forumdoc.bh. 2019 23ยบ festival do filme documentรกrio e etnogrรกfico fรณrum de antropologia e cinema
22 nov > 01 dez
Esse projeto foi realizado com recursos da Lei Municipal de Incentivo Ă Cultura de Belo Horizonte.
Este festival é dedicado a Agnés Varda, D.A. Pennebaker, Jonas Mekas, Luis Ospina, Med Hondo e Paulo Paulino Guajajara. Toda solidariedade aos guerreiros Guajajara da TI Araribóia!
sumário
• summary
Kõmãyxop ‘ãta Canto da Kõmãyxop vermelha
sessão de abertura • opening films mostra mortos e a câmera
the dead and the camera showcase Paulo Maia
mostra contemporânea brasileira
brazilian contemporary showcase Daniel Ribeiro Duarte, Carla Italiano, Ewerton Belico, Layla Braz
sessões especiais • special screenings seminário • seminar ensaios e entrevistas • essays and interviews Fragmentos de um cinema-jiboia tikmũ’ũn Sueli Maxakali, Rosângela de Tugny, Isael Maxakali e André Brasil 93 Abraços da Morte Michael Boyce Gillespie 115 A condição da vida negra é o luto Claudia Rankine 128 Numa terra estranha: sobre Mãtãnãg, a encantada, uma animação de Shawara Maxakali e Charles Bicalho Roberto Romero 134
O cinema e os ritos funerários Dogon em Sigui 1967-1973: Invenção da Palavra e da Morte (Jean Rouch e Germaine Dieterlen, 1981) Mateus Araújo 137 Quem cala sobre teu corpo, consente na tua morte Fabio Rodrigues Filho 140 Entrevista com Wang Bing Emmanuel Burdeau 145 Cura Bantu Castiel Vitorino Brasileiro 150 a ponte caiu, se vira e atravessa nadando Davi de Jesus do Nascimento 154 ensaio sobre fragilidades sobre Bup, de Dandara de Morais, e Motriz, de Taís Amordivino
Alessandra Brito 156 Entre o passado implacável e as interações vivas: a casa-cinema de Letícia, Heliana e Clementina sobre Casa, de Letícia Simões
Roberta Veiga 159 A batalha está no campo do corpo conversa com Barbara Wagner e Benjamim De Burca sobre Swinguerra
Nina Gazire 164 A retomada de posse das corpas dissidentes sobre Bixa Travesty, de Claudia Priscilla e Kiko Goifman
Giovanna Heliodoro 167 O canto da boca da mata: notas sobre Ma’e Mimu Haw – A história dos cantos sobre filme de Jamilson, Pollyana, Jacilda e Lemilda Guajajara
Cristiane Lima 169 Olhares de Matis jovens nos filmes Dia de caçada e Meninos soprando cana fina Clarisse Alvarenga 172
De como utilizar a câmera como se fosse um petyngua sobre O último sonho, de Alberto Alvares
Daniel Ribeiro Duarte 175 Sete anos em maio: entre a solidão do sobrevivente e a expansão do trauma sobre filme de Affonso Uchôa
Cláudia Mesquita 178 Saber Cinema: A práxis cinematográfica contemporânea e as imagens porvir sobre Um Filme de Verão, de Jô Serfaty, e Entre-Vistas, do coletivo Olhares (Im)possíveis
Ana Tereza Melo Brandão 183 Disputar imagens e espaços. Encerrar cordialidades sobre Quantos eram pra tá?, de Vinícius Silva
Breno Henrique 186 As imagens também se elegem sobre Eleições, de Alice Riff
Carol Almeida 189 Anotação de instantes sobre Sem título # 5: a Rotina terá seu Enquanto, de Carlos Adriano
João Paulo Rabelo 192 Afrofabulando imagens: Tudo que é apertado rasga sobre filme de Fabio Rodrigues Filho
Kênia Freitas 195 Ainda estamos aqui sobre Enquanto estamos aqui, de Clarissa Campolina e Luiz Pretti
Eduardo de Jesus 198 O triunfo da Ideia sobre A rosa azul de Novalis, de Gustavo Vinagre e Rodrigo Carneiro
Luiz Soares Júnior 201 Guardiões da Floresta: CÂMERAS EM AÇÃO! sobre filme de Jocy Guajajara e Milson Guajajara
Ruben Caixeta de Queiroz 204 Virou Brasil sobre filme de Pakea, Hajkaramykya, Arakurania, Petua, Arawtyta’ia, Sabiá e Paranya
Renata Otto Diniz 210 CHÃOS sobre filme de Camila Freitas
Antônio Bispo dos Santos 216
Tempo de cultivo sobre Chão, de Camila Freitas
Vinícius Andrade 220 Rememorações em Apiwtxa: a emancipação Ashaninka sobre Antônio e Piti (2019), de Vincent Carelli e Wewito Piyãko
César Guimarães 223 Na pele tesa das coisas sobre Sedução da Carne, de Julio Bressane
Victor Guimarães 228 Tudo que aqui tem espaço mesmo sem língua notas à margem de A Febre, de Maya Da-Rin
Ewerton Belico 231 Artistas da fome sobre Fakir, de Helena Ignez
Jair Tadeu da Fonseca 236 arte forumdoc.bh.2019 Natureza Morta, de Denilson Baniwa Karen Shiratori 241
índices • index créditos • credits
Kõmãyxop ‘ãta Canto da Kõmãyxop vermelha1
Kõnãy me mõy Kõnãy, vá nos passos dela ĩy mõ koxi venham ficar em minha casa Kõnãy me mõy Kõnãy, vá nos passos dela ĩy mõ koxi venham ficar em minha casa nãn kup xip ma lá onde se levanta o pé de urucum Kõnãy me mõy Kõnãy, vá nos passos dela nãn kuk xup ma lá onde está a tinta do urucum ĩy mõ koxi venham ficar em minha casa Kõnãy me mõy Kõnãy, vá nos passos dela nãn xat xip ma lá onde se levanta o tiê-sangue ĩy mõ koxi venham ficar em minha casa Kõnãy me mõy Kõnãy, vá nos passos dela na ix yũm ma lá onde está a panela de barro ĩy mõ koxi venham ficar em minha casa Kõnãy me mõy Kõnãy, vá nos passos dela
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ĩy mõ koxi venham ficar em minha casa ĩy kuku xup ma lá onde corre o rio Kõnãy me mõy Kõnãy, vá nos passos dela ĩy mõ koxi venham ficar em minha casa Kõnãy me mõy Kõnãy, vá nos passos dela ĩy mõ koxi venham ficar em minha casa ya a ai haíi ya Kõnãy me mõy Kõnãy, vá nos passos dela ã mot mi ma lá no fundo onde está a areia ĩy mo koxi venham ficar em minha casa Kõnãy me mõy Kõnãy, vá nos passos dela mim tap xip ma lá onde está de pé o pau seco
ĩy mo koxi venham ficar em minha casa Kõnãy me mõy Kõnãy, vá nos passos dela ãm niy xup ma lá onde está a noite ĩy mo koxi venham ficar em minha casa Kõnãy me mõy ãm niy xup ma ĩy mo koxi Kõnãy me mõy ãm niy xup ma ĩy mo koxi Ya a ai hai hai Yak ha mi ax ho ho Kõnãy me mõy ĩy mo koxi Ya a ai hai hai Yak ha mi ax ho ho
1. Trechos escolhidos do canto Kõmãyxop ‘ãta, completo e originalmente publicado em: Kõmãyxop, cantos xamânicos maxakali / tikmũ’ũn. Toninho Maxakali & Eduardo Pires Rosse [org.], Museu do índio, Funai, Rio de Janeiro, 2011.
