Revista Médica de Minas Gerais

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Revista Médica de Minas Gerais

25/4 volume 25 • número 4

Outubro a Dezembro de 2015 issn 0103-880 X e-ISSN 2238-3181

RMMG

Revista Médica de Minas Gerais

volume 25 • número 4

Realização Outubro a Dezembro de 2015

MAIS: - Depressão em Estudantes de Medicina - Aspectos éticos do nascimento no limite de viabilidade

issn 0103-880 X

a rmmg é resultado da parceria entre as seguintes Instituições

- Pneumonia associada à ventilação mecânica como indicador de qualidade e segurança em saúde - Comprometimento hepático clínico e ultrassonográfico em crianças com toxocaríase

e-ISSN 2238-3181

- Portadores de doença renal crônica em fase produtiva - Problemas gestacionais de alto risco comuns na atenção primária

Surto de microcefalia no Brasil


Expediente

Corpo Editorial EDITOR GERAL

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Pediatria Ennio Leão Faculdade de Medicina da UFMG Belo Horizonte – MG, Brasil

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Saúde Mental

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Nicolau Fernandes Kruel Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e UNISUL Florianópolis. SC – Brasil

Geraldo Magela Gomes da Cruz Faculdade de Ciências Médicas de MG Belo Horizonte – MG, Brasil

Nilson do Rosário Costa Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz Rio de Janeiro, RJ – Brasil

Giselia Alves Pontes da Silva Centro de Ciências da Saúde da UFPE Recife – PE, Brasil

Orlando da Silva Department of Paediatrics, UWO Neonatal Intensive Care Unit London, Ontario, Canadá

Henrique Leonardo Guerra PUC Minas Belo Horizonte – MG, Brasil

Paulo Roberto Corsi Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de SP São Paulo, SP – Brasil

Humberto Corrêa da Silva Faculdade de Medicina da UFMG Belo Horizonte – MG, Brasil

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Ruy Garcia Marques Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro – RJ, Brasil

José da Rocha Carvalheiro Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto/USP São Paulo, SP – Brasil

Sandhi Maria Barreto Faculdade de Medicina da UFMG Belo Horizonte – MG, Brasil

Leonor Bezerra Guerra Instituto de Ciências Biológicas da UFMG Belo Horizonte – MG, Brasil

Sérgio Danilo Pena Instituto de Ciências Biológicas – UFMG Núcleo de Genética Médica – GENE Belo Horizonte – MG, Brasil

Luiz Armando Cunha de Marco Faculdade de Medicina da UFMG Belo Horizonte – MG, Brasil

William Hiatt Colorado Prevention Center Denver, Colorado, USA


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editorIAL

SURTO DE MICROCEFALIA NO BRASIL* DOI: 10.5935/2238-3182.20150109

O Ministério da Saúde declarou, em novembro de 2015, estado de emergência sanitária nacional, devido a um surto em Pernambuco de neonatos com microcefalia, com o registro de 268 casos. O valor era muito superior à média do período 2010-2014: nove casos por ano. O número cresce de forma alarmante, sugerindo que poderá haver milhares de crianças afetadas. De acordo com o último Informe Epidemiológico sobre Microcefalia, até 19 de dezembro de 2015 foi notificado o total de 2.782 casos suspeitos de microcefalia relacionada à infecção pelo vírus Zika, identificados em 618 municípios distribuídos em 20 unidades da federação. Entre o total de casos, foram notificados 40 óbitos suspeitos. As unidades da federação com maiores incrementos na prevalência de microcefalia ao nascer são Pernambuco, Sergipe, Paraíba, Maranhão e Piauí, com incrementos variando de 11,8 a 27,4 vezes a média registrada para o período de 2000 a 2014. Em Minas Gerais, 55 casos suspeitos de microcefalia relacionada ao vírus Zika estão sendo investigados. A microcefalia tem sido associada a uma série de fatores, desde desnutrição da mãe e abuso de drogas até infecções durante a gestação, como rubéola, toxoplasmose e citomegalovírus, entre outras. Uma variedade de anormalidades e síndromes metabólicas e/ou genéticas, agressões ambientais e causas ainda desconhecidas podem afetar o desenvolvimento do cérebro e se associar à doença. Embora as investigações não sejam conclusivas, a principal suspeita da causa do surto seria a infecção materna pelo Zika vírus transmitido pelo Aedes aegypti. O Zikavirus (ZIKAV) é um RNA vírus do gênero Flavivirus, família Flaviviridae. Até o momento, são conhecidas e descritas duas linhagens do vírus: uma africana e outra asiática. O principal modo de transmissão descrito do vírus é por vetores. No entanto, está descrita na literatura científica a ocorrência de transmissão ocupacional em laboratórios de pesquisa, perinatal e sexual, além da possibilidade de transmissão transfusional. Foram registrados casos dessa doença com confirmação laboratorial em 18 estados do Brasil, com mais incidência no Nordeste. A febre pelo ZIKAV na maioria dos casos é autolimitada, com duração de 3-7 dias, geralmente sem complicações graves e não há registro de mortes. A taxa de hospitalização é baixa. Segundo a literatura, mais de 80% das pessoas infectadas não desenvolvem manifestações clínicas, porém, quando presentes, a doença se caracteriza pelo surgimento do exantema maculopapular pruriginoso, febre intermitente, hiperemia conjuntival não purulenta e sem prurido, artralgia, mialgia, dor de cabeça e, menos frequentemente, edema, dor de garganta, tosse, vômitos e hematospermia. Recentemente, foi observada possível correlação entre a infecção pelo ZIKAV e a ocorrência de síndrome de Guillain-Barré em locais com circulação simultânea do vírus da dengue. O Ministério da Saúde divulgou a positividade em testes feitos no líquido amniótico de duas gestantes que tiveram contato com o ZIKAV e cujos recém-nascidos foram diagnosticados com microcefalia por exames de ultrassonografia. Os testes foram realizados pelo Laboratório de Flavivírus do Instituto Oswaldo Cruz (IOC-Fiocruz). Esse vírus é capaz de atravessar a barreira placentária e chegar até o líquido amniótico. Para confirmar a presença do vírus no líquido amniótico, as amostras coletadas nas gestantes foram submetidas ao método reação em cadeia da polimerase (PCR). Em seguida, foi feito um sequenciamento parcial do genoma do vírus, o que permitiu identificar que se trata do ZIKAV originário da Ásia, e não da África.

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Um dos problemas a serem enfrentados em relação ao surgimento de casos de ZIKAV no país é que, diferentemente do que ocorre com a dengue, por exemplo, ainda não há testes sorológicos amplamente disponíveis comercialmente para diagnosticar a doença. As alterações laboratoriais associadas à infecção por ZIKAV incluem, durante o curso da doença, leucopenia, trombocitopenia e ligeira elevação da desidrogenase láctica sérica, gama glutamiltransferase e de marcadores de atividade inflamatória (proteína C reativa, fibrinogênio e ferritina). O diagnóstico laboratorial específico de ZIKA baseia-se principalmente na detecção de RNA viral a partir de espécimes clínicos. O período virêmico não foi estabelecido, mas acredita-se que seja curto, o que permitiria, em tese, a detecção direta do vírus até 4-7 dias após o início dos sintomas, sendo, entretanto, ideal que o material a ser examinado seja coletado até o 4º dia da doença. Os ácidos nucleicos do vírus foram detectados em humanos entre um e 11 dias após o início dos sintomas e o vírus foi isolado em primata não humano até nove dias após inoculação experimental. O surto mobiliza todos os pediatras em relação ao aumento da ocorrência de microcefalia, pois, independentemente da causa, a sua repercussão para as crianças envolvidas e suas famílias será grande. As sequelas da doença ainda não são completamente conhecidas. Sabe-se que a maioria das crianças afetadas terá comprometimento auditivo, de visão e déficits neuropsicomotores de diferentes graus, podendo chegar a quadros de paralisia cerebral. Diante desse quadro de extrema gravidade, tem-se acompanhado a formação de diversos grupos voluntários de profissionais da área da saúde, com o objetivo de realizar uma força tarefa para o combate da epidemia. Aqui em Minas a Sociedade Mineira de Pediatria participa dos trabalhos em parceria com o município de Belo Horizonte, estado de Minas Gerais, Ministério da Saúde e Universidade Federal de Minas Gerais. Profissionais de notório saber avaliam as melhores formas de abordagem dos recém-nascidos acometidos. A avaliação da criança com microcefalia inclui anamnese completa realizada com a família, histórico da gestação e exame físico. É necessária a realização de exames sorológicos da mãe e do neonato. Usualmente, são solicitados exames por imagem, entre eles a tomografia computadorizada do encéfalo e/ou ressonância magnética e ultrassonografia transfontanelar, sendo que o melhor método e o momento ideal para sua realização ainda são controversos. A abordagem interdisciplinar e encaminhamento para especialista em Infectologia, Genética, Neurologia e Oftalmologia Pediátrica, entre outros profissionais, pode ser necessária para o diagnóstico e planejamento do seguimento da criança. O Ministério da Saúde orienta que todos os casos de microcefalia sejam comunicados imediatamente por meio de um formulário on-line, que as gestantes realizem o acompanhamento e as consultas de pré-natal e se submetam a todos os exames solicitados pelo médico. Recomenda para as gestantes não consumirem bebidas alcoólicas ou qualquer outro tipo de drogas, não utilizar medicamentos sem orientação médica e evitar contato com pessoas com febre ou infecções. Preconiza a adoção de medidas que possam reduzir a presença de mosquitos transmissores de doença, com a eliminação de criadouros e proteção da exposição a mosquitos, como manter portas e janelas fechadas ou teladas, usar calça e camisa de manga comprida e utilizar repelentes permitidos para gestantes. O mais preocupante que há pelo menos duas décadas enfrentamos as epidemias de dengue com essas estratégias sem qualquer sucesso. É imprescindível, diante do nosso fracasso, buscar novas estratégias para combater esse vetor, Aedes aegypti, principal transmissor das epidemias que assolam o nosso país. As formas de combate ao mosquito incluem o controle químico, bastante empregado no Brasil e que consiste no emprego de agentes químicos, com o intuito de destruir os vetores. Vários dos produtos empregados são tóxicos ao homem e podem desenvolver resistência nos vetores. O controle biológico consiste em se lançar no meio outros organismos, que são predadores dos vetores ou que estabelecem uma competição com eles. É uma técnica cujo desenvolvimento ainda não está totalmente concluído, encontrando-se em fase de pesquisas. O controle ambiental significa o saneamento do meio, de modo a criar condições adversas ao desenvolvimento de vetores. Além de ser uma medida com efeito de longo prazo, traz muitos outros benefícios à saúde, ao conforto da população e à atividade econômica. Segundo dados recentes do IBGE, aproximadamente 44% da população não têm esgotamento sanitário, o que é um direito humano essencial.

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O país está em uma grave crise econômica, no entanto, necessitará disponibilizar meios para enfrentar esse urgente desafio, diante do risco de um desastre humanitário de proporções alarmantes e da ameaça de uma geração de crianças com graves sequelas.

*Publicado originalmente como Comunicação Breve em edição suplementar da Revista Medica de Minas Gerais/Sociedade Mineira de Padiatria: Reis RP. Aumento dos casos de microcefalia no Brasil. Rev Med Minas Gerais. 2015; 25(Supl. 6):S88-9.

Referências 1. Boom JA. Microcephaly in infants and children: etiology and evaluation. [Citado em 2015 nov. 10]. Disponível em: http://www.uptodate.com/contents/microcephaly-in-infants-and-children -etiology-and-evaluation. 2. Campos GS, Bandeira AC, Sardi SI. Zika virus outbreak, Bahia, Brazil [letter]. Emerg Infect Dis. 2015 Oct [date cited].http://dx.doi. org/10.3201/eid2110.150847 3. Brasil. Ministério da Saúde. Portal da Saúde – SUS. Microcefalia: Ministério da Saúde divulga boletim epidemiológico. [Citado em 2015 nov. 10]. Disponível em: http://portalsaude.saude.gov.br/ index.php/cidadao/principal/agencia-saude/20805-ministerio-da-saude-divulga-boletim-epidemiologico 4. Brasil. Ministério da Saúde. Plano Nacional de Enfrentamento à Microcefalia no Brasil. Protocolo de Vigilância e resposta à ocorrência de microcefalia relacionada à infecção pelo vírus Zika. Versão 1 Atualização 08/12/2015. [Citado em 2015 dez. 22]. Disponível em: http:// portalsaude.saude.gov.br/ images/pdf/2015/dezembro/09/Microcefalia---Protocolo-de-vigil--ncia-e-resposta---vers--o-1----09dez2015-8h.pdf

Raquel Pitchon dos Reis Médica. Especialista em Pediatria, Alergia e Imunologia e Alergia e Imunologia Pediátrica. Presidente da Sociedade Mineira de Pediatria. Belo Horizonte, MG – Brasil. E-mail: pitchonreis@ig.com.br

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sumário

Editorial

463 • Surto de microcefalia no Brasil Raquel Pitchon dos Reis Artigos Originais

469 • Rede de referência e contrarreferência para o atendimento de urgências em um município do interior de Minas Gerais – Brasil

Zica Virus. Fonte: https://goo.gl/ySFaC3

Reference and counter reference network for emergency care assistance in a municipality in the countryside of Minas Gerais – Brazil Maria Luiza de Faria Alves, Helisamara Mota Guedes, José Carlos Amado Martins, Tânia Couto Machado Chianca

476 • Análise do conteúdo do sumário de alta obstétrica em maternidade de referência. Uma oportunidade para repensar a estratégia da continuidade do cuidado materno e neonatal Analysis of the summary content in obstetric discharge reports in a reference maternity hospital. An opportunity to rethink the strategy of continuity in maternal and neonatal care Zilma Silveira Nogueira Reis, Regina Amélia Lopes Pessoa de Aguiar, Álvaro Augusto Trielle Ferreira, Ana Carolina Viegas, Lêni Márcia Anchieta

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Rev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 463-623

484 • Portadores de doença renal crônica em fase produtiva: percepção sobre limitações resultantes do adoecimento Chronic kidney disease patients in the productive phase: perception of limitations resulting from illness Milady Cutrim Vieira Cavalcante, Zeni Carvalho Lamy, Eduardo Cardoso Santos, Jéssica Mendes Costa

493 • Saúde, trabalho e adoecimento: o trabalho como mediador das representações sociais de agricultores familiares Health, work, and illness: work as the mediator of social representations of family farmers Luiz Paulo Ribeiro, Fátima Lúcia Caldeira Brant, Tarcísio Márcio Magalhães Pinheiro

502 • Importância da implementação de protocolos de ação na pré-eclâmpsia The importance of implementing action protocols in preeclampsia Bruna Carolina Lapertosa Santos, Laíssa Nascimento Bernardes Souza, Henderson Humberto Oliveira Coutinho, Lara Lopes de Almeida, Lisandro Liboni Guimarães Rios, Pedro Henrique de Barcelos Lavareda, Isabela Iside Gagliardo Soares, Danyelle Romana Alves Rios, Melina de Barros Pinheiro


511 • Aspectos éticos do nascimento no limite de viabilidade Ethical aspects of birth in the limit of viability Cristiane Ribeiro Ambrósio, Carlos Henrique Martins da Silva, Éverton Germano Araújo Melo

537 • Hiperparatireoidismo como causa de demência reversível em idosos Hyperparathyroidism as the cause of reversible dementia in the elderly Henrique Cunha Vieira, Antonio José Daniel Xavier

517 • Pneumonia associada à ventilação mecânica como indicador de qualidade e segurança em saúde

543 • Uso do adesivo de fibrina como fator adjuvante na cicatrização de anastomoses intestinais em ratos

Pneumonia associated with mechanical ventilation as an indicator of health quality and safety

The use of fibrin adhesive as an adjuvant factor in the healing of intestinal anastomoses in rats

Sérgio Antônio Pulzi Júnior, Renato Ribeiro Nogueira Ferraz, Milton Soibelmann Lapchick

Luiz Henrique Silva Borsato, Bruno Silva Borsato, Cláudio de Souza

523 • Comprometimento hepático clínico e ultrassonográfico em crianças com toxocaríase

548 • O Sistema de Informação do Acolhimento do CEREST de Juiz de Fora/MG: construindo indicadores de fluxos e atenção em saúde do trabalhador

Clinical and ultrasound liver impairment in children with toxocariasis Elaine Alvarenga de Almeida Carvalho, Regina Lunardi Rocha, Rogério Augusto Pinto da Silva

529 • Alterações antropométricas, bioquímicas e de variáveis da síndrome metabólica entre crianças e adolescentes obesos com e sem doença hepática gordurosa não alcoólica Anthropometric, biochemical, and variables alterations in the metabolic syndrome among obese children and adolescents with and without non-alcoholic fatty liver disease Fabio da Veiga Ued, Marina Coelho de Souza, Angela Regina Leonesi Maluf, Virgínia Resende Silva Weffort

The Embracement Information System of the CEREST of Juiz de Fora/MG: building flow and attention indicators in the worker’s health

Artigo de Revisão

562 • Depressão em estudantes de medicina Depression in medical students Miguel Angelo Giovanni Noronha Júnior, Yuri Amorim Braga, Tamyres Gonçalves Marques, Rosane Terra Silva, Samila Danielle Vieira, Victória Alves Ferreira Coelho, Tomás Antunes Alves Gobira, Liubiana Arantes de Araújo Regazzoni

568 • Problemas gestacionais de alto risco comuns na atenção primária High risk gestational problems common in primary care Pâmela Torquato de Aquino, Bernardino Geraldo Alves Souto

577 • Importância e bases de um programa de controle e prevenção de infecção em unidade de terapia intensiva geral Importance and bases of a program for the control and prevention of infection in the general intensive care unit Ronaldo Afonso Torres, Bruna Ribeiro Torres

Cristiane dos Reis Veloso Poço, José Luís da Costa Poço

583 • Obesidade e microbiota intestinal

556 • Avaliação da qualidade das prescrições médicas da farmácia municipal de Catalão – Goiás

Obesity and intestinal microbiota

Quality assessment of medical prescriptions from the municipal pharmacy of Catalão – Goiás Cristina dos Santos Oliveira, Amanda Sabino dos Santos, Isabel Cristina Gonçalves Leite

Vera Lucia Ângelo Andrade, Liubiana Arantes de Araújo Regazzoni, Marco Túlio Russo Moreira Moura, Edriana Moreira Silva dos Anjos, Karine Aparecida de Oliveira, Marcus Vinicius Reis Pereira, Mayara Romes Andrade Pereira, Nathália Ribeiro de Amorim, Stephanne Maroun Iskandar

Rev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 463-623

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590 • Doença mental e estigma Mental illness and stigma Fábio Lopes Rocha, Cláudia Hara, Jorge Paprocki

597 • O papel de marcadores tumorais no câncer de pulmão: revisão da literatura The role of tumor markers in lung cancer: a literature review Henrique Alves Pinto Silva, Pietro Mainenti, Artur Laizo Educação Médica

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Relato de Caso

607 • Acupuntura como coadjuvante no tratamento para constipação intestinal em criança com mielomeningocele: relato de caso Acupuncture as a coadjuvant in the treatment of constipation in children with myelomeningocele: case report Marcella Leite de Mattos Miranda, Renato Araújo Silva, Guilherme Bicalho Oliveira Silva, Vanessa Cristina Gonçalves, Christiane Marize Garcia Rocha

605 • A aparência do médico… E do estudante de medicina

610 • Gestação ectópica abdominal: relato de caso com feto vivo

The appearance of the doctor… and that of the medical student

Abdominal ectopic pregnancy: a case report with a live fetus

Celmo Celeno Porto

Sara de Pinho Cunha Paiva, Gabriel Alves Silveira, Giulia Melendez Conigliaro, Rafael Alves Silveira, Carolina Ferraz

Rev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 463-623

613 • Pancreatite de sulco: relato de caso Groove pancreatitis: a case report Rosane Terra Silva, Luís Gustavo Mapa Santos

616 • Schwannoma melanocítico da coluna lombar: relato de caso e revisão de literatura Melanocytic schwannoma of the lumbar spine: a case report and literature review Charbel Jacob Junior, Rodrigo dos Santos Lugão, Igor Machado Cardoso, José Lucas Batista Junior, Luciene Lage da Motta, Nathália Ambrozim Santos Saleme, João Bernardo Sancio Rocha Rodrigues Imagem

621 • Caso 20 Case 20 Luiz Carlos Molinari, Júlio Guerra Domingues, André Ribeiro Guimarães, Fernando de Carvalho Bottega, Júlia Alvarenga Petrocchi, Joel Edmur Boteon


ARTIGO ORIGINAL

Rede de referência e contrarreferência para o atendimento de urgências em um município do interior de Minas Gerais – Brasil Reference and counter reference network for emergency care assistance in a municipality in the countryside of Minas Gerais – Brazil Maria Luiza de Faria Alves1, Helisamara Mota Guedes2, José Carlos Amado Martins3, Tânia Couto Machado Chianca4

DOI: 10.5935/2238-3182.20150110

RESUMO Introdução: o sistema de referência e contrarreferência caracteriza-se pela tentativa de organizar o acesso ao sistema secundário de saúde, que tem sido realizado, especialmente, pelos prontos-socorros (PS). Objetivo: analisar a estrutura da rede de referência e contrarreferência do município de Diamantina, sob a visão dos atendimentos realizados em um serviço de urgência. Métodos: estudo descritivo que utilizou ficha estruturada para coleta de informações do quadro clínico dos pacientes e dados da classificação de risco. Foram avaliados 605 pacientes que deram entrada no PS e ali permaneceram por mais de 24 horas. Os dados foram digitados e analisados com estatística descritiva. Resultados: os pacientes foram classificados nas cores vermelha (3,9%), laranja (27,3%), amarelo (46,3%), verde (10,7%), azul (0,2%) e branco (11,6%). Os encaminhamentos foram feitos em 4,6%, 4,2% e 9,5% por intermédio do Serviço de Atenção Móvel de Urgência, Corpo de Bombeiros ou por consultório particular, respectivamente. A população que procura o PS distribuiu-se de acordo com a seguinte frequência: 2,9%, 37,6%, 36,3% e 0,82% do Programa de Estratégia de Saúde da Família, direto de sua residência, de municípios vizinhos e do setor secundário, respectivamente. Conclusão: é significativa a quantidade de pessoas que se autorreferenciam ao PS, sendo este procurado como atendimento de primeira escolha. Os dados permitem a reflexão sobre a necessidade de organização da rede de saúde no município e melhor articulação dos serviços nos diferentes níveis de atenção.

1 Enfermeira. Santa Casa de Caridade de Diamantina. Diamantina, MG – Brasil. 2 Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Professora Adjunta do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri-UFVJM. Diamantina, MG – Brasil. 3 Enfermeiro. Doutor em Enfermagem. Professor Adjunto da Escola Superior de Enfermagem de Coimbra. Coimbra – Portugal. 4 Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Professora Titular do Departamento de Enfermagem Básica da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Belo Horizonte, MG – Brasil.

Palavras-chave: Triagem; Serviços Médicos de Emergência; Serviços de Saúde. ABSTRACT Introduction: the reference and counter reference systems are characterized by the attempt to organize access to secondary health care system, which has been mainly provided by emergency services (PS). Objective: To analyze the structure of the reference and counter reference network in the municipality of Diamantina in the view of assistance provided in the emergency care. Methods: this was a descriptive study using a structured form to collect clinical information on patients and risk classification data. We evaluated 605 patients who were admitted to the PS and remained there for more than 24 hours. Data were entered and analyzed using descriptive statistics. Results: the patients were classified in red (3.9%), orange (27.3%), yellow (46.3%), green (10.7%), blue (0.2%), and white (11.6%) labels. Assistance was provided in 4.6%, 4.2%, and 9.5% by the Mobile Emergency Care Service, Fire Department, or private practice, respectively. The population that sought out assistance in the PS was distributed according to the following frequencies: 2.9%, 37.6%, 36.3%, and 0.82% of the Family Health Strategy Program, straight from their residences, from neighboring municipalities, and the secondary sector, respectively. Conclusion: the amount of people who self-refer to the PS is significant, which is in demand as the first choice service. The data allow the reflection on the need for health network organization

Recebido em: 17/03/2014 Aprovado em: 01/12/2015 Instituição: Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri – UFVJM Diamantina, MG – Brasil Autor correspondente: Helisamara Mota Guedes E-mail: helisamaraguedes@gmail.com

Rev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 469-475

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Rede de referência e contrarreferência para o atendimento de urgências em um município do interior de Minas Gerais – Brasil

in the municipality and improved coordination of services at different levels of attention. Key words: Triage; Emergency Medical Services; Health Services.

INTRODUÇÃO O elevado número de pessoas atendidas, a imprevisibilidade dos atendimentos, a área física reduzida, entre outros fatores, fazem com que os serviços de urgência e emergência se tornem locais com extrema dificuldade para a organização do trabalho.¹ Sabe-se que esses serviços são caracterizados pelo atendimento a pacientes que se encontram em risco de morte ou sofrimento intenso. E, de acordo com o artigo n°196 da Constituição Federal de 19882, a saúde é direito de todos, cabendo ao estado o dever de garantir as melhores respostas aos cidadãos em matéria de saúde. Nesse sentido, percebe-se que para que a estruturação do Sistema Único de Saúde (SUS) se torne possível, é necessário que ocorra o referenciamento dos usuários nos seus diversos níveis de atenção à saúde.3 O Sistema de Referência e Contrarreferência caracteriza-se por uma tentativa de organizar os serviços de forma a possibilitar o acesso pelas pessoas que procuram os serviços de saúde. De acordo com tal sistema, o usuário atendido na unidade básica, quando necessário, é “referenciado” (encaminhado) para uma unidade de maior complexidade, a fim de receber o atendimento de que necessita. Quando finalizado o atendimento dessa necessidade especializada, o mesmo deve ser “contrarreferenciado”, ou seja, o profissional deve encaminhar o usuário para a unidade de origem para que a continuidade do atendimento seja feita.4 A referência e contrarreferencia devem ser feitas em formulário próprio da instituição, preenchido pelo profissional de nível superior responsável. Esse sistema vem, então, para otimizar o funcionamento do sistema de saúde, proporcionando ao usuário adequado atendimento a partir do conhecimento pregresso do seu estado de saúde e tratamentos passados.5 Assim, um serviço de saúde informará ao outro a respeito dos procedimentos realizados e as possíveis condutas a serem seguidas. Percebe-se que, apesar da existência de um sistema de referenciamento, os serviços de emergência estão cada vez mais funcionando como porta de entrada do sistema de saúde, recebendo todos os tipos de pacientes desde os realmente graves até os

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casos mais simples, que poderiam e deveriam ser resolvidos na atenção primária à saúde (APS).6 Partindo desse pressuposto, vê-se que o sistema de referência e contrarreferência deve funcionar de maneira hierarquizada, a fim de adequar o fluxo dos usuários aos níveis de complexidade de atendimento, tendo o setor primário como a porta de entrada no sistema e sucessivamente o secundário e terciário, quando necessário ao usuário.7 E, desta maneira, o paciente grave deve procurar como porta de entrada o setor terciário, adequado ao seu estado de saúde. Os serviços da Atenção Primária à Saúde (APS) estão estruturados para atender as pessoas que necessitam de ações preventivas e programadas. Entretanto, tais serviços não têm conseguido resolver os problemas apresentados pelas pessoas que, muitas vezes, demandam cuidados de baixa complexidade. Os usuários acabam superlotando as unidades de Pronto-Socorro (PS), na tentativa de receberem atendimento mais resolutivo. Nestas, em geral, as pessoas recebem tratamento para resolver apenas os problemas ou sintomas de forma imediata. Isso gera grandes prejuízos a todo o sistema de saúde, pois reproduz o modelo assistencial centrado na doença e resulta, por vezes, em prejuízos no acompanhamento clínico de pessoas com doenças crônicas.8 Dessa maneira, a rede de referência e contrarreferência é um sistema que se desenvolve em quatro componentes que funcionam de maneira integrada, (1) sendo a APS que coordena a rede, que vincula a população; (2) atenção secundária, os ambulatórios especializados e os hospitais de média e alta complexidade; (3) os sistemas logísticos, regulação, transporte sanitário, registro eletrônico em saúde; (4) e os de apoio, assistência farmacêutica, apoio diagnóstico terapêutico.9 Na tentativa de organizar o serviço de urgência e emergência o governo do estado implantou o Sistema de Triagem de Manchester (STM) como instrumento norteador para a triagem de pacientes. O Protocolo de Manchester é método que auxilia na identificação rápida das pessoas que procuram o serviço de urgência e tem por objetivo ser um dos instrumentos para melhor organizar o fluxo de pacientes que procuram atendimento de saúde, possibilitando atendimento prioritário aos casos de mais gravidade, excluindo o atendimento por ordem de chegada. Pelo STM existem cinco níveis de prioridade clínica. A cada nível é atribuído uma cor, nome e tempo máximo aceitável até o atendimento médio (vermelho – emergente-atendimento imediato; laranja – muito


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urgente-atendimento em até 10 minutos; amarelo – urgente-atendimento em até 60 minutos; verde – pouco urgente-atendimento em até 120 minutos, azul – não urgente-atendimento em até 240 minutos10; e branco – para classificar pacientes com eventos ou situações/ queixas não compatíveis com o serviço de urgência, como, por exemplo, pacientes admitidos para procedimentos eletivos, retornos, atestados, entre outros). Considera-se importante conhecer a demanda de atendimentos classificados por cor em diferentes níveis de prioridade clínica dos municípios brasileiros e, neste caso, mineiro, para avaliar o quanto está estruturada a rede de referência e contrarreferência dos mesmos, o quanto precisa ser estruturada para diminuir a superlotação no PS e facilitar a articulação dos três níveis de atenção à saúde. Sendo assim, delineou-se este estudo, que teve por objetivo analisar a estruturação da rede de referência e contrarreferência do município de Diamantina-MG, sob a ótica dos atendimentos realizados em serviço de urgência.

MÉTODOS Trata-se de estudo descritivo, desenvolvido no PS da Santa Casa de Caridade do município de Diamantina-MG, unidade de referência de urgência para o Vale do Jequitinhonha. O hospital selecionado é referência macro e microrregional em assistência médico-hospitalar em média e alta complexidade, constituindo-se na principal porta de entrada do município para o atendimento de urgências clínicas, além de ser referência para outras unidades de pronto-socorro da região. A microrregião Jequitinhonha (Diamantina) é responsável por 15 municípios, sendo eles: Alvorada de Minas, Carbonita, Coluna, Congonhas do Norte, Couto de Magalhães, Datas, Diamantina, Felício dos Santos, Gouveia, Itamarandiba, Presidente Kubitschek, Santo Antônio do Itambé, São Gonçalo do Rio Preto, Senador Modestino Gonçalves e Serro.11 Participaram da pesquisa pacientes que deram entrada no PS de Diamantina no período de maio a setembro de 2012 e que permaneceram por mais de 24 horas internados. O cálculo utilizado para determinação do tamanho da amostra com base na estimativa do total de pacientes foi n= z². q.p.N/e².(N-1)+ z².q.p.12 Foram abordados 960 pacientes, sendo que 229 (23,9%) foram encaminhados por portaria secundá-

ria, não passando pelo PS. Dessa forma, não foram classificados pelo STM; 72 (7,5%) passaram pelo PS, porém a ficha manual de classificação do STM estava em branco. Houve recusa de seis (0,7%) pessoas em participar da pesquisa; cinco (0,5%) foram transferidas para outro hospital antes das 24 horas de coleta dos dados; oito (0,8%) faleceram dentro das 24 horas de entrada no setor; 35 (3,7%) ganharam alta nas primeiras 24 horas. A amostra do estudo foi de 605 pacientes. Não houve perdas, tendo em vista que a coleta de dados aconteceu durante todos os dias da semana no período da tarde. Para a coleta de dados foi utilizada ficha estruturada contendo informações do quadro clínico dos pacientes e a ficha de classificação de risco. Os dados foram extraídos do registro do STM e dos prontuários dos pacientes. Os dados foram digitados e submetidos a estatísticas descritivas com análise de frequências e inferencial no Programa Statiscal Package for Social Sciences (SPSS), versão 17.0. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais CAAE – 0430.0.203.000-11. Participaram desta pesquisa as pessoas que assinaram o Termo de Consentimento Livre e esclarecido (TCLE).

RESULTADOS Dos 605 pacientes classificados, 254 (42,0%) eram do sexo feminino e 351 (58,0%) do sexo masculino. Os pacientes foram classificados nas cores vermelhas (24-3,9%), laranja (165-27,3%), amarelo (280-46,3%), verde (65-10,7%), azul (1-0,2%) e branco (70-11, 6%). Não foi encontrada diferença significativa entre o sexo e as cores de classificação, conforme a Tabela 1. Tabela 1 - Distribuição do sexo dos pacientes por grupo de classificação de risco. Diamantina, MG, 2012 Cor da Classificação

Sexo Masculino n

%

Total Feminino n

%

n

%

Vermelho

16

2,6

8

1,4

24

4,0

Laranja

101

16,7

64

10,6

165

27,3

Amarelo

158

26,1

122

20,1

280

46,2

Verde

40

6,6

25

4,1

65

10,7

Azul

1

0,2

-

-

1

0,2

Branco

35

5,8

35

5,8

70

11,6

Total

351

58,0

254

42,0

605

100

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A idade mínima dos pacientes foi de dois anos e a máxima de 102 anos, média de 56,5 anos, dp= 22,8 anos. Foram poucos os encaminhamentos oriundos do setor primário e secundário, 18 (2,9%) e cinco (0,9%), respectivamente. A população encaminhada de municípios vizinhos, Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) e Corpo de Bombeiros foi classificada em urgentes e emergentes. E os pacientes classificados em menor gravidade foram os advindos dos consultórios médicos (Tabela 2). Em relação à distribuição dos encaminhamentos advindos de outros municípios pertencentes à mi-

crorregião de Diamantina-MG, observou-se que os mesmos foram, em sua maioria, para atendimento de urgência e emergência (Tabela 3). A cor azul foi retirada na tabela por só ter uma pessoa que se encaixou em “Outros”. Em relação às principais queixas apresentadas pelos pacientes, destacam-se mal-estar no adulto, alteração de comportamento e dispneia, com 21,5%, 15,6% e 13,4%, respectivamente. A queixa menos encontrada foi a de cefaleia, com 1,0% (Tabela 4). Os pacientes, ao ganharem alta, tiveram o instrumento Sumário de Alta preenchido pelo médico (100%).

Tabela 2 - Distribuição dos encaminhamentos dos pacientes por grupo de classificação de risco. Diamantina, MG, 2012 Cores da Classificação Encaminhamento

Vermelho

Laranja

Amarelo

Total

Verde

Azul

n

%

n

%

n

%

n

%

Direto para o PS

4

0,7

54

8,9

132

21,8

20

3,3

UBS

-

-

7

1,1

7

1,1

3

0,5

Municípios vizinhos

11

1,8

74

12,2

104

17,2

25

4,1

Corpo de Bombeiro

3

0,5

11

1,8

6

1,0

5

SAMU

5

0,8

9

1,5

11

1,8

3

Consultório médico

-

-

6

1,0

14

2,3

6

n

Branco

n

%

3,0

228

37,7

0,2

18

2,9

1,0

220

36,3

1

0,2

26

4,3

-

-

28

4,6

0,2

31

5,1

58

9,6 2,5

%

n

-

-

18

-

-

1

-

-

6

0,8

-

-

0,5

-

-

1,0

1

%

Hemodiálise

-

-

2

0,3

3

0,5

-

-

-

-

10

1,7

15

HNSS

1

0,2

1

0,2

2

0,3

2

0,3

-

-

1

0,2

7

1,2

Setor secundário

-

-

1

0,2

1

0,2

1

0,2

-

-

2

0,3

5

0,9

Nota: HNSS – Hospital Nossa Senhora da Saúde. UBS – Unidade Básica de Saúde.

Tabela 3 - Distribuição dos municípios de origem dos pacientes por cor da classificação de risco. Diamantina, MG, 2012 Cor da Classificação Municípios

Vermelho n

472

Laranja

Total

Amarelo

Verde

%

n

%

n

%

n

Branco %

n

%

n

% 42,5

Diamantina

5

0,8

63

10,4

122

20,1

33

5,4

36

6,0

259

Gouveia

1

0,2

6

1,0

15

2,5

2

0,3

2

0,3

26

4,3

Felício dos Santos

1

0,2

8

1,3

11

1,8

4

0,7

1

0,2

25

4,2

Carbonita

2

0,3

7

1,2

7

1,2

1

0,2

4

0,7

21

3,5

Itamarandiba

3

0,5

7

1,2

5

0,8

2

0,3

4

0,7

21

3,5

Serro

-

-

5

0,8

10

1,6

3

0,5

3

0,5

21

3,5

Senador Modestino Gonçalves

-

-

7

1,2

7

1,2

4

0,7

2

0,3

20

3,4

Couto de Magalhães de Minas

1

0,2

4

0,7

10

1,6

2

0,3

1

0,2

18

3,0 2,8

São Gonçalo do Rio Preto

-

-

3

0,5

12

2,0

2

0,3

-

-

17

Datas

1

0,2

4

0,7

7

1,2

1

0,2

3

0,5

16

2,7

Presidente Kubitschek

-

-

4

0,7

8

1,3

1

0,2

2

0,3

15

2,5 0,9

Congonhas do Norte

-

-

1

0,2

4

0,7

-

-

-

-

5

Alvorada de Minas

-

-

1

0,2

3

0,5

-

-

-

-

4

0,7

Santo Antônio do Itambé

-

-

1

0,2

2

0,3

1

0,2

-

-

4

0,7

Coluna

1

0,2

1

0,2

1

0,2

-

-

-

-

3

0,6

Outros

9

1,5

43

7,1

56

9,2

9

1,5

12

2,0

130

21,3

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Tabela 4 - Principais queixas apresentadas pelos pacientes. Diamantina MG, 2012 Queixa

n

%

Mal estar em adulto

130

21,5

Alteração de comportamento

34

15,6

Dispnéia em adulto

81

13,4

Dor abdominal em adulto

63

10,4

Trauma craniano

37

6,1

Dor torácica

29

4,8

Problemas em extremidades

27

4,5

Diarreia e vômito

18

3,0

Dor lombar

16

2,6

Trauma maior

15

2,5

Convulsões

14

2,3

Diabetes

8

1,3

Feridas

7

1,2

Hemorragia digestiva

7

1,2

Quedas

7

1,2

Cefaleia

6

1,0

605

100,0

Total

DISCUSSÃO Dos 605 pacientes da amostra, 58,0% eram masculinos, média de idade de 56,5 anos, dados corroborados em estudo feito em Itajaí-SC, que encontrou predomínio de indivíduos masculinos (58,0%) com faixa etária média em 56 anos atendidos em hospital geral de grande porte.13 A população residente no município de Diamantina deu entrada direto no PS (37,7%) ou foram trazidos pelo SAMU, Corpo de Bombeiro Militar ou encaminhados a partir de consultório particular (4,6%, 4,3% e 9,6%, respectivamente). A população que procurou o PS com encaminhamento da UBS foi muito baixo (2,9%). Ressalta-se que a realização do referenciamento e contrarreferenciamento de pacientes constitui-se em prática de suma importância para a melhoria do atendimento das urgências e emergências. Neste estudo foi possível identificar que o registro do encaminhamento para o setor terciário (sistema de referência e contrarreferência) ainda é incipiente na rede de saúde no município. A população continua utilizando o PS como a principal porta de acesso ao serviço de saúde, conforme descreveu Cecílio (1997).14 Este dado também foi encontrado em estudos conduzidos na Holanda.15,16 Estudo feito em São Paulo referiu como dificuldade para a alocação adequada dos pacientes a falta de correta

referência e contrarreferência devido à inadequada articulação da atenção básica com os hospitais de referência, baixa responsabilização pelo seguimento dos pacientes17, o que repercute em superlotação dos PS. Além disso, ocorre comprometimento do atendimento por equipamentos/materiais insuficientes no atendimento dos casos de urgência.18 Observou-se, durante a coleta de dados, que os pacientes encaminhados de outros municípios da micro e macrorregião de Diamantina vinham com impresso de referência adequadamente preenchido. O fato de passarem por avaliação de um profissional de saúde facilitou para que os encaminhamentos priorizassem, em sua maioria, aqueles com necessidade de serviços de urgência e emergência (classificação de risco no STM: vermelho, laranja e amarelo). Nesse sentido, esses encaminhamentos foram adequados e respeitaram a rede de referência organizada. O sumário de alta foi o único instrumento de comunicação identificado neste estudo para contrarreferência dos pacientes nos outros níveis de atenção. Observou-se que não existe padrão no conteúdo das informações, uma vez que o registro é manual. Considerando-se, entretanto, que a coleta de dados foi feita em pacientes 24 horas após terem dado entrada no PS, apurou-se que os classificados como verde, azul e branco estavam internados (65,0%, 1,0%, 70,0%, respectivamente). A internação pode ser justificada pelo fato de esses pacientes terem piorado dentro das 24 horas. Essas cores no serviço de urgência podem estar relacionadas à ausência do profissional de saúde na APS ou à ausência de determinada especialidade médica, à falta de recursos materiais e medicamentos, uma vez que são municípios de pequeno porte e com pouca infraestrutura. O hospital onde foi realizada a coleta de dados possui algumas peculiaridades quando comparado a um hospital de grande porte. Estudo realizado no PS de um hospital em Belo Horizonte mostrou que os usuários classificados nas cores verdes e azuis que deram entrada no PS foram referenciados para serviços da atenção primária ou secundária, não permanecendo no serviço após a classificação.19 No município de Diamantina, os classificados nas cores verdes e azuis foram atendidos após o fechamento das UBS, ou seja, após 17 horas, finais de semana e feriados. Além disso, quando os mesmos receberam tal classificação durante o horário de funcionamento das UBS, foram atendidos pela assistente social do PS, que os orientou quanto ao local mais adequado para Rev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 469-475

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seu atendimento. Eles receberam, então, um formulário de contrarreferência e foram conduzidos para a UBS de sua área de abrangência. Outro diferencial registrado foi que essas pessoas, devido à carência de profissional médico e de materiais nas UBS da zona rural, foram atendidas em horário integral. Os hospitais de alta ou média complexidade devem garantir atendimento imediato aos pacientes classificados como vermelho, laranja e amarelo, já os portadores das cores verde e azul devem ser encaminhados para UBS com um documento de referência.19 Os três níveis de atenção à saúde (primário, secundário e terciário) devem se articular por meio de mecanismos organizados e regulados de referência e contrarreferência, sendo de extrema importância que cada serviço se reconheça como parte integrante dessa rede, acolhendo e atendendo adequadamente à parcela da demanda que lhe compete e se responsabilizando pelo encaminhamento dessa clientela quando a unidade não tiver os recursos necessários a tal atendimento.20 Pode-se afirmar que os usuários procuraram os serviços de urgência com a finalidade de solucionar suas necessidades, sejam urgentes ou não. Estudo mostrou que casos não emergenciais, muito frequentemente, são encontrados nos serviços de urgência/emergência para um tratamento que poderia ser de seguimento da APS. Vale destacar que a APS deve resolver mais de 85% dos problemas de saúde da população.21 Das queixas encontradas neste estudo quatro estavam relacionadas à dor: dor abdominal (10,4%), dor torácica (4,8%), dor lombar (2,6%) e cefaleia (1,0%). Pesquisa feita em PS de Belo Horizonte também encontrou a dor como responsável por 25,2% das queixas identificadas.19 Estudo realizado na Holanda mencionou que 80% dos atendimentos com menos gravidade podem ser atendidos por clínicos geral da rede, uma vez que um em cada 15 pacientes de baixa gravidade foram encaminhados do clínico geral para o departamento de emergência, por necessidade de recursos tecnológicos.22 Os autores concluíram que pacientes pouco urgentes podem ser tratados de forma eficiente e segura por clínico geral. Percebe-se, então, que para que possa ocorrer elo entre a integralidade e o sistema de referência e contrarreferência, é necessário que haja a organização em rede dos serviços de maior e menor complexidade. Faz-se necessário, também, que sejam ofertadas

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ações de promoção a saúde e prevenção dos fatores de risco no setor primário, que deve resolver a maior parte dos problemas de saúde, organizar os fluxos dos usuários dentro do sistema, além da conscientização da população em relação a quando buscar o atendimento no PS, diminuindo, dessa maneira, a sobrecarga no serviço de urgência. A limitação deste estudo está relacionada à seleção da amostra de pacientes que permaneceram internados por mais de 24 horas no serviço de urgência, não sendo possível conhecer os dados dos pacientes que faleceram dentro das 24 horas e os mais estáveis que ganharam alta.

CONCLUSÃO O presente estudo encontrou maioria de pacientes masculinos (58,0%), com média de idade de 56,0 anos, com a queixa de mal-estar no adulto (21,5%), classificação na cor amarela (46,3%) e baixa prevalência de encaminhamentos da ESF (2,9%). Grande parte da população se autorreferencia ao PS como atendimento de saúde de primeira escolha (37,6%). Pode-se perceber que esses pacientes não procuram a APS, talvez por falta de orientações de qual serviço deva ser procurado ou pela baixa resolutividade desse nível de atenção. Os dados servem de subsídios para auxiliar a organização da rede de saúde no município e melhor articulação dos serviços nos diferentes níveis de atenção, para que sejam absorvidos pela atenção primária os pacientes que possuem queixas de menor urgência (pacientes verdes e azuis). Torna-se imprescindível que um instrumento de referência e contrarreferência seja colocado em prática nos estabelecimentos de saúde, para haver a integração da rede e continuidade dos cuidados oferecidos a esse paciente, facilitando, assim, o acesso dos usuários em todos os níveis de complexidade, além da melhoria da qualidade da atenção prestada à população.

AGRADECIMENTOS À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), pelo fomento a esta pesquisa, edital 07/2012 CDS- APQ 02677-12.


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ARTIGO ORIGINAL

Análise do conteúdo do sumário de alta obstétrica em maternidade de referência. Uma oportunidade para repensar a estratégia da continuidade do cuidado materno e neonatal Analysis of the summary content in obstetric discharge reports in a reference maternity hospital. An opportunity to rethink the strategy of continuity in maternal and neonatal care Zilma Silveira Nogueira Reis1, Regina Amélia Lopes Pessoa de Aguiar1, Álvaro Augusto Trielle Ferreira2, Ana Carolina Viegas 3, Lêni Márcia Anchieta4

DOI: 10.5935/2238-3182.20150111

RESUMO Médica. Doutora. Professora do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Belo Horizonte, MG – Brasil. 2 Analista de Sistemas. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Saúde da Mulher da Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte, MG – Brasil. 3 Acadêmica do Curso de Medicina da Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte, MG – Brasil. 4 Médica. Doutora. Professora do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte, MG – Brasil. 1

Objetivo: analisar criticamente dados sobre o nascimento e intercorrências clínico-obstétricas dos sumários de alta obstétrica, visando à troca de informações para continuidade do cuidado materno e neonatal. Pacientes e métodos: estudo observacional retrospectivo em base de dados secundários. Foram consultados 102 sumários de alta obstétrica da maternidade do Hospital das Clínicas da UFMG, entre julho e dezembro de 2013. Para se avaliar a pertinência da proposição de um modelo estruturado para o documento eletrônico, as situações de alta obstétrica e os conteúdos clínicos documentados pelos médicos foram comparados entre internações anteparto e pós-parto, empregando-se o teste qui-quadrado de Pearson. Resultados: em 48 (49,5%) dos 97 documentos selecionados, a condição gestacional era de elevado risco. Os campos já estruturados no formulário em uso tiveram alta frequência de preenchimento. Observou-se semelhança entre o conteúdo dos registros clínicos das altas anteparto e pós-parto, a não ser pelos resultados de exames, mais frequentes no primeiro e pelos dados sobre o nascimento, no segundo. Dados sobre o concepto e orientações para após a alta tiveram frequência aquém do esperado. Conclusões: o sumário de alta obstétrica em um discurso livre sobre os fatos ocorridos durante o nascimento pode falhar em prover dados de qualidade para a continuidade do cuidado na rede de atenção materno-infantil. Acredita-se que a proposição de um padrão estruturado, contendo um conjunto mínimo de dados possa oferecer subsídios para aprimorar a troca de informações maternas e neonatais. Palavras-chave: Alta do Paciente; Continuidade da Assistência ao Paciente; Cuidado Pós-Natal; Registros Médicos; Registros Hospitalares. ABSTRACT

Recebido em: 20/07/2014 Aprovado em: 01/09/2015 Instituição: Faculdade de Medicina da UFMG Hospital das Clínicas da UFMG Belo Horizonte, MG – Brasil Autor correspondente: Zilma Silveira Nogueira Reis E-mail: zilma@medicina.ufmg.br

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Objective: to critically analyze data on birth, and clinical and obstetric complications in the content of obstetric discharge reports aiming at exchanging information for the continuity of maternal and neonatal care. Patients and methods: this was a retrospective observational study in a database of secondary data. A total of 102 obstetric discharge reports were consulted from the UFMG General Hospital maternity between July and December of 2013. The obstetric discharge situations and clinical contents documented by physicians were compared between antepartum and postpartum hospitalizations using the chi-square test of Pearson to evaluate the relevance of the proposition of a structured model for electronic documentation. Results: in 48 (49.5%) out of the 97 selected documents, the gestational condition was of high risk. The fields already structured in the form in use were filled in high frequency. The similarity between the content of antepartum and postpartum clinical records was observed, except for results of tests, which were more frequent in the first, and birth data in the second. Data on the newborn and guidance

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Análise do conteúdo do sumário de alta obstétrica em maternidade de referência. Uma oportunidade para repensar a estratégia …

after discharge were often lower than expected. Conclusions: the content in the obstetric discharge report about the events that occurred during birth may fail to provide quality data for the continuity of care in the maternal and child care. It is believed that the proposition of a structured pattern, containing a minimum set of data can provide subsidies to improve the exchange of maternal and neonatal information. Key words: Patient Discharge; Continuity of Patient Care; Postnatal Care; Medical Records; Hospital Records.

INTRODUÇÃO A oferta hierarquizada da rede e regionalizada do cuidado em saúde, mantendo a gestão do cuidado no nível da atenção primária, é pressuposto das diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS).1 No conceito de redes de atenção, a premissa é a de vinculação entre os serviços de saúde, nos diferentes níveis de complexidade, de forma a permitir uma atuação contínua no momento e no lugar certo, dependendo da demanda do cidadão, com qualidade e de forma humanizada.2 A continuidade da assistência, a prevenção de agravos e a garantia de atendimento na medida da necessidade das pessoas ao longo de sua vida pressupõem longitudinalidade, prática na qual as relações entre médico e usuário se estendem além dos episódios específicos de doença.3 Mas essa visão constitui-se ainda em um desafio que carece de soluções efetivas para a troca de informações clínicas entre os serviços de saúde públicos e também privados. Para que a atenção primária à saúde possa se comunicar fluidamente com os níveis secundário e terciário, os dados clínicos de um indivíduo precisam ser compartilhados entre unidades de saúde distintas. Têm sido propostas estratégias para a integração da rede assistencial como territorialização dos serviços, adscrição da clientela, centrais de marcação e, mais recentemente, a informatização e o compartilhamento de histórias clínicas.4 Nesse contexto, o sumário de alta hospitalar é um documento estratégico para a continuidade do cuidado capaz de colaborar para a construção da integração e interdependência entre os serviços hospitalares e a atenção básica, a partir de corredores de comunicação, sejam eles eletrônicos ou não.5,6 Esse sumário é um documento que apresenta de forma resumida as informações relacionadas ao cuidado prestado durante a internação.7 Geralmente traz de forma narrativa a história clínica, procedimentos e intervenções, diagnósticos, assim como as orientações específicas para o seguimento após a permanência hospitalar, contribuindo para ofertar mais se-

gurança ao usuário.8 No cenário materno-neonatal, seus destinatários são geralmente os profissionais de saúde que acompanhavam a gestante antes do episódio de internação e que irão recebê-la ainda grávida ou já como puérpera e seu(s) neonato(s). A comunicação destina-se ao médico de família, especialista ginecologista/obstetra, clínico geral, pediatra, enfermeiro ou a toda equipe de saúde da família. Portanto, esse documento deve conter o relato resumido, porém completo, capaz de subsidiar o prosseguimento da atenção à mulher e neonato(s) e prover instruções sobre o cuidado mais adequado às necessidades próprias dessa fase, incluindo o planejamento familiar e puericultura. Por outro lado, e de forma incoerente com as necessidades da mulher e da criança, os dados clínicos sobre a gestação, parto e puerpério ficam distribuídos em diferentes sistemas de informação, com pouca ou nenhuma conexão entre eles. Usando de variadas plataformas de registro e sem um conteúdo mínimo definido estrategicamente e padronizado, a comunicação e troca de informação entre sistemas e, consequentemente, entre profissionais de saúde constituem ainda um processo em construção no Brasil.6 Este estudo se propõe a analisar criticamente o conteúdo clínico dos sumários de alta obstétrica em uma maternidade-escola para subsidiar a proposição de um padrão estruturado contendo um relato mínimo, porém indispensável, sobre o nascimento e sobre as intercorrências clínico-obstétricas, dedicado à continuidade do cuidado subsequente à internação.

PACIENTES E MÉTODOS Estudo observacional retrospectivo em base de dados secundários. A fonte documental de interesse, o sumário de alta obstétrico, foi consultada diretamente em prontuários da maternidade do Hospital das Clínicas da UFMG, logo após a alta ser efetivada O estudo tem aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG, CAAE 18572213.3.0000.5149. A seleção de prontuários de papel ocorreu por sorteio simples na secretaria do serviço, após a mulher ter deixado a maternidade, no período entre julho e dezembro de 2013, em dias convenientes aos pesquisadores e de forma a não impedir o fluxo de processamento contábil da internação. Os sumários de alta foram então avaliados quanto à legibilidade, digitalizados e armazenados eletronicamente para análise detalhada de seu conteúdo clínico descritivo. Os criRev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 476-483

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térios de inclusão no estudo analítico dos sumários de alta obstétrico foram, portanto, a possibilidade de serem lidos, avaliada por dois observadores, e a alta obstétrica já efetivada. Os critérios de exclusão foram sumários destinados às situações de transferência entre hospitais ou evasão (saída contra parecer médico). Por se tratar de maternidade de referência na rede SUS e maternidade-escola, o perfil do atendimento é caracterizado, predominantemente, por gestações consideradas de alto risco gestacional (43,7%), sendo a maioria referenciada apenas no momento da internação (55,1%). Quanto às práticas assistenciais nessa unidade, o atendimento obstétrico se dá a partir de plantões com 12 horas de duração. Os partos são realizados apenas por médicos. O preenchimento do sumário de alta é de responsabilidade do médico, que efetua os procedimentos de alta hospitalar, independentemente de ter sido ele o responsável pela admissão ou pela assistência ao parto. No programa de formação de médicos-residentes, as escalas são construídas buscando garantir que, pelo menos nos casos de internação clínica ou pós-parto de alto risco, o médico-assistente seja o mesmo a realizar a alta. O conteúdo clínico do formulário-padrão empregado é o mesmo de uso geral no hospital, sendo composto de quatro seções para escrita livre: resumo do quadro clínico, tratamento realizado, evolução do caso, diagnósticos firmados e duas seções estruturadas – condição e tipo de alta (curado, melhorado, inalterado, fuga, transferido, falecido, com necropsia, sem necropsia), transfusão de sangue (sim / não). Quanto às datas, o formulário traz como padrão campos para a da internação, da alta e do retorno pós-alta. Em avaliação inicial, os sumários de alta obstétrica foram categorizados em função das seguintes situações obstétricas: ■■ anteparto: alta pós-aborto, alta ainda grávida pós-tratamento. ■■ pós-parto: alta puerperal com parto ocorrido na maternidade, alta puerperal com parto ocorrido em trânsito, alta pós-tratamento de complicação puerperal. O limite tomado para definição de parto foi a idade gestacional ≥ 22 semanas ou peso ao nascer ≥ 500g(9). O risco gestacional envolvido nos casos analisados foi categorizado em alto e habitual, de acordo com os critérios sugeridos pelo Ministério da Saúde do Brasil(10). Em seguida, os sumários de alta de cada categoria foram lidos minuciosamente e uma lista com os elementos de dados dos vários conceitos clínicos encontrados

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foi criada, assim como sua frequência nos documentos foi contabilizada, em números absolutos e percentuais. Para isso, foi desenvolvida uma planilha eletrônica específica. Os achados foram apresentados em tabelas, agrupando-se os dados em informações maternas e neonatais. A frequência dos registros clínico-obstétricos documentados pelos médicos foi comparada entre os sumários obstétricos anteparto e pós-parto, empregando-se o teste qui-quadrado de Pearson para se avaliar a pertinência de um modelo único de sumário de alta para as várias situações de internação obstétrica. O programa estatístico empregado foi o SPSS® 21.0. O nível de significância ajustado para o teste de hipótese foi de 5%.

RESULTADOS Entre os 102 sumários de alta selecionados, três (2,9%) foram considerados ilegíveis e dois (2,0%) deles tratavam da transferência da gestante para outro hospital, totalizando cinco (4,9%) exclusões. Em 48 (49,5%) dos 97 documentos selecionados, a condição gestacional descrita caracterizou-se por elevado risco gestacional. As complicações mais frequentes foram: síndromes hipertensivas da gestação (n=10, 10,3%), anomalias fetais (n=8, 8,2%) e diabete (n=5, 5,2%). As condições obstétricas, quanto à cronologia gestacional, envolvidas nessas internações e a natureza das informações encontradas no sumário de alta estão apresentadas na Tabela 1. Avaliando-se detalhadamente cada uma das seções dos sumários de alta obstétricos, anteparto e pós-parto, a natureza de seu conteúdo foi detalhada em agrupamentos de informações: dados maternos e dados neonatais. Na Tabela 2 os elementos de dados contidos nos registros clínicos maternos mais frequentemente documentados pelos médicos foram listados, por ordem de frequência. Observou-se semelhança entre os dados clínicos registrados nos sumários de alta das internações anteparto e pós-parto, a não ser pelos resultados de exames mais frequentes no primeiro tipo e pelos dados sobre o nascimento, no segundo tipo. Entre os 77 sumários nos quais as mulheres se internaram gestantes e tiveram alta pós-parto, 42 correspondiam a partos por via vaginal e 35 (45,4%) a partos por cesariana. Todos os conceptos nasceram vivos e não foi possível identificar, apenas a partir do sumário de alta obstétrico, quantas altas mãe-filho foram conjuntas e quais neonatos ficaram retidos e tiveram, posteriormente, sumário de alta específico.


Análise do conteúdo do sumário de alta obstétrica em maternidade de referência. Uma oportunidade para repensar a estratégia …

Tabela 1 - Condições obstétricas no momento da alta e agrupamentos de conteúdos clínicos dos sumários de alta analisados, conforme formulário em uso no Hospital das Clínicas da UFMG Cronologia gestacional na alta

Agrupamentos estruturados do sumário de alta padrão usado na maternidade, com preenchimento em texto livre Resumo do quadro clínico

Tratamento realizado

Evolução do caso

Diagnósticos firmados

Anteparto (n=19, 19,6%) Pós-abortamento (n=15, 15,5%)

a) História obstétrica b) História clínica e comorbidades maternas

a) Intervenção terapêutica b) Medicamentos e exames

a) Condições da mulher na alta b) Complicações clínicas ou cirúrgicas

a) Condição obstétrica b) Comorbidades maternas c) Intercorrências clínicas

Alta ainda grávida (n=4, 4,1%)

a) História obstétrica b) História clínica e comorbidades maternas c) Histórico perinatal

a) Procedimentos, exames e tratamentos

a) Condições da gestante na alta b) Complicações clínicas ou cirúrgicas

a) Condição obstétrica b) Comorbidades maternas c) Intercorrências clínicas

Parto hospitalar (n=77, 78,6%)

a) História obstétrica b) História clínica e comorbidades maternas c) Histórico perinatal

a) Dados sobre o parto e nascimento b) Intervenções, medicamentos e exames

a) Condições de nascimento b) Evolução puerperal c) Evolução neonatal d) Complicações maternas e neonatais

a) Condição obstétrica b) Comorbidades maternas c) Morbidade neonatal d) Intercorrências clínicas

Complicação puerperal (n=1, 1%)

a) História obstétrica b) História clínica e comorbidades maternas

a) Procedimentos, exames e tratamentos

a) Condições maternas na alta

a) Complicação materna b) Comorbidades maternas c) Intercorrências clínicas

Pós-parto (n=78, 80,4%)

Parto em trânsito (n=0)

-

-

-

-

Tabela 2 - Dados clínicos maternos encontrados nos sumários de alta obstétricos da maternidade-escola do Hospital das Clinicas da UFMG, segundo momento obstétrico da internação Condições obstétricas anteparto (n=19)

Condições obstétricas pós-parto (n=78)

Total (n=97)

p

Paridade

19

77

96

0,92

Situação obstétrica na admissão

19

71

90

0,21

Idade gestacional*

16

73

89

0,25

Resultado de grupo sanguíneo e Rh

14

72

86

0,04

Resultado de teste de Sífilis

15

71

86

0,21

Resultado de teste anti-HIV**

11

72

83

<0,001

Dados do exame obstétrico na admissão

13

44

57

0,34

Resultado de outros exames

11

25

36

0,04

Resultado de ultrassom obstétrico

10

14

24

0,002

Dados clínicos História obstétrica

História clínica materna e comorbidades Idade materna

19

77

96

0,62

Doenças maternas

7

34

41

0,59

Dados vitais na admissão

6

27

33

0,52

Tratamento realizado Nome do procedimento terapêutico

16

78

94

<0,001

Anestesia utilizada***

9

23

32

<0,001

Via de parto #

-

77

-

-

-

39

-

-

Apresentação fetal #

-

32

-

-

Indicação da cesariana ##

-

29

-

-

Número de fetos

-

12

-

Dados objetivos do trabalho de parto

#

#

Continua…

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… continuação

Tabela 2 - Dados clínicos maternos encontrados nos sumários de alta obstétricos da maternidade-escola do Hospital das Clinicas da UFMG, segundo momento obstétrico da internação Condições obstétricas anteparto (n=19)

Condições obstétricas pós-parto (n=78)

Evolução obstétrica

19

Intercorrências obstétricas

19

Medicamentos usados Alergias medicamentosas

Dados clínicos

Total (n=97)

p

76

95

0,48

74

93

0,31

9

40

49

0,76

0

3

3

0,98

Evolução

Diagnósticos firmados Diagnóstico obstétrico

18

74

92

Diagnósticos clínicos

10

47

57

0,55

Orientações para alta

6

20

26

0,60

Medicamentos prescritos na alta

5

32

37

0,24

Condições de alta (campo estruturado)

19

68

87

0,10

p-Teste qui-quadrado de Pearson. * excluído um caso de complicação puerperal; **excluído um caso sabidamente HIV positivo; ***excluídos cinco casos de tratamento clínico; #entre 77 partos; ##entre 35 cesarianas

Na Tabela 3, os registros clínicos neonatais mais frequentemente documentados pelos médicos ginecologistas/obstetras foram listados por ordem de frequência. Tabela 3 - Dados clínicos neonatais encontrados nos sumários de alta obstétricos pós-parto da maternidade-escola do Hospital das Clinicas da UFMG Dados clínicos neonatais (n=77)

n(%)

Hora de nascimento

69(88,5%)

Peso do neonato

59(75,6%)

Apgar 1o minuto

54(70,1%)

Apgar 5o. minuto

54(70,1%)

Presença de pediatra na sala de parto

34(44,2%)

Sexo do neonato

22(36,7%)

Doenças perinatais

12(15,6%)

Resultado neonatal

9(11,7%)

Os campos estruturados, data de internação, data de alta e transfusão sanguínea tiveram elevada completude, cuja frequência de preenchimento foi de: 97,9%, 99,0% e 90,6%, respectivamente, sem diferença significativa entre sumários de alta obstétricos do tipo anteparto e pós-parto (p=0,27; 0,62 e 0,49, respectivamente). Já o campo destinado à data do retorno pós-alta teve baixa taxa de preenchimento em ambas as condições indistintamente (11,1%; 7,7%, p=0,64, respectivamente, para anteparto e pós-parto). Apenas um (1,0%) dos sumários analisados não registrou o nome do médico responsável pelo preenchimento e seu registro profissional.

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DISCUSSÃO A preocupação com a qualidade do conteúdo clínico de um sumário de alta hospitalar se justifica por sua importância como instrumento de comunicação entre os níveis terciário, secundário e primário da rede de atenção à saúde.6,8 O sucesso de um sistema público de saúde passa pela consolidação de um consistente programa de referência e contrarreferência, que por sua vez é dependente do registro adequado de informações clínicas pelas equipes de saúde, em todos os níveis.11,12 Cabe também ressaltar as especificidades desse documento em sequência a uma internação obstétrica. As pacientes que recebem alta hospitalar ainda grávidas demandam continuidade de sua assistência obstétrica, impactando no cuidado pré-natal após a intercorrência abordada durante a internação. As que passaram pela experiência de um abortamento necessitarão de orientação contraceptiva, além de apoio emocional, e o conhecimento das intercorrências clínicas e obstétricas durante sua internação pode influenciar na escolha do método contraceptivo assim como no planejamento de sua próxima gravidez. Em caso de alta pós-parto, a internação obstétrica realiza-se em nome da gestante, mas as informações apresentadas referem-se ao cuidado prestado à mulher e seu(s) neonato(s). A modalidade de alta conjunta mãe-filho é a mais frequentemente realizada, situação na qual ambos deixam o hospital em um mesmo momento.13 O neonato, ainda não


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registrado como usuário do sistema de saúde e, na maioria das vezes, nem como um cidadão no momento da alta materna, tem o conjunto de informações sobre seu nascimento armazenado no registro hospitalar de sua mãe. E, nesse sentido, justifica-se que as informações sobre a evolução desse recém-nascido estejam juntas com as da sua mãe, gerando um sumário de alta único para o binômio mãe-filho. É importante esclarecer que os dados relativos à alta do recém-nascido, quando da alta conjunta mãe-filho, são anotados, pelo pediatra, diretamente na Caderneta de Saúde da Criança, conforme preconizado pelo Ministério da Saúde, e por isso não geram sumário de alta.14 Tais informações serão o primeiro registro clínico documentado desse indivíduo e contêm informações relevantes para toda sua existência. Um sumário de alta específico para o recém-nascido só é gerado a partir do momento em que o mesmo é internado, com emissão de um registro próprio (prontuário), quando o mesmo apresenta alguma intercorrência ou quando se faz necessária a realização de algum procedimento específico. O conteúdo do sumário de alta de neonatos retidos após a alta materna e que recebem um prontuário específico não foi objeto deste estudo, mas são igualmente importantes e merecedores de uma análise especial. Um sumário de alta precisa ser um documento conciso, porém, completo, contendo diagnósticos, achados de exame físico e complementares, procedimentos, complicações, alergias, orientações para seguimento, datas de admissão e alta.6,8 Espera-se, assim, que esse resumo clínico-obstétrico-neonatal contenha informações relevantes sobre a sua permanência hospitalar como condições clínicas de admissão e alta, informações sobre o nascimento, evolução obstétrica e neonatal, exames realizados, medicamentos administrados, problemas apresentados durante a internação e fatos relevantes como reações adversas, além de orientações para seguimento pós-alta para a mulher e neonato. Do ponto de vista geral, viu-se que a prática da emissão do referido documento (sumário de alta) é bem incorporada no serviço, entretanto, a qualidade do preenchimento merece reflexões e intervenções para melhoria dos mesmos. Apesar de representar apenas pequena parcela (2,9%), os sumários considerados ilegíveis são inaceitáveis do ponto de vista assistencial, pois podem determinar uma grave interrupção na sequência da assistência obstétrica-perinatal. A construção de formulários padronizados e informatizados evitaria essa situação. Na leitura dos

campos de texto livre dos documentos analisados, alguns dos dados relevantes sobre a internação foram pouco encontrados, como: exame obstétrico na admissão (58,8%), sexo do neonato (36,7%), resultado neonatal (11,7%) – Tabelas 2 e 3 –, evidenciando as deficiências não só quanto à valorização desse documento, mas também à falta de uma estruturação do registro de informações obstétricas e perinatais estratégicas no formulário. Analisando-se o conteúdo geral das seções desse documento nas várias situações de alta obstétrica, observou-se que eles se diferem pouco quanto aos dados maternos (Tabela 1). Da mesma forma, a análise comparativa entre os dados encontrados nos sumários obstétricos anteparto e pós-parto foi, em grande parte, semelhante, excetuando-se quanto aos resultados de exames que estiveram mais presentes nos sumários anteparto (Tabela 2). Além disso, os dados trazem conteúdos próprios desse domínio sobre o nascimento ou procedimentos terapêuticos clínicos e cirúrgicos, como a curetagem no caso dos abortamentos e controle clínico de doenças maternas, nas gestações de risco. Mesmo assim, as semelhanças predominam e isso leva a crer que um formulário único poderia ser estruturado para as várias situações de internação obstétrica, com vantagens sobre um modelo de sumário geral, chamando a atenção para informações relevantes sobre o histórico obstétrico de uma mulher, incluindo dados do parto e período neonatal. Isso, provavelmente, melhoraria a qualidade e frequência de dados sobre o concepto, claramente menos presentes nos sumários do que os dados maternos, conforme se constatou na análise. A proposição de modelos de informação padronizados para os registros clínicos é estratégia primordial também para documentação eletrônica de um paciente.5,12 E propostas para o sumário de alta geral informatizados já foram feitas.6,8,15 Na modalidade de relato clínico orientado a problemas e evidências, o sumário de alta tem a sequência SOAP (S: dados subjetivos, O: dados objetivos, A: avaliação, P: planos) e mesmo nesse formato padrões internacionais de informação estruturada podem oferecer qualidade ao registro com vantagens, organizando-o de forma orientada ao paciente e não à doença.16 A presente análise, entretanto, é inédita por focar primeiramente o estudo dos conteúdos de sumários obstétricos, mesmo que em papel, avaliando a prática atual de comunicação das informações mais relevantes relativas à assistência ao parto, puerpério e neoRev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 476-483

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nato entre profissionais de saúde dessa maternidade e a atenção básica. Uma limitação da abordagem deste estudo, mas que por outro lado abre expectativas para o futuro, é a proposição de um padrão estruturado de conteúdo para esse documento. Isso, entretanto, demandará a análise de outros modelos de sumário de alta utilizados em serviços de saúde diversos, associado às recomendações nacionais e internacionais para esse documento, buscando também coerência com as políticas públicas brasileiras para a atenção à saúde materno-infantil. Acredita-se que a estruturação dos campos clínicos do formulário, seja ele eletrônico ou para o papel, contribuirá para melhorar a qualidade do seu conteúdo e do preenchimento. Chama a atenção a elevada frequência que os campos estruturados (data de admissão e alta) atingiram nos documentos analisados e mesmo a transfusão sanguínea, um evento muito raro e nos analisados sem alguma ocorrência positiva, que apresentou 90,6% de preenchimento. Enquanto isto, orientações para alta, mesmo que extremamente importantes, estiveram presentes em apenas 26,8% dos documentos (Tabela 2). Em relação a esse dado, cabe ressaltar que a maternidade na qual o estudo foi desenvolvido é uma referência terciária/quaternária para assistência obstétrica, mas recebe significativo contingente de gestantes que foram acompanhadas em centros de saúde do nível primário de atenção. No município de Belo Horizonte, a efetivação da chamada alta responsável, prevista em portaria do Ministério da Saúde, prevê que toda alta de puérpera residente no próprio município deve ser comunicada por e-mail para o centro de saúde de sua referência, sendo o acompanhamento puerperal de responsabilidade do próprio centro de saúde.17 Como a tarefa de comunicação das altas aos centros de saúde é feita pelo setor administrativo, o não lançamento da data do retorno por parte do médico responsável pela alta pode ser influenciado por essa prática. Entretanto, os pesquisadores identificaram que o não preenchimento desse campo aconteceu também nos prontuários de gestantes de alto risco que são sistematicamente acompanhadas no puerpério em ambulatório específico do próprio hospital (ambulatório de puerpério de alto risco), demonstrando pouca atenção à importância do dado. Outro dado relevante que merece atenção na estruturação de formulário-padrão informatizado é a baixa frequência da informação de medicação utilizada durante a internação bem como medicamentos

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prescritos à alta (50,5% e 38,1%). Embora seja de conhecimento que para a quase totalidade das vezes a emissão de receita é feita à alta hospitalar, a falta dessa informação no sumário de alta pode comprometer de forma significativa o cuidado pós-alta ou mesmo a abordagem de uma complicação pós-alta hospitalar. Em se tratando de uma maternidade-escola, parte significativa dos casos apresentava condições maternas e neonatais complexas, que certamente se seguiram de cuidados específicos após a saída do hospital. Trata-se de um padrão de informações que supera em complexidade as rotinas das maternidades em geral. Acredita-se com este estudo ter contribuído para a elaboração futura de um documento de conteúdo estruturado para comunicação de dados maternos e neonatais em sistema de informação, capaz de subsidiar um histórico integrado dos atendimentos no ciclo gravídico-puerperal de grande importância para a troca de informações entre maternidades, unidades neonatais, com unidades básicas de saúde e os serviços de referência para puerpério de gestações de alto risco e ambulatórios de referência para neonatos com complicações. Neonatos prematuros, com baixo peso, malformados, entre outras condições de risco, durante sua vida provavelmente irão necessitar de cuidados muito além daquele oferecido por um serviço único. Mesmo que a unidade básica de saúde seja seu acesso de referência, esse primeiro documento que marca o início de sua existência poderá certamente nortear muitas de suas necessidades assistenciais futuras, como preveem as estratégias mais efetivas de continuidade de cuidados em saúde.3,18 Da mesma forma, o conhecimento do resultado da gestação de uma mulher muito contribui para uma abordagem mais qualificada não apenas de seu futuro reprodutivo, mas de sua saúde como um todo.

