ANO 3 | NÚMERO 6 | OUTUBRO DE 2007
Cuidados Essenciais Como lidar com o sofrimento
Entrevista:
José Osmar Medina O Médico que mais faz transplantes no país
Comida de Hospital: Com gosto de quero mais
MATÉRIA DE CAPA | SAÚDE SÃO PAULO
“Médicos de brincadeirinha” estão cada vez mais presentes nos hospitais públicos. São os “Doutores da Alegria”. A missão? Levar felicidade para pacientes que convivem com a dor e sofrimento e necessitam de carinho e atenção, fundamentais no processo de recuperação. E a revista Saúde São Paulo enviou a repórter Sofia Benini para acompanhar um dia na vida destes profissionais do riso. SOFIA BENINI
N
a enfermaria de pediatria do quarto andar do Conjunto Hospitalar Mandaqui, tudo o que se via eram olhinhos abertos, curiosos e cheios de atenção, que se pudessem expressar por palavras, perguntariam: Que doutores são esses que se vestem estranho, têm nariz vermelho e tocam violão? Que doutores são esses que não trazem remédios, curativos, nem injeções? Na verdade, o que esses doutores trazem é a alegria, não tem receita nem contra-indicação, mas também ajuda a curar muitos problemas. Os “Doutores da Alegria” chegaram e o espetáculo está começando. Numa manhã de quinta-feira, após passar por rigorosa inspeção dos “doutores besteirólogos” - como os Doutores da Alegria gostam de ser chamados - , o pequeno Richarte descobriu que seu primeiro diagnóstico (pé quebrado) estava inteiramente equivocado. O garoto de 10 anos sofria mesmo era de chulé. O tratamento? Imersões diárias do pé em um balde de cândida, que foram devidamente repassados à sua mãe, Alessandra, que
limpava as lágrimas de tanto rir. Essa foi apenas a primeira de uma série de visitas que Montanha (Fernando Paz), Lola 20 | Saúde São Paulo | Outubro de 2007
(Luciana Viacava) e Bife (Juliana Balsalobre), os “Doutores da Alegria”, realizaram numa maratona de quatro horas e meia, que acontece todas terças e quintas-feiras no hospital Mandaqui. As visitas são feitas na enfermaria de pediatria, no Pronto Socorro Infantil, na Retaguarda (onde as crianças têm de ficar afastadas por conta de doenças contagiosas) e na UTI infantil. Os palhaços caminham de leito em leito, paciente por paciente, cada um com uma brincadeira diferente. Para tanto, fazem uso dos mais diversos artifícios: chocalho em forma de banana, espumas de sabão, adesivos coloridos, buzina, batuque, tartaruga de pelúcia, violão e mais tantos outros segredos escondidos por detrás da imaginação desses três artistas formados com especialização na linguagem do palhaço. O improviso é a palavra chave do trio. Geralmente, uma brincadeira é proposta por um dos três e logo a idéia é abraçada pelos outros e desenvolvida aos poucos, dependendo da abertura e reação do paciente. Como não utilizar o improviso quando, por exemplo, a criança abre um grande berreiro ao ver os “Doutores” chegando? Foi o que aconteceu em nossa segunda visita, onde o garoto de dois anos mostrou da maneira mais clara que não estava para brincadeiras.Chorou com toda sua força.“Palhaços em apuros”, definiu Montanha, passando
A arte
para o próximo leito. “A gente não pode invadir o ambiente e propor uma brincadeira. O processo tem que ser feito aos poucos, precisa haver uma abertura e vontade por parte da criança”, explica Lola, sobre situações como essa. Mas a maratona precisa continuar. Muitos pacientes, pequenos e grandes, aguardam ansiosos a visita dos “médicos de brincadeirinha”, que não encontraram tanta dificuldade na visita seguinte. Matheus, que estava internado por causa de um ferimento no braço, assim que viu os palhaços começou a pular e a estourar as bolinhas de sabão que os “Doutores” assopravam para “dar banho” no menino. Montanha logo pegou seu violão e Matheus dava o tom na composição da música. Em momentos como esse, pode-se dizer que o trabalho de um “Doutor da Alegria” é fácil, afinal a linguagem da brincadeira é simples, e que criança não quer brincar? No entanto, os “médicos besteirólogos” têm que lidar com alguns fatores que afastam a criança de qualquer diversão. Frequentemente, elas estão com dor ou abaladas com o impacto da medicação, e uma simples brincadeira representa um grande esforço