sessĂŁo de abertura opening film
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Yãmĩyhex, as mulheres-espírito • Yãmĩyhex, the women-spirit Brasil, 2019, cor, 77’ • direção directors Sueli Maxakali, Isael Maxakali • assistentes de direção assistant directors Carolina Canguçu, Roberto Romero • fotografia cinematography Sueli Maxakali, Isael Maxakali, Alexandre Maxakali, Cassiano Maxakali, Yxa Py, Roberto Romero, Carolina Canguçu • montagem editing Luísa Lanna em colaboração com/ in collaboration with Carolina Canguçu, Roberto Romero • finalização de som sound mix Pedro Portella • produção production Associação Filmes de Quintal • contato contact filmesdequintal@gmail.com
Após passarem alguns meses na Aldeia Verde, as yãmĩyhex (mulheres-espírito) se preparam para partir. Os cineastas Sueli e Isael Maxakali registram os preparativos e a grande festa para sua despedida. Durante os dias de festa, uma multidão de espíritos atravessa a aldeia. As yãmĩyhex vão embora, mas sempre voltam com saudades dos seus pais e das suas mães. After spending a few months in the Vila Verde Village, the yãmĩyhex (women-spirit) prepare to leave. The filmmakers Sueli and Isael Maxakali register the preparations and the great feast for their farewell. During the feast days, a legion of spirits crosses the village. The yãmĩyhex go away, but they always come back missing their fathers and mothers. Cine Humberto Mauro, 22 nov, 19h30 *Sessão comentada pela diretora e pelo diretor
mostra mortos e a câmera showcase the dead and the camera
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Mortos e a câmera
forumdoc.bh.2019 Paulo Maia1
Ao viajar, diferentemente daquele que se diz explorador e do turista, o etnógrafo exibe sua posição no mundo, ultrapassa seus limites. Ele não circula entre o território dos selvagens e dos civilizados: em qualquer sentido que vá, ele retorna entre os mortos. Claude Lévi-Strauss Em memória de Dona Cida, minha mãe.
Piaculum “As formas elementares da vida religiosa – O sistema totêmico na Austrália”, de Émile Durkheim, publicado originalmente em 1912, é provavelmente um dos livros mais impactantes que uma estudante de Ciências Sociais encontra nos primeiros semestres de seu percurso formativo na universidade. Comigo não foi diferente, e me lembro bem do entusiasmo ao descobrir no “Livro III”, última parte dessa obra monumental, o enigmático termo piaculum – donde a expressão, igualmente enigmática, “ritos piaculares”. Os quatro primeiros capítulos do “Livro III” das Formas Elementares estabelecem uma distinção complementar importante na economia do livro como um todo, a saber, a diferença entre cultos negativos e positivos. Os cultos negativos se caracterizam, segundo Durkheim, pela produção de “seres separados” e de um “estado de separação”, ou ainda, de um “sistema de abstenções”, entre outras, a abstenção no sentido trágico da inibição de qualquer atividade, do viver (DURKHEIM, 1996, p.317-347). Por outro lado, os cultos positivos são marcados por um “estado de espírito” no qual prevalece a confiança, a alegria e até mesmo o entusiasmo (1996, p.427). São festas alegres, define Durkheim, “mas há também festas tristes, que têm por objeto ou enfrentar uma calamidade, ou, simplesmente, relembrá-la e deplorá-la. Esses ritos 1. Antropólogo e professor associado da Faculdade de Educação (UFMG). Coordenador do curso de Formação Intercultural para Educadores Indígenas (FIEI) e do projeto de extensão forumdoc.ufmg. Co-fundador e curador do forumdoc.bh desde 1997, se destacando as mostras/seminários “O animal e a câmera” (2011), “Queer e a câmera” (2016), dentre outros.
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têm uma fisionomia muito particular que procuraremos caracterizar e explicar (…). Propomos chamar piaculares as cerimônias desse gênero. O termo piaculum tem, com efeito, não só a vantagem de sugerir a ideia de expiação, mas também de conter uma significação bem mais ampla. Toda infelicidade, tudo que é de mau augúrio, tudo o que inspira sentimento de angústia ou de temor necessita um piaculum e, em consequência, é chamado de piacular. Portanto, a palavra parece própria para designar ritos que se celebram na inquietude ou na tristeza”. “O luto”, conclui Durkheim, “nos oferece um primeiro e importante exemplo de ritos piaculares” (1996, p.426). Mais tarde, a leitura da etnografia de Manuela Carneiro da Cunha, “Os mortos e os outros – Uma análise do sistema funerário e da noção de pessoa entre os índios Khraó”, publicada em 1978, foi igualmente importante na elucidação dos tais ritos piaculares introduzidos por Durkheim. Essa etnografia é reconhecida por ter complexificado sobremaneira a análise e a descrição antropológicas da relação social entre vivos e mortos, sobretudo no que diz respeito aos processos que realçam a ruptura ou oposição entre os polos dessa relação, sendo o sistema funerário um aspecto central nessa economia (1978, p.142). A análise de Manuela teve um caráter seminal para a etnografia/etnologia indígena americanista, na medida em que evidenciou as práticas de conhecimento relativas aos mortos e esclareceu aspectos da noção de pessoa entre os índios Krahó. Não está no seu escopo, entretanto, mostrar a relação dos Khraó com o “mundo dos brancos”, a partir da qual as representações relativas aos mortos tendem a se atualizar de maneira muito peculiar, como demonstra de forma exemplar o filme Chuva é cantoria na aldeia dos mortos, de João Salaviza e Renée Nader Messora (2018), exibido no forumdoc de 2018. Durkheim, ao tipificar os cultos negativos por oposição aos cultos positivos, revelou toda uma engrenagem repressora modulada das mais diferentes maneiras por diferentes culturas e sociedades. Ainda que o tópico do racismo seja estranho à agenda sociológica de Durkheim, suas análises sobre os ritos piaculares, em particular, assim como o trabalho de Manuela Carneiro da Cunha, foram fundamentais para o que poderíamos chamar de “políticas de consideração”, a fim de utilizarmos uma expressão cunhada recentemente pelos amazonistas José Antonio Kelly e Marcos Almeida (2019). Observamos que o racismo institui uma norma de conduta ou culto negativo, no sentido durkheimiano, imposto pela branquitude às pessoas não-brancas, marcado por regimes de abstenções, censuras, interdições, obediências, reprovações públicas, encarceramentos e assassinatos, cujo corolário é toda uma gama de práticas de separação de domínios tratados ora como “sagrados”, ora como “profanos”, marcados por segregações, desigualdades e mortes injustas.