AGRADECIMENTOS O estudo recebeu apoio da FAPEMIG – Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais, Financiamento APQ-00879-12.

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ARTIGO ORIGINAL

Portadores de doença renal crônica em fase produtiva: percepção sobre limitações resultantes do adoecimento Chronic kidney disease patients in the productive phase: perception of limitations resulting from illness Milady Cutrim Vieira Cavalcante1, Zeni Carvalho Lamy2, Eduardo Cardoso Santos 3, Jéssica Mendes Costa4

DOI: 10.5935/2238-3182.20150112

RESUMO Terapeuta Ocupacional. Doutoranda em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Maranhão – UFMA. Coordenadora do Programa de Residência Integrada Multiprofissional em Saúde do Hospital Universitário da UFMA. São Luís, MA – Brasil. 2 Médica Neonatologista. Doutora em Saúde da Criança e da Mulher. Professora do Departamento de Saúde Pública da UFMA nos Programas de Pós-Graduação em Saúde Materno-Infantil e em Saúde da Família – RENASF. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da UFMA. São Luís, MA – Brasil. 3 Médico. Especialista em Saúde da Família. Médico de Família e Comunidade da Secretaria de Saúde do Distrito Federal. São Luís, MA – Brasil. 4 Médica. Pós-graduanda em Saúde da Família pelo Ministério da Saúde – UNASUS – UFMA. Médica no Programa Saúde da Família pela SEMUS. São Luís, MA – Brasil. 1

Suporte Financeiro: Suporte financeiro concedido pela Fundação de Amparo à Pesquisa e Desenvolvimento Científico do Maranhão – FAPEMA. São Luís, MA – Brasil.

Introdução: a doença renal crônica-DRC gera limitações de ordem física, social e emocional, com sérias repercussões na vida do paciente. Muitos passam a viver em função do tratamento e se abstêm de uma vida ativa e funcional. Entretanto, as práticas profissionais de atenção estão centradas nos aspectos clínicos da doença e pouco consideram a experiência de adoecimento dos pacientes. Objetivo: compreender a percepção de portadores de DRC em fase produtiva quanto às limitações resultantes do adoecimento. Métodos: estudo qualitativo realizado de janeiro a julho de 2010. Foram entrevistadas nove pessoas em fase produtiva, em tratamento dialítico no HUUF-MA. Para amostra, utilizou-se critério de saturação e as entrevistas foram analisadas segundo a análise temática. Resultados: constituíram as unidades temáticas deste estudo: ter doença renal crônica – percepção sobre as limitações da doença renal; a peregrinação – em busca do diagnóstico; e uma nova organização familiar. A vivência do doente renal crônico se dá no universo da doença e do tratamento e grande parte deles entende a DRC a partir de elementos negativos, provavelmente devido à incorporação das características restritivas do tratamento dialítico, apesar de outros vivenciarem essa experiência com a percepção de alguns ganhos. Conclusão: a DRC impõe a ressignificação do tempo e inaugura novo modo de vida. É necessário repensar ações a fim de auxiliar a adaptação dos pacientes a essa nova condição. Palavras-chave: Insuficiência Renal Crônica; Diálise Renal; Percepção; Atividades Cotidianas. ABSTRACT

Recebido em: 30/07/2014 Aprovado em: 01/09/2015 Instituição: Hospital Universitário da Universidade Federal do Maranhão São Luís, MA – Brasil Autor correspondente: Milady Cutrim Vieira Cavalcante E-mail: miladycutrim@yahoo.com.br

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Introduction: chronic kidney disease-DRC generates physical, social, and emotional constraints with serious repercussions on the patient’s life. Many have their lives limited to the treatment and refrain from an active and functional life. However, professional practices of assistance are focused on the clinical aspects of the disease, and some consider the patients’ experience with the illness. Objective: to understand the perception of DRC carriers in their productive phase about the limitations resulting from the illness. Methods: this was a qualitative study conducted from January to July of 2010. We interviewed nine people in their productive stage and on dialysis treatment in the HUUF-MA. The saturation criterion was used for samples and interviews were analyzed using the thematic analysis. Results: the thematic units in this study were: to have chronic kidney disease - perceptions about the limitations of kidney disease; pilgrimage - in search of diagnosis; and a new family organization. The experience of the chronic kidney disease patient occurs in the disease universe and treatment. Most of them understand the DRC from negative elements, probably due to the incorporation of the restrictive features of dialysis, while others experience this with the perception of some gains. Conclusion:

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Portadores de doença renal crônica em fase produtiva: percepção sobre limitações resultantes do adoecimento

DRC requires the redefinition of time and opens a new way of life. It is necessary to rethink actions to assist the adaptation of patients to this new condition. Key words: Renal Insufficiency, Chronic; Renal Dialysis; Perception; Activities of Daily Living.

INTRODUÇÃO A doença renal cônica (DRC) vem assumindo importância global como problema de saúde pública. De acordo com estimativas da Sociedade Brasileira de Nefrologia, no Brasil havia, em 2013, cerca de 100.397 pacientes em terapia dialítica, representando aumento de 135,1% do número de casos no período de 2000 a 2013. E, entre esses pacientes, 62,6% possuíam entre 19 e 64 anos, correspondendo à faixa economicamente ativa.1 O tratamento da DRC no estágio mais avançado é oneroso, havendo estimativas de que 84% do tratamento dialítico sejam financiados pelo Sistema Único de Saúde1. O fato de essa doença atingir em grande parte pessoas em idade produtiva tem forte impacto econômico calculado por anos produtivos de vida perdidos, nos custos de hospitalização e de uso de serviços de saúde.2 Além disso, a DRC pode gerar limitações de ordem física, social e emocional, com sérias repercussões na vida do paciente e de sua família.3 Na maioria das vezes, a rotina do portador de DRC restringe-se a consultas médicas, sessões de HD, dietas especiais e execução de atividades pouco significativas3,4. Carreira e Marcon4 referem que muitos pacientes passam a viver em função do tratamento e se abstêm de uma vida ativa e funcional. Segundo Carneiro,5 a terapêutica dialítica envolve complexa equação cujos principais termos são paciente sofrendo de uma doença grave e crônica, a dependência dos profissionais de saúde e a dependência de uma máquina. Sob o olhar da equipe de saúde, a pessoa que enfrenta a doença renal em estágio final está presa entre a morte certa e uma vida dependente do suporte tecnológico.6 De modo geral, a forma como a DRC se manifesta, sua condição crônica, as intensas mudanças na rotina do paciente e de sua família, o ambiente do ambulatório e o desgastante tratamento realizado precipitam uma série de consequências que tornam os pacientes renais mais suscetíveis a conflitos e instabilidades.5 Todo esse contexto pode refletir-se na desestruturação do cotidiano dos pacientes.7 Barbosa e Valadares8 referem que ser portador de uma doença crônica

representa um desafio devido às alterações no cotidiano implicados no novo modo de vida. Entretanto, as práticas profissionais de atenção voltadas para esse grupo ainda estão centradas nos aspectos clínicos da doença e pouco consideram a experiência de adoecimento dos pacientes. Compreende-se que viver com a condição crônica passa a ser, para além dos agravos físicos, uma intercorrência estressora, alterando o processo de ser saudável de indivíduos ou grupos.7 E, nesse processo, as pessoas elaboram os sentidos e significados que irão constituir a sua experiência muito particular de adoecimento. Canesqui9 afirma que o sujeito que convive com uma doença crônica é alguém cuja condição o acompanha em todos os lugares; a forma como entende, explica, representa e lida com a doença decorre de um constante movimento em que interpretação e ação se realimentam reciprocamente, balizadas pelo cenário sociocultural imediato e mais amplo no qual se inserem. Esses elementos servirão de subsídios para a compreensão das várias repercussões da DRC na vida da pessoa, o que implica pôr em discussão outras dimensões que não apenas aquelas que se relacionam à fisiopatologia e seu controle, mas que trazem a necessidade de apreensão do cotidiano e de outros aspectos relacionados ao convívio com uma condição crônica, em que a experiência de adoecimento é explorada como uma construção social para além da perspectiva tradicionalmente sustentada pelos profissionais de saúde. Assim, constituiu objetivo deste estudo compreender a percepção de portadores de DRC em fase produtiva sobre o adoecimento, na medida em que pacientes com condições clínicas e terapêuticas similares apresentam diferentes percepções sobre um mesmo fenômeno e que os significados do adoecimento atribuídos pelos sujeitos são influenciados por seus âmbitos. Tal conhecimento, além de contribuir para a reflexão da assistência prestada, poderá fornecer subsídios aos profissionais de saúde, de modo a considerar, na prática clínica, o contexto de vida e os aspectos subjetivos de quem vivencia a cronicidade da doença renal.

MÉTODOS Estudo qualitativo realizado no Serviço de Nefrologia do Hospital Universitário da UFMA (HUUF-MA), no período de janeiro a julho de 2010. Foram consiRev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 484-492

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derados critérios de inclusão: possuir idade entre 20 e 59 anos, por corresponder à fase de vida produtiva, implicando a existência de mudanças dos planos em função da doença e tempo de tratamento; além do tempo mínimo de tratamento de três meses, considerando que os primeiros meses de tratamento refletem um momento de muitas mudanças e adaptações associadas à recente interrupção das atividades. Não foram incluídos pacientes com comprometimento de fala e audição pelas possíveis dificuldades na comunicação identificadas no momento da entrevista. A partir dos sujeitos elegíveis para este estudo, que totalizaram 76 portadores de DRC, a amostra foi definida de forma intencional, buscando contemplar as diferentes características do universo do estudo, sendo selecionados homens e mulheres em diferentes idades, situações socioeconômicas e escolaridade. Após coleta dos dados, verificou-se tendência à repetição das informações, caracterizando o critério de saturação de sentidos10, quando houve suspensão das entrevistas que ficaram limitadas a nove, entre as quais sete foram transcritas e posteriormente analisadas. Uma entrevista foi perdida durante o processo de gravação e outra, por dificuldade na reprodução do áudio durante a transcrição. A técnica utilizada para a obtenção dos dados foi a entrevista semiestruturada, cujo roteiro abordou questões sobre os significados, a descoberta, conhecimento prévio, repercussões e expectativas da DRC bem como formas de enfrentamento e suporte social diante dessa doença. As entrevistas foram gravadas com o consentimento dos pacientes. E visando manter o sigilo dos entrevistados, seus nomes foram substituídos no momento da transcrição pela letra “H” para os homens e “M” para as mulheres, seguidas dos números de ordem cronológica das entrevistas. Cada entrevista teve duração média de 40 minutos. Após a coleta do material, as questões foram agrupadas de acordo com seu núcleo temático em categorias de análise e interpretadas pela técnica de análise de conteúdo na modalidade de análise temática. Nessa modalidade foram seguidas três etapas, conforme Bardin11: pré-análise, em que é realizada a leitura exaustiva do material, visando à formulação e reformulação de hipóteses e objetivos; na fase de exploração do material, os dados são codificados em unidades de registro; na terceira etapa, os dados são classificados e agregados em categorias de análise. Este artigo é parte de um projeto que foi desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Saúde Co-

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letiva – UFMA, intitulado: Qualidade de vida de portadores de doença renal crônica em hemodiálise, no município de São Luís-MA, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do HUUFMA (Parecer nº262/2008).

RESULTADOS E DISCUSSÃO Foram analisadas as entrevistas de sete pacientes, sendo quatro mulheres e três homens. Seis pacientes encontravam-se em hemodiálise e uma estava em diálise peritoneal ambulatorial contínua. Quanto à escolaridade, dois pacientes não foram alfabetizados, quatro cursaram até o ensino fundamental, sendo que, destes, apenas um o concluiu. A maioria dos entrevistados possuía união estável e, entre estes, todos tinham filhos. Quatro pacientes eram provenientes do interior – um procedente de outro estado e os demais do município de São Luís – MA. Três pacientes trabalhavam como lavradores, um era estudante, um promotor de vendas, uma dona de casa e uma era estudante do curso técnico de Enfermagem quando descobriu a DRC. Apenas um paciente continuava inserido em atividade laboral, os demais haviam abandonado suas atividades após o início da diálise. Como unidades temáticas, foram identificadas a) ser doente renal crônico: percepção sobre as limitações da doença renal; b) a peregrinação: em busca do diagnóstico; c) uma nova organização familiar.

Ser doente renal crônico: percepção sobre as limitações da doença renal A vida do indivíduo decorre dentro do cenário da experiência cotidiana imediata e a identidade de cada um está implicada nos acontecimentos vivenciados no mundo.12 Dessa forma, a vivência dos sujeitos deste estudo se dá no universo da doença e do tratamento. Verificou-se, a partir das falas dos sujeitos, uma incorporação da doença à sua própria identidade, quando se autodenominam “renais crônicos”, em que há uma sobreposição do “ser doente” sobre o “ser saudável”. Parece haver uma espécie de crise de identidade que afeta os papéis sociais, o autoconceito e a forma como esses pacientes enfrentam a doença. Pode-se também depreender das entrevistas significados opostos atribuídos à DRC. Grande parte dos


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sujeitos estudados entende a DRC a partir de elementos negativos, provavelmente devido à maior incorporação das características restritivas do tratamento dialítico, apesar de outros vivenciarem essa experiência com a percepção de alguns ganhos. Para os pacientes que atribuem sentidos negativos à DRC, esta surge como algo desconhecido, de forma inesperada e desastrosa, modificando parcial ou definitivamente o curso de suas vidas. Em algumas falas a doença representou a perda da liberdade (prisão), dada a impossibilidade de viver concretamente a liberdade de ir e vir, bem como a obrigatoriedade de viver distante da família, como no caso daqueles oriundos do interior do estado que ainda precisam residir com estranhos e ser submetidos a normas institucionais de casas de apoio na capital. Outro aspecto retratado foi a necessidade de abandono de sonhos devido à DRC, como a paciente que, após dedicar grande esforço para se formar em técnica de enfermagem, não pôde assumir o emprego em hospital público da capital cuja convocação ocorreu na ocasião do diagnóstico da DRC e recente início do tratamento. As vivências dessa paciente se dão dentro de um serviço de diálise, o que constitui obstáculo para a realização de suas possibilidades e implica muitas renúncias. Seu relato foi acompanhado por reações de grande pesar e conformismo, sendo identificado também o cerceamento da liberdade de escolha. O escolher consiste na condição de liberdade humana, proporcionando amplitude nas possibilidades durante a existência.12 Para Forghieri13, a liberdade de escolher varia conforme a abertura do ser humano à percepção e compreensão de sua vivência no mundo, de modo que essa abertura requer também que a compreensão esteja de acordo com a realidade. Os pacientes com DRC apresentam limitações no cotidiano e vivenciam inúmeras perdas e mudanças biopsicossociais que, por sua vez, interferem em sua qualidade de vida3,14. Neste estudo foram evidenciadas limitações relacionadas aos mais diferentes aspectos da vida de um sujeito. As limitações físicas determinadas pelas manifestações clínicas da doença e do tratamento foram questões relevantes levantadas pelos pacientes. “Porque amanhece assim tão ruim […] tem dia que a gente amanhece mais fraco, né? É […] não se sente bem […] aí fico por lá, agora tô morando em cima, a casa da menina é duas:

uma embaixo a outra em cima […] ô mas eu me dou tanto mal em descer aquela escada!” [M3, 56 anos]. A fadiga foi queixa frequente dos pacientes, sendo relatado que influenciava significativamente no cotidiano. Foi mencionado que mesmo no momento em que não estavam em diálise, havia comprometimento no desenvolvimento das atividades diárias por ausência de força para executá-las. “Porque a gente faz esse tratamento, a gente não faz nadinha, mas se sente tão cansado! Parece que trabalhou o dia todinho. A gente amanhece o dia, parece que tava trabalhando de noite, se senta todo cansado! Pra ficar em pé, fica todo cansado…” [H1, 46 anos]. A necessidade de restrição hídrica também foi uma situação relatada, a que os pacientes em diálise precisam se adaptar. O simples ato de beber água, rotineiro e até banalizado por pessoas que não possuem DRC, ganha importância para os pacientes que estão em diálise. “Porque a secura é grande! É muita secura! […] A água fica tão boa que se pudesse, era só beber água, nem comia. A água é mais melhor que o comer e muito!” [H1, 46 anos]. Lima e Gualda15 salientam que a qualidade de vida dos pacientes com DRC se mostra comprometida principalmente pelas restrições hídricas e alimentares. E, a fim de superar a dificuldade de adaptação a essa restrição apresentada pelos pacientes renais, Trentini et al.7 indicam a necessidade de explicar o que o excesso de líquido ou a ingestão de certos alimentos causam no organismo com a função renal prejudicada. Para isso, o profissional deve lançar mão de uma linguagem popular e métodos participativos. Além dessas limitações, os pacientes ainda precisam lidar com a obrigatoriedade de dependência da máquina de diálise e das pessoas que a manejam. Tais dependências desestabilizam a vida do indivíduo como um todo e podem desencadear inúmeros sentimentos.7 As limitações para o trabalho também foram retratadas neste estudo, ocasionando a perda do emprego ou necessidade de adaptação a uma nova função bem como a dependência da aposentadoria e/ou do trabalho do cônjuge. Embora a DRC e seu tratamento não constituam impedimento direto ao trabalho, elas causam limitações importantes, gerando afastamento e aposentadorias precoces.4 Rev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 484-492

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“Porque logo quando eu fiquei doente eu tinha acabado de formar (…) e quando eu ia começar a trabalhar, eu num pude mais… Aí eu até chorei! Mamãe me disse muito depois… Aí eu não podia mais. Aí chamaram outra pessoa” [M2, 29 anos]. “(…) não faço as coisas pesadas que eu fazia. Carregava um saco de 50 quilos de batata, hoje eu não faço mais. O peso que eu carrego é a caneta e o livrinho” [H6, 38 anos]. Trentini et al.7 também evidenciaram, em seu estudo, a necessidade de aposentadoria precoce e relataram que na realidade brasileira as pessoas com DRC em tratamento hemodialítico geralmente são aposentadas por incapacidade. Assim, os pacientes e suas famílias necessitam se adequar à nova renda que, muitas vezes, é menor que a anterior à doença.16 A situação de emprego em idade produtiva é um fator importante que influencia a qualidade de vida. Segundo dados da Sociedade Brasileira de Nefrologia, 62,6% dos pacientes em terapia dialítica possuem entre 19 e 64 anos, correspondendo à faixa economicamente ativa1, porém o percentual de pacientes que continua trabalhando é baixo.4,16 Duas questões, isoladas ou associadas, podem estar relacionadas à dificuldade em estabelecer e/ou manter vínculo empregatício ou mesmo atividades remuneradas ligadas ao mercado informal de trabalho. Essas limitações podem ser atribuídas ao contexto de tratamento, que exige a presença dos pacientes no centro de diálise três vezes por semana pelo período de quatro horas por sessão, sem previsão de duração do tratamento dialítico14; ou às frequentes queixas físicas de fraqueza, cansaço, indisposição e mal-estar geral com o tratamento.7 A mudança de papéis familiares foi observada nas entrevistas em que o chefe de família, após a doença, ficou impossibilitado de trabalhar e tornou-se dependente de aposentadoria e/ou do trabalho do cônjuge. Pode ser que os homens sintam essas restrições de forma mais intensa, pois desenvolvem atividades essencialmente ligadas ao trabalho e, segundo Thomé17, em nossa sociedade continuam sendo posicionados como provedores, apesar da crescente inserção das mulheres no mercado de trabalho. A dificuldade de aceitação das mudanças dos papéis familiares observada somente entre os pacientes do sexo masculino deste estudo pode se justificar ainda por, na situação de doença, eles se assumirem

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somente como doentes e não conseguirem se ver em outras identidades nesse momento de suas vidas tais como pai, avô, marido, trabalhador.17 No estudo de Martins e Cesarino14, além do comprometimento do trabalho, ficaram evidenciadas restrições quanto às atividades domésticas. Às doentes renais do sexo feminino, as atividades domésticas oferecem oportunidade de ocupação do tempo, fazendo com que elas se sintam produtivas18. Entretanto, a dificuldade para executá-las foi associada, neste estudo, a um sentimento de frustração. “[…] Eu fazia de tudo, ajudava mamãe e hoje eu não posso fazer muita coisa por causa do braço e ela nem deixa. Ajudava muito, [agora] lá uma vez eu corto uma coisinha assim” [M2, 29 anos]. Outras limitações que geram angústia e foram citadas pelos pacientes estavam relacionadas às atividades de lazer. Cunha et al.19 reportam que pacientes em hemodiálise têm diminuição da sua capacidade cardiorrespiratória, fator limitante para a prática de atividades físicas, o que pode prejudicar também as atividades de lazer. Além disso, a preocupação em perder a fístula determinou mudanças nos tipos de atividades recreativas realizadas pelos sujeitos entrevistados. A fístula arteriovenosa é o melhor acesso vascular para esses pacientes, porém apresenta como complicações tromboses, estenoses, pseudoaneurismas e infecção, por isso é importante o cuidado com a fístula, visando aumentar a sua vida útil.20 “[…] eu não posso fazer muito esforço, ta correndo, né […] eu tenho medo d’eu tá brincando na rede, também não posso sair na chuva, tá brincando na areia […] e agora eu não posso tá jogando bola aí eu fico […] eu fico triste por esse lado […] eu vou jogar dama com meu primo, eu leio livros de vez em quando, quando tem, vou na casa da minha irmã [pausa] volto… e é isso o dia todo” [H7, 20 anos]. “Eu larguei de pular corda […] subir em árvore, nadar também no rio […] Montar em cavalo, jogar bola […] Aí eu sei que tudo isso é prejudicial pra mim, porque eu posso cair e perder a fístula” [M5, 43 anos]. Outra questão a ser considerada é a alteração da imagem corporal. Koepe e Araújo20 analisaram as percepções dos pacientes em hemodiálise frente à


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fístula e detectaram sentimentos como tristeza, amargura e dependência, além de relatos de que a fístula simbolizava amor à vida, esperança e extrema necessidade. Esses sentimentos refletem a insatisfação e ao mesmo tempo a dependência dos pacientes em relação ao tratamento. A percepção dos pacientes deste estudo em relação à fístula também foi expressa por sentimentos contraditórios, em que esta era vista como “parceira”, “amiga”, “que deveria ser bem cuidada”, por viabilizar o tratamento, e ao mesmo tempo motivo de vergonha. Alguns mencionaram que no começo do tratamento sentiam vergonha, mas que após um tempo a superaram, demonstrando certa adaptação quanto à autoimagem. “Eu ficava com vergonha, mas agora não! Não tenho vergonha dos meus braços […] A fístula também, ter cuidado pra gente não carregar peso, não dormir por cima do braço… Tem que lavar meu braço, não tem que deixar ficar agarrando, ta puxando; medir pressão também não pode, tomar injeção. Nada nesse braço que eu tenho a fístula” [M5, 43 anos]. Para Carneiro5, a doença e o estresse gerados pelo tratamento podem levar os pacientes a desencadearem medo, insegurança, ansiedade, depressão, baixa autoestima e sensação de inutilidade. Esses sentimentos foram representados em vários momentos das entrevistas. Para alguns pacientes, entretanto, a DRC não representa um obstáculo intransponível, reconhecendo em si possibilidades de transformação, crescimento pessoal e mais valorização da vida. “Antigamente eu não ligava pra nada, até na firma eu bebia, […] você não dá valor no dinheiro, não dá valor no serviço […] são coisas que eu não tinha olhos antes da doença, não que eu mudei assim radical comigo, só que tem assim uma diferença, a gente nota dentro de casa […] mudei pra melhor.” A adaptação ao contexto da doença se configura como um processo complexo em que o paciente precisa lidar com perdas, sendo a aceitação uma das formas de enfrentamento das limitações impostas21. Neste estudo, a maioria dos entrevistados declarou aceitar a doença e o tratamento dialítico, apesar do sofrimento vivido, entretanto, percebe-se certo conformismo nas falas, nem sempre representando aceitação positiva da doença.

“Aí foi que eu fiquei internada, comecei a diálise, era muito difícil, eu queria desistir porque toda vez eu passava mal, toda vez, toda vez eu queria desistir, não aguentava mais fazer […] a gente acaba acostumando porque tem que se tratar, né?! […] é um sofrimento que a gente tem que levar, né? Mas muda. Muda muita coisa sim. Essas coisas a gente releva, né? Deixa como Deus quer” [M2, 29 anos]. No estudo de Araújo et al.21, os pacientes entrevistados citaram possuir vida normal, de modo geral. Para os autores, isso parece uma contradição, dada a constante queixa em relação às restrições de diferentes naturezas. Na verdade, segundo eles, pode significar uma forma de se conformar, no sentido de se ajustar e se resignar à nova condição de vida. “Como eu tô lhe dizendo […] já acho que me acostumei mesmo com a vida, porque também acostuma” [M4, 50 anos]. No estudo de Bertolin22, os modos de enfrentamento mais utilizados por pacientes em hemodiálise estavam relacionados aos esforços para criar um significado positivo da doença, enfocando o crescimento pessoal, além de esforços para resolução de problemas relativos à doença e ao tratamento. Neste estudo, alguns pacientes demonstraram aceitação positiva da doença. “Porque eu sabia que eu tinha que levar minha vida agora era assim… Mas não fiquei deprimida, não enrolei e vivo minha vida normal… Dá vontade de ir? Eu vou! Só não viajo porque não dá, né? Mas o resto das outras coisas eu faço de tudo, sim! Na medida do possível, que não dê pra me prejudicar, né? Aí foi só isso… Do resto… Ficar isolada não adianta! Tem que levar a vida, tem situações que a gente tem que aceitar, né?” [M5, 43 anos]. Costa et al.23 reconhecem que as diferentes estratégias de enfrentamento utilizadas por pacientes em diálise variam de acordo com a experiência de vida, fatores culturais e religiosos de cada indivíduo. De modo geral, observa-se o esforço dos pacientes renais para manutenção do equilíbrio frente à nova realidade.

A peregrinação: em busca do diagnóstico Com o avanço da DRC há perda gradual da filtração glomerular e, por ser lenta e progressiva, a DRC Rev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 484-492

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resulta em processos adaptativos que, até certo ponto, mantêm os pacientes sem sintomas da doença. A manifestação dos sintomas ocorre nos estágios mais avançados, quando estes já manifestam uma ou mais complicações e/ou comorbidades.24 Embora os critérios para o diagnóstico da DRC estejam bem estabelecidos, a maioria dos pacientes com DRC é identificada ou tratada com atraso considerável. Nesta pesquisa, a busca pelo diagnóstico da DRC mostrou-se um caminho com muitos obstáculos para quase todos os entrevistados. Alguns deles percorreram diferentes municípios ou precisaram se deslocar do interior do estado para a capital para identificação da doença. Essas situações levam à demora na determinação do diagnóstico e são retratadas nas falas a seguir: “Quando eu tava lá morrendo ninguém nunca descobriu, ninguém nunca disse o que era. E eu ia morrer sem saber, porque lá ninguém nunca descobriu […]! Eu tava quase trespassado, aí a mulher disse pra mim, ‘rapaz, tu já vivia há muito tempo pra morrer’…” [H1, 46 anos]. “Aí eu fui pro hospital lá em São Benedito. Lá o doutor disse que era coluna. Aí eu tomando esse diclofenaco […] tomei muito e em casa, piorando. Aí fui pra Chapadinha. Quando eu cheguei lá o médico disse a mesma coisa […] que era coluna! E eu morrendo […] aí eu ficava […] a casa enchia de gente, era dia e noite” [M3, 56 anos]. “Aí eu vim pra cá, cheguei aqui comecei a andar nos hospitais andei, andei […] num bocado de hospital, […] andei em lugar que eu nem sei mais pra onde é que fica, que eu vivia doente, sem […] sem rumo” [M4, 50 anos]. As cidades do interior do Maranhão nem sempre contam com recursos tecnológicos necessários para o diagnóstico da DRC. Além disso, muitas vezes há despreparo das equipes de saúde, que tratam o paciente paliativamente por longo período, enquanto a DRC evolui para estágios mais severos. Dessa forma, verifica-se que a peregrinação apresentada pelos pacientes renais pode ser resultado de uma questão multifatorial entre as quais se destacam: dificuldade de acesso, ausência de acolhimento, grandes filas de espera, despreparo das equipes de saúde e infraestrutura deficiente do sistema de saúde dos diversos municípios do estado.

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A longa espera pela identificação do diagnóstico da DRC pode prejudicar o início do tratamento, levando à necessidade imediata de terapia renal substitutiva e, portanto, à interrupção repentina das atividades cotidianas por parte dos pacientes, desencadeando nestes sentimentos de medo e insegurança. Martins e Cesarino14 prelecionam que o cotidiano dos pacientes com DRC passa por grandes modificações a partir do momento do diagnóstico. Neste trabalho apurou-se que o adoecimento, mesmo antes do diagnóstico, modifica de forma importante a rotina dos sujeitos, que passam a viver em função da cura de seus sintomas e à espera de uma descoberta que depende do outro, no caso, o médico. Ocorre um comportamento persistente de buscar a solução para a doença, recorrendo a diferentes profissionais e serviços de saúde, dificultado pela falta de informação e motivado pelo grande desejo de resgate da saúde. Verifica-se que as falas retratam sujeitos que buscaram recuperar sua saúde pela via do enfrentamento. De acordo com Mariano6, duas vias possíveis para essa busca são a do enfrentamento e da evitação, mas em ambos os casos há o comprometimento emocional e a necessidade de busca pelo equilíbrio perdido. Ao longo desse processo, o sujeito vai apreendendo a situação e tendo a percepção de que a DRC lhe impõe a necessidade de buscar um novo equilíbrio, distante do anteriormente vivido e baseado em uma necessária nova interpretação do seu contexto de vida. Em essência, toda realidade guarda infinitas possibilidades que possam existir. Diferentes realidades emergem quando a história individual de cada um rompe o cotidiano.6

Uma nova organização familiar Com a evolução da DRC, em geral, a dependência dos pacientes aumenta, exigindo mais envolvimento da família. Dessa forma, a família sofre mudanças na sua organização, precisando se adaptar às necessidades e atividades relativas ao tratamento do paciente.4 A mobilização dos familiares para dar suporte ao paciente esteve presente nos discursos dos entrevistados. “Aí [a filha] chamou e disse ‘oh a mamãe tá internada. Eu vou passar o dia e vocês vão passar a noite [com ela]. O Ademir vai passar mais [acompanhar] a mamãe sábado e domingo e os outros é assim: um dia sim outro não” [M3, 56 anos].


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Em alguns casos, o apoio da família é retratado associado ao empenho e à dedicação para prestar os cuidados necessários. Há também casos de reaproximação dos familiares após a doença. “Meu braço esquerdo, direito, minhas pernas, todas elas [esposa e filhas]. Elas foram importantes demais. Todas acompanharam, né?” [H6, 39 anos]. “Teve mais cuidado deles comigo, teve gente que se uniu até mais. Entendeu? Quem era um pouco afastado” [M5, 43 anos]. Segundo Ribeiro25, os familiares são os que mais apoiam os doentes crônicos perante a demanda do ponto de vista físico, incluindo o preparo das refeições, administração de medicamentos e cuidados diários. Constituem também as maiores fontes de apoio emocional e de suporte social. Esse suporte é variável e pode ser dado com mais ou com menos intensidade. No entanto, a doença crônica também produz um estado de tensão na família, rompendo o equilíbrio emocional do grupo. Situações de crise e incerteza sobre o futuro são compartilhadas pelos seus membros.25 Algumas experiências negativas foram relatadas, como o afastamento do cônjuge após o diagnóstico, devido a este pensar se tratar de uma doença contagiosa, ou pelo paciente ter a sensação de ter se tornado um fardo. O desconhecimento sobre a doença pode gerar preconceitos e abandono. “[…] quando eu fiquei doente ele me abandonou […] ele se afastou, ele se afastou com um filho, ele se afastou, se afastou bastante porque ele pensava que era uma doença contagiosa […]” [M2, 29 anos]. Ribeiro25 defende que o estresse provocado pela doença crônica pode levar ao distanciamento, gerando separações e divórcios, conforme pode ser identificado nas falas anteriormente transcritas. Além disso, o medo do contágio pode significar falta de informação e de estrutura emocional para lidar com as limitações do cônjuge. A equipe de saúde tem importante papel no esclarecimento das questões referentes à doença para os familiares. Há ainda situações em que o paciente necessita mudar para locais próximos dos centros de diálise para realização do tratamento, tendo que morar em casas alugadas ou de apoio, longe do convívio familiar.

Nesses casos, o suporte oferecido pela equipe, muitas vezes, passa a ser a única fonte de apoio ao doente. “Não posso mais viajar também, ir em casa. E tá ruim, não tá muito bom, não. A mulher não pode vir pra onde eu […] Porque nós temos filho pequeno […] Aí eu fico sozinho aqui, pulando na mão de um e de outro […] [H1, 46 anos]. “[…] ele [o cônjuge] ficou lá trabalhando de roça, ele não larga a roça, diz que não vem” [M3, 56 anos]. A impossibilidade de estar mais perto fisicamente da família também teve como causa a falta de condições financeiras para viajar para o local de origem, visto que grande parte do dinheiro da aposentadoria é gasto com medicamentos. Novas redes de apoio vão sendo tecidas e os pacientes revelam aproximação com outros pacientes e com a equipe de saúde. Ainda assim, não há diminuição do sofrimento sentido pelo afastamento dos familiares. “Eu não me sinto muito triste porque eles mesmos puxam assunto, né?! [os profissionais de saúde] E eu me dou com todo mundo, não me aperreio com ninguém lá, mas a gente sente falta dos da gente… sente muita falta” [H1, 46 anos].

CONCLUSÃO A doença renal crônica causa grande impacto na vida do indivíduo. Esse impacto é agravado na situação de diagnóstico tardio e início repentino de terapia dialítica, gerando sentimentos de medo, insegurança e impotência diante da nova realidade. Ter doença renal crônica é, sobretudo, lidar com as restrições impostas, especialmente ligadas aos aspectos físicos, emocionais, relacionadas ao trabalho, às atividades diárias, sociais e de lazer. O suporte familiar e da equipe de saúde são imprescindíveis nesse contexto. É importante uma tomada de consciência pelos profissionais de saúde para que possam cuidar sob a perspectiva do ser humano que adoece e não somente do órgão doente. Tecnologias leves, como acolhimento e suporte social, podem complementar a assistência ao doente, trabalhando novas possibilidades diante da DRC. Pode-se apreender que a sofisticação tecnológica é importante e necessária, mas não é suficiente para lidar com o processo do adoecer. Os recursos investiRev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 484-492

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dos em tecnologias para o tratamento da DRC devem prever a reintegração dos doentes à sociedade, de modo a garantir sua autonomia e proporcionar-lhes boa qualidade de vida.

AGRADECIMENTOS

11. Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011. 12. Rezende MAZ. Tentando compreender o significado da hemodiálise para o paciente renal crônico a partir da fenomenologia existencial [dissertação]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2006. 13. Forghieri YC. Psicologia Fenomenológica: fundamentos, método e pesquisas. 6ª ed. São Paulo: Pioneira Thomson Learning; 2010.

Os autores são gratos à equipe do Serviço de Nefrologia do HUUF-MA, que tanto contribuiu durante o andamento deste estudo, e à Instituição FAPEMA, pelo suporte financeiro.

14. Martins MRI, Cesarino CB. Qualidade de vida de pessoas com doença renal crônica em tratamento hemodialítico. Rev Latino-Am Enferm. 2005; 13(5):670-6.

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ARTIGO ORIGINAL

Saúde, trabalho e adoecimento: o trabalho como mediador das representações sociais de agricultores familiares Health, work, and illness: work as the mediator of social representations of family farmers Luiz Paulo Ribeiro1, Fátima Lúcia Caldeira Brant 2, Tarcísio Márcio Magalhães Pinheiro3

DOI: 10.5935/2238-3182.20150113

RESUMO Introdução: visualizar o mundo rural como o plantar, colher e sobreviver organiza e simplifica o trabalho rural e o modo de vida das comunidades rurais em lógica que isola e desvaloriza saberes e formas de agir. Objetivo: analisar as representações sociais sobre a saúde e o adoecimento para trabalhadores rurais participantes de uma associação de agricultores familiares do município de Santo Antônio do Monte-MG. Metodologia: foram adotados para coleta de dados as entrevistas semiestruturadas, grupos focais e anotações de diário de campo. E para análise de dados, a análise de conteúdo por categorias por meio do AtlasTi 7.0. Resultados: os principais resultados revelaram estreita relação entre as representações sociais e a disponibilidade de artifícios públicos e sociais na concepção das percepções dos estados de saúde e adoecimento, assim como de rede complementar de saberes como forma substitutiva à saúde pública, e extensa preocupação dos agricultores com a saúde mental. Conclusões: a necessidade de analisar e acompanhar a saúde mental e o trabalho dos agricultores familiares nasce de nova perspectiva de visualizar o rural não só como bucólico, mas também atravessado pelas demandas ocasionadas pelo desamparo social, econômico e político, além da necessidade de o rever como locus de atuação e investimento do SUS, inclusive da política pública de saúde do trabalhador. Palavras-chave: Trabalhadores Rurais; Agricultura; Saúde Pública; Doenças Profissionais.

1 Psicólogo. Mestre em Promoção da Saúde e Prevenção da Violência. Doutorando da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG. Professor Assistente III no Centro Universitário de Belo Horizonte. Belo Horizonte, MG – Brasil. 2 Psicóloga. Mestre em Promoção da Saúde e Prevenção da Violência. Centro de Referência em Saúde do Trabalhador do município de Contagem. Contagem, MG – Brasil. 3 Médico. Doutor em Saúde Coletiva. Professor do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da UFMG – Belo Horizonte, MG – Brasil.

*O presente artigo trata de um dos produtos da dissertação de Mestrado em Promoção da Saúde e Prevenção da Violência, de Luiz Paulo Ribeiro, no qual os demais autores foram colaboradores. A menção à dissertação se faz necessária tendo em vista que desde a sua entrega ela segue em sigilo, sendo que não foi autorizada a publicação no site de teses e dissertações da UFMG.

ABSTRACT Introduction: the view of the rural world as planting, harvesting, and surviving organizes and simplifies the rural labor and the livelihoods of rural communities in a logic that insulates and devalues knowledge and conducts. Objective: to analyze the social representations of health and illness in rural workers participating in an association of farmers in the municipality of Santo Antonio do Monte-MG. Methodology: semi-structured interviews, focus groups, and field diary notes were adopted for data collection. The data analysis used content analysis categories through AtlasTi 7.0. Results: the main results revealed a close relationship between social representations and availability of public and social devices in the conceptions of perceptions of health and illness as well as complementary knowledge networks in substitution of public health, and extensive concern of farmers with mental health. Conclusions: the need to analyze and monitor mental health and the work of family farmers stems from a new perspective of viewing the rural environment not only as bucolic but also composed by demands caused by social, economic, and political lack of support in addition to reviewing it

Recebido em: 19/09/2014 Aprovado em: 16/10/2015 Instituição: Faculdade de Nova Serrana Nova Serrana, MG – Brasil Autor correspondente: Luiz Paulo Ribeiro E-mail: luizribeiro@live.com

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as the acting locus and SUS investment, including the worker’s health public policy. Key words: Rural Workers; Agriculture; Public Health; Occupational Diseases.

INTRODUÇÃO Este artigo está na interface entre o trabalho rural, as condições de vida e as concepções de saúde e doença de agricultores familiares do município de Santo Antônio do Monte, localizado no centro-oeste de Minas Gerais, Brasil, a partir da análise das representações sociais desses sujeitos. A busca pelos significados de saúde e doença entre as pessoas, famílias, culturas e classes sociais possibilita abordagem da diversidade de saberes e necessidades das populações e indivíduos, que por sua vez garante os princípios da saúde pública brasileira – integralidade, regionalidade e territorialidade – e, por seguinte, a formulação de políticas que atendam as mais distantes populações.1 Parte-se do pressuposto de que a saúde e o ambiente são elementos interdependentes e que incidem comumente um sobre o outro,2 contribuindo, a seu modo, com a topofilia. No entanto, existem ainda os condicionantes da saúde que perpassam as ordens socioculturais e político-econômicas e que estruturam formas, valores, crenças, hábitos e indicadores da própria saúde e acabam por sobredeterminar as relações com o ambiente, a sustentabilidade e os espaços de produção da vida. Nesse âmbito, estudar as representações sociais permite evidenciar as transformações nas formas como as sociedades e comunidades estruturam saberes e sentidos, no caminho de aceitar e/ou relegar ações, afazeres e repassar a história comum. A partir dos processos de objetivação e ancoragem, o que é inicialmente estranho ganha nova perspectiva e se decompõe em algo palatável e aceito pelos iguais – torna-se familiar.3 Além disso, “ao utilizar das representações sociais estimula a construção de um conhecimento fruto da interação social, denotando a importância de atrelar esta teoria nas pesquisas em saúde com o propósito de conhecer as multifacetas compreendidas no homem em sociedade”.4 Assim, o objetivo deste artigo está posto na análise da mediação das representações sociais sobre saúde e adoecimento pelo trabalho, buscando alternativas para os atores e agentes das políticas públicas e mais alcance e entendimento da população rural

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estudada, em específico os trabalhadores rurais envolvidos com a agricultura familiar.

MÉTODOS O município de Santo Antônio do Monte-MG em 2010 possuía 25.975 e 3.782 pessoas, 85,4% e 14,6%, residentes em áreas urbana e rural, respectivamente.5 Além da área urbana, o município conta com 36 comunidades rurais. De acordo com dados do Sistema de Informação da Atenção Básica, de toda a população residente no município, urbana e rural, 98,84% estavam cadastrados e referenciados em serviços de atenção básica, entre postos e unidades de saúde na cidade e zona rural.6 A principal atividade econômica é a produção de fogos de artifício, que garante emprego e renda para expressivo contingente de trabalhadores. Paralelo a essa produção industrial, há importante setor agropecuário e de comércio, principalmente de representantes de vendas (vulgo rifeiros), que contribuem de forma eficaz para o desenvolvimento municipal. Por sua vez, a Associação de Produtores Rurais e Familiares de Santo Antônio do Monte (ASPROSAM) foi criada em 2006, contando inicialmente com 15 famílias de produtores rurais. O objetivo era participar de projetos ligados à agricultura familiar, de fortalecimento, embasados pela recente Lei no 11.326/2006, como o Projeto Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA).7 O primeiro projeto junto à Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) aconteceu em 2007, com 24 famílias cadastradas. Nota-se que a cada ano houve significativo aumento de novas famílias participantes, finalizando o ano de 2012 com 75 famílias cadastradas na ASPROSAM. Destas, 205 eram envolvidas diretamente entre produtores (vinculados), cônjuges e filhos. A principal relação dos envolvidos na pesquisa com os serviços públicos de saúde se faz a partir das visitas dos agentes comunitários de saúde (ACS) às propriedades rurais, sendo comum a ida até as unidades de saúde localizadas nas comunidades próximas das propriedades, nas quais o médico da família está disponível uma vez a cada sete dias. É comum a antecipação de marcação de consultas intermediadas pelas ACS. Sobre o processo de produção rural enquadram-se tais agricultores em níveis de pouca mecanização ou, ainda, mecanização quase inexistente, apenas relacionada à irrigação de hortaliças, muitas das ve-


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zes usando o método de irrigação por gravidade sem a utilização de bombas e demais utensílios. As máquinas, como tratores e veículos de transporte, são usadas para auxiliar na entrega dos produtos às escolas e unidades vinculadas aos programas governamentais, assim como para o deslocamento até a feira semanal. A força de trabalho é composta de 97% por mão de obra familiar, originalmente pelo inscrito na associação, sua esposa/cônjuge e filhos. Observando a vinculação da agricultura familiar na região estudada, foram selecionados somente os agricultores da família-proprietária e/ou arrendatária da propriedade vinculada à associação. As particularidades socioeconômicas foram construídas a partir de informações da Declaração de Aptidão do PRONAF (DAP), documento necessário para a inclusão na associação referida e, por essa razão, esses fatores não foram caracterizados adequadamente para empregados. Na medida em que estes representavam apenas 3% da força de trabalho dos estabelecimentos, foram os mesmos excluídos da análise. Na tentativa de aproximar-se da dinâmica das representações sociais dos agricultores familiares, desenvolveu-se o estudo por meio da abordagem de triangulação de métodos,8 na qual foram complementares os dados das entrevistas semiestruturadas, grupos focais e diário de campo com anotações das visitas às propriedades dos indivíduos selecionados para a pesquisa. Esta última ocorreu de forma indireta e não prevista no projeto original de pesquisa, mas pela riqueza das informações ousou-se fazer uso como complemento. Dessa forma, a coleta de dados dividiu-se em dois momentos, o primeiro composto de entrevistas diretas e semiestruturadas, com os agricultores familiares vinculados à associação. Nesse momento foram entrevistados 10 indivíduos, dos quais homens e mulheres tiveram a mesma proporção.9 A segunda etapa da pesquisa foi constituída por quatro grupos focais com 40 participantes divididos igualmente em cada grupo.10-12 Assim, o desenho qualitativo permitiu o contato com 50 famílias das 75 inscritas na associação. Na etapa da pesquisa, exploraram-se as concepções sobre saúde e adoecimento dos trabalhadores rurais, vinculando as construções sociais, individuais, políticas e institucionais à história de vida e trabalho de tais indivíduos, tendo como elemento mediador e estruturante o ambiente rural. O trabalho de campo aconteceu em 12 semanas, no verão de 2012, momento em que houve a possibili-

dade de inserção nos estabelecimentos pesquisados, por ser período de chuvas. O tempo médio das entrevistas foi de 90 minutos e dos grupos focais de 120 minutos, totalizando 1.380 minutos de gravação. Devido à profundidade das entrevistas e ao reforço contínuo dos conteúdos, o controle de qualidade do estudo evidenciou que houve perda de qualidade sonora e variáveis tangenciais, que perfizeram a necessidade da exclusão de uma das entrevistas. Por sua vez, não houve a tentativa de reentrevista, tendo em vista o pré-conhecimento do indivíduo das questões a serem abordadas. As gravações das entrevistas e dos grupos focais – corpus de análise – foram transcritas e conferidas a fim de garantir a qualidade dos seus registros. A análise de dados estruturou-se a partir da análise de conteúdo proposta por Bardin13, por intermédio da categorização temática na qual os elementos textuais foram agrupados com base em temas, perfazendo a investigação sobre o que cada um dos termos possuía em relação aos demais e quais correlações poderiam ser feitas a partir desses índices, possibilitando as inferências da pesquisa. Bardin13 ressalta que essa análise de conteúdo cunhada de forma qualitativa apresenta riscos, uma vez que, ao não enfatizar a contabilização das palavras em todo o corpus pode deixar de lado assuntos adjacentes e/ou complementares ao tema proposto, porém, a fim de minimizar tal problema, foi proposta a seguinte sequência de análise: a) leitura flutuante; b) avaliação da expressividade do conteúdo; c) análise das frequências – apenas complementar; d) releitura flutuante; e) reafirmação das categorias; f) análise das frases selecionadas; g) revalidação das frases. Para tais procedimentos, fez-se o uso software AtlasTI® versão 7.0, para a análise de dados qualitativos.9,14,15 As categorias de análise (families) foram construídas a partir do direcionamento da pesquisa e dos recorrentes termos, conceitos e construções notados nas falas da população pesquisada (codes). Estas foram organizadas a partir das seguintes denominações: (a) ruralidades, (b) saúde e adoecimento e, (c) trabalho. Por fim, buscando desenhar a análise dos dados que atendesse aos pressupostos teórico-metodológicos tanto das representações sociais quanto do interacionismo simbólico, optou-se por utilizar como ferramentas analíticas a apresentação das grades de análise e de sentenças retiradas das entrevistas e dos grupos focais. Considerando as relações éticas da pesquisa, esta foi aprovada pelo Comitê de Ética em PesquiRev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 493-501

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sa da instituição à qual estava vinculada e também cadastrada na Plataforma Brasil sob o número: 03370212.1.0000.5149. Todos os participantes receberam e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. Doravante, a fim de resguardar e não identificar os entrevistados e participantes dos grupos focais, quando referenciados, estes foram substituídos por números, sendo também identificada a sua principal atividade na agricultura familiar, como, por exemplo, “Artesão 01”.

RESULTADOS E DISCUSSÕES Assim como em Riquinho e Gerhardt, “parte-se do pressuposto de que dar voz a essas pessoas permite a aproximação de suas necessidades de saúde, por meio da compreensão das percepções dos processos vividos”.1 A fim de contribuir com o entendimento da análise feita, esta foi dividida em dois tópicos: a saúde e o adoecimento e o trabalho rural. A opção pela junção entre saúde e adoecimento se fez necessária pela estreita correlação entre os seus elementos, não permitindo que: “cada elemento não pode existir em mais de uma divisão”.13 Pela dificuldade em delimitar categorias muito próximas, houve a opção pela aglomeração de “subcategorias”: saúde, adoecimento, saúde mental, SUS e remédios. Por sua vez, a categoria trabalho vinculada ao contexto rural ficou estruturada a partir de duas vertentes, a da atividade símbolo do próprio trabalho e suas repercussões para a vida e socialização dos indivíduos pesquisados e a da ação das tarefas cotidianas enunciadas, ou seja, como, gramaticalmente, verbos. Os comportamentos relacionados à saúde e ao adoecimento despertam, sem precedentes, olhares, inquietações, frustrações e interpelações humanas, seja pela condição de desamparo ao qual o homem está submetido, seja pela constante busca pelo prolongamento da vida. Nesse sentido, a preocupação com os estados de saúde e adoecimento tem no seu cerne a própria história da humanidade desde os homens das cavernas até os dias atuais.16 A experiência de estar doente se coloca como situação polêmica para o vivente e desvela, interiormente e socialmente, um furor senandi – a busca pela cura – que, por si só, fez nascer a Medicina como ciência que busca a cura e, consequentemente, a díade médico-paciente. Tal par “raras vezes foi um par harmonioso,

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em que cada um dos parceiros pudesse se dizer plenamente satisfeito com o comportamento do outro”.17 Cabe também na discussão a distinção feita por Kleinman18 entre a doença e a enfermidade. A primeira refere-se ao estado patológico e biomédico de normalidade, tendo como base a funcionalidade dos órgãos e do organismo; a segunda refere-se à experiência individual do sujeito frente à doença, incidindo sobre si mesmo sofrimentos físicos, psíquicos e, para além destes, sociais. O papel do médico – ou, mais atualmente, do profissional de saúde – na concepção da saúde e da doença é tratada por Canguilhem17, Jodelet19, Boltanski20 e Foucault21 como um viés delimitador no qual o conhecimento biomédico inscrevia na vida do paciente todo o enquadramento patológico. O corpo paramentado por artifícios biomédicos era apenas objeto de estudo e intervenção, algo que suscitou a necessidade de mudança de paradigma tanto no quadro social da doença quanto na clínica médica. Institucionalmente, frequentes tentativas da OMS perfizeram o caminho da definição do que seria o estado de saúde, evoluindo de uma acepção da saúde como ausência de doença e incapacidade, sendo substituída em 1978 pelo “estado de completo bem-estar físico, mental e social”. Relega-se aos aspectos culturais tal mudança de posicionamento da OMS, o qual em 1986, em Ottawa, também incidiu na promoção da saúde como novo direcionamento para a atuação dos Estados.19 O conceito transversal e multicêntrico da saúde promove respeito por todas as pessoas responsáveis e que trabalham nos serviços de saúde, e constrói as políticas públicas que favorecem a corresponsabilidade da gestão dos fatores que melhoram as condições de vida da população urbana e rural.14 Algoz e defensora desse estudo, a teoria das representações sociais (RS), imbuída nos campos da saúde, busca “[…] na construção das representações populares da doença [trazer] o desconhecido ao conhecido, injetando sentido nos termos emprestados ao discurso médico”.20 Para Jodelet,19 a história da preocupação dos teóricos das representações sociais para com a saúde e o adoecimento surgiu com Serge Moscovici e Claudine Herzlich, tanto ao estudar a psicanálise quanto – nesse caso o segundo referenciado – ao estudar propriamente as representações sociais da saúde e a doença no ano de 1969. Desde então, tal teoria teve estreita


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correlação com o tema deste estudo por, tentar aproximar-se das RS da saúde mental e do estigma.22 Desde então, Jodelet,19 com vistas às pesquisas desenvolvidas neste campo, traçou uma síntese das representações sobre a saúde/doença encontradas. Nestas a saúde é tida como um produto, valor de referência, equilíbrio e capacidade de fazer as coisas, sendo que o emparelhamento da saúde com as instituições de saúde foi quase inexistente. A autora ressalta que há a necessidade de analisar os diversos contextos comunitários e sociais, uma vez que as inserções histórico-culturais e o grupo de atores envolvidos dão sentido e direção às práticas particulares e institucionais e determinam as representações sociais. Outro aspecto ressaltado por Jodelet é o cuidado que se deve ter ao fazer pesquisas em saúde e doença de não se revelar, ao sair da díade médico-paciente do modelo biomédico, outro modelo superficial no qual se apresente apenas um aspecto das questões relacionadas à saúde e à doença. A proposta feita é uma abordagem multidimensional que consiga e contribua para a melhoria dos serviços “[…] no sentido de prevenir ou facilitar na assimilação do conhecimento acadêmico ou escolhas de direção e comportamentos de saúde […]”.19 Assim como em Chammé, “a compreensão dos fatores que determinam ou caracterizam o discutível estado de saúde encaminha o problema na direção das condições a que o corpo do sujeito está submetido, principalmente as dos distintos níveis da qualidade de vida que o sustêm”.23 As representações sociais sobre a saúde e o adoecimento para os agricultores familiares perpassam a reconstrução da vivência dos mesmos, assim como dos organismos, instituições, políticas públicas, artifícios e ferramentas acessíveis no cotidiano. O diagrama 01 apresenta a grade de análise sobre os principais tópicos/famílias de análise correlacionados a saúde e ao adoecimento. O tópico está estruturado em intensas correlações entre saúde, adoecimento, trabalho, SUS, saúde mental e remédios. Pela grade, nota-se o aparecimento da saúde mental no formato de estágios emocionais, como conforto, raiva, indignação, tranquilidade, etc., assim como de denominações para os estágios patológicos como a loucura. Por outro lado, também correlacionados à saúde mental e à manutenção da saúde em contraponto à doença, aparecem os medicamentos, principalmente os psicotrópicos – benzodiazepínicos e antidepressivos – e anti-histamínicos encontrados com fácil acesso pelas populações ru-

rais, apesar do comércio ser regulado por meio de receituário diferenciado. Junto aos medicamentos surgem a preocupação com o vício e a procura por alternativas frente ao mesmo, por vezes relegadas à Medicina alternativa, com o uso de chás tradicionais e propostas menos invasivas e mais sociabilizadoras, que à sua forma aproximam o sujeito do controle do próprio corpo, apesar de apresentar um risco de não cura e/ou agravos ao sujeito. A saber, Araújo et al.24 enfatizam que o adoecimento psíquico do trabalhador rural pode estar correlacionado tanto ao uso de agrotóxicos, quanto às condições socioeconômicas precárias, riscos e acidentes constantes, à lógica do mercado, à precarização do trabalho e à exclusão social. Por sua vez, Faria et al.25, em estudo transversal sobre a saúde mental de agricultores, indicaram que quanto menos escolarização e mecanização na propriedade, mais alto o índice de morbidade psiquiátrica menor (MPM). No estudo, nenhum tipo de produção animal mostrou-se associado à MPM, sendo que o trabalho intensivo está ligado a grande desgaste físico na realização das tarefas – precarização do trabalho. Já para Rozemberg,26 o evento desencadeador de problemas mentais está no excesso de trabalho ao qual o trabalhador rural está submetido. “Esse calmante eu não aconselho pra ninguém. […] esse e muitos outros que existem. Ele faz bem na hora, mas depois traz complicações muito grandes. Eu tive e ainda tenho sequelas, pois tomei isso [benzodiazepínico] por muitos anos. E quando eu parei, arrumei problema até no coração” (Entrevista: Agricultor 05). Nesse âmbito, apreende-se que a representação de saúde vinculada à saúde mental revela a estreita relação entre a percepção de saúde e a autonomia do sujeito, sem preconceitos, algo que vai para além do físico e alcança a espiritualidade e a condição de ser-no-mundo: “A primeira coisa, na saúde, é a pessoa ter uma mentalidade boa, é uma questão de espírito. A saúde entra por aí. Ter saúde é a pessoa estar livre das enfermidades, não ter que viver sempre nos postos de saúde, sempre dependente, carente de médico e de medicamentos, principalmente quando é ‘rotulado’, pois oferece até certo risco pra pessoa” (Entrevista: Agricultor 05). Por outro lado, também vinculada à RS de Saúde e Adoecimento, há o aparecimento do SUS (Sistema Único de Saúde) tangenciado tanto pelos profissionais: Rev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 493-501

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médico, psicólogo, farmacêutico e do agente comunitário de saúde (ACS), como das instituições de saúde: farmacinha (aqui os pesquisados se referiram à farmácia municipal que subsidia gratuitamente uma extensa lista de medicamentos, principalmente os psicotrópicos, diuréticos, neurológicos e para cardiopatas). Os estados de adoecimento, por sua vez, aparecem vinculados com perspectivas de ausência de vida como nos relatos de morte e falecimento, como também a estados ditos mais graves, como o aparecimento de cânceres e outras doenças que afetam o coração, o pulmão e a coluna. “Doença é quando a pessoa tem um problema do coração” (Grupo Focal 3, Agricultor 25). Por sua vez, a saúde está vinculada à alimentação saudável, por vezes relegada a alimentos naturais retirados do campo em detrimento de industrializados. Nesse sentido, vigora a dicotomia analisada por Menasche,27 na qual os produtos urbanos são tidos como tóxicos e estranhos e os rurais puros, familiares e saudáveis. Nesse aspecto, fica instaurada uma predileção pelos alimentos do campo. “A vantagem da zona rural é essa, não é? Tem muitos alimentos saudáveis. Trabalha pesado, mas, continua mantendo a sua saúde por causa dos alimentos que se come” (Grupo Focal 03, Agricultor 29). “Então, desde que alimentemos bem, durmamos bem, teremos mais força, mais resistência para vencer as dificuldades do dia a dia, dos resfriados, das gripes e daí por diante. Então, em primeiro lugar é a boa alimentação com frutas. Não sabemos, geralmente, variar, não é? Mas acho que passa por aí. Comer boas frutas e outras coisas que colhemos aqui” (Grupo Focal 04, Agricultora 34). “Pra nós que mexemos com verduras, as nossas verduras são bem mais saudáveis; 99%, pelo menos das que eu coleto, e acredito que as dos colegas aqui também sejam. Porque essas verduras que vêm do Ceasa […] elas são cheias de agrotóxicos. Nós não usamos agrotóxicos nenhum, nossa verdura é pura. Então nós comemos uma coisa saudável, que não tem remédio, não tem agrotóxico nenhum, que tem sabor”. […] (Grupo Focal 04, Agricultor 37).

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Assim como em Canguilhem16,17, a saúde e a doença são experenciadas e faladas a partir da vivência de cada um, equalizando quadros de normalidade e doença, por vezes se esquecendo do discurso biomédico e fazendo valer discursos sociais. Na pesquisa, a saúde física e mental é relegada a bons hábitos, porém com estatuto de algo habitual, comum. Enquanto isso, nota-se, por assim dizer, que a doença aparece como algo intruso, que rompe a sequência do cotidiano e desampara, desanima e tira o sujeito do trabalho. Embora os achados da pesquisa indiquem a correlação entre o trabalho e as propriocepções do estado da saúde, outras pesquisas, como as de Pignatti e Castro2 e Riquinho e Gerhardt1 e outros já citados anteriormente no corpus deste trabalho, salientaram essa estreita relação no discurso dos entrevistados em diferentes populações e culturas. Por sua vez, o tema trabalho aparece como mediador e ferramenta de análise para a saúde e o adoecimento, partindo do desígnio que o trabalho dignifica e deve dignificar o homem que possui saúde, sendo o estado de adoecimento o causador da ausência do trabalho. “Trabalho pra mim é vida. É saúde e vida. Eu sei que se eu parar, sei que dentro de seis meses eu morro. Eu me sinto bem de trabalhar. Eu sinto satisfação em trabalhar. Enquanto eu estou trabalhando eu estou me distraindo. Porque eu fui criado neste ritmo de trabalho, desde quando eu nasci. Se eu ficar um ou dois dias parado eu adoeço. Aí vem a contrariedade e eu não como, fico nervoso, num estado de nervo que ninguém tolera meu nervosismo. Eu estando trabalhando eu estou distraindo, estou fazendo o que eu gosto, estou me sentindo bem […]” (Entrevista: Agricultor e Pecuarista 2). Gaulejac28 resgata que se pode hipotetizar que o aceite do pacto civilizacional – renúncia às pulsões – faz com que os sujeitos se imponham justificativas aceitáveis para o seu sofrimento, ou seja, é comum que boa parte dos indivíduos acredite que o trabalho duro de hoje pode ser recompensado por uma consciência satisfeita, na qual a cumplicidade e o “dever cumprido”, apesar do adoecimento, dignificam. “[…] Pra mim, foi saúde. Às vezes, quando eu estou doente, tenho alguma indisposição para trabalhar, algum dia que eu não estou muito boa e fico deitada. Tem que ter boa saúde. […] E


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eu gosto de roça. Morei muito tempo em Lagoa, na cidade. Eu fiquei em depressão, aí vim morar com a minha irmã na roça. Eu gosto de mexer com horta, toda vida eu gostei, inclusive meu pai falava que eu era a única que puxou a ele. Mesmo quando eu não tinha onde entregar eu plantava, dava um pouco pra minha família. Eu gosto de mexer. […]” (Grupo Focal 04, Agricultora 33). “Então a saúde é a gente ter força pra trabalhar, ter vontade, ter condições, dormir bem” (Entrevista: Apicultor 9). “As representações indicam que o trabalho insere o sujeito no social, ao passo que ficar sem trabalhar indica a morte do sujeito, uma perda de valores e de significados, ambos mediados pelas relações de produção. Por outro lado, o sofrimento decorrente do trabalho rural parece ser inevitável: a peleja, o ardor e o sofrimento marcam a explicação do cotidiano de trabalho e emprestam sentido à ação para, e com, a terra, ao trabalho excessivo, porém não desprivilegiam o trabalho rural, acabam por o dignificar. Foi muito bom e nos beneficiou muito porque o trabalho é ardoroso. Eu trabalho desde os 12 anos no pesado. Perdi minha saúde no trabalho. Trabalhei em carvoeira, enfrentava forno quente de 45 graus” (Grupo Focal 03, Agricultor 25, grifo do autor) “Eu me sinto bem trabalhando. EU não sei viver sem trabalhar. Se quiser me ver bem, com saúde é só me ver trabalhando para cuidar da minha obrigação e da minha família. Se eu parar, eu adoeço. Eu gosto de trabalhar, sinto-me em trabalhar. O mais importante para qualquer pessoa é trabalhar. É uma honra para qualquer pessoa trabalhar, pois quando se está trabalhando não tem tempo de pensar coisa errada, só pensa coisa positiva e esquece as negativas. Se todo mundo pensasse dessa forma não existiria tanto vandalismo no mundo. Tira a gente do mau caminho. É cansativo, mas é ‘futuroso’, traz futuro pra gente. Todo mundo que trabalha, adquire o que deseja na vida” (Grupo Focal 04, Agricultor 40, grifos do autor). O corpo, ou os sofrimentos no corpo, é diferencial entre os trabalhadores rurais e os trabalhadores urbanos. O corpo padece enquanto a cabeça “fica mais tranquila” além do prazer que se sente por exercer atividades rurais como o plantar e o colher. “A diferença que tem entre o trabalho da roça e o da cidade, é que o da cidade cansa mais

a cabeça e o da roça cansa mais o corpo. A cabeça fica mais tranquila. Eu já sinto mais prazer de estar na roça por conta disso, porque eu sou agitada, muito nervosa, não consigo mexer com gente. Na roça eu sinto prazer de mexer com a planta, mesmo se ela me contrariar em alguma coisa […]” (Grupo Focal 04, Agricultora 32). Como vertente da análise do trabalho e como produtor de saúde e adoecimento, aparece a subcategoria relacionada aos acidentes de trabalho, tratando tanto os machucados como habituais à vida sofrida do trabalhador rural quanto algo que incide numa preocupação por representar uma forma de adoecimento. “Uma pessoa machucada está doente, pois ela não tem como trabalhar machucada” (Entrevista: Agricultora 4). “Não tenho machucado. Isso aqui é arranhado de andar de cavalo no meio do cerrado. Vai passando nuns galhos de palha, vai arranhando, vai arrancando pedaço […]” (Entrevista: Agricultor e Pecuarista 2). “Agora no meu caso: coluna, eu sou péssimo de coluna. Mas a minha profissão que acabou com a minha coluna. O trator passou em cima de mim direto e eu fiquei quase quatro meses no hospital e cinco meses andando de cadeira de rodas e de muleta. E dou louvor a Deus porque estou em pé, sadio, correndo pra baixo e pra cima. Graças a Deus” (Entrevista: Agricultor e Pecuarista 3). A correlação dos agrotóxicos no âmbito do adoecimento não pode ser notada, apesar de ser correlacionada em outros estudos como um dos principais agentes de adoecimento do trabalhador rural. Talvez devido à proposta da feira semanal e à proximidade do consumidor final, o que descarta a necessidade de químicos para prolongar a vida útil dos alimentos. Porém, os mesmos têm fácil acesso a químicos para controle de formigas, carrapatos, ratos e outros animais. Para além dos enunciados aqui expostos – machucados, cortes, etc., acrescenta-se a categoria de picadas, desde as de pequenos insetos, como abelhas e marimbondos, até animais peçonhentos, como aranhas, escorpiões e cobras. Tendo em vista a legislação em saúde do trabalhador, Portaria MS no 777, 28 de abril de 200429, há de se perguntar se tais acidentes de trabalho estão Rev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 493-501

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sendo notificados conforme prescreve a portaria e/ ou se estes estão apenas no hall da história popular.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O plantar, o colher e o sobreviver da terra circunscrevem o trabalhador rural na sociedade trabalhadora e possibilita que ele, a partir da agricultura familiar, seja encarado como ser produtivo e, portanto, útil. A atribuição de valor subjetivo pela sociedade de consumidores evita, à sua forma, a evidenciação dos processos de ninguenidade. O indivíduo como agente, objeto e promotor da saúde, percebe seu corpo e é percebido através das lentes das relações, sejam elas humanas, interpessoais, proprioceptivas e profissionais, que acabam por nomear e significar o próprio conceito de saúde e, deveras, o conceito de adoecimento. A busca pelo acompanhamento qualitativo do conceito de saúde pode agregar valor e ressignificar os modos de fazer saúde, especialmente aqueles voltados para as populações fora dos grandes centros e perímetros urbanos. O trabalho como mediador e fomentador da saúde e do adoecimento para os trabalhadores rurais engendra saberes e, na sutilidade de seu papel sócio-histórico, permite que tais saberes sejam repassados e que o sofrimento mental, físico e social advindo do campo seja ressignificado, justificando-o e dignificando-o. Conseguintemente, os resultados desta pesquisa enfatizaram que a promoção da saúde voltada para a população do campo e os trabalhadores rurais devem perpassar pelo entendimento do cotidiano, a fim de reconhecer a formação de categorias que auxiliam tanto na atuação quanto na referenciação de práticas e saberes. Os achados de pesquisa demonstram, cada um a seu modo, a relevância da aproximação às representações sociais a fim de conseguir alcançar a saúde na sua totalidade, não somente na generalização, mas também nas particularidades de cada sujeito e cada comunidade. Por outro lado, a reafirmação da visão canguilhemiana no que diz respeito às representações sociais dos processos de saúde e adoecimento, quando alcança a percepção destes como algo naturalizado no cotidiano o que resgata a necessidade de escuta e acompanhamento de tais representações. Tendo em vista a concepção cíclica dos processos de saúde e adoecimento, adota-se a postura da receptividade ou, ainda, de respeito e escuta ativa dos significados

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desses processos para cada indivíduo, com vistas ao seu cotidiano, sua vivência social e sua subjetividade. Cabe ressaltar que a condição humana de estar no mundo está vinculada ao sofrimento, no qual está integrado e reconhecido o trabalho, que faz desamparar e colocar o sujeito em questão, colocando-o na possibilidade de não conseguir resolver os problemas e fracassar. Porém, a condição de sofrimento não dá direcionamento unicamente ao adoecimento, mas mobiliza o sujeito – no trabalho – à melhoria e à solução das problemáticas engendradas no cotidiano, caracterizando-se como criativo. Argumenta-se, então, se a saúde no trabalho e o adoecimento decorrentes do trabalho são fenômenos antagônicos ou contínuos e quais as possibilidades de se pensar o adoecimento decorrente do trabalho como possibilidade de pensar o próprio trabalho. Norteado ou normatizado pelos polos saúde e doença, o(s) corpo(s) do trabalhador rural tendem a ser fisgados pelo inevitável: a saciedade pelos medicamentos psicotrópicos que facilmente são encontrados e trocados com os vizinhos e amigos, já que conviver com a dor, a tristeza e o isolamento socioeconômico é insuportável.16,17,23 Num sentido hermenêutico, acredita-se que a crença na saúde ocasionada pela boa alimentação, livre de agrotóxicos, seja uma (nova) representação social sobre o rural como merecedor de olhares pela promoção em saúde inerente à produção limpa de agrotóxicos e de demais químicos. Apesar da constante evolução das políticas de saúde para alcançar toda a população brasileira, nota-se – na população estudada, na qual o trabalho é norteador da saúde e adoecimento – que o acesso ao centro de referência em saúde do trabalhador mais próximo fica a pelo menos 120 km de distância, o que restringe – mas não impossibilita – ações de atenção secundária e preventivas, assim como a vigilância em saúde do trabalhador. De modo geral, há de ser investigado o aumento dos casos de violência nas áreas rurais, tanto como uma alteração do modo de vida e sociabilidade dessa população, quanto como a possibilidade de uma massificação da violência urbana: assaltos à mão armada, sequestros e tráfico de drogas rompem a matriz sócio-histórica das populações rurais. Por outro lado, de forma latente, fica a necessidade de visualizar o mundo rural como participante das mudanças que se sucederam nas últimas décadas no mundo econômico, do trabalho e no quadro social,


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verificando, como afirmam Ferreira30 e Guimarães,31 que o modo de produção agrário foi invadido pelas formas agressivas do capitalismo, seja no tocante à racionalização dos meios de produção, ênfase na produtividade, precarização do trabalho, mecanização intensa e gestão autoritária similar ao taylorismo. Por fim, vislumbra-se que a eficácia e eficiência dos processos políticos em saúde, assim como os atendimentos em saúde do trabalhador, necessitam de diálogo e da aproximação das práticas exitosas nos diferentes campos do país, promovendo a interação prático-teórica. Tal ação necessita ser revestida de um véu integrador, no qual a visão sistêmica e irrestrita seja o viés de análise e atuação, principalmente com os olhares também voltados para a população rural e periurbana.