de fazer sorrir
para quem só quer descansar. “Às vezes, realmente, você está numa situação em que a criança está com muita dor e não tem o que fazer. O melhor é não forçar ou simplesmente não fazer nada. Não há uma regra”, diz Bife. Anderson passava por essa situação. Encolhido na cama e agarrado às mãos de seu pai, o pequeno de sete anos não chorou nem fez cara feia, mas as brincadeiras não surtiam efeito. Os palhaços tentaram. Conversaram com ele, fizeram piadas, mas por fim resolveram ir embora, ao som de uma música lenta, entoada pelos três. E foi assim, com música, que João Victor, do leito ao lado, foi recebido pelos palhaços. Sob efeito de forte
medicação, qualquer brincadeira ou palhaçada feita pelos “Doutores da Alegria” seria em vão. Sentado com o amparo da mãe, que lhe sussurrava ao ouvido que aqueles eram palhaços, que estavam ali para brincar, aos poucos e muito lentamente João Victor começa a mexer a cabeça no ritmo da música de Montanha. Seus olhinhos eram vagos e distantes, seu corpo era fraco e seus sentidos comprometidos pela medicação, mas João Victor provou que não há barreiras quando se trata de manifestar alegria. E foi com a cabeça que ele mostrou seu mais sincero sorriso, dando mais um forte motivo para os palhaços continuarem seu trabalho. E o trabalho seguiu. Ao sair da enfermaria, o trio segue para sua próxima parada. Mas as palhaçadas não param pelo caminho. Por onde passam, os “Doutores” levam alegria. Seguranças, faxineiros, visitantes, médicos, secretárias, não importa. Quem cruza o caminho deles, entra na brincadeira dos “doutores besteirólogos”. Enquanto esperava o elevador no terceiSaúde São Paulo | Outubro de 2007 | 21
ro andar, Matilde Soares, que visitava seu sobrinho no hospital, se divertiu com as brincadeiras dos palhaços. “Hospital é um lugar meio pesado, onde pessoas estão doentes, mas quando tem alguém que traz diversão e faz a gente dar risada, tudo fica melhor. Acho ótimo como o ambiente muda”, diz. A dona de casa Joana Moraes também concorda. Ela acompanhava a mãe e conta que é a segunda vez que vem ao hospital e encontra os palhaços.“Eu acho muito divertido. Eles brincam com todo mundo, fazem a gente dar risada e esquecer, pelo menos por um tempinho, que estamos aqui
para tratar de coisa séria”, diz Joana. Próxima parada: Retaguarda, um prédio mais afastado onde ficam os pacientes com doenças contagiosas. Lá, as crianças estão mais debilitadas
e os “Doutores”, percebendo a fragilidade dos pacientes, fazem uma visita rápida, mas que serviu para descontrair principalmente as mães, que passam o dia todo ao lado dos filhos. “O trabalho dos ´Doutores da Alegria´ não é só para crianças, mas é também para as mães, funcionários e acompanhantes, que muitas vezes também estão tensos e precisam de uma relação diferente, mais positiva”, diz Lola. Depois de um rápido lanchinho, finalmente chega a hora que Lola, Bife e Montanha tanto esperaram: a UTI pediátrica. Para eles, a visita ao local é sempre especial, pois é lá onde há quase três anos mora um antigo paciente e amigo dos palhaços. Mateus sofreu um