viver como morto ou fingir de morta? Como sobreviver aos regimes de vigilâncias e controles constantes, como escapar e resistir às políticas de morte que nos colocam diante de um “dilema fatal”: viver como morto ou fingir de morta? Achiles Mbembe definiu de forma definitiva essa política; em suas palavras, a necropolítica é a “expressão máxima da soberania [que] reside,
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em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer” (2018, p.5). Dando continuidade às “conexões parciais” entre antropologia [et al] e cinema no forumdoc, seria possível e profícuo indagarmos a respeito de uma filmografia “piacular”, que se celebra na inquietude ou na tristeza, parafraseando a célebre formulação de Durkheim? Ou ainda, para utilizarmos os termos de Michael Gillespie (2017), seria importante indagarmos a respeito de um “cinema na vigília” (cinema in the wake), inspirado na abordagem existencial de Christina Sharpe (2016) a respeito de um aspecto central da negritude (blackness), indicando os contornos de uma existência “na vigília” (in the wake) que demanda, por sua vez, todo um “trabalho de vigília” (wake work). Esse “trabalho de vigília” assume “uma gama de conotações, incluindo ‘velar os mortos, o caminho de um navio, uma consequência de algo, na linha de fuga e/ou de visão, o despertar e a consciência”. “O trabalho de Sharpe”, esclarece Gillespie, “mobiliza novos investimentos para o estudo da morte negra e da arte da negritude. Com o cinema e o vídeo contemporâneo negro em mente, seu trabalho sugere de forma vital uma mudança de ênfase, do retrato do horror para uma concentração em como as formas cinematográficas promovem uma resistência crítica e estética ao horror do antinegritude” (2017, p.53). Como já é costume “traduzir” ou “transformar” nossos interesses antropológicos e cinematográficos em mostras/seminários de nossa programação, “Mortos e a Câmera” pretende dar continuidade à série de mostras/seminários realizadas em torno do ciclo “Cinemas e Alteridades”, coordenadas pelo programa/projeto de extensão forumdoc. ufmg na programação oficial de diferentes edições do forumdoc (“O animal e a câmera”, 2011; “A mulher e a câmera”, 2012; “O inimigo e a câmera”, 2013; “Queer e a câmera”, 2016 ). A equipe curatorial se esforçou para a composição de uma filmografia heteróclita, sobretudo no que diz respeito às estratégias e formas audiovisuais utilizadas, para sermos mais justos às invenções cinematográficas propostas pelos diferentes filmes. A mostra apresenta um conjunto de vinte e dois títulos de diferentes formatos e durações, que vão de filmes focados em relatos e testemunhos a filmes de linhagens mais experimentais, passando por títulos que se baseiam em ficções especulativas ou que utilizam técnicas de stop motion, animação, imagem de arquivos, reconstituição, recriação, entre outros, sem falar nos diferentes aspectos constitutivos dos universos sonoros filmográficos. Essa heterogeneidade das formas em parte advém das diferentes assinaturas dos trabalhos: realizadores homens, mulheres e travestis; negros, indígenas, brancos, asiáticos, separados ou associados, de diferentes regiões e continentes do mundo. Outro aspecto importante dessa filmografia é que ela lida diretamente com performances e/ou rituais de morte que exploram o que poderíamos chamar de uma “cosmojustiça cinematográfica”, inspirada em algumas variantes já mencionadas que podem ser descritas sob a alcunha de “cinemas piaculares” e/ou “cinema na vigília”. São filmes que tratam do respeito, do cuidado, da saudade, da memória de pessoas, lugares, seres e entidades importantes, espíritos e almas de defuntos inquietos ou sob controle, de vidas interrompidas e silenciadas pelo racismo e por regimes autoritários, em suma, dos complexos processos políticos e sociais marcados por sentimentos ambivalentes
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entre vivos e entre vivos e mortos, mesclados de respeito e revolta, silenciamentos, apagamentos e sepultamentos não realizados e por realizar.