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Rev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 493-501

501


ARTIGO ORIGINAL

Importância da implementação de protocolos de ação na pré-eclâmpsia The importance of implementing action protocols in preeclampsia Bruna Carolina Lapertosa Santos1, Laíssa Nascimento Bernardes Souza1, Henderson Humberto Oliveira Coutinho1, Lara Lopes de Almeida1, Lisandro Liboni Guimarães Rios1, Pedro Henrique de Barcelos Lavareda1, Isabela Iside Gagliardo Soares2, Danyelle Romana Alves Rios 3, Melina de Barros Pinheiro3

DOI: 10.5935/2238-3182.20150114

RESUMO Acadêmico(a) do curso de Medicina da Universidade Federal de São João Del Rei – UFSJ. São João Del Rei, MG – Brasil. 2 Médica Ginecologista Obstetra. Professora Assistente do curso de Medicina da UFSJ. São João Del Rei, MG – Brasil. 3 Farmacêutica. Doutora. Professor adjunto II da UFSJ. São João Del Rei, MG – Brasil. 1

Suporte Financeiro: Agência financiadora: Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ). Programa Institucional de Bolsas de Iniciação PIBIC

Introdução: a pré-eclâmpsia (PE) é um distúrbio grave, com fisiopatologia ainda não bem compreendida, de elevada incidência e pode causar sérias consequências para a gestante e para o feto. Objetivo: descrever e analisar as características clínicas e sociodemográficas das gestantes com PE atendidas na maternidade de um hospital referência na região centro-oeste de Minas Gerais, bem como a epidemiologia da doença, os desfechos clínicos neonatais e das gestantes e as condutas terapêuticas realizadas. Métodos: foi realizado estudo retrospectivo descritivo a partir da análise de prontuários médicos. Resultados: foi obtida incidência de PE de 1,44% na instituição. Entre as gestantes atendidas, 97,9% apresentaram níveis pressóricos compatíveis com PE. Não foram evidenciadas alterações laboratoriais significativas. Somente 8% das gestantes sofreram hemorragia pós-parto, 2% sofreram internação em centro de terapia intensiva e não houve algum óbito materno. Os desfechos neonatais foram mais desfavoráveis, com 25,3% de internação em centro de terapia intensiva e 7% de óbito do recém-nascido. Apenas 18% das parturientes tiveram uso de medicação para prevenir eclâmpsia. Conclusão: o estudo permitiu evidenciar a necessidade de implementação de protocolo de atendimento e manejo para PE, a fim de promover melhorias e consolidar a assistência às pacientes usuárias do serviço em questão. Palavras-chave: Gravidez; Pré-eclâmpsia; Pré-eclâmpsia/epidemiologia; Eclâmpsia; Eclâmpsia/epidemiologia; Recém-Nascido. ABSTRACT

Recebido em: 16/12/2014 Aprovado em: 29/11/2015 Instituição: Universidade Federal de São João Del Rei – UFSJ Campus Centro Oeste São João Del Rei-MG – Brasil Autor correspondente: Melina de Barros Pinheiro E-mail: melinapinheiro@ufsj.edu.br / melinapinheiro@gmail.com

502

Introduction: preeclampsia (PE) is a serious disorder with little-understood pathophysiology, of high incidence and that can cause serious consequences for the pregnant woman and fetus. Objective: to describe and analyze the clinical and socio-demographic characteristics of pregnant women with PE assisted in the maternity ward of a referral hospital in central-western Minas Gerais as well as the disease epidemiology, neonatal and mother clinical outcomes, and therapeutic procedures performed. Methods: this was a retrospective descriptive study based on the analysis of medical records. Results: a PE incidence of 1.44% was observed in the institution. Among the pregnant women, 97.9% had blood pressure levels compatible with PE. Significant laboratory abnormalities were not observed. Only 8% of pregnant women suffered postpartum hemorrhage, 2% have been hospitalized in the intensive care unit, and there was no maternal death. The neonatal outcomes were less favorable with 25.3% hospitalizations in the intensive care unit and 7% newborn deaths. Only 18% of mothers used medication to prevent eclampsia. Conclusion: the study highlighted the need to implement a PE protocol and management in order to promote

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Importância da implementação de protocolos de ação na pré-eclâmpsia

improvements and consolidate assistance to patients assisted in this service. Key words: Pregnancy; Pre-eclampsia; Pre-eclampsia/ epidemiology; Eclampsia; Eclampsia/epidemiology; Infant, Newborn.

INTRODUÇÃO Os distúrbios hipertensivos da gestação (DHG) são um grupo de condições em que se associam hipertensão arterial e gestação, apresentando muitas divergências quanto às suas definições e classificações na literatura.1 É a complicação médica mais comum durante a gestação, associada a complicações maternas, fetais e neonatais como nascimento prematuro, restrição de crescimento intrauterino (CIUR), morte perinatal, insuficiência renal ou hepática agudas, hemorragias pré e pós-parto e morte materna.2 São definidas quatro categorias básicas de DHG: hipertensão crônica, hipertensão gestacional, pré-eclâmpsia (PE) /eclâmpsia e PE sobreposta à hipertensão crônica.3 Clinicamente, a PE refere-se ao aparecimento, em grávida normotensa após a 20ª semana de gestação, de hipertensão acompanhada de um ou mais dos seguintes sintomas: proteinúria, insuficiência renal, doença hepática, problemas neurológicos, distúrbios hematológicos e restrição de crescimento.4 A gravidade da doença varia entre leve, grave e formas fulminantes.5 A PE leve caracteriza-se por pressão arterial igual ou superior a 140 x 90 mmHg e abaixo de 160 x 110 mmhHg em no mínimo duas ocasiões ou proteinúria de 24 horas acima de 300 mg ou ≥ 1+ pelo método qualitativo de fita, em amostras isoladas. Já a PE grave caracteriza-se por pressão sanguínea sistólica ≥ 160 mmHg e/ou diastólica ≥ 110 mmHg, em no mínimo duas ocasiões, associada à proteinúria de 24 horas ≥ 5 g (≥ 3+ pelo método qualitativo de fita), em amostras isoladas, coletadas em intervalo de no mínimo quatro horas.6 Além disso, os sintomas clínicos são mais acentuados na forma grave e incluem cefaleia intensa, distúrbios visuais, edema pulmonar, falência renal aguda com oligúria ≤ 500 mL em 24 horas e as alterações hemostáticas são ainda mais pronunciadas.7 O único tratamento efetivo para essa doença consiste na interrupção da gravidez e retirada da placenta.6 A PE é uma doença multissistêmica na qual é observada disfunção endotelial com aumento da resistência vascular periférica e ativação da coagulação.8 Essas alterações geram insuficiência placentária, com

repercussão nas funções nutritiva e respiratória do trofoblasto. Quando apresenta instalação precoce, pode comprometer a nutrição fetal, afetando diretamente o bebê, que nasce pequeno para a idade gestacional.9 Agrupada em PE de início precoce e tardio10, exibe etiopatogenia que se inicia em momentos díspares.11 A precoce, antes da 34ª semana de gestação, é menos frequente, mas se associa a formas clínicas mais graves, denotando lesões isquêmicas placentárias.10,11 Já a tardia, a partir da 34ª semana, é a forma mais incidente, com placentação adequada ou pouco comprometida.10 A doença está, geralmente, vinculada a mulheres jovens, primigestas e previamente normotensas.12 Além disso, mulheres que apresentaram PE em outras gestações têm mais riscos da doença em gestações futuras, especialmente aquelas que tiveram a forma precoce.9 Apesar de multíparas terem menos riscos de PE quando comparadas com nulíparas, em caso de novo primipaternidade os riscos de aproximam.9,12 A PE é um distúrbio potencialmente grave e de elevada incidência, variando de 3 a 14% de todas as gestações no mundo.13-15 Por se tratar de uma síndrome cuja fisiopatologia ainda não foi bem compreendida, torna-se interessante investigar as características sobre a saúde e condições sociais das gestantes acometidas. Dessa forma, será possível entender melhor o manejo da PE na região estudada, realizar associações entre fatores que contribuem de forma direta e indireta para a manifestação da síndrome, bem como compreender melhor os desfechos da PE para a gestante e para o feto. Desse modo, o objetivo do presente trabalho foi descrever e analisar as características sociodemográficas, clínicas e laboratoriais das gestantes com PE atendidas na maternidade de um hospital referência na região centro-oeste de Minas Gerais, nos anos de 2010 a 2012, assim como os desfechos clínicos dos neonatos e das gestantes e as condutas terapêuticas realizadas.

PACIENTES E MÉTODOS Foi realizado estudo retrospectivo descritivo envolvendo doenças hipertensivas gestacionais, baseado na análise de prontuários dos anos de 2010 a 2012 da maternidade de um hospital referência no município de Divinópolis – MG. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFSJ/CCO e do hospital em questão – Parecer número 594.378-0. Os pesquisadores declaram não haver conflitos de interesse. Rev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 502-510

503


Importância da implementação de protocolos de ação na pré-eclâmpsia

Foram incluídos na pesquisa todos os prontuários de gestantes internadas nos anos de 2010 a2012 na maternidade do hospital em estudo, que receberam como diagnóstico, no momento da internação, algum dos seguintes CIDs: O11 (distúrbio hipertensivo preexistente com proteinúria superposta), O14.0 (PE moderada), O14.1 (PE grave), O14.9 (PE não especificada), O15.0 (eclâmpsia na gravidez), O15.1 (eclâmpsia durante o trabalho de parto), O15.2 (eclâmpsia no puerpério) e O15.9 (eclâmpsia não especificada quanto ao período). Participaram da pesquisa apenas as gestantes que tiveram o desfecho da gestação durante a internação. Foram excluídos do estudo todos os prontuários de gestantes atendidas no período citado, relacionados aos códigos selecionados, em que houve alta da gestante antes de ocorrer o parto, uma vez que, nesses prontuários, a análise dos desfechos estava impossibilitada. A ficha clínica visava coletar dados como: idade; naturalidade, endereço, estado civil; níveis pressóricos utilizados para diagnóstico de PE; dados obstétricos (número de partos, abortos e gestações); realização do pré-natal na gestação atual; gemelaridade; diabetes e outras doenças prévias; PE e outras intercorrências prévias; classificação da PE e sintomas apresentados; presença e quantificação de proteinúria; resultados de exames realizados durante o período de internação como hemograma, enzimas hepáticas e avaliação da função renal; se houve utilização de medicamentos e quais; dados sobre o parto realizado (natural ou cesáreo; parto a termo, pré-termo ou pós-termo) e o desfecho para a mãe e o recém-nascido, como nascimento prematuro, restrição de crescimento intrauterino, morte perinatal, insuficiência renal ou hepática agudas, hemorragias pré e pós-parto, evolução para eclâmpsia ou síndrome Haemolysis, elevated liver enzyme activity, low platelets (HELLP) e morte materna. A coleta dos dados ocorreu no período de 13/09/2013 a 14/12/2013 pelos pesquisadores, no próprio hospital. A PE leve foi definida por pressão arterial igual ou acima de 140 x 90 mmHg e inferior a 160 x 110 mmhHg em no mínimo duas ocasiões ou proteinúria de 24 horas acima de 300 mg ou ≥ 1+ pelo método qualitativo de fita, em amostras isoladas. Já a PE grave foi definida por pressão sanguínea sistólica ≥ 160 mmHg e/ou diastólica ≥ 110 mmHg em no mínimo duas ocasiões, associada à proteinúria de 24 horas ≥ 5 g (≥ 3+ pelo método qualitativo de fita), em amostras isoladas, coletadas em intervalo de no mínimo quatro horas6. Os resultados obtidos foram analisados de forma descritiva e analítica. Foi utilizada tabela de distribui-

504

Rev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 502-510

ção de frequência, medidas de tendência central e de dispersão para descrever as variáveis. Na estatística analítica, para a comparação de proporções, utilizou-se o teste qui-quadrado e o teste exato de Fisher, de acordo com as características de cada variável. A análise foi realizada por meio do Statistical Package for Social Sciences (SPSS) versão 20.0.

RESULTADOS No período de 2010 a 2012, o hospital em estudo realizou 7.998 partos. Foram encontrados pelo Serviço de Arquivo Médico e Estatística (SAME) 131 prontuários (1,6%) de gestantes internadas com diagnósticos referentes aos CIDs utilizados na pesquisa. Desses prontuários, 99 estavam disponíveis para a realização da análise. Sendo assim, 32 prontuários não foram encontrados pelo SAME e figuraram perda de aproximadamente 24% na coleta dos dados. A incidência de PE evidenciada na maternidade em estudo no período da pesquisa foi de 1,44%. Entre as 99 parturientes estudadas, a média de idade foi de 28,8 ± 6,6 anos de vida completos. A maior parte das gestantes residia em Divinópolis (77,8%) e as frequências de gestantes solteiras e casadas foram semelhantes (56,5 e 47,5%, respectivamente) (Tabela 1). Tabela 1 - Distribuição de variáveis sociodemográficas de gestantes com pré-eclâmpsia analisadas (n=99), referentes ao período de 2010 a 2012, em um hospital de uma cidade de médio porte de Minas Gerais Variáveis sociodemográficas

n

%

Idade (anos)1 15 - 20

7

7,1

20 - 25

20

20,2

25 - 30

24

24,2

30 - 35

26

26,3

35 - 40

16

16,2

≥ 40

6

6,1

Divinópolis

77

77,8

Outro município

22

22,2

Solteira

46

46,5

Casada

47

47,5

Divorciada

3

3

Outros

3

3

Reside em

Estado civil

1

4 prontuários (4%) não continham essa informação.


Importância da implementação de protocolos de ação na pré-eclâmpsia

Os dados clínicos e laboratoriais bem como os dados relacionados ao diagnóstico da PE das gestantes estudadas estão apresentados nas Tabelas 2, 3 e 4. Em relação às variáveis clínicas, a comorbidade observada em maior frequência foi a hipertensão arterial sistêmica crônica (17%), porém, 72,3% dos prontuários analisados não continham informações sobre comorbidades apresentadas pelas gestantes atendidas (Tabela 2). Tabela 2 - Distribuição de variáveis clínicas (comorbidades e história ginecológica) em gestantes com pré-eclâmpsia analisadas pelo estudo (n=99), referentes ao período de 2010 a 2012, em um hospital de uma cidade de médio porte de Minas Gerais Comorbidades

n

%

Tipo I

2

2

Não especificada

2

2

Diabetes mellitus

Alterações laboratoriais de enzimas hepáticas, plaquetas e função renal foram detectadas com pouca frequência nos registros (transaminase glutâmico oxalacética – TGO: 12%; transaminase glutâmico pirúvica – TGP: 9%; plaquetas: 4%; creatinina: 4%; ureia: 7%) (Tabela 3). Dos prontuários estudados, 48,5% apresentaram o registro de proteinúria diagnosticada por meio de exames laboratoriais, apesar de receberem o CID de internação relacionado à PE. Em 34,3% dos prontuários não constava essa informação (Tabela 4). Tabela 3 - Distribuição de variáveis laboratoriais em gestantes com pré-eclâmpsia analisadas pelo estudo (n=99), referentes ao período de 2010 a 2012, em um hospital de uma cidade de médio porte de Minas Gerais Exames Laboratoriais

n

%

53

53,5

Hemoglobina

Ausente

47

47,5

Entre 11,5 e 16 mg/dL

Informação ausente

48

48,5

Menor que 11,5 ou maior que 16 mg/dL

32

32,5

Hipertensão arterial sistêmica prévia

Informação ausente

14

14,1

Presente

17

17,2

Hematócrito

Ausente

36

36,4

Entre 34 e 47%

55

55,6

46,5

Menor que 34 ou maior que 47%

30

30,3

Informação ausente

56

Plaquetas

Outra doença prévia Sim

7

7,1

< 100x103/mm3

4

4

≥ 100x103/mm3

81

81,8

Informação ausente

14

14,1

Não

20

20,2

Informação ausente

72

72,3

História ginecológica

TGO1

Paridade

> 34 U/L

12

12,1

Primigestas

41

0,4

≤ 34 U/L

68

68,7

Multíparas

57

57,5

Informação ausente

19

19,2

> 35 U/L

9

9,1

17,2

≤ 35 U/L

71

71,7

19

19,2

Informação ausente

1

1

História de intercorrências em gestações prévias

1

Presente

17

TGP

2

Ausente

15

15,2

Informação ausente

Informação ausente

24

24,2

Creatinina

História de PE em gestações prévias

> 0,9 mg/dL

4

4

Presente

5

5,1

≤ 0,9 mg/dL

76

76,8

Ausente

15

15,2

Informação ausente

19

19,2

30,3

Ureia

1

Informação ausente

30

Pré-natal

> 28 mg/dL

7

7,1

Realizado com 6 ou mais consultas

77

77,8

≤ 28 mg/dL

73

73,7

Realizado com menos de 6 consultas

12

12,1

Informação ausente

19

19,2

Informação ausente 1

10

Variável analisada apenas para as gestantes múltiparas.

10,1

TGO: transaminase glutâmico oxalacética. TGP: transaminase glutâmico pirúvica.

1

2

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Importância da implementação de protocolos de ação na pré-eclâmpsia

Tabela 4 - Distribuição de variáveis clínicas e laboratoriais relacionados ao diagnóstico da pré-eclâmpsia das gestantes analisadas pelo estudo (n=99), referentes ao período de 2010 a 2012, em um hospital de uma cidade de médio porte de Minas Gerais Dados sobre o diagnóstico da pré-eclâmpsia

Tabela 5 - Distribuição de variáveis clínicas (complicações relacionadas a pré-eclâmpsia) em gestantes analisadas pelo estudo (n=99), referentes ao período de 2010 a 2012, em um hospital de uma cidade de médio porte de Minas Gerais

n

%

Compatíveis com PE leve

43

43,4

Compatíveis com PE grave

54

54,5

Incompatíveis com PE

2

2

Administrada

18

18,2

Presente

48

48,5

Não administrada

40

40,4

Ausente

17

17,2

Informação ausente

41

41,4

Informação ausente

34

34,3

Convulsão 2

2

Níveis pressóricos

Proteinúria

Classificação da PE

Complicações relacionadas a pré-eclâmpsia

n

%

Medicação para prevenir eclâmpsia

Ocorreu

Leve

2

2

Não ocorreu

53

53,5

Grave

71

71,7

Informação ausente

44

44,4

Informação ausente

26

26,3

Síndrome HELLP Ocorreu

4

4

Um sintoma presente

45

45,5

Não ocorreu

40

40,4

Dois ou mais sintomas presentes

41

41,4

Informação ausente

55

55,6

Ausência de sintomas

4

4

Informação ausente

9

9,1

Ocorreu

19

19,2

Não ocorreu

47

47,5

Informação ausente

33

33,4

19

19,2

Sinal ou sintoma de PE

Das parturientes, 97,9% apresentaram níveis pressóricos compatíveis com PE. As classificações encontradas nos prontuários demonstraram discrepância na frequência de PE leve e grave (2 e 71%, respectivamente), entretanto, 43,4% das gestantes tiveram registros de níveis pressóricos correspondentes à PE leve, enquanto apenas 2% dessas realmente receberam essa classificação nos prontuários, outros 54,5% das parturientes tinham níveis pressóricos compatíveis com PE grave. No entanto, 71,7% dos prontuários tiveram classificação de PE grave. Além disso, 26,3% dos prontuários analisados não continham a classificação de PE em leve ou grave. No que diz respeito às complicações relacionadas à PE, as mais frequentes foram descolamento prematuro de placenta (19%), oligodramnia (19%) e CIUR (13%) (Tabela 5). Entre as gestantes, 18% fizeram uso de medicação para prevenir eclâmpsia, sendo 77,8% delas portadoras de PE grave. O medicamento de escolha na totalidade dos casos foi o sulfato de magnésio, entretanto, sua utilização não seguiu um padrão em relação à posologia e forma de administração. Dos prontuários estudados, em 41,42% não constava a informação sobre terapia para prevenção da eclâmpsia. Em 4% dos ca-

506

sos ocorreu síndrome HELLP, porém 55,6% dos prontuários não registraram essa informação (Tabela 5).

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Descolamente prematuro de placenta

Oligodramnia Ocorreu Não ocorreu

47

47,5

Informação ausente

33

33,3

Crescimento intra-uterino restrito Ocorreu

13

13,1

Não ocorreu

34

34,3

Informação ausente

52

52,5

6

6,1

Não ocorreu

35

36,4

Informação ausente

57

57,6

Insuficiência placentária Ocorreu

Em relação ao desfecho clínico e condutas terapêuticas, 76,8% dos partos foram cesáreos, 8% das gestantes sofreram hemorragia pós-parto, 2% tiveram internação em unidade de terapia intensiva e não houve óbito materno (Tabela 6). Aproximadamente 7% dos neonatos relacionados à pesquisa faleceram e 25,3% precisaram ser internados em unidade de terapia intensiva. A maioria das gestantes (67,7%) recebeu alta junto com o recém-nascido (Tabela 6).


Importância da implementação de protocolos de ação na pré-eclâmpsia

Tabela 6 - Distribuição de variáveis relacionadas ao desfecho clínico e condutas terapêuticas em gestantes com pré-eclâmpsia analisadas pelo estudo (n=99), referentes ao período de 2010 a 2012, em um hospital de uma cidade de médio porte de Minas Gerais Informações sobre o parto

n

%

Natural

23

23,2

Parto cesáreo

76

76,8

Ocorreu

8

8,1

Não ocorreu

84

84,8

Informação ausente

7

7,1

Via de parto

Informações sobre a mãe Hemorragia pós-parto

associação com a classificação da PE (p=0,16); houve maior proporção de recém-nascidos prematuros no grupo de gestantes com PE grave em relação à PE leve (p=0,03); além disso, a PE grave esteve associada ao óbito do neonato (p=0,02), com alta separada da mãe e neonato (p<0,01) (Tabela 7). Tabela 7 - Distribuição de variáveis de acordo com a classificação da pré-eclâmpsia em gestantes analisadas pelo estudo (n=99), referentes ao período de 2010 a 2012, em um hospital de uma cidade de médio porte de Minas Gerais Classificação PE1 Variável

PE leve (n=43) PE grave (n=54)

Internação em Centro de Tratamento Intensivo

n

%

n

% 11,1

Sim

2

2

Idade

Não

97

98

< 20

5

11,6

6

20 - 35

30

69,8

34

63

0

-

≥ 35

8

18,6

14

25,9

99

100

Primigestas

19

44,2

21

39,6

Multíparas

24

55,8

32

60,4

Óbito materno Sim Não

Informações sobre o feto/neonato Baixo peso ao nascer 31

31,3

Pré-natal

Não

61

61,6

36

92,3

39

81,2

Informação ausente

7

7,1

Realizado com 6 ou mais consultas Realizado com menos de 6 consultas

3

7,7

9

18,8

Presente

36

85,7

48

94,1

Ausente

6

14,3

3

5,9

Sim

7

7,1

Não

91

91,9

Informação ausente

1

1

Sim

25

25,3

Não

73

73,7

Informação ausente

1

1

Sim

67

67,7

Não

19

19,2

Informação ausente

13

13,1

Internação em Centro de Tratamento Intensivo

0,69

Paridade

Sim

Neonato faleceu

Valor-p

0,65

0,14

Sinal ou sistema de PE 0,15

Medicação para prevenir eclâmpsia

Recém-nascido e mãe receberam alta juntos

A distribuição das variáveis obtidas no estudo de acordo com a classificação da PE, seguindo valores de níveis pressóricos conforme os critérios internacionais da ACOG 20026, permite a evidenciação de alguns resultados: não houve maior proporção de PE grave em extremos de idade ou em primigestas (ambos p>0,05); a quantidade de consultas realizadas no pré-natal e sinais e sintomas de PE não influenciaram a classificação da PE (ambos p>0,05); o uso de medicação para prevenir eclâmpsia esteve associado à PE grave (p<0,01); a ocorrência de CIUR apresentou

Administrada

4

14,8

14

48,3

Não administrada

23

85,2

15

51,7

< 0,01*

Crescimento intra-uterino restrito Ocorreu

3

15,8

9

33,3

Não ocorreu

16

84,2

18

66,7

0,16

Classificação quanto ao termo Recém-nascido à termo

30

69,8

26

48,1

Recém-nascido pré-termo

14

30,2

28

51,9

0,03*

APGAR 5º minuto <8

1

2,4

6

11,3

≥8

41

97,6

47

88,7

Sim

-

-

7

13,3

Não

42

100,0

47

87,0

0,10

Óbito do Neonato 0,02*

Recém-nascido e mãe receberam alta juntos Sim

36

100,0

29

60,4

Não

-

-

19

39,6

<0,01* Continua…

Rev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 502-510

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Importância da implementação de protocolos de ação na pré-eclâmpsia

… continuação

Tabela 7 - Distribuição de variáveis de acordo com a classificação da pré-eclâmpsia em gestantes analisadas pelo estudo (n=99), referentes ao período de 2010 a 2012, em um hospital de uma cidade de médio porte de Minas Gerais Classificação PE1 Variável

PE leve (n=43) PE grave (n=54) n

%

n

%

Valor-p

Síndrome HELLP Ocorreu Não ocorreu

-

-

4

16,7

20

100,0

20

83,3

0,08

1 Classificação realizada a partir dos níveis pressóricos de acordo com os critérios da ACOG 2002 (6). * Significância estatítica.

É importante considerar que os prontuários selecionados para levantamento dos dados do estudo foram de gestantes que tiveram o desfecho da gestação no momento da internação, portanto, não foi possível levantar dados sobre PE precoce, que ocorre em períodos mais iniciais da gestação. Consequentemente, informações sobre CIUR também foram perdidas devido à casuística do estudo.

DISCUSSÃO O manejo preconizado dos DHGs varia na literatura e entre países distintos, tornando-se de difícil análise.11 Essa falta de critérios estabelecidos de maneira padronizada foi claramente observada no hospital estudado, onde, quando uma gama de profissionais da saúde classificavam pacientes atendidos no serviço, a variabilidade de classificação também se enquadrava nas mesmas, já que algumas eram classificadas de acordo com critérios norte-americanos, outras europeus e ainda outras de acordo com o consenso australiano-asiático.4 Além disso, foi evidenciada a ausência de padronização no diagnóstico de PE e de consenso entre os profissionais ali atuantes sobre a importância da proteinúria, uma vez que 34,3% dos prontuários não continham a informação sobre a realização dessa propedêutica e não se sabe certamente se a proteinúria era de fato realizada para diagnóstico dos casos no centro de referência estudado. Ressalta-se que a discordância de classificação foi constantemente deparada e debatida, tornando-se necessária revisão frequente dos muitos critérios estabelecidos, em termos de níveis pressóricos e valores de proteinúria, de forma a angariar dados que preenchiam os critérios de inclusão definidos pela pesquisa.

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Rev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 502-510

Na presente pesquisa, a incidência de DHG e dados de morbimortalidade foram concordantes com dados da literatura.13-15 No que concerne à gravidade da doença, pode-se perceber que no serviço pesquisado usa-se, provavelmente como forma de resguardo do profissional assistente, uma classificação mais abrangente, assemelhando-se ao estudo que deu origem ao consenso australiano-asiático.4 Assim sendo, um número maior de pacientes recebe a classificação de DHG/PE, sendo alvo da propedêutica. Em se tratando dos resultados de desfechos induzidos pela PE, 19% das pacientes apresentaram oligodramnia, 19% tiveram descolamento prematuro de placenta e 13% das gestações cursaram com CIUR, poucos dados referentes a esses parâmetros foram encontrados na literatura. Vale ponderar que, apesar de se ter em consensos norte-americano e outros o uso do sulfato de magnésio de forma bem estabelecida para prevenção de eclâmpsia4,6, este foi usado em 18% das gestantes, demonstrando baixa adesão da instituição nessa terapêutica. Em todos os casos em que se lançou mão de terapia para prevenir eclâmpsia, a escolha foi o sulfato de magnésio, porém seu uso não foi padronizado, havendo posologias e formas de tratamento distintas entre os pacientes. Dentre as 18 gestantes do hospital em estudo que utilizaram medicação para prevenir eclâmpsia no período da pesquisa, 77,78% foram classificadas como PE grave, o que se reflete nos resultados apresentados. A partir da análise dos dados desse grupo foi observado que: duas gestantes tiveram episódio de convulsão registrado no prontuário (100% das convulsões registradas); três tiveram diagnóstico de síndrome HELLP (75% dos casos de HELLP registrados); duas sofreram hemorragia pós-parto (25% dos casos de hemorragia registrados); oito casos tiveram registro de internação materna ou do recém-nascido no CTI (32% das internações registradas) e não houve uma morte materna entre as gestantes da pesquisa. Concluiu-se que, apesar do sulfato de magnésio ter eficácia comprovada na redução do risco de morte materna e na melhoria de desfechos materno-fetais4,6, em nosso trabalho seu uso não apresentou impacto significativo nos desfechos maternos e fetais entre as gestantes que foram submetidas a essa terapia e as gestantes que não foram. Pode-se inferir que uma padronização nas condutas e esquemas terapêuticos no hospital em estudo poderia fazer com


Importância da implementação de protocolos de ação na pré-eclâmpsia

que os resultados da terapia com sulfato de magnésio em casos de PE fossem mais positivos e impactantes. Devem-se levar em consideração como fatores que refletiram nos resultados encontrados: a falta de padronização dos esquemas terapêuticos, sua maioria ter sido empregada em casos classificados como PE grave, além da ausência de informações em 41,42% dos prontuários, que dificultaram a análise do impacto da medicação sobre os desfechos materno-fetais no estudo. A análise dos resultados da pesquisa relacionados aos desfechos com o RN denota que as frequências encontradas neste estudo são iguais ou maiores que as citadas na literatura brasileira.15 Foi encontrada incidência de baixo peso ao nascer de 31,3%, enquanto a incidência no Brasil, em 2008, foi de 9,3%.16 Esses dados associados à alta taxa de internação do RN em Centro de Terapia Intensiva (CTI) encontrada em nosso estudo, cerca de 25%, reflete importante relação entre PE e baixo peso ao nascer. Também foi possível relacionar a PE com mortalidade neonatal. No Brasil, a incidência de morte neonatal precoce no ano de 2007 foi de 1%17, enquanto na presente pesquisa foi de 7,1%. Em relação à prematuridade, os dados também se mostraram relevantes. No Brasil, o índice foi de 6,7% em 200817 e o encontrado neste estudo foi de 42,4%. Ao se comparar as gestantes com PE leve e as com PE grave, observou-se que a prematuridade esteve associada à PE grave (valor p=0,03) (Tabela 7). Além disso, a prematuridade e o CIUR estiveram relacionados à PE grave. Todos os óbitos fetais ocorridos durante o período estudado, bem como todas as altas do RN separados da mãe, ocorreram em casos classificados como PE grave, evidenciando uma relação entre desfecho neonatal desfavorável e a gravidade da doença. Ficam evidentes na análise dos resultados do estudo que os desfechos negativos relacionados ao RN foram de grande incidência e elevada gravidade, quando comparados com os dados presentes na literatura.17 Recomenda-se programar estratégias profiláticas e terapêuticas em pacientes com risco de desenvolver PE durante a gravidez, para trazer melhores desfechos para os neonatais. As alterações das enzimas hepáticas e a plaquetopenia ocorreram em baixa frequência no estudo, evidenciando baixa incidência de síndrome HELLP na instituição estudada. Esses dados, associados ao baixo índice de internação da mãe em CTI (2%) e à ausência de óbitos maternos, demonstraram que os

desfechos maternos foram, em sua maioria, positivos e não evoluíram para complicações. A PE é uma condição obstétrica comum e pode apresentar graves complicações que podem resultar em risco de morte tanto para a gestante quanto para o feto/neonato. Portanto, necessita ser diagnosticada precoce e corretamente para que sejam iniciadas condutas adequadas. Desse modo, a presente pesquisa possibilitou a descrição e análise do perfil de mulheres acometidas por PE no hospital de estudo. Padronização nas condutas e esquemas terapêuticos no hospital de referência poderia contribuir para uma possível implantação de medidas, protocolos e ações adequados e efetivos, que possam garantir melhor atendimento e suporte às gestantes com PE, evitando-se desfechos indesejáveis, como síndrome HELLP, eclâmpsia, óbito e outras consequências negativas para a saúde tanto da mãe como do feto. A análise de pontos positivos e negativos reconhecidos durante a pesquisa permite a melhora e aprimoramento de possíveis déficits. É importante considerar que o consenso australiano é muitas vezes usado como critério clínico para manejo da PE, mas raramente como parâmetro de pesquisa. No entanto, neste estudo, ao ser usado propriamente como critério de pesquisa, apresentou resultados semelhantes aos observados quando se utilizam os demais consensos. Não houve diferenças entre os desfechos maternos relacionados à PE encontrados no hospital e na literatura, ao contrário dos desfechos neonatais, que foram desfavoráveis no centro estudado quando comparados com os da literatura. E, como esperado, o grupo de gestantes classificadas com formas graves de PE apresentou desfechos desfavoráveis quando comparado com o grupo de gestantes classificadas com formas de PE leve. Concluiu-se, então, que a adoção de uma diretriz para manejo de PE no serviço facilitaria o diagnóstico e o uso de terapêuticas adequadas, além de favorecer a realização de novos estudos dentro da instituição, o que promoveria, por consequência, a melhor assistência às pacientes atendidas nesse serviço de saúde. Vale ressaltar que este estudo possui importantes limitações. Estiveram presentes durante toda a pesquisa impasses relacionados aos critérios diagnósticos de PE, uma vez que diferentes profissionais utilizam métodos distintos. Outra dificuldade presente foi relacionada à disponibilização dos prontuários, resultando em um grande número de informações perdidas. O critério de inclusão utilizado – apenas internações em que houve desfecho da gestação – tamRev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 502-510

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Importância da implementação de protocolos de ação na pré-eclâmpsia

bém gerou limitação nas informações, fazendo com que muitos prontuários não fossem analisados na pesquisa, tendenciando os resultados desfavoráveis.

AGRADECIMENTOS Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ). Programa Institucional de Bolsas de Iniciação PIBIC.

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ARTIGO ORIGINAL

Aspectos éticos do nascimento no limite de viabilidade Ethical aspects of birth in the limit of viability Cristiane Ribeiro Ambrósio1, Carlos Henrique Martins da Silva2, Éverton Germano Araújo Melo3

DOI: 10.5935/2238-3182.20150115

RESUMO Apesar dos grandes avanços ocorridos, nos últimos anos, no cuidado intensivo neonatal, recém-nascidos pré-termos (RNPT) com idade gestacional abaixo de 25 semanas apresentam altos índices de morbimortalidade, de tal forma que familiares e médicos enfrentam dificuldades para decidir a respeito da instituição e/ou continuação da reanimação a ser estabelecida nesses casos. Trata-se, portanto, de problema ético-moral complexo com profundo impacto na vida dos RNPTs sobreviventes e dos seus familiares, além das implicações para o sistema de saúde e a sociedade. Este trabalho pretende discutir alguns aspectos éticos que possam contribuir para o debate a respeito de reanimar ou não RNPTs extremos.

1 Médica Pediatra e Neonatologista. Mestre em ciências da saúde. Professora Assistente do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Uberlândia, MG – Brasil. 2 Médico Pediatra e Reumatologista Pediatra. Doutor. Professor Titular do Departamento de Pediatria da UFU. Uberlândia, MG – Brasil. 3 Médico. Médico-Residente de Clínica Médica na UFU. Uberlândia, MG – Brasil.

Palavras-chave: Prematuro; Bioética; Suspensão de Tratamento; Futilidade Médica; Ordens quanto à Conduta Ética Médica; Mortalidade; Morbidade. ABSTRACT Despite the great advances made in recent years in neonatal intensive care, preterm newborn infants (RNPT) with gestational age under 25 weeks present high rates of morbidity and mortality, therefore, families and doctors face difficult decisions about the institution and/or continued resuscitation to be established in these cases. It is, therefore, an ethicalmoral complex problem with deep impact on the lives of RNPT survivors and their families, in addition to the implications for the health system and society. This study discusses some ethical issues that may contribute to the debate about whether or not revive extreme RNPTs. Key words: Infant, Premature; Withholding Treatment; Medical Futility; Resuscitation Orders; Mortality; Morbidity.

INTRODUÇÃO As recentes inovações tecnológicas e os novos conhecimentos incorporados pela Medicina perinatal têm permitido que recém-nascidos (RN) prematuros (PT) tenham mais chances de sobrevivência, mesmo diante de prematuridade extrema. Com efeito, os limites de viabilidade humana já não podem ser especificados de maneira precisa, visto que crianças com 23 a 24 semanas de idade gestacional e com peso inferior a 500 g podem sobreviver.1 Entretanto, o nascimento de um prematuro pode interromper profundamente seu desenvolvimento cerebral. Os RNs com 24 semanas de gestação têm estágio rudimentar de desenvolvimento cerebral e a sua arquitetura cortical e subcortical normais ainda não foram formadas. A prematuridade está relacionada à redução do volume cerebral e anormalidades morfológicas que resultam em alterações cognitivas

Recebido em: 18/02/2015 Aprovado em: 16/10/2015 Instituição: Universidade Federal de Uberlândia – UFU Uberlândia, MG – Brasil Autor correspondente: Cristiane Ribeiro Ambrósio E-mail: crambrosio@yahoo.com.br

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Aspectos éticos do nascimento no limite de viabilidade

futuras. Além disso, fatores genéticos e ambientais influenciam no desenvolvimento cerebral dos prematuros.2 Quanto menor a idade gestacional e o peso ao nascimento, maiores as chances de sequelas. A sobrevida dos RNPTs com sequelas maiores, isto é, com hemorragia peri-intraventricular graus III/ IV, broncodisplasia pulmonar e retinopatia da prematuridade ≥ estágio 3, foram de 97%, 94%, 77% e 69% para RNs com 23, 24, 25 e 26 semanas de idade gestacional, respectivamente, segundo a Rede Espanhola de Neonatologia3. Nos Estados Unidos da América, os dados da rede de neonatologia Eunice Kennedy Shriver National Institute of Child Health and Human Development Neonatal Research Network mostram a sobrevida com sequelas de 92%, 91%, 80% e 66% para RNs com 23, 24, 25 e 26 semanas de idade gestacional, respectivamente.4 Shah et al.5 relataram, em estudo da rede canadense de neonatologia englobando 17.148 prematuros, a taxa de sobrevivência na alta hospitalar sem sequelas de 5%, 10% e 20% com 23, 24 e 25 semanas de idade gestacional, respectivamente. A reanimação de RNPTs extremos exige, portanto, reflexão criteriosa, pois requer procedimentos médicos agressivos, com consequências diretas sobre o cérebro em desenvolvimento, muitas vezes trazendo sérios comprometimentos e promovendo benefícios incertos. De tal forma que a reanimação de RNPTs extremos suscita vários questionamentos, como: quais RNs são passíveis de reanimação? Depois de iniciada a reanimação, por quanto tempo o tratamento deve ser mantido? Há que se considerar a qualidade de vida futura do RN? Diante da incerteza dos reais benefícios, os países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, nos quais os recursos financeiros são escassos, devem investir no tratamento de RNPTs próximos do limite de viabilidade? Há que se estabelecer limite para a atuação nesse grupo de pacientes?6-8 Trata-se, portanto, de problema complexo que deve ser compreendido nas suas dimensões biológicas, legais, econômicas e éticas. Este trabalho pretende discutir alguns aspectos éticos que possam contribuir para o debate contemporâneo a respeito da decisão de reanimar ou não RNPTs extremos.

MÉTODOS Foi realizada revisão bibliográfica dos aspectos éticos acerca das decisões de reanimação ou não

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dos RNPTs no limite de viabilidade, publicados no período entre 1999 e 2012. Foram utilizados os descritores: prematuro (infant, premature), bioética (bioethics), suspensão de tratamento (withholding/ withdrawing care), futilidade médica (medical futility), sobrevivência (survival), recém-nascido (newborn), ética (ethics), teoria da decisão (decision theory/decison making), mortalidade (mortality) e morbidade (morbidity). Não foi necessária a aprovação do trabalho por comitê de ética em pesquisa, por se tratar de trabalho de revisão da literatura. Os critérios de inclusão foram: artigos escritos em português, inglês e espanhol e que tivessem acesso liberado para consulta. Foram excluídos os artigos em outras línguas e aqueles cujo acesso era bloqueado.

RESULTADOS E DISCUSSÃO Os avanços médicos no tratamento de pacientes criticamente doentes têm acontecido em todas as áreas da Medicina, na maioria das vezes com ênfase na redução da mortalidade. As consequências diretas desses esforços são o aumento dos custos do tratamento, a maior complexidade exigida para o tratamento, o aumento da morbidade posterior e, em muitos casos, a não observância dos desejos do paciente.9 Dessa forma, a Medicina cada vez mais se aproxima da linha imprecisa que separa o que se deve ou não fazer.9 Os tratamentos precisam ser estabelecidos tendo em vista o grau de benefício esperado e o impacto que o mesmo possa causar na qualidade de vida do paciente. Na neonatologia, existe situação especial quando se trata de RNPT no limite de viabilidade. No momento do parto, devido à extrema imaturidade desses RNs, à reduzida probabilidade de sobrevida e à grande possibilidade de sequelas graves, iniciar a reanimação inclui questionar sobre a sua desnecessidade. Em tais casos, realizar reanimação agressiva e cuidados intensivos neonatais serve apenas para iludir os pais com falsas esperanças de que sua criança pode ser curada,10 pois são RNs que estão morrendo antes mesmo de viverem.11 Entretanto, o médico entender que a prematuridade extrema promove sequelas graves, muitas vezes irreversíveis e por toda a vida, não garante que se tenha limite para a atuação, nem mesmo que o profissional aplique na prática esse conhecimento. Guinsburg et al.12 ressaltaram que os neonatologistas têm dificul-


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dade em não realizar a reanimação neonatal em situações de prematuridade extrema em que o grau de sequelas é excessivo – 87% dos RNs de 23 semanas de idade gestacional foram reanimados e somente em 9% dos casos obstetras e neonatologistas concordaram em limitar as medidas aplicadas. Do mesmo modo, Fajardo et al.13 mostraram que, diferentemente do que acontece na América do Norte e na Europa, nos países latino-americanos os prematuros faleceram em sua maioria com todo o suporte vital e receberam, em sua maioria, medidas de reanimação cardiovascular no momento do óbito. Vários fatores influenciam a tomada de decisão de iniciar ou não o cuidado intensivo neonatal, destacando-se o medo de processo judicial que leva o médico a praticar intervenções desnecessárias; o aumento do número de RNs frutos de inseminação artificial, que leva os médicos a manterem tratamentos talvez inapropriados, já que os pais investiram muito para terem-no; o fato de o médico ser treinado para salvar vidas, existindo, portanto, um conflito interno por “não fazer nada” e a inadequada resposta à solicitação dos pais para se “fazer tudo”.14,15 Dessa forma, a sala de parto também pode ser palco de decisões éticas quando se decide, antes do parto, não reanimar um RN. Nessa situação, em particular quando se trata de um PT extremo, decide-se baseado na viabilidade do RN. É importante ressaltar que, nessa circunstância, definem-se a pequena probabilidade de sobrevivência e as possíveis sequelas antes mesmo que elas ocorram e, assim, prejulga-se o futuro do indivíduo baseado na incapacidade biológica de grupo ao qual ele pertence.16 As decisões e ações na sala de parto são feitas em segundos, definindo-se a agressividade dos procedimentos e a continuidade ou não das manobras a serem executadas nos primeiros 30 minutos de vida. É momento crítico, pois decisões difíceis têm que ser tomadas durante a reanimação do RN criticamente doente ou RNPT extremo.17 Se, por um lado, há incerteza sobre a idade gestacional e o prognóstico futuro, por outro, existem controvérsias sobre a agressividade das intervenções e investimento a serem feitos nesse grupo de pacientes, nascidos no limite de viabilidade.18 Apesar disso, essa questão deve ser respondida toda vez que o pediatra é chamado para recepcionar um RNPT extremo na sala de parto. O grande desafio que se impõe é definir qual paciente se beneficiará de todo o suporte tecnológico.

Ou seja, distinguir quem tem situação potencialmente curável daquele em que, pela irreversibilidade do processo, as medidas terapêuticas serão inócuas e fúteis.19 Assim, a despeito de todo progresso e sucesso no tratamento de RNs criticamente doentes, os médicos continuam com o dilema de não se saberem qual é o limite. Uma vez iniciada a terapia, a justificativa para continuá-la deve ser sempre questionada. Prolongar o processo de morrer não serve a qualquer propósito. Em primeiro lugar, não fazer mal e, quando apropriado, deixar a morte ocorrer com dignidade deve ser o foco principal e o centro de todo o processo de decisão.20 Nem tudo o que é tecnicamente possível é eticamente correto. A luta pela vida deve seguir limites racionais e humanos, além dos quais se compromete a dignidade humana.10 O médico deve exercer o seu papel e distinguir entre tudo o que pode ser feito e aquilo que deve ser feito.22 É importante ressaltar que o simples fato de os recursos existirem não os torna, automaticamente, de aplicação obrigatória. Eles são indicados ou não conforme o benefício que possam representar para o paciente. O direito à vida não implica dever à vida ou obrigação de sobrevida além do período natural mediante medidas por vezes desgastantes e dolorosas, colocando em ameaça a dignidade do doente.23 “A ciência e a tecnologia não podem ser punição ao doente que nasceu no tempo presente. Ninguém é obrigado a morrer intubado, usando drogas vasoativas e em procedimentos dialíticos numa UTI”.23 Além disso, como afirma o jurista Paulo José da Costa Júnior, “não há dever jurídico de prolongar uma vida irrecuperável”. Por outro lado, é preciso ter cuidado para não deixar de oferecer cuidados intensivos e reanimação neonatal a RN com potencial razoável de sobrevida sem sequelas. Muito se discute atualmente sobre o estatuto moral do prematuro, isto é, se valor da vida dos RNPTs é diferente das outras crianças e dos adultos e se possuem as mesmas oportunidades de acesso ao tratamento do que as crianças maiores e os adultos. Janvier et al.24 propuseram um questionário a médicos e estudantes de Medicina, Direito, Bioética e Antropologia, em que se pedia para colocar em ordem de preferência quem deveria receber primeiro medidas de reanimação, caso todos os oito pacientes hipotéticos (de diversas faixas etárias) necessitassem de intubação e cuidados intensivos ao mesmo tempo. Um desses pacientes era RNPT extremo que, apesar de ter prognóstico tão bom quanto, ou em alguns casos Rev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 511-516

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muito melhor do que os outros pacientes hipotéticos, sua reanimação foi considerada em penúltimo lugar. Alguns argumentam que os RNs são seres humanos, mas não são ainda pessoas, pois lhes faltam consciência e interação, que só iniciariam por volta dos dois meses de vida;25 ou que ainda não têm história com a família e que quando se tem um relacionamento com a criança, os pais não podem imaginar a vida sem ela.24 Realmente, há que se valorizar a vida desde o seu início, entretanto, o fato de se exagerar o tratamento para pacientes mais velhos e com prognóstico pior do que o de alguns RNPTs não significa que o profissional deva abandonar o seu julgamento clínico nem substituir as evidências científicas no tratamento daqueles nascidos no limite de viabilidade.25,26 O papel do médico é ser o advogado do RN e garantir tanto o seu direito à vida, como à morte digna e sem sofrimento exagerado quando o grau de imaturidade é extremo. É preciso ter em mente que o resultado do cuidado intensivo neonatal pode determinar ao doente uma existência de limitações, sempre dependente de cuidadores e, muitas vezes, sem consciência de si próprio e dos que o circundam. Argumentar que uma vida sem sequelas é melhor do que com sequelas não é forma de preconceito contra as pessoas com alguma deficiência. Um fato é viver da melhor maneira possível dentro das limitações existentes, outro é poder escolher se um filho já deve começar ou não a vida com sequelas. Se aos deficientes fosse dada a oportunidade de viver sem limitações, eles escolheriam uma vida com limitações?27 Existe atualmente uma aceitação de que 23 semanas seria o limite de viabilidade do ser humano.28 Nenhuma sociedade científica recomenda o tratamento ativo de RN abaixo dessa idade. Por outro lado, existe a aceitação de que a partir de 25 semanas de idade gestacional todos os esforços devem ser realizados para se preservar a vida.28 O intervalo de idade gestacional entre 23 e 24 semanas constitui tipo de “zona cinzenta” em que a reanimação só é realizada em casos individuais e segundo o desejo dos pais.28 Vários países contam com protocolos bem estabelecidos para a decisão de reanimar ou não RNPT no limite de viabilidade. No nosso país, a decisão de reanimar ou não um RNPT extremo é realizada de maneira aleatória, de acordo com a decisão pessoal do médico assistente no momento do parto e baseado em sua experiência profissional e impressões imediatas sobre a condição de saúde do RN. Frequentemente, a opção de reanimar ou não não é claramente discutida

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com os pais e não se leva em consideração o interesse do RN. Além disso, por outro lado, os obstetras frequentemente desconhecem a realidade da assistência neonatal, as sequelas impostas pela prematuridade e suscitam nos pais expectativas irreais de que os cuidados intensivos neonatais salvarão o RN. Assim, muitas vezes, nessas situações, os tratamentos médicos tornam-se um fim em si mesmo e o ser humano passa a estar em segundo plano. A atenção tem seu foco no procedimento, na tecnologia, não na pessoa que padece.8,29,30 Nesses casos, a ênfase cai na luta para garantir a máxima prolongação da vida (na quantidade de vida) e há pouca preocupação com a qualidade dessa vida prolongada.10 O médico deve utilizar todos os procedimentos e tratamentos que estão indicados, não deve utilizar os que estão contraindicados, nem os que são inúteis, e deve restringir os que são pouco eficazes. Como consequência desse uso racional dos tratamentos, pode-se não iniciar ou retirar uma terapia que não proporcionará benefícios ao paciente.8 A grande dificuldade nesse sentido é estabelecer, para cada caso individual, os limites entre o que é ético e cientificamente adequado e o que é desproporcional.31 Prolongar o processo de morrer à custa de tratamentos inúteis e desproporcionais não serve a propósito algum. Portanto, diante de decisões difíceis do ponto de vista moral, talvez o mais adequado seja recorrer à ideia de prudência que, segundo Diego Gracia10: Consiste na tomada de decisões racionais em condições de incerteza. A prudência exige reduzir a probabilidade de erro em níveis ínfimos quando está em jogo a vida das pessoas, porém não anular completamente a possibilidade de erro, já que isso levaria a uma busca obsessiva de certeza que, além de impossível, atrasaria a tomada de decisões, tornando-a por isso mesmo imprudente. A incerteza, pois, deve reduzir-se a um mínimo […], porém um mínimo prudencial, não absoluto. O problema de muitos médicos é que seguem empenhados em decidir em condições de absoluta certeza ou de mínimos absolutos e, em consequência, atuam imprudentemente. Isto é o que se conhece na literatura médica com o nome de encarniçamento terapêutico.

CONCLUSÃO O presente trabalho constitui ponto de partida para se iniciar a discussão necessária que deve ser


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conduzida, idealmente, pela Sociedade Brasileira de Pediatria, por intermédio de seus departamentos de neonatologia e de bioética. Trata-se de estimular o amplo debate a respeito do que fazer diante do nascimento de um RNPT no limite de viabilidade entre a equipe de saúde multiprofissional que atua com o RN (pediatras, obstetras, enfermeiros, bioeticistas, entre outros), as sociedades médicas, os representantes do Ministério Público e outros segmentos da sociedade brasileira. É necessário avançar nessa discussão, mostrar para a sociedade que o cuidado intensivo neonatal está inadequado para alguns e que deve ser modificado. Além disso, é preciso estabelecer a hierarquia ou a prioridade de valores quanto aos critérios (biológicos, éticos, econômicos e legais) envolvidos na decisão de reanimar ou não pré-termos no limite de viabilidade, levando-se em consideração as diferenças socioculturais entre as várias regiões brasileiras. Estudos brasileiros multicêntricos devem ser realizados, para melhor conhecer as taxas de mortalidade e morbidade dos RNPTs no limite de viabilidade, bem como a qualidade de vida dos sobreviventes. Por último, é necessário que seja estabelecido um protocolo de atuação no limite de viabilidade para orientar os pais e profissionais a respeito da reanimação do RNPT extremo.

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ARTIGO ORIGINAL

Pneumonia associada à ventilação mecânica como indicador de qualidade e segurança em saúde Pneumonia associated with mechanical ventilation as an indicator of health quality and safety Sérgio Antônio Pulzi Júnior1, Renato Ribeiro Nogueira Ferraz2, Milton Soibelmann Lapchick3

DOI: 10.5935/2238-3182.20150116

RESUMO Atualmente, o uso exclusivo do indicador de resultado em pneumonia associada à ventilação mecânica (PAV) pode ser considerado controverso, por não expressar a real qualidade e segurança dos serviços prestados em saúde. Assim, pretende-se fazer a análise do indicador de resultado concomitante à análise do indicador de processo de um protocolo de prevenção da PAV (Bundle). Métodos: estudo retrospectivo, descritivo e comparativo. Na análise do indicador de resultado foram comparadas a densidade de incidência de PAV e a taxa de utilização da ventilação mecânica (VM), antes e após a implantação do Bundle, por meio do teste t pareado. Para a análise de processo foi avaliado o percentual de adesão aos itens do Bundle. Finalmente, buscou-se estabelecer uma análise crítica entre ambos os indicadores estudados. Resultados: a adesão aos componentes do Bundle mostrou-se inferior ao esperado: decúbito elevado = 62%; higiene oral = 58%; despertar diário = 34%. Apesar disso, ocorreu redução significativa na mediana da densidade de incidência de PAV (2011 = 17,86; 2012 = 11,95; 2013 = 5,88) e na mediana da taxa de utilização de VM (2011 = 75%; 2012 = 63%; 2013 = 56%). Conclusões: seria possível questionar que instituições com diferentes níveis de qualidade e segurança na assistência apresentem indicador de resultado em PAV semelhante. Sugere-se que a análise concomitante de processo é relevante nesse cenário e para esse tipo de análise. A interpretação exclusiva de indicador de resultado pode ser equivocada e não representar o real modelo de entrega de serviços em saúde.

1 Médico. Mestre. Hospital São Luiz Gonzaga. São Paulo, SP – Brasil. 2 Biólogo. Doutor. Professor Permanente do Programa de Mestrado Profissional em Administração – Gestão em Sistemas de Saúde da Universidade Nove de Julho. São Paulo, SP – Brasil. 3 Médico. Doutor. Coordenador do Núcleo Municipal de Controle de Infecção Hospitalar da Coordenadoria de Vigilância em Saúde – COVISA. São Paulo, SP – Brasil.

Palavras-chave: Gestão em Saúde; Unidade de Terapia Intensiva, Pneumonia, Qualidade em Saúde. ABSTRACT Currently, the exclusive use of the outcome indicator in pneumonia (PAV) associated with mechanical ventilation can be considered controversial because it does not express the actual quality and safety of services provided in health. Thus, we intend to analyze the outcome indicator concomitant to the analysis of the process indicator in a protocol for PAV prevention (Bundle). Methods: this was a retrospective, descriptive, and comparative study. The PAV incidence density and the rate of use of mechanical ventilation (VM) were compared before and after the implementation of Bundle using the paired t test in the analysis of outcome indicator. The percentage of adherence to the Bundle’s items was evaluated in the process analysis. Finally, we sought to establish a critical analysis of the studied indicators. Results: the adherence to the Bundle components proved to be lower than expected: elevated decubitus = 62%; oral hygiene = 58%; daily awakening = 34%. Nevertheless, a significant reduction in the median PAV incidence density (2011 = 17.86; 2012 = 11.95; 2013 = 5.88) and median VM utilization rate (2011 = 75%; 2012 = 63%, 2013 = 56%) were observed. Conclusions: it would be possible to question that, institutions with different levels of quality and safety in the assistance, present outcome indicator with

Recebido em: 27/06/2015 Aprovado em: 16/10/2015 Instituição: Programa de Mestrado Profissional em Administração – Gestão em Sistemas de Saúde – PMPA-GSS da Universidade Nove de Julho – UNINOVE São Paulo, SP – Brasil Autor correspondente: Renato Ribeiro Nogueira Ferraz E-mail: renatobio@hotmail.com

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similar PAV. It is suggested that the concomitant analysis of the process is relevant in this scenario and for this type of analysis. The exclusive interpretation of the outcome indicator can be misleading and not represent the actual model for the delivery of health services. Key words: Health Management; Intensive Care Units; Pneumonia; Quality of Health Care..

INTRODUÇÃO Melhorar a qualidade e segurança da assistência à saúde de pacientes hospitalizados é assunto de atual relevância mundial. Grandes esforços dos gestores em saúde estão sendo mobilizados nesse campo para que suas instituições tenham resultados clínicos melhores, mantenham o equilíbrio financeiro de suas operações e alcancem adequado posicionamento e conceituação no competitivo mercado do setor saúde. A ocorrência de eventos indesejados e relacionados ao processo de atendimento pode afetar diretamente a satisfação do paciente e sua família, reduzir a qualidade percebida e implicar situação desfavorável de financiamento.1-3 No âmbito da qualidade e segurança na assistência à saúde, em ambiente hospitalar, pode-se dizer que as infecções relacionadas à assistência à saúde (IRAS) constituem um ponto de grande importância, pois são eventos que ocorrem por falhas no processo assistencial e que poderiam ser evitados. A ocorrência de IRAS está relacionada a maior mortalidade e aumento de custos e do tempo de internação hospitalar.4-6 Devido à sua relevância para o sistema de saúde, algumas IRAS, em determinados cenários, são utilizadas como doenças traçadoras da qualidade e segurança da assistência oferecida aos pacientes internados, sobretudo em unidades críticas e fechadas, como a unidade de terapia intensiva (UTI). Entre estas, encontra-se a pneumonia associada à ventilação mecânica (PAV), que é a mais importante infecção nosocomial adquirida em unidade de terapia intensiva, acometendo 9 a 27% dos pacientes em ventilação mecânica (VM) e com mortalidade global de 13%.7-9 Assim, prevenir a PAV é fundamental. Para tanto, foi desenvolvida a iniciativa de divulgação e adoção mundial denominada “Bundle da PAV”. Seus elementos são ações de boas práticas baseadas em evidências, que determinam padrão de atendimento e de cuidados em saúde para prevenção da PAV. A eficácia desse processo depende de estrutura mínima e adesão às ações propostas.10,11

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Desde a implantação do Bundle da PAV, vários estudos relacionados à redução de incidência dessa infecção foram publicados. A experiência, em geral, demonstra bons resultados, representados fundamentalmente pela queda da densidade de incidência da PAV. Porem, a análise dessa literatura, considerando a PAV como doença traçadora da qualidade e segurança na assistência, leva ao questionamento da real representatividade do uso isolado desse indicador na mensuração de qualidade. Dessa forma, parte dos estudos em qualidade, de aplicação de um Bundle da PAV, possui lacuna metodológica, que é a falta de análise concomitante de indicadores de estrutura e de processos.12,13 Com foco em gestão da assistência em PAV, parece não ser suficiente medir exclusivamente o indicador de resultado, representado pela incidência da PAV. Deve-se demonstrar como foram modificadas a estrutura e o processo assistencial, a partir de indicadores que sejam capazes de justificar os resultados alcançados e explicar por que a menor incidência de PAV pode ser entendida como avanço positivo em qualidade e segurança assistencial.2,14 O entendimento da necessidade de análise de estrutura, processo e resultado, concomitantemente, ocorre devido a dois aspectos principais. O primeiro refere-se à PAV. Trata-se de doença de difícil precisão diagnóstica e que possui subjetividade e heterogeneidade na interpretação de seus critérios clínicos definidores, o que gera imperfeição diagnóstica.12,15,16 O segundo refere-se à qualidade e segurança na assistência, pois não se pode garantir que instituições com estrutura semelhante e com resultados similares de incidência da PAV estejam oferecendo assistência de mesmo nível aos seus usuários, se não houver análise de indicadores de processos.2,14 Assim, a utilização isolada do indicador de incidência da PAV como traçador de qualidade e segurança na assistência em saúde deve ser questionada e sua análise deve ser pautada nos conceitos primordiais de qualidade propostos por Donabedian, os quais abrangem três domínios: estrutura, processo e resultados. A preocupação dos gestores em saúde não deve estar exclusivamente nos resultados finais atingidos (densidade de incidência da PAV), os quais são passíveis de múltiplas interferências. Deve haver análise crítica do processo de entrega de serviços de saúde aos usuários, a fim de lhes proporcionar serviços plenamente seguros e de qualidade.14,17 O objetivo do estudo é analisar o indicador de resultado (incidência da PAV) concomitante à aná-


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lise do indicador de processo, adesão aos componentes do Bundle da PAV, procurando correlação entre estes. Procura-se demonstrar como foi modificado o processo assistencial, a partir da adesão ao Bundle de PAV, e se isso foi capaz de justificar os resultados alcançados.

MÉTODO Historicamente, na UTI adulto do hospital foco do presente trabalho, a densidade de incidência da PAV e a taxa de utilização da VM apresentavam-se acima do referencial externo divulgado pelos órgãos governamentais do município de São Paulo (Coordenação de Vigilância em Saúde – COVISA). Essas duas informações são utilizadas para estabelecer aferição (benchmarking) entre as instituições hospitalares desse município e são tomados internamente como parâmetro institucional na avaliação da qualidade e segurança na assistência à saúde prestada aos pacientes internados na UTI. Com base nessas considerações, foi proposta a implantação do Bundle da PAV, a fim de se aprimorar a prática clínica, melhorar os indicadores assistenciais e possibilitar a oferta de serviços de saúde com melhor qualidade e segurança aos pacientes hospitalizados. Durante a aplicação do Bundle da PAV, um indicador de processo foi utilizado, sendo este a medida percentual de adesão aos seus componentes. Dessa forma, buscou-se atender à premissa de que para melhor e adequada análise da qualidade e segurança em saúde existe a necessidade de se compreender o processo de atendimento, diferentemente do que é feito até o momento em relação aos indicadores assistenciais em PAV. A instituição estudada na presente pesquisa é um hospital geral, secundário, de ensino e voltado para o atendimento de média e alta complexidade. Possui cerca de 170 leitos de internação, sendo nove de UTI adulto. A UTI desse hospital é predominantemente clínica. Sua equipe multiprofissional é composta de profissionais de enfermagem, fisioterapeutas e médicos. Recebe apoio de farmacêutico, assistente social, psicólogo e do serviço de controle de infecções hospitalares (SCIH). São realizadas uma a duas visitas multiprofissionais por dia, pelo menos cinco dias por semana. Há plano terapêutico e de metas. A PAV é diagnosticada e notificada pela SCIH, equipe composta de médicos e enfermeiros espe-

cializados. Os critérios utilizados para definição de casos de PAV pela SCIH são aqueles determinados pela COVISA e pelo Programa Nacional de Prevenção Contra as Infecções Hospitalares – ANVISA18. O Bundle da PAV foi introduzido em janeiro de 2012, sendo compostos pelos itens: manutenção do paciente em decúbito elevado, higiene oral com clorexidine aquoso 0,12%, despertar diário, avaliação da medida de pressão de cuff, profilaxia de úlcera gástrica, profilaxia de trombose venosa profunda e higienização das mãos. Essas medidas foram adotadas de acordo com as recomendações internacionais constantes em protocolos assistenciais consagrados.6,19 A verificação da adesão aos componentes do Bundle da PAV, de janeiro a julho de 2013, foi realizada três vezes ao dia, por instrumento específico (Anexo 1). O profissional responsável por esse monitoramento foi o enfermeiro, o qual podia realizá-lo em qualquer momento do seu turno de trabalho. Um item do Bundle foi considerado realizado quando era devidamente empregado nos três períodos de análise. Itens feitos de forma incompleta ou contraindicados foram considerados como não realizados. Trata-se de estudo retrospectivo, descritivo e comparativo. Na análise do indicador de resultado foi comparada a densidade de incidência da PAV e a taxa de utilização da VM, antes e após a implantação do Bundle, por meio do teste t pareado. Também foi estabelecida a comparação desses dois indicadores com o seu respectivo referencial externo, apresentado pela COVISA. A influência do Bundle na ocorrência da PAV foi determinada por regressão linear. Na análise de processo foi avaliado o percentual de adesão aos itens do Bundle e buscou-se estabelecer análise crítica entre este indicador e o de resultado. Foram utilizados os softwares estatísticos: Microsoft Excel e Action R. Foi adotado como valor de significância estatística p < 0,05. O estudo foi a provado pela comissão de ética em pesquisa institucional.

RESULTADOS A análise descritiva das medianas de densidade de incidência da PAV e da taxa de utilização da VM revelou queda em ambos os indicadores após a introdução do Bundle da PAV, sendo que o referencial externo foi superado no ano de 2013 para a ocorrência de PAV (Tabela 1 e 2). Rev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 517-522

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Tabela 1 - Mediana da densidade de incidência da pneumonia associada à ventilação mecânica em unidade de terapia intensiva em hospital geral, secundário, de ensino e voltado para o atendimento de média e alta complexidade

Instituição

Mediana da densidade da incidência da pneumonia associada à ventilação mecânica em vários períodos da aplicação e adesão de Bundle 2011a (Jan – Dez)

2012b (Jan – Dez)

2013b,c (Jan – Jul)

Hospital

17,86

11,95

5,88

COVISA

9,79

9,73

8,44

a. Período anterior ao Bundle (2011); b. Período posterior ao Bundle (2012 e 2013); c. Período de avaliação da adesão aos itens do Bundle; COVISA: Coordenação de Vigilância em Saúde, município de São Paulo.

Tabela 2 - Mediana da taxa de utilização da ventilação mecânica unidade de terapia intensiva em hospital geral, secundário, de ensino e voltado para o atendimento de média e alta complexidade

Instituição

Mediana da taxa de utilização da ventilação mecânica em vários períodos da aplicação e adesão de Bundle 2011a (Jan – Dez)

2012b (Jan – Dez)

2013b,c (Jan – Jul)

Hospital

74

63

56

COVISA

37

35

34

a. Período anterior ao Bundle (2011). b. Período posterior ao Bundle (2012 e 2013). c.Período de avaliação da adesão aos itens do Bundle; COVISA: Coordenação de Vigilância em Saúde, município de São Paulo.