atropelamento quando tinha dois anos de idade. Lesionou a medula na região cervical e ficou tetraplégico. Desde então, a UTI pediátrica do Hospital Mandaqui se tornou seu novo lar. E os Doutores da Alegria, seus grandes amigos. Naquele dia, Mateus completaria cinco anos de idade e os palhaços preparavam uma surpresa para o garoto, com balões coloridos e muita palhaçada. O trio estava ansioso, com as bexigas nas mãos e pronto para a festa começar, quando um recém-nascido que estava na UTI pediátrica sofreu uma parada cardíaca, requisitando atendimento de seis profissionais da sala. Montanha entra na UTI para ver como estava a situação, e volta desanimado. “Os médicos pediram pra gente não entrar. Podemos atrapalhar”. Lola, que ainda segurava as bexigas nas mãos, sugere: “Vamos pintar o rosto de um palhaço em três bexigas para Mateus saber que estivemos aqui”. E assim termina a jornada de um dia de trabalho dos “Doutores da Alegria”. Ossos do ofício de quem escolhe como profissão trazer alegria para quem luta contra tristezas. Para momentos como esse que eles recebem treinamento constante. Sabem que a alegria não traz a cura, mas ela é capaz de mostrar que a vida sempre pode ser mais bonita e melhor, e o bom humor é um caminho. “Nossa função não é salvar vidas. É dar uma visão da vida diferente para quem está num leito de hospital lutando para viver”, finaliza Lola.
COMO FUNCIONAM OS “DOUTORES DA ALEGRIA” “Doutores da Alegria” é uma organização sem fins lucrativos que recebe doações de empresas que comungam com a missão de levar alegria através da arte do palhaço. Ela existe desde 1993, quando o fundador, Wellington Nogueira, voltou de Nova Iorque, nos Estados Unidos, deslumbrado com o que conheceu por lá junto do grupo Clown Care, com que trabalhou por três anos e
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inspirou o jovem ator a trazer a filosofia para o Brasil. Hoje, os “Doutores da Alegria” contam com 50 palhaços que atuam em 19 hospitais públicos espalhados por São Paulo, Recife e Belo Horizonte. Apesar do trabalho dos artistas não ser voluntário – eles recebem pelo que fazem -, o custo para os hospitais que os recebem é zero.
Hunter “Patch” Adams não apenas serviu como mote para o famoso filme “Patch Adams – O amor é contagioso”, interpretado pelo ator americano Robin Williams. Ele também idealizou um novo tratamento de saúde incorporando risada, bom humor e criatividade no processo de cura. A história contada no filme é verdadeira. Patch Adams era estudante de medicina da Universidade de Virgínia, Estados Unidos, quando decidiu montar uma clínica com um grupo de amigos, onde prestaria atendimento gratuito à população. Sua visão de um atendimento médico ideal vai muito além do que
simplesmente implantar o bom humor na relação médico-paciente. Patch Adams visualiza uma espécie de comunidade, onde os pacientes recebem tratamento gratuito, e em troca ajudam com o que sabem fazer. Depois de nove anos de clínica, a maior parte dos funcionários quis sair, por não receberem retorno financeiro. Patch Adams continuou com o trabalho por mais três anos, até perceber que teria de levantar fundos para seguir com seu projeto. A saída foi levar sua história ao conhecimento do mundo. E foi com o filme “Patch Adams – O Amor é Contagioso” que o mundo conheceu a história do
médico sonhador. Fundado por Adams, o Instituto Gesundheit (saúde, em alemão) hoje tem uma fazenda de 317 acres no Condado de Pocahontas, West Virginia, Estados Unidos, onde ele pretende construir seu hospital dos sonhos e por em prática seus conceitos de humanização e criatividade. Além de palestras que Patch Adams realiza por muitos países, sua equipe de clowns (palhaços) também viaja o mundo fazendo trabalhos humanitários em comunidades carentes ou em guerra.
Momentos de alegria durante visita feita pelos Doutores no Hospital Mandaqui Saúde São Paulo | Outubro de 2007 | 23