ter cuidado com os mortos e os outros [não descuidar…] Dois filmes internacionais sintetizam exemplarmente os diferentes aspectos em jogo na mostra “Mortos e a Câmera”: Dead Souls (Almas Mortas), do cineasta chinês Wang Bing, e Graves without names (Túmulos sem nomes), do cineasta cambojano Rith Pahn, ambos de 2018. Wang Bing é sem dúvida um dos grandes documentaristas da atualidade. Com uma filmografia heterogênea, é também reconhecido por seus documentários de longa duração, como Tie Xi Qu: West of tracks (2003), com nove horas de duração, um de seus filmes emblemáticos, exibido no forumdoc em 2009. Dead Souls (Almas Mortas), seu filme mais recente, segue o mesmo ritmo, e nas suas mais de oito horas torna-se uma oportunidade rara para o espectador testemunhar o horror a que foram submetidos os chamados “direitistas” pela Campanha Anti-Direitista de 1957, instituída pelo governo comunista chinês, até o chamado “período de reabilitação” em 1978. Dividido em quatro partes, o filme é a mais extensa pesquisa cinematográfica, com um vasto trabalho de montagem, sobre a história de um conjunto completo de “campos de trabalho/reeducação” conhecido pelo nome de Jiabiangou, na província de Gansu, no noroeste da China. Filmado quase que integralmente em 2005, o projeto foi interrompido e retomado em 2014. Wang Bing, em entrevista concedida a Emmanuel Burdeau, cuja tradução publicamos em primeira mão neste catálogo, informa que coletou/filmou cerca de 120 testemunhos de sobreviventes desses campos de concentração, somando cerca de 600 horas de material bruto, sendo a sua intenção original realizar um documentário que compilasse o maior número de testemunhas desse período. Baseado no livro de Yang Xianhui, Chronicles of Jiabiangou, Dead Souls desnuda a máquina repressora ou a necropolítica implantada pelo regime comunista chinês em “campos de reeducação” do ponto de vista do testemunho de vítimas sobreviventes. Um dos inúmeros aspectos intrigantes do filme consiste no fato de que, a princípio, a intenção de Wang Bing era realizar um filme no qual, idealmente, os relatos de sobreviventes dessem conta da magnitude do regime de remoções, encarceramento e morte; contudo, revela o diretor, “a perspectiva das pessoas não ia além do alcance de uma família ou de um povoado”. Nas palavras de Emmanuel Burdeau, tratava-se da “lacuna entre as palavras dos sobreviventes e o silêncio dos mortos”. Talvez seja dessa lacuna que o filme retire sua força. Rith Pahn, de modo correlato, enfrenta em Graves without names (Túmulos sem nomes), não pela primeira vez em sua carreira, o “genocídio cambodiano” do regime totalitarista do Khmer Vermelho, que, na década de 1970, exterminou cerca de 2 milhões de pessoas, de uma população total de 7 milhões. Vítima e sobrevivente do regime, Rith Pahn foi testemunha da morte por exaustão e desnutrição de seus pais, irmãos e outros parentes. O filme descreve a busca dos corpos de seus familiares mortos quando o diretor tinha apenas 13 anos de idade, tendo sido resgatado e levado para a Europa em condições
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de extrema despossessão (Maia e Flores, 2013). Nessa busca, o que se construiu foi um filme radical que se sustenta em si mesmo, para utilizarmos uma expressão do antropólogo Roy Wagner. É filmando que Rith Pahn descobre onde seus familiares mortos foram abandonados, por intermédio do laborioso trabalho de uma xamã local, para em seguida realizar o enterro apropriado e de acordo com a tradição, em busca de paz espiritual e justiça social, em respeito aos mortos e sobreviventes do regime genocida. Se Wang Bing concentra sua performance documental no registro extensivo de testemunhos, através do controle da unidade dos relatos de sobreviventes, tidos como absolutamente essenciais e num certo sentido suficientes para os efeitos esperados, a performance de Rith Pahn, intervém corporalmente em cena, quando não cria imagens e máscaras, ou performatiza ritos que, ao modo de um storytelling, acabam por animar a memória e os mortos, dando-lhes voz e materialidade, bem como espaços, paisagens e túmulos dignos e nomeados.
exaltar os mortos e a vida Ressurreição (1987) e Sonhos e Histórias de Fantasmas (1996), de Arthur Omar, encabeçam a listagem de filmes nacionais da mostra. Ressurreição é um filme de 1987, anterior à Constituição Brasileira de 1988. Transgressor na forma e na política, é um filme de intensidades incomparáveis. Exibimos Ressurreição pela primeira vez no forumdoc de 2001; o impacto da sessão de abertura desse ano ainda reverbera em nossos corações com a força de um choque elétrico. O curta-metragem é inteiramente composto de fotografias encontradas em arquivos de “jornais sensacionalistas” e do Instituto Médico Legal (IML) de corpos mortos violentamente, várias delas de chacinas em favelas cariocas. A montagem que articula a banda sonora, composta por hinos religiosos do catolicismo popular, parece exaltar as imagens de arquivo de um modo nada convencional, maniacamente. Sem dúvida, um filme desconcertante. Arthur Omar é um artista da exaltação. Seu trabalho fotográfico e audiovisual é marcado por uma postura experimental no modo como ele atua na cena de captura e composição de sons e imagens para um documentário. Exaltação contra a representação. Em vez de colocar sua máquina cinematográfica a serviço da representação de uma comunidade ou cultura, como os dispositivos documentais costumam fazer ao acentuar o caráter informativo do gênero, Sonhos e Histórias de Fantasmas seguem outra direção, igualmente exemplar em relação ao seu método cinematográfico no campo do documentário. As “conexões parciais” entre um quilombo em Minas Gerais e um morro carioca são um dos pontos altos do filme. Tais conexões se dão por meio, entre outros, de um corte espaço-temporal radical, como sugere o crítico Felipe Bragança, que provoca uma verdadeira rasteira no espectador – e, eu acrescentaria, no gênero documental –, ao desestabilizar unidades tomadas como díspares ou incomensuráveis, acentuando o caráter sempre incompleto e parcial de qualquer abordagem documental. Omar estará presente no forumdoc.bh.2019 e fará uma sessão comentada (no dia 25/11) dos dois filmes mencionados, que compõem a mostra. Chance única de assistir Ressurreição em uma cópia 35mm. Em comunicação recente por WhatsApp, Omar me
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enviou um trecho de uma entrevista de 2006 que compartilho com vocês: “Meus filmes são como um fantasma que vêm do outro mundo para assombrar o documentário: eu envolvo o filme com um lençol, desenho dois olhos arregalados, ponho uma máscara de caveira, e faço Buuuuu!. Eles levam um susto e saem correndo. Aí eu chamo: — pessoal, não tenha medo, é só a morte da linguagem!”.
cinema in the wake | cinema na vigília Durante o ano de 2018, realizei um estágio pós-doutoral no Departamento de Performance (Performance Department) e no Hemispheric Institute of Performance and Politics da Universidade de Nova York (NYU).2 Dentre as atividades realizadas naquele ano na NYU, tive a chance de acompanhar um curso no Departamento de Cinema, intitulado “Black Documentary”, do professor e crítico de cinema Michael Boyce Gillespie, já citado nessa apresentação. Gillespie publicou, em 2016, um livro instigante, intitulado Film Blackness – American Cinema and the Idea of Black Film. De um modo geral, seu esforço tem sido explorar os significados da expressão blackness, muitas vezes traduzida para o português como negritude, dentro do que ele chama de “black visual and expressive culture”, sendo o cinema um dos principais campos de sua pesquisa. Vale destacar que o que o autor chama de American Cinema and Black Film se restringe à produção norte-americana. Com esse escopo, o curso foi uma espécie de história do Cinema Negro produzido nos Estados Unidos, desde suas experiências iniciais, na passagem do século XIX para o XX, até a filmografia contemporânea. Destacou-se a variedade de formatos audiovisuais dessa produção, de filmes documentários, ficção, doc-fic, experimentais, a programas televisivos, passando por performances artísticas e televisivas, clipes de música, animações, imagens de arquivo, além de filmes construídos especialmente para o circuito de galerias de arte, entre outros. Desse modo, o curso contou com uma vasta filmografia e bibliografia, tendo como espinha dorsal o livro Struggles for Representation – African American Documentary Film and Video, de 1999, editado por Phyllis R. Klotman e Janet K. Cutler e devotado ao exame de mais de 300 filmes não-ficcionais produzidos por mais de 150 African American film/videomakers. Dois aspectos dessa filmografia – a existência de um arquivo audiovisual fragmentário e racista que limita e impõe uma certa forma ao “black documentary”, articulada aos modos como a experiência de pessoas ou grupos de pessoas negras foi representada pela “black experience on film” – são explorados de diferentes maneiras pelos autores de Struggle for Representation, que buscam extrair “as consequências do material de arquivo fragmentário para a prática documental negra e a relação entre a tecnologia disponível e a representação histórica, traçando os esforços feitos pelos afro-americanos
2. Agradeço imensamente a equipe do Hemi, em especial, Diana Taylor e Marcial Godoy pela acolhida afetuosa e troca de conhecimentos nesse período, sem o apoio de vocês boa parte da pesquisa realizada para essa mostra não teria sido possível.