A redução descrita para ambos os indicadores foi comparada entre os períodos do estudo por meio do teste t pareado (Tabela 3). Tabela 3 - Comparação entre períodos para a taxa de utilização da ventilação mecânica (Tx-VM) e para a densidade de incidência da pneumonia associada à ventilação mecânica (D-PAV) 2011-2012 a

2012-2013 a

2011-2013 a

t-pareado

1,01

3,03

4,50

p-value

0,34

0,02

0,004

t-pareado

2,87

2,32

4,37

p-value

0,02

0,06

0,004

Tx-VM b

D-PAV

a

b

Antes do Bundle = 2011. Após o Bundle = 2012 e 2013. b p-value < 0,05.

Avaliando a influência da variável independente, Bundle da PAV, na variação da ocorrência da PAV, variável dependente, a partir de teste de regressão linear, identifica-se que a adoção do Bundle da PAV foi significante a 10% (β = 8,907; F(1,28) = 5,20; p < 0,10).

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Em relação à adesão aos itens do Bundle da PAV, foram avaliados 1.054 pacientes.dia em VM. Nesta análise, que expressa indiretamente como o serviço foi entregue ao cliente, encontrou-se, de forma geral, baixa aderência. Isso ocorreu, sobretudo, nas medidas de mais importância para a prevenção da PAV, que são o decúbito elevado (adesão = 62%), a higiene oral com clorexidine 0,12% (adesão = 58%) e o despertar diário (adesão 34%). O item higiene das mãos foi descartado desta análise por se tratar de um processo específico e particular. O item controle da pressão de cuff não foi analisado devido à falta de equipamento específico para sua realização.

DISCUSSÃO Apesar da significativa queda encontrada após a implantação do Bundle da PAV, em sua incidência e na taxa de utilização da VM, pode-se verificar que a adesão aos itens do Bundle não foi expressiva. A literatura habitualmente demonstra adesão superior a 90%, em todos os itens, para que resultados semelhantes sejam alcançados. Além disso, não se encontram na literatura estudos com resultados negativos, tanto para redução da PAV como para nível de adesão ao Bundle.20-23 Assim, surgem os questionamentos em relação à prevenção da PAV e à gestão de seus indicadores: ■■ é suficiente monitorar esse processo de prevenção utilizando uma única variável de desfecho? ■■ é possível, a partir desaa única variável monitorada, afirmar plenamente que o Bundle da PAV melhora a qualidade e segurança dos serviços prestados aos pacientes internados em UTI, garantindo similaridade entre diferentes instituições, quando estas apresentam desfechos semelhantes? ■■ seria justo e adequado utilizar essa única variável para estabelecer aferição para comparação (benchmarking) entre as instituições hospitalares, bem como nortear questões de financiamento? Possivelmente, as respostas mais adequadas para essas perguntas, à luz dos resultados encontrados e do conhecimento existente: ■■ o monitoramento de um serviço em saúde é mais adequado se houver análise de estrutura, processo e resultado, como proposto por Donabedian; ■■ provavelmente, a análise apenas de desfecho não permite afirmar que os serviços em saúde foram entregues, comparativamente, com a mesma quali-


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■■

dade e segurança entre instituições, o que poderia ser mais bem avaliado pela medição do nível de adesão aos componentes do Bundle (instituições com diferente nível de adesão certamente entregam serviços de diferente qualidade, porém podem alcançar indicadores de resultado semelhantes); aparentemente, a monitoração exclusiva de desfecho em PAV não permite estabelecer comparação adequada entre instituições, tanto para questões de benchmark, como de financiamento.2,12–14

A intenção deste artigo não é debater a importância do Bundle da PAV. Isso é indiscutível e os benefícios assistenciais aos pacientes são certos, o que é reforçado pelos resultados encontrados neste e em outros estudos.6,19,20 A intenção é discutir como o processo de atendimento na prevenção da PAV deve ser monitorado, para que os seus indicadores possam ser adequadamente utilizados na comparação entre as instituições com a finalidade de benchmark e financiamento. Os resultados do processo de atendimento da prevenção da PAV devem conter indicadores capazes não somente de avaliar a ocorrência de PAV. Esse tipo de análise, dissociada da avaliação de estrutura e de processo, pode resultar em conclusões equivocadas e não garantir que o melhor serviço possível esteja sendo entregue ao cliente. Esse fato ocorre principalmente em PAV, em que a definição diagnóstica, apesar de possuir critérios bem definidos, possui imprecisões e subjetividade de interpretação.2,14,15,18 Dessa forma, propõe-se, de acordo com outros autores,12,14 a análise diferenciada desse processo de atendimento, como se segue (Tabela 4). As limitações desta pesquisa foram: ■■ a avaliação de adesão ao Bundle não foi permanente, ou seja, não ocorreu de forma ininterrupta. Esta foi feita de maneira oportuna e aleatória, três vezes ao dia. No período entre avaliações pode ter havido quebra de protocolo, a qual não pode ser identificada; ■■ o curto período de análise da adesão ao Bundle, que compreendeu apenas seis meses; ■■ a não avaliação de outros indicadores de estrutura, processo e resultado. Pode-se concluir que estudos com foco em gestão em serviços de saúde para a prevenção da PAV, com a análise de estrutura, processo e resultado, precisam ser desenvolvidos para que políticas em saúde possam ser desenvolvidas em relação aos resultados obtidos na prevenção da PAV. Provavelmen-

te, e apenas desta forma, a PAV e seus indicadores poderão ser usados para a determinação de políticas de financiamento e benchmarking entre instituições, bem como ser utilizada como doença traçadora de qualidade em saúde. Tabela 4 - Indicadores que devem ser considerados na análise de um Bundle da PAV para avaliação de qualidade e segurança em serviços em saúde Análise de estrutura Condição de saúde e gravidade clínica do paciente. Individualização de fatores de risco para PAV. Tempo de VM por grupo de pacientes. Tempo de internação em UTI. Análise de processo Qual critério técnico é utilizado no diagnóstico? Qual técnica microbiológica é utilizada no diagnóstico? Qual a forma de se interpretar os critérios para suspeita? Qual a adesão aos elementos de um protocolo de prevenção? Análise de resultado Resistência aos antibióticos ao longo do tempo. Qual o consumo de antibióticos da UTI? Taxa de mortalidade da UTI.

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ARTIGO ORIGINAL

Comprometimento hepático clínico e ultrassonográfico em crianças com toxocaríase Clinical and ultrasound liver impairment in children with toxocariasis Elaine Alvarenga de Almeida Carvalho1, Regina Lunardi Rocha2, Rogério Augusto Pinto da Silva3

DOI: 10.5935/2238-3182.20150117

RESUMO Objetivo: descrever alterações hepáticas ultrassonográficas, além de aspectos epidemiológicos, clínicos e laboratoriais de crianças com Larva migrans visceral. Casuística e Métodos: estudo prospectivo, de 37 crianças com sorologia ELISA – IgG antiToxocara canis positiva submetidas a exame clínico, laboratorial e ultrassonografia abdominal para investigar comprometimento hepático. Resultados: 11 (29,7%) crianças entre as 37 com toxocaríase apresentaram lesões hipoecoicas hepáticas e/ou alagamento de linfonodos periportais. Foram encontradas clinicamente hepatomegalia e esplenomegalia em seis (63,6%) e em um (9,1%) dos casos. Conclusões: a toxocaríase, de alta prevalência nas crianças do Brasil e do mundo, pode evoluir com alterações hepáticas clínicas e ultrassonográficas. A ultrassonografia é capaz de identificar no fígado pelo menos o dobro das alterações do que é aferido pelo exame físico e deve ser considerada como exame rotineiro na suspeita toxocaríase.

1 Médica. Doutora. Professora Adjunta do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Belo Horizonte, MG – Brasil. 2 Médica. Doutora. Professora Adjunta do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte, MG – Brasil. 3 Médico. Mestre. Especialista em ultrassonografia do Hospital das Clínicas da UFMG. Belo Horizonte, MG – Brasil.

Palavras-chave: Saúde da Criança; Larva Migrans Visceral/diagnóstico; Larva Migrans Visceral/epidemiologia; Fígado; Hepatopatias; Ultrassonografia. ABSTRACT Objective: to describe ultrasonographic liver alterations as well as epidemiological, clinical, and laboratory aspects in children with visceral Larva migrans. Patients and Methods: this was a prospective study of 37 children with ELISA serology – anti-Toxocara canis IgG positive subjected to clinical examination, laboratory tests, and abdominal ultrasound to investigate hepatic impairment. Results: 11 (29.7%) children among the 37 with toxocariasis showed hypoechoic liver lesions and/or elongated periportal lymph nodes. Hepatomegaly and splenomegaly were clinically found in six (63.6%) and one (9.1%) of the cases. Conclusions: toxocariasis of high prevalence in children, in Brazil and the world, can evolve with clinical and ultrasonographic liver alterations. The ultrasound can identify at least twice the number of liver alterations than those measured by physical examination and should be considered as a routine examination on toxocariasis suspicion. Key words: Child Health; Larva Migrans, Visceral/dignosis; Larva Migrans, Visceral/epdemiology; Liver; Liver Diseases; Toxocariasis; Ultrasonography.

INTRODUÇÃO

Recebido em: 22/07/2015 Aprovado em: 16/10/2016

A toxocaríase é doença negligenciada1 e sua prevalência encontra-se em torno de 14 a 54,8% na população infantil brasileira.2-4 A particularidade do homem de conviver com animais domésticos, principalmente os cães, tem definido a distribuição da toxocaríase.

Instituição: Faculdade de Medicina da UFMG Belo Horizonte, MG – Brasil Autor correspondente: Elaine Alvarenga de Almeida Carvalho E-mail: reginalunardi@hotmail.com

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Comprometimento hepático clínico e ultrassonográfico em crianças com toxocaríase

O termo Larva migrans visceral (LMV), cujos agentes causadores são Toxocara canis (T.canis ) e Toxocara cati (T.cati),5 foi utilizado por Beaver et al. para expressarem as manifestações clínicas de três crianças com eosinofilia crônica importante, hepatomegalia, infiltração pulmonar, febre, tosse e hiperglobulinemia devido à penetração da larva nematoide no fígado.6 Observa-se hepatomegalia em até 53,8% das crianças com IgG antiT.canis (ELISA) positiva7 e que se associa a ampla variedade de achados anatomopatológicos intra e extra-hepáticos, desde a formação de nódulos e linfondomegalia hilar8 até abscessos visibilizados à ultrassonografia de abdômen (USA).5,9,10 Este estudo é estimulado pela escassez de dados que avaliam as complicações da Larva migrans visceral em órgãos vitais e a sua alta prevalência nas crianças no mundo e no Brasil, com a intenção não só de alertar para a sua sintomatologia como de descrever exames laboratoriais e de imagem que possam contribuir para o seu diagnóstico e o acompanhamento evolutivo de suas manifestações na infância.

METODOLOGIA Estudo prospectivo realizado no período de quatro anos em série de 37 casos de toxocaríase com sorologia IgG antiToxocara canis positivo (≥640), sendo descritos 11 pacientes com USA alterada. A sorologia foi realizada utilizando-se Ridascreen® Toxocara IgG (Darmstadt, Germany), que detecta anticorpos contra antígenos de larvas de excreção-secreção de T. canis. Todos os pacientes foram atendidos no Centro de Treinamento e Referência (CTR) em Doenças Infecciosas e Parasitárias (DIP) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) /Prefeitura de Belo Horizonte e submetidos à USA realizada no Serviço de Imaginologia do Hospital das Clínicas da UFMG por mesmo examinador, que não conhecia o resultado de sorologia. O aparelho utilizado foi PHILIPS ENVISIOR HD, sonda L12-3, com frequência de 7 a 12 MHz. Todos os exames foram gravados no vídeo PRINTER e no HD. Os pacientes que apresentaram alterações hepáticas à USA foram tratados com albendazol por 14 dias e acompanhados clinicamente e por intermédio da USA mensalmente até que as lesões tivessem regredido completamente. Foram realizadas as medidas de cada víscera, fígado (LD e LE ou LME, LAA e LHC) ou baço (diâmetro longitudinal) mesmo quando dentro

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da normalidade. Foram considerados os valores de normalidade segundo Konuş et al.11, em 1998. O tratamento para as crianças com sorologia ELISA positiva foi realizado com albendazol 10 mg/kg/dia (dose máxima ao dia de 400 mg), por via oral, durante 15 dias. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade (Parecer nº ETIC 045/07) e todos os participantes e/ou responsáveis assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

RESULTADOS Entre as 37 crianças com sorologia positiva IgG antiToxocara canis, sete (63,6%) eram femininas, sete (63,6%) tinham o hábito de geofagia e quatro (36,3%) praticavam onicofagia. Os valores da sorologia IgG antiToxocara canis variaram de 745 a 24.304, sendo em cinco crianças (45,4%) acima de 20.000. Observaram-se, ainda, leucocitose, eosinofilia e iso-hemaglutinas anti-A e anti-B positivas, IgE total sérica elevada e hiper IgE, IgG total elevada e IgM elevada. Entre as crianças estudadas, 11 (29,7%) apresentavam lesões hipoecoicas hepáticas e/ou linfadenomegalia periportal, em seis (63,6%) havia hepatomegalia clínica e em 9,1% detectou-se esplenomegalia (Tabela 1). As lesões observadas à USA foram descritas como: imagens hipoecogênicas únicas ou múltiplas milimétricas em um lobo ou não, associadas ou não a aumento de linfonodo periportal fusiforme ou peripancreático (Tabela 2) e que regrediram entre três e seis meses após o tratamento com albendazol por via oral. Foi encontrado abscesso hepático em dois (18,8%) pacientes (Tabela 1). Não ocorreu uveíte entre essas crianças.

DISCUSSÃO Há poucos estudos com descrição de toxocaríase em crianças com linfadenomegalia e/ou lesões hepáticas à USA. Na avaliação do comprometimento hepático, a USA pode visibilizar hepatomegalia, além de imagens nodulares e hipoecoicas no fígado, linfonodomegalia hepato-hilar e peripancreática.5 Neste trabalho, entre as 37 crianças com sorologia positiva IgG antiToxocara canis, 29,7% apresentavam lesões hepáticas à USA e a hepatomegalia estava presente em 18,9% dos casos. A prevalência de hepatomegalia clínica ocorreu entre 11,1 e 85% e esplenomegalia entre 0,9% e 45%.7,12,13


Comprometimento hepático clínico e ultrassonográfico em crianças com toxocaríase

Tabela 1 - Características das crianças ELISA IgG antiToxocara canis positivas e alterações ultrassonográficas Pacientes/características

1

2

3

4

5

6

7

8

9

10

11

Sexo

M

M

F

M

F

F

F

F

M

F

F

Idado (anos) Sorologia Leucócitos (milhares/mm3)

3

3

7

3

2

11

2

4

9 meses

4

3

24304

23612

17906

24175

24161

11809

8787

24686

3555

745

1685

11110

31200

11700

12700

15100

6550

73000

9280

8880

17000

86000 3526

Eosinófilos (células/mm )

2999

14976

2410

5588

4077

936

57962

1317

71

935

Igt total (Ul/ml)

>2000

>2000

>2000

>2000

764

1106

1612

302

66

196

-

S

S

S

S

N

S

S

N

N

N

-

Isohemaglutininas anti-A

64

negativa

negativa

128

256

16

negativa

64

4

128

-

Isohemaglutininas anti-B

negativa

32

16

16

128

32

128

32

4

64

-

IgGTotal (mg/dl)

1130

1510*

1880*

1620*

776

1490

4870*

1390*

1170*

2030*

3140*

IgM (mg/dl)

135

134

232*

116

158

118

356*

189

133

162

387*

S

S

S

S

N

N

S

N

N

S

S

3

Hiper Igt (ige total >1000Ul/ml)

Hepatomegalia Clínica Hepatomegalia ultrassom

N

S

N

N

N

N

N

N

N

N

N

Esplenomegalia clínica

N

N

N

N

N

N

N

N

N

S

N

Esplenomegalia ultrassom

N

N

N

N

N

N

N

N

N

N

N

Abscesso hepático

N

N

N

N

N

N

N

N

N

S

S

Nodulos hipoecoicos

S

S

N

S

S

S

S

N

N

S

S

Linfoedenomegalias periportal

N

S

S

N

N

N

S

S

S

N

S

Abscesso hepático

N

N

N

N

N

N

N

N

N

S

S

S= Sim; N= Não. *Elevado para a idade.

Tabela 2 - Descrição de achados ultrassonográficos hepáticos em crianças ELISA IgG anti-Toxocara canis positiva Laudo/ Paciente

Laudo

1

multiplas áreas hipoecogênicas difusas e aleatórias medindo as maiores até 10mm.

2

múltiplas lesões focais milimétricas um linfonodo periportal medindo 1,5x0,8x0,7cm

3

dois linfonodos fusiformes hepáticos 2,4x0,6 e 2,6x0,7cm

4

inúmeras lesões hipoecogênicas hepáticas (Figura 1)

5

três lesões hipoecogênicas em lobo direito 5,8/4,1/2,8 mm

6

lesões hipoecogênicas em segmento VII do fígado (Figura 2)

7

múltiplas lesões hipoecogênicas dois linfonodos peri-portais 3,8x1,6cm

8

um linfonodo periportal (Figura 3)

9

dois linfonodos periportais 815x1,22 e 0,898x0,810cm

10

nódulos hipodenso 4 mm lobo esquerdo e calcificações intra-parenquimatosas numerosas no lobo direito e quadrado

11

nódulos hipoecogênico segmento VI do lobo direito com septos finos 5,5x5,8x5,1 mm e outro medialmente 1,6x1,7x1,3mm um linfonodo periportal aumentado

Alguns autores relataram casos com imagens hiopecoicas inicialmente em adultos com toxocaríase.4 Em crianças com toxocaríase verificam-se, desde 1992, 16,1 a 83% de lesões hepáticas5 com aspectos

nodulares, únicas ou múltiplas e de tamanhos variados, contornos definidos, respeitando o parênquima do órgão. Podem acometer um ou ambos os lobos hepáticos e comprimir ou não a porção intra-hepática da veia cava inferior.8,12,14 Há relato de persistência desse tipo de imagens por até dois anos.8 Pode ser encontrada ainda linfonodomegalia hilar hepática e/ ou pancreática.5 A hepatomegalia, à palpação, estava presente na maioria dessas crianças com alterações à USA, o que está em concordância com os achados de outros autores;8 e apenas uma criança exibia hepatomegalia clínica e à USA concomitantemente.

Figura 1 - Ultrassom abdominal mostrando nódulos hipoecoicos hepaticos. Rev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 523-528

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Comprometimento hepático clínico e ultrassonográfico em crianças com toxocaríase

Figura 2 - Ultrassom abdominal mostrando o fígado.

Figura 3 - Ultrassom abdominal mostrando linfadenomegalia periportal.

Essa discrepância é descrita na literatura e relaciona-se às limitações desse método em relação à medida hepática,15 que podem ser à USA diferentes em relação ao exame físico devido à possibilidade de interferência da etnia e altura nos valores de referência.16 Os títulos da sorologia ELISA estavam muito elevados na população estudada, o que sugere quadro agudo, porém não foram encontrados trabalhos que mostrassem medidas de associação de sorologia com alterações hepáticas. Neste trabalho, foi encontrado abscesso hepático em 18,8% das crianças com títulos ELISA acima de 640. A toxocaríase é fator predisponente para abscesso hepático e sua incidência varia entre 27 e 63%,15 podendo ocorrer com títulos ELISA mais baixos, como acima de 500, comparado com os aqui observados.10 Neste estudo, a maioria das crianças tinha menos de seis anos de idade e manifestava queixa de dor abdominal, o que corrobora outros autores.13 Iddawela et al. consideram a hipótese de que a maior causa de dor abdominal idiopática seja a toxocaríase e pode

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ser devida à linfadenite como resposta do hospedeiro à migração da larva.17 Em relação à epidemiologia, apurou-se, neste estudo, que todos tinham contato com filhotes de cães há pelo menos três meses e não faziam uso de antiparasitários para os cães. Esse achado ratifica o estudo de Altchech et al., na Argentina, que encontraram 92,6% das crianças com sorologia positiva que tiveram contato com cães.12 Alderete encontrou, em 44,5% da população estudada com toxocaríse, a presença de cães em suas casas.18 Outros autores mostraram associação entre presença de cães e toxocaríase.10 Na atualidade, é frequente ter cães em casa, até mesmo em apartamentos. E o fato de possuir um animal de estimação levaria a maior chance de ocorrência de toxocaríase. A toxocaríase ocorreu em 64,4% em meninas, 36,3% tinham três anos de idade. Estudos brasileiros mostraram prevalência da infecção entre um e 14 anos,2-4,7,18 semelhante ao relatado por outros autores na Ásia.17 Nos países desenvolvidos, a prevalência é maior em crianças abaixo de sete anos de idade.5 Provavelmente, isso se deve ao fato de crianças menores não praticarem higienização adequada das mãos. Entre as 11 crianças, a maioria morava em área urbana (72,7%), porém o tipo de residência permitiu possuir cães de estimação e para proteção da casa. Outros autores encontraram prevalência maior da doença em crianças que moram na zona rural, o que está associado ao baixo nível socioeconômico e educacional.19-22 A geofagia estava presente na maioria das crianças abaixo de cinco anos. Alguns estudos relatam a associação entre pica e toxocaríase.5,17,23 Este hábito, presente em crianças entre 18 meses e três anos de idade, que brincam mais no chão e levam muitos objetos à boca, contribui para aumentar o risco de ingerir ovos de T. canis, se o solo estiver contaminado. A onicofagia ocorreu em 36,3% dos casos acima de quatro anos de idade, hábito mais comum nessa faixa etária. Outros autores mostraram onicofagia como fator de risco para toxocaríase.2,18 As crianças foram encaminhadas ao ambulatório de infectologia devido à eosinofilia e a maioria das crianças estudadas apresentavam eosinofilia explicada pela migração de eosinófilos da medula óssea para tecidos inflamados através da circulação periférica durante a fase aguda da doença. Alguns autores mostraram a associação entre alterações à USA e eosinofilia periférica na toxocaríase.24 Há casos relatados de toxocaríase com eosinofilia,6,13,24,25 entretanto, a ausência de eosinofilia não afasta a toxocaríase.26 No entanto, o número absoluto de eosinófilos poderia ser utili-


Comprometimento hepático clínico e ultrassonográfico em crianças com toxocaríase

zado para acompanhamento da evolução da doença. Já a leucocitose, nessas crianças, utilizando a idade para valores de referência da normalidade, ocorreu em 16,2% delas. Há várias descrições na literatura de leucocitose em pacientes com toxocaríase.3,6,13, 27 Todavia, não foram encontrados estudos mostrando associação de leucocitose com toxocaríase. A IgE total sérica elevada e hiperIgE estavam presentes na maioria das crianças,7 pois é possível que a infecção por Toxocara induza, inicialmente, o aumento nos níveis de IgE na maioria dos infectados. HiperIgE em soropositivos para Toxocara foi detectada em vários trabalhos.28 Outros autores mostraram associação de IgE elevada com sorologia positiva para T.canis. Imunoglobulina G total encontrou-se elevada na maioria das crianças e os níveis séricos de imunoglobulina M estavam aumentados em menos de 30% dos casos. Figueiredo et al. não demonstraram relação entre imunoglobulinas A, G total e M com a sorologia positiva para T. canis.7 A uveíte não ocorreu nas crianças deste estudo. Na literatura, as lesões oculares mostraram prevalência entre 0 e 10%.5 Essa complicação é mais frequente em crianças acima de sete anos e pode ocorre mais tardiamente, até dois anos após infecção, devido à baixa carga larvária. O diagnóstico definitivo da toxocaríase é a partir do encontro da larva, porém nem sempre isso acontece,6,14 podendo os métodos imunológicos ser relevantes no diagnóstico.29 Além disso, a USA pode ajudar muito no diagnóstico da toxocaríase. O número reduzido de pacientes dificultou a avaliação estatística deste estudo. A descrição detalhada dos achados dos pacientes mostra a importância da realização da USA.

CONCLUSÃO A observação de casos de Larva migrans visceral acompanhados de hepatomegalia clínica e lesões hepáticas visibilizadas à USA mostrou a importância desse método de imagem no seguimento de crianças com sorologia positiva para T.canis.

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ARTIGO ORIGINAL

Alterações antropométricas, bioquímicas e de variáveis da síndrome metabólica entre crianças e adolescentes obesos com e sem doença hepática gordurosa não alcoólica Anthropometric, biochemical, and variables alterations in the metabolic syndrome among obese children and adolescents with and without non-alcoholic fatty liver disease Fabio da Veiga Ued1, Marina Coelho de Souza2, Angela Regina Leonesi Maluf3, Virgínia Resende Silva Weffort 4

DOI: 10.5935/2238-3182.20150118

RESUMO Introdução: a doença hepática gordurosa não alcoólica (DHGNA) trata-se de uma comorbidade associada à obesidade frequente na faixa etária pediátrica, cujo impacto sobre o estado nutricional tem sido investigado. Objetivo: verificar se crianças e adolescentes obesos com DHGNA apresentam mais alterações antropométricas, bioquímicas e de exames que compõem o diagnóstico de síndrome metabólica (SM), em relação a obesos sem DHGNA. Métodos: estudo transversal desenvolvido em ambulatório de Pediatria. Os grupos com e sem DHGNA foram comparados quanto a variáveis antropométricas, bioquímicas e componentes da SM. Também foi verificado se SM ou alterações nos exames que são critério diagnóstico para SM estariam associados à DHGNA. Resultados: 59 indivíduos obesos foram avaliados, sendo 25,4% com DHGNA. Os grupos apresentaram entre si alterações significativas de peso, IMC, colesterol total, vitamina D, ácido fólico, ácido úrico, proteína C reativa, GGT, bilirrubina total e fosfatase alcalina (p<0,05). Na análise isolada dos exames que compõem o diagnóstico de SM, os valores elevados de circunferência abdominal e glicemia de jejum foram significativos entre os grupos (p<0,05). Entre os indivíduos com diagnóstico de SM, 44% possuíam DHGNA. Alterações de circunferência abdominal, triglicérides, glicemia de jejum, HDL colesterol e hipertensão arterial não estiveram associadas à DHGNA. Conclusão: crianças e adolescentes obesos com DHGNA têm mais alterações antropométricas, bioquímicas e de exames que compõem o diagnóstico de SM, em relação a obesos sem a doença. Porém, a SM ou alteração isolada de qualquer exame não demonstrou associação significativa com o risco de desenvolver DHGNA.

1 Nuticionista. Mestre. Professora do Curso de Nutrição da Universidade Federal do Triângulo Mineiro – UFTM. Uberaba, MG – Brasil. 2 Acadêmica do Curso de Nutrição da UFTM. Uberaba, MG – Brasil. 3 Médica. Mestre. Médica Pediatra do Hospital das Clínicas da UFTM. Uberaba, MG – Brasil. 4 Médica. Doutora. Professora do Departamento Materno-Infantil do Curso de Medicina da UFTM. Uberaba, MG – Brasil.

Palavras-chave: Obesidade; Fígado Gorduroso; Criança; Doenças Metabólicas. ABSTRACT Introduction: the non-alcoholic fatty liver disease (DHGNA) is a comorbidity associated with common obesity in the pediatric age group, whose impact on the nutritional status has been investigated. Objective: to verify that obese children and adolescents with DHGNA have more anthropometric, biochemical, and related to tests alterations that determine the diagnosis of metabolic syndrome (SM) compared to those obese without DHGNA. Methods: this was a cross-sectional study conducted in the pediatric outpatient service. The groups with and without DHGNA were compared regarding anthropometric, biochemical, and metabolic syndrome components of SM. SM or test alterations that are diagnostic criteria for SM were evaluated for association with DHGNA. Results: 59 obese subjects were evaluated; 25.4% presented DHGNA. The groups presented significant differences in alterations in weight, BMI, total cholesterol, vitamin D, folic acid, uric acid, C-reactive protein, GGT, total bilirubin, and alkaline phosphatase (p <0.05). The high

Recebido em: 28/07/2015 Aprovado em: 16/10/2015 Instituição: Universidade Federal do Triângulo Mineiro – UFTM Uberaba, MG– Brasil Autor correspondente: Fabio da Veiga Ued E-mail: fabio_uftm@hotmail.com

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values of waist circumference and fasting glucose were significant between groups (p <0.05) in the isolated analysis of tests that make up the diagnosis of SM. Among individuals diagnosed with SM, 44% presented DHGNA. Alterations in abdominal circumference, triglycerides, fasting glucose, HDL cholesterol, and high blood pressure were not associated with DHGNA. Conclusion: obese children and adolescents with DHGNA presented more anthropometric, biochemical, and tests that make the diagnosis of SM alterations compared to those obese without the disease. However, SM or the isolated alteration of any examination showed no significant association with the risk of developing DHGNA Key words: Obesity; Fatty Liver; Child; Metabolic Diseases.

INTRODUÇÃO A obesidade tem como consequência o surgimento de diversas comorbidades associadas, tais como alterações ortopédicas, dermatológicas, alterações no metabolismo glicídico, hipertensão arterial e dislipidemias, além de ser considerada o principal fator de predisposição para o desenvolvimento da doença hepática gordurosa não alcoólica (DHGNA) em Pediatria1. Além disso, ressalta-se que quando o excesso de tecido adiposo visceral encontra-se associado a dislipidemias, alterações dos níveis glicídicos e hipertensão arterial, tem-se caracterizado o quadro de síndrome metabólica (SM).1,2 Em se tratando do acúmulo de tecido adiposo visceral, é possível evidenciar que crianças e adolescentes obesos com elevados índices de gordura intra-abdominal também estão mais propensos a desenvolverem esteatose hepática e DHGNA.3 Embora a história de evolução da DHGNA ainda não esteja bem definida, sabe-se que a mesma é caracterizada pelo acúmulo e infiltrado de lipídios nos hepatócitos, cursando com alterações do parênquima hepático.4 A doença pode variar desde esteatose simples até uma desordem de progressão lenta e letal, capaz de evoluir para esteato-hepatite, fibrose e, em quadros mais avançados, cirrose, nos quais a criança pode ser submetida ao procedimento de transplante hepático.5,6 Devido a este fato, há a preocupação constante em compreender o impacto da DHGNA sobre alterações clínicas e laboratoriais e sobre se há relação com a SM em crianças obesas. A DHGNA não é um componente da SM, mas estudos demonstram que a doença está fortemente associada à obesidade, resistência à insulina, hipertensão, dislipidemia e, por isso, talvez possa ser considerada uma manifestação hepática da SM.7-9 Nota-se que a DHGNA e a SM muitas vezes são

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encontradas em um mesmo indivíduo, sendo a resistência à insulina algo comum entre ambos.10 Ressalta-se que a DHGNA e a SM são fatores preditivos para doenças cardiovasculares na infância e adolescência, aliados à baixa expectativa de vida futura. Tal fato demonstra a importância do rastreamento da obesidade na faixa pediátrica, a fim de que os serviços de saúde estabeleçam intervenções eficazes para reduzir os riscos inerentes às comorbidades associadas, como a DHGNA, e prevenir os riscos decorrentes da SM.11 Ainda é controverso se crianças e adolescentes obesos com DHGNA apresentam alterações do estado nutricional distintas, mas convém destacar que crianças obesas sem DHGNA e com elevados níveis de resistência à insulina também estão predispostas ao desenvolvimento de SM e doenças cardiovasculares, merecendo a atenção dos profissionais de saúde.12 Diante do exposto, o presente estudo tem por objetivo verificar se os indivíduos obesos com DHGNA exibem mais alterações dos exames antropométricos, bioquímicos e de exames específicos que compõem o diagnóstico de SM, em relação a obesos sem DHGNA, na faixa etária pediátrica; bem como investigar se a SM ou valores alterados dos exames estão relacionados a alto risco de ocorrência de DHGNA.

MÉTODO Trata-se de estudo transversal observacional analítico, com abordagem quantitativa. O estudo foi desenvolvido no Ambulatório Central de Pediatria da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), com os pacientes da especialidade de Distúrbios Nutricionais Pediátricos. O presente estudo é uma continuidade do projeto de dissertação de mestrado intitulado “Hábitos alimentares e níveis plasmáticos de vitaminas antioxidantes em crianças e adolescentes obesos com e sem doença hepática gordurosa não alcoólica”. O referido projeto de pesquisa está cadastrado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFTM, sob o protocolo nº 2584.

População do estudo A população foi composta por todas as crianças e adolescentes obesos, com idades entre sete e 14 anos, atendidos em primeira consulta ambulatorial,


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sem história de alcoolismo e hepatites virais, cujos responsáveis legais aceitaram participar da pesquisa, no período de abril de 2014 a setembro de 2014. Trata-se de amostra por conveniência que buscou abranger o maior número de pacientes no referido período de tempo. O diagnóstico de obesidade foi confirmado segundo as curvas de peso por idade ou IMC por idade da Organização Mundial de Saúde (OMS), adotando-se como ponto de corte o escore z > +3 para crianças e o escore z > +2 para adolescentes, respeitando-se a recomendação da OMS e da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).1 Foram excluídos os indivíduos que possuíam o diagnóstico de obesidade e/ou DHGNA advindos de causas secundárias, ou seja, que não derivavam de causas nutricionais, seja por utilização de fármacos ou por história de doenças endócrinas ou genéticas.

Coleta de dados Para a coleta das informações, os participantes da pesquisa foram avaliados por um pesquisador previamente treinado. Todos os responsáveis legais dos participantes incluídos no estudo, após serem devidamente esclarecidos sobre a pesquisa, foram convidados a participar mediante a assinatura no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Para a realização do exame de ultrassonografia (US) abdominal, o mesmo foi solicitado rotineiramente na primeira consulta a todos os indivíduos e realizado pelo serviço de Radiologia do Hospital de Clínicas da UFTM. Utilizou-se aparelho ACCUVIX V10, com sonda convexa multifrequencial (3,0 a 5,0 mhz). Os exames foram realizados por dois médicos-residentes e conferidos por um médico staff. A avaliação consistiu na análise de cortes ultrassonográficos transversos, longitudinais e oblíquos do fígado. O preparo do exame consistiu em jejum de seis horas. A DHGNA no laudo foi descrita como aumento da ecogenicidade do parênquima hepático, sendo classificada em graus I, II ou III. Esta classificação utiliza como parâmetros a ecogenicidade hepática em comparação ao córtex renal, a intensidade da ecopenetração no parênquima hepático e a visibilidade do diafragma e da ecogenicidade das estruturas vasculares do fígado.13 Esse método de ultrassom não invasivo foi adotado devido à melhor sensibilidade (89%)

e especificidade (93%) para detecção de esteatose hepática, quando comparado com a biópsia hepática, que é o padrão-ouro13. Contudo, no presente estudo, a classificação foi dicotomizada em ausência ou presença de DHGNA. Para os dados antropométricos, todas as medidas foram aferidas individualmente na primeira consulta. As medidas analisadas foram: peso corporal (kg), estatura (m), circunferência abdominal (cm) e índice de massa corporal (IMC), segundo metodologia recomendada pela SBP.14 Para a coleta dos dados bioquímicos, as informações foram obtidas por meio de consulta ao prontuário do paciente, anotando-se os resultados dos exames de rotina solicitados em primeira consulta no ambulatório. Os exames avaliados foram o perfil lipídico (colesterol total, LDL-c, HDL-c e triglicérides), hemoglobina, ferro sérico, ferritina, vitamina B12, ácido fólico, 25-hidroxivitamina-D (vitamina D), TSH, T4, glicemia de jejum, ácido úrico, proteína C reativa (PCR), aspartato aminotransferase (AST), alanina aminotransferase (ALT), gama glutamil-transferase (GGT), bilirrubina total e fosfatase alcalina. Os referidos exames foram realizados pelo Laboratório Central do Hospital de Clínicas da UFTM, com os indivíduos em jejum de 12 horas. Além do resultado dos exames bioquímicos, também foi aferida a pressão arterial (PA) da criança ou adolescente, por profissionais treinados usando esfigmomanômetro. A PA foi medida no braço não dominante com o indivíduo sentado e em repouso de, pelo menos, cinco minutos. De cada indivíduo foram obtidas duas medidas feitas com intervalo mínimo de 10 minutos entre ambas. A média de duas medidas foi utilizada na determinação da PA basal. Apesar de não existir ainda consenso sobre os critérios e os pontos de corte de identificação da SM em crianças e adolescentes, o critério diagnóstico para determinar a síndrome no atual estudo foi o mesmo adotado pela SBP1, segundo consenso proposto pela Federação Internacional de Diabetes (IDF),15 que define SM em adolescentes entre 10 e 16 anos como aumento da circunferência abdominal (> p90, segundo sexo e idade) associado a pelo menos duas alterações das quatro listadas a seguir: hipertrigliceridemia (> 150 mg/dL), baixo HDL-colesterol (< 40 mg/dL), hipertensão arterial (sistólica > 130 mmHg e diastólica > 85 mmHg) e intolerância à glicose (glicemia de jejum > 100 mg/dL ou diabetes mellitus tipo 2). Na atual pesquisa, esse critério diagnóstico foi estendido para as crianças de sete a nove anos. Rev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 529-536

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Análise estatística Após o exame de US abdominal, as crianças e adolescentes obesos foram distribuídos em dois grupos, segundo o diagnóstico da doença, sendo um grupo composto de obesos com esteatose (grupo com DHGNA) e outro grupo por obesos sem a doença (grupo sem DHGNA). Os grupos foram comparados entre si quanto às variáveis antropométricas, bioquímicas e componentes da síndrome metabólica. A análise estatística foi realizada empregando-se o aplicativo Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 16.0. Para a análise univariada de variáveis categóricas, foi utilizada a distribuição de frequência absoluta. Para a análise univariada de variáveis numéricas contínuas, que apresentaram distribuição normal, os resultados foram expressos segundo a média ± desvio-padrão e os valores comparados pelo teste “t de Student”. Para a análise bivariada de variáveis categóricas, a doença foi considerada o desfecho. Sendo assim, foi calculada a medida de associação em tabelas de contingência utilizando-se o teste de qui-quadrado. Além disso, foi considerado nível de significância de 95% (p<0,05), assinalando-se com asteriscos os valores significantes. Os resultados estão apresentados em tabelas.

RESULTADOS Participaram da pesquisa 59 indivíduos obesos, sendo 23 crianças e 36 adolescentes. O exame de US abdominal detectou a DHGNA em 25,4% (n=15) dos indivíduos avaliados. A partir deste resultado, os participantes da pesquisa (n=59) foram distribuídos em dois grupos: grupo com DHGNA (n=15) e grupo sem DHGNA (n=44). Entre os indivíduos com DHGNA, 66,6% (n=10) correspondiam ao sexo masculino e o grupo apresentou média de idade de 10,53 ± 2,1 anos. A Tabela 1 demonstra as características da população estudada e a comparação de parâmetros antropométricos entre os grupos da pesquisa. O grupo com DHGNA apresentou a média dos parâmetros antropométricos acima dos valores do grupo sem a doença. As diferenças entre as médias dos valores de peso e IMC foram estatisticamente significantes. Quanto à análise dos parâmetros bioquímicos, o grupo com DHGNA também apresentou

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mais alterações nas médias dos valores de perfil lipídico, exames de lesão hepatocítica e lesão de canalículo biliar, vitaminas séricas e proteína de fase aguda, em relação ao grupo sem a doença. As alterações com significância estatística foram caracterizadas por níveis elevados de colesterol total (CT), GGT, bilirrubina total, fosfatase alcalina, ácido úrico e PCR, além de menores concentrações de ácido fólico e vitamina D. Nota-se também que a média dos níveis de colesterol total esteve acima da recomendação da SBP (> 150 mg/dL) para ambos os grupos. Em relação aos valores de PCR e bilirrubina total, apesar da diferença estatística entre os grupos, não houve indivíduos com alterações acima dos valores de referência. Tabela 1 - Características da população e valores de medidas antropométricas entre grupos de obesos com e sem DHGNA, na faixa etária pediátrica Grupo com DHGNA (n = 15)

Grupo sem DHGNA (n = 44)

Masculino

10

23

Feminino

5

21

Faixa etária (anos)

10,53 ± 2,1

9,95 ± 1,6

0,267

Peso (kg)

63,72 ± 22,1

53,52 ± 11,7

0,027*

Estatura (cm)

1,46 ± 0,14

1,43 ± 0,09

0,437

IMC (kg/m²)

29,26 ± 5,5

25,67 ± 3,8

0,007*

Variáveis (média ± DP)

p valor

Sexo (n) NA

NA: não se aplica. *p < 0,05.

Para os exames de hemograma, função tireoidiana e vitamina B12, nenhum indivíduo apresentou níveis alterados. Destaca-se que os níveis de AST e ALT encontravam-se dentro dos valores de referência para todos os indivíduos e que os níveis de LDL-c encontravam-se elevados na maior parte da população, porém sem diferença estatística entre as médias. A Tabela 2 demonstra o comparativo dos valores dos exames bioquímicos entre os grupos da pesquisa. Na análise isolada dos exames que compõem o diagnóstico de SM, observou-se que o grupo com DHGNA apresentou elevadas médias para todos os parâmetros avaliados, exceto HDL-c, cujos níveis foram menores. Os valores elevados de circunferência abdominal (CA) e glicemia de jejum foram estatisticamente significativos entre os grupos. A análise descritiva está apresentada na Tabela 3. Além disso, ressalta-se que a prevalência de SM entre indivíduos com DHGNA (n=15) foi de 26,6% (n=4).


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Tabela 2 - Valores séricos de exames bioquímicos comparados entre grupos de obesos com e sem DHGNA, na faixa etária pediátrica Variáveis (média ± DP)

Grupo com DHGNA (n = 15)

Grupo sem DHGNA (n = 44)

Colesterol total (mg/dL)

184,11 ± 30,9

166,0 ± 29,0

LDL-c (mg/dL)

114,28 ± 36,4

106,11 ± 22,4

Tabela 3 - Alterações de variáveis da síndrome metabólica comparadas entre grupos de obesos com e sem DHGNA, na faixa etária pediátrica

p valor

Variáveis (média ± DP)

Grupo com DHGNA (n = 15)

0,045*

Circunferência abdominal (cm)

89,4 ± 14,6

80,77 ± 9,7

0,307

HDL-c (mg/dL)

41,0 ± 6,6

41,9 ± 8,4

0,707

123,4 ± 47,1

100,9 ± 41,7

0,086

Grupo sem DHGNA p valor (n = 44) 0,012*

Hemoglobina (mg/dL)

13,6 ± 0,8

13,35 ± 0,8

0,331

Triglicerídeos (mg/dL)

Ferro sérico (µg/dL)

79,6 ± 17,8

81,1 ± 31,4

0,867

Glicemia de jejum (mg/dL)

97,0 ± 7,8

92,6 ± 6,9

0,046*

106,7 ± 9,7

106,3 ± 13,6

0,937

72,0 ± 9,4

69,5 ± 11,4

0,456

Ferritina (ng/mL) Ácido fólico (nmol/L) Vitamina B12 (pmol/L)

81,48 ± 40,3

76,0 ± 43,9

0,673

PAS (mm/Hg)

11,22 ± 2,2

13,86 ± 2,8

0,002*

PAD (mm/Hg)

HDL-c, lipoproteína de alta densidade-colesterol; PAS, pressão arterial sistólica; PAD, pressão arterial diastólica. *p < 0,05.

596,3 ± 2,9

583,6 ± 2,0

0,852

Vitamina D (µg/dL)

31,0 ± 8,2

35,8 ± 7,5

0,041*

TSH (mU/L)

3,33 ± 1,1

2,79 ± 1,2

0,129

T4 (ng/dL)

1,26 ± 0,1

1,24 ± 0,2

0,730

Ácido úrico (mg/dL)

4,24 ± 0,9

3,41 ± 1,0

0,007*

0,35 ± 0,2

0,15 ± 0,2

0,003*

AST (U/L)

25,54 ± 6,6

22,65 ± 4,6

0,069

ALT (U/L)

21,49 ± 7,5

18,13 ± 6,7

0,110

GGT (U/L)

30,5 ± 13,2

19,8 ± 8,6

0,001*

PCR (mg/dL)

Bilirrubina total (mg/dL)

0,71 ± 0,4

0,48 ± 0,4

0,045*

Fosfatase alcalina (U/L)

179,1 ± 39,7

133,1 ± 45,6

0,001*

LDL-c, lipoproteína de baixa densidade-colesterol; TSH, hormônio estimulador da tireoide; T4, tiroxina; PCR, proteína C reativa; AST, aspartato aminotransferase; ALT, alanina aminotransferase; GGT, gama glutamil-transferase. *p < 0,05.

Apesar da relevância clínica dos resultados, evidencia-se que o fato de possuir o diagnóstico de SM ou a alteração de qualquer variável específica não tem associação significativa com o risco de desenvolver DHGNA. Tabela 4 - Associação entre SM e alterações nos exames específicos, com DHGNA, entre grupos de obesos com e sem DHGNA, na faixa etária pediátrica Variáveis n (%)

Grupo com DHGNA Grupo sem DHGNA p valor (n = 15) (n = 44)

Síndrome Metabólica Sim

4 (44,4)

5 (55,6)

Não

11 (22)

39 (78)

9 (25,7)

26 (74,3)

6 (25)

18 (75)

Reduzido

8 (28,6)

20 (71,4)

Adequado

7 (22,6)

24 (77,4)

0,155

CA

Além da análise descritiva, verificou-se também a associação entre SM e DHGNA, com o intuito de investigar se a SM ou os valores alterados das variáveis estavam associados a alto risco de ocorrência de esteatose. Para isso, foram verificados a quantidade e o percentual de indivíduos que possuíam o diagnóstico de SM e alterações nos critérios específicos, como valores elevados de circunferência abdominal (> p90), hipertrigliceridemia (> 150 mg/dL), baixo HDL-c (< 40 mg/dL), hipertensão arterial (sistólica > 130 mmHg e diastólica > 85 mmHg) e intolerância a glicose (glicemia de jejum > 100 mg/dL). Do total de pacientes, nove apresentaram o diagnóstico de SM, entre os quais quatro indivíduos (44,4%) também possuíam DHGNA. Quanto aos indivíduos com circunferência abdominal acima do p90 (n=35), hipertrigliceridemia (n=10), baixo HDL-c (n=28) e intolerância à glicose (n=9), o percentual entre estes que possuíam DHGNA foi de 25,7%, 28,6%, 50% e 44,4%, respectivamente. Os níveis de pressão arterial apresentaram-se dentro dos parâmetros de normalidade em todas as crianças e adolescentes. Os dados estão apresentados na Tabela 4.

Elevado Adequado

0,951

HDL-c 0,598

Triglicerídeos Elevado

5 (50)

5 (50)

10 (20,4)

39 (79,6)

Elevado

4 (44,4)

5 (55,6)

Adequado

11 (22)

39 (78)

Adequado

0,155

Glicemia de jejum 0,155

Pressão arterial Elevado Adequado

0 (0)

0 (0)

15 (25,4)

44 (74,6)

NA

NA: não se aplica. CA, circunferência abdominal; HDL-c, lipoproteína de alta densidade-colesterol. p = teste do qui-quadrado.

DISCUSSÃO Indivíduos obesos na faixa etária pediátrica são os principais alvos de pesquisas e investigações para Rev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 529-536

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Alterações antropométricas, bioquímicas e de variáveis da síndrome metabólica entre crianças e adolescentes obesos com …

o estudo da DHGNA. O diagnóstico de DHGNA por USA, na atual pesquisa, detectou prevalência de 25,4% da doença entre os participantes. Esse valor encontra-se dentro da margem de prevalência da doença em crianças obesas, variando de 3,0 a 60,3%, relatado na revisão sistemática conduzida por Padilha et al.16. Também no estudo de Lira et al.17, 27,7% (n=23) dos adolescentes com sobrepeso/obesidade apresentaram algum grau de esteatose. Além disso, registrou-se que a DHGNA foi prevalente no sexo masculino (66,6%), seguindo a razão de 2:1 em relação ao sexo feminino. Outras pesquisas encontraram essa mesma razão a favor do sexo masculino.18,19 Quanto às diferenças significativas dos valores de IMC entre os grupos, estes vão ao encontro a outros estudos19-21, evidenciando o maior ganho de peso e alto grau de obesidade entre pacientes com DHGNA. Analisando os achados de Atabek et al.22 e El-Koofy et al.23, nos quais foram estudadas alterações bioquímicas entre crianças com e sem DHGNA, em ambos se verificaram significativos aumentos do CT nas crianças com a doença, assim como no presente estudo. Para o LDL-c, pesquisas23,24 também observaram valores mais elevados no grupo com DHGNA, porém sem diferença estatística significativa. Nota-se também que os valores de ácido fólico e vitamina D apresentaram diferenças significativas entre os grupos. Supõe-se que tal fato seja decorrente da má alimentação e do mais sedentarismo aliado à baixa exposição solar do grupo com DHGNA. Contudo, não foram encontradas análises similares na literatura. Em relação aos valores de ácido úrico, os resultados não se assemelham ao estudo de Cardoso et al.25, que evidenciaram elevados níveis de ácido úrico associados à síndrome metabólica, porém sem relação com a DHGNA. As diferenças significativas de PCR vão ao encontro aos resultados de Mager et al.24 e Kitsios et al.26. Este último comparou os níveis de PCR entre crianças obesas com e sem SM, com e sem DHGNA e pré-diabéticas e não diabéticas. Houve diferença estatística apenas na comparação dos níveis séricos de PCR entre crianças com e sem DHGNA, na qual as crianças obesas com esteatose apresentaram valores mais elevados para o marcador inflamatório. Quanto às dosagens dos marcadores hepáticos, nenhum indivíduo apresentou valores acima dos padrões de referência, talvez devido ao possível fato de a doença encontrar-se em estágio inicial. Em outro estudo17, a comparação dos valores de bilirrubina

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direta e fosfatase alcalina não apresentou diferença estatística, diferindo dos atuais achados, enquanto os valores de GGT foram similares. Convém ressaltar que as dosagens de AST e ALT não apresentaram diferenças estatísticas entre os grupos, enquanto a literatura evidencia o aumento significativo das transaminases em crianças e adolescentes obesos com DHGNA.19-24 Em relação às variáveis para diagnóstico da SM, observam-se alterações clínicas evidentes entre os grupos. Diversos estudos também salientam alterações significativas de CA em crianças com esteatose hepática3,19,21,27, ressaltando a relação entre excesso de gordura visceral e DHGNA. Tais alterações também foram detectadas quanto aos níveis de glicemia de jejum entre os grupos no estudo de Lira et al.17. Em contrapartida, diversas pesquisas19,20,22,23 não comprovaram as mesmas alterações glicêmicas em jejum, mas apenas nos níveis de resistência à insulina. Para os demais parâmetros, observa-se mais divergência de resultados na literatura. Algumas pesquisas3,21,22 também não registraram diferenças significativas quanto ao HDL e triglicérides (TG) entre grupos com e sem DHGNA. Outros estudos, por sua vez, detectaram níveis significativamente reduzidos de HDL17,23 e níveis elevados de TG17,19,23 nos grupos com DHGNA. Em relação aos níveis pressóricos, alguns estudos3,22,23 não referiram alterações significativas, em contrapartida a demais pesquisas.17,21,28 Tais achados necessitam de comprovação por novos estudos populacionais. Quanto à síndrome metabólica na população estudada, apurou-se que 44% dos indivíduos diagnosticados também possuíam DHGNA. Sendo assim, os atuais resultados ainda não permitem afirmar que a SM seja fator de risco para a DHGNA. Em relação aos demais componentes da SM, apesar das maiores alterações em indivíduos com a doença, os mesmos também não podem ser classificadas como fatores de predisposição para o desenvolvimento de DHGNA no atual estudo. Entretanto, analisando-se a frequência de SM apenas entre indivíduos com DHGNA (n=15), a prevalência encontrada foi de 26,6% (n=4). Outros autores encontraram valores acima, com prevalência de SM de 55%29, 60,4%3, 78,6%28 e 80%23 em crianças e adolescentes obesos com DHGNA. O estudo de Boyraz et al.29, analisando crianças obesas com DHGNA e SM, também reportou, neste grupo, 75% com CA elevada, 5% com glicemia de jejum alterada, 75% com baixo HDL, 50% com hipertrigliceridemia e 36% com níveis pressóricos elevados.


Alterações antropométricas, bioquímicas e de variáveis da síndrome metabólica entre crianças e adolescentes obesos com …

Os atuais achados evidenciam que a DHGNA acomete elevado percentual de pacientes, além de cursar com mais alterações nos exames antropométricos e bioquímicos. A SM também apresentou prevalência moderada. Entretanto, a maioria desses indivíduos com DHGNA manifestam sintomas inespecíficos e pouco valorizados, que não seriam diagnosticados se não fosse realizado o exame ultrassonográfico. Tal fato deve proporcionar aos profissionais de saúde uma reflexão sobre a importância dos métodos de triagem das comorbidades associadas à obesidade, prevenção da SM e promoção da saúde. Além disso, a alimentação também deve receber igual atenção, devido à possibilidade da baixa ingestão de antioxidantes e possível relação com a DHGNA em crianças obesas.30 A principal limitação do presente estudo foi o curto período de coleta de dados e a quantidade reduzida de pacientes em primeira consulta ambulatorial, o que fez com que o número amostral permanecesse reduzido, tornando os resultados carentes de estudos comprobatórios de mais representatividade amostral. Outra limitação foi a ausência de exames para se detectar as concentrações de insulina plasmática de jejum e resistência à insulina, com base no modelo de avaliação da homeostase (HOMA-IR), indispensáveis quando se aborda a síndrome metabólica.

CONCLUSÃO Em conclusão, constatou-se que crianças e adolescentes obesos com DHGNA têm mais alterações dos exames que compõem o diagnóstico de SM, em relação a obesos sem a doença. Crianças com DHGNA apresentaram aumento significativo de peso, IMC, circunferência abdominal, colesterol total, glicemia de jejum, ácido úrico, PCR, GGT, bilirrubina total e fosfatase alcalina, além de redução de ácido fólico e vitamina D. Contudo, no presente estudo, ainda não foi possível afirmar que o fato de possuir o diagnóstico de SM ou a alteração isolada de qualquer variável específica tenha associação significativa com o risco de desenvolver DHGNA.

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ARTIGO ORIGINAL

Hiperparatireoidismo como causa de demência reversível em idosos Hyperparathyroidism as the cause of reversible dementia in the elderly Henrique Cunha Vieira1, Antonio José Daniel Xavier2

DOI: 10.5935/2238-3182.20150119

RESUMO Introdução: demência é uma síndrome caracterizada pelo declínio progressivo e global das funções cognitivas. Existem diversas condições reversíveis que podem causá-la ou mimetizá-la. Objetivos: investigar o hiperparatireoidismo (HPT) como causa de demência e seu potencial de reversibilidade. Métodos: avaliação clínico-laboratorial de 60 idosos com suspeita de demência encaminhados ao Ambulatório Affonso Silviano Brandão da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais e Hospital Universitário São José – Belo Horizonte. Os níveis séricos do cálcio total, 25 hidroxivitamina D e paratormônio (PTH), no diagnóstico, foram, respectivamente, de 12,4 e 13,2 mg/dL; 14 e 10 ng/mL; e 227 e 302 pg/mL. Resultados: a idade média foi de 73 ± 8 anos; 70% femininos; sendo duas pacientes com níveis elevados de cálcio e PTH e baixos de vitamina D. Apresentavam também litíase renal, alterações da função cognitiva, sintomas depressivos, osteoporose com fraturas e nódulo em região cervical visível ao ultrassom e hipercaptantes à Sestamibi-99mTc por cintilografia. A causa provável do HPT, epidemiologicamente, era um adenoma. Confirmado o diagnóstico, optou-se pelo tratamento cirúrgico pela técnica minimamente invasiva, com monitorização do PTH intraoperatório (PTH–IO). Foram submetidos pré e pós-operatório (seis meses), ao MEEM e CAMDEX-R. Obtiveram melhora dos escores, no primeiro, de 11 em ambas as pacientes para 16 na paciente A e 15 na paciente B; e no segundo, inicialmente de 65 na paciente A e de 63 na paciente B para 82 em ambas as pacientes. Conclusões: o HPT deve ser considerado na avaliação dos quadros de demência.

1 Médico. Cirurgião Geral no Instituto Mario Penna. Belo Horizonte, MG – Brasil. 2 Médico. Doutor em Medicina. Professor da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/MG e Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG – Brasil.

Palavras-chave: Demência; Hiperparatireoidismo; Hiperparatireoidismo Primário. ABSTRACT Introduction: dementia is a syndrome characterized by a progressive decline in cognitive and global functions. There are several reversible conditions that may cause it or mimic it. Objectives: to investigate the hyperparathyroidism (HPT) as the cause of dementia and their potential reversibility. Methods: clinical and laboratory evaluation of 60 elderly people with suspected dementia referred to the Affonso Silviano Brandão Outpatient Ambulatory at the Medical Sciences College of Minas Gerais and São José University Hospital - Belo Horizonte. The total serum calcium, 25-hydroxyvitamin D, and parathyroid hormone (PTH) in the diagnosis were 12.4, and 13.2 mg/dL; 14 and 10 ng/mL; and 227 and 302 pg/ml, respectively. Results: The mean age was 73 ± 8 years; 70% female; including two patients with high levels of calcium and PTH and low levels of vitamin D. They also presented low kidney stones, changes in cognitive function, depressive symptoms, osteoporosis with fractures, and visible lump in cervical region ultrasound, and hypercaptant to Sestamibi-99mTc by scintigraphy. The probable cause of HPT, epidemiologically, was an adenoma. Once the diagnosis was confirmed, we opted for surgical treatment through a minimally invasive technique, with intraoperative PTH monitoring (PTH-IO). These patients underwent pre and

Recebido em: 22/10/2012 Aprovado em: 15/12/2015 Instituição: Ambulatório Affonso Silviano Brandão da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais e Hospital Universitário São José Belo Horizonte, MG – Brasil Autor correspondente: Antônio José Daniel Xavier E-mail: ajdxavier@gmail.com

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postoperative (six months) to the MMSE and CAMDEX-R. They showed improved scores from 11 points in the first in both patients to 16 in patient A and 15 in patient B; and in the second, from 65 in patient A and 63 in patient B to 82 in both patients. Conclusions: HPT should be considered in the evaluation of dementia cases. Key words: Dementia; Hyperparathyroidism; Hyperparathyroidism, Primary.

INTRODUÇÃO A demência é uma síndrome caracterizada pelo declínio progressivo e global das funções cognitivas, na ausência de comprometimento agudo do estado de consciência, e que seja suficientemente importante para interferir nas atividades sociais e ocupacionais do indivíduo. Seu diagnóstico exige a constatação de deterioração ou declínio cognitivo em relação à condição prévia do indivíduo.1 A prevalência de demência duplica a cada cinco anos após os 60 anos, resultando em aumento exponencial com a idade. Em estudo populacional brasileiro recente, realizado com idosos que vivem na comunidade, a prevalência de demência foi de 1,6 e 38,9% entre aqueles com idade de 65 a 69 e superior a 84 anos, respectivamente. Inúmeras são as causas da demência, cujo diagnóstico específico depende de conhecimento das diferentes manifestações clínicas e de sequência específica e obrigatória de exames complementares. Algumas entidades são as mais comuns: doença de Alzheimer (DA), demência vascular (DV), demência com corpos de Lewy (DCL) e demência frontotemporal (DFT).2-14 Existem condições reversíveis que podem causar ou mimetizar a demência, como: demências secundárias, intoxicações exógenas e alterações hidroeletrolíticas e doenças psiquiátricas como depressão e esquizofrenia. As formas reversíveis podem representar 19% do total de casos de demência em serviços especializados universitários. Em geral, são homens na idade produtiva, com idade média de 55 anos. As etiologias mais frequentes são: demência por álcool, hipotireoidismo, neurossífilis, meningoencefalite, hidrocefalia de pressão compensada, síndrome de imunodeficiência adquirida (SIDA) e demência pós-anóxia.3 A hipercalcemia associada às neoplasias malignas e hiperparatireoidismo primário (HPTP) pode se associar a demência e outros distúrbios neuropsiquiátricos como psicoses, delirium e depressão. A prevalência do HPTP varia com o sexo e idade e afeta 1% da população em geral, cerca de 1:500 mulheres

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e 1:200 homens. Mais de 1,5% da população dos Estados Unidos da América acima de 65 anos tem HPTP e, em mulheres pós-menopausa, a prevalência chega a 3,4%. Poucos estudos avaliaram a função cognitiva no HPTP e não há relato de algum que tenha avaliado a função em idosos acima de 80 anos de idade. A apresentação clássica de HPTP cursa com cálculos renais, osteopenia/osteoporose, queixas gastrintestinais ou, mais comumente, de forma assintomática. É descrita sintomatologia neuropsiquiátrica desde 1940,15 como letargia, depressão, neurastenia, paranoia, alucinações, desorientação, confusão, falta de memória; e sintomatologia vaga, como: fadiga, fraqueza, dor articular, alterações do sono. Pacientes com hipercalcemia moderada podem cursar apenas com sintomas neuropsiquiátricos ou com alterações na qualidade de vida, com menos interação social.16

MATERIAL E MÉTODO Este estudo foi realizado com 60 idosos encaminhados, para avaliação de demência, ao Hospital Universitário São José no período de junho de 2007 a junho de 2011. Todos os pacientes submeteram-se a avaliação neurogeriátrica especializada, testes neuropsicométricos, exames laboratoriais e de imagem (ressonância magnética de encéfalo). O diagnóstico de demência foi baseado no Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – Fourth Edition (DSM–IV). O diagnóstico da doença de Alzheimer (possível ou provável) foi baseado nos critérios do Neurological and Communicative Disorders and Stroke - Alzheimer Disease and Related Disorders Association (NINCDS-ADRDA). O diagnóstico da demência vascular foi baseado nos critérios do National Institute of Neurological Diseases and Stroke – Association Internationale pour la Recherche et l’Enseignement en Neurosciences (NINDS-AIREN). O diagnóstico de demência frontal foi baseado nos critérios do Frontotemporal Lobar Degeneration Consensus. A avaliação neurocognitiva incluiu a Mental State Examination (MMSE), a word list (10-item list in a simple immediate recall paradigm – word span – WS) e o Wechsler’s immediate logical memory test (MLi). As atividades de vida diária foram avaliadas pelo Activities of Daily Living Scale (ADL) e o Instrumental Activities of Daily Living Scale (IADL). Os aspectos comportamentais foram avaliados pelo Neuropsychiatry Inventory (NPI). A classificação da


Hiperparatireoidismo como causa de demência reversível em idosos

demência dos pacientes em leve, moderada e grave foi baseada no Clinical Dementia Rating Scale (CDR). As pacientes com diagnóstico de HPTP realizaram avaliação pré e pós-operatória pelo CAMDEX-R. Foram realizados os exames laboratoriais recomendados pelos participantes do consenso da Academia Brasileira de Neurologia, para avaliação de pacientes com demência, constituído por: hemograma completo, concentrações séricas de ureia, creatinina, tiroxina (T4) livre, hormônio tireoestimulante (TSH), albumina, enzimas hepáticas (TGO, TGP, Gama-GT), vitamina B12, reações sorológicas para sífilis e sorologia para HIV. Todos os pacientes submeteram-se à ressonância magnética de encéfalo, com contraste paramagnético. O diagnóstico específico do HPT foi baseado em: 1. hipercalcemia sérica (> 10,4 mg/dL) e elevação do hormônio da paratireoide (PTH); 2. dosagem do PTH sérico por ensaio imunoquimioluminométrico, com valores de referência (VR) para a normalidade entre 16 e 87 pg/mL; 3. cálcio sérico (VR: 8,4-10,2 mg/dL) e urinário, bem como de fósforo sérico (VR: 2,5-4,5 mg/mL) por técnica enzimática colorimétrica automatizada; 3. cálcio iônico (VR: 4,4-5,3); 4. fosfatase alcalina (VR: 35-104 U/L) por método cinético automatizado; 5. A 25 hidroxivitamina D/25OHD sérica (VR: 12-80 nanog/mL) por radioimunoensaio (DiaSorin, Minesota, USA). As pacientes com níveis elevados de cálcio ou PTH foram submetidas à avaliação detalhada de HPT e exclusão de outras causas de hipercalcemia, por intermédio de: eletroforese de proteínas, mamografia, avaliação ginecológica, ultrassom abdominal e de vias urinárias, ultrassom cervical, cintilografia óssea, cintilografia de paratireoides; estudo radiológico da coluna lombar, do quadril e do pulmão. A cintilografia de paratireoides usou o método da dupla-fase do SESTAMIBI-99mTc.

RESULTADOS A idade média foi de 73 ± 8 anos e 70% dos pacientes eram femininos e duas apresentaram níveis elevados de cálcio e PTH e baixos de vitamina D. Essas pacientes realizaram avaliação detalhada de HPT. A frequência dos tipos de demência é mostrada na Tabela 1. Entre os pacientes com possíveis causas reversíveis/secundárias de demência, foram identificados: HPT (2), hipotireoidismo (2), alcoolismo (2), SIDA (1) e uso de drogas exógenas (1).

Tabela 1 - Frequência dos tipos de demência Tipo de demência Alzheimer

Amostra (n)

Porcentagem (%)

32

53,33

Possível Alzheimer

2

3,33

Vascular

10

16,66

Frontotemporal

1

1,66

Mista

6

10

Reversíveis/secundárias

8

13,33

Os pacientes com possível diagnóstico de HPT e hipotireoidismo (Tab. 2) eram femininos e os demais masculinos. Destacam-se casos de uso de drogas exógenas, como o crack. Tabela 2 - Sumário dos resultados das pacientes com possível diagnóstico de hiperparatireoidismo e hipotireoidismo Paciente

Idade (anos)

Cálcio (mg/dl)

PTH (pg/ mL)

25 OHD (nanog/mL)

A

78

12,4

227

14

B

75

13,2

302

10

A ressonância magnética das pacientes foi normal. Essas pacientes foram submetidas à avaliação detalhada de hipercalcemia e doenças associadas, o que evidenciou nelas: ■■ eletroforese de proteínas, avaliação ginecológica e mamografia, telerradiografia de tórax, função tireoidiana, todos normais; ■■ densitometria óssea: osteoporose nos sítios de coluna e colo de fêmur; ■■ radiografia de coluna lombar e quadril: baixa densidade mineral com redução da altura dos corpos vertebrais; ■■ ultrassom abdominal e de vias urinárias: litíase renal; ■■ cintilografia óssea de corpo inteiro: sem indícios de metástases ósseas; ■■ cintilografia de região cervical para avaliação das paratireoides, Sestamibi-99mTc: nódulos hipercaptantes, com imagens realizadas em dois tempos (15 minutos e 2 horas após a administração do radiofármaco), mostraram áreas com hipercaptação focal do radiofármaco; ■■ ultrassom cervical: foi evidenciada em uma das pacientes formação nodular única (nódulo hiperecogênico) em lobo esquerdo, medindo 3,0 x 2,5 x 2,0 cm; e na outra, formação nodular única (nódulo hiperecogênico) em lobo direito, medindo 3,0 x 3,0 x 2,5 cm. Rev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 537-542

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Hiperparatireoidismo como causa de demência reversível em idosos

Concluiu-se tratar-se de HPTP em ambas as pacientes, com alterações da função cognitiva, além da osteoporose com fraturas.

DISCUSSÃO O HPT foi identificado em duas pacientes, entre 60, avaliadas em serviço especializado na abordagem de demência. O diagnóstico diferencial deve ser feito com a hipercalcemia do câncer (o PTH geralmente é normal e o PTH-rP, elevado), hipercalcemia hipocalciúrica familiar (defeito do receptor do cálcio nas paratireoides e rins; em que o PTH é normal e geralmente há história familiar), e o uso de medicações (os tiazídicos reduzem a excreção urinária de cálcio e o lítio causa aumento no PTH sérico e no volume das paratireoides e deve também reduzir a excreção renal de cálcio). A etiologia mais comum de HPTP é o adenoma de uma das quatro glândulas, correspondendo aproximadamente a 85% dos casos. Menos frequentemente, há aumento de duas glândulas ou mesmo a hiperplasia difusa, sendo raro o carcinoma de paratireoide. Todos os pacientes com HPTP são candidatos potenciais à cirurgia e o paciente estará curado após sua identificação e sua retirada. A indicação de tratamento cirúrgico baseou-se em: 1. sintomatologia; 2. osteoporose na DMO, ou seja, T-score abaixo de -2,5 DP em um dos seguintes sítios esqueléticos: coluna lombar, colo do fêmur ou radiodistal; e/ou 3. cálcio sanguíneo 1 mg/dL acima do valor referencial.15 Confirmado o diagnóstico, optou-se pelo tratamento cirúrgico, com retirada dos adenomas. A cirurgia recomendada é denominada de convencional, compreendendo a exploração cervical bilateral, sob anestesia geral, com identificação de todas as glândulas. Essa sistemática permite índice de sucesso de 95%, dependendo da experiência da equipe cirúrgica. Entretanto, mesmo os cirurgiões mais experientes podem ter dificuldade em localizar uma glândula paratireoide, principalmente diante de operação cervical anterior. Na reoperação, o tecido cicatricial distorce os planos anatômicos, o que aumenta o risco de complicações pós-operatórias. Deve-se enfatizar que são comuns as variações de topografia das glândulas da paratireoide e também a presença das glândulas supranumerárias. No sentido de abreviar o ato cirúrgico e diminuir o risco de complicações, alguns cirurgiões realizam cirurgias mais direcionadas, explorando um dos lados

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do pescoço. O achado de uma paratireoide normal e outra aumentada determina a ressecção desta última e o término da cirurgia. Entretanto, não se pode excluir a possibilidade de outro adenoma no lado não explorado do pescoço. O desenvolvimento da técnica de avaliação cintilográfica com 99 mTc-Sestamibi (MIBI) permitiu grande avanço na localização do possível adenoma da paratireoide. A sensibilidade desse exame é superior a 90%. Esse método diagnóstico possibilitou as opções de tratamento direcionado dos adenomas de paratireoide. Ainda que a cintilografia com MIBI mostrasse eficácia em grande número de casos, a impossibilidade de excluir a hiperplasia torna questionável o emprego desse método para a opção de tratamento direcionado em uma paratireoide. O conhecimento da fisiologia do PTH, cuja meia-vida na circulação é de poucos minutos, permitiu sugerir o controle bioquímico do tratamento durante o ato cirúrgico. O desenvolvimento de ensaios rápidos, seguros e confiáveis para a determinação de PTH intacto propiciou a monitorização do sucesso cirúrgico. Baseia-se na curva de decaimento do PTH após a retirada do tecido hiperfuncionante. Essa evolução possibilitou a utilização da dosagem do PTH intraoperatório (PTH-IO). Optou-se nas duas pacientes pela técnica minimamente invasiva, com monitorização do PTH–IO. A partir da interpretação da evolução dos níveis de PTH logo após a excisão de adenoma de paratireoide, tem-se demonstrado a efetividade desse método para determinar o sucesso da operação. Considera-se que 10 minutos após a excisão de uma glândula hiperfuncionante, a observação da redução de 50% do valor basal do PTH-IO associa-se ao sucesso metabólico em mais de 98% dos casos. Essa taxa de sucesso é equivalente à obtida pela cirurgia convencional. A localização de um possível adenoma com o MIBI, associada à monitorização do PTH-IO intacto, permitiu a abordagem cirúrgica unilateral das glândulas paratireóideas, com incisões menores, associadas à anestesia local e/ou regional, com sedação e alta no mesmo dia e cirurgia minimamente invasiva. O cirurgião faz a remoção da glândula da paratireoide hiperfuncionante sem necessidade de identificar as outras paratireoides normais. As vantagens desses métodos são a brevidade da operação, menos morbidade, possibilitando a cirurgia em pacientes com complicações cardiopulmonares, pós-operatório rápido e simples e menos sequelas cicatriciais, o que viabiliza a realização de reintervenções sem aumento do risco.


