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Opinião, Miguel Vassalo

Opinião

Miguel Vassalo

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COuNTRY MANAGER AuTOROLA

Automóvel: um computador com rodas

Ainda a braços com os enormes desafios causados pela pandemia, a indústria automóvel enfrenta agora um novo obstáculo. A falta de semicondutores está a impactar a produção automóvel em todo o mundo, colocando em causa a recuperação do sector. Ironicamente, trata-se de pequenas peças, insignificantes em tamanho, mas que, sem darmos por isso, são centrais na nossa vida e essenciais para o funcionamento de um automóvel moderno.

A luta que se verifica no terreno para atender os pedidos dos consumidores é, em si, intrinsecamente uma boa notícia. Após a súbita travagem a fundo durante os primeiros dias de confinamento, contrariando algumas previsões, a procura deu sinais de vida ainda durante o último trimestre de 2020. No entanto, neste contexto, o esforço pela recuperação das vendas perdidas no último ano leva os fabricantes a efectuar atualmente uma tremenda ginástica. Algumas das abordagens relatadas passam por parar temporariamente a produção de alguns modelos e versões, priorizando os que geram maior rentabilidade, ou até construir automóveis incompletos, para colocar em parque, à espera de poder incorporar mais tarde os componentes em falta.

A pandemia tem trazido enormes constrangimentos às cadeias de abastecimento mundiais, afetando a necessária fluidez dos mais diversos tipos de matérias-primas, impactando a capacidade produtiva de várias indústrias e a automóvel não é exceção. O mundo está à beira da quarta revolução industrial. Conceitos como a Internet das Coisas (IoT – Internet of Things) e tecnologias como a Inteligência Artificial e o 5G vão fazendo o seu caminho a passo acelerado, pelo que a escassez de semicondutores tem particular relevo e causa grande sobressalto.

porque faltam chips?

Várias razões têm sido apontadas. A incapacidade de os fabricantes de semicondutores darem resposta pronta a uma flutuação da procura de tamanha amplitude é uma delas (um desafio clássico de logística). Recorde-se que a ruptura na procura de automóveis e o encerramento de fábricas levou a uma corrida ao cancelamento de encomendas de peças, nomeadamente chips. E agora, os tempos de produção de chips não conseguem acompanhar a rápida retoma, uma situação que se revela incompatível com o modelo de produção just in time amplamente adoptado pela indústria automóvel. Outros dizem que os fabricantes de semicondutores estão a dar prioridade a outras indústrias, nomeadamente fabricantes de smartphones, consolas de jogos e outros equipamentos eletrónicos mais lucrativos, o que parece ser naturalmente plausível, uma

Os tempos de produção de chips não conseguem acompanhar a rápida retoma, uma situação que se revela incompatível com o modelo de produção ‘just in time’ amplamente adotado pela indústria automóvel

vez que estes tiveram uma procura acrescida durante os vários períodos de confinamento. Outros ainda, apontam para a deslocalização das fábricas de semicondutores para a Ásia, concentração da produção em poucos players como a TSMC de Taiwan, ou até acidentes e condições climatéricas adversas que afetaram, um pouco por todo o mundo, grandes centros de produção.

Mas a não ser que o leitor trabalhe numa fábrica de automóveis e esteja diretamente envolvido no desatar deste complexo nó e a ter de lidar com o que podemos chamar uma tempestade perfeita (pandemia global, disrupção da cadeia de abastecimento e tensões geopolíticas), saber qual é exatamente a causa não será muito relevante. Até porque, provavelmente, a resposta contém genericamente um pouco de cada uma e o desfecho neste momento parece incerto. Durará esta situação mais um mês ou um ano? Contudo, para todos os outros, é um excelente pretexto para reflectir sobre as mais profundas implicações do sucedido e colocar em perspetiva o que pode vir a seguir.

O automóvel como peça de um novo ecossistema de mobilidade

A indústria automóvel, um dos marcos da segunda revolução industrial, é centenária e em larga medida epicentro de grandes inovações, quer sejam no âmbito da teoria da gestão (produção em série, Kaizen, etc.), como na mecânica e termodinâmica. Com o tempo, as partes mecânicas que constituem um automóvel têm vindo a acompanhar tangencialmente a terceira revolução industrial. Os motores de combustão interna, transmissões, travões, etc., começaram a ser controlados por uma infinidade de sensores e atuadores, geridos por centenas de pequenos chips. Não será, assim, surpresa o que está a suceder, uma vez que hoje em dia aspetos como o ambiente, segurança e conforto estão em larga medida dependentes destes componentes eletrónicos.

À medida que a indústria automóvel prossegue o caminho da electrificação e persegue a visão de veículos partilhados e autónomos, aproxima-se a passos largos de participar ativamente na quarta revolução industrial. A complexidade insustentável gerada pelas centenas de chips, apenas inteligentes o suficiente para desempenhar a sua função, sem grande capacidade de comunicação entre eles, começa a dar lugar à incorporação de ainda mais tecnologia, onde a adoção de um computador central (um grande cérebro) permite colocar todos os componentes do automóvel a falar entre si e, mais importante que tudo, a comunicar bidireccionalmente com o mundo à sua volta.

Neste âmbito, a Tesla foi mais uma vez uma das pioneiras nesta matéria, substituindo muitos desses chips por poucos e mais poderosos computadores, permitindo actualizações remotas como nos telemóveis e a ativação a pedido de determinadas funcionalidades (mais autonomia, condução autónoma, etc..).

Como o académico japonês, Fumio Kodama, referiu recentemente, “o automóvel, originalmente inventado como um meio de transporte isolado vai renascer como um elemento de um sistema de transporte inteligente”. Ou

A indústria automóvel passa a estar mais dependente do software do que do motor de combustão interna e partes mecânicas clássicas e será o software o principal gerador de valor no portefólio de desenvolvimento de produto dos fabricantes

seja, como mais uma peça no futuro ecossistema da Internet-das-Coisas, pilar da quarta revolução industrial.

Esta é a mudança de paradigma que vivemos. A indústria automóvel passa a estar mais dependente do software do que do motor de combustão interna e partes mecânicas clássicas e será o software o principal gerador de valor no portefólio de desenvolvimento de produto dos fabricantes. Veja-se a preponderância que a eletrónica já representa num atual veículo eléctrico.

Em suma, o automóvel está a transformarse num aparelho eletrónico e os fabricantes de automóveis em empresas de alta tecnologia. A atual crise no fornecimento de semicondutores apenas sublinha as dores e desafios da transformação em curso; no entanto não coloca em causa o que parece ser um processo de mudança irreversível. Jim Adler, diretor-geral da Toyota AI Ventures, diz com graça o que penso ser uma boa síntese: “o mundo está a ser comido pelo software. Os automóveis são os próximos na ementa”.

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