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para documentar sua experiência e os fatores econômicos, sociais, estéticos e históricos que impulsionam seu trabalho” (Introdução, 1999, p.xxvi). Assim que comecei a me familiarizar com a filmografia apresentada no curso, tive a impressão, já com a curadoria da mostra “Mortos e a Câmera” em mente, que a maioria dos filmes tratava da morte saudosa e, na maioria das vezes, injusta de pessoas negras, ou seja, boa parte da filmografia apresentada no curso denunciava a morte de negros. Assistimos a inúmeros velórios, e o conjunto desses filmes acabou por me provocar um sentimento de que esses corpos estavam sendo velados através dos filmes, sendo este cinema um cinema enlutado, marcado por injustiças e lutas antirracistas. Ao comentar, em meu inglês trôpego, essa minha impressão em uma de suas aulas, Gillespie esclareceu que esse era um dos temas em que estava interessado, tendo escrito, inclusive, um artigo para a revista Film Quartely cujo objetivo era o de articular black death (morte negra) e film form (forma fílmica) no cinema afro-[norte]-americano contemporâneo. Nesse artigo, intitulado Death Grips, que traduzimos e publicamos em primeira mão no nosso catálogo, Gillespie, inspirado no livro In the Wake: On Blackness and Being (2016), de Christina Sharpe, explora as diferentes conotações da concepção de wake work (trabalho de vigília ou de luto, o rastro deixado na água por um navio, consciência, entre outros sentidos correlatos). Nas palavras de Christine Sharpe, o “trabalho de vigília” se realiza [...] plotando, mapeando e coletando os arquivos do cotidiano da morte imanente e iminente dos negros, e rastreando as maneiras pelas quais resistimos, rompemos e interrompemos, estética e materialmente, essa imanência e iminência. Estou interessada em como podemos imaginar maneiras de conhecer o passado, o excesso de ficções contidas nos arquivos, mas não apenas isso. Também estou interessada em saber como reconhecemos as muitas manifestações da ficção e esse excesso, esse passado ainda não passado, no presente. (2016, p.13)
memory for forgetting | memória para esquecer No rastro de Sharpe, Gillespie explora, nesse artigo da Film Quartely, a ideia de um cinema na vigília (in the wake) a partir da análise de três filmes recentes, que foram incorporados na curadoria da mostra “Mortos e a Câmera”. Everybody Dies! (2016), de Frances Bodomo, Dead Nigga BLVD (2015), de Leila Weefur, e White (2011), de A. Sayeeda Clarke. Segundo Gillespie: Com concepções distintas e convincentes sobre a morte negra, esses três curtas-metragens estão profundamente localizados em seu momento americano contemporâneo. Pensar com esses filmes envolve pensar através dos objetos performativos, do grotesco racial e do futuro da exclusão social. Juntos, esses filmes suspendem, promovem rupturas e perturbam, constituindo historiografias e estratégias visuais distintas. Dead Nigga BLVD., com sua articulação em stop-motion dos mortos, reúne três narrativas históricas para demonstrar um agravante arco de injustiça. Everybody Dies! se apropria dos estilos mortos de um game show infantil de televisão aberta para considerar a frequência enlouquecedora e o acúmulo da injustiça
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violenta. A encenação do afrofuturismo em White, como uma modalidade de vida após a morte da escravidão, reconsidera os efeitos desiguais da crise global. (2015, p. 59)
Foi também no segundo semestre de 2018, por indicação de Michael Gillespie, que estive presente em uma sessão de still/here (2001), do norte americano Christopher Harris, na NYU, em Nova York, que contou com a presença do diretor. O documentário destoa singularmente dos demais filmes do diretor, cuja obra se caracteriza, entre outros, por não repetir o mesmo método ou proposta fílmica em seus trabalhos, de modo que a linguagem de cada filme se esgota naquele mesmo projeto. still/here, que faz parte da mostra “Mortos e a câmera”, retrata em preto e branco as ruínas e os lotes vagos da paisagem familiar de uma vizinhança (neighborhood), a zona norte de St. Louis, Missouri (EUA), um bairro outrora povoado em sua maioria por trabalhadores pobres afro-americanos, em estado de decomposição e abandono. Como no filme de Rith Pahn, Christopher Harris também retorna à paisagem de sua infância, mas, diferentemente do primeiro, a distância temporal e o vazio espacial não são preenchidos; pelo contrário, é pelo confronto entre a presença do cinema e a ausência profunda de uma comunidade destruída que o registro documental ganha força.3 Espero que tenha ficado claro o quanto a curadoria da presente mostra se valeu do trabalho excepcional de Michael Gillespie, que, além de autorizar a tradução de Death Grips para o português e sua publicação em nosso catálogo, nos ajudou na produção das autorizações de exibição dos três filmes descritos acima. Foi também no seu sylabus, ou programa de curso, que descobri um daqueles textos que impactam o leitor da primeira à ultima linha; trata-se do famoso ensaio “A condição da vida negra é o luto” (The condition of Black Life Is One of Mourning), da poeta jamaicana e professora de inglês Claudia Rankine, publicado pela primeira vez em junho de 2015 no jornal The New York Times. Transcrevo o primeiro parágrafo, a fim de instigá-los à leitura desse ensaio espetacular, traduzido também em primeira mão na seção de ensaios do nosso catálogo, que traduz de forma contundente a condição existencial de pessoas negras em sociedades racistas: “Uma amiga recentemente me falou que, quando ela deu à luz seu filho, antes de nomeá-lo, antes mesmo de amamentá-lo, seu primeiro pensamento foi: tenho que tirá-lo deste país. Nós duas rimos. Talvez nosso humor negro tenha a ver com a compreensão de que sair não era uma opção nem o desejo real. É assim a nossa vida. Aqui trabalhamos, temos cidadania, pensões, seguro de saúde, família, amigos e assim por diante. Ela não poderia ir embora, ela não foi. Anos após seu nascimento, sempre que seu filho sai de casa, seu status de mãe de um ser humano permanece tão precário como sempre. Somado aos medos naturais de todos os pais que enfrentam a aleatoriedade da vida, há ainda o conhecimento das maneiras pelas quais o racismo institucional funciona em
3. Em 2019, o 21º FestCurtasBH, festival de cinema de Belo Horizonte, não somente convidou o cineasta para vir ao Brasil, mas também contou em sua programação com duas mostras correlacionadas: uma retrospectiva completa de Christopher Harris intitulada “Poética e política da forma” e uma curadoria de filmes composta pelo realizador intitulada “Influências e Ressonâncias”. Além de “Notas de still/here (fac-simile)”, o catálogo conta com entrevistas e ensaios sobre a obra do cineasta.