Hiperparatireoidismo como causa de demência reversível em idosos

A dosagem do PTH-IO informa ao cirurgião durante o ato cirúrgico se o tecido hiperfuncionante foi retirado, principalmente nas cirurgias de revisão. Pode-se dizer que a cintilografia com 99mTc-Sestamibi indica ao cirurgião por onde iniciar sua exploração e o PTH-IO orienta quando terminar a cirurgia. Antes do procedimento, as pacientes realizaram avaliação neuropsicométrica, pelo CAMDEX-R, e após três meses da cirurgia. Pacientes com HPT apresentam escores piores na memória imediata e na lista de palavras. Ambas melhoram após a cirurgia. Sinais ou sintomas inespecíficos como fadiga, ansiedade, além de depressão ou, ainda, alterações neurológicas e cognitivas podem ocorrer na HPT. Particularmente, em relação à depressão, esse sintoma pode ocorrer em 10% dos casos. Ambas as pacientes apresentavam sintomas depressivos, com queixa de fadiga, ansiedade, alterações do sono, fraqueza e taquicardia. O Miniexame de Estado Mental (MEEM) e o Cambridge Cognitive Examination na versão revisada (CAMCOG-R) são instrumentos úteis para a avaliação cognitiva de idosos. Para o MEEM, o ponto de corte mais frequentemente utilizado foram 18/19 (sensibilidade =73,5%; especificidade =73,9%) e 24/25 (sensibilidade =75%; especificidade =69,7%), segundo a ausência ou presença de instrução escolar formal prévia (nove anos), respectivamente.15 No estudo de confiabilidade e validade da versão brasileira do CAMCOG-R, o melhor ponto de corte para a população total foi 60/61, com 88% de sensibilidade e 84% de especificidade.16 O melhor ponto de corte foi 79/80, com 92% de sensibilidade e 96% de especificidade.18 O escore do MEEM foi de 11 em ambas as pacientes e do CAMCOG-R foi de 65 para a paciente A e de 63 para a paciente B. O diagnóstico ou a associação de hiperparatireoidismo secundário foi afastado no presente estudo, pois todas as pacientes apresentavam níveis elevados de cálcio sérico e houve normalização do PTH sérico após a cirurgia de retirada da(s) paratireoide(s). Os resultados, depois de seis meses da cirurgia, foram: redução significante do PTH; anatomopatológico de ambas as pacientes evidenciou adenoma de paratireoide; houve aumento do MEEM de 11 para 16 na paciente A e de 11 para 15 na paciente B. O escore do CAMCOG-R elevou-se para 82 em ambas as pacientes. A melhora dos escores após o tratamento sugere que a HPT é causa de demência reversível.

CONCLUSÕES Os resultados obtidos neste estudo evidenciaram que o HPT deve ser considerado na avaliação da demência em idosos, pela sua prevalência na população e potencial de reversibilidade. O conhecimento precoce dessa enfermidade pode minimizar suas complicações clínicas como a osteoporose. No entanto, faz-se necessária a realização de estudos com amostras representativas.

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Hiperparatireoidismo como causa de demência reversível em idosos

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ARTIGO ORIGINAL

Uso do adesivo de fibrina como fator adjuvante na cicatrização de anastomoses intestinais em ratos The use of fibrin adhesive as an adjuvant factor in the healing of intestinal anastomoses in rats Luiz Henrique Silva Borsato1, Bruno Silva Borsato2, Cláudio de Souza3

DOI: 10.5935/2238-3182.20150120

RESUMO Introdução: a cicatrização de anastomoses intestinais é objetivo de vários estudos que visam prevenir a ocorrência de fístulas e peritonite fecal que aumentam a morbimortalidade. Objetivo: foram estudados os efeitos do adesivo de fibrina utilizado como fator adjuvante na cicatrização de anastomoses intestinais. Materiais e métodos: 20 ratos Wistar, machos adultos, com peso entre 200 e 300 g foram distribuídos em dois grupos com 10 animais cada. Os animais do grupo I (controle) foram submetidos à secção transversa do cólon a 4 cm distais ao ceco, seguida de anastomose terminoterminal com pontos separados. Nos animais do grupo II foi realizado reforço da anastomose com adesivo de fibrina. A reoperação, em todos os grupos, ocorreu 72 horas após essa intervenção, sendo ressecado o segmento intestinal que continha a anastomose. Foram realizados testes de pressão de ruptura e exames histológicos para avaliação da cicatrização. Resultados: os valores de pressão de ruptura foram significativamente maiores nos animais do grupo II em relação ao grupo-controle (p <0,05). A análise histológica de fragmentos da anastomose corados pela hematoxilina-eosina não mostrou alterações significativas entre os dois grupos. A análise histológica da densitometria de colágeno não mostrou diferenças entre os grupos. Conclusão: o uso do adesivo de fibrina usado como reforço de anastomose intestinal atuou como selante, aumentando a força de pressão de ruptura, porém não foram encontradas alterações histológicas relativas ao processo de cicatrização.

1 Médico. Doutor. Professor do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da Universidade Presidente Antônio Carlos. Juiz de Fora, MG – Brasil. 2 Acadêmico do curso de Medicina da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, MG – Brasil. 3 Médico. Doutor. Professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Belo Horizonte, MG – Brasil.

Palavras-chave: Anastomose Cirúrgica; Sistema Digestório; Cicatrização; Fibrina/uso terapêutico; Experimentação Animal. ABSTRACT Introduction: the healing of intestinal anastomoses is the objective of several studies aimed at preventing the occurrence of fistulas and fecal peritonitis that increase morbidity and mortality. Objective: the effects of fibrin adhesive used as an adjuvant factor in the healing of intestinal anastomoses were studied. Methods: 20 Wistar adult male rats, weighing between 200 and 300 g, were divided into two groups of 10 animals each. Animals in group I (control) underwent cross-section of the colon at 4 cm distal from the cecum, followed by termino-terminal anastomosis with interrupted sutures. In animals in group II, strengthening anastomosis with fibrin adhesive was conducted. A second operation in all groups occurred 72 hours after the intervention with the intestinal segment which contained the anastomosis being resected. Rupture pressure tests and histological examinations were conducted to evaluate healing. Results: The rupture pressure values were significantly higher in group II compared to the control group (p <0.05). Histological analysis of anastomotic fragments stained with hematoxylin-eosin showed no significant alterations between the two groups. The histological analysis of collagen densitometry showed no differences between groups. Conclusion: the use of fibrin adhesive used as intestinal anastomosis reinforcement acted

Recebido em: 18/11/2012 Aprovado em: 15/12/2015 Instituição: Secretaria Municipal de Saúde de Juiz de Fora Juiz de Fora, MG – Brasil Autor correspondente: Luiz Henrique Silva Borsato E-mail: luizhenriqueborsato@hotmail.com

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as a sealant, increasing the strength of rupture pressure. However, no histological alterations related to the healing process were observed. Key words: Anastomosis, Surgical; Digestive System; Wound Healing; Fibrin/therapeutic use; Animal Experimentation.

INTRODUÇÃO As complicações das anastomoses colônicas são motivo de preocupação entre os cirurgiões. Apesar dos avanços da técnica cirúrgica, antibióticos, nutrição e do melhor conhecimento do processo cicatricial, ainda são relatadas elevadas taxas de complicações.1 Constituem complicações graves vazamentos, fístula, peritonite fecal e sepse, com altas taxas de morbidade e mortalidade.1,2 É crescente o número de estudos em busca de fatores que possam otimizar o processo de cicatrização, minimizando tais complicações. Os adesivos teciduais têm sido estudados e utilizados como forma de impermeabilizar a linha de sutura, minimizando o vazamento do conteúdo colônico, diminuído assim as complicações.3 Entre os adesivos utilizados, o de fibrina tem sido considerado o mais próximo do que seria o adesivo ideal devido ao seu fácil manuseio, segurança e risco diminuído de transmissão de infecções.4 Em humanos, seu uso em anastomoses tem sido concomitante aos métodos de sutura convencionais, seja manual ou mecânica, atuando como forma de reforço.4,5 As pesquisas têm mostrado que sua atuação aumenta a força de pressão de ruptura da anastomose, atuando de forma mecânica no fortalecimento da linha de sutura.6 Este estudo objetiva estudar a influência do adesivo de fibrina na cicatrização de anastomose intestinal de ratos a partir de parâmetros físicos e histológicos.

MATERIAIS E MÉTODOS Foram utilizados 20 ratos machos, adultos, da linhagem Wistar, distribuídos aleatoriamente em dois grupos com 10 animais cada. O adesivo biológico utilizado neste estudo foi kit de Tissucol – fibrinogênio, aprotinina e trombina e um concentrado liofilizado de proteínas humanas para fins adesivos, Baxter®. Cada um dos componentes é apresentado separadamente em frascos, dando um total de quatro, isto é: concentrado proteico, aprotinina, trombina seca e cloridrato de cálcio, que

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ao se unirem em uma seringa própria para aplicação levam 10 a 20 segundos para iniciar a coagulação e dependendo da concentração de trombina, de cinco a 20 minutos para atingir o efeito adesivo máximo. O grupo I (controle) foi composto de animais nos quais não se utilizou o adesivo de fibrina como reforço da anastomose. O grupo II foi composto de animais nos quais se utilizou o adesivo de fibrina como reforço da anastomose. Após anestesiados com associação de quetamina e xilasina intraperitoneal, os animais foram submetidos à celiotomia mediana com 3 cm de extensão. Após identificação do ceco, foi realizada secção transversal completa do cólon a 4 cm distais ao mesmo. A seguir, foi realizada anastomose terminoterminal, com pontos separados, sutura invaginante em plano total, com fio inabsorvível de polipropileno 5-0. Nos animais do grupo II, após a realização da anastomose foi aplicado o adesivo de fibrina sobre a linha de sutura, de modo a cobrir toda a circunferência da anastomose. Todos os animais foram reoperados 72 horas após a intervenção cirúrgica. Os segmentos intestinais anastomosados foram identificados, as aderências foram delicadamente desfeitas e os segmentos intestinais foram ressecados com margem de aproximadamente 2 cm de distância da anastomose. Os segmentos intestinais ressecados, contendo a linha de sutura, foram submetidos à análise histológica para avaliação da cicatrização.

Pressão de ruptura Os segmentos intestinais ressecados foram cateterizados com cateter de Nelaton, número 6. Foi injetada solução de NaCl a 0,9% para remoção de restos de fezes no interior do lúmen intestinal. A seguir, foi fechada a outra extremidade da alça com fio de seda 3-0. Foi, a seguir, conectado ao cateter um tubo de borracha com duas saídas independentes, sendo que uma das saídas foi ligada a um compressor de ar que insuflou o segmento do intestino e a outra conectada a um medidor digital de pressão. Os segmentos intestinais foram imersos dentro de um recipiente contendo água, de modo que ficassem completamente submersos. Foram submetidos à insuflação contínua com ar até sua ruptura, observada quando apareciam bolhas de ar no líquido do recipiente. À medida que os segmentos intestinais eram insuflados, o medidor de pressão registrava os valores de pressão intralumi-


Uso do adesivo de fibrina como fator adjuvante na cicatrização de anastomoses intestinais em ratos

nal. Foi verificada a pressão máxima, registrada no aparelho, capaz de provocar a ruptura do intestino.

Análise histológica / hematoxilina-eosina

razão entre as porcentagens. Com isso, comparou-se a concentração de colágeno neoformado nos diferentes grupos.

Análise estatística

As peças anatômicas foram fixadas em blocos de parafina, cortadas em micrótomo, e coradas com hematoxilina-eosina. A mucosa foi avaliada quanto à presença ou ausência de solução de continuidade, crosta fibrinoleucocitária, edema e reepitelização. Avaliaram-se ainda a presença e as características do infiltrado inflamatório e a espessura da camada muscular. Foram avaliadas, em relação à camada submucosa, as presenças e as características de neoformações vascular e conjuntiva. A camada muscular própria foi avaliada quanto à presença ou ausência de hipertrofia e de plexos nervosos; e, por fim, na serosa, foi avaliada a sua hialinização vascular. Estabeleceu-se um protocolo, com base na Escala de Ehrlich & Hunt modificada, em que se atribuíram pontos (no máximo 18) de acordo com as características encontradas, representando mais exacerbação do processo de cicatrização7 (Tabela 1). A cada animal foi atribuído o total de pontos, tornando possível aplicar análise estatística para avaliar os parâmetros de cicatrização.

Análise histológica/densitometria do colágeno Os cortes histológicos foram corados com o corante Sirius Red F3AB e a seguir avaliados com luz polarizada para diferenciação das fibras colágenas. Calculou-se a porcentagem de fibras de colágeno tipos I e III, estabelecendo-se, a seguir, a

Os dados foram analisados usando-se o programa estatístico “one-way ANOVA” (análise de variância); e, para as variáveis não paramétricas, foi usado o método de “Kruskal-Wallis” com o teste posterior de “Mann-Whitney”, sendo considerado o valor de p < 0,05 como significativo.

RESULTADOS Pressão de ruptura No grupo I (controle) observou-se a variação de pressão de ruptura de 38 a 54 mmHg, com média de 47 mmHg. No grupo II, a variação foi de 54 mmHg a 98 mmHg, com média de 73,5 mmHg. O grupo II apresentou aumento de 26,5 ± 3,8 mmHg em relação ao grupo I (controle), com p < 0,001.

Análise histológica/hematoxilina-eosina A variação no escore de pontos baseado na escala de Ehrlich & Hunt modificada do grupo I (controle) foi de 5 a 7, com média de 5,9, enquanto que no grupo II houve variação entre cinco e oito, com média de 6,5. O grupo II apresentou aumento de 0,6 ponto em relação ao grupo I (controle), com p > 0,05.

Tabela 1 - Escala de Ehrlich e Hunt modificada para avaliação da intensidade de cicatrização Parâmetros

Escala 0

1

2

3

Depósito de colágeno

ausente

discreto

moderado

intenso

Neoformação conjuntivo-vascular

ausente

discreta

moderada

intensa

Infiltrado inflamatório

ausente

discreto

moderado

intenso

Padrão do infiltrado inflamatório

ausente

linfoplasmocitário

granulocítico

neutrofílico

Solução de continuidade

íntegro

---

---

Hipertrofia da muscular

Epitélio

ausente

presente

---

---

Proliferação fibroblástica

ausente

discreta

moderada

Intensa

rarefeitos

acentuados

---

---

Plexos nervosos

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Análise histológica/densitometria do colágeno Os cortes das lâminas corados com Sirius Red permitiram a diferenciação entre a coloração dos colágenos tipos I e III. Com isso, foi possível estabelecer a relação entre as porcentagens da deposição colágeno novo em relação ao antigo. No grupo I as variações das relações entre colágeno novo e antigo foram de 0,11 a 0,25, com média de 0,17. O grupo II também exibiu variação entre 0,11 e 0,25, com média de 0,17. Não houve diferença estatística entre os grupos (p =1).

DISCUSSÃO O marcante avanço do conhecimento sobre o processo de cicatrização intestinal durante o século passado contribuiu para a redução das complicações relacionadas às anastomoses gastrintestinais. Ainda assim, a possibilidade de deiscências de sutura e fístulas continua sendo temida pelos cirurgiões, o que motiva a pesquisa de fatores que possam aperfeiçoar o processo fisiológico da cicatrização. Os adesivos de fibrina são compostos de fibrina, fator XIII e trombina humana. A reconstituição do material reproduz os eventos finais da cascata de coagulação, formando uma rede de fibrina que servirá de base para a agregação plaquetária. Sua absorção, lenta e gradativa, se completa após de 30 a 50 dias, com pouca reação tecidual. Os estudos sobre os adesivos de fibrina e suas aplicações nas anastomoses intestinais datam do início do século XX, com mais ênfase a partir dos anos 1970.8 É controverso o exato mecanismo de ação dos adesivos de fibrina sobre a cicatrização intestinal, sendo descritos efeitos positivos como a produção de hemostasia local, o estímulo ao fluxo de macrófagos com a produção de fatores que favorecem a angiogênese, a proliferação de fibroblastos e a produção de colágeno.6,9-11, O uso isolado dos adesivos de fibrina como método de confecção de anastomoses intestinais tem sido restrito a estudos experimentais. Na prática clínica vêm sendo utilizados em associação aos métodos convencionais de sutura (manual ou mecânica). Por essa razão, optou-se por utilizar o adesivo de fibrina como reforço na anastomose constituída por sutura manual de pontos separados com polipropileno 5.0. As análises de pressão de ruptura mostram que esta foi maior no grupo em que se utilizou o adesivo de fibrina (grupo II) do que no grupo-controle.

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Estudos experimentais em que se utilizou o adesivo de fibrina para confecção de anastomoses de cólon ou como reforço da anastomose também mostraram aumento da pressão de ruptura na linha de sutura em relação aos seus respectivos controles.12-15 Os resultados da análise histológica realizada com a coloração hematoxilina-eosina não revelam efeitos do adesivo de fibrina sobre a cicatrização intestinal neste estudo. O grupo II teve aumento de pontos do escore em relação ao grupo-controle, mas não houve significância estatística. Alguns autores relatam resultados positivos dos adesivos de fibrina em relação à cicatrização intestinal baseados em avaliação histológica. Marcadores de imuno-histoquímica para angiogênese foram maiores nos grupos em que se utilizou o adesivo de fibrina para confecção das anastomoses, porém marcadores para deposição de colágeno e atividade de fibroblastos não foram diferentes em relação aos respectivos grupos-controle.13,14 Em outro estudo, não houve diferença estatística em relação a dosagem de hidroxiprolina e análise histológica entre ratos submetidos a tratamento de lesão de duodeno com adesivo de fibrina ou com sutura simples.15 Os resultados da analise histológica da densitometria do colágeno por meio da coloração Sirius Red são semelhantes aos encontrados com a coloração hematoxilina-eosina. Não houve aumento de colágeno neoformado no grupo II em relação ao grupo-controle.

CONCLUSÃO O adesivo de fibrina usado como reforço de anastomoses de cólon de ratos atuou como selante, aumentando a força de pressão de ruptura. Não foram encontradas alterações histológicas que mostrem sua influência na cicatrização após 72 horas.

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12. Akgun A, Kuru S, Uraldi C, Tekin O, Karip B, Tug T, Ongören AU. Early effects of fibrin sealant on colonic anastomosis in rats: an experimental and case-control study. Tech Coloproctol. 2006 Oct; 10(3):208-14. 13. Kanellos I, Mantzoros I, Demetriades H, Kalfadis S, Sakkas L, Kelpis T, Betsis D. Sutureless colonic anastomosis in the rat: a randomized controlled study. Tech Coloproctol. 2002 Dec; 6(3):143-6. 14. Kanellos I, Christoforidis E, Kanellos D, Pramateftakis MG, Sakkas L, Betsis D. The healing of colon anastomosis covered with fibrina glue after early postoperative intraperitoneal chemotherapy. Tech Coloproctol. 2006 Jul; 10(2):115-20. 15. Karagoz AVCI,Yüceyar S, Aytaç E, Bayraktar O, Erenler I, Ustün H, Uzun H, Ertürk S. Comparison of classical surgery and sutureless repair with DuraSeal or fibrin glue for duodenal perforation in rats. Ulus Travma Acil Cerrahi Derg. 2011 Jan; 17(1):9-13.

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ARTIGO ORIGINAL

O Sistema de Informação do Acolhimento do CEREST de Juiz de Fora/MG: construindo indicadores de fluxos e atenção em saúde do trabalhador The Embracement Information System of the CEREST of Juiz de Fora/MG: building flow and attention indicators in the worker’s health Cristiane dos Reis Veloso Poço1, José Luís da Costa Poço2

DOI: 10.5935/2238-3182.20150121

RESUMO Enfermeira. Especialista em Ergonomia e Vigilância Sanitária. Chefe da Seção de Doenças Ocupacionais do Departamento de Saúde do Trabalhador (DSAT/CEREST). Secretaria Municipal de Saúde de Juiz de Fora. Juiz de Fora, MG – Brasil. 2 Médico. Especialista em Saúde da Família e Saúde do Trabalhador. Departamento de Saúde do Trabalhador (DSAT/CEREST).Ministério da Saúde/Secretaria Municipal de Saúde. Juiz de Fora, MG – Brasil. 1

Introdução: os Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (CERESTs) são responsáveis pelas ações de saúde do trabalhador no Sistema Único de saúde (SUS). O Departamento de Saúde do Trabalhador de Juiz de Fora (DSAT/CEREST-JF) possui abrangência regional que, à semelhança de outros CERESTs, enfrenta dilemas sobre a priorização de ações de assistência ou vigilância, necessidades de capacitação e dificuldades para articulações intra e intersetoriais. O mapeamento do fluxo dos usuários, o levantamento e análise dos modos de organização do serviço e dos problemas enfrentados podem contribuir para melhor equacionamento dessas questões. Objetivo: relatar o processo de construção do Sistema de Informação do Acolhimento do DSAT/ CEREST-JF e discutir os resultados obtidos, propondo indicadores para orientar propostas de aperfeiçoamento das ações de saúde do trabalhador no SUS. Método: estudo retrospectivo, com análise quantitativa. Descreve-se o processo de construção do Sistema de Informação do Acolhimento do DSAT/CEREST-JF e são discutidos os resultados da análise da população acolhida em 2009. Resultados: 1.346 usuários foram acolhidos, sendo descritas suas características e sua evolução até 31 de dezembro de 2010. São formulados indicadores referentes aos fluxos de referência e contrarreferência e ao processo de trabalho, sendo sugeridas ações para melhorá-los. Conclusões: a formulação de indicadores do processo de atenção à saúde do trabalhador desenvolvido no DSAT/CEREST-JF, com base no Sistema de Informação do Acolhimento, configura uma experiência que, com as devidas adequações às realidades locais, pode ser replicada na Rede Nacional de Atenção à Saúde do Trabalhador. Palavras-chave: Saúde do Trabalhador; Sistemas de Informação; Mecanismos de Avaliação da Assistência à Saúde. ABSTRACT

Recebido em: 18/11/2012 Aprovado em: 16/10/2015 Instituição: Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora Juiz de Fora, MG – Brasil Autor correspondente: Cristiane dos Reis Veloso Poço E-mail: crisreisvel@hotmail.com

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Introduction: The Workers’ Health Reference Centers (CERESTs) are responsible for actions toward workers’ health in the Unified Health System (SUS). The Department of the Worker’s Health of Juiz de Fora (DSAT/CEREST-JF) has a regional coverage which, like other CERESTs, faces dilemmas about prioritizing assistance or supervision actions, training needs, and difficulties in intra and intersectorial articulations. Mapping the flow of users and the survey and analysis of the modes of service organization and problems can contribute to improving these issues. Objective: to report the process of building the Embracement Information System of DSAT/CEREST-JF and discuss the results obtained, proposing indicators to guide proposals for the improvement of the worker’s health in the SUS. Method: this was a retrospective study with a quantitative analysis. It describes the process of building the Embracement Information System of DSAT/CEREST-JF and

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O Sistema de Informação do Acolhimento do CEREST de Juiz de Fora/MG: construindo indicadores de fluxos e atenção em …

discusses the test results of assisted population in 2009. Results: 1,346 users were assisted; their characteristics and evolution were described until December 31 of 2010. Indicators for the reference and counter reference flows and labor process were formulated, and actions to improve them were suggested. Conclusions: the formulation of indicators of the process of the worker’s health care developed in the DSAT/CEREST-JF, based on the Embracement Information System configures an experience that, with the necessary adaptations to the local realities, can be replicated in the National Network of the Worker’s Health Care. Key words: Occupational Health; Information Systems; Health Care Evaluation Mechanism.

INTRODUÇÃO Os Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (CERESTs) são responsáveis pelo apoio técnico às ações de promoção, prevenção, vigilância, diagnóstico, tratamento e reabilitação em saúde do trabalhador nas diferentes instâncias e serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) e constituem o eixo da implantação da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (RENAST), instituída em 2002 pela Portaria GM/MS nº 1.679¹. As atribuições dos CERESTs e as funções dos diversos níveis de gestão da RENAST foram objeto de mais duas outras portarias ministeriais, nº 2437² de 2005 e nº 2728³ de 2009, porém persistem os desafios identificados por Dias e Hoefel4, em 2005, e novamente constatados no estudo realizado entre 2002 e 2007 no estado de Minas Gerais,5 tais como dificuldades na definição do papel do CEREST, dilemas sobre a priorização de ações de assistência ou vigilância, necessidade de capacitação das equipes e dificuldades para articulações intra e intersetoriais. O Departamento de Saúde do Trabalhador de Juiz de Fora (DSAT), em atividade desde 1988, foi habilitado em 2002 como integrante da RENAST, na condição de CEREST regional, responsável, portanto, pela coordenação das ações em saúde do trabalhador em Juiz de Fora e na sua macrorregião.6 A demanda de atendimento do CEREST de Juiz de Fora (DSAT/CEREST-JF) origina-se de diversas fontes: encaminhamentos das Unidades de Atenção Primária à Saúde (UAPS), da atenção secundária, médicos particulares, Serviços Especializados em Engenharia de Segurança e Medicina do Trabalho (SESMT), sindicatos, Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) e demanda espontânea.

O acolhimento é das diretrizes de mais importância na Política Nacional de Humanização do SUS. Em seu manual sobre o acolhimento nas práticas de produção de saúde,7 o Ministério da Saúde sugere o mapeamento do fluxo do usuário na unidade de atendimento, o levantamento e análise dos modos de organização do serviço e dos problemas enfrentados, a partir da participação dos profissionais que nela atuam. Além disso, propõe também a coletivização da análise e a produção de estratégias conjuntas para enfrentamento dos problemas diagnosticados, a articulação com a rede de saúde para pactuação dos encaminhamentos e acompanhamento da atenção à saúde, reafirmando a indissociabilidade entre a atenção e a gestão. O objetivo deste estudo é relatar o processo de construção do Sistema de Informação do Acolhimento (SIA) do DSAT/CEREST-JF, iniciado em 2008, e apresentar e discutir os resultados obtidos, propondo indicadores para orientar propostas de aperfeiçoamento das ações em saúde do trabalhador, em um formato que possa ser replicado na RENAST.

METODOLOGIA Foi realizado estudo descritivo retrospectivo, complementado por análise quantitativa, desenvolvido em quatro etapas: a. etapa 1 – histórico da implantação do SIA no DSAT/CEREST-JF; b. etapa 2 – delimitação da amostra e análise quantitativa: os dados analisados neste estudo referem-se ao primeiro ano de utilização do SIA, ou seja, usuários acolhidos no período entre 1o de janeiro de 2009 e 31 de dezembro de 2009, incluindo as atualizações e complementações referentes às desconcentrações, altas e reencaminhamentos ocorridos nesse grupo até 31 de dezembro de 2010. Foram utilizados os dados secundários, consolidados no SIA. A apuração e consolidação dos resultados, agrupamento em categorias, tratamento estatístico e confecção de tabelas foram executados com o auxílio do software EPI-INFO versão 3.5.1; c. etapa 3 – discussão dos resultados da análise quantitativa; d. etapa 4 – proposição de indicadores, com base nas informações obtidas.

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RESULTADOS E DISCUSSÃO O Sistema de Informação do Acolhimento (SIA) No DSAT/CEREST-JF, o acolhimento dos usuários é realizado por técnicos com capacitação específica (assistente social, enfermeiro, técnico de segurança do trabalho). Nesse primeiro contato são coletadas informações com vistas à avaliação da suspeita de doença ocupacional ou acidente do trabalho e, quando indicados, são realizados os encaminhamentos internos (consulta com médico, psicólogo, fonoaudiólogo) ou externos (outros serviços de saúde, INSS, sindicatos, MTE, Promotoria Pública etc.), bem como são fornecidas orientações legais (trabalhistas e previdenciárias).8 O atendimento médico no DSAT/CEREST-JF está dividido em dois setores: doenças ocupacionais e acidentes do trabalho. As consultas médicas visam pesquisar a existência de relação entre o trabalho e o agravo sofrido pelo usuário, a partir da investigação diagnóstica e do ambiente de trabalho, com as consequentes notificações ao Ministério da Saúde e à Previdência Social, conforme a legislação vigente.9,10 Após a conclusão da avaliação médica, os usuários são encaminhados para acompanhamento clínico na atenção primária (desconcentração) e em outros setores da atenção secundária ou recebem alta, conforme o caso. A desconcentração (ou contrarreferência do DSAT para as UAPS) é prática consolidada em Juiz de Fora como parte da estratégia de inserção de ações em saúde do trabalhador na atenção primária.11 São desconcentrados os usuários em que se identificou doença não ocupacional e aqueles em que a investigação realizada no DSAT confirmou agravos relacionados ao trabalho cujo tratamento ou controle pode ser realizado ou supervisionado pelos técnicos da atenção primária. O DSAT/CEREST–JF centraliza as notificações ao Ministério da Saúde dos agravos relacionados ao trabalho na sua área de abrangência, encaminhando-as ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), a partir da Vigilância Epidemiológica Municipal. Paralelamente, o DSAT/CEREST–JF mantém bancos de dados próprios, com informações detalhadas referentes às doenças e acidentes do trabalho por ele identificados, incluindo os agravos que não são de notificação compulsória. Não havia, porém, até 2008, qualquer informação sistematizada sobre as características da demanda do DSAT/CEREST-JF, nem sobre os fluxos dos encaminhamentos internos e externos dos seus usuários. Foi a

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partir do estudo realizado em 2008 sobre a descentralização de ações de saúde do trabalhador para a atenção primária,¹¹ em que as informações referentes à origem dos encaminhamentos dos usuários foram resgatadas com base na leitura dos prontuários e de livros de registro, que se evidenciou a necessidade da criação do SIA. Para a apuração e consolidação no banco de dados das informações do acolhimento, escolheu-se o mesmo programa de computador que já vinha sendo utilizado pelo DSAT/CEREST-JF em seus sistemas de informações: o EPI-INFO versão 3.5.1. Foi elaborado um questionário objetivo, com predomínio de questões fechadas, contemplando as informações básicas para traçar o perfil da demanda do DSAT/CEREST-JF, o seu trajeto dentro do serviço e a conclusão do seu processo de atendimento. O formulário foi dividido em duas seções: “acolhimento” e “desconcentração/alta”. A primeira seção, “acolhimento”, contém as informações referentes ao usuário, à origem do encaminhamento e ao acolhimento propriamente dito. As categorias listadas para a “situação no mercado de trabalho” são as mesmas das fichas do SINAN. O item “ramo de atividade” toma por base a classificação de atividades econômicas do IBGE,12 com adaptações de modo a contemplar as atividades econômicas com mais importância epidemiológica em Juiz de Fora.13 A segunda seção, “desconcentração/alta”, é preenchida quando ocorre desconcentração ou alta do usuário, com as informações referentes a esse evento, incluindo o diagnóstico recebido após a avaliação no DSAT/CEREST-JF e a identificação da UAPS para a qual o paciente foi encaminhado, nos casos de desconcentração. A aplicação sistemática, com o preenchimento do formulário para todos os acolhimentos realizados, iniciou-se no primeiro dia útil de 2009. Para a construção do banco de dados foram digitados todos os itens de cada formulário de acolhimento, incluindo as informações acrescentadas pelo setor administrativo referentes ao comparecimento à consulta médica agendada no DSAT/CEREST-JF, número de prontuário, setor de atendimento (acidente do trabalho ou doença ocupacional) e dados referentes a novos encaminhamentos/retornos do mesmo usuário (“rerreferência”).

Os usuários acolhidos em 2009 O DSAT/CEREST-JF registrou 1.346 acolhimentos em 2009. As características desses usuários estão sumarizadas na Tabela 1.


O Sistema de Informação do Acolhimento do CEREST de Juiz de Fora/MG: construindo indicadores de fluxos e atenção em …

Tabela 1 - Usuários acolhidos pelo DSAT/CEREST-JF em 2009 (N=1346) Característica Sexo feminino

Número

%

689

51,18%

Idade média (DP)

40,46 (10,7)

Situação no mercado de trabalho Empregado registrado

… continuação

Tabela 1 - Usuários acolhidos pelo DSAT/CEREST-JF em 2009 (N=1346) Característica

Número

%

Auxiliar de serviços gerais

102

7,58%

Faxineiro / servente de limpeza

99

7,35%

86

6,39%

Ocupação

1.037

77,04%

Desempregado

108

8,02%

Cozinheiro / auxiliar de cozinha / lancheiro / salgadeiro / copeiro / confeiteiro

Autônomo/conta própria

104

7,72%

Empregado doméstico

68

5,05%

Servidor público estatutário

28

2,08%

Costureiro

58

4,31%

Servidor público celetista

14

1,04%

Operador de produção / auxiliar de produção

56

4,16%

Aposentado

14

1,04%

Vendedor / balconista

56

4,16%

Empregado não registrado

10

0,74%

Motorista

54

4,01%

Trabalhador temporário

6

0,44%

Outras (204) ocupações menos frequentes

642

47,70%

Cooperativado

3

0,22%

Ignorado

18

1,33%

Trabalhador avulso

2

0,14%

Empregador

1

0,07%

1315

97,69%

Outro / não especificado/ignorado

19

1,41%

Outros (16) municípios de Minas Gerais

30

2,23%

Ignorado

1

0,07%

1300

96,58%

46

3,41%

Ramo de atividade Construção civil

139

10,32%

Comércio em geral (exceto supermercado e restaurante / lanchonete / padaria / fornecedor de refeição)

131

9,73%

Serviço doméstico

126

9,36%

Restaurante / lanchonete / padaria / fornecedor de refeição

112

8,32%

Indústria têxtil / confecção

91

6,76%

Outros serviços

91

6,76%

Transporte

89

6,61%

Indústria de transformação (exceto têxtil / confecção / metalurgia / siderurgia)

87

6,46%

Indústria metalúrgica / siderúrgica

87

6,46%

Conservadora / limpeza e conservação

82

6,09%

Município de residência Juiz de Fora

Encaminhamento ao DSAT Primeira vez Reencaminhamento

Origem do encaminhamento Demanda espontânea

454

33,72%

UAPS (Unidade de Atenção Primária à Saúde)

386

28,68%

Outro serviço de atenção à saúde

169

12,55%

Sindicato

126

9,36%

MTE

50

3,71%

INSS

30

2,23%

Empresa / empregador

27

2,01%

SESMT

20

1,48%

Justiça do Trabalho

9

0,67%

Outro

75

5,57%

Supermercado

66

4,90%

Estabelecimento de saúde

60

4,45%

Administração pública indireta

33

2,45%

Motivo do encaminhamento

Estabelecimento de ensino

26

1,93%

Suspeita de doença ocupacional

918

68,20%

Suspeita de acidente do trabalho

233

17,31%

Outro

184

13,67%

Ignorado

11

0,81%

Telemarketing

24

1,78%

Administração pública (exceto saúde / ensino / administração pública indireta)

17

1,26%

Serviço bancário e financeiro

15

1,11%

Serviço industrial de utilidade pública (água / luz / saneamento básico)

8

0,59%

Serviço de correios

8

0,59%

Agropecuária, extrativa vegetal, caça e pesca

6

0,44%

Extrativa mineral

3

0,22%

Outro / não especificado

45

3,34%

107

7,94%

Ocupação Pedreiro / servente de obra

Continua…

As ocupações e ramos de atividade dos usuários acolhidos pelo DSAT/CEREST-JF retratam a realidade do trabalho formal em Juiz de Fora14, com destaque para os setores de serviços, comércio, indústria e construção civil. Em relação à situação no mercado de trabalho, é reduzido o número de trabalhadores informais (0,74%), o que ressalta a necessidade de ações que aumentem a sua captação, com base em novos estudos voltados especificamente para esse segmento. Rev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 548-555

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A demanda do DSAT/CEREST-JF registrada em 2009 originou-se basicamente do município de Juiz de Fora; apenas 2,2% dos usuários acolhidos residiam em outros municípios da área de abrangência. Fica evidente que, embora o serviço tenha abrangência regional, na prática ele não está tendo esse alcance. Considerando as atribuições do CEREST Regional, especificadas nas portarias da RENAST,1-3 evidencia-se aqui a necessidade de mais ênfase nas ações regionais, buscando capacitar os técnicos dos municípios da área de abrangência para o reconhecimento dos agravos relacionados ao trabalho e criando fluxos formais de referência e contrarreferência, conforme previsto no Manual de Gestão e Gerenciamento da RENAST.15 Há grande predomínio de usuários de primeira vez na demanda do DSAT/CEREST-JF (96,58%). A baixa frequência de reencaminhamentos pode ser interpretada como sinal de boa resolutividade do serviço, mas seriam necessários estudos específicos para confirmar essa suposição. A demanda espontânea ocupa o primeiro lugar na origem dos acolhimentos do DSAT/CEREST-JF (33,72%). Seguem-se os encaminhamentos da Rede de Atenção Primária (28,68%) e de outros serviços de saúde (12,55%). Os 25% restantes dividem-se por sindicatos, MTE, INSS, empregadores, SESMT, Justiça do Trabalho e outros. A “porta aberta” para a demanda espontânea no DSAT/CEREST-JF contrapõe-se à proposta da RENAST, na qual “os Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST) deixam de ser porta de entrada e assumem o papel de suporte técnico, polo irradiador da cultura da centralidade do trabalho e produção social das doenças e lócus de pactuação das ações de saúde, intra e intersetorialmente, no seu território de abrangência”.4 Embora o DSAT/CEREST-JF desenvolva, desde 2002, um processo de capacitação e descentralização de atenção em saúde do trabalhador para a atenção primária¹¹ e sejam poucas as áreas do município sem cobertura de UAPS, a análise detalhada dos encaminhamentos oriundos da atenção primária em 2009 evidenciou distorções. Das 48 UAPS existentes em Juiz de Fora em 200916, apenas 42 encaminharam usuários ao DSAT/CEREST-JF, em quantidades que variaram de um a 31 usuários cada, no período de um ano. Demonstrou-se assim a necessidade de intensificar o investimento na parceria com a atenção primária, por meio de uma rotina de capacitação contínua, visando à consolidação e uniformização dos fluxos de referência e contrarreferência.

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O número relativamente pequeno de usuários encaminhados pelo MTE (3,71%) e pelo INSS (2,73%) sinaliza a necessidade de melhor articulação intersetorial. As suspeitas de doenças ocupacionais predominam entre os motivos que levaram os usuários ao DSAT/CEREST-JF (68,20%), seguindo-se as suspeitas de acidentes do trabalho (17,31%). Em 13,67% dos casos havia outros motivos, tais como orientações previdenciárias e trabalhistas, doenças e acidentes não relacionados ao trabalho e solicitações de benefícios sociais.

O processo de atendimento aos usuários A Tabela 2 resume os dados registrados nas fichas de acolhimento relacionados ao processo de atendimento da população estudada. Tabela 2 - Informações referentes ao processo de atendimento aos usuários acolhidos em 2009 no DSAT/CEREST-JF Característica

Número

%

2,7

-

Encaminhamentos corretos (avaliação do profissional do acolhimento) (N=1346)

1.241

92,20%

Consulta médica marcada no DSAT/CEREST-JF (N=1346)

1.114

82,76%

Dias decorridos entre o acolhimento e a consulta marcada (média) (N=1114)

6,6

-

Absenteísmo à consulta agendada (N=1114)

72

6,46%

Desconcentração ou alta (casos concluídos) até 31/12/2010 (N=1042)

267

25,62%

Dias decorridos entre o encaminhamento e o acolhimento (média) (N=1346)

Diagnóstico recebido do DSAT/CEREST (N=267) LER/DORT – Lesão por Esforço Repetitivo/ Dist. Osteomuscular Relacionado ao Trabalho

158

59,17%

Doença não ocupacional

79

29,58%

Acidente do trabalho

15

5,62%

Dermatose ocupacional

5

1,87%

Outras doenças respiratórias ocupacionais

3

1,12%

Transtorno mental ocupacional

3

1,12%

PAIR – Perda Auditiva Induzida pelo Ruído

2

0,75%

Outro / não especificado

2

0,75%

135,1

Dias decorridos entre a 1ª consulta e a desconcentração/alta (média) (N=267)

Especificação do motivo do desligamento do DSAT/CEREST-JF (N=267) Alta

65

24,34%

Desconcentração

202

75,66%

4

1,50%

Reencaminhamento após a desconcentração/alta (“rerreferência”) (N=267)


O Sistema de Informação do Acolhimento do CEREST de Juiz de Fora/MG: construindo indicadores de fluxos e atenção em …

Apenas 7,8% dos encaminhamentos foram avaliados pelos técnicos do acolhimento como “indevidos”. A análise dessa subpopulação revelou diferenças importantes entre os percentuais de encaminhamentos indevidos conforme sua origem. O índice mais elevado foi encontrado na demanda espontânea, 14,8%, enquanto entre os usuários referenciados pelas UAPS foi de 3,1%. Os casos oriundos de outros serviços de saúde e de sindicatos apresentaram 4,7% e 4,8%, respectivamente, de equívocos na referência. O INSS e os SESMT não fizeram encaminhamento avaliado como “indevido”. Foi indicada a marcação de consulta médica no DSAT/CEREST-JF para 82,76% dos usuários acolhidos em 2009 e o índice de absenteísmo foi de 6,46%. Ao final de 2010, do total de 1.042 usuários que compareceram à consulta médica, 267 (25,62%) tiveram sua avaliação concluída, sendo desligados do DSAT/ CEREST-JF por desconcentração (75,66%) ou por alta (24,34%). A baixa frequência de registros de acidentes de trabalho entre os usuários que receberam alta ou indicação de desconcentração (5,62%) deve-se à inexistência de um protocolo formalizado pelo DSAT-CEREST-JF para a descentralização dos casos de acidente do trabalho. No grupo de 830 usuários atendidos pelo setor de doenças ocupacionais, foi possível avaliar o percentual de casos concluídos e o percentual de diagnóstico de doenças não ocupacionais nas desconcentrações/altas realizadas por cada um dos profissionais médicos da equipe. Foi observada grande frequência do diagnóstico de LER/DORT entre os casos concluídos (59,17%), confirmando o histórico da prevalência de doenças ocupacionais em Juiz de Fora.14 Também merece atenção a ocorrência de 79 casos concluídos como doenças não ocupacionais (29,58%). Destes, 21 eram usuários que haviam procurado o DSAT/CEREST-JF espontaneamente, 30 haviam sido encaminhados por UAPS, 11 por outros serviços de saúde, oito por sindicatos e nove vieram por outros encaminhamentos. Evidencia-se novamente aqui a necessidade de ações de capacitação dos profissionais de saúde, ações intersetoriais e formalização de fluxos de encaminhamento visando à redução dos encaminhamentos incorretos. Os dados armazenados no SIA também permitiram a avaliação dos intervalos decorridos entre as diversas etapas do processo de atendimento dos usuários. Foi possível avaliar prazos referentes à subpopulações específicas, por exemplo, para cada um dos diagnósticos concluídos e por profissionais que participaram do processo. No caso dos diagnósticos

concluídos de LER/DORT, por exemplo, o prazo médio decorrido entre a primeira consulta e a conclusão diagnóstica foi de 142,5 dias. No estudo realizado por Marques17 em 2010, que analisou os casos de LER/ DORT notificados ao SINAN pelo DSAT/CEREST-JF em 2009, com outra metodologia, utilizando o Banco de Dados de Notificações de Doenças Ocupacionais e livros de registros de prontuários, foi constatado intervalo inferior a 180 dias em 88,6% dos casos. Até 31 de dezembro de 2010 houve apenas quatro casos de reencaminhamento de usuários acolhidos em 2009 e desligados do DSAT/CEREST-JF (“rerreferência”), todos oriundos de UAPS. Esse baixo índice de “rerreferência” confirma os achados da pesquisa realizada em 2008 por Poço e Dias,¹¹ reafirmando a desconcentração como uma estratégia eficiente para o funcionamento da Rede de Assistência em Saúde do Trabalhador nos diferentes níveis de atenção à saúde.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Os sistemas de informação em saúde, alimentados por dados válidos e confiáveis e compreendidos como instrumentos flexíveis e dinâmicos, constituem condição essencial para a análise objetiva da situação sanitária, para a tomada de decisões baseadas em evidências e para a programação de ações de saúde. O gerenciamento das atividades desenvolvidas, ou seja, o planejamento, acompanhamento e avaliação, pode ser fortalecido pelo uso de informações sistematizadas que contemplam as diretrizes básicas do modelo assistencial, a partir de indicadores.18,19 Segundo a definição utilizada pela Rede Interagencial de Informações para a Saúde,18 indicadores são “medidas-síntese que contêm informação relevante sobre determinados atributos, dimensões do estado de saúde, bem como do desempenho do sistema de saúde”, constituindo, como destaca Araújo,20 “ferramentas de gestão e avaliação”. A disponibilidade de indicadores facilita o monitoramento de objetivos e metas em saúde, estimula a capacidade analítica das equipes de saúde e promove o desenvolvimento de sistemas de informação intercomunicados.18 O conceito de vigilância também está ligado à sistematização de coleta, análise e disseminação de dados. Segundo Wunsch Filho e colaboradores, citado por Machado21, “vigilância é informação para ação”. Como ressaltado por Facchini et al.,22 há consenso sobre a falta de informações em saúde do trabalhaRev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 548-555

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dor, configurando-se a necessidade de um sistema de informação que valorize cada encontro do trabalhador com o SUS e, especialmente, com os CERESTs. Nesse contexto, os mecanismos de aferição do desempenho constituem parte fundamental na gestão orientada por resultados, em busca de eficiência, eficácia e efetividade da ação pública.20 Entre os propósitos de um sistema de informação em saúde do trabalhador, conforme preconizado no Manual de Gestão e Gerenciamento da RENAST,15 encontra-se o de “promover o uso inovador, criativo e transformador da tecnologia da informação, para melhorar os processos de trabalho em saúde, resultando em um sistema nacional de informação em saúde articulado, que produza informações para a gestão, a prática profissional, a geração de conhecimentos e o controle social, garantindo ganhos de eficiência e qualidade mensuráveis através da ampliação de acesso, equidade, integralidade e humanização dos serviços”. O SIA implantado no DSAT-CEREST-JF possibilitou a formulação de indicadores referentes ao seu processo de atenção à saúde do trabalhador. Os subsídios obtidos poderão ser utilizados para monitorar, aperfeiçoar ou reorientar os profissionais, assim como os processos de trabalho, do DSAT/CEREST-JF. Com as devidas adequações às diferentes realidades locais, o modelo proposto neste estudo pode ser replicado na RENAST e os indicadores extraídos poderão servir de parâmetro para avaliações não apenas intrainstitucionais, mas também interinstitucionais.

REFERÊNCIAS 1. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria Nacional de Assistência à Saúde. Portaria GM no 1679 de 19 de setembro de 2002. Dispõe sobre a estruturação da rede nacional de atenção integral à saúde do trabalhador no SUS e dá outras providências. Brasília: Diário Oficial da União; 2002. 2. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria Nacional de Assistência à Saúde. Portaria GM nº 2437 de 07 de dezembro de 2005. Dispõe sobre a ampliação e o fortalecimento da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador - RENAST no Sistema Único de Saúde - SUS e dá outras providências. Brasília: Diário Oficial da União; 2005. 3. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria Nacional de Assistência à Saúde. Portaria GM nº 2728 de 11 de novembro de 2009. Dispõe sobre a Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (RENAST) e dá outras providências. Brasília: Diário Oficial da União; 2009.

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4. Dias EC, Hoefel MG. O desafio de implementar as ações de saúde do trabalhador no SUS: a estratégia da RENAST. Ciênc Saúde Coletiva. 2005; 10(4):817-28. 5. Dias EC, Chiavegatto CV, Lacerda e Silva T, Reis JC, Silva JM. Construção da RENAST em Minas Gerais: a contribuição dos Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST), 2002-2007. Rev Med Minas Gerais. 2010; 20(Supl. 2):S66-74. 6. Departamento de Saúde do Trabalhador de Juiz de Fora.A Construção do Departamento de Saúde do Trabalhador de Juiz de Fora. In: Takahashi MAB, Vilela RAG, organizadores. A Saúde do Trabalhador e Saúde Ambiental: cenário, experiências e perspectivas – 2003. Piracicaba: I Conferência de Saúde do Trabalhador e Saúde Ambiental de Piracicaba e Região; 2003. p.111-8. 7. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde - Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. Acolhimento nas práticas de produção de saúde. 2ª ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2006. 44 p. 8. Veloso CR, Silva IG. Vigilância sanitária, vigilância em Saúde do Trabalhador e assistência [monografia]. Juiz de Fora: Universidade Federal de Juiz de Fora, Faculdade de Engenharia; 2007. 9. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria Nacional de Assistência à Saúde. Portaria GM no 777 de 28 de abril de 2004. Dispõe sobre os procedimentos técnicos para a notificação compulsória de agravos à saúde do trabalhador em rede de serviços sentinela específica, no Sistema Único de Saúde - SUS. Brasília: Diário Oficial da União; 2004. 10. Brasil. Lei nº 8213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Brasília: Diário Oficial da União; 1991. 11. Poço JLC, Dias EC. Descentralização de ações de saúde do trabalhador para a atenção primária de saúde - desafios e possibilidades: a experiência do CEREST de Juiz de Fora, MG. Rev Med Minas Gerais. 2010; 20(Supl. 2):S38-46. 12. Brasil. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Diretoria de Pesquisas Coordenação de Trabalho e Rendimento. Série relatórios metodológicos volume 23. Pesquisa mensal de emprego. 2ª ed. Rio de Janeiro: IBGE; 2007. 89 p. 13. Universidade Federal de Juiz de Fora. Centro de Pesquisas Sociais/ CPS-ICHL. Anuário estatístico de Juiz de Fora 2010. [Citado em 2011 jun. 8]. Disponível em: http://www.cps.ufjf.br/wpcps/?p=234. 14. Brasil. Ministério do Trabalho e Emprego. Relação anual de informações sociais – RAIS 2010. [Citado em 2011 jul. 22]. Disponível em: http://perfildomunicipio.caged.gov.br/result_SPER.as p?entrada=SPER&tpCST=cstMUN&UF=MG&codmun=313670&u facesso=MG 15. Brasil. Ministério da Saúde. Área Técnica de Saúde do Trabalhador – COSAT. Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador – Manual de gestão e gerenciamento. São Paulo: Hemeroteca Sindical Brasileira; 2006. 80 p. 16. Brasil. Ministério da Saúde. DataSus. Juiz de Fora - Informações de saúde dezembro de 2009. [Citado em 2011 jul. 22]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?cnes/ cnv/estabMG.def


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17. Marques AN. Estudo das características ocupacionais e demográficas dos pacientes com LER ou lombalgia atendidos em Juiz de Fora (2009) [monografia]. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, Hospital das Clínicas; 2010. 18. Rede Interagencial de Informações para a Saúde - Ripsa. Indicadores básicos para a saúde no Brasil: conceitos e aplicações. 2ª ed. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; 2008. 349 p. 19. Mishima SM, Villa TCS, Gomes ELR, Pratali MTR, Silva EM, Anselmi ML. O sistema de informações no processo gerencial dos serviços de saúde: algumas reflexões. Rev Latino-Am Enferm. 1996; 4(n. Esp.):83-9.

20. Araújo MAD. Responsabilização pelo controle de resultados no Sistema Único de Saúde no Brasil. Rev Panam Salud Publica. 2010; 27(3):230-6. 21. Machado JMH. Processo de vigilância em saúde do trabalhador. Cad Saúde Pública. 1997; 13(Supl. 2):33-45. 22. Facchini LA, Nobre LC, Faria NX, Fassa AG, Thumé E, Tomasi E, Santana V. Sistema de Informações em Saúde do Trabalhador: desafios e perspectivas para o SUS. Ciênc Saúde Coletiva. 2005; 10(4):857-67.

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Avaliação da qualidade das prescrições médicas da farmácia municipal de Catalão – Goiás Quality assessment of medical prescriptions from the municipal pharmacy of Catalão – Goiás Cristina dos Santos Oliveira1, Amanda Sabino dos Santos2, Isabel Cristina Gonçalves Leite3

DOI: 10.5935/2238-3182.20150122

RESUMO Farmacêutica Bioquímica. MBA em Gestão Estratégica Hospitalar. Responsável técnica da Drogaria Minas Brasil e da Drogaria São João. Montes Claros, MG – Brasil. 2 Acadêmica do Curso de Odontologia da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF. Juiz de Fora, MG – Brasil. 3 Odontóloga. Doutora em Saúde Pública. Professora Adjunta da Faculdade de Medicina da UFJF do Programa de Pós-Graduação em Saúde e em Saúde Coletiva. Núcleo de Assessoria, Treinamentos e Estudos em Saúde. Juiz de Fora, MG – Brasil. 1

Objetivos: trata-se de estudo quantitativo de utilização de medicamentos que buscou identificar os tipos e a frequência de erros que ocorrem na etapa de prescrição de medicamentos na farmácia municipal da cidade de Catalão-GO. Além disso, analisar a legibilidade e a ausência de informações das prescrições médicas, identificar os tipos e as frequências de erros que ocorrem na etapa de prescrição de medicamentos e determinar as indicações terapêuticas mais prescritas e a quantidade média de medicamento prescrito por receita. Métodos: foram avaliadas 639 prescrições no mês de julho de 2010 e as informações foram coletadas por meio de formulário de avaliação de prescrição médica. Resultados: nas receitas avaliadas, foram identificados 1.513 medicamentos prescritos, sendo 112 de controle especial. Do total de prescrições, 16 (2,5%) estavam completas ou perfeitas, com todas as informações necessárias presentes, totalmente legíveis e sem abreviaturas e rasuras. Conclusão: os dados encontrados indicam o perfil de erros de prescrições médicas, sugerindo a necessidade de medidas que diminuam o risco de erro de medicação e demonstrem a importância e o benefício da prescrição completa, visando à segurança da saúde do paciente. Palavras-chave: Prescrições de Medicamentos; Erros de Medicação; Sistemas de Medicação. ABSTRACT

Recebido em: 23/11/2012 Aprovado em: 15/12/2015 Instituição: Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF Juiz de Fora, MG – Brasil Autor correspondente: Isabel Cristina Gonçalves Leite E-mail: isabel.leite@ufjf.edu.br

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Objectives: this was a quantitative study of drug use that aimed to identify the types and frequency of errors that occur in the prescription drug stage in the municipal pharmacy in the city of Catalão-GO. Furthermore, to analyze the readability and absence of information on the medical prescriptions, identify the type and frequency of errors that occur in the prescription step, and determine the most prescribed indications and the average amount of medication prescribed by prescription. Methods: we evaluated 639 prescriptions in July of 2010, and the information was collected through a prescription evaluation form. Results: 1,513 prescription drugs were identified, 112 under special control. Out of all prescriptions, 16 (2.5%) were complete or perfect with all necessary information present, fully legible, and without abbreviations and erasures. Conclusion: the data indicate the profile of prescription errors, suggesting the need for measures to reduce the risk of medication error, which demonstrate the importance and benefit of complete prescriptions for the safety of the patient’s health. Key words: Drug Prescriptions; Medication Errors; Medication Systems.

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Avaliação da qualidade das prescrições médicas da farmácia municipal de Catalão – Goiás

INTRODUÇÃO No setor saúde, os medicamentos representam instrumento fundamental para a capacidade resolutiva dos serviços prestados, representando o segundo maior gasto do Sistema Único de Saúde (SUS), atrás apenas dos recursos humanos.¹ É preocupante o aumento de problemas relacionados à administração de medicamentos, uma vez que os produtos farmacêuticos passaram a ter uso indiscriminado e irracional.² Porém, o processo que induz o estímulo à automedicação e ao uso irracional e desnecessário de medicamentos, presentes, em particular, na sociedade brasileira é fator que promove aumento na demanda por medicamentos, requerendo, necessariamente, a promoção do seu uso racional mediante a reorientação dessas práticas e o desenvolvimento de um processo educativo, não só para a equipe de saúde, mas também para o usuário.³ Como parte do processo de uso racional de medicamentos, a prescrição, instrumento de comunicação da ordem médica, está sendo extensamente discutida, entretanto, pouco se sabe sobre a sua qualidade no Brasil.4 Para a terapia medicamentosa ser bem-sucedida, o processo de prescrição, preparação e administração dos medicamentos deve ser realizado corretamente,5 pois se observa que a maioria dos erros de mediação ocorre durante a sua prescrição.5,6 Portanto, é necessário que o profissional de saúde saiba o tipo de prescrição em vigor na sua área de atuação, para que possa adotar estratégias de gestão e controle que proporcionem melhor relação custo-benefício para seus pacientes.7 Os erros dos profissionais de saúde, apesar de não serem evitáveis, podem e devem ser minimizados, porém a identificação, punição e treinamento do culpado não é o suficiente, devendo ser acompanhados de medidas de conscientização da sua importância, constante atualização e reciclagem sobre sua melhor aplicação.8 Segundo o presidente do Conselho Federal de Farmácia (CFF), os erros de medicação são desafio para as autoridades sanitárias e para os profissionais da saúde e devem ser tratados com a devida importância, pois a maioria desses profissionais só sabe que está diante de um erro quando ele é grave e, muitas vezes, culmina no óbito do paciente.9 Verificar a qualidade da prescrição é maneira de medir a satisfação do paciente, uma vez que esta está diretamente ligada à adesão ao tratamento, o que envolve diretamente o entendimento da prescrição,

pois, caso contrário, poderá haver interpretação da prescrição segundo o seu ponto de vista ou deixar de ser realizada em parte ou totalmente.10

METODOLOGIA Este estudo epidemiológico do tipo transversal teve abordagem descritiva e foi desenvolvido em uma farmácia municipal da cidade de Catalão, Goiás. Foram utilizadas para a coleta de dados as prescrições médicas dos pacientes que procuraram atendimento no referido serviço público no mês de julho de 2010. A seleção, coleta e análise das prescrições foram realizadas na Farmácia Municipal Dr. José Pascoal, a qual atende prescrições dos pacientes da população local oriundas tanto dos serviços de saúde públicos quanto dos privados. Os critérios adotados de elegibilidade das receitas foram: responsáveis pela receita ter idade superior a 18 anos e o paciente (nome de quem está na receita) estar cadastrado na farmácia. Os participantes abordados foram selecionados ao acaso, ao longo do dia e durante o período de um mês. As informações foram coletadas por meio de formulário de avaliação de prescrição médica preenchido pela própria pesquisadora em presença dos mesmos mediante a apresentação da receita. O formulário avaliou o tipo de prescrição, ausência de informações importantes como concentração, dose, forma farmacêutica, via de administração, posologia e duração do tratamento; legibilidade dessas informações separadamente e também da receita como um todo; identificação da pessoa que prescreveu e do paciente; local e data de emissão da prescrição; indicação terapêutica dos medicamentos mais prescritos; forma como os medicamentos foram prescritos: pelo nome comercial ou nome genérico (DCB); quantidade de medicamentos por prescrição; se faziam parte ou não de documentos oficiais (sempre considerando o nome genérico): RENAME 2008, 6ª edição, e o livro “Fundamentos farmacológico-clínicos de medicamentos de uso corrente”¹¹. Apesar deste não ser um documento recente, constitui-se em um dos únicos ou o único público com a característica de indicação terapêutica. Foi avaliada também a identificação completa do paciente e do comprador. Quanto ao tipo, as prescrições foram classificadas em: digitadas (realizadas em computador e impressas, tendo como escrita à mão apenas a assiRev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 556-561

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natura de quem a prescreveu; escritas (prescrições totalmente escritas à mão); e mistas (aquelas em que havia uma mescla de prescrição digitada/impressa e escrita à mão). Foi considerada informação via de administração as expressões como uso interno, uso externo, uso parenteral, uso oral, tomar, ingerir. Já quanto à duração do tratamento, apenas quando o prescritor indicava o número de dias de tratamento ou o número total de comprimidos, cápsulas ou injeções a serem utilizadas é que essa informação era considerada presente. Quando o medicamento prescrito era comercial e comercializado em apenas uma concentração, considerava-se também essa informação presente. Em relação à legibilidade da receita como um todo, foram adotadas as seguintes classificações.¹²,¹³ ■■ legível: a prescrição lida normalmente, com todas as palavras, números, símbolos e abreviaturas nítidos; ■■ pouco legível: a prescrição que gerou algum tipo de dúvida pelo leitor quanto ao entendimento ou legibilidade de palavras, números, símbolos e abreviaturas, podendo ser deduzidos ou interpretados mais de 50% de seu conteúdo (nome do medicamento, posologia, dose e concentração); ■■ ilegível: a prescrição que foi impossível entender o que estava escrito, foi quando pelo menos 50% da prescrição estavam indecifráveis. Nas prescrições de controle especial foi considerado o comprador identificado quando estivesse presente o seu nome, endereço, telefone e número do documento de identificação; e para o paciente, nome e endereço. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e os respondentes assinaram o termo de consentimento informado, de acordo com a Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, que dispõe sobre a pesquisa envolvendo seres humanos.14 Os dados foram digitados em SPSS 14.00 e foram obtidas medidas descritivas de tendência central e prevalência (frequência relativa).

RESULTADOS Foram analisadas 639 prescrições médicas durante todo o mês de julho de 2010. Nas receitas avaliadas, foram identificados 1.513 medicamentos prescritos. Desses, 112 (7,4%) eram controlados e essas substân-

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cias controladas estavam presentes em 14,9% (95) das prescrições. Dessas 95 que possuíam substâncias de uso controlado, 94 eram receituários de controle especial e uma era de receituário comum, possuindo uma substância controlada. Apenas três receitas apresentavam fármacos controlados prescritos junto com fármacos não controlados, ou seja, duas receitas de controle especial continham, além de medicamento de uso controlado, medicamento de uso comum. Todas as 636 restantes apresentavam só substâncias de uso controlado ou só substâncias de uso comum. Foram observadas, durante o estudo, incoerências em duas prescrições, efetuadas por médicos diferentes, em uma prescrição de um medicamento na forma farmacêutica de xarope (cloridrato de ambroxol) e depois na posologia, como um comprimido três vezes ao dia; e, em outra, de um medicamento injetável (insulina NPH humana) como via de administração de uso interno. Além de todos os itens necessários em uma prescrição, aquelas de controle especial devem possuir dois itens a mais, a identificação completa do paciente com nome e endereço completo e do comprador com nome, número do documento de identidade e endereço completo. Quando houve presença de substância controlada, verificou-se que havia identificação completa do comprador em 8,4% (oito) e do paciente em 65,2% (62) das 95 receitas que possuíam esse tipo de substância. Das receitas analisadas, 38 (5,9%) continham rasuras (nenhuma de receituário especial), porém a maioria dessas rasuras não influenciou na legibilidade ou entendimento do conteúdo das prescrições. Em se tratando da identificação do paciente, 100% das prescrições identificaram seus pacientes com nome, mas 77 (12,1%) delas não se identificaram com assinatura e carimbo com nome completo e número do registro no respectivo conselho profissional (apenas duas, em receituário especial). Outra informação necessária para validar a prescrição é a divulgação do local de atendimento (clínica, hospital ou consultório) e a data em que a receita foi emitida. Ambas as informações estavam contidas em 84,4% (539), sendo 68 em receituário especial. Outro item avaliado foi a presença ou ausência de abreviatura. Excluindo as prescrições ilegíveis, 96,2% (589) possuíam algum tipo de abreviatura. Quando houve abreviação no nome do medicamento, este era ácido acetilsalicílico (ASS) ou hidroclorotiazida (HTZ). Não houve abreviação na informação da dura-


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ção do tratamento, dose e concentração. Vale ressaltar que item ausente ou ilegível foi considerado ausência de abreviatura. Os medicamentos mais prescritos foram para o sistema cardiovascular (Figura 1). 45% 40% 35% 30% 25% 20% 15% 10% 5% 0%

41.50%

6.2%

6.30% 6.50%

9.20% 8.90%

3.3%

8.90% 1.90% 1%

4.60% 1.70%

Infecção de modo geral (90)

Inflamação (129)

Antivermífugo ou antifúngico (48)

Nutrição e Anemia (27)

Cardiovascular (602)

Reprodutor (14)

Dor (92)

Respiratório (67)

Digestivo (95)

Sistema Nervoso Central (129)

Endócrino (134)

Outros (25)

Figura 1 - Indicação terapêutica dos fármacos prescritos na Farmácia Municipal Dr. José Pascoal, da cidade de Catalão, Goiás, para pacientes que foram atendidos no Sistema Único de Saúde em julho de 2010. Fonte: dados da pesquisa.

Vale ressaltar ainda que, dos 90 (6,2%) medicamentos prescritos para processos infecciosos de modo geral (antibióticos), 22 (24,5%) não informavam a duração do tratamento e dos 48 (3,3%) antifúngicos ou antivermífugos, oito (16,7%) não tinham a mesma informação. Das 639 prescrições usadas para realizar o estudo, 16 (2,5%) estavam completas ou perfeitas, com todas as informações necessárias presentes e totalmente legíveis, sem abreviaturas e rasuras, com identificação do médico e paciente, com local e data de emissão da receita e nas de controle especial, identificação completa do paciente e do comprador. Dessas, 15 eram digitalizadas, nenhuma era de controle especial.

DISCUSSÃO O sucesso do tratamento depende, principalmente, de prescrição bem-feita e de sua execução. Portanto, para que elas sejam entendidas corretamente, devem ser escritas sempre de forma legível, explicando em seguida todo o seu conteúdo.15 Verificou-se que isso não vem ocorrendo, pois parte das receitas analisadas neste estudo era ilegível (4,2%)

ou pouco legível (32,6%), contrariando a Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) nº 1.246/88 do Código de Ética Médica, que determina que os médicos não podem prescrever de forma ilegível, independentemente se a receita está completa ou precisa, uma vez que ela não poderá ser lida e executada. A classificação das prescrições quanto à legibilidade envolve certo grau de subjetividade,¹²,16 pois a experiência profissional, conhecimento em farmacologia e familiaridade com as prescrições influenciam nessa avaliação.¹² Como quem preencheu o formulário de avaliação não tinha experiência nem familiaridade com prescrições, os resultados encontrados neste estudo são fidedignos à realidade das prescrições analisadas. A ilegibilidade de receitas pode levar a série de problemas, principalmente quando se trata da geração de interpretações equivocadas, como, por exemplo, a troca de medicamento e/ou da via de administração. Esses erros são suscetíveis de ocorrer tanto na fase de dispensação quanto na de administração do medicamento, com risco de determinar a morte do paciente.17 É preciso que se adotem mecanismos para aumentar a taxa de legibilidade das receitas, e um deles é o uso de prescrições eletrônicas. Essa forma de prescrever diminui a dificuldade de leitura e entendimento causada pela letra ilegível, aumentando, consequentemente, a segurança do paciente.18,19 Foi demonstrado, em hospital de Belo Horizonte, que as prescrições digitalizadas têm 6,3 vezes menos riscos de apresentar problemas em relação às manuscritas e 3,5 vezes menos em relação às mistas.¹² Contudo, nem todos os médicos seguem esse método, uma vez que, no presente estudo, a maioria das receitas (90,3%) era escrita à mão. Considerando os 1.452 medicamentos legíveis ou pouco legíveis prescritos, 6,2% são indicados para processos infecciosos de modo geral, porém, levando-se em consideração as 639 prescrições, 13,3% delas continham antibióticos prescritos (independentemente da quantidade de diferentes tipos em cada prescrição). A proporção relatada neste estudo, em relação ao número de prescrições (13,3%), é menor que a considerada aceitável (20 e 30%) pela International Network for the Rational Use of Drug (INRUD), a partir de estudo realizado em 12 países. Esse achado pode ter ocorrido porque a maioria dos pacientes que procuraram atendimento na farmácia municipal portava doenças crônicas e usava medicamentos de uso contínuo. Porém, dos antibióticos prescritos, 24,5% não apresentavam a informação duração do tratamento, sendo Rev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 556-561

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esse um dado extremamente importante, pois a ausência dessa informação pode levar o paciente a interromper o tratamento antes do tempo adequado ou prolongar o uso desnecessariamente, contribuindo assim para o desenvolvimento de bactérias multirresistentes. Encontrou-se ainda que, entre os antifúngicos ou vermífugos, 16,7% não apresentavam a mesma informação e, segundo Galle e Gianinni (2004),20 também em relação aos antifúngicos, nota-se aumento da resistência dos microorganismos, provavelmente oriunda de prescrições inadequadas ou uso indevido. Os dados encontrados em relação a rasuras nas prescrições (5,9%) contrariam a RDC 135/05, que afirma que nenhuma prescrição deve conter rasuras ou emendas, pois prescrições rasuradas podem causar confusão em sua leitura e dificuldade em sua interpretação, gerando possíveis prejuízos para o paciente.18 Contudo, esse achado é mais favorável que outros encontrados (30%²¹, 17,5%²² e 12%18). Outro item obrigatório nas prescrições, segundo a mesma RDC (135/05), é a identificação completa de quem prescreve a identificação do paciente. A ausência da identificação do autor da prescrição é dado preocupante, pois caso haja necessidade de esclarecimento de dúvida, não é possível encontrar o seu responsável.16 Novamente o resultado da pesquisa (12,1%) vai de encontro à legislação, o mesmo encontrado em outra pesquisa² e divergente em outra (33,7%).16 Já no tocante à identificação do paciente, o estudo está totalmente de acordo (100%) com a legislação, porém o mesmo não ocorre com outras pesquisas4,¹² em que houve ausência desse tipo de identificação em 3 e 35% das prescrições. Esse dado é importante para que não aconteça a administração do medicamento de um paciente em outro, além de ser importante também para validar uma receita²,¹². Outro item obrigatório nas prescrições, segundo a mesma RDC (135/05), é a identificação completa do prescritor e a identificação do paciente. A ausência da identificação do prescritor é um dado preocupante, pois caso haja necessidade de esclarecimento de dúvida, não é possível encontrar o responsável pela receita.16 Novamente o resultado da pesquisa (12,1%) vai de encontro à legislação, como encontrado em outro estudo² e divergente em outro (33,7%).16 A ausência da informação forma farmacêutica, concentração, dose, posologia e via de administração encontrada na pesquisa (29,7%) vai de encontro à legislação. A posologia é dado importante, pois as doses administradas têm o objetivo de alcançar

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metas farmacoterapêuticas estabelecidas fundamentadas na necessidade de administrar a dosagem sempre em certa sequência de tempo, mantendo assim a ação do medicamento.10,19 A via de administração é também dado importante, porque sua ausência pode culminar na aplicação da via e/ou técnica incorreta, com possibilidade de modificar eventos farmacocinéticos, como, por exemplo, a absorção.10 Utilizar abreviaturas é forma de agilizar e simplificar o processo de prescrição, porém elas podem ser mal interpretadas por profissionais que não estejam familiarizados com elas ou pelo fato de uma mesma abreviatura ter mais de um significado.10,¹² A existência de abreviatura e/ou símbolos em uma prescrição também é item que contraria a legislação23,24 e isso aconteceu em 96,2% delas, corroborando o encontrado em outras pesquisas (96%)²¹ e divergindo em outra (47%).15

CONCLUSÃO Este estudo realizado no município de Catalão-GO identificou considerável número de informações ausentes, de abreviaturas e de ilegibilidade ou pouca legibilidade de alguns itens referentes aos medicamentos ou das prescrições médicas analisadas e também referentes a quem prescreveu. Esse descumprimento da legislação e das normas institucionais vem causando erros de medicação que podem gerar substituição de um medicamento por outro durante a dispensação, uso de medicamentos por via ou em dose equivocadas, uso de medicamento além do tempo necessário ou não adesão ao tratamento, portanto, é importante a implantação de estratégias que melhorem a qualidade de prescrições medicamentosas. Podem-se reduzir esses erros usando-se prescrições eletrônicas, padronização de atividades como evitar abreviações, prescrição dos medicamentos por nomes genéricos, no caso de prescrições manuscritas, uso de letras claras e legíveis e ainda a educação continuada dos profissionais que prescrevem, conscientizando-os da importância da prescrição correta.

