nossa casa foi invadida pela polícia. Eles levaram o aparelho, porque o governo brasileiro não queria que escutássemos as notícias sobre os países do Eixo. Também sofríamos muito pre-
conceito durante esses períodos.” Passado o sufoco, ele garante que não guarda mágoas e até assimilou o costume brasileira de miscigenação. “Eu sempre me enturmei com outras culturas. Prova disso é minha filha, uma loira com traços japoneses, já que minha mulher é de origem portuguesa e italiana”, brinca.
Yassuhiko Okay: sofreu na época da Segunda Guerra
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