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nosso país. O nosso riso foi o riso da vulnerabilidade, do medo, da identificação e de uma estagnação absurda”. Mas a estagnação é parcial e momentânea, demonstra Rankine no decorrer do ensaio; o movimento Black Lives Matter, segundo ela, pode ser lido como um movimento que lamenta e protesta contra a vidas negras em constante estado de precariedade. Nesse sentido, Rankine sugere um alinhamento desse movimento com os mortos, na forma de enlutamento e recusa de esquecimento das injustiças diante de todos nós. “Se fôssemos vistos como viventes, não estaríamos morrendo simplesmente porque os brancos não gostam de nós”, contra-ataca a autora. Compartilhamos do desejo de, através desta mostra/seminário, estabelecermos um “alinhamento com os mortos” através do cinema, numa política de memória pelo esquecimento de traumas sociais.
genocídio à brasileira Foi Abdias Nascimento quem tornou célebre a formulação ou denúncia sobre “O genocídio do negro brasileiro”, que, acompanhado do subtítulo “Processo de um racismo mascarado”, tornou-se o nome de um dos livros (rejeitados) mais importantes da historiografia brasileira. A atualidade da análise de Abdias é contundente, como confirmam os dados mais recentes, publicados em maio de 2019, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) no Atlas da Violência, documento público sobre o número de assassinatos por ano no Brasil. Os dados divulgados referem-se ao período de 2007 a 2017, e de um modo geral são alarmantes; quando observados os aspectos raciais, de gênero e de geração, a situação parece bem pior. Falta no Atlas um tratamento mais acurado dos dados referentes à população indígena. De todo modo, o número de homicídios em 2017 foi de 65.602 pessoas assassinadas, o que equivale a uma taxa de 31,6 mortes para cada cem mil habitantes, o maior nível histórico de letalidade violenta intencional no país; para se ter um ideia, o número de homicídios em 2007 não chegava a 50.000. Os dados referentes à violência letal contra a população negra brasileira são surpreendentes e bastante significativos. Somente em 2017, 49,5 mil pessoas negras foram mortas, o que corresponde a 75,5% do total de homicídios. Outro dado chocante se refere ao fato de que 35.783 pessoas assassinadas em 2017 tinham entre 15 e 29 anos, sendo 94,4% do sexo masculino. As análises interseccionais desses dados corroboram todo um “sistema de opressão interligado”, como sugere a reflexão epistemológica de Patricia Hill Collins.4 Compondo uma deriva contemporânea nacional que tangencia de diferentes maneiras a memória justa contra a morte injusta de negros, mulheres, indígenas, lgbtqi – em
4. Para maiores informações, cf. Atlas da Violência: <http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads /2019/ 06/Atlas-da-Violencia-2019_05jun_vers%C3%A3o-coletiva.pdf>; Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP): <http://www.forumseguranca.org.br/>; a plataforma Violência contra as Mulheres em Dados: <https://dossies.agencia patriciagalvao.org.br/violencia-em-dados/>; sobre os dados relativos à violência LGBTFóbicas: <https://www.mdh. gov.br/biblioteca/consultorias/lgbt/violencia-lgbtfobicas-no-brasil-dados-da-violencia e http://dapp.fgv.br/dados-publicos-sobre-violencia-homofobica-no-brasil-29-anos-de-comba-
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especial, travestis e transgêneros – no território brasileiro, fazem parte da mostra os filmes Chico (2018), dos Irmãos Carvalho; Apelo (2014), de Clara Ianni e Débora Maria da Silva; Pontes sobre Abismos (2019), de Aline Motta; Para todas as moças (2019), de Castiel Vitorino, A-Gente Laranja (2019), de Denilson Baniwa e Yvy Reñoi, Semente da terra (2017), da ASCURI (Associação Cultural de Realizadores Indígenas). Juntos formam um bloco de resistência política e linguagens cinematográficas inventadas por corpos e corpas cuja existência se dá em um estado de precariedade marcada por mortes precoces e senso de injustiça, para utilizarmos o vocabulário de Claudia Rankine. O primeiro bloco formado por Chico (2018), dos Irmãos Carvalho; Apelo (2014), de Clara Ianni e Débora Maria da Silva; Ponte sobre Abismos (2019), de Aline Motta; Para todas as moças (2019), de Castiel Vitorino, são filmes marcados por diferentes estratégias cinematográficas de lidar com o pan-óptico afrofuturista, o anonimato de mortes criminosas e cemitérios clandestinos, o tempo e a memória ancestral, o trauma brasileiro contra “o fogo do esquecimento” que, como sugere Fabio Rodrigues Filho em belo ensaio escrito especialmente para a mostra, “ameaça os mortos e os vivos”. A-Gente Laranja (2019), de Denilson Baniwa e Yvy Reñoi, Semente da terra (2017), da ASCURI (Associação Cultural de Realizadores Indígenas), ambos assinados por indígenas, são construídos tendo como pano de fundo os territórios e terras indígenas, ameaçados pela ganância do capital e de homens brancos. Denilson Baniwa, multi-artista, é responsável pela maravilhosa série de imagens de “satélite baniwa” intitulada “Natureza Morta” (2016-2019) que chama atenção para a destruição de áreas preservadas, entenda-se, territórios indígenas, capturadas por uma lente que transcria “imagens de satélite” aglutinando as áreas devastadas, pelo fogo e pelo agronegócio, em formas ou silhuetas de corpos de humanos e animais, dentre outros. A-Gente Laranja, por sua vez, é um curta metragem no qual se destaca a montagem alucinante de diferentes aeronaves, em diferentes lugares e épocas, sobrevoando comunidade e aldeias despejando venenos (armas químicas) sobre elas. Sabemos de diferentes casos no país, sobretudo em relação aos Guarani, de ataques de fazendeiros a comunidades indígenas utilizando aeronaves para dispersão de produtos letais, parte das imagens do filme de Denilson são justamente destes casos. Yvy Reñoi, Semente da Terra, do coletivo ASCURI, aborda a resistência indígena frente aos conflitos territoriais a partir dos ataques realizados por capangas e fazendeiros milicianos contra os Kaiowa e Guarani da aldeia de Teukue no Mato Grosso do Sul em 2016. Num ritmo frenético a câmera acompanha a retirada de mais um corpo de um indígena morto por fazendeiros, nesse caso em específico, cinco dias após a visita a Campo Grande do inimigo número um dos povos indígenas no Brasil, o atual presidente Jair Bolsonaro.