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ARTIGO DE REVISÃO

Depressão em estudantes de medicina Depression in medical students Miguel Angelo Giovanni Noronha Júnior1, Yuri Amorim Braga1, Tamyres Gonçalves Marques1, Rosane Terra Silva1, Samila Danielle Vieira1, Victória Alves Ferreira Coelho1, Tomás Antunes Alves Gobira1, Liubiana Arantes de Araújo Regazzoni2

DOI: 10.5935/2238-3182.20150123

RESUMO 1

Acadêmico(a) do curso de Medicina da Universidade José do Rosário Vellano-Unifenas. Belo Horizonte, MG – Brasil. Médica. Doutora em Neuropediatria. Professora adjunta do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e Professora da Unifenas. Belo Horizonte, MG – Brasil.

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A depressão é condição médica comum geralmente associada à incapacidade funcional e comprometimento da saúde física e mental da pessoa. Envolve aspectos afetivos, cognitivos e neurovegetativos. Estima-se que 15 a 25% dos universitários apresentam algum transtorno psiquiátrico durante sua formação, notadamente depressão e ansiedade. Nos estudantes de Medicina a prevalência dos transtornos depressivos oscilou entre 30 e 60%. O objetivo foi realizar revisão bibliográfica acerca da depressão em estudantes de Medicina e as principais causas que a determinam. Foram selecionados 31 artigos em língua portuguesa, inglesa e espanhola entre 1987 e 2013, nas bases de dados PubMED, Scielo. A prevalência da depressão em estudantes de Medicina é superior à da população geral, sendo subdiagnosticada em 50% dos casos e subtratada na maioria dos casos. As exigências das escolas médicas são fatores precipitantes para o surgimento da depressão, que aliado ao estigma que há em torno da doença dificulta o tratamento. Alunos de Medicina com melhor rendimento escolar possuem alto risco de suicídio. Estudantes femininos, do quinto ano e aqueles que têm filhos possuem maior grau de depressão. Não foram encontrados dados de que a depressão esteja relacionada à etnia, classe econômica e idade dos estudantes. Os sintomas depressivos em estudantes de Medicina têm elevada prevalência e estão relacionados tanto às questões universitárias quanto às sociais. No entanto, a depressão é pouco diagnosticada e tratada, o que contribui para a elevada morbimortalidade da população. Palavras-chave: Medicina; Educação Médica; Estudantes de Medicina; Depressão; Transtorno Depressivo. ABSTRACT

Recebido em: 12/12/2013 Aprovado em: 01/06/2014 Instituição: Universidade José do Rosário Vellano – Unifenas Belo Horizonte, MG – Brasil Autor correspondente: Miguel Angelo Giovanni Noronha Junior E-mail: juniorgiovanni2000@hotmail.com

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Depression is a common medical condition usually associated with functional disability and impaired physical and mental health. It involves affective, cognitive, and neuro-vegetative aspects. It is estimated that 15-25% of college students present a psychiatric disorder during their training, especially depression and anxiety. The prevalence of depressive disorders ranged between 30 and 60% of medical students. The objective was to review the literature on depression in medical students and determine the main causes. We selected 31 articles in Portuguese, English, and Spanish published between 1987 and 2013 in the PubMED and Scielo databases. The prevalence of depression in medical students is higher than that of the general population, being underdiagnosed in 50% of cases and undertreated in most cases. The requirements of medical schools are precipitating factors for the onset of depression, which together with the stigma surrounding the disease complicates treatment. Medical students with better academic performance are at high risk of suicide. Female students in the fifth year and those who have children have a higher degree of depression. Data that depression is related to ethnicity, economic class, and age were not found.

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Depressão em estudantes de medicina

Depressive symptoms in medical students are highly prevalent and related to both academic and social issues. However, depression is poorly diagnosed and treated, which contributes to the high morbidity and mortality in the population. Key words: Medicine; Education, Medical; Students, Medical; Depression; Depressive Disorder.

INTRODUÇÃO A depressão é condição médica comum, crônica e recorrente. Está frequentemente associada à incapacidade funcional e ao comprometimento da saúde física e mental da pessoa. É caracterizada como transtorno de humor multifatorial que envolve aspectos afetivos, motivacionais, cognitivos e neurovegetativos que devem ser levados em conta em sua avaliação e tratamento.1-6 Desde a segunda metade do século XX, observa-se aumento da prevalência de depressão. E a idade de seu surgimento tem sido de pacientes cada vez mais jovens.7 Estima-se que 15 a 25% dos estudantes universitários apresentem algum tipo de transtorno psiquiátrico durante sua formação acadêmica, notadamente transtornos depressivos e de ansiedade. Alto número de estudos acerca dos sintomas depressivos em universitários foi realizado entre estudantes de Medicina. Com isso, estima-se que a prevalência dos transtornos depressivos nessa população oscile entre 8 e 17%.2,8 Fatores que contribuem para esses números são decorrentes da alta carga horária à qual os estudantes de Medicina estão submetidos, juntamente com conteúdo didático extenso.9 Outro fator também pontuado é a insegurança em relação à própria competência e à sobrevivência no mercado de trabalho.8-10 O estigma associado à doença propriamente dita e ao uso de serviços médicos psiquiátricos representam importante barreira para o tratamento desses estudantes.2,7,11 Como citam Givens e Tjia11, em 2002, os estudantes de Medicina manifestam, em 37% e em 24% das vezes, que a dificuldade para seu tratamento decorre da possível quebra de confidencialidade do seu acompanhamento psiquiátrico e do medo de registros em seu histórico acadêmico, respectivamente, e sua possível repercussão negativa sobre sua competência.7,11,12 O rastreamento da depressão em estudantes de Medicina com as escalas autoaplicáveis apresenta-

-se como método extremamente útil, pois pode identificar precocemente aqueles alunos mais suscetíveis ao desenvolvimento de sintomas depressivos,13 como os que se encontram no primeiro e último períodos8 e os autoexigentes, que não aceitam falhas em relação ao desempenho escolar.7 É importante destacar que a depressão é das principais causas de suicídio entre jovens com baixo rendimento escolar.12,14,15 Com isso, esses estudantes poderiam permanecer sob vigilância pelos núcleos de apoio psicopedagógicos das instituições de ensino,13,16 a fim de evitar o agravamento da depressão. O objetivo deste estudo foi realizar revisão bibliográfica acerca da depressão em estudantes de Medicina, buscando avaliar a prevalência dos sintomas depressivos, bem como a possibilidade de determinado período do curso atuar como fator de risco para o desenvolvimento da depressão. Foram selecionados 31 artigos em língua portuguesa, inglesa e espanhola, publicados no período de 1987 a 2013, que buscavam associação entre depressão e estudantes de Medicina. As bases de dados usadas para as buscas incluíram: PubMED, Scielo, site do New England Journal of Medicine. As palavras-chave para a busca foram: “estudantes”, “Medicina”, “depressão”.

REVISÃO DA LITERATURA O ingresso no ensino superior é um acontecimento significativo na vida dos jovens e, tradicionalmente, coincide com o período do desenvolvimento psicossocial marcado por mudanças importantes.17 Estima-se que 15 a 25% dos estudantes universitários apresentam algum tipo de transtorno psiquiátrico durante sua formação acadêmica, notadamente transtornos depressivos e de ansiedade.17,18 Os pacientes deprimidos apresentam limitação da sua atividade e bem-estar, além de mais utilização de serviços de saúde. No entanto, a depressão é subdiagnosticada e subtratada e em torno de 50% a 60% dos casos não é detectada pelo médico clínico.19,20 Os motivos para o subdiagnóstico advêm de fatores relacionados aos pacientes e aos médicos. Os pacientes podem ter preconceito em relação ao diagnóstico de depressão e descrença em quanto ao tratamento. Já os fatores ligados aos médicos incluem falta de treinamento, falta de tempo, descrença na efetividade do tratamento, reconhecimento apenas dos sintomas físicos da deRev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 562-567

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pressão e identificação dos sintomas de depressão como uma reação “compreensível.2 Muitas vezes, os pacientes deprimidos também não recebem tratamentos suficientemente adequados e específicos. A morbimortalidade associada à depressão pode ser, em boa parte, prevenida (em torno de 70%) com o tratamento correto.20 Os estudantes de Medicina com depressão, se identificados precocemente, podem ser acompanhados por terapia comportamental, apoio emocional, a psicoterapia interpessoal e habilidade social, o que pode ajudar os jovens médicos a superarem suas dificuldades e levar vida mais saudável.21 Buchman et al.20 e Sherry et al.22 sugeriram que estudantes de Medicina possuem alto índice de depressão quando comparados à população como um todo, entretanto, outros estudos identificaram que esses índices eram inferiores ao esperado para a população geral. O percentual de depressão entre estudantes de Medicina variou entre 30 e 60%.17-19 Meleiro23 afirma que os alunos de Medicina com melhor rendimento escolar encontram-se em grupo de alto risco de suicídio. Os referidos autores corroboram que, por serem pessoas mais exigentes, estariam mais propensas a sofrer as pressões impostas diante de qualquer falha. O estudante passa a ter culpa pelo que não sabe e com isso se sente paralisado pelo medo de errar. O sentimento desencadeado é o de desvalia e impotência, que muitas vezes são responsáveis por ideias de abandono do curso, depressão e suicídio.23 Outra informação obtida em algumas pesquisas foi de que estudantes dos últimos anos do ensino médico possuem elevado grau de depressão, com prevalência nos estudantes do quinto ano.22,23 Entretanto, alguns autores demonstram maior prevalência entre estudantes do quarto ano.24,25 Em todos esses achados não foram identificados fatores específicos que levam a alto índice de depressão entre esses estudantes. No tocante às fontes de estresse mais mencionadas, pode-se dizer que as maiores preocupações dos estudantes estão relacionadas à área acadêmica no que diz respeito à sobrecarga, exigências e desempenho e que essas preocupações estão presentes ao longo de todo o curso de Medicina.11,25 Expectativas como futuro médico não aparecem na lista das mais intensas nos primeiros anos de curso e passam a ser preocupação a partir do terceiro ano, quando se inicia o contato com o paciente.25 Já na fase final do curso surgem outras preocupações, tais como as disputadas provas de

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residência médica, que exigem grande dedicação por parte do aluno.24-26 Atualmente, a depressão é das principais causas de suicídio em jovens adultos e adolescentes, juntamente com o baixo rendimento escolar e o abuso e dependência de drogas. Além disso, o médico, por ser, na maioria das vezes, ativo, ambicioso, competitivo, compulsivo, entusiasta e individualista, é facilmente frustrado em suas necessidades de realização e reconhecimento. Isso pode ser suficiente para produzir ansiedade, depressão e necessidade de cuidados psiquiátricos. Mas se houver preconceitos com a Psiquiatria, o médico buscará outras opções, como a somatização, abuso de álcool e drogas e o suicídio.22 Foi identificado alto índice de distúrbios depressivos nos estudantes femininos, o que parece decorrer principalmente do fato de as mulheres tenderem a exagerar nos sintomas psicológicos quando preenchem os questionários. E também, que por si só, a depressão é doença que afeta mais mulheres do que homens.29,30 Também foi identificado que as mulheres percebem os estressores de forma mais intensa que os homens25, o que faz com que elas identifiquem mais precocemente os sintomas depressivos e, assim, busquem o tratamento. Os estudantes casados obtiveram índices de depressão menores que os demais, como sugerem Meleiros23 e Katz et al.28 Ao mesmo tempo, ficou evidenciado que estudantes que possuem filhos têm maior grau de estresse, e, consequentemente, de depressão.23,28 Não foram encontradas nos estudos selecionados evidências de que a depressão esteja relacionada a etnia, classe econômica e idade dos estudantes.17,19,23,30 Apesar disso, acredita-se fortemente que a condição socioeconômica é fator importante para a depressão, talvez não só para sua prevalência, mas para o grau de sua gravidade. Devido a isso, faz-se necessária investigação mais aprofundada a esse respeito em estudos futuros. Ao mesmo tempo, não foram registradas diferenças entre os índices de depressão de estudantes de Medicina e a categorização da faculdade como pública ou privada.17,19,25 Não foi possível comparar os índices de depressão dos estudantes em relação ao método de ensino adotado pelas instituições de ensino, isto é: tradicional ou aprendizagem baseada em problemas (Problem Based Learning – PBL), devido à dificuldade de encontrar estudos realizados em locais que adotam o método PBL.


Depressão em estudantes de medicina

Tabela 1 - Características dos trabalhos selecionados e os principais achados Autores

Ano de publicação, Fator de Impacto (FI)

Tipo de estudo, (N)

Principais achados

Fiorotti KP, et al.9

2010; FI: 1,856

Transversal; N=229

Elevada prevalência de transtornos mentais são comuns em estudantes de Medicina e a importância em subsidiar ações para prevenção e cuidado da saúde mental dos estudantes.

2003; FI = 0,2157

Coorte; N= 178

Indicou que os professores injustos (média=3,94; sd=1,17), a excessiva quantidade de matéria para estudo (média=3,93; sd=1,06), a grande quantidade de provas (média=3,80; sd=1,00), as provas orais (média=3,74; sd=1,28), a falta de tempo para diversão (média=3,61; sd=1,19), as expectativas como futuro médico (média=3,49; sd=1,27) e o medo de fracassar nos estudos (média=3,48; sd=1,34) foram considerados pelos estudantes, em ordem decrescente, os estressores mais intensos.

2003; FI= 1,198

Artigos de revisão, ensaios clínicos randomizados

A resposta ao tratamento agudo com antidepressivo é observada entre duas e quatro semanas após o início do uso; contudo, o início da resposta costuma ocorrer na primeira semana; o tratamento antidepressivo de continuação por seis meses reduz em 50% o risco de recaída.

Beautrais AL, et al.29

1998; FI: 6.970

Caso-controle; N=153

Jovens que praticam sérias tentativas de suicídio apresentam taxas elevadas de consultas psiquiátricas, incluindo internações e consultas ambulatoriais. Estes resultados significam que o desenvolvimento de estratégias de gestão de melhor tratamento para jovens com morbidade psiquiátrica pode ser método muito eficaz para a redução de comportamentos suicidas juvenis.

Cavestro JM, et al.8

2006; FI: 1,856

Coorte; N= 342

A prevalência de transtorno depressivo e o risco de suicídio foram significantemente maiores em estudantes de Terapia Ocupacional, quando comparados aos de Medicina e Fisioterapia.

Rossetto MAC, et al.17

2000; FI: 0,1284

Coorte; N= 80

Os dados obtidos no grupo de 80 estudantes do terceiro e quarto ano do curso de Medicina na cidade de São Paulo indicam conflitos nas relações interpessoais, contato tenso, ansiedade, irritabilidade com reações afetivas egocêntricas e impulsivas.

Hendryx MS, et al.18

1991; FI: 1,29

Coorte; N=1000

Dificuldades em identificar e comunicar sensações com a depressão e ansiedade.

Buchman BP, et al.20

1991; FI: 3,608

Coorte; N= 200

Associações de exercício com depressão não foram significantes. Poucas diferenças de gênero foram encontradas.

Sherry S, et al.23

1988; FI: 0,648

Caso Controle; N=82

Metade das estudantes de Medicina passa por momentos de estresse no início do curso, com sintomas menstruais associados. Encontrada associação de ansiedade e depressão com os sintomas menstruais.

Osse CMC, Costa, II.4

2011; FI: 0,0458

Tranversal; N=87

O sofrimento psíquico observado pelos sinais de necessidade de atenção em estudantes nas fases iniciais de cursos demonstra a necessidade de atenção diferenciada mediante a implementação de programas que propiciem cuidados preventivos e tratamentos adequados em diferentes níveis.

Vitaliano PP, et al.19

1989

Longitudinal; N=312

O índice de depressão e ansiedade predomina no início do ano letivo e vai diminuindo ao longo do mesmo.

Richman JA, Flaherty JA.24

1990

Revisão

Não há diferença significativa entre os sexos quando relacionado à depressão e ansiedade. Mas quanto ao consumo de álcool, os homens possuem índice bem superior.

Furtado ES, et al.25

Fleck MP, et al.2

Clark DC, Zeldow PB.26

1988; FI: 29,98

Longitudinal

12% dos alunos manifestam depressão significativa durante o quinto ano do curso de Medicina. A maioria dos sintomas depressivos desaparece no final do quarto ano. Grande parte dos estudantes consome abusivamente substâncias como álcool e drogas. Não foi encontrada diferença entre os sexos para o aparecimento de depressão.

Rosal MC, et al.27

1997; FI: 3.292

Longitudinal; N=300

Não foi encontrada diferença entre os sexos para o aparecimento de depressão e ansiedade. Mais da metade dos estudantes de Medicina apresenta algum sintoma depressivo durante o curso, sendo a maioria nos anos iniciais.

Hepgul N. et al.6

2013; FI: 6.68

Revisão da Literatura

Encontrado padrão de alterações biológicas em pacientes com depressão a partir da análise da expressão gênica relacionada à inflamação, à funcionalidade do receptor glucocorticoide e à neuroplasticidade.

O rastreamento da depressão em estudantes de Medicina torna-se fato de extrema importância, uma vez que estudos revelam que mais de 60% dos estudantes de Medicina são subtratados e/ou não buscam tratamento.17,19,26,28 Grande parte dos alunos

diz que prefere lidar com os problemas por conta própria do que buscar ajuda e se expor, o que poderia prejudicá-los não só em suas vidas acadêmicas, mas também profissionalmente.25,27-31

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CONCLUSÃO A prevalência de sintomas depressivos encontrados em estudantes do curso de Medicina é muito superior à média da população geral. Observou-se que a escola médica e suas exigências são fatores precipitantes para o surgimento dos sintomas de depressão, que aparecem desde o início do curso e se agravam nos dois últimos anos da graduação. Esse fato, em conjunto com o estigma que há em torno da doença, dificulta a procura por ajuda e tratamento adequado, o que justifica a elevada morbimortalidade dos pacientes depressivos. Isso pode repercutir no sistema de saúde do Brasil, uma vez que a depressão do médico pode interferir na qualidade do atendimento oferecido ao paciente. Baseado nisso, a criação de estudo maior, com o objetivo de criação e aperfeiçoamento de programas psicológicos dentro das universidades, desde o primeiro período do curso, deve constituir-se em ótima solução para melhor controle e regressão dessa doença que acomete cada vez mais estudantes.

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ARTIGO DE REVISÃO

Problemas gestacionais de alto risco comuns na atenção primária High-risk pregnancy problems common in the primary care Pâmela Torquato de Aquino1, Bernardino Geraldo Alves Souto2

DOI: 10.5935/2238-3182.20150124

RESUMO 1 Acadêmica do curso de Medicina da Universidade Federal de São Carlos-UFSCar. São Carlos, SP – Brasil. 2 Médico. Doutor. Professor adjunto da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG – Brasil.

Este trabalho contou com o apoio financeiro do CNPq por meio de uma bolsa de iniciação científica com duração de um ano.

Revisou-se a literatura sobre um conjunto de problemas que podem agregar risco à gravidez, entre os mais frequentemente encontrados no contexto da atenção básica de saúde. Focalizaram-se a situação socioeconômica da gestante, o tabagismo, o alcoolismo, o diabetes mellitus, a hipertensão arterial sistêmica, as cardiopatias, a epilepsia, a pré-eclâmpsia, a aloimunização e a infecção pelo vírus da imunodeficiência humana. Apresentaram-se e discutiram-se aspectos etiológicos e epidemiológicos desses complicadores gestacionais e respectivas repercussões sobre o desfecho das gravidezes. Observou-se que alguns problemas biológicos, psicológicos e sociais comuns na população geral devem ser sistematicamente rastreados em gestantes, mesmo se elas estiverem aparentemente saudáveis, porque impõem risco de complicações evitáveis à saúde ou à vida da mãe ou do feto. Há também aqueles que são específicos da gestação, que do mesmo modo precisam ser devidamente considerados. Cabe à equipe de saúde cuidar da grávida, da gravidez e do feto por meio da assistência ampliada e integral centrada na pessoa, organizada no ambiente da rede hierárquica de cuidado, aplicada a cada situação específica cujas identificação e abordagem adequadas podem reduzir a morbimortalidade materno-fetal em nosso meio. Palavras-chave: Gravidez; Gravidez de Alto Risco; Cuidado Pré-Natal; Complicações na Gravidez. ABSTRACT

Recebido em: 19/02/2014 Aprovado em: 12/01/2015 Instituição: Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG Belo Horizonte, MG – Brasil Autor correspondente: Bernardino Geraldo Alves Souto E-mail: bernardino@viareal.com.br

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The literature was reviewed about a set of problems that can add risk to pregnancy among the most frequently encountered in the context of primary health care. They were focused on the socioeconomic status of pregnant women, smoking, alcoholism, diabetes mellitus, hypertension, heart disease, epilepsy, preeclampsia, alloimmunization, and infection with human immunodeficiency virus. Etiological and epidemiological aspects of these gestational complicating factors and their impact on the outcome of pregnancies were discussed. It was observed that some biological, psychological, and social problems common in the general population should be systematically screened during pregnancy, even if these women are apparently healthy because they impose a risk of preventable complications to the health or life of mother or fetus. There are also those which are specific during pregnancy, which likewise must be properly considered. The health staff must care for the pregnant, pregnancy, and fetus through the expanded and comprehensive care centered on the person, organized in the hierarchical network care environment, and applied to each specific situation with the appropriate identification and approach that can reduce maternal and fetal mortality. Key words: Pregnancy; Pregnancy, High-Risk; Prenatal Care; Pregnancy Complications.

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Problemas gestacionais de alto risco comuns na atenção primária

INTRODUÇÃO O Ministério da Saúde estratifica os fatores de risco gestacional em problemas preexistentes e em problemas que podem surgir no decorrer da gestação. Do ponto de vista operacional, os problemas preexistentes merecem atenção em toda mulher fértil, inclusive com foco na possibilidade de um dia ela engravidar e de tais problemas repercutirem nessa gravidez. Por outro lado, tanto os problemas preexistentes quanto os que surgem no decorrer da gestação são dignos de atenção especial nas gestantes.1 Considerando os agravos determinantes de risco gestacional mais comumente vistos em grávidas acompanhadas no âmbito da atenção básica de saúde, este artigo focalizou a vulnerabilidade social, o tabagismo, o alcoolismo, o diabetes mellitus, a hipertensão arterial sistêmica, algumas cardiopatias, a epilepsia, a pré-eclâmpsia, a aloimunização e a infecção pelo vírus da imunodeficiência humana. Expõe-se e discute-se, pois, um consolidado de informações disponíveis na literatura sobre a etiologia e a epidemiologia desses problemas no contexto da gestação, com interesse na educação continuada de clínicos gerais, enfermeiros e estudantes dessas duas áreas no âmbito dos cuidados primários de saúde.

Vulnerabilidade social e baixa escolaridade A vulnerabilidade social está fortemente associada a desfechos desfavoráveis na gestação, principalmente por favorecer a má-adesão ao pré-natal. A qualidade da assistência pré-natal é pior entre solteiras e adolescentes e entre mulheres com maior número de filhos, de baixa escolaridade, com baixa renda e pertencentes a minorias étnicas.2 Aspectos psicossociais da gestante são pouco abordados na investigação sobre os determinantes do acompanhamento pré-natal. Estudos internacionais têm ampliado a compreensão sobre os fatores relacionados ao acesso e à qualidade da adesão de gestantes ao cuidado de saúde, incluindo a hostilidade do ambiente familiar como potencial obstáculo a esse acesso e adesão. Alguns deles ressaltam que mulheres vítimas de violência familiar utilizam menos os serviços de saúde, buscam menos frequentemente aassistência pré-natal e iniciam os respectivos cuidados tardiamente.3 Outro aspecto que cursa com mau prognóstico durante a gestação é o fato de a vulnerabilidade social se

aliar à carência nutricional. Entre as principais causas da anemia entre gestantes destacam-se o baixo nível socioeconômico, maior número de partos, baixo nível educacional, idade gestacional mais avançada, reservas inadequadas de ferro, ausência de suplementação de ferro e dietas deficientes em quantidade e qualidade de ferruginosos. A deficiência de ferro durante a gestação aumenta a morbimortalidade materna e fetal, bem como a ocorrência de partos prematuros e cirúrgicos, de abortamentos e de pré-eclâmpsia.4 A variável mais fortemente associada à anemia parece ser a escolaridade. Ao mesmo tempo, essa variável influencia significativamente a adesão aos cuidados de saúde e o padrão alimentar de gestantes. A baixa renda familiar e a precária condição de moradia também se relacionam à maior ocorrência de anemia, provavelmente por estar tudo isso no mesmo cenário de pobreza que favorece a desnutrição, a maior exposição a adversidades ambientais e a falta de oportunidades.4 Esses resultados sugerem que, sem mudanças estruturais nas condições socioeconômicas da população, os programas assistencialistas de combate à anemia podem apenas contornar agudamente um problema que é crônico, sem efetivamente resolvê-lo.4

Tabagismo Segundo Freire et al.5, o uso de substâncias nocivas à saúde no período gravídico-puerperal, como drogas lícitas e ilícitas, deve ser investigado e desestimulado, pois crescimento fetal restrito, abortamento, parto prematuro, deficiências cognitivas na criança, entre outros, podem estar associados ao uso ou abuso dessas substâncias. Outros autores realçaram que até 80% das tabagistas continuam com esse hábito durante sua gestação, sugerindo a falta de vontade de parar de fumar e de informação sobre os seus malefícios como motivos para que não seja suspenso durante a gestação.6 Além disso, Marin et al.7 constataram que gestantes fumantes aderem menos ao pré-natal, comparecendo menos às consultas em relação às não fumantes. A questão do tabagismo na gestação é tão importante e os malefícios sobre a saúde fetal são tantos, que justifica dizer que o feto é um verdadeiro fumante passivo.8 Entre esses malefícios, citam-se a maior probabilidade de desenvolvimento de fetos pequenos para a idade gestacional por diminuição do fluxo placentário, menos produção de leite durante a Rev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 568-576

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lactação, alterações no desenvolvimento do sistema nervoso central e a síndrome da morte súbita. Entre os vários componentes do tabaco que interferem na saúde da gravidez, destacam-se as ações da nicotina e do monóxido de carbono.9 A nicotina age no sistema cardiovascular provocando liberação de catecolaminas na circulação materna, induzindo taquicardia, vasoconstrição periférica e redução do fluxo sanguíneo placentário. Pode provocar, também, alterações cognitivas e do desenvolvimento psicomotor da criança. O monóxido de carbono, ao combinar-se com a hemoglobina materna e fetal, determina hipóxia na mãe e no feto, podendo ser um dos fatores responsáveis pelo sofrimento fetal crônico nas gestantes fumantes. Além disso, o tabagismo pode provocar má-absorção da vitamina B12, cuja menor concentração orgânica associa-se a parto prematuro, reduzida hematopoiese, alterações do sistema nervoso e prejuízos no crescimento fetal. Acredita-se, ainda, que ocorra menos retenção de água no organismo materno, fazendo com que mãe e feto estejam mais sujeitos à desidratação. Outro fator ligado ao tabagismo materno é o alto risco de desenvolvimento de leucemia na infância, devido ao fato de a fumaça do tabaco conter pelo menos 60 agentes cancerígenos conhecidos.9 Sobre os agentes químicos contidos na fumaça do cigarro, os principais são os aldeídos, as aminas aromáticas, os hidrocarbonetos policíclicos aromáticos, as nitrosaminas e o benzeno. Este último é o único evidentemente relacionado ao desenvolvimento de leucemia. A exposição fetal aos componentes do tabaco compromete, ainda, o crescimento dos pulmões e leva à redução das pequenas vias aéreas, implicando alterações funcionais respiratórias na infância que persistem ao longo da vida. O desenvolvimento pulmonar modificado pode estar associado ao aumento do risco futuro de doença pulmonar obstrutiva crônica, asma brônquica, câncer de pulmão e doenças cardiovasculares.8,9 O tabagismo leva, também, ao comprometimento imunológico caracterizado por diminuição da capacidade fagocitária dos macrófagos e alterações dos níveis de IgA nas mucosas e redução da concentração amniótica de ácido ascórbico capaz de favorecer a rotura prematura das membranas.9 Por isso, é necessária a utilização de intervenções intensivas contra esse hábito entre gestantes, que vão além do aconselhamento. Isso se torna ainda mais significativo se se considerar que a cessação do taba-

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gismo é benéfica em qualquer momento da gravidez, ainda que o benefício seja inversamente proporcional à idade gestacional em que o hábito é interrompido.1

Alcoolismo Os efeitos nocivos do etanol sobre o feto dependem da dose diária ingerida e de fatores individuais maternos, sendo mais grave quanto mais no início estiver a gravidez. A ingestão de pequenas quantidades de álcool durante a gestação pode ser deletéria, não existindo consenso se existe quantidade mínima que não seja nociva. A incidência de malformações e abortamentos espontâneos é maior em bebedoras moderadas.10 O risco maior ou menor da exposição fetal ao etanol relaciona-se ao padrão de seu uso, isto é, se a sua ingestão se faz com: volume grande de uma vez só ou constante e cotidiano; intensidade leve, moderada ou intensa; o uso de outras drogas; a história pregressa de síndrome alcoólica fetal (recorrente em 75% das vezes); a existência de alcoolistas na família; a adesão da gestante ao pré-natal; e a condição social da mulher.10 A placenta e o fígado fetal têm capacidade limitada para metabolização do álcool, de modo que a sua depuração se dá primordialmente por retorno à circulação materna. No entanto, o álcool cruza a placenta e alcança feto e líquido amniótico. Cerca de uma hora após ser ingerido, o etanol no sangue fetal e no líquido amniótico encontra-se em concentrações equivalentes às do sangue materno. O acetaldeído também cruza a placenta, mas a sua concentração fetal e amniótica é variável.10 Os danos relacionados à exposição da mulher ao álcool no período periconcepcional podem ser de natureza citotóxica ou mutagênica, capazes de induzir alterações cromossômicas graves. Observa-se que no primeiro trimestre há risco de malformações e dismorfismo facial;10 no segundo trimestre, aumenta a incidência de abortamento espontâneo e; no terceiro trimestre, ocorrem lesões em outros tecidos, especialmente cerebelo, hipocampo e córtex pré-frontal. Pode ainda determinar restrição de crescimento intrauterino, alto risco de doenças infecciosas, descolamento prematuro de placenta, hipertonia uterina, trabalho de parto pré-termo e sofrimento fetal agudo intraparto.10 A ingestão do álcool pela gestante provoca alterações na transferência placentária de aminoácidos essenciais, hipóxia fetal crônica por vasoconstricção dos vasos placentários e umbilicais, proliferação ce-


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lular indiferenciada em todo o sistema nervoso central do feto, disfunção hormonal em todas as glândulas de secreção interna e acúmulo de etil-ésteres de ácidos graxos nos vários tecidos fetais, secundário à imaturidade hepática. As consequências são o atraso no crescimento intrauterino e malformações fetais.11 A síndrome alcoólica fetal (SAF) ocorre em cerca de 6% das gestantes alcoolistas e se caracteriza por danos ao sistema nervoso central capaz de induzir anomalias neurológicas e craniofaciais, por deficiência no crescimento pré e pós-natal, por disfunções comportamentais e malformações.10 Mesmo crianças sem critérios diagnósticos de SAF, mas expostas intrauterinamente ao álcool, apresentam dificuldades comportamentais e emocionais que interferem no seu convívio social, escolar e doméstico. Essas crianças apresentam capacidade de adaptação e habilidades abaixo da média em relação a indivíduos da mesma idade nascidos de mães não alcoolistas e demonstram problemas de socialização e comunicação. Podem também desenvolver desajustes comportamentais significativos, como impulsividade e promiscuidade.10 A exposição ao álcool favorece agravos também à saúde da mãe, como doenças cardiovasculares, câncer, depressão e distúrbios neurológicos, os quais podem tornar a gestação um evento de risco. Além disso, está associada ao ganho de peso gestacional insuficiente, reduzido número de consultas no pré-natal, mais probabilidade de utilização de outras drogas e mais vulnerabilidade a doenças sexualmente transmissíveis.12

Diabetes mellitus Gravidez e diabetes mellitus são complicadores mútuos um do outro. Portanto, a concepção na mulher com diabetes mellitus ou com fatores de risco para o seu desenvolvimento deve ser cuidadosamente planejada.1 O diabetes mellitus, quando associado à gravidez, pode ser classificado como gestacional, se diagnosticado durante a gestação, e pré-gestacional, se a mulher já o tinha diagnosticado previamente.1,13 Considera-se o diagnóstico de diabetes mellitus prévio se a glicemia de jejum ao início do pré-natal for igual ou superior a 126 mg/dL, bem como a hemoglobina glicada maior ou igual a 6,5%.1,13,14 Não obstante, a Associação Internacional de Diabetes recomenda que, no caso de não haver diagnóstico evidente de diabetes mellitus (glicemia de jejum maior que 125 mg%), taxas a partir de 92 mg% em grávidas devam

ser diagnosticadas como diabete gestacional. No caso de valores inferiores a 92 mg%, realizar teste oral de tolerância à glicose entre 24 e 28 semanas de gravidez. Em caso de glicemia pós-sobrecarga com 75 g de glicose maior ou igual a 180 mg% na primeira hora, ou 153 mg% na segunda hora, diagnosticar como diabete gestacional.14 Cerca de 10% das gestantes já são diabéticas antes da concepção. Nas gestações complicadas pelo diabetes mellitus, a hiperglicemia materno-fetal induz à fetopatia diabética, caracterizada por aumento na produção de insulina, hipertrofia e hiperplasia das células β-pancreáticas com consequente organomegalia e macrossomia fetal.13 O excesso de glicose, aminoácidos e lipídios maternos é transferido integralmente ao feto, estimulando o aumento de peso fetal. Apesar das evidências de que a hiperglicemia materna é fator determinante do crescimento fetal, outros elementos como triglicérides, aminoácidos, ácidos graxos livres, cetonas, insulina, alguns hormônios, fatores de crescimento insulina-símile e leptina também foram reconhecidos como agentes causais de crescimento fetal exagerado, de modo que mesmo em condição euglicêmica, a grávida com diabetes mellitus tem mais probabilidade de gerar fetos macrossômicos.15 No período organogênico da gravidez, o controle glicêmico inadequado pode contribuir para a ocorrência de vários problemas, sendo especialmente conhecido o crescimento fetal exagerado e consequentes distócias de parto, mas também cardiomiopatia hipertrófica, atraso na maturação pulmonar fetal, policitemia contribuindo para hiperbilirrubinemia neonatal, bem como outros distúrbios metabólicos neonatais como hipoglicemia e hipopotassemia.13 Sabe-se pouco, entretanto, a respeito de em qual período da gravidez a hiperglicemia materna tem mais influencia sobre os problemas observados no período perinatal. O que se sabe é que o ganho de peso acima de 16 kg, o índice de massa corporal pré-gravídico maior ou igual a 25 kg/m2 e a média de glicemias de jejum a partir de 120 mg/dL no terceiro trimestre podem dobrar as chances de macrossomia fetal. Assim, as complicações obstétricas não dependem do tipo de diabetes mellitus, mas do rigoroso controle glicêmico e metabólico da gestante.16

Hipertensão arterial sistêmica A hipertensão arterial sistêmica pode se associar a: Rev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 568-576

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gravidez (hipertensão gestacional), com os níveis tensionais se normalizando em até 12 semanas após o parto e sem proteinúria; pré-eclâmpsia, na qual os níveis pressóricos se elevam a partir da 20ª semana de gravidez e se acompanham de proteinúria, especialmente se a tensão arterial diastólica for maior ou igual a 110 mmHg; pré-eclâmpsia sobreposta à hipertensão arterial sistêmica crônica, na qual há hipertensão antes da 20ª semana e surgimento de proteinúria e agravamento da hipertensão a partir dessa idade gestacional; e, hipertensão arterial sistêmica crônica, a qual é observada desde antes da gravidez ou da 20ª semana de gestação, podendo cursar com ou sem proteinúria, na dependência da existência ou não de lesão renal prévia (nefropatia hipertensiva) sem normalização espontânea dos níveis tensóricos, mesmo decorridas mais de 12 semanas de pós-parto.1

Observa-se, na pré-eclâmpsia sobreposta, que as complicações maternas mais incidentes são: descolamento placentário (8,4%), síndrome HELLP (8,4%), insuficiência renal aguda (3,9%), edema pulmonar (1,3%) e encefalopatia hipertensiva pós-parto (1,3%).17 A hipertensão arterial sistêmica na gravidez, a depender de sua gravidade, pode desencadear danos materno-fetais, especialmente na companhia de condições socioeconômicas desfavoráveis, morbidade obstétrica pregressa ou outras intercorrências clínicas;1 e no feto favorece o baixo crescimento intrauterino e o desenvolvimento de aterosclerose mais cedo em sua idade adulta.18 Nas mulheres com hipertensão arterial sistêmica crônica, em geral a pressão arterial sistêmica diminui no segundo trimestre e aumenta durante o terceiro trimestre até níveis um pouco acima daqueles do início da gravidez. A maioria das gestantes com hipertensão arterial sistêmica crônica subjacente demonstra melhor controle da sua pressão arterial sistêmica e, adequadamente cuidadas, evoluem com gestação sem intercorrências. Entretanto, quando comparadas com gestantes normotensas, as hipertensas crônicas têm mais probabilidade de transtornos gestacionais. Algumas agravam a hipertensão arterial sistêmica e complicações que são danosas não apenas à gravidez, mas ao próprio organismo materno, como cardiopatia hipertensiva e isquêmica, insuficiência renal, hemorragias e exsudatos retinianos. O aumento na mortalidade materna e perinatal associa-se à

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sobreposição da pré-eclâmpsia (cuja frequência é maior diante de outras alterações concomitantes como insuficiência renal), à história pregressa de pré-eclâmpsia, à obesidade, ao diabetes mellitus, à idade materna superior a 30 anos e ao tempo de duração da hipertensão arterial sistêmica crônica.17 Quanto mais cedo se inicia a hipertensão arterial sistêmica na gravidez, maior a probabilidade de que a gestação subsequente também assim evolua e mais chance de que essa hipertensão se torne crônica com aumento de morbimortalidade materno-fetal.19

Cardiopatias A gravidez é dos momentos de maior sobrecarga cardíaca, constituindo-se, entre as diversas modificações hemodinâmicas que ocorrem: o aumento do volume sanguíneo, a queda da pressão arterial e da resistência vascular sistêmicas e o aumento da frequência e débito cardíacos. Além disso, durante o trabalho de parto e puerpério, ocorre aumento adicional do débito cardíaco e da pressão arterial sistêmica, principalmente relacionado às contrações uterinas.20 Torna-se óbvio que alterações cardíacas prévias à gestação podem influenciar essas mudanças. No Brasil, a cardiopatia reumática responde por 50% das doenças do coração vistas em gestantes, caracterizada, em ordem de frequência, por estenose mitral, insuficiência mitral ou estenose aórtica.1 De modo geral, as lesões valvares obstrutivas apresentam pior prognóstico materno-fetal quando comparadas às lesões associadas à regurgitação. As lesões estenóticas apresentam evolução clínica dependente do comprometimento anatômico da lesão valvar; já o prognóstico das lesões caracterizadas por regurgitação depende do comprometimento secundário da função ventricular. Como a resistência vascular periférica e a pressão arterial sistêmica se reduzem durante a gestação, permitindo maior volume sistólico ventricular esquerdo e maior débito cardíaco, as insuficiências valvares são mais toleradas do que as estenoses, a menos que a regurgitação seja grave o suficiente para comprometer o trabalho ventricular sistólico. 21 Os eventos cardiovasculares complicadores da gestação mais comuns são a insuficiência cardíaca, os distúrbios hemorrágicos, o tromboembolismo e as arritmias.1,21 A insuficiência cardíaca pode se manifestar a partir do terceiro mês de gestação e é mais comum entre


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o quinto e o oitavo meses, época em que o volume circulatório, o débito cardíaco e cinética circulatória são maiores devido às necessidades metabólicas do concepto. Não obstante, pode ser desencadeada ou piorada na gestação a partir da descompensação de outros problemas cardiológicos que a gestante já tenha previamente, como valvopatias, hipertensão pulmonar e arritmias cardíacas, de modo que a gravidez pode potencializar o desenvolvimento ou o agravo da insuficiência cardíaca, ainda que o desfecho letal dessa complicação não seja comum na gestação.21,22 Os eventos tromboembólicos podem complicar o prognóstico em gestantes cardiopatas, especialmente se houver obstrução vascular pulmonar, e comumente relacionam-se à miocardiopatia dilatada, à fibrilação atrial crônica e à cardiopatia isquêmica.22 Quanto às disritmias cardíacas, a fibrilação atrial predispõe à ocorrência de embolias e insuficiência cardíaca, sendo indício de cardiopatia avançada. A fibrilação atrial paroxística com aumento de frequência cardíaca e diminuição da pressão arterial sistólica ventricular eleva a pressão pulmonar e contribui para promover edema pulmonar intersticial agudo.22 As cardiopatias cianóticas, independentemente de serem congênitas ou não, têm pior prognóstico em gestantes, especialmente quando cursam com hematócrito acima de 60% e agravamento da hipertensão pulmonar. 22 Outra cardiopatia importante é a doença de Chagas, uma vez que a infestação por Tripanossoma cruzi ainda varia de 2 a 11% nos centros urbanos e de 23 a 58% nas áreas rurais endêmicas. Nessas gestantes, a transmissão vertical do parasita pode alcançar até 18,5%. O prognóstico na gravidez é função direta da forma clínica da doença e, especialmente, do grau de acometimento do sistema de condução do coração, da função miocárdica ou da formação de trombos intracardíacos.1 A respeito dos problemas cardiológicos maternos, o Ministério da Saúde1 classifica as cardiopatias segundo o risco que estas impõem à gestação, como: ■■ cardiopatias com alto risco à gravidez (morbiletalidade materno-fetal entre 50% e 70%): hipertensão arterial pulmonar grave, síndrome de Eisenmenger, síndrome de Marfan com envolvimento aórtico, aneurisma da aorta, cardiopatia congênita cianogênica não operada, cardiomiopatia dilatada ou hipertrófica importante, coarctação de aorta grave; ■■ cardiopatias com risco intermediário à gravidez (mortalidade materna até 15% e morbida-

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de até 50%): cardiopatia congênita acianogênica (não operada) com repercussão hemodinâmica (estenose mitral classes III e IV, e estenose aórtica), infarto do miocárdio cicatrizado, síndrome de Marfan com aorta normal, doença de Takayasu, terapêutica anticoagulante indispensável (como em casos de prótese valvar mecânica), fibrilação atrial com insuficiência cardíaca e disfunção valvar; cardiopatias de baixo risco (risco tolerável): prolapso mitral, cardiopatias congênitas ou insuficiências valvares sem repercussão hemodinâmica, arritmia cardíaca em coração saudável e valva biológica normofuncionante.1

Epilepsia A epilepsia afeta 0,5% das gestantes, constituindo-se na doença neurológica mais frequente na gravidez.1 As repercussões da gravidez sobre a epilepsia são contraditórias, variando desde associar-se à piora clínica dos sintomas até a diminuição da frequência de crises. Os relatos de aumento das crises são associados a: hiperventilação, estresse, hipocalcemia, hiponatremia e insuficiente concentração sanguínea da medicação anticonvulsivante devido à hemodiluição fisiológica da gravidez;23 enquanto que os que se relacionam à melhora das convulsões referem-se à possibilidade de mais adesão ao tratamento e mais regularidade no uso da medicação pelas gestantes.1,23 Outros relatos afirmam que 60 a 83% das grávidas não apresentam alterações significativas da frequência de crises epilépticas.23,24 O Ministério da Saúde admite que a epilepsia não tem efeito prejudicial na gravidez.1 Porém, alguns autores argumentam que, ainda que 90% dos filhos de mães epilépticas nasçam saudáveis, há mais probabilidade de ocorrência de malformações maiores em fetos de gestantes com epilepsia, atribuíveis ao tratamento anticonvulsivante, não sendo a epilepsia teratogênica per se.23 O tratamento pode, ainda, induzir depressão do sistema nervoso central (dificuldade para acordar e hipotonia) ou problemas relacionados à retirada da droga (irritabilidade, hipertonia e tremores) em recém-nascidos, uma vez que atravessam a placenta com níveis sanguíneos neonatais semelhantes aos maternos.23,24 O problema que a epilepsia e seu tratamento representam na gravidez constitui o conflito da sua abordagem, isto é, se por um lado a gravidez pode Rev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 568-576

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aumentar a ocorrência de crises convulsivas potencialmente deletérias para o feto, demandando controle farmacológico mais intensivo, o tratamento não é inócuo. O que se preconiza é o ajuste terapêutico com o mínimo potencial de afecção fetal (monoterapia principalmente) e máximo efeito preventivo da ocorrência de convulsões associado a condutas que permitam a proteção fetal como o uso de vitamina K para reduzir a vulnerabilidade às hemorragias intracranianas potencialmente induzíveis por anticonvulsivantes, uso de ácido fólico na tentativa de se contrapor às malformações neurológicas devido às drogas antiepilépticas e suporte adequado à gestante durante as crises para minimizar hipoxemias fetais agudas.24-27 Em síntese, as crises convulsivas na gestação podem fazer mal tanto ao feto quanto à gestante e seu tratamento também. Portanto, ao mesmo tempo em que tais crises devem ser evitadas e controladas com rigor, é preciso a abordagem farmacológica minimamente deletéria. Ou seja, o tratamento deve ter boa eficiência no sentido de controlar bem as crises convulsivas à custa da mínima toxicidade medicamentosa possível.24-27 A esse respeito, a atuação transprofissional entre pré-natalista e neurologista é de grande ajuda.

Pré-eclâmpsia A pré-eclâmpsia complica 2 a 8% das gestações na América Latina e Caribe e responde por 26% da mortalidade materna. Além disso, favorece a ocorrência de parto pré-termo e de restrição do crescimento fetal. Sua incidência tem aumentado juntamente com condições predisponentes como obesidade, diabetes mellitus e hipertensão arterial sistêmica crônica. É a condição em que a hipertensão arterial sistêmica determina seus piores prognósticos gestacionais.28,29 Sua causa ainda não foi esclarecida, mas especula-se sobre defeitos no processo de placentação e sobre a combinação de fatores genéticos, imunológicos e ambientais a determinar anormalidades vasculares trofoblásticas.28,29 Na hipertensão arterial sistêmica, embora possa ser apenas um sintoma adaptativo e transitório do organismo diante do complexo metabólico que define a pré-eclâmpsia e não seja indicador isolado para seu diagnóstico, os níveis da pressão arterial sistêmica são usados como parte dos critérios de determinação clínica da sua intensidade.1,28 Assim, classifica-se a pré-eclâmpsia em leve quando há aumento da tensão arterial sistêmica sistólica

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em 30 mmHg ou da diastólica em 15 mmHg na vigência de níveis pressóricos acima de 140 x 90 mmHg após a 20ª semana de gestação, com diastólica inferior a 110 mmHg; proteinúria de 24 horas acima de 300 mg, mas inferior a 2 g/L; e ausência de sinais clínicos ou laboratoriais de comprometimento sistêmico materno ou fetal grave.1 Na pré-eclâmpsia grave a tensão arterial sistêmica diastólica costuma ser mais alta que 110 mmHg; a proteinúria de 24 horas ultrapassa 2 g/L; pode haver dor no abdome superior, alterações visuais, exacerbação dos reflexos tendinosos profundos, cefaleia, alterações comportamentais, dispneia e sinais de congestão pulmonar; volume urinário inferior a 400 mL em 24 horas ou 100 mL em quatro horas; plaquetometria inferior a 100.000/mm³; elevação de enzimas hepáticas e deidrogenase lática; esquizocitose; e restrição do crescimento fetal. A hiperuricemia acima de 6 mg% também é vista em casos de pré-eclâmpsia.1

Aloimunização A doença hemolítica perinatal, secundária à sensibilização materna por antígenos eritrocitários, representa não só a causa principal, mas, sobretudo, a mais evitável de anemia fetal e neonatal. Contudo, ainda permanece como fator importante de morbidade perinatal, responsável por inúmeras perdas fetais e neonatais.30 O fator Rh presente em hemácias de algumas pessoas pode conter ou não uma subunidade chamada fator Du. A sensibilização decorre do contato de mulher sem a subunidade Du com essa mesma subunidade presente na superfície de hemácia que entra em sua circulação em quantidade superior a 0,1 mL. Isso pode ocorrer quando mulher Du negativo engravida de parceiro Du positivo e gera um embrião Du positivo, cujas hemácias alcançam a circulação materna sensibilizando imunologicamente a mulher contra o fator Du, que, nesse caso, exerce papel antigênico. Desse modo, a mulher poderá produzir anticorpos antiDu, os quais poderão agredir as hemácias de um feto Du positivo. As principais causas desse contato sanguíneo materno-fetal são os abortamentos e os partos, podendo ocorrer também em situações de transfusão sanguínea.30 Considerando que no primeiro contato com o fator Du a gestante torna-se sensibilizada e que, a partir do segundo contato, os anticorpos gerados por essa sensibilização tornam-se capazes de hemolisar hemácias portadoras do antígeno Du, a doença


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hemolítica fetal ou neonatal induzida por aloimunização Rh é mais comum a partir da segunda gestação de fetos Du positivo em gestantes Du negativo.30 Assim, quando uma mulher sensibilizada (portadora de IgG antiDu) gera um feto Du positivo, a imunoglobulina presente na circulação materna atravessa a placenta e liga-se às hemácias com antígeno Du do feto. Por se tratar de imunoglobulina hemolítica, inicia-se progressivamente a destruição de hemácias fetais, levando à anemia do concepto por hemólise. O feto responde com aumento da eritroblastose, promovendo focos medulares e extramedulares de hematopoese, gerando hepatoesplenomegalia e aumento da pressão na circulação portal. Essa situação associa-se à queda de pressão oncótica e resulta em ascite, seguida de insuficiência cardíaca que agrava o surgimento de efusões pleurais e pericárdicas. Estabelece-se a hidropisia fetal imunitária, que poderá evoluir para óbito caso o processo não seja interrompido.30 Ainda que exista recurso imunobiológico para impedir a formação de IgG antiDu materna e a sua disponibilidade para acesso a todas as gestantes que dela necessitarem, o mesmo não é alcançado por muitas delas e a afecção fetal por esse agravo continua grassando em nosso meio.30 Essa informação alerta para a necessidade de qualificar a atenção técnica e logística prestada ao problema da aloimunização em nosso meio, a qual pode ser indicador da persistência de problemas assistenciais que fazem com que o cuidado pré-natal no Brasil, de modo geral, ainda demande progresso em vários aspectos, especialmente na atenção à gestação de alto risco.

Infecção pelo HIV A prevalência da infecção pelo HIV entre gestantes no Brasil encontra-se ao redor de 0,4%.31 Em 95% das crianças que vivem com o HIV no mundo a infecção foi contraída por ocasião da gravidez, do parto ou do aleitamento materno.31 Sem intervenção médica, a transmissão vertical do HIV ocorre em 25,5% das gravidezes de mães infectadas. Entretanto, por meio do uso de antirretrovirais no pré-natal, contraindicação à amamentação e definição da via de parto baseada na carga viral determinada no terceiro trimestre da gestação, a transmissão pode ser inferior a 2%.31 A patogênese da transmissão vertical do HIV está relacionada a múltiplos fatores, como: carga viral materna,

condição clínica e social da mãe, uso de antirretrovirais durante a gestação, ocorrência de agravos gestacionais e às condições de amamentação. De todas as medidas preventivas, a mais eficaz é a redução da carga viral materna por meio do uso de antirretrovirais no pré-natal.1,31 O fato é que há evidências de que carga viral materna inferior a 1.000 cópias/mL no momento do parto é preditor de baixa transmissibilidade vertical. Como é comum cargas virais elevadas na fase aguda da infecção pelo HIV, a gestante que adquire o VIH junto com a respectiva gravidez demanda mais atenção contra a transmissão vertical.31 No outro extremo, degeneração imune avançada pelo HIV numa mulher grávida, também costuma cursar com carga viral elevada, o que aumenta significativamente a probabilidade de transmissão vertical e do desencadeamento de outras complicações à gestação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Problemas de ordem biológica, psicológica ou social vividos pela gestante podem colocar em risco a saúde ou a vida materno-fetal. Os profissionais da assistência à grávida, ao parto e ao recém-nascido precisam oferecer abordagem integral e transprofissional centrada na pessoa. Nos casos caracterizados como gestação de alto risco, é importante que se garanta o acesso da gestante a recursos, profissionais e serviços especializados por meio de modelo assistencial hierarquizado, organizado num sistema capaz de garantir a integralidade do cuidado em todos os níveis de complexidade necessários.32 No ambiente da atenção primária de saúde, é estratégico e factível o rastreamento de potenciais agravantes da gestação, com destaque para a condição social, ambiental, psicológica e de saúde orgânica da gestante e para seus antecedentes pessoais e familiares. Igualmente importante é o acompanhamento da evolução clínica da gestação em si, correlacionando essa evolução com os aspectos destacados anteriormente e valorizando a promoção da saúde não menos que os outros aspectos do cuidado.

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ARTIGO DE REVISÃO

Importância e bases de um programa de controle e prevenção de infecção em unidade de terapia intensiva geral Importance and bases of a program for the control and prevention of infection in the general intensive care unit Ronaldo Afonso Torres1, Bruna Ribeiro Torres2

DOI: 10.5935/2238-3182.20150125

RESUMO Introdução: as Unidades de Terapia Intensiva (UTI) são destinadas a monitorização e suporte avançado de vida, utilizando tecnologia avançada e recursos invasivos que favorecem dois desfechos inoportunos: infecção e iatrogenia. Objetivo: avaliar a importância e as bases de um Programa de Controle e Prevenção de Infecção Hospitalar, a fim de criar ambiente seguro e integrado à atividade profissional diária. Métodos: realizada sistematização dos processos essenciais usados em UTI por intermédio de revisão bibliográfica e com base na legislação vigente, com o fim de propor métricas para avaliação dos resultados das medidas instituídas. Conclusão: o processo de prevenção e controle das infecções em UTI depende da vigilância epidemiológica, da análise das melhorias a serem implantadas, da criação de protocolos, do treinamento e do desenvolvimento da equipe, bem como da reavaliação contínua dos resultados e da divulgação para toda a equipe.

1 Médico. Especialista em Terapia Intensiva Pediátrica. Coordenador da UTI Neonatal e Pediátrica e da Comissão de Controle de Infecção Hospitalar do Hospital Santa Isabel. Ubá, MG – Brasil. 2 Acadêmica do Curso de Medicina da Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde de Juiz de Fora-SUPREMA. Juiz de Fora, MG – Brasil.

Palavras-chave: Unidades de Terapia Intensiva; Infecção Hospitalar/prevenção & controle; Controle de Infecções; Assistência ao Paciente; Indicadores de Serviços. ABSTRACT Introduction: the Intensive Care Units (UTI) are aimed at monitoring and advanced life support, using advanced technology and invasive resources that favor two unwelcoming outcomes: infection and iatrogeny. Objective: to evaluate the importance and foundations of a Program for the Control and Prevention of Hospital Infection in order to create a safe and integrated environment into the daily professional activity. Methods: the systematization of key processes used in the UTI was evaluated through a literature review and based on the current legislation in order to propose metrics to evaluate the results from imposed measures. Conclusion: the process of prevention and control of UTI infections depends on the epidemiological surveillance, analysis of improvements to be implemented, creation of protocols, training and staff development, ongoing review of results, and dissemination of information to the entire team. Key words: Intensive Care Units; Cross Infection/prevention & control; Patient Care; Infection Control; Indicators of Health Services.

INTRODUÇÃO

Recebido em: 22/03/2014 Aprovado em: 10/11/2015

As Unidades de Terapia Intensiva (UTI) foram desenvolvidas para prover principalmente dois serviços aos pacientes criticamente doentes: suporte de vida e monitorização intensiva. Nesse contexto, tais unidades representam 10 a 15% dos leitos hospitalares. A UTI é o local reservado para tratamento de pacientes graves, repre-

Instituição: Hospital Santa Isabel Ubá, MG – Brasil Autor correspondente: Ronaldo Afonso Torres E-mail: rafonsotorres@yahoo.com.br / ronaldo.torres@ufv.br

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sentando um dos serviços mais complexos do ambiente hospitalar em consequência aos equipamentos utilizados, à tecnologia disponível, à gravidade dos pacientes internados e aos procedimentos invasivos a que são submetidos.1,2 Tais situações aumentam a probabilidade de desfechos inoportunos, em particular iatrogenia e infecções nosocomiais, sendo que as infecções correspondem a 20 a 30% de todos os casos hospitalares. Vários fatores de risco para infecção têm sido identificados, estando entre os mais importantes: gravidade da doença de base, doenças adjacentes, grau de comprometimento das defesas, procedimentos invasivos, permanência prolongada, politraumatismo, complicações iatrogênicas, superlotação das unidades, uso abusivo e inapropriado de antibióticos.3,4 O Ministério da Saúde (MS), por meio da Portaria n° 2.616 de 12 de maio de 1998, determina como parte da vigilância epidemiológica a contínua e sistemática coleta, análise e interpretação de dados essenciais para o planejamento, implementação e avaliação das práticas de saúde, perfeitamente integradas com a disseminação em tempo real para aqueles que precisam saber desses dados.2,5 A partir da mesma Portaria, o MS define infecção hospitalar (IH) como aquela adquirida após a internação do paciente e que se manifesta durante a internação ou mesmo após a alta – quando puder ser relacionada à internação ou a procedimentos hospitalares. As mais altas taxas de IH são observadas em pacientes nos extremos da idade e nos serviços de Oncologia, Cirurgia e Terapia Intensiva, porém podem variar conforme os tipos de serviços oferecidos, a tecnologia utilizada na assistência ou, ainda, o perfil dos pacientes atendidos.1,5,6 Atualmente, as infecções hospitalares são denominadas “infecções relacionadas à assistência à saúde (IRAS)” e são definidas como condições sistêmicas ou localizadas resultantes de reações adversas a agentes infecciosos que não estavam presentes ou em período de incubação à admissão do paciente no ambiente assistencial.7 Existem três principais forças que estão envolvidas nas IRAS: a primeira é o uso excessivo de antimicrobianos; a segunda é a falha na adoção de medidas básicas de controle, tais como higienização das mãos; a terceira é constituída por pacientes hospitalizados com sistema imune muito comprometido.8 Isso posto, propõe-se um programa de controle de prevenção de IRAS em UTI. Essa proposta é baseada em cinco eixos:

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descrever o processo assistencial, que é foco do programa de prevenção, aplicando as normas legais e técnicas cabíveis; identificar, em cada etapa do processo descrito, as potenciais falhas que podem determinar a ocorrência de IRAS; entender e especificar como as falhas identificadas podem determinar a ocorrência de IRAS; propor ações de prevenção para cada potencial falha identificada de acordo com as normas legais e técnicas; propor medidas métricas para acompanhamento da efetividade das ações.

METODOLOGIA A abordagem utilizada na realização deste trabalho constitui estudo de natureza qualitativa, exploratória e documental. Para tanto, foi realizada revisão bibliográfica nas principais bases de dados indexadoras, SciELO e Pubmed, bem como em livros-textos e em websites de instituições destinadas à prevenção e controle de infecção hospitalar. As palavras-chave utilizadas foram: UTI; infecção hospitalar; prevenção e controle; assistência; bechmarking; indicadores de serviços. Foram priorizados os artigos mais recentes com aplicabilidades mais coerentes com a prática atual, com alto nível de evidência e consensos das sociedades médicas. Foram investigadas as estratégias de monitoramento das unidades e uso de métricas para acompanhamento da conformidade e adesão às medidas, incluindo: visita técnica, dimensionamento da equipe, higienização das mãos, protocolos clínicos, uso racional de antimicrobianos e prevenção de infecções relacionadas aos procedimentos invasivos.

DISCUSSÃO A visita técnica procura avaliar se a estrutura física de uma UTI geral está adequada, isto é, em conformidade com as regulamentações da RDC 50/02.9,10 A superlotação compromete as especificações do espaço físico, bem como o dimensionamento da equipe multidisciplinar. Cabe destacar que a RCD 07 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) estratifica a necessidade mínima de profissionais sem correlacioná-la com a gravidade dos pacientes atendidos.11,12


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Conforme Nogueira et al.12, em 2013, a carga de trabalho e alocação de recursos humanos pode ser avaliada com auxílio de sistemas de escores como o Nursing Activities Score (NAS), que visa medir o tempo de assistência da equipe de enfermagem requerido pelos pacientes internados em UTI. Esse instrumento apresenta o total de 23 itens, que inclui medidas como monitorização e controle, atividade administrativa e gerencial, investigação laboratorial, medicamentos, procedimentos com higiene, mobilização, posicionamento, entre outras.12,13 Souza et al.14 consideram que a taxa de ocupação ideal está entre 75 e 90%, com o uso frequente dos recursos investidos na criação e manutenção da UTI, enquanto taxas acima de 90% influenciam de forma a sobrecarregar o trabalho, aumentando riscos aos pacientes e o aparecimento de síndrome de Burnout. A limpeza da UTI objetiva promover remoção de sujidades e descontaminação de superfícies, bem como garantir ambiente de trabalho agradável. Os produtos germicidas a serem utilizados devem ser determinados pela Comissão de Controle de Infecção Hospitalar (CCIH), bem como a frequência e a rotina de limpeza. Sua falha associa-se ao aumento do risco de contaminação dos pacientes.15 É necessário conscientizar e treinar toda a equipe para total adesão ao protocolo de higienização das mãos, que deve ser realizada ao entrar na UTI, quando houver sujidade visível, antes e após refeições e uso do sanitário, depois da retirada de luvas entalcadas. O uso do álcool-gel deve seguir os cinco momentos prioritários recomendados pelo Guidelines for Hand Hygiene in Health-Care Settings, publicado em 2009 pelo Centers for Disease Control and Prevention: antes e após contato com paciente, após contato com área do paciente, após risco de exposição a substâncias orgânicas, antes de procedimentos invasivos.16 Para sua efetividade, a fricção do produto deve ser feita com volume suficiente para manter o processo por 20 segundos. A disponibilidade dos dispensadores na beira do leito e em pontos estratégicos permite economia de tempo em relação à lavagem das mãos, sobretudo em UTI, local em que ocorrem 30 oportunidades por hora para higienização das mãos. O cumprimento das recomendações do protocolo pode ser monitorado com base no cálculo da taxa de consumo de álcool.17,18 Os protocolos de precaução-padrão, contato e respiratório, devem estar bem definidos. Os pacientes provenientes de outras instituições devem ser mantidos em precaução de contato até as cul-

turas de superfície estarem disponíveis, a fim de excluir a colonização por flora multirresistente ou não habitual na unidade. Definida a necessidade de precaução de contato e/ou respiratória, a CCIH deve ser comunicada para acompanhamento e avaliação da necessidade de continuidade. As unidades que apresentem altas taxas de microrganismos multirresistentes devem sistematizar a descolonização com uso de mupirocina nasal por cinco dias e banho diário com clorexidina durante toda internação como demonstrado nos trabalhos de Huang et al.19 e Chen et al.20 em 2013. A antibioticoterapia requer cuidado especial devido ao risco de seu uso de forma indiscriminada, o que exige sua administração com prudência como medida essencial para minimizar a emergência de microrganismos antibiótico-resistentes no ambiente hospitalar. O uso inadequado de antibióticos associa-se não só à escolha errada, mas também à inadequação de dose, intervalo e tempo de tratamento. É preciso coletar culturas para investigação da etiologia e da sensibilidade antimicrobiana, não apenas para permitir desescalonamento do esquema empírico inicial, mas também para conhecimento da microbiota prevalente na UTI. A utilização de taxa de inadequação de uso de antimicrobianos pode ser usada como medida métrica e permite avaliar a progressão do serviço na utilização correta dos mesmos.4,10 A ocorrência de pneumonia associada à ventilação mecânica (PAVM) é das complicações mais importantes em UTI, repercutindo significativamente nos custos hospitalares e no prolongamento das internações. A higienização das mãos dos membros da equipe e a desinfecção adequada dos equipamentos ventilatórios são fundamentais para sua prevenção. Para prevenir essa complicação, recomenda-se elevar a cabeceira da cama entre 30 e 45º, manter a pressão do balonete do tubo em 20 mmHg, descontaminar a cavidade bucal com clorexidina e descartar periodicamente o condensado dos circuitos de ventilação mecânica, manuseando-o como material contaminado e evitando que seja aspirado para vias aéreas inferiores. Definida a existência de PAVM, deve-se iniciar antimicrobianos e mantê-los por oito dias ou, se necessário, por mais tempo.21,22 Para minimizar a ocorrência de infecção da corrente sanguínea associada a cateteres vasculares centrais, é necessária a máxima proteção na sua inserção. Após a escovação das mãos, o profissioRev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 577-582

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nal deve estar paramentado com gorro, máscara e capote estéril; a assepsia da pele do paciente deve ser feita com clorexidina, escolhendo como ponto de inserção preferencialmente a veia subclávia. Deve-se fazer um curativo com gaze ou material transparente estéril semipermeável e protegê-lo durante o banho, trocando-o quando estiver sujo, solto ou úmido, usando clorexidina no processo. Antes de manusear o cateter deve ser feita higienização das mãos e, ao manipular as conexões, usar álcool a 70%.23 Para minimizar os episódios de infecções de trato urinário associados à sondagem vesical de demora, a medida mais efetiva é avaliar a sua real necessidade. Se optar pela sondagem, utilizar técnica asséptica, seguindo as precauções-padrão durante a realização da higiene íntima, e manter rigorosa higiene diária da região perianal com água e sabão comum. A necessidade de manter a sondagem deve ser avaliada continuamente. A métrica usada deve ter como denominador o número de invasividades por dia, que corrige o risco pelo tempo de uso da referida invasividade, referindo-se ao indicador como densidade de incidência (DI).24 Em 2012, o Institute for Healthcare Improvement criou o conceito de bundle, um conjunto de três a cinco intervenções que, usadas conjuntamente, melhoram a qualidade assistencial em relação aos processos invasivos e minimizam a ocorrência das complicações infecciosas.25 As intervenções para cada bundle estão descritas na Tabela 1.

A CCIH deverá manter visitas diárias de busca ativa e fazer relatórios quadrimestrais que permitam a análise continuada das taxas de ocupação e de infecção, do uso de invasividades e do perfil microbiológico. A ausência de protocolos clínicos bem definidos dificulta estabelecer o padrão de tratamento baseado em evidências científicas, determina internações prolongadas e mais utilização de invasividades, bem como de esquemas antimicrobianos com baixa fundamentação científica. Caso a UTI não tenha protocolos clínicos, devem ser estimuladas a sua elaboração e a implementação. O acompanhamento dos casos e da adesão às medidas preventivas pode ser feito a partir das métricas, permitindo avaliar a evolução das taxas e as correções necessárias. Além disso, correspondem a dados com valor epidemiológico, pois permitem a comparação com resultados evolutivos de serviços de instituições semelhantes (bechmarking) e o conhecimento das doenças habitualmente atendidas na UTI. O estímulo à educação continuada da equipe multidisciplinar associa-se à melhoria assistencial e permite reduzir o tempo de internação, a superlotação e as taxas de infecção. A qualidade dos registros da equipe também deve ser prezada como forma de garantir que toda a equipe esteja bem informada sobre as propostas propedêuticas e terapêuticas e como forma de favorecer a qualidade do atendimento sequencial. A síntese das atividades envolvidas no programa de prevenção de infecção em UTI encontra-se na Tabela 2.