te-ao-preconceito/>; finalmente, sobre a violência contra povos indígenas: <https://cimi.org.br/wp-content/ uploads/2018/09/Relatorio-violencia-contra-povos-indigenas _2017-Cimi.pdf>.
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ecocídio e extinção Sabemos que não apenas os corpos e vidas de pessoas em estado de vulnerabilidade e expostas ao racismo estrutural estão sob ataque constante no Brasil, os meio-ambientes ou territórios que nutrem, alimentam, hidratam, refrescam, abrigam essa diversidade de gentes não cessam de ser apropriados e invadidos, capitalizados e, finalmente, destruídos. As consequências da falta de cuidado com os diferentes seres que constituem o que chamamos simplesmente de Terra estão apenas se iniciando, mas se tomarmos como base todos os crimes ambientais ocorridos no Brasil nos últimos meses, estamos diante de um colapso ambiental e, consequentemente, social sem precedentes. De acordo com a ONG Global Witness, ao menos 164 ativistas ambientais foram mortos por defenderem seus territórios em 2018; comunidades, casas, terras e recursos naturais, contra projetos agro-industriais-florestais-mineirais-hidroelétricos, para ficarmos entre os mais destrutivos. O Brasil consta entre os países que mais matam ambientalistas; em 2017, foram registrados 57 homicídios. O documentário Chico Mendes: Eu Quero Viver, do inglês Adrian Cowell, reconhecido como um dos maiores cineastas da Amazônia, não mostra um caso fora da curva, mas a trajetória e execução do maior líder seringueiro brasileiro. Em tempos de crimes ambientais constantes, rompimento de barragens, queimadas descontroladas, derramamento de óleo na costa brasileira e invasões de terras por particulares, Chico Mendes: Eu Quero Viver continua com o trabalho de luta contra a destruição e a comoditização do meio ambiente e dos povos que vivem na Amazônia. Sua programação na mostra “Mortos e a Câmera” é uma deferência em relação a sua memória e a seu legado, e contaremos com uma sessão comentada do filme (30/11) por Ruben Caixeta de Queiróz e Ademilson Concianza.
cosmopolíticas de consideração [os vivos e os mortos] O último bloco de filmes da mostra articula diferentes aparatos cosmológicos de dois povos indígenas situados no Brasil, os Tikmũ’ũn (Maxakali) e os Kamayurá; dos povos indígenas australianos Tiwi e Karrabing e do povo Dogon, no Mali africano. Tatakox Vila Nova (2009), da Comunidade Maxakali Aldeia Nova do Pradinho, Mãtãnãg, a encantada (2019), de Shawara Maxakali e Charles Bicalho, Uaká (1988), de Paula Gaitán, Good-bye Old Man (1977), de David MacDougall, Wutharr, Saltwater Dreams, de Elizabeth Povinelli e o Karrabing Film Collective, e Sigui Synthèse (1981), de Jean Rouch e Germaine Dieterlen, são filmes que, de modos singulares e a partir de estratégias fílmicas e tradições estilísticas distintas, realizam um trabalho de “alinhamento” em relação ao mundo dos mortos, denotando diferentes modulações do que, na esteira de uma expressão cunhada recentemente pelos amazonistas A. José Kelly e Marcos Almeida (2019), vamos chamando de “cosmopolíticas de consideração”, em particular, de consideração aos mortos. Um de nossos interesses norteadores quando criamos o forumdoc, em 1997, em Belo Horizonte (MG), era “indigenizar” o campo do cinema no Brasil, em especial aquele dos festivais de cinema dedicados ao documentário e ao filme etnográfico. Nosso desejo foi o de criar um festival de cinema no qual os povos indígenas estivessem, desde sua origem, implicados, seja por meio da curadoria e da exibição de filmes sobre pessoas e
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povos indígenas, seja por meio de uma filmografia que ia se formando e que podemos dizer que hoje, cerca de 20 anos depois, encontra-se plenamente consolidada, qual seja, aquela produzida por “realizadores indígenas”, categoria não menos problemática que “cinema indígena”, mas que, na falta de outras melhores, seguimos utilizando. Destaca-se entre essa produção aquela dos realizadores indígenas do povo Maxakali, localizado no nordeste de Minas Gerais (Brasil). Tatakox (2007), de Isael Maxakali, que infelizmente não exibiremos nesta mostra, e Tatakox Vila Nova (2009), assinado coletivamente pela Comunidade Maxakali Aldeia Nova do Pradinho, que, felizmente, exibiremos, são exemplares e portadores de uma marca ou particularidade essencial no que diz respeito à estética indígena cinematográfica: a proximidade ou mesmo simultaneidade entre o fazer fílmico e o fazer ritual. Podemos falar aqui então de filme-ritual, evocando os longos planos-sequência neles apresentados e a presença paradigmática da “ação encorporada” dos personagens enquadrados pela cena ou “campo cinematográfico”, do “antecampo” (pessoa ou equipe que dirige e filma a cena) e do “fora-de-campo” (tudo aquilo que está fora de cena, fora de quadro, inclusive o sobrenatural e os fazendeiros do entorno), para utilizarmos os termos analíticos propostos por André Brasil e Bernardo Belisário (2016) para o “cinema indígena”. Tikmũ’ũn, mais conhecidos como Maxakali, são um povo falante da língua indígena maxakali, da família linguística Macro-Jê. Habitantes de um outrora vasto território de Mata Atlântica, estão hoje reduzidos a pequenas porções de terras demarcadas, porém cercadas de fazendas particulares no nordeste do estado de Minas Gerais, no Brasil, totalizando cerca de 1.500 pessoas distribuídas em quatro diferentes aldeias. A história do povo maxakali é uma história de resistência contra a invasão de seu território e a expropriação e a destruição de sua fauna e flora, essenciais para o bem viver nas comunidades. Ambos os filmes foram realizados em aldeias maxakali. O primeiro, com equipamento amador e em condições improvisadas, após Isael Maxacali ter participado de uma oficina de realização cinematográfica oferecida pelo já então famoso cineasta