Tabela 1 - Intervenções recomendadas para cada Bundle Cabeceira da cama a 30-45º.

CONCLUSÃO

Higienização bucal com clorexidina.

Assistência ventilatória

Profilaxia de trombose venosa. Profilaxia de hemorragia digestiva. Interrupção diária da sedação. Avaliação de possível extubação.

Acesso venoso central

Optar preferencialmente pela veia subclávia, tendo acesso pela jugular interna como segunda opção. Máxima barreira de proteção na inserção. Analisar diariamente sinais flogísticos. Analisar necessidade do acesso e sua continuidade. Avaliar necessidade de sondagem.

Sondagem vesical de demora

Máximo cuidado na inserção. Fixação adequada. Higienização diária. Avaliar continuidade da sondagem.

Fonte: Institute for Healthcare Improvement. 25

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A adesão às medidas rotineiras de precaução, higienização adequada das mãos e criação de protocolos assistenciais associadas à vigilância epidemiológica resulta em melhoria assistencial e redução das taxas de infecção. Para garantia de sucesso duradouro, é fundamental o envolvimento de toda equipe. Com o objetivo de melhorar a qualidade assistencial, é adequado estabelecer na equipe multiprofissional conceito de Programa de Segurança, que se baseia em melhorar o compartilhamento das informações entre os membros, reordenar o trabalho e monitorizar procedimentos e indicadores. Deve ser utilizado o princípio dos quatro componentes: envolver a equipe, educar com base em evidências, executar a proposta e medir os resultados.


Importância e bases de um programa de controle e prevenção de infecção em unidade de terapia intensiva geral

Tabela 2 - Síntese da proposta de Programa de Prevenção de Infecções Relacionadas à Assistência à Saúde em Unidade de Terapia Intensiva Atividade realizada durante o processo assistencial

Falhas que podem ocorrer durante a realização

Ações para prevenir a ocorrência da falha

Periodicidade da realização da ação

Referencial teórico para a recomendação da ação

Indicador para medir a efetividade da ação

Adequação ambiental

Espaço físico inadequado; proximidade dos leitos; colonização de pacientes.

Respeitar a capacidade funcional da unidade; seguir protocolos clínicos; analisar a necessidade de internação.

Visitas diárias e emissão de relatório mensal.

Resolução da Diretoria Colegiada 07 (RDC 07).

Taxa de ocupação.

Dimensionamento da equipe

Sobrecarga de trabalho; menos adesão às medidas preventivas; queda da qualidade assistencial; síndrome de Burnout.

Avaliação do dimensionamento da enfermagem pelo escore NAS.

Cálculo diário do dimensionamento e relatório mensal de adequação.

Resolução da Diretoria Colegiada 07 (RDC 07).

Taxa de dimensionamento.

Contaminação ambiental.

Programa operacional padrão (POP) aprovado pela CCIH e treinamento da equipe de limpeza.

Diariamente.

Recomendações do Hospital Infection Control Practices Advisory Committee (HICPAC, 2008).

Taxa de não conformidade.

Aumento do risco de infecções.

Treinamento e motivação.

Visitas no início das atividades assistenciais, anuais e/ou conforme a necessidade.

Guideline for Hand Hygiene in Healthcare settings (CDC, 2009).

Taxa de consumo de álcool gel.

Colonização de pacientes.

Treinamento e protocolo.

Visitas diárias e revisão anual do protocolo.

Guideline de precauções do CDC (2007) e guideline para micróbios multirresistentes do HICPAC (2006).

Taxa de adesão às precauções.

Prescrição inadequada ou incorreta.

Treinamento, protocolo e auditoria.

Discussões diárias e revisão anual do protocolo.

Portaria n° 2.616 do Ministério da Saúde.

Taxa de inadequação dos antimicrobianos.

Invasividades

Contaminação da invasividade

Treinamento, POP e bundle.

Visitas no início das atividades assistenciais, anuais e/ou conforme a necessidade.

Diretrizes do CDC e recomendações do IHI (2012).

Taxa de infecção, taxa de infecção relacionada à invasividade, taxa de adesão às recomendações.

Vigilância epidemiológica

Falta de dados ou dados incompletos.

Busca ativa e confecção de relatório.

Busca ativa diária e relatório quadrimestral.

Portaria n° 2.616 do Ministério da Saúde.

Taxas de infecção e perfil microbiológico da unidade.

Educação continuada

Falhas no processo assistencial.

Protocolos e treinamento.

Discussões clínicas diariamente e reuniões mensais.

Recomendações do IHI (2012).

Taxas de adesão aos protocolos disponíveis

Higienização do ambiente

Higienização das mãos

Precauções

Antibioticoterapia

REFERÊNCIAS

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ARTIGO DE REVISÃO

Obesidade e microbiota intestinal Obesity and intestinal microbiota Vera Lucia Ângelo Andrade1, Liubiana Arantes de Araújo Regazzoni2, Marco Túlio Russo Moreira Moura3, Edriana Moreira Silva dos Anjos 3, Karine Aparecida de Oliveira3, Marcus Vinicius Reis Pereira3, Mayara Romes Andrade Pereira3, Nathália Ribeiro de Amorim3, Stephanne Maroun Iskandar3

DOI: 10.5935/2238-3182.20150126

RESUMO Recentes publicações realçam a possibilidade de que a composição da microbiota intestinal constitua-se em fator ambiental para o controle do peso. O objetivo deste trabalho é o de revisar de forma sistemática a literatura de artigos indexados no PubMed, Scielo, Lilacs e Cochrane, entre 2003 e 2014, sobre esse assunto. Após análise, alguns artigos foram excluídos, totalizando 25 usados como referência para a elaboração deste trabalho. Foram analisados estudos envolvendo ratos, gestantes, crianças e adultos. Os últimos trabalhos têm descrito que a microbiota afeta tanto a aquisição de nutrientes quanto a regulação da energia adquirida, questionando-se o papel da composição da microbiota na regulação do peso. A maioria das pesquisas evidenciou aumento de bactérias Firmicutes em relação aos Bacterioides em obesos. Assim, novos estudos estão em desenvolvimento para elucidar essa relação e, no futuro, a modulação da microbiota intestinal pode ser opção terapêutica para a obesidade. Palavras-chave: Microbiota; Intestinos; Obesidade; Metabolismo; Sobrepeso.

1 Médica Gastroenterologista. Doutora. Professora do Curso de Medicina da Universidade José do Rosário Vellano – Unifenas-BH. Belo Horizonte, MG – Brasil. 2 Médica. Doutora em Neuropediatria. Professora adjunta do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e Professora da Unifenas-BH. Belo Horizonte, MG – Brasil. 3 Acadêmico(a) do curso de Medicina da Unifenas-BH. Belo Horizonte, MG – Brasil.

Trabalho realizado durante a estratégia Projeto em Equipe da Faculdade de Ciências Médicas José do Rosário Vellano – UNIFENAS/BH.

ABSTRACT Recent publications highlight the possibility that the composition of the intestinal microflora constitutes an environmental factor for weight control. The objective of this study was to review systematically the literature of articles indexed in PubMed, Scielo, Lilacs, and Cochrane, between 2003 and 2014, on this subject. Some articles were excluded after analysis, totaling 25 used as a reference for the preparation of this study. Studies involving rats, pregnant women, children, and adults were analyzed. Recent studies report that the microbiota affects both the acquisition of nutrients and regulation of acquired energy questioning the role of microbiota composition in weight regulation. Most research showed an increase of Firmicutes bacteria compared to Bacteroids in the obese. Thus, further studies are in progress to clarify this relationship and in the future, the modulation of intestinal microbiota could be a therapeutic option for obesity. Key words: Microbiota, Intestines; Obesity; Metabolism; Overweight.

INTRODUÇÃO Recentemente têm-se atribuído a composição da microbiota intestinal a fatores ambientais para o controle do peso corporal.1 A microbiota intestinal humana é composta de aproximadamente 100 trilhões de bactérias envolvendo mais de mil espécies e relação de simbiose com o organismo. Ela auxilia e contribui para o metabolismo de forma geral, exercendo importante função em converter o alimento em nutrientes e energia.2 Parece que pessoas obesas e magras apresentam microbiotas

Recebido em: 29/05/2014 Aprovado em: 13/08/2014 Instituição: Universidade José do Rosário Vellano – Unifenas-BH Belo Horizonte, MG – Brasil Autor correspondente: Marco Túlio Russo Moreira Moura E-mail: marcotrusso@hotmail.com

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Obesidade e microbiota intestinal

distintas, que podem se corresponsabilizar pelo desenvolvimento da obesidade.3 A obesidade é uma doença crônica que resulta no acúmulo excessivo de gordura corporal, com consequências patológicas em médio e longo prazos.4 Tem etiologia multifatorial e considerada dos maiores problemas de saúde pública, uma vez que está associada a dois terços das mortes no mundo. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), em 2012 a obesidade estava associada à morte de 2,8 milhões de pessoas e 12% da população mundial são considerados obesos. Hoje, nos Estados Unidos (EUA), um em cada três adultos é obeso. No Brasil, a prevalência de obesos atingiu, entre 2008 e 2009, cerca de 10% da população. Estima-se que em 2025 esse índice atingirá 20%.5,6 Diante desse contexto, questiona-se se a composição da microbiota intestinal seria causa ou consequência da obesidade. Este artigo tem o objetivo de realizar revisão bibliográfica que contempla esse tema.

MÉTODOS Foram utilizadas as plataformas de pesquisa PubMed, Scielo, Lilacs e Cochrane. Por meio dos des-

critores microbiota intestinal e obesidade, que estão no DeCs e no MeSH, foram encontrados 80 artigos publicados nas línguas espanhol, inglês e português, entre os anos 2003 e 2014, dos quais foram excluídos 16 após análise do título e do resumo. Em seguida, foram excluídos 21 artigos devido a dois duplicados, um em formato de editorial e um de simpósio e 18 não tinham relação com o tema proposto, restando 25 artigos. Desses, 17 eram artigos de revisão, seis de metanálise e dois eram estudos transversais. Totalizaram-se, assim, 25 artigos utilizados como referência para a elaboração deste artigo (Figura 1).

DESENVOLVIMENTO A obesidade é uma doença crônica e problema de saúde pública, caracterizada pelo excesso de gordura corporal, levando a várias consequências prejudiciais à saúde.4 Isso ocorre quando a ingestão de energia é maior que seu gasto.7 Está associada a fatores genéticos, endócrinos, sociais, ambientais e psicogênicos.8 De acordo com a OMS, os fatores alimentares e a falta de atividade física são os maiores responsáveis pela prevalência da obesidade na população.

Artigos identificados através de pesquisa de banco de dados (LILACS, PubMed e Scielo) (n=76)

Artigos adicionais identificados através de outras fontes (Cochrane, OMS) (n=4)

Artigos excluídos (n=21)

Repetição Editorial Simpósio

Artigos lidos (n=59)

Artigos excluídos (n=34)

Artigos completos acessados por elegibilidade (n=25)

Mentanálise (n=5) Estudo transversal (n=2) Artigos de revisão (n=18)

Estudos excluídos na síntese (n=9) Figura 1 - Metodologia do trabalho obesidade e microbiota intestinal: causa ou consequência? Fonte: dados coletados no presente estudo.

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Obesidade e microbiota intestinal

O sobrepeso está associado a outras doenças como síndrome metabólica, diabetes mellitus tipo 2, dislipidemias e hipertensão arterial sistêmica, que influenciam a qualidade de vida do indivíduo.7 Além disso, a obesidade pode levar a distúrbios psicossociais, depressão, transtornos de ansiedade e alteração de imagem corporal. Todos esses fatores confirmam que o acúmulo de gordura corporal é grave problema mundial, levando ao aumento substancial dos recursos de saúde e elevados custos econômicos.2 Existem vários métodos para o tratamento de obesidade, que se baseiam em orientações de atividade física, tratamento psicológico, farmacológico, cirúrgico e nutricional.8 Apesar desses métodos, a solução para a obesidade continua sendo desafio para a Medicina. Vários estudos estão sendo realizados na tentativa de encontrar novas alternativas para o tratamento da obesidade, sendo um deles o uso da microbiota intestinal, por intermédio do transplante de fezes entre pessoas magras e obesas. O trato gastrintestinal abriga o maior número e a maior diversidade de espécies que colonizam o indivíduo. Quantitativamente, há cerca de 100 trilhões de bactérias, o que totaliza aproximadamente 10 vezes o número total de células humanas9 e, em variedade, são envolvidas mais de mil espécies, cujos genomas estimam-se conter 100 vezes mais genes comparado ao genoma humano.2 Ao nascimento, o trato intestinal é estéril e a colonização da microbiota acontecerá de acordo com o tipo de parto (normal ou cesárea), a alimentação (aleitamento materno exclusivo ou artificial precoce) e pelas medidas de higiene. Aos quatro anos de idade a microbiota intestinal já atingiu sua maturidade e com o tempo ela pode ser modificada por fatores ambientais como antibioticoterapia, dieta e procedimentos cirúrgicos.10 Mais de 90% dessa composição bacteriana são representados por Bacterioides e Firmicutes. A microbiota intestinal tem distribuição heterogênea, sendo o cólon o local de maior densidade bacteriana devido às condições favoráveis para a proliferação dos microrganismos, caracterizadas por peristalse lenta, ausência de secreções intestinais e grande suprimento nutricional.2 A composição da microbiota intestinal tem grande impacto no ser humano, interferindo na expressão genética, no sistema imunológico, no risco de doenças crônicas e graves, desde diabetes mellitus até neoplasias gastrintestinais. Além disso, apresenta funções protetora, metabólica e estrutural como, por

exemplo, produção de fatores antimicrobianos, síntese de vitaminas e indução de IgA, respectivamente. A comunicação da microbiota com o sistema imune deve-se ao aumento da resposta imune inata e ao controle da inflamação por meio das vias reguladas pelos receptores Toll-simile (TRL). O papel de barreira deve-se à colonização da mucosa, prevenindo o aumento de patógenos e a anormalidade da microbiota com o uso de espaço e nutrientes, e à fortificação do revestimento por promover a sobrevida das células epiteliais. A nutrição e o metabolismo são responsáveis pela fermentação de alimentos, a qual produz ácidos graxos de cadeia curta e peptídeos antimicrobianos, inibindo o crescimento de microrganismos patogênicos.11 O desequilíbrio, ou a disbiose, gera supercrescimento bacteriano, produção de toxinas e aumento da permeabilidade intestinal, que resultam em alterações imunológicas e hormonais.12 Assim, hábitos de vida como dieta, estresse e uso de antibióticos, por exemplo, fazem com que a microbiota transitória prevaleça sobre a residente, predispondo a distúrbios gastrintestinais.13 As relações que a microbiota intestinal exercem sobre os diversos sistemas do organismo refletem também na manutenção do metabolismo. A microbiota afeta tanto a aquisição de nutrientes quanto a regulação da energia adquirida.14 Sinais microbianos regulam a liberação de fator adiposo induzido pelo jejum (Fiaf) a partir de células epiteliais do intestino, atuando como um inibidor de lipoproteína lipase (LPL) regulando o armazenamento de gordura periférica. Além disso, por mecanismos desconhecidos a microbiota regula o mediador de energia no fígado e no músculo a partir da fosforilação da proteína quinase ativada (AMPK) (Figura 2).15 Os metabólicos microbianos, como o ácido graxo de cadeia curta (SCFA), ligam-se aos receptores conjugados de proteína G (GPCRs) sobre as células epiteliais do intestino (Gpr41 e Gpr43) regulando a energia a partir de hormônios derivados do intestino, como o hormônio peptídico intestinal (PYY), e controlando a resposta inflamatória do hospedeiro. A ativação do TRL5 em epitélios ou em células mieloides afeta a composição estrutural da microbiota intestinal, o qual regula o apetite, ganho de peso e sensibilidade da insulina. Suspeita-se que a microbiota intestinal de obesos apresenta peculiaridades que possam induzir inflamação crônica. A provocação de endotoxemia em pacientes com obesidade, diabetes mellitus e resistência Rev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 583-589

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Obesidade e microbiota intestinal

à insulina ocasiona a expressão de fatores inflamatórios que se assemelham àqueles presentes em dieta rica em gordura pelo mecanismo CD14 dependente.1,7

Figura 2 - Funções da microbiota intestinal. Legenda: SCFA: ácido graxo de cadeia curta; PYY: Hormônio Peptídico Intestinal; FIAF: fator adiposo induzido pelo jejum; LPL: lipoproteína lipase; AMPK: proteína quinase ativada; TRL: receptores Toll-like; Gpr: células epiteliais do intestino; Glp: peptídeo Glucagon-like. Fonte: asaptado de Tilg H, Kaser A. Gut microbiome, obesity and metabolic dysfunction. J Clin Invest. 2011; 121(6):2126-32.

Em ratos obesos com dieta rica em gordura observa-se maior expressão de TRL4 bem como a mudança na microbiota intestinal, o que sugeriu que a ativação desse receptor poderia associar-se à hiperfagia quanto ao acúmulo de gordura corporal, caracterizando a obesidade.16 O transplante de microbiota do ceco de ratos obesos sob dieta convencional para ratos com microbiota intestinal asséptica e acompanhados por 14 dias evidenciou aumento da absorção de calorias da dieta e acúmulo de tecido adiposo, mesmo mantendo a dieta padrão rica em polissacarídeo e pobre em gordura. Observou-se, ainda, que a inibição do inibidor da lipase lipoproteica (Fiaf) foi essencial na deposição de triglicérides nos adipócitos.14 Em ratos geneticamente obesos com deficiência do receptor de leptina (ob/ob) obteve-se redução de 50% de Bac-

terioides e aumento proporcional de Firmicutes.17 Em ratos assépticos submetidos à dieta ocidental e rica em gordura não se conseguiu estabelecer a importância do Fiaf nos efeitos da microbiota intestinal no que diz respeito à deposição de gordura, mas identificou-se aumento na expressão intestinal de mRNA de inibidores de LPL, sem correspondente aumento sérico. No entanto, foi identificado que ratos submetidos à dieta ocidental e rica em gordura tiveram aumento de Firmicutes em relação aos Bacterioides.18 Em 40 crianças com idade entre quatro e cinco anos, 20 com sobrepeso e 20 com IMC dentro da faixa de normalidade, foi investigada a microbiota intestinal, revelando concentração de enterobactérias maior nos obesos, enquanto as bactérias Akkermansia muciniphila foram menores nesse grupo.19 Bervoets efetuou estudo prospectivo transversal com crianças entre seis e 16 anos, sendo 26 obesas e 27 magras. As obesas apresentaram elevada taxa de Firmicutes e maior relação entre Firmicutes e Bacterioides na comparação com as magras. Além disso, houve mais concentração de Lactobacillus spp. e baixa proporção de B. vulgatus. Nos dois grupos foi evidenciado que o Staphylococcus spp. tem relação com a maior obtenção de energia.10 Schwiertz estudou 98 voluntários, sendo 34 homens e 64 mulheres, na faixa etária entre 34 e 60 anos. Investigou o papel de ácidos graxos de cadeia curta (AGCC) e composição da microbiota da obesidade. As diferenças nas concentrações de AGCC nas fezes entre os indivíduos magros, com sobrepeso e obesidade foram consideráveis, sendo maiores em obesos do que em magros. Voluntários com excesso de peso abrigaram maiores concentrações fecais de Bacteroides do que os voluntários magros.20 A Tabela 1 apresenta uma síntese dos estudos citados neste artigo.

Tabela 1 - Análise dos estudos Autores/ Tipo de estudo

Descrição da Amostra

Objetivos

Resultados

Limitações

Backhed et al (2004) / Transversal.

Ratos com microbiota intestinal asséptica e ratos com microbiota convencional.

Avaliar a influência da colonização intestinal de ratos com microbiota asséptica na obesidade.

A transferência da microbiota cecal de ratos obesos para o intestino de ratos assépticos aumentou a absorção de calorias da dieta (p<0.05).

Não especifica o número de ratos na amostra com curto prazo de acompanhamento (14 dias).

Ley et al (2005)/ Transversal.

Ratos geneticamente obesos (ob/ob)

Avaliar a relação entre microbiota intestinal e obesidade.

Aumento de Firmicutes em microbiota de ratos obesos (p=0.0001).

Não evidencia o número de ratos na amostra. Continua…

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Obesidade e microbiota intestinal

… continuação

Tabela 1 - Análise dos estudos Autores/ Tipo de estudo

Descrição da Amostra

Objetivos

Resultados

Limitações

Fleissner et al (2010) / Ensaio Clínico.

Ratos com microbiota intestinal asséptica submetidos dois tipos de dieta.

Identificar se o tipo alimentar tem influência no aumento dos inibidores da lipase liporpotética (LPL).

A dieta rica em gordura e a dieta ocidental aumentaram a expressão intestinal de mRNA de inibidores de LPL, mas não houve aumento do mesmo (p>0.001).

Não especifica números de ratos na amostra, nem a composição das dietas citadas.

Karlsson et al (2012) / Coorte

40 crianças sendo 20 crianças com sobrepeso e 20 crianças com IMC na faixa da normalidade.

Investigar a microbiota intestinal em crianças pré-escolares com e sem excesso de peso e obesidade.

A concentração de Enterobactérias foi maior nos obesos (p=0.036) comparado às bactérias A.muciniphila (p=0,027).

Pequena amostra.

Bervoets et al (2013) / Transversal prospectivo

Crianças entre 6 e 16 anos, sendo 26 obesas e 27 com IMC dentro dos limites de normalidade.

Comparar a microbiota intestinal entre crianças obesas e magras.

A crianças obesas apresentaram uma elevada taxa de Firmicutes e maior relação entre Firmicutes e Bacteriódes em relação às crianças magras (p=0.007).

Amostra pequena e não foram considerados fatores como tipo de parto, hábitos de vida, alimentação e período que se tornaram obesas.

Schwiertz et al (2010) / Transversal.

34 homens e 64 mulheres, sendo 30 dentro da faixa normal de peso, 35 com sobrepeso e 33 obesos.

Investigar se o papel proposto de AGCC e composição da microbiota da obesidade.

Concentrações de AGCC foram maiores no grupo de obesos (p=0.024). Voluntários com sobrepeso apresentaram elevadas taxas de Bacterióides.

Distribuição desigual entre os grupos da amostra.

Filippo et al (2010) / Comparativo.

14 crianças da zona rural e 15 crianças da zona urbana.

Comparar a microbiota intestinal de crianças submetidas a uma dieta ocidental moderna e uma dieta rural.

Crianças com dieta rural apresentaram prevalência de Firmicutes e Bacteriódes (p=0.001). Maior teor ácido graxo de cadeia curta (p=0.001).

Amostra pequena e não foi especificado o conteúdo das dietas citadas.

Duncam et al (2006) / Ensaio Clínico

19 pessoas do sexo masculino obesos com idade entre 20 e 57 anos.

Analisar a composição da microbiota intestinal humana a partir de diferentes tipos de dietas.

Nunhuma mudança foi observada nas contagens dos Bacteriódes.

Amostra pequena e não especifica a composição das dietas.

Gestantes com sobrepeso apresentaram Staphilococcus e Bacteriódes (p=0.014).

Distribuição foi desigual entre os grupos estudados em pequena amostra. Historia pregressa, hábitos de vida antes da gestação não foram considerados.

Collado et al (2008) / Coorte

18 gestantes com sobrepeso e 36 com peso normal acompanhadas durante 9 meses.

Avaliar a composição da microbiota intestinal durante a gravidez.

A presença das espécies de bactérias nas fezes de 15 crianças saudáveis da zona rural da África (Burkina Faso) foi avaliada por Fillipo. A amostra foi composta de nove meninos e seis meninas e 14 crianças de mesma distribuição quanto ao sexo que residiam na área urbana de Florência, Itália, todos na faixa de um a seis anos de idade. As crianças foram submetidas à dieta da sua própria região (chamada de dieta rural e ocidental). Constatou-se que as crianças que consumiram a dieta rural apresentaram fezes com maior número de Bacterioides do que Firmicutes e elevado teor de ácidos graxos de cadeia curta, enquanto que as crianças que foram submetidas à dieta ocidental tinham fezes com maior prevalência de Firmicutes do que de Bacterioides, corroborando a hipó-

tese de que a dieta exerce influência na modulação da microbiota intestinal.21 Ducan analisou em 19 pessoas obesas masculinas e idades entre 20 e 57 anos a composição da microbiota intestinal humana em diferentes tipos de dieta, não evidenciando mudança significativa nas contagens relativas dos Bacterioides. Em contraste, o Roseburia spp., Eubacterium rectale e bifidobactérias diminuíram à medida que a ingestão de carboidratos diminuiu.22 Acompanhando 18 gestantes com sobrepeso e 36 com peso normal (de acordo com o IMC pré-gestacional) durante nove meses de gestação, Collado avaliou as diferenças da microbiota intestinal. As mulheres com sobrepeso pré-gestacional apresentaram aumento significativo de Bacterioides e Staphylococcus em reRev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 583-589

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Obesidade e microbiota intestinal

lação àquelas com peso normal. Apuraram aumento proporcional na concentração de Bacterioides, Clostridium e Staphylococcus ao aumento do sobrepeso.23 Observou-se que os grupos de Bacterioides e Firmicutes podem influenciar na obesidade. Alguns estudos demonstram maior proporção de Firmicutes em relação a Bacterioides na microbiota de obesos.10,14,17-19 Em contrapartida, Collado encontrou aumento significativo de Bacterioides, proporcional ao aumento de peso em gestantes. Schwiertz também evidenciou a prevalência de Bacterioides em adultos obesos.20,23 Além disso, Fillipo demonstrou que a composição da dieta pode interferir na seleção da microbiota intestinal, prevalecendo Bacterioides na dieta rural e Firmicutes na dieta urbana. Contudo, Ducan deparou com resultados diferentes do estudo de Fillipo ao concluir que não houve mudança significativa de Bacterioides de acordo com o tipo alimentar. Provavelmente, essa diferença se deve ao fato de o primeiro autor abordar amostra composta de crianças de ambos os sexos, enquanto o segundo autor citado aborda voluntários entre 20 e 57 anos somente masculinos. Outra possibilidade dessa divergência pode ser devido a Ducan ter incluído somente obesos em sua amostra e Fillipo não ter determinado alguma restrição quanto ao peso.21,22 Têm sido desenvolvidos novos estudos a fim de descobrir os eventos desencadeadores da obesidade e, também, soluções para esse problema. Como exemplo citam-se os estudos de Clement, os quais estão sendo realizados no Hospital Pitié Salpêtrière em Paris (França) e objetivam avaliar a adaptação da microbiota intestinal para a perda de peso e o seu papel específico na restrição energética. Cammarota pretende investigar se o transplante da microbiota fecal de doadores saudáveis magros, em associação à mudança do estilo de vida, é capaz de reduzir a resistência à insulina e tratar síndromes metabólicas.24,25

CONCLUSÃO A atuação da microbiota intestinal no desenvolvimento da obesidade é assunto da atualidade. Alguns estudos afirmam que a composição da microbiota poderia desencadear obesidade, entretanto, outros descrevem que a mesma alteraria o equilíbrio da microbiota intestinal, os dados disponíveis são controversos. A maioria das pesquisas referidas neste artigo mostra que a prevalência de Firmicutes é maior

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quando comparada à de Bacterioides na microbiota intestinal de obesos. Novos estudos estão em desenvolvimento para elucidar essa relação e possível utilização da microbiota intestinal como alternativa terapêutica para a obesidade.

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Obesidade e microbiota intestinal

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ARTIGO DE REVISÃO

Doença mental e estigma Mental illness and stigma Fábio Lopes Rocha1, Cláudia Hara2, Jorge Paprocki3

DOI: 10.5935/2238-3182.20150127

RESUMO 1 Médico Psiquiatra. Doutor em Ciências da Saúde. Coordenador da Clínica Psiquiátrica do Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais (IPSEMG). Belo Horizonte, MG – Brasil. 2 Médica Psiquiatra. Doutora em Saúde Pública - Epidemiologia. Professora de Psiquiatria da Faculdade da Saúde e Ecologia Humana (FASEH). Vespasiano, MG – Brasil. 3 Médico Psiquiatra. Belo Horizonte, MG –Brasil

Estima-se que 450 milhões de pessoas no mundo sofram de transtornos mentais, com elevado custo para indivíduos e sociedade. Percentual de 14% do fardo de doenças é atribuível aos transtornos neuropsiquiátricos, principalmente em decorrência da natureza crônica e incapacitante da depressão e de outros transtornos psiquiátricos comuns. Pessoas com doenças mentais graves lutam contra dois problemas: os sintomas, que interferem na autonomia, independência e qualidade de vida, e o estigma social. O estigma associado à doença mental é dos mais importantes e difíceis obstáculos para a recuperação e reabilitação do indivíduo; afeta negativamente o tratamento; nega oportunidade de trabalho; impede a autonomia e a realização de objetivos de vida. É capaz de prejudicar a qualidade de vida, inclusive da família e da equipe de saúde que lida com as doenças psiquiátricas. A discriminação pode ser tão incapacitante quanto a própria doença. Além disso, viver em ambiente estigmatizante frequentemente acarreta o autoestigma, que junto com o estigma são dois obstáculos fundamentais à integração social e à vida plena em sociedade. O combate ao estigma é primordial para que o portador de doença mental viva de forma independente e autônoma, tenha oportunidades de trabalho, persiga suas metas e usufrua de oportunidades com dignidade e plena inserção social. Palavras-chave: Transtornos Mentais; Saúde Mental; Discriminação Social; Estigma Social. ABSTRACT

Recebido em: 29/07/2014 Aprovado em: 18/03/2015 Instituição: Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais Belo Horizonte, MG – Brasil Autor correspondente: Fábio Lopes Rocha E-mail: rochafl@uol.com.br

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It is estimated that 450 million people worldwide suffer from mental disorders, with a high cost to individuals and society. The percentage of 14% of the disease burden is attributable to neuropsychiatric disorders, mainly due to the chronic and disabling nature of depression and other common mental disorders. People with severe mental illness fight two problems: the symptoms that interfere with their autonomy, independence, and quality of life, and the social stigma. The stigma associated with mental illness is the most important and difficult obstacle in the recovery and rehabilitation of the individual; it negatively affects the treatment; denies job opportunities; prevents autonomy and the achievement of life goals. It can impair the quality of life, including that of the family and the health team that deals with psychiatric disorders. Discrimination can be as debilitating as the disease itself. Moreover, living in a stigmatizing environment often leads to auto-stigma, which along with the disease stigma are two main obstacles to social integration and full life in society. Fighting the stigma is critical to the bearer of mental illness to live independently and autonomously, have job opportunities, pursue life goals, and take advantage of opportunities with dignity and full social integration. Key words: Mental Disorders; Mental Health; Social Discrimination; Social Stigma.

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Doença mental e estigma

INTRODUÇÃO O estigma é grande barreira para as pessoas que sofrem de transtornos mentais. Portadores de transtornos mentais graves são frequentemente evitados por amigos e familiares, discriminados por colegas de escola ou trabalho, preteridos por empregadores e locatários, vítimas de violência. São mostrados de forma caricatural e preconceituosa no cinema, televisão e na mídia impressa e, por vezes, alvo de ações policiais inadequadas. Vive-se em cultura que discrimina e segrega o portador de transtorno psiquiátrico. Estar inserido nessa cultura frequentemente acarreta a autoestigmatização por parte do indivíduo que sofre de transtorno mental. O estigma e o autoestigma são dois grandes obstáculos à integração social e à vida plena em sociedade. Dessa forma, a pessoa com transtorno mental grave sofre não só pela doença em si, mas também pelo estigma social que segrega e nega oportunidades para o trabalho e para a vida independente. Nesta revisão narrativa abordam-se a frequência e o impacto das doenças mentais, a ocorrência do estigma e suas consequências e as estratégias que podem ser instituídas para o enfretamento do estigma e autoestigma.

IMPORTÂNCIA DA DOENÇA MENTAL A magnitude, sofrimento e fardo – em termos de incapacitação e custo para os indivíduos, famílias e sociedades – relacionados às doenças mentais foram subestimados até muito recentemente. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), cerca de 450 milhões de pessoas no mundo sofrem de transtornos psiquiátricos. Aproximadamente um milhão de pessoas cometem suicídio a cada ano. Uma em cada quatro famílias tem pelo menos um membro com doença mental. Todas as pessoas têm alguém de seu relacionamento próximo - familiar ou amigos – que sofre de algum transtorno psiquiátrico. Frequentemente, os familiares são os cuidadores primários de pessoas com doenças mentais graves, com grande impacto em sua qualidade de vida e na economia doméstica.1 Levantamentos epidemiológicos comprovam a elevada prevalência das doenças mentais, sendo nos Estados Unidos da América (EUA) a sua prevalência ao longo da vida em indivíduos acima de 18 anos de idade de 46,4%. Cerca de um em cada quatro indivíduos apresenta um transtorno psiquiátrico em dado

ano, sendo 22% considerados graves. Ao final da vida, 51% dos indivíduos terão apresentado um transtorno psiquiátrico (Tabela 1).2,3 Tabela 1 - Prevalência de transtornos psiquiátricos no último ano e risco estimado aos 75 anos, EUA2,3 Transtornos Psiquiátricos

Prevalência Risco Estimado (%) (%)

Transtornos de ansiedade

18,1

31,5

Transtornos de humor

9,5

28,8

Transtornos de controle de impulso

8,9

25,4

Transtornos relacionados ao uso de substância

3,8

16,3

Total

26,2

50,8

Observou-se, apesar do sofrimento pessoal e familiar e da incapacitação relacionada aos transtornos psiquiátricos graves, que em 14 países desenvolvidos e em países subdesenvolvidos cerca de 35,5 a 50,3% e 76,3 a 85,4% dos portadores de transtornos mentais graves não receberam tratamento no último ano e não tiveram acesso ao sistema de saúde, respectivamente.4 Em termos de saúde pública, os transtornos mentais são extremamente relevantes, em virtude de sua elevada prevalência e da considerável contribuição ao fardo global das doenças, medido em relação ao número de anos perdidos por incapacidade ou por morte prematura devido a cada uma das doenças, além dos custos elevados (Tabelas 2 e 3).5 Tabela 2 - Mortalidade por todas as causas associada a transtornos mentais, comparada com a de uma amostra da população geral sem o transtorno5 Transtornos Psiquiátricos

Risco Relativo (%)

Interquartis (%)

Transtornos de personalidade

4,0

2,8–5,2

Demência (idade > 60 anos)

2,7

2,0–3,0

Transtorno bipolar

2,6

1,9–9,8

Esquizofrenia

2,6

1,9–3,6

Abuso/dependência de drogas

2,0

1,6–2,1

Transtorno do pânico

1,9

0,8–3,2

Abuso/dependência de álcool

1,8

1,5–2,0

Depressão maior

1,7

1,3–2,2

Transtorno obsessivo-compulsivo

1,1

1,1–1,7

Entre as principais categorias de doenças, as neuropsiquiátricas ocupam o primeiro lugar em relação ao fardo global das doenças, superando as doenças cardiovasculares, respiratórias, digestivas, musculoesRev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 590-596

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queléticas e as neoplasias. Entre as 14 principais doenças neuropsiquiátricas, 10 são psiquiátricas. As doenças neuropsiquiátricas são responsáveis por um terço da incapacidade determinada pelas doenças em geral, sendo a depressão aquela com maior fardo global.5 Tabela 3 - Incapacidade e custos associados a transtornos mentais5 SDS no Custo/ano em CPES § bilhões de (%) dólares nos EUA

Transtornos Psiquiátricos

GBD*

Abuso/dependência de álcool

0,16

14

226,0

Abuso/dependência de drogas

0,25

39

201,6

Depressão maior

0,35

58

97,3

Demência (idade > 60 anos)

ND

ND

76,0 70,0

Esquizofrenia

0,53

ND

Fobia simples

ND

19

11,0

Fobia social

ND

36

15,7

Transtorno bipolar

0,40

83

78,6

Transtorno obsessivo-compulsivo

0,13

47

10,6

Transtorno do pânico

0,17

47

30,4

*Peso de incapacidade no Fardo Global de Doenças (GBD - Global Burden of Disease). § Percentagem com incapacidade acentuada ou extrema de acordo com a Escala de Incapacidade de Sheehan (SDS), como utilizado nos Levantamentos Epidemiológicos Colaborativos em Psiquiatria (CPES). ND – não disponível.

Em relação a custos, o Fórum Econômico Mundial e a Escola de Saúde Pública de Harvard (2011) chamaram a atenção para o elevado custo atual das doenças não comunicáveis, isto é, doenças de longa duração, progressão lenta e que são causas maiores de morbimortalidade no adulto em todo o mundo, e para o impressionante aumento projetado para as próximas duas décadas. Estimam-se perdas acumuladas de cerca de US$ 47 trilhões envolvendo as doenças mentais, cardiovasculares, respiratórias crônicas, câncer e diabetes mellitus, o que representava aproximadamente 75% do PIB global em 2010. As doenças mentais são responsáveis pelo maior percentual dessas perdas. O custo global estimado das doenças mentais em 2010 e em 2030 representou e representará US$ 2,5 trilhões e US$ 6 trilhões, respectivamente. Esses números são impressionantes, considerando-se, por exemplo, que o gasto total em saúde no mundo em 2009 foi de US$ 5,1 trilhões ou que o PIB dos países de renda baixa é menos de US$ 1 trilhão.6 De qualquer perspectiva de análise, a importância das doenças mentais é nítida. Essas doenças

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acarretam sofrimento pessoal e familiar, são o principal responsável pelo fardo global das doenças, isto é, pela perda de vida saudável por incapacidade ou morte precoce, e são responsáveis pelo elevado percentual dos custos das doenças não comunicáveis. O estigma envolvendo os transtornos mentais contribuiu para ofuscar esses dados até muito recentemente e deve ser combatido em benefício do portador de transtorno mental e em benefício da sociedade.

ESTIGMA A palavra estigma vem do grego stígma, que significa picada, marca feita com ferro em brasa, sinal, tatuagem.7 Na Grécia Antiga, estigma era uma marca distintiva queimada ou cortada na pele de escravos ou criminosos para que os outros pudessem saber que eram membros inferiores da sociedade. Por derivação, estigma é forma de construção social para indicar a marca distintiva de desgraça social. Trata-se da diferenciação negativa relacionada a alguns membros da sociedade que são afetados por alguma condição ou estado particular, envolvendo dois componentes fundamentais: o reconhecimento da “marca” que diferencia e a subsequente desvalorização daquele que a porta. Acarreta atitude preconceituosa e práticas discriminatórias. A palavra estigma, na Grécia Antiga, não era relacionada à doença mental, mas essas doenças já eram associadas ao conceito de vergonha, desvalorização e humilhação. Na Idade Média, a atitude inquisitorial relacionada às bruxas, além de representar forte misoginia, representava atitude negativa e condenatória em relação à doença mental. Isso pode ter sido a origem da atitude estigmatizante em relação às doenças mentais desde o racionalismo do século XVII até os dias atuais em culturas cristãs.8 Em perspectiva antropológica, cada um organiza o mundo a partir da relação individualidade-alteridade, da consciência do ser único, de ter uma identidade específica que distingue um do outro. Acrescendo-se a isso o fato de o ser humano ser precário (mortal, cosmicamente insignificante e biologicamente frágil), tem o caldo de cultura psicológico para o desenvolvimento do preconceito e estigma. Reforça a identidade frágil a partir da desvalorização e exclusão do outro. A exclusão dos enfermos condiz com a fantasia de que os outros são sadios. A estigmatização da doença mental traz a ilusão da saúde mental.


Doença mental e estigma

A PERPETUAÇÃO DO ESTIGMA RELACIONADO À DOENÇA MENTAL O estigma opera em círculos viciosos que abrangem o indivíduo que sofre de transtorno psiquiátrico, sua família e os serviços de saúde mental.9 O diagnóstico de transtorno psiquiátrico ou anormalidade visível, como o efeito colateral de fármacos, deflagra no observador a recuperação de conteúdos negativos como conhecimentos prévios, informação da imprensa e lembrança de filmes que levam à estigmatização. Os pacientes com doença mental que mostram sinais visíveis de suas condições, seja em virtude dos sintomas, seja em decorrência de efeitos colaterais que os fazem parecerem anormais, são vistos como fracos de caráter, preguiçosos ou ameaçadores. O estigma conduz à discriminação negativa do indivíduo com transtorno mental e, consequentemente, a prejuízos e desvantagens como reveses frequentes, serviços de saúde ruins e dificuldade de acesso a cuidados. Pacientes estigmatizados internalizam essas visões estigmatizantes e discriminatórias das pessoas em geral, dando origem ao chamado autoestigma. Há comprometimento da autoestima, mais incapacitação e menos resistência ao estresse. Tudo isso acarreta piora clínica e reinício do círculo vicioso. Na família, a presença de um membro com doença estigmatizada acarreta vergonha, culpa e preocupação, com consequente redução das reservas emocionais, econômicas e de tempo e perda do apoio mútuo. Ocorrem rupturas familiares, acarretando aumento do estresse familiar. O estresse do grupo é favorecedor do agravamento da doença estigmatizada ou de seu reaparecimento. Nos serviços de assistência psiquiátrica, o estigma contribui para que a procura de assistência ocorra em estágios mais avançados da doença, com mais dificuldade de tratamento e maior número de internações involuntárias. Há comprometimento da reputação do serviço e, consequentemente, redução dos investimentos, o que implica a deterioração das condições e redução da qualidade do pessoal. Tudo isso resulta em piora da qualidade do serviço e aumento do estigma. O estigma associado à doença mental abrange o paciente, sua família, as instituições psiquiátricas, a equipe que trabalha nessas instituições, os medicamentos e demais terapêuticas. É o maior obstáculo à recuperação e reabilitação do paciente. É componen-

te básico da discriminação negativa que as pessoas com doenças mentais experimentam a cada dia. Acarreta pior qualidade de vida e pior assistência.

ESTUDOS ACERCA DA OCORRÊNCIA DE ESTIGMA RELACIONADO À DOENÇA MENTAL Nas últimas décadas, foram conduzidos vários estudos em diversos países acerca da percepção e do conhecimento da população sobre a doença mental. Os resultados mostraram elevada ocorrência de rejeição em relação aos portadores de transtorno psiquiátrico, principalmente de esquizofrenia. Curiosamente, apesar do apoio crescente à concepção médica das doenças mentais ao longo do tempo, não houve redução significativa da estigmatização por parte da população.10,11 Em um desses estudos, realizado nos EUA, os autores compararam dados de um levantamento realizado em 1996 com aqueles de 2006. Os resultados mostraram que, apesar de mais conhecimento acerca do entendimento neurobiológico das doenças psiquiátricas e de mais apoio aos serviços de saúde mental, não houve redução significativa do estigma. O desejo de manter-se afastado de pessoas com doenças mentais e a percepção de perigo associado a essas pessoas não se alteraram significativamente. Em relação às pessoas com depressão, 47% da população não gostariam de trabalhar próximos delas, 20% não gostariam de tê-las como vizinho, 30% não gostariam de se socializar com elas, 21% não gostariam de fazer amizade com essas pessoas, 53% não gostariam de casamento na família com pessoas com depressão, 70% as consideravam autoagressivas e para 32% elas são hetoroagressivas. Em relação a indivíduos com esquizofrenia, a rejeição foi ainda maior. Por exemplo, mais de 60% dos entrevistados disseram que não desejariam trabalhar próximo da pessoa com esquizofrenia ou de ter casamento na família envolvendo alguém com essa doença. Cerca de 60% consideravam essas pessoas heteroagressivas e 84%, autoagressivas.11 Estudo semelhante realizado na Alemanha comparando levantamentos de 1990 e 2001 também mostrou que, apesar do aumento da tendência da população em apoiar a causalidade biológica da esquizofrenia, houve aumento do desejo de distância social de pessoas com essa doença. Quase 56% dos entrevistados Rev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 590-596

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disseram que não gostariam de tê-las em seu círculo social, 67% rejeitariam um casamento na família e 84% não empregariam uma babá portadora da doença. 10 No Brasil, levantamento na cidade de São Paulo revelou que crenças relacionadas ao estigma público em relação a pessoas com esquizofrenia são muito frequentes. Os portadores de esquizofrenia foram considerados potencialmente perigosos por cerca de 70% dos entrevistados; e quase 60% consideraram que as pessoas com esquizofrenia são capazes de despertar reações negativas e discriminação social.12 A área em que há grande desconhecimento e preconceito relacionado às pessoas que sofrem de transtornos mentais graves é a relacionada à violência. É comum que se considere esses indivíduos potencialmente agressivos e violentos. Na realidade, a associação entre doença psiquiátrica grave e violência ocorre tanto no que diz respeito à perpetração de violência quanto em relação à vitimização violenta. Ambas são mais comuns entre portadores de transtornos psiquiátricos graves quando comparados à população em geral. Entretanto, esses indivíduos são mais frequentemente vítimas da violência. Trata-se de grupo dos mais vulneráveis aos crimes violentos.13 Por exemplo, os pacientes com doenças mentais graves têm 12 vezes mais chance de sofrerem um crime violento do que a população geral. Sofrer violência sexual, incluindo estupro, é 17 vezes mais frequente nesse grupo. Esses indivíduos têm 140 vezes mais chance de serem furtados do que a população geral.14 A vitimização entre os pacientes com transtorno mental grave é problema de saúde pública e deve ser alvo de pesquisas e políticas públicas específicas. Em relação aos tratamentos psiquiátricos, há também desconhecimento e preconceito por parte da população. Por exemplo, levantamento realizado na Suíça identificou que o uso de antidepressivos para o tratamento da depressão foi considerado benéfico por apenas 23% da população, enquanto 38% consideravam essa abordagem prejudicial. O emprego de antipsicóticos no caso de esquizofrenia é benéfico para apenas 10% da população e prejudicial para 48%. Apenas 1% dos entrevistados considerou útil a eletroconvulsoterapia, enquanto 60% a avaliaram como prejudicial.15 Na Austrália, o público foi mais favorável à avaliação de vitaminas e minerais e dietas especiais para o tratamento de depressão e esquizofrenia, comparada ao uso de antidepressivos e antipsicóticos, e mais favorável à leitura de autoajuda para pessoa com esquizofrenia.16

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COMBATE AO ESTIGMA RELACIONADO ÀS DOENÇAS PSIQUIÁTRICAS O combate ao estigma tem sido grande preocupação da Associação Mundial de Psiquiatria (AMP), de associações psiquiátricas nacionais, de associações de pacientes com transtorno psiquiátrico e seus familiares e daqueles que lidam diretamente com essas pessoas. Em 1996, a AMP lançou um programa internacional para combater o estigma e discriminação, envolvendo mais de 20 países e cerca de 200 intervenções antiestigma.9 Apesar de o estigma abranger as doenças psiquiátricas em geral, a AMP privilegiou a esquizofrenia, paradigma de doença mental em que o estigma ocorre com mais intensidade. Uma pessoa com esse diagnóstico é comumente vista como perigosa, preguiçosa, incompetente para o trabalho e incapaz de ser membro da família que preenche suas obrigações sociais. Em cada país, grupos envolvendo psiquiatras e outros profissionais da área da saúde mental, jornalistas, políticos, professores, pacientes e seus familiares foram formados para o desenvolvimento do programa. Esses grupos tiveram como objetivo a avaliação do estigma e discriminação na sociedade, a divulgação de conhecimentos sobre a doença, a reabilitação do paciente e a diminuição do estigma e discriminação no ambiente imediato do paciente. O programa da AMP identificou quatro áreas principais de atividade contra o estigma: ■■ relação com o público e trabalho com a mídia, envolvendo artigos em jornais e revistas, festivais, eventos, seminários, internet e mídias sociais; ■■ intervenções nos serviços de saúde mental, promovendo mais comunicação com pacientes e familiares, investimento em cuidados ambulatoriais e preventivos, serviços localizados na comunidade e envolvimento de pacientes e familiares na avaliação dos serviços; ■■ apoio para pacientes e familiares com programas de treinamento para lidar com o estigma, empoderamento e competência social, mais informação sobre a doença e seu tratamento e criação de oportunidade de trabalho; ■■ educação e treinamento envolvendo escolas, psiquiatras, outras especialidades médicas, empregadores e profissionais da polícia e sistema legal. Uma forma de combate ao estigma envolve a promulgação de leis específicas, como a The Americans


Doença mental e estigma

with Disabilities Act and Work Discrimination (ADA), lançada em 1990 nos EUA, que abriu oportunidades significativas para pessoas com incapacidades.17 A ADA abrangeu a discriminação contra pessoas com incapacidades em praticamente todas as áreas da vida pública: emprego, transporte, comunicação e recreação. O impacto da lei envolvendo o trabalho foi rapidamente percebido, com mais de 17.000 ações nos primeiros 15 meses.18 Em relação ao trabalho, a ADA não pretende desenvolver ações afirmativas ou quotas. A meta é garantir igual oportunidade para as pessoas com incapacidade, mas que podem exercer as funções essenciais de trabalho qualificado, com ou sem alguma adaptação razoável. Há extensa literatura disponível acerca do combate ao estigma relacionado às doenças mentais como livros, artigos e sites destinados a profissionais, pacientes e seus familiares que podem ser encontrados com facilidade na internet.1,9,18-20 É fundamental que todas as pessoas envolvidas com a doença mental estudem e preocupem-se com o tema para que os pacientes possam ser aceitos e respeitados e serem membros participantes da sociedade.

CONCLUSÃO O estigma relacionado à doença mental é pernicioso e gera preconceito e discriminação. Envolve a pessoa que sofre do transtorno psiquiátrico, seus familiares, a medicação e outras formas de tratamento, as instituições onde o tratamento é realizado e onde a equipe. As consequências negativas do estigma influenciam as percepções internas, as emoções e as crenças da pessoa estigmatizada gerando o autoestigma, em que a pessoa adota conduta passiva, envergonhada e de autodesvalorização e deixa de desempenhar o seu papel social. O estigma é o principal obstáculo para a recuperação e reabilitação, para melhor assistência psiquiátrica e melhor qualidade de vida daqueles que sofrem de transtorno mental, de seus familiares, da equipe que trata e cuida dele e da comunidade em torno do indivíduo. O estigma representa injustiça social que pode ser tão nefasta quanto a própria doença. Apesar dos avanços no entendimento e tratamento das doenças psiquiátricas, há sinais de que o estigma continua a aumentar, com graves consequências para pacientes e suas famílias. O combate ao estigma é fundamental para que o portador de doença mental possa ter oportunidade ge-

nuína de trabalho, possa viver de forma independente, perseguir suas metas e usufruir de oportunidades, com vida digna e plenamente inserida na sociedade.

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ARTIGO DE REVISÃO

O papel de marcadores tumorais no câncer de pulmão: revisão da literatura The role of tumor markers in lung cancer: a literature review Henrique Alves Pinto Silva1, Pietro Mainenti2, Artur Laizo3

DOI: 10.5935/2238-3182.20150128

RESUMO Introdução: o câncer de pulmão é uma neoplasia muito frequente no mundo e, no Brasil, até 2012, foi a primeira causa de mortalidade por câncer entre os homens e a segunda entre as mulheres. O rastreamento da doença com biomarcadores moleculares é considerado promissor na compreensão da carcinogênese, no diagnóstico precoce, na determinação prognóstica e na identificação de novos tratamentos. Objetivos: apresentar alguns dos principais marcadores tumorais do câncer de pulmão e destacar alguns fatores de crescimento e de genes diretamente a ele relacionados. Métodos: revisão bibliográfica e análise crítica de trabalhos pesquisados eletronicamente por meio do banco de dados Scielo, PubMed, livros e dissertações pertinentes ao tema abordado. Resultados: o papel dos marcadores biológicos no câncer de pulmão ainda é incerto. O antígeno carcinoembrionário é o marcador tumoral mais valioso na avaliação de carcinomas de células não pequenas. Percebe-se mais expressão da enolase neuroespecífica no carcinoma pulmonar de pequenas células. Os mitógenos que participam das neoplasias pulmonares incluem os fatores de crescimento de: hepatócito, epidérmico, endotelial vascular e o transformador beta. A amplificação da família myc de proto-oncogenes e mutações no locus K-ras, observado nas neoplasias pulmonares associadas ao tabagismo, torna os tumores mais agressivos. O gene de supressão tumoral p53 é o que mais sofre mutação no câncer de pulmão. Conclusão: o estudo com marcadores genéticos parece ser promissor na compreensão e no estadiamento clínico e tratamento das neoplasias pulmonares.

Acadêmico do Curso de Medicina da Universidade Presidente Antônio Carlos (UNIPAC-JF). Juiz de Fora, MG – Brasil. 2 Médico. Doutor em Patologia Bucal. Professor de Patologia Geral e Patologia Médica Aplicada I da UNIPAC-JF. Juiz de Fora, MG – Brasil. 3 Médico. Doutor em Cirurgia Geral. Professor de Prática Médica I e II e Presidente do Grupo de Estudos sobre a Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (GEDPOC) da UNIPAC-JF. Juiz de Fora, MG – Brasil. 1

Palavras-chave: Neoplasias Pulmonares; Neoplasias Pulmonares/epidemiologia; Neoplasias Pulmonares/diagnóstico; Neoplasias Pulmonares/terapia; Marcadores Biológicos; Marcadores Biológicos de Tumor. ABSTRACT Introduction: lung cancer is a very common neoplasia worldwide. In Brazil until 2012, it was the first cause of cancer mortality among men and the second among women. The disease tracking with molecular biomarkers is considered promising in the understanding of carcinogenesis, early diagnosis, determining prognosis, and identifying new treatments. Objectives: to present some of the main tumor markers of lung cancer and highlight some growth factors and genes directly related to it. Methods: a literature review and critical analysis of studies electronically searched through the Scielo and PubMed databases, books, and dissertations relevant to the topic discussed. Results: the role of biomarkers in lung cancer is still unclear. The carcinoembryonic antigen is the most valuable tumor marker in the assessment of non-small cell carcinomas. The overexpression of neuro-specific enolase is observed in small cell lung carcinoma. The mitogens involved in lung neoplasms include growth factors of hepatocyte, epidermal, vascular endothelial, and beta transformer. The amplification

Recebido em: 15/09/2014 Aprovado em: 03/03/2015 Instituição: Universidade Presidente Antônio Carlos – UNIPAC-JF Juiz de Fora, MG – Brasil Autor correspondente: Henrique Alves Pinto Silva E-mail: henriquealvespsilva@hotmail.com

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of the myc family of proto-oncogenes and mutations in K-ras locus, observed in lung cancer associated with smoking, makes tumors more aggressive. The p53 tumor suppressor gene is the most mutated in lung cancer. Conclusion: the study with genetic markers seems to be promising in the understanding, clinical staging, and treatment of lung cancer. Key words: Lung Neoplasms; Lung Neoplasms/epidemiology; Lung Neoplasms/ diagnosis; Lung Neoplasms/ therapy; Biological Markers; Tumor Markers, Biological.

INTRODUÇÃO O câncer de pulmão é uma neoplasia muito frequente no mundo1-7, representando 13% dos casos de câncer.1,7 Associa-se à elevada mortalidade,3,5,7-17 sendo caracterizado por progressivo aumento de casos mundiais,10,18,19 perfazendo 6% de todas as causas de mortes anuais.20 As neoplasias pulmonares constituem expressivo problema de saúde pública em países desenvolvidos,1,11 sendo a principal causa de morte por câncer nos Estados Unidos da América e na Europa.21 No Brasil, as neoplasias pulmonares, até 2012, constituam-se na primeira causa de mortalidade por câncer entre os homens e a segunda entre as mulheres.22-25 Os maiores índices ocorreram na região Sul e Sudeste.26,27 Observou-se que, entre os homens, houve aumento modesto da taxa de mortalidade: de 10,64 para 13,07 óbitos/100.000 de 1979 para 2004;25,26,28 e, entre as mulheres, foi maior, de 3,04 para 5,37 óbitos/100.000 entre 1979 e 2004.26,28 Ocorreram 28 mil novos casos no país em 2008 e 2011.3,29 O rastreamento das neoplasias pulmonares com biomarcadores moleculares é considerado promissor3 e importante instrumento na compreensão da carcinogênese pulmonar, no diagnóstico precoce, na determinação do prognóstico e na identificação de novos tratamentos para portadores de neoplasia pulmonar.23 Marcadores biológicos são componentes celulares, estruturais e bioquímicos, que podem definir alterações celulares e moleculares em células normais e também naquelas associadas à transformação maligna.8 Esta revisão apresenta alguns dos principais marcadores tumorais da neoplasia pulmonar, representados pelo antígeno carcinoembrionário (CEA) e pela enolase neuroespecífica (NSE). Destaca ainda a participação de alguns fatores de crescimento que agem como mitógenos no desenvolvimento e na progressão do carcinoma pulmonar e de genes diretamente relacionados à sua patogênese.

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MATERIAL E MÉTODOS Este estudo consistiu em revisão bibliográfica realizada eletronicamente por meio do banco de dados Scielo e PubMed, resultando na obtenção de vários artigos pertinentes ao tema. Foram selecionados trabalhos da literatura médica em língua portuguesa e inglesa, publicados no período de 1998 a 2014. O resultado preliminar revelou, inicialmente, 87 trabalhos sobre o assunto. Os descritores utilizados na presente pesquisa foram: “neoplasias pulmonares”, “marcadores biológicos”, “epidemiologia”, “diagnóstico”, “terapêutica”, “lung neoplasms”, “biological markers”, “epidemiology”, “diagnosis”; “therapeutics”. Todos os trabalhos foram lidos e avaliados. Uma vez que alguns textos divergiram do escopo deste estudo, somente 48 artigos foram considerados para se apresentarem como referencial teórico da presente pesquisa.

PRINCIPAIS BIOMARCADORES E SUA IMPORTÂNCIA NO CÂNCER DE PULMÃO Embora sejam frequentemente utilizados na prática clínica,30 o papel dos marcadores biológicos no câncer de pulmão ainda é incerto.8 O dano genético ocorre em genes que afetam a homeostase de vários processos biológicos, como proliferação e crescimento celular, apoptose, angiogênese, invasão tumoral e, por conseguinte, metástase. Cerca de 380 genes estão associados ao aparecimento de várias neoplasias, o que representa mais de 1% do total de genes já descritos até o momento. Genes como p53, p14ARF, p16INK4a, RB, FHIT e RASSF1A estão relacionados ao câncer de pulmão.13 Os marcadores tumorais são, em tese, produtos tumorais que podem ser detectados antes mesmo do desenvolvimento macroscópico do tumor, permitindo, então, uma intervenção antes do processo de invasão tumoral, da angiogênese e da disseminação metastática.22 Os marcadores biológicos diagnósticos são produtos e estruturas celulares, tais como o núcleo, os microvilos e os microácinos, que podem ser medidos quantitativamente em casos associados às neoplasias e ao seu órgão de origem.8 Para Capelozzi8 e Fang et al.31, em pacientes com câncer de pulmão os marcadores biológicos diagnós-


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ticos, presentes em associação com a malignidade, não se mostraram muito úteis como recurso diagnóstico, devido à sua baixa sensibilidade e especificidade, principalmente em estágio em que a doença possa ser totalmente tratável. Entretanto, segundo Capelozzi8, podem ser usados para expressar diferentes características biológicas das neoplasias pulmonares. Fang et al.31 afirmam que a detecção e o diagnóstico precoce do câncer de pulmão são fundamentais para obter melhor sobrevida. Wang et al.32, por sua vez, afirmam que a detecção de marcadores tumorais pode ser instrumento útil no diagnóstico, monitoramento e prognóstico de pacientes com câncer de pulmão, principalmente se os marcadores forem detectados conjuntamente, aumentando, assim, a sensibilidade diagnóstica. O estudo da genética molecular dos tumores salienta a expectativa que pode atingir dois objetivos. Em primeiro lugar, os processos progressivos neoplásicos e suas alterações genéticas determinam o seu desenvolvimento. A observação dessas alterações permite a melhor compreensão do processo oncogênico. Segundo, as alterações genéticas presentes nos tumores podem originar, diretamente, alvos terapêuticos específicos que podem permitir o desenvolvimento e a aplicação de terapias altamente eficazes.7 Os marcadores biológicos diagnósticos séricos mais estudados em pacientes com neoplasia de pulmão são: antígeno carcinoembrionário (CEA), antígeno polipeptídeo tecidual (TPA), antígeno do carcinoma de células escamosas (SCC-Ag), cromogranina A (Chr A), enolase neurônio-específica (NSE), fragmentos de citoqueratina avaliados no sangue por meio dos anticorpos monoclonais KS19-1 e BM19-21 (CYFRA21.1), molécula de adesão celular neural (NCAM), creatina fosfoquinase – BB (CPK-BB) e receptor de interleucina solúvel-2 (sIL-2R)8.

Antígeno Carcinoembrionário (CEA) O CEA é uma glicoproteína originalmente relacionada ao adenocarcinoma de cólon e reto. Produzido pelas células do epitélio glandular secretor de mucina do feto, o CEA pode ter níveis elevados nos carcinomas de diferenciação glandular, sendo dos primeiros marcadores tumorais relacionados às neoplasias pulmonares.17,22 Pode estar presente em baixos níveis em tecidos não neoplásicos e não fetais.22 É o biomarcador mais estudado no câncer de pulmão31.

Embora seja uma molécula de adesão celular, a expressão aumentada de CEA promove, além de inibição da apoptose, a má-adesão das células tumorais, o que favorece o processo metastático. Assim, seus níveis elevados podem refletir o crescimento do tumor, a recorrência e o aparecimento de metástases, tendo importante papel, portanto, na avaliação prognóstica da doença.17 A maioria dos tabagistas também apresenta o CEA sanguíneo elevado, sem que haja malignidade reconhecida, pulmonar ou não. Tal fato parece decorrer da agressão direta dos constituintes do cigarro sobre o epitélio respiratório, levando à liberação do antígeno para a circulação.22 Entretanto, o CEA é o marcador tumoral mais valioso na avaliação de carcinomas de células não pequenas.8,17,22 A maioria dos adenocarcinomas de pulmão apresenta esse antígeno elevado.17,22,31 Wang et al.32 afirmaram que os níveis séricos de CEA em pacientes com neoplasia pulmonar são significativamente maiores do que naqueles com doença benigna e controle saudáveis, indicando que o CEA pode ser utilizado para o diagnóstico precoce do câncer de pulmão. Yang et al.17 demonstraram que a expressão do CEA está relacionada diretamente à expressão do receptor para o fator de crescimento epidérmico (EGFR), um receptor transmembrana presente na superfície celular e que se superexpressa em pacientes com carcinoma de células não pequenas. Assim, à medida que as mutações no EGFR ocorrem, os níveis de expressão do CEA aumentam.17 Vários tratamentos têm sido desenvolvidos com base na inativação desse grupo de receptores22 e pacientes com carcinoma de células não pequenas, portadores de mutação no EGFR, são adequados para esse tipo de abordagem.17 Assim, tal terapêutica proposta22, combinada com os níveis de CEA no soro dos pacientes, podem auxiliar na avaliação prognóstica e na eficácia clínica do tratamento do carcinoma pulmonar de células não pequenas, visto que os pacientes, que possuem níveis séricos elevados de CEA, podem beneficiar-se com a terapêutica baseada na inativação do EGFR.17

Enolase neuroespecífica (NSE) A NSE é uma enzima catalisadora da via glicolítica anaeróbica22,33 e se encontra distribuída em todos os tecidos dos mamíferos.22 Níveis elevados de NSE Rev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 597-604

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são observados em tumores como glucagonoma, carcinoma de intestino e carcinoma medular da tireoide, todos de origem neuroendócrina. Observa-se o seu aumento também no carcinoma pulmonar de pequenas células.22 A diferenciação neuroendócrina do carcinoma pulmonar de pequenas células é considerada uma característica importante dessa doença e pode explicar sua alta sensibilidade para a radioterapia e quimioterapia. A NSE é geralmente aceita como marcador no diagnóstico e na monitorização terapêutica desse tipo histológico de câncer de pulmão. Além disso, é visto que os níveis elevados desse marcador têm valor prognóstico desfavorável.33 Pacheco et al.22 mostraram que a NSE é útil no diagnóstico dos tumores neuroendócrinos, mas também comprovações posteriores detectaram sua presença em tecidos não neuroendócrinos. Wang et al.32 compartilham da mesma ideia, salientando que os níveis séricos de NSE em pacientes com neoplasia pulmonar são significativamente mais altos do que naqueles com doença pulmonar benigna, sugerindo que essa enzima é importante no diagnóstico do câncer de pulmão, em especial do carcinoma pulmonar de pequenas células. Para melhorar a sensibilidade e a especificidade diagnóstica, a combinação de biomarcadores é estratégia interessante. Wójcik et al.33 demonstraram que outro marcador, o peptídio liberador de gastrina (GRP), associado à NSE, é mais fidedigno na avaliação prognóstica e de recidivas em pacientes com carcinoma pulmonar de pequenas células.

Hormônios peptídeos mitógenos (fatores de crescimento) As células neoplásicas e não neoplásicas do pulmão comumente produzem hormônios peptídeos que podem ter função de mitógenos.8 Estes incluem os fatores de crescimento: de hepatócito (HGF),23,31 epidérmico (EGF),8,17,22 endotelial vascular (VEGF)16,23,34 e transformador beta (TGF-β).23,35 As células pulmonares neoplásicas têm receptores para esses fatores, de forma que esses peptídeos podem funcionar como fatores de crescimento autócrino e parácrino nas células cancerosas e nas células normais.8,23 O HGF é uma tirosina-cinase de membrana celular23, produzida principalmente por células mesenquimato-

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sas31 e considerada um mediador de angiogênese, da motilidade celular e da invasão tumoral, além de estimular o crescimento de células epiteliais.23,31 O seu receptor (c-Met), um produto proto-oncogênico, é o mediador dessas funções e, frequentemente, se sobre-expressa no carcinoma pulmonar de células não pequenas. Pode ser útil como marcador diagnóstico e preditor prognóstico em tumores pulmonares avançados.31 Fang et al.31 relataram que o HGF não é sensível em fases iniciais do carcinoma pulmonar de células não pequenas, sendo significativamente maior na fase III e IV em pacientes com carcinoma escamoso, entretanto, não conseguiram correlacionar esse aumento com a sobrevida, mas consideram que o nível plasmático do HGF também está elevado em doenças inflamatórias, como na doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC). O gene para uma subfamília do EGF encontra-se super-expresso em carcinomas de pulmão de células não pequenas.17,22 Seu receptor (EGFR), do tipo tirosina-cinase17, regula um via de sinalização autócrino que contribui para grande número de processos importantes para o desenvolvimento neoplásico, incluindo a proliferação celular, a apoptose, a angiogênese e a disseminação metastática.22 A taxa de mutação do EGFR nos pacientes com carcinoma pulmonar é mais frequente em mulheres, não tabagistas e do tipo adenocarcinoma.17 Vários tratamentos têm sido desenvolvidos com base na inativação desse grupo de receptores, como os fármacos Iressa e OSI-7734, inibidores reversíveis da tirosina-cinase do EGFR, e ativos por via oral. Outras possibilidades incluem os anticorpos monoclonais, em fase de testes, que poderiam se ligar ao EGFR, bloqueando sua autofosforilação e inibindo a angiogênese em células tumorais de ratos.22 Observa-se correlação positiva entre os níveis séricos de CEA e a taxa de mutação do EGFR.17 O VEGF pode ser produzido por células malignas e aumenta em decorrência do estímulo do fator tecidual e retroalimentando o sistema. Também atua nas células endoteliais de permeio, permitindo a neovascularização do tumor.16,23,34 É expresso, principalmente, nas neoplasias pulmonares metastáticas e seu aumento relaciona-se à resistência à quimioterapia.23 Zhang el al.34 conseguiram correlacionar os níveis de VEGF, um importante fator angiogênico, com os de endostatina, um fator antiangiogênico, em pacientes com derrame pleural devido à tuberculose e outros com derrame pleural maligno associado à neoplasia pulmonar. O VEGF tem sido implicado como uma ci-


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tocina fundamental na formação do derrame pleural maligno, visto que seus níveis elevados favorecem a permeabilidade vascular, a migração celular e a angiogênese. Zhang et al.34 afirmaram que os níveis plasmáticos de VEGF e de endostatina, em pacientes com derrame pleural maligno, são significativamente mais elevados do que naqueles com derrame de etiologia benigna. Referem-se, ainda, a quão mais elevados os níveis, mais ominoso é o prognóstico, salientando a importância no acompanhamento prognóstico que esses marcadores possuem. Por último, o TGF-β é uma citocina inflamatória que regula a proliferação celular, a diferenciação e a produção de matriz extracelular35. No pulmão, pode-se ligar às integrinas expressas pelas células tumorais. Ela pode atuar inibindo as fases G1 e S do ciclo celular, além de induzir a produção da p21, proteína que inibe a replicação do DNA quando há expressão aumentada da p53, e aumentar a expressão gênica da c-myc.23 Afeta, ainda, a angiogênese tumoral, desempenhando importante papel na progressão do carcinoma de células não pequenas, atuando como preditor independente de sobrevida no adenocarcinoma23,35. Tais ações estão intimamente relacionadas à progressão, à agressividade neoplásica e ao mau prognóstico na doença.8,22,23,35 Huang et al.35 relataram que os níveis da isoforma TGF-β1 em carcinoma de pulmão de células não pequenas é significativamente maior do que nos tecidos pulmonares normais. Embora o mecanismo ainda não seja muito evidente, aventa-se a ideia de que sua expressão elevada se deva à diminuição de seus receptores. Além disso, a expressão dessa proteína está relacionada35 à fase do TNM em que se encontra o tumor. Quanto maior a expressão de TGF-β1, mais avançada está a doença. Existem dois fatores que influenciam no prognóstico do carcinoma pulmonar de não pequenas células: os níveis de TGF-β1 e a metástase linfonodal.35 A taxa de sobrevivência de cinco anos em pacientes com baixa expressão de TGF-β1 é maior do que se a sua expressão está aumentada; e o prognóstico dos pacientes com metástase ganglionar é menor do que naqueles sem metástase linfática.

DISCUSSÃO Vários são os fatores de risco para o câncer de pulmão: asbesto, radônio, exposição ocupacional e fatores genéticos1,10,23; entretanto, o mais importante

é o tabagismo1,5,9,10,12,17,23,24,36-39, responsável por 85 a 90% dos casos1,4,10,27 e de 70 a 92% das suas mortes12,14. Os outros 10 a 15% dos casos estão relacionados à exposição ocupacional,1,4,10 sendo a sílica a mais comum.4,10 Asai et al.40 relataram que bolhas gigantes infecciosas também estão associadas à doença, principalmente em relação ao carcinoma de grandes células, que surge mais comumente na parede de tais bolhas. Acredita-se que a redução do tabagismo levaria à prevenção de 71% dos casos de câncer de pulmão.41 Seixas et al.42 demonstraram que a atividade física, além de meio para evitar a ocorrência da doença, também apresenta impactos positivos no tratamento oncológico. Histologicamente, as neoplasias pulmonares são divididas em quatros tipos: carcinoma escamoso, adenocarcinoma, carcinoma de pequenas células e carcinoma de grandes células.8-10,12,23,43 O tabagismo está implicado na etiopatogênese de todos os tipos histológicos,12 mas a sua influência é mais marcante em relação ao carcinoma escamoso, ao carcinoma de pequenas células (menos frequente e de pior prognóstico44) e ao adenocarcinoma.10,23 O sistema de estadiamento tumor-nódulo-metastase (TNM) auxilia na seleção do melhor tratamento das neoplasias pulmonares caso a caso.45 O principal objetivo é estabelecer um modo de determinar a extensão anatômica das neoplasias, permitindo uniformização do tratamento e a comparação dos resultados e a previsibilidade do prognóstico em cada caso.46 O parâmetro T, do sistema TNM, é importante quando se pensa em ressecção cirúrgica, uma vez que formas T1, T2 e T3 são ressecáveis e não o é o T4. O acometimento linfático (parâmetro N) é considerado o divisor de águas entre o tratamento cirúrgico ou não cirúrgico nos portadores de doença exclusivamente intratorácica, pois o comprometimento do linfonodo-sentinela influi muito no prognóstico e no tratamento das neoplasias pulmonares. O parâmetro M evita a intervenção cirúrgica desnecessária se já houve acometimento metastático, exceção feita nos casos raros de metástase única. Por isso, a pesquisa de metástases extratorácicas é muito importante.46 A terapia tradicional para a neoplasia pulmonar é composta de cirurgia, radioterapia e quimioterapia.17,35 Esse tratamento, quando o tumor ainda se encontra localizado, sem disseminação extrapleural, é cirúrgico.9,47 Já para os casos de tumores Rev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 597-604

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irressecáveis, como os classificados no parâmetro T4 do sistema TMN14, o indicado é a combinação de radio e quimioterapia.48 Para o entendimento das neoplasias pulmonares, uma possibilidade seria estudar os genes de supressão tumoral e oncogenes que participam na carcinogênese pulmonar,7,8,13,22,23 haja vista que as células neoplásicas do pulmão acumulam uma série de alterações genéticas que ativam proto-oncogenes em oncogenes e uma série de outras alterações que parecem inativar ou alterar informações dos genes de supressão tumoral.8 A família myc de proto-oncogenes inclui proteínas nucleares que são capazes de se ligar ao DNA e atuar na regulação da transcrição.23 A amplificação dessa família de genes, principalmente no carcinoma pulmonar de pequenas células, está associada ao decurso mais agressivo da doença8,23 e pior resposta à quimioterapia.23 Genes mutados da família ras são os oncogenes mais comuns encontrados nas neoplasias malignas humanas e o significado clínico de mutações nessa família em neoplasia pulmonar ainda é objeto de estudo.22 Mutações no locus K-ras, observado nas neoplasias pulmonares associadas ao tabagismo,8,23 tornam os tumores mais agressivos22 e têm sido ligadas a menos sobrevida.8,22 O gene de supressão tumoral p53 leva à parada do ciclo celular na fase de transcrição de G1 para S, permitindo à célula reparar a integridade de seu genoma. Quando os danos no DNA são irreversíveis, ele induz a apoptose.22,23 É o gene que mais comumente sofre mutação no câncer de pulmão,7,22,23 sendo detectado em mais de 70% dos casos de carcinoma de células escamosas e em mais 90% no carcinoma de pequenas células22, apresentando indícios de que essas mutações têm valor prognóstico.7 Anticorpos antip53 têm sido encontrados em pacientes com neoplasia pulmonar e tais anticorpos podem anteceder o desenvolvimento clínico da neoplasia.22 São poucos os estudos brasileiros sobre o papel dos marcadores biológicos séricos em pacientes com neoplasia pulmonar8, sendo observado que o CEA é o marcador mais frequentemente aumentado8,31,32 e, inclusive, pode se beneficiar com o tratamento baseado na inativação do EGFR.17 A dosagem sérica da NSE provou ser valioso e promissor instrumento no auxílio diagnóstico do carcinoma de pulmão de pequenas células, com sensibilidade média global de 77,5% e especificidade de 90%,

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sendo mais sensível e específico quanto mais avançada está a doença.22 Sua associação com o GRP parece melhorar a sensibilidade diagnóstica e prognóstica.33 Sabe-se que estímulos de crescimento autócrino e parácrino estão presentes na neoplasia pulmonar, devido à expressão de fatores de crescimento e receptores pelas células malignas e pelas células normais adjacentes a elas. 8,23 Vários estudos tentaram correlacionar o aumento nos níveis séricos de alguns fatores de crescimento com o desenvolvimento neoplásico no pulmão e a sobrevida nesses pacientes.8,16,17,22,23,31,34,35 Alguns até aventaram propostas terapêuticas baseadas na inativação de receptores, como o EGFR17, ou na supressão de fatores de crescimento, como o TGF-β1.35 Entretanto, é vista a necessidade de mais estudos nessa área, principalmente relacionados à elaboração de novas estratégias diagnósticas e terapêuticas.8,17,22,34,35

CONSIDERAÇÕES FINAIS O estudo dos marcadores tumorais aprimorou muito os conhecimentos sobre o aparecimento e a progressão do processo oncogênico pulmonar. Podem ser importantes não somente nas bases fisiopatológicas da doença, mas também na classificação clínica, no estadiamento e até mesmo no desenvolvimento de novas opções terapêuticas. O estudo com marcadores genéticos parece ser promissor tanto na compreensão quanto no estadiamento clínico e tratamento das neoplasias pulmonares, haja vista que os marcadores celulares extranucleares ainda não conseguiram atingir os objetivos propostos, ou seja, detecção precoce e precisa do tumor. Os marcadores genéticos, por sua vez, caracterizam melhor a neoplasia pulmonar, devido à sua peculiaridade e, sobretudo, pela alteração ocasionada por meio da mutação genética. Estudos mais aprofundados nessa área poderão ser de grande avanço para o tratamento das neoplasias de maneira geral, inclusive pulmonar, responsável ainda por elevado número de óbitos no mundo.

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EDUCAÇÃO MÉDICA

A aparência do médico… E do estudante de medicina* The appearance of the doctor… and that of the medical student Celmo Celeno Porto1

DOI: 10.5935/2238-3182.20150129

RESUMO Adquirir a “aparência de médico” constitui-se em tarefa lenta e perseverante, que acompanha o processo de “tornar-se médico”, essencial para a relação médico-paciente, e que não deve ficar apenas na aparência e no comportamento comedido, mas expresse a opção substantiva pelo paciente e sua família, com o enfrentamento da missão de cuidar e acolher pessoas em situações variadas de perda da saúde, o que requer a prática humanitária que reconhece em si mesmo as dificuldades do paciente.

1 Professor Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da Universidade Federal de Goiás. Membro Honorário da Academia Nacional de Medicina. Goiânia, GO – Brasil.

Palavras-chave: Medicina; Estudantes de Medicina; Relação Médico-Paciente; Educação Médica; Humanismo. ABSTRACT Acquiring the “doctor’s appearance” is a slow and persevering work that accompanies the process of “becoming a doctor,” essential to the doctor-patient relationship. It should not be only in the appearance and restrained behavior, but also in the expression of a substantive option for patients and their families, coping with the mission of caring and accommodating people in a variety of health loss situations, which requires a humanitarian practice that recognizes the patient’s difficulties in the self.

*Texto extraído da obra: Porto, Celmo Celeno. Carta aos estudantes de Medicina. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2014. Autorizado pela Editora Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 2015.

Key words: Medicine; Medical Students; Physician-Patient Relations; Education, Medical; Humanism.

Vou iniciar esta carta transcrevendo um trecho de um dos livros de Hipócrates, o maior médico de todos os tempos; na verdade, o criador das bases da Medicina que praticamos, hoje, mais de 2.000 anos depois, mas que permanecem vivas e atuais como verdades permanentes: “Quando um médico entra em contato com um doente, convém estar atento ao modo como se comporta; deverá estar bem-vestido, ter uma fisionomia tranquila, dar toda a atenção ao paciente, não perder a paciência e ficar calmo em presença de dificuldades. É um ponto importante para o médico ter uma aparência agradável, porque aquele que não cuida do próprio corpo não está em condições de se preocupar com os outros. Deverá saber calar-se no momento oportuno e mostrar-se gentil e tolerante; nunca deverá agir impulsiva ou precipitadamente, nunca deverá estar de mau humor nem mostrar-se demasiadamente alegre”. Este trecho é um conjunto de preciosas lições, porém vou comentar apenas a aparência do médico; melhor dizendo, a aparência que devemos ter diante dos pacientes, desde o primeiro encontro no curso de Medicina!

Recebido em: 10/11/2015 Aprovado em: 20/11/2015 Instituição: Universidade Federal de Goiás – UFG Goiânia, GO – Brasil Autor correspondente: Celmo Celeno Porto E-mail: celeno@cardiol.br

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A aparência do médico… E do estudante de medicina

O uso de roupa branca, sob a forma de um jaleco sobre o uniforme branco ou sobre a roupa comum, além de seu significado simbólico, contribui para uma boa aparência e funciona como equipamento de proteção individual. Por isso, o uniforme não deve dispensar o uso do jaleco branco, que só deve ser usado dentro do hospital ou das instituições que atendem pacientes. O mesmo deve acontecer com os sapatos, que devem ser fechados para proteção contra acidentes com objetos perfurocortantes. Sandálias abertas ou semiabertas, às vezes com finas tiras de couro ou de outro material, sapatos de plataforma ou com saltos altos (ou altíssimos) são elegantes e glamorosos, mas totalmente inadequados para o trabalho com pacientes. As vestes brancas têm também um simbolismo e significam preocupação com a limpeza e a higiene por parte de quem as traja. Essas são as razões para se exigir dos estudantes que, para adentrar o hospital, devem estar vestidos de branco e ter aparência agradável. Aparência agradável subentende asseio corporal, unhas aparadas, cabelos penteados e, quando compridos, devidamente presos, roupas limpas que lhe confiram aspecto saudável.

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É importante lembrar que os estudantes (atualmente, isso vale para homens e mulheres) não devem entrar no hospital portando bijuterias grandes e vistosas nem piercings extravagantes, pois, além, de descaracterizarem sua figura de futuro médico, são elementos de transmissão de bactérias, podendo contribuir para a disseminação de infecção hospitalar. As tatuagens também merecem um comentário: culturalmente, para muitos pacientes, elas podem ter uma conotação negativa. Por isso, se você tiver alguma tatuagem, ela deve ficar recoberta de modo a não ser vista pelo paciente. Afinal, ele pode não pertencer à mesma “tribo” do estudante. Aproveito a oportunidade para lhe dizer que, além da boa aparência, você deve ser comedido em suas atitudes, em sua linguagem e em seu comportamento. As brincadeiras, os ditos jocosos, as discussões de assuntos alheios ao ensino e ao interesse dos pacientes devem ser deixados para outra oportunidade e outro local. Em suma, adquirir a “aparência de médico” é um dos componentes do lento processo de “tornar-se médico”.


RELATO DE CASO

Acupuntura como coadjuvante no tratamento para constipação intestinal em criança com mielomeningocele: relato de caso Acupuncture as a coadjuvant in the treatment of constipation in children with myelomeningocele: case report Marcella Leite de Mattos Miranda1, Renato Araújo Silva1, Guilherme Bicalho Oliveira Silva1, Vanessa Cristina Gonçalves1, Christiane Marize Garcia Rocha2

DOI: 10.5935/2238-3182.20150130

RESUMO Mostrar a partir de relato de caso a eficácia do uso da acupuntura para aliviar os sintomas decorrentes de sequelas causadas por mielomeningocele. O tratamento convencional dessa doença nem sempre permite qualidade de vida satisfatória, desafiando o desenvolvimento e outras abordagens não convencionais. Neste relato foi avaliado o uso de acupuntura em paciente com constipação intestinal decorrente da mielomeningocele, apresentando resultados satisfatórios após três sessões de acupuntura. Apesar dos bons resultados apresentados, novos estudos precisam ser feitos para corroborar a eficácia da acupuntura no tratamento dos distúrbios gastrintestinais de causas orgânicas.

Acadêmico(a) do curso de Medicina do Centro Universitário de Belo Horizonte UniBH. Belo Horizonte, MG – Brasil. 2 Médica Pediatra. Mestrado em Pediatria. Professora do Curso de Medicina do UniBH. Belo Horizonte, MG – Brasil. 1

Palavras-chave: Constipação Intestinal; Mielomeningocele; Terapias Complementares; Terapia por Acupuntura. ABSTRACT To show the efficacy of acupuncture to relieve symptoms caused by sequelae caused by myelomeningocele in a case report. The conventional treatment of this disease does not always allow a satisfactory quality of life, challenging the development and other unconventional approaches. In this report, we evaluated the use of acupuncture in patients with constipation due to myelomeningocele with satisfactory results after three sessions of acupuncture. Despite the good results presented, further studies are needed to corroborate the effectiveness of acupuncture in the treatment of gastrointestinal disorders of organic causes. Key words: Constipation; Meningomyelocele; Complementary Therapies; Acupuncture Therapy.

INTRODUÇÃO A espinha bífida é uma malformação congênita caracterizada por defeito de fechamento do tubo neural (DFTN), que engloba tecidos sobrejacentes à pele, medula espinhal, arco vertebral e músculos dorsais.1,2 Os fatores que levam aos DFTNs não são bem elucidados e estão associadas à interação de fatores genéticos e ambientais. Entre os principais fatores ambientais que podem ocorrer durante a gestação, estão: diabetes mellitus, carência de ácido fólico na dieta, uso de drogas anticonvulsivantes e ingestão de álcool durante o seu primeiro trimestre. A prevalência atual dos DFTNs varia de 0,83/1.000 a 1,87/1.000 nascimentos, o que mostra o importante papel na morbimortalidade infantil.3 Essa malformação, embora possa ocorrer em qualquer nível da coluna, é mais frequente na região lombossacra, onde

Recebido em: 25/11/2013 Aprovado em: 11/08/2015 Instituição: Centro Universitário de Belo Horizonte UniBH Belo Horizonte, MG – Brasil Autor correspondente: Marcella Leite de Mattos Miranda E-mail: marcella.lmm@gmail.com

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Acupuntura como coadjuvante no tratamento para constipação intestinal em criança com mielomeningocele: relato de caso

ocorrem 75% dos casos; os outros 25% compreendem acometimento torácico ou cervicotorácico.4 Crianças com mielomeningocele podem apresentar incapacidades crônicas graves, tais como: hidrocefalia, bexiga neurogênica, disfunção intestinal, problemas ortopédicos e paralisia de membros inferiores;5,6 podendo ainda serem importantes transtornos emocionais, psicossociais e deficiência cognitiva.7 O tratamento engloba equipe multidisciplinar composta de fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais e enfermeiros, devido à complexidade dos problemas decorrentes e que não podem ser tratados isoladamente. A necessidade de tratamento cirúrgico inicial consiste no fechamento do orifício com a internalização do sistema nervoso e dos tecidos sobrejacentes, como fáscia, músculo, pele e gordura.8,9 Além do tratamento cirúrgico, são administrados toxina botulínica e agentes antimuscarínicos.10 Alguns pacientes são refratários aos tratamentos convencionais utilizados para reduzir as sequelas deixadas pela mielomeningocele, podendo fazer uso de métodos alternativos para alívio de alguma sintomatologia, como a acupuntura.11,12

RELATO DE CASO TAS, feminino, leucodérmica, nove anos e quatro meses de idade, nascida a termo de parto normal, com mielomeningocele. Durante a gestação mãe realizou nove consultas de pré-natal e fez uso de ácido fólico como medida profilática durante os quatro primeiros meses de gestação. Após o diagnóstico, aos três meses de vida, passou por cirurgia corretiva. Até os três anos de idade se locomovia normalmente, mas evoluiu com medula presa sintomática e foi submetida a duas intervenções neurocirúrgicas, sendo a última em outubro de 2008. Após a segunda cirurgia, apresentou tetraparesia com necessidade de órtese para estabilizar os joelhos, tornozelos e pés, além do auxílio de bengalas de antebraço para troca de passos. Apresentava em associação à malformação medular bexiga neurogênica e constipação intestinal, necessitando constantemente de lavagens intestinais. O tratamento medicamentoso constituía-se de oxibutinina e imipramina, para controle da incontinência urinária; carbamazepina, para controle de crises epileptógenas. A constipação intestinal não foi possível ser revertida com as medidas instituídas, o que possibilitou a proposição da acupuntura como

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tratamento alternativo. Após três seções a paciente conseguiu evacuar sem auxílio de estímulo externo. A paciente continua sob vigilância clínica e tratamento com acupuntura no ambulatório de puericultura. Este relato foi autorizado pelo pai da paciente, por meio de termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), permitindo análise e utilização dos dados do prontuário provenientes da ficha clínica de atendimento ambulatorial e sua publicação.

DISCUSSÃO Defeitos no fechamento do tubo neural são causas relevantes de morbimortalidade. Entre os fatores de risco ambientais mais conhecidos, a ausência da suplementação com o ácido fólico é o mais importante. O mecanismo pelo qual o ácido fólico está relacionado ao fechamento do tubo neural não é bem elucidado, mas sabe-se que a suplementação periconcepcional, durante o primeiro trimestre de gravidez, tem reduzido 50 a 70% dessa malformação.13 No entanto, essa medida profilática não elimina a possibilidade de ocorrência dessa anomalia congênita, conforme observado neste relato, no qual a mãe da paciente referiu ter feito uso correto do suplemento durante o período gestacional. Essa malformação é acompanhada de sequelas, entre elas: deficiência motora, deformidades esqueléticas, constipação intestinal e incontinências vesical e intestinal.4 Como consequência das sequelas, notam-se redução da longevidade média para menos de 40 anos e decréscimo na qualidade de vida, além de custos financeiros. O tratamento realizado, padrão da mielomeningocele, consistiu na correção cirúrgica neonatal. Mesmo após a intervenção cirúrgica, 14% dos neonatos não sobrevivem além dos cinco anos de idade, e para os que sobrevivem a cirurgia não se mostrou suficientemente eficiente para se evitar sequelas.13 As lesões medulares decorrentes de doenças como a mielomeningocele provocam hipomotilidade e dilatação colônicas, queda do tônus e da sensibilidade retal e resposta intestinal diminuída ao estímulo alimentar, o que requer toque retal como estímulo para realizar a evacuação. Essa sensibilidade reduzida determinará o aparecimento da constipação em decorrência do retardo do trânsito intestinal e do comprometimento do adequado esvaziamento retal.14 A constipação intestinal pode ser tratada com adequação da dieta (rica em fibras), utilização de medica-


Acupuntura como coadjuvante no tratamento para constipação intestinal em criança com mielomeningocele: relato de caso

mentos (laxantes) e planejamento de horário regular de evacuação, conforme realizado com a paciente, mas sem êxito na sua melhora. Em casos mais graves, pode-se optar pelo uso de lavagens intestinais periódicas e/ou técnicas alternativas como a acupuntura.13,14 A acupuntura (do grego: acus = agulha, punctura = puntura) consiste na inserção, em alguns milímetros, de agulhas muito finas em pontos específicos da pele. Sob a epiderme há uma rede nervosa, disposta em toda a sua extensão, que transmite e recebe impulsos provindos dos órgãos e músculos. Quando uma percepção é recebida de um órgão, soa um “alarme” nos terminais do nervo sob a pele. O mesmo alarme pode ser sentido pelas mudanças elétricas na pele.15,16 Por possuir comprometimento nervoso sacral, a acupuntura parece ter restabelecido, nessa paciente, a sensibilidade da ampola retal na presença do bolo fecal, promovendo o estímulo adequado para a defecação. Há relatos do uso da acupuntura, com resultados positivos, em pacientes com constipação intestinal como consequência de acidente vascular cerebral isquêmico.11,16

CONCLUSÃO Pacientes com mielomeningocele podem possuir graves sequelas, tanto motoras quanto sensitivas. Muitos desses pacientes podem apresentar complicações refratárias aos tratamentos convencionais como a constipação intestinal e, neste caso, a utilização de estratégias alternativas como a acupuntura pode reduzir tais déficits, como neste relato, permitindo melhoria na qualidade de vida do paciente. É fundamental que estudos longitudinais e com amostras mais significativas sejam feitos para possibilitar relação positiva com elevado grau de confiabilidade.

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RELATO DE CASO

Gestação ectópica abdominal: relato de caso com feto vivo Abdominal ectopic pregnancy: a case report with a live fetus Sara de Pinho Cunha Paiva1, Gabriel Alves Silveira2, Giulia Melendez Conigliaro2, Rafael Alves Silveira2, Carolina Ferraz5

DOI: 10.5935/2238-3182.20150131

RESUMO 1

Medica. Doutora. Professora Adjunta de Ginecologia e Obstetrícia do Centro Universitário de Belo Horizonte-UNIBH. Belo Horizonte, MG – Brasil. 2 Acadêmico(a) do curso de Medicina do UNIBH. Belo Horizonte, MG – Brasil. 3 Médica. Residente de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital Maternidade Odete Valadares da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG). Belo Horizonte, MG – Brasil.

Este trabalho relata o caso de paciente admitida em Pronto-Atendimento, em Belo Horizonte, Minas Gerais, com dor abdominal progressiva e amenorreia, cujo ultrassom abdominal evidenciou gestação ectópica abdominal íntegra com embrião vivo, correspondente a nove semanas de gestação. Gravidez ectópica abdominal é aquela que ocorre fora da cavidade uterina, com implantação e desenvolvimento do saco gestacional dentro da cavidade abdominal. Pode-se manifestar com abdome agudo, que impõe diagnóstico precoce e assistência de urgência. Palavras-chave: Gravidez Ectópica; Gravidez Abdominal; Gravidez Abdominal/diagnóstico; Gravidez Abdominal/ultrassonografia; Gravidez Abdominal/terapia; Complicações na Gravidez. ABSTRACT This study reports the case of a patient admitted to the emergency care in Belo Horizonte, Minas Gerais, with progressive abdominal pain and amenorrhea, whose abdominal ultrasound showed abdominal full ectopic pregnancy with a living embryo, corresponding to nine weeks of gestation. The abdominal ectopic pregnancy occurs outside the uterine cavity, with implementation and development of the gestational sac inside the abdominal cavity. It can manifest as acute abdomen, which requires an early diagnosis and emergency assistance. Key words: Pregnancy, Ectpic; Pregnancy, Abdominal; Pregnancy, Abdominal/diagnosis; Pregnancy, Abdominal/ultrasonography; Pregnancy, Abdominal/therapy; Pregnancy Complications.

INTRODUÇÃO

Recebido em: 10/09/2014 Aprovado em: 11/06/2015 Instituição: Centro Universitário de Belo Horizonte-UNIBH Belo Horizonte, MG – Brasil Autor correspondente: Sara de Pinho Cunha Paiva E-mail: sarapcpaiva@gmail.com

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Gestação ectópica (GE) é definida como implantação e desenvolvimento do saco gestacional fora da cavidade uterina e gestação ectópica abdominal (GEA) quando ocorre dentro da cavidade abdominal.1,2 A GE apresenta alta taxa de incidência em tubas ovarianas, correspondendo a 96 a 99% dos casos, enquanto a GEA é encontrada em 0,5% das gestações.3 A prevalência de GE vem crescendo ao longo dos anos e representa 2% das gestações nos Estados Unidos, sendo a quarta causa de morte materna no Reino Unido.1,2 É responsável por 9% das mortes no primeiro trimestre de gravidez em países desenvolvidos, apesar de sua mortalidade ter diminuído ao longo da última década nesses países. A GEA corresponde a uma a cada 402 gestações nos países desenvol-

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vidos e uma a cada 10.000 gestações nos países em desenvolvimento4. No Brasil, especificamente, não existem medidas de prevalência regionais ou mesmo nacionais dessa doença.5 Este relato alerta para a importância do diagnóstico precoce para prevenção de complicações emergenciais devido às repercussões negativas associadas à GEA, como o aumento importante da morbimortalidade materna devido a complicações hemorrágicas, infecciosas e obstrução intestinal.

RELATO DE CASO Paciente VCA, 34 anos de idade, G1PC1A0, encaminhada à Maternidade Odete Valadares, em Belo Horizonte, MG, devido à dor importante em região de hipogástrio e fossa ilíaca direita, associada à hiporexia, prostração, náuseas, vômitos e síncopes. Os exames laboratoriais mostravam: hemoglobina 9,4 mg/dL, hematócrito 28,1%, global de leucócitos 14.150 mg/dL (sem desvio para a esquerda), plaquetas 220.000/mL, proteína C reativa 14 mg/dL e β-hCG qualitativo positivo e demais exames dentro dos padrões da normalidade. O ultrassom abdominal (US) revelou a presença de cisto complexo parauterino à direita, sugestivo de gravidez ectópica, associado a pequena ascite e imagem sugestiva de plastrão nas adjacências, notadamente superior a esse cisto. O ultrassom transvaginal demonstrou útero de tamanho normal, cavidade endometrial vazia e gestação ectópica íntegra com embrião vivo anexial ou cornual, correspondendo a nove semanas de gestação; e comprimento cabeça-nádegas de 23,3 mm e massa medindo 70 cm3. Evoluiu com instabilidade hemodinâmica, sendo submetida à laparotomia exploratória de urgência, que evidenciou grande quantidade de líquido hemorrágico livre no abdome, saco gestacional (Figura 1) localizado em posição retrouterina, em fundo de saco posterior, tubas uterinas íntegras sem sinais de rotura, dilatadas e endurecidas e demais estruturas pélvicas sem anormalidades. Após drenagem do líquido hemorrágico, foram removidos saco gestacional e placenta e inserido Gelfoam® no local de implantação e transfundidos 900 mL de concentrado de hemácia, com melhora do sangramento. Encaminhada à terapia intensiva (CTI), permaneceu por três dias, com boa recuperação.

Figura 1 - Visão macroscópica da placenta com coágulos e saco gestacional contendo embrião de nove semanas, removidos do abdome durante laparotomia.

DISCUSSÃO A GEA ocorre quando o ovo se implanta e desenvolve na cavidade abdominal, podendo ser resultado de aborto tubário (GEA secundária) ou, mais raramente, da direta implantação do ovo na cavidade peritoneal (GEA primária).4 Ao contrário das gestações ectópicas tubárias e ovarianas, a GEA pode se desenvolver até o termo, porém há mais riscos de malformações de estruturas fetais. Menos de 50% desses fetos sobrevivem, devido às precárias condições de irrigação sanguínea em que se dá a nidação.7 A ocorrência de GE vem se elevando nas últimas décadas, devido ao aumento do número de fatores de risco que a predispõem, como: gestação em idade avançada, tabagismo, doença inflamatória pélvica, malformações uterinas, cirurgias tubárias e gravidez ectópica prévia.8 A paciente do estudo não havia planejado a gravidez, era primigesta, possuía idade limítrofe (34 anos) e não apresentava fatores predisponentes à gestação ectópica.8 O sintoma mais comum da GEA é a dor abdominal, principalmente associada aos movimentos fetais em gestações mais avançadas. O exame físico pode evidenciar massa na cavidade pélvica ou abdominal e útero pequeno para idade gestacional. A palpação de partes fetais fora do útero pode ser achado em gestações mais avançadas.7 O diagnóstico precoce da GE mostra-se essencial na redução do risco de ruptura, além de melhorar o prognóstico quando se faz uso de terapias conservadoras.3 Na maioria das vezes o diagnóstico de GEA

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é intraoperatório (40%).3,4 O US ou transvaginal pode mostrar claramente a gravidez fora do útero, possibilitando, assim, o diagnóstico de certeza dessa doença em mais de 75% dos casos.7 As características ultrassonográficas da GEA incluem feto fora do útero, cavidade uterina vazia, ausência da limitação uterina entre bexiga e feto, localização extrauterina da placenta, má-visualização da placenta, oligodrâmnio ou ausência de líquido amniótico entre feto e placenta, partes fetais adjacentes à cavidade abdominal materna e apresentação fetal anormal.4 A GEA deve ser interrompida no momento do diagnóstico para evitar complicações maternas como hemorragia, infecção, anemia, coagulação intravascular disseminada, embolismo pulmonar e fístula gastrintestinal devido à presença de ossos fetais. A conduta expectante pode ser considerada em casos excepcionais, quando houver um dos seguintes critérios: diagnóstico após 24 semanas, ausência de malformações fetais, estabilidade hemodinâmica materna, monitorização de bem-estar fetal contínua, inserção de placenta distante do fígado e baço e quantidade suficiente de líquido amniótico, podendo-se aguardar a maturidade pulmonar fetal.4,9,10 Devido ao diagnóstico prévio de GEA e à instabilidade hemodinâmica apresentada pela paciente, a abordagem terapêutica seguiu o protocolo de Urgências Obstétricas da Prefeitura de Belo Horizonte de 2010, sendo realizada laparotomia exploratória. A cirurgia é o tratamento padrão-ouro, dando preferência à laparotomia com incisão mediana, especialmente se há risco de hemorragia. Durante a remoção da placenta há alto risco de hemorragia, já que não há contrações miometriais. Na ausência de hemorragia a placenta é deixada in situ; entretanto, são comuns algumas complicações como formação de abscessos, aderências, obstrução intestinal ou uretral e deiscência de ferida operatória. No pós-operatório, as pacientes devem permanecer sob cuidados intensivos.4,11,12 O uso de metotrexato para acelerar a involução placentária ainda é controverso na GEA. Acredita-se que seu uso pode acelerar a formação de tecido necrótico placentário, aumentado o risco de complicações maternas.12 Não foram encontrados relatos na literatura que discutissem o prognóstico reprodutivo das pacientes com GEA, independentemente da terapêutica empregada.

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CONCLUSÃO O caso relatado demonstra que a GEA é condição de alta morbimortalidade, havendo grande importância do manejo clínico-obstétrico associado a exames complementares. O ultrassom transvaginal ou abdominal permite a confirmação da GEA e determinação do seu local de implantação, proporcionando imediato plano de tratamento ou acompanhamento para a paciente, com diminuição das complicações e redução da morbimortalidade para essas pacientes.

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ARTIGO ORIGINAL

Pancreatite de sulco: relato de caso Groove pancreatitis: a case report Rosane Terra Silva1, Luís Gustavo Mapa Santos1

DOI: 10.5935/2238-3182.20150132

RESUMO A pancreatite de sulco (PS) ou pancreatite de sulco é uma forma distinta de pancreatite crônica que afeta a região do sulco duodenopancreático. É entidade clínica que merece relato devido ao diagnóstico diferencial com o câncer de cabeça de pâncreas, o que nem sempre é fácil de ser realizado. Este relato aborda paciente de 42 anos de idade, masculino, etilista com manifestações clínicas, sorológicas e radiológicas compatíveis com o diagnóstico de PS. O diagnóstico da PS permanece raro e sua confirmação categórica pode ser extremamente difícil, sendo necessária, muitas vezes, a realização de várias punções aspirativas por agulha fina guiadas por ultrassonografia para excluir malignidade adjacente e, mesmo assim, permanecer sem diagnóstico ou até proceder à cirurgia para sua determinação fidedigna, como observado neste estudo.

1 Acadêmico(a) do curso de Medicina da Universidade José do Rosário Vellano – Unifenas. Estagiário no Hospital Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte. Belo Horizonte, MG – Brasil.

Palavras-chave: Pancreatite; Pancreatite/diagnostico; Pancreatite/etiologia; Pancreas/ patologia; Neoplasias Pancreáticas. ABSTRACT The groove pancreatitis (PS) is a distinct form of chronic pancreatitis affecting the duodenal pancreatic groove region. It is a clinical entity that deserves reporting because of the differential diagnosis of pancreatic head cancer, which is not always easy to achieve. This report shows a patient at 42 years of age, male, alcoholic with clinical, serological, and radiological manifestations consistent with the diagnosis of PS. The PS diagnosis remains rare, and its categorical confirmation can be extremely difficult requiring often several fine needle aspirates guided by ultrasound to rule out adjacent malignancy, and still might remain undiagnosed, or proceed to surgery for a reliable determination, such as observed in this study. Key words: Pancreatitis; Pancreatitis/diagnosis; Pancreatitis/etiology; Pancreas/ pathology; Pancreatic Neoplasms.

INTRODUÇÃO A pancreatite de sulco (PS) é forma distinta de pancreatite crônica que afeta a região do sulco (groove) duodenopancreático. situado entre a cabeça do pâncreas, o duodeno e o colédoco. Foi descrita inicialmente por Becker, em 1973.1 É entidade clínica que merece relato, pois possui como diagnóstico diferencial o câncer de cabeça de pâncreas. A distinção entre essas duas entidades pode ser extremamente difícil, requerendo muitas vezes a necessidade de cirurgia para o estabelecimento de seu diagnóstico definitivo.2

Recebido em: 15/01/2015 Aprovado em: 02/05/2015 Instituição: Universidade José do Rosário Vellano – Unifenas Belo Horizonte, MG – Brasil Autor correspondente: Rosane Terra Silva E-mail: rosane_terra@yahoo.com

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Pancreatite de sulco: relato de caso

RELATO DO CASO CSM, 42 anos de idade, masculino, pardo, comerciante, natural e procedente do estado do Ceará. Internado na Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte devido à dor em faixa no quadrante superior do abdome associada à icterícia, colúria, acolia e plenitude epigástrica pós-prandial. Etilista e tabagista (30 anos-maço). Encontrava-se ictérico (3+/4+), com tensão aumentada em região epigástrica e fígado palpável a 1 cm do rebordo costal direito. Os exames laboratoriais mostraram TGO: 56 U/dL, TGP: 61 U/ dL, fosfatase alcalina: 1.296 U/dL, Gama GT: 206 U/ dL, bilirrubina total: 36,58 mg%, bilirrubina direta: 25,23 mg%, bilirrubina indireta: 11,35 mg%, PCR: 40,5 e amilase: 99 U/dL. A ultrassonografia abdominal evidenciou nodulação em cabeça de pâncreas, barro biliar associado à microcálculos e dilatação do ducto colédoco. A tomografia computadorizada (TC) confirmou a lesão em massa expansiva em cabeça de pâncreas sugestiva de neoplasia primária de pâncreas. Foi realizada, a seguir, a exploração cirúrgica do pâncreas, que não sugeriu neoplasia de cabeça de pâncreas, nem acometimento de linfonodos regionais ou metástases locais. Foi realizado PAAF em região de cabeça de pâncreas, que revelou hemácias e vários grupos de células com acentuados artefatos causados por ressecamento, indicando material inadequado para a realização adequada da análise. Foi realizada, a seguir, colangiopancreatografia retrógrada endoscópica transoperatória na tentativa de diferenciar o câncer de cabeça de pâncreas de tumores periampulares, uma vez que, por meio da TC, não foi possível elucidar completamente a lesão. Confirmaram-se dilatação significativa do colédoco e a presença de múltiplos cálculos em seu interior, não sendo possível a sua remoção total. Optou-se, a seguir, pela realização de coledocojejunostomia, procedimento de drenagem para permitir a eliminação de quaisquer cálculos residuais ou recorrentes para o intestino. Realizadas a colecistectomia e a análise do material coletado, evidenciou-se vesícula com fibrose parietal, hipertrofia muscular e infiltrado inflamatório crônico sugestivo de colecistite crônica. Foi introduzido um tubo em T, após a exploração cirúrgica do canal biliar, para assegurar um orifício para descompressão biliar, caso contrário, poderia causar o extravasamento de bile pela linha de sutura. A evolução clínica foi para a estabilidade, mantendo-se afebril, normotenso, com melhora progres-

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siva da icterícia e dor aos esforços, mas com melhora após uso de analgesia menor. A ferida operatória manteve-se limpa e seca e a diurese dentro da volemia normal. A alta hospitalar ocorreu sete dias após a realização da cirurgia.

DISCUSSÃO A PS é comum em homens relativamente jovens e, na maioria das vezes, com abuso de álcool. Sua patogênese ainda não está bem estabelecida, mas relaciona-se a fatores de risco como úlcera péptica, hipersecreção gástrica, heterotopia pancreática e distúrbios no fluxo do suco pancretático, sem evidências desua relação com cálculos biliares ou distúrbios autoimunes.3,4 Sua manifestação clínica é variável e alguns pacientes podem evoluir à semelhança da pancreatite aguda e outros de forma crônica. Na forma aguda, é mais comum haver dor abdominal de forte intensidade, náuseas e vômitos, enquanto na forma crônica assemelha-se, especialmente, à neoplasia em vez de pancreatite, com icterícia e emagrecimento.1,5 Este relato mostra clínica da forma crônica (icterícia, colúria e acolia) associada à agudização (dor abdominal em faixa) e massa palpável epigástrica. As alterações sorológicas aferidas nesse paciente são semelhantes às descritas na literatura, com enzimas pancreáticas normais ou ligeiramente aumentadas, níveis aumentados de bilirrubina (associados à obstrução do ducto colédoco) e de fosfatase alcalina. Os marcadores tumorais, usualmente negativos na PS, não foram aferidos neste caso.1 Os achados radiológicos da PS assemelham-se em muito com o adenocarcinoma pancreático. A localização da PS é importante para a diferenciação com neoplasia; entretanto, a exclusão de uma dessas entidades por métodos de imagem é extremamente difícil.6 É importante ressaltar, neste caso, a dilatação do ducto colédoco, achado frequente na PS em suas duas formas (pura e segmentar); entretanto, o achado de barro biliar proporciona mais um fator de importância para a sua associação com cálculos biliares.7 A busca pelo diagnóstico de certeza exigiu a realização de métodos cirúrgicos por várias vezes, incluindo a biópsia de vesícula e pâncreas e aspirado de lesão pancreática. O resultado inconclusivo confirma a descrição da literatura, que recomenda que o diagnóstico de PS não pode ser feito com base no aspirado e citologia. E cita ser muito difícil excluir


Pancreatite de sulco: relato de caso

com precisão uma neoplasia subjacente com esses resultados negativos.

CONCLUSÃO Este relato apresenta achados compatíveis com PS, porém o diagnóstico definitivo é extremamente difícil e pode requerer vários métodos propedêuticos e ainda permanecer sem diagnóstico definitivo.5,8,9

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RELATO DE CASO

Schwannoma melanocítico da coluna lombar: relato de caso e revisão de literatura Melanocytic schwannoma of the lumbar spine: a case report and literature review Charbel Jacob Junior1, Rodrigo dos Santos Lugão2, Igor Machado Cardoso1, José Lucas Batista Junior1, Luciene Lage da Motta3, Nathália Ambrozim Santos Saleme 4, João Bernardo Sancio Rocha Rodrigues5

DOI: 10.5935/2238-3182.20150133

RESUMO Médico Ortopedista e Cirurgião da Coluna. Hospital Santa Casa de Misericórdia de Vitória (HSCMV). Vitória, ES – Brasil. 2 Médico Cirurgião-Geral e Oncologista. HSCMV. Vitória, ES – Brasil. 3 Médica Patologista. Especialista em Anatomia Patológica. HSCMV. Vitória, ES – Brasil. 4 Médica. Residente de Clínica Médica da Faculdade de Medicina do ABC. Santo André, SP – Brasil 5 Médico. Residente de Cirurgia Geral do Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG – Brasil. 1

Os schwannomas são tumores benignos, geralmente solitários, encapsulados e de crescimento lento, que têm sua origem nas células de Schwann neoplásicas diferenciadas, com desenvolvimento habitual extramedular intradural relacionado a raízes nervosas. O schwannoma melanocítico é variante dessas neoplasias cuja localização em quase um terço dos casos está na raiz nervosa posterior, com apresentação clínica inespecífica. A ressonância magnética é o exame de imagem mais utilizado em seu diagnóstico, revelando imagens hiperintensas em T1 e hipointensas em T2. A confirmação diagnóstica é obtida a partir do estudo histológico e imuno-histoquímico, em que se observa intensa pigmentação citoplasmática. Existem dois tipos distintos de schwannomas melanocíticos: o esporádico e o psammomatoso, este último relacionado ao chamado complexo de Carney, uma forma de neoplasia endócrina múltipla de caráter familiar. Existem poucos relatos dessas neoplasias, sendo a maior série composta de cinco casos. O objetivo deste relato é descrever um raro caso de schwannoma melanocítico da coluna lombar do tipo esporádico de localização extramedular. Apresenta-se breve revisão de literatura contendo as principais características do tumor, incluindo suas diferentes formas, diagnósticos diferenciais, estudo histológico e imuno-histoquímico, bem como a abordagem atualmente preconizada, a fim de colaborar para o melhor entendimento dessa neoplasia. Palavras-chave: Coluna Vertebral; Neoplasias da Coluna Vertebral; Células de Schwann; Manipulação da Coluna. ABSTRACT

Recebido em: 03/12/2014 Aprovado em: 28/01/2015 Instituição: Hospital Santa Casa de Misericórdia de Vitória – HSCMV Vitória, ES – Brasil Autor correspondente: João Bernardo Sancio Rocha Rodrigues E-mail: joao.sancio@hotmail.com

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Schwannomas are benign, usually solitary, encapsulated and of slow growth tumors, which have their origin in differentiated neoplastic Schwann cells, with extramedullary intradural usual development related to nerve roots. The melanocytic schwannoma is a variant of these tumors whose location is on the posterior nerve root, with a nonspecific clinical presentation in almost a third of cases. MRI is the most commonly used imaging test in the diagnosis, revealing hyperintense images in T1 and hypointense in T2. The diagnostic confirmation is obtained from the histological and immunohistochemical study where intense cytoplasmic pigmentation is observed. There are two distinct types of melanocytic schwannomas: sporadic and psammomatous; the latter related to the called Carney complex, a form of multiple endocrine neoplasias with a familial character. There are few reports of these neoplasms; the greatest series is composed of five cases. The objective of this report is to describe a rare case of melanocytic schwannoma of the lumbar spine of the sporadic type and extramedullary location. A brief review of the literature containing the main tumor characteristics is presented, including its different forms, differential diagnosis,

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Schwannoma melanocítico da coluna lombar: relato de caso e revisão de literatura

histological and immunohistochemical study, and the currently recommended approach in order to contribute to a better understanding of this neoplasia. Key words: Spine; Spinal Neoplasms; Schwann Cells; Manipulation, Spinal.

INTRODUÇÃO Os schwannomas são tumores benignos, geralmente solitários, encapsulados e de crescimento lento, que têm sua origem nas células de Schwann neoplásicas diferenciadas, representando aproximadamente 30% das neoplasias primárias da coluna vertebral, com desenvolvimento habitual extramedular intradural relacionado a raízes nervosas.1 O schwannoma melanocítico é variante dessas neoplasias e se apresenta em faixa etária mais jovem quando comparado aos demais schwannomas,1 localizando-se, em quase um terço dos casos, na raiz nervosa posterior,2,3 embora também possa ser encontrado em tecidos moles, coração, órbita, cavidade oral, estômago, brônquios, retroperitônio, colo uterino e parótida.1,2 Possui apresentação clínica inespecífica, com dor secundária à compressão radicular, disestesias, além de déficits motores e sensitivos progressivos.2,3 A ressonância magnética (RM) é o exame de imagem mais utilizado em seu diagnóstico, revelando imagens hiperintensas em T1 e hipointensas em T2, enquanto que nos schwannomas do tipo não melanocítico o padrão de imagens é o oposto.2-4 São poucos os casos relatados de schwannoma melanocítico com sítio na coluna vertebral, sendo a maior série composta de cinco casos.2 Este trabalho relata um caso de schwannoma melanocítico da coluna lombar, com revisão da literatura pertinente a essa neoplasia.

RELATO DO CASO Paciente masculino, 37 anos de idade, sem comorbidades prévias, foi encaminhado ao Serviço de Cirurgia da Coluna Vertebral do Hospital Santa Casa de Misericórdia de Vitória (HSCMV), com dor de forte intensidade iniciada há dois meses em região lombar alta, com irradiação para face anterolateral de coxa direita, padrão radicular de L1 e L2. A radiografia anteroposterior da coluna revelou apagamento do pedículo de L1 à direita, enquanto a tomografia computadorizada (TC) e a ressonância nu-

clear magnética (RM) da coluna lombar salientaram volumosa lesão expansiva de caráter agressivo, com sinal espontaneamente hiperintenso em T1, heterogeneamente baixo em T2, em toda a metade direita do corpo vertebral de L1. Registrou-se também ruptura do arco posterior da cortical lateral acometendo o forame neural L1-L2 direito, com componente intracanalar e forma de “halteres” e sem plano de clivagem com o ventre do psoas homolateral. A lesão média 7,8 x 4,2 x 2,6 cm (LxTxAP) determinava alargamento do forame neural correspondente e efeito compressivo com redução da amplitude do canal vertebral (Figura 1).

Figura 1 - Ressonância magnética em cortes sagital (à esquerda) e coronal (à direita) em T1: lesão expansiva hiperintensa destruindo corpo vertebral de L1, comprimindo canal medular e infiltrando músculo psoas direito.

Foi realizada a abordagem cirúrgica por via posterior, com ressecção dos elementos vertebrais posteriores e liberação da vértebra e do músculo iliopsoas bilateralmente, seguido da instrumentação dois níveis abaixo e acima do local da lesão. Foi também coletado material para estudo histopatológico, o qual mostrou padrão morfológico fusiforme, com intensa pigmentação citoplasmática, sugestivo de melanoma metastático. O exame imuno-histoquímico, no entanto, ressaltou expressão citoplasmática e nuclear de proteína S100, vimentina, HMB-45, Ki-67 e SP6, concluindo, com base nesses achados e nas características morfológicas da lesão, tratar-se de schwannoma melanocítico do tipo não psammomatoso (Figura 2). O paciente evoluiu bem no pós-operatório, retornando a deambular no dia seguinte. Após 15 dias o paciente foi reoperado, desta vez por via anterior com acesso retroperitoneal a L1, sendo visibilizada tumoração que invadia o músculo iliopsoas direito, encapsulando o nervo genitofemoral homolateral. Rev Med Minas Gerais 2015; 25(4): 616-620

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Schwannoma melanocítico da coluna lombar: relato de caso e revisão de literatura

Optou-se por ressecção total em bloco do tumor juntamente com o corpo anterior de L1 e o músculo em que se infiltrava, associado à artrodese anterior com enxerto autólogo do ilíaco (Figuras 3 e 4).

Figura 2 - Estudo histopatológico A (x20) e B (x40): padrão morfológico fusiforme com intensa pigmentação citoplasmática. Estudo imuno-histoquímico mostrando positividade para proteína S100 (C – x20) e Vimentina (D – x40).

Figura 3 - A: Aspecto final do intraoperatório: artrodese vertebral anterior com enxerto autólogo de ilíaco. B: Peça cirúrgica: ressecção em bloco do tumor.

Realizada drenagem de tórax e colocação de dreno suctor. Paciente evoluiu no pós-operatório imediato com neuropraxia da raiz de L2, recuperando-se após um mês de fisioterapia motora.

Figura 4 - Radiografia em PA (à esquerda) e perfil (à direita) da coluna lombar mostrando a artrodese lombar com enxerto autólogo do ilíaco.

DISCUSSÃO A revisão de literatura, incluindo sexo e idade dos pacientes, localização e nível da lesão, bem como o tratamento adotado e o seguimento dos casos estão ilustrados nas Tabelas 1 e 2. Foi encontrada idade média de cerca de 50 anos, estando o sexo masculino presente em pouco mais da metade dos casos revisados. O nível torácico foi o mais acometido, com predomínio de localização extramedular (oito dos 11 casos relatados), assim como observado neste relato, em que se encontrou desenvolvimento da lesão extramedular e intradural.

Tabela 1 - Casos relatados de Schwannoma melanocítico quanto ao ano da publicação, autor, idade e sexo dos pacientes, nível e localização da lesão na coluna vertebral Autor

Idade (anos)

Sexo**

Nível

Localização*

1979

Ano

Paris et al.10

49

F

Cervical

Extra

2004

Santaguida et al.1

35

M

Cervical

Intra

2005

Tawk RG et al.

61

M

Torácico

Extra

2006

De Cerchio L et al.3

53

M

Torácico

Extra

2008

Mouchaty et al.5

56

F

Toracolombar

Intra

2011

Shields LB et al.8

2012 2012

9

65

F

Torácico

Extra

33

M

Lombossacral

Extra

Welling LC et al.2

50 (três casos)***

2M/1F

N/I****

Extra

Hoover JM et al.

62

F

Torácico

Intra

4

*Em relação à medula espinhal – Extra: extramedular. Intra: intramedular. **M: masculino. F: feminino. ***Média de idade entre os casos. ****Não informado.

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Schwannoma melanocítico da coluna lombar: relato de caso e revisão de literatura

Tabela 2 - Revisão de literatura quanto à característica da ressecção de Schwannoma melanocítico e recidiva da lesão Ano

Autor

Ressecção

1979

Paris et al.

Completa

Ausente em 4 anos

2004

Santaguida et al.1

Completa

Presente com 2 anos

2005

Tawk RG et al.9

Completa

N/I*

2006

De Cerchio L et al.

Completa

Ausente em 2 anos

2008

Mouchaty et al.5

10

3

Recidiva tumoral

Completa

Ausente em 1 ano

Parcial

Óbito no pós-operatório

2011

Shields LB et al.8

Completa

Presente em 2 anos

2012

Welling LC et al.2

N/I*

N/I*

2012

Hoover JM et al.

Completa

Ausente em 10 meses

4

*Não informado.

A ressecção parcial foi adotada em apenas um dos relatos, quando houve óbito no pós-operatório imediato. Em dois casos houve recidiva local do tumor após dois anos de seguimento, havendo relato de ausência de retorno da lesão em quatro casos, embora o tempo de seguimento tenha sido considerado curto, com média de pouco menos de dois anos (entre 10 meses e quatro anos). Existem dois tipos distintos de schwannomas melanocíticos: o esporádico ou não psammomatoso e o schwannoma melanocítico psammomatoso, este último relacionado, em 50% das vezes, ao chamado complexo de Carney.1 Trata-se de neoplasia endócrina múltipla familiar de herança autossômica dominante, caracterizada por pigmentação cutânea e mucosa, doença nodular pigmentar primária das adrenais, mixomas cardíacos e cutâneos, adenomas hipofisários produtores de GH e prolactina, neoplasia testicular, adenoma ou carcinoma da tireoide, além de cistos ovarianos.1,7 Dada a associação da doença com manifestações sistêmicas, além de sua natureza hereditária, a investigação ativa do paciente e de seus familiares é de fundamental importância para a prevenção de eventos futuros.8 Neste relato, o paciente não apresentava história familiar ou componentes do complexo de Carney. Os principais diagnósticos diferenciais dos schwannomas melanocíticos incluem o melanoma maligno, meningioma e neurofibroma pigmentados, rabdomiossarcoma, sarcoma de células claras de partes moles, meduloblastoma melanocítico, ganglioneuroblastoma, entre outros.8 Inicialmente, grande parte dos pacientes recebe o diagnóstico de melanoma maligno primário ou me-

tastático.6 Na microscopia, os schwannomas melanocíticos são compostos tipicamente de células com abundante pigmentação intracitoplasmática de melanina, além de corpos psammomatosos nos casos de lesão não esporádica. O estudo imuno-histoquímico revela padrão de coloração típica para outros tumores da bainha dos nervos, expressando fortemente proteína S-100, Leu-7 e vimentina, enquanto GFAP, CK e EMA são negativos. A positividade para HMB-45 e Melan-A é descoberta inesperada tendo em vista que esses anticorpos são considerados relativamente específicos para o diagnóstico do melanoma maligno.6 Em 10% dos casos os schwannomas melanocíticos são tumores malignos,1,4,5 o que sugere que células de schwann melanocíticas podem predispor à transformação maligna em alguns pacientes. Quanto ao seu potencial de recorrência, encontram-se na literatura taxas que variam de 18,2 6 a 24%5, estando quase sempre relacionado a ressecções incompletas.1-5 Além disso, estudos demonstraram que, dos pacientes que foram acompanhados por mais de cinco anos, somente pouco mais da metade estava livre da doença ao final do seguimento, o que sugere que o acompanhamento em longo prazo é necessário para avaliar a recidiva tumoral e o risco de metástases.6 Assim, a abordagem cirúrgica ideal permanece sendo a ressecção completa do tumor sem que se agrave o déficit neurológico, dependendo o sucesso da cirurgia do grau de malignidade e de metástases ósseas e viscerais.8 O valor do tratamento radioterápico permanece incerto,2 necessitando de mais estudos prospectivos e com mais tempo de seguimento para que se possa compreender melhor a história natural, prognóstico e formas de abordagem da lesão.

CONCLUSÃO O schwannoma melanocítico é neoplasia extremamente rara, de apresentação clínica inespecífica e cujo exame de imagem mais utilizado no diagnóstico é a RM. A confirmação é obtida por meio do estudo histológico e imuno-histoquímico. O principal diagnóstico diferencial é o melanoma maligno. O tratamento é essencialmente cirúrgico, objetivando a ressecção completa do tumor, estando a recorrência quase sempre relacionada a ressecções incompletas.

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Schwannoma melanocítico da coluna lombar: relato de caso e revisão de literatura

AGRADECIMENTOS

4. Hoover JM, Bledsoe JM, Giannini C, Krauss WE. Intramedullary melanotic schwannoma. Rare Tumors. 2012 Jan 2; 4(1):e3.

Ao Dr. Rodrigo Rezende (in memoriam), por sua dedicação e orientação enquanto esteve entre nós.

5. Mouchaty H, Conti R, Buccoliero AM, Conti P. Intramedullary melanotic schwannoma of the conus medullaris: a case report. Spinal Cord. 2008 Oct; 46(10):703-6.

REFERÊNCIAS 1. Santaguida C, Sabbagh AJ, Guiot MC, Del Maestro RF. Aggressive intramedullary melanotic schwannoma: case report. Neurosurgery. 2004 Dec; 55(6):1430. 2. Welling LC, Guirado VM,Tessari M, Felix AR, Zanellato C. Spinal melanotic schwannomas. Arq Neuropsiquiatr. 2012 Feb; 70(2):156-7. 3. De Cerchio L, Contratti F, Fraioli MF. Dorsal dumb-bell melanotic schwannoma operated on by posterior and anterior approach: case report and a review of the literature. Eur Spine J. 2006 Oct; 15(Suppl 5):664-9.

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6. Zhang HY,Yang GH, Chen HJ, Wei B, Ke Q, Guo H, et al. Clinicopathological, immunohistochemical, and ultrastructural study of 13 case with melanotic schwannoma. Chin Med J. 2005; 118:1451-61. 7. Almeida MQ,Villares MCBF, Mendonca BB. Complexo de Carney: relato de um caso e revisão da literatura. Arq Bras Endocrinol Metab. 2004; 48(4):544-54. 8. Shields LB, Glassman SD, Raque GH, Shields CB. Malignant psammomatous melanotic schwannoma of the spine: A component of Carney complex. Surg Neurol Int. 2011; 2:136. 9. Tawk RG, Tan D, Mechtler L, Fenstermaker RA. Melanotic schwannoma with drop metastases to the caudal spine and high expression of CD117 (c-kit). J Neurooncol. 2005 Jan; 71(2):151-6. 10. Paris F, Cabanes J, Muñoz C, Tamarit L. Melanotic spinothoracic schwannoma. Thorax. 1979 Apr; 34(2):243-6.


IMAGEM

Caso 20 Case 20 Luiz Carlos Molinari1, Júlio Guerra Domingues2, André Ribeiro Guimarães 3, Fernando de Carvalho Bottega3, Júlia Alvarenga Petrocchi3, Joel Edmur Boteon4

DOI: 10.5935/2238-3182.20150134

RELATO DE CASO Paciente feminina, faioderma, 24 anos, residente em Belo Horizonte – MG, sem sintomas oculares prévios, queixa de aparecimento de manchas avermelhadas no olho direito há 30 dias. Ao exame externo apresenta olhos alinhados nas diversas posições do olhar, pupilas isocóricas, circulares e centradas, com reflexos sem alterações. Pálpebras sem alterações. Na conjuntiva bulbar do olho direito observam-se duas manchas rosadas que, ao exame biomicroscópico, apresentam-se como massas moles, lobuladas, cada qual com seu pedículo. Acuidade visual, fundoscopia e pressão intraocular sem alterações. Baseado na história clínica do paciente e no exame ocular, qual o diagnóstico mais provável?

Figura 1 - Conjuntiva bulbar do olho direito ■■ ■■ ■■ ■■

carcinoma conjuntival de células escamosas; carcinoma espinocelular da conjuntiva; papiloma conjuntival; sarcoma de Kaposi.

1 Médico Oftalmologista. Professor colaborador do Departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Belo Horizonte, MG – Brasil. 2 Médico. Hospital São Geraldo – UFMG. Belo Horizonte, MG – Brasil. 3 Acadêmico(a) do Curso de Medicina na Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte, MG – Brasil. 4 Médico Oftalmologista. Doutor. Professor Associado do Departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte, MG – Brasil.

Recebido em: 14/11/2015 Aprovado em: 01/12/2015 Instituição: Faculdade de Medicina da UFMG Belo Horizonte, MG – Brasil Autor correspondente: Joel Edmur Boteon E-mail: botteon.ufmg@gmail.com

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Caso 20

ANÁLISE DA IMAGEM

Figura 2 - O olho direito apresenta na conjuntiva bulbar uma lesão maior (demarcada em verde), medindo 9,6 mm na horizontal por 6,2 mm na vertical, localizada na posição das seis horas a 27 mm do limbo corneano, e outra menor (demarcada em azul), medindo 3,7 mm na horizontal por 4,8 mm na vertical, localizada a 2,6 mm do limbo corneano, no meridiano das quatro horas. Essas lesões, ao serem manipuladas, comportam-se como massas rosadas e moles, lobuladas, cada qual sustentada por um pedículo estreito. A lesão menor é pouco elevada, translúcida e com rede vascular radial. Já a maior é mais elevada, de superfície lisa e rósea, na qual se destaca um salpicado de pontos vasculares em vermelho.

DIAGNÓSTICO O papiloma conjuntival é normalmente encontrado em indivíduos jovens e não altera a acuidade visual do paciente. No exame biomicroscópico pode ser séssil ou possuir um pedículo, como no caso apresentado. A lesão menor é típica em seu aspecto pouco elevado, translúcido com rede vascular radial. Este achado corrobora a hipótese de papiloma conjuntival. A lesão maior pode ser confundida com carcinoma conjuntival de células escamosas, normalmente encontrado em pacientes brancos e idosos expostos excessivamente à luz solar. O tumor tem aspecto de nódulo branco ou rosa-amarelado na região anterior do olho, superficial, para o qual convergem vasos dilatados. O carcinoma espinocelular da conjuntiva é o tumor mais comum da conjuntiva e tem como fatores de risco idade avançada, exposição aos raios ultravioletas, aos derivados do petróleo, fumaça de cigarro, infecção pelo papilomavírus humano e pelo vírus

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da imunodeficiência adquirida humana. A maior parte deles localiza-se na área interpalpebral ou região perilímbica, assumindo crescimento papilomatoso ou pode apresentar aspecto leucoplásico. O sarcoma de Kaposi é atualmente observado em indivíduos jovens afetados pela síndrome da imunodeficiência adquirida, podendo ser manifestação precoce dessa enfermidade. Aparece como nódulos vermelhos ou violáceos subepiteliais na conjuntiva palpebral ou no fórnice conjuntival. Histologicamente são formados por células fusiformes de núcleo oval e inúmeros capilares. A biópsia excisional é a técnica básica para o diagnóstico e tratamento dos tumores da conjuntiva. A remoção em bloco da lesão e exame anatomopatológico estão indicados quando a extensão do tumor permite e o diagnóstico clínico é duvidoso. O esfregaço do raspado da lesão conjuntival processado pela técnica de Papanicolaou tem alta especificidade (100%) e sensibilidade (92,9%) para o papiloma conjuntival.

DISCUSSÃO DO CASO O papiloma conjuntival é um tumor benigno do epitélio escamoso estratificado da conjuntiva, mais frequente em homens entre 20 e 39 anos de idade. Consiste em tecido fibrovascular, geralmente localizado em conjuntiva medial e inferior, com crescimento exofítico, invertido ou misto. A doença não tem causa conhecida, mas tem sido fortemente associada à infecção pelo vírus do papiloma humano (HPV), à exposição a radiações UVs, à imunodeficiência e ao tabagismo. A vacinação contra o HPV tende a diminuir sua incidência e recorrência. O papiloma pode apresentar-se de diferentes formas. Geralmente é único, extenso e mais vascular em adultos e múltiplos, pequenos e mais recidivantes em crianças. A progressão para carcinoma é rara. O paciente pode ser assintomático ou relatar sensação de corpo estranho, aumento na produção de muco e incapacidade de fechar as pálpebras totalmente. O tratamento varia de acordo com a sintomatologia e tamanho das lesões. Lesões sésseis e/ou assintomáticas admitem conduta expectante. As lesões maiores e sintomáticas, por sua vez, exigem tratamento cirúrgico com posterior crioterapia para evitar recidivas. Alguns medicamentos podem auxiliar na diminuição de recorrências como a mitomicina C, o 5-fluorouracil, a cimetidina e o interferon α-2β.


Caso 20

ASPECTOS RELEVANTES ■■

■■

■■

■■

■■

■■

■■

o papiloma conjuntival é um tumor benigno do epitélio escamoso estratificado da conjuntiva, mais frequente em homens (2:1) e adultos; tem associação com HPV, radiação UV, imunodeficiência e tabagismo; em adultos, é geralmente único e extenso, com quadro clínico variável; em crianças, geralmente são múltiplos, menores e têm mais chance de recidiva; a biópsia excisional está indicada quando a extensão do tumor permite e há dúvida no diagnóstico clínico; lesões pequenas admitem conduta expectante enquanto lesões maiores e sintomáticas exigem tratamento cirúrgico e crioterapia; tem bom prognóstico, sendo rara a progressão para carcinoma.

REFERÊNCIAS 1. Pereira APF. Lesões não melanocíticas da conjuntiva [dissertação]. Coimbra: Universidade de Coimbra, Faculdade de Medicina; 2010. 2. Alves LFA, Fernandes BF, Burnier JV, Zoroquiain P, Eskenazi DT, Burnier Jr MN. Incidence of epithelial lesions of the conjunctiva in a review of 12,102 specimens in Canada (Quebec). Arq Bras Oftalmol. 2011; 74(1):21-3. 3. Buggage RR, Smith JA, Shen D, Chan C. Conjunctival papillomas caused by human papillomavirus type 33. Arch Ophthalmol. 2002; 120(2):202-4. 4. Lima CGMG,Veloso JCB,Tavares AD, Jungman P,Vasconcelos AA. Método citológico e histopatológico no diagnóstico das lesões da conjuntiva: estudo comparativo. Arq Bras Oftalmol. 2005; 68(5):623-6.

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Expediente

Corpo Editorial EDITOR GERAL

Uma publicação do INSTITUTO DE ENSINO E PESQUISA EM SAÚDE (IEPS)

Editor Geral: Enio Roberto Pietra Pedroso

Mantenedoras: Associação Médica de Minas Gerais – AMMG Presidente: Lincoln Lopes Ferreira • Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais – CRM-MG Presidente: Itagiba de Castro Filho • Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais – FCMMG-Feluma Diretor: Neylor Pace Lasmar • Faculdade de Medicina da UFMG – FM/UFMG Diretor: Tarcizo Afonso Nunes • Unimed-BH Cooperativa de Trabalho Médico Ltda – UNIMED-BH Presidente: Samuel Flam •

Editor Administrativo: Maria Piedade Fernandes Ribeiro Leite

EDITORES ASSOCIADOS Cirurgia

Revisores:

Andy Petroianu Faculdade de Medicina da UFMG Belo Horizonte – MG, Brasil

Conselho Curador (mandato – Nov. 2014 / Nov. 2015): Paulo Pimenta de Figueiredo Filho (UNIMED-BH) – Presidente • Luciana Costa Silva (AMMG) – Vice-Presidente • Bruno Mello Rodrigues dos Santos (CRM-MG) • Ricardo de Mello Marinho (FCMMG) • Tarcizo Afonso Nunes (FM/UFMG) • Conselho Diretor (mandato – Nov. 2014 / Nov. 2018): Odilon Gariglio Alvarenga de Freitas (AMMG) – Diretor Presidente • Bruno Mello Rodrigues dos Santos (CRM-MG) – Diretor Vice-Presidente • Lincoln Lopes Ferreira (AMMG) – Diretor Administrativo-Financeiro • Conselho Fiscal (mandato – Nov. 2014 / Nov. 2018): Lincoln Lopes Ferreira (AMMG) – Presidente • Oswaldo Fortini Levindo Lopes (FCMMG) • Antonio Vieira Machado (FCMMG)• Suplentes: Luiz Fernando Neves Ribeiro (UNIMED-BH)• Antônio Eugênio Mota Ferrari (FCMMG) • Geraldo Magela Gomes da Cruz (FCMMG)• Conselho Gestor da RMMG (mandato – Nov. 2014 / Nov. 2016): Bruno Mello Rodrigues dos Santos (CRMMG) • Fernando Coelho Neto (UNIMED-BH) • Odilon Gariglio Alvarenga de Freitas (AMMG) • Ricardo de Mello Marinho (FCMMG) • Tarcizo Afonso Nunes (FM-UFMG) •

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Afiliada à Associação Brasileira de Editores Científicos (ABEC) Início da Publicação: v.1, n.1, jul./set. 1991 Periodicidade: Trimestral Normas para publicação, instruções aos autores e submissão de manuscritos estão disponíveis em: <www.rmmg.org>

Correspondências: Revista Médica de Minas Gerais – Faculdade de Medicina da UFMG Av. Prof. Alfredo Balena, 190 – Sala 12. CEP: 30130-100 Belo Horizonte, MG – Brasil. Telefone: 55-31-3409-9796 e-mail: editoria.rmmg@medicina.ufmg.br Submissão de artigos: www.rmmg.org

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Mauro Martins Teixeira Instituto de Ciências Biológicas da UFMG Belo Horizonte – MG, Brasil Mircea Beuran Clinical Emergency Hospital Bucharest Bucharest, ROMENIA Naftale Katz Fundação Oswaldo Cruz, Centro de Pesquisas René Rachou Belo Horizonte – MG, Brasil Nagy Habib Imperial College London. Department of Surgery London, UK

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Orlando da Silva Department of Paediatrics, UWO Neonatal Intensive Care Unit London, Ontario, Canadá

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Paulo Roberto Corsi Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de SP São Paulo, SP – Brasil

Humberto Corrêa da Silva Faculdade de Medicina da UFMG Belo Horizonte – MG, Brasil

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Pietro Accetta UFF / Faculdade de Medicina Niterói – RJ – Brasil

Jair de Jesus Mari Faculdade de Medicina da UNIFESP São Paulo – SP, Brasil

Protásio Lemos da Luz Universidade de São Paulo – Incor São Paulo – SP, Brasil

João Carlos Pinto Dias Centro de Pesquisas René Rachou-FIOCRUZ Belo Horizonte – MG, Brasil

Renato Manuel Natal Jorge Universidade do Porto Porto – Portugal

João Carlos Simões Curso de Medicina da Faculdade Evangélica do Paraná ( FEPAR) Curitiba, PR – Brasil

Roberto Marini Ladeira Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte Belo Horionte – MG, Brasil

Ahmed Helmy Salem Assiut University Hospitals & Faculty of Medicine Tropical Medicine & Gastroenterology Department Assiut EGYPT Aldo da Cunha Medeiros Centro Ciências da Saúde da UFRN Natal – RN, Brasil Almir Ribeiro Tavares Júnio Faculdade de Medicina da UFMG Belo Horizonte – MG, Brasil Antônio Luiz Pinho Ribeiro Faculdade de Medicina da UFMG Belo Horizonte – MG, Brasil Aroldo Fernando Camargos Faculdade de Medicina da UFMG Belo Horizonte – MG, Brasil Bruno Caramelli Faculdade de Medicina da USP São Paulo – SP, Brasil Bruno Zilberstein Faculdade de Medicina da USP São Paulo – SP, Brasil Carlos Teixeira Brandt Centro de Ciências da Saúde da UFPE Recife – PE, Brasil Cor Jesus Fernandes Fontes Faculdade de Medicina da UFMT Cuiabá – MT, Brasil

Pedro Albajar Viñas Organização Mundial da Saúde Genebra, Suiça

João Galizzi Filho Faculdade de Medicina da UFMG Belo Horizonte – MG, Brasil

Rodrigo Correa de Oliveira Fundação Oswaldo Cruz, Centro de Pesquisas René Rachou, Laboratório de Imunologia Belo Horizonte – MG, Brasil

José Carlos Nunes Mota Departamento de Medicina da UFS Aracaju, SE – Brasil

Ruy Garcia Marques Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro – RJ, Brasil

José da Rocha Carvalheiro Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto/USP São Paulo, SP – Brasil

Sandhi Maria Barreto Faculdade de Medicina da UFMG Belo Horizonte – MG, Brasil

Leonor Bezerra Guerra Instituto de Ciências Biológicas da UFMG Belo Horizonte – MG, Brasil

Sérgio Danilo Pena Instituto de Ciências Biológicas – UFMG Núcleo de Genética Médica – GENE Belo Horizonte – MG, Brasil

Luiz Armando Cunha de Marco Faculdade de Medicina da UFMG Belo Horizonte – MG, Brasil

William Hiatt Colorado Prevention Center Denver, Colorado, USA


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