indígena xavante Divino Tserewahú, no forumdoc, em Belo Horizonte. Tatakox é o primeiro filme de Isael e aborda o ritual de mesmo nome, um ritual de iniciação de meninos nas práticas de conhecimento do xamanismo, ritual de intensa plasticidade e vigor performático. Tatakox é também o nome do “espírito da lagarta”, responsável pela iniciação de meninos durante o período em que ficam reclusos no Kuxex, ou casa dos cantos, quando recebem lições valorosas do mundo masculino. O filme de Isael foi o primeiro realizado por um indígena maxakali e gerou reações interessantes por parte de outros Maxakali que não vivem na mesma aldeia. Quando os Maxakali da comunidade vizinha do Pradinho assistiram ao filme de Isael, não ficaram satisfeitos. Acharam que o filme, além de não estar completo, não retratava bem a forma como, na perspectiva deles, o ritual do Tatakox deve ser realizado e apresentado. Após uma oficina de realização ministrada pelo célebre projeto Vídeo nas Aldeias na aldeia de Pradinho, em 2008, um grupo liderado por Guigui Maxakali resolveu responder ao Tatakox de Isael com outro filme-ritual, igualmente impactante, mas que difere do primeiro num aspecto fundamental – o filme feito na aldeia de Pradinho mostra, sem cortes, as crianças mortas/espíritos tatakox sendo retiradas de um buraco debaixo
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da terra, sob o som estridente de flautas de taquara e rodopios sem fim de crianças e jovens paramentados. Tatakox e Tatakox Vila Nova são filmes-rituais realizados em longos planos-sequências e marcam duas perspectivas cinematográficas sobre um ritual culturalmente compartilhado e dirigido pelos espíritos tatakox. Mãtãnãg, a encantada, de Shawara Maxakali e Charles Bicalho, é fruto de uma oficina de desenhos e animação coordenada por Charles Bicalho no território tikmũ’ũn, mais especificamente na Aldeia Verde, no município de Ladainha (MG). Roberto Romero, em ensaio escrito especialmente para a mostra, identifica na “transcriação filmíca” proposta pelo filme uma espécie de “transformação do mito”, centrada em uma história do vasto repertório mítico tikmũ’ũn. Mãtãnãg, esclarece Romero, “é conhecida como uma mulher muito antiga que, inconformada com a morte do marido por uma picada de cobra, recusou-se a enterrá-lo e resolveu acompanhá-lo até a aldeia dos mortos. O caminho até lá é tortuoso: Mãtãgnãg prepara beijús com a carne do marido morto e come para encantar-se e seguir os seus rastros. No percurso, uma série de desafios dificulta o seu caminho: o tronco de uma árvore que gira tentando impedir sua passagem sobre um rio; um mamoeiro que lança seus frutos; uma nuvem de gafanhotos ferozes, tudo parece feito para impedir a passagem dos vivos ao mundo dos mortos. Mas chegando lá, a surpresa: a aldeia dos mortos é habitada por feras como onças, leões, elefantes e hipopótamos. Assustada e com saudades dos parentes do lado de cá, Mãtãgnãg decide voltar, porém, sob uma condição: não contar nada do que viu para os vivos”. Os desenhos vibrantes em stopmotion formam camadas e sobreposições que dinamizam o caminho descrito pelo mito de ida e volta, às vezes, somente de ida ao mundo dos mortos. Uaká, de Paula Gaitán, explora delicadamente o universo e os movimentos de um dos rituais mais famosos dos povos indígenas xinguanos, o Kuarup. Ritual em deferência aos mortos ilustres compartilhado por diferentes povos indígenas da região, o Kuarup é um rito que, na sua origem, teria sido realizado para trazer trazer de volta das aldeias dos mortos os parentes defuntos. Uaká foi filmado durante a preparação de um ritual kuarup, que contou com a participação de nove diferentes povos da região, em uma aldeia kamayurá chamada Takumã, no Xingu. Como Arthur Omar e ao seu modo, Paula Gaitán desvia do propalado método etnográfico rumo ao universo do encantamento e da exaltação de corpos e falas indígenas. Exaltação contra a representação. Good-bye Old Man, de David MacDougall, é um filme encomendado por um homem tiwi chamado Geoffrey Mangatopi, que, já próximo de sua morte, teria solicitado a filmagem de seu próprio ritual fúnebre, chamado na região de Pukamani. O filme e o realizador tornaram-se clássicos do gênero etnográfico, ao seguir de perto a longa preparação de uma tradição funerária ancestral, que culmina no deslocamento de toda uma comunidade para uma praia chamada Carslake, onde o ritual é dançado por especialistas e as exéquias realizadas. Narrado por um dos participantes da cerimônia a partir de suas observações sobre o filme editado, a voz em off, bem como o som direto, são aspectos fundamentais e complementares do filme. Wutharr, Saltwater Dreams é o terceiro filme do Coletivo Karrabing Filme (Karrabing Film Collective), formado em sua maioria por realizadores karrabing, mas não exclusivamente, vez que a antropóloga norte-americana Elizabeth Povinelli também faz parte
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do grupo. Filmado em uma paisagem aborígene muito semelhante à de Good-Bye Old Man, esse é sem dúvida um dos filmes mais intrigantes da mostra, de uma ousadia formal inédita, caracterizado pela própria Povinelli como um “realismo improvisado” (improvisational realism). De uma estética surreal e inovadora, o filme se estrutura em uma série de flashbacks que apresentam diferentes versões sobre o que teria causado o problema no motor de um barco, deixando a família presa em uma praia distante. A mise-en-scène dos mortos ou ancestrais como prováveis causadores do estrago do motor é um dos pontos altos do filme. Last but not least, fechamos com o magistral Sigui Synthèse, dos gigantes Jean Rouch e Germaine Dieterlen, defuntos ilustres, entre outros, de nossa mostra piacular. Sigui Synthèse é o filme síntese de uma série de sete filmes realizados entre os anos de 1966 e 1974 sobre as cerimônias que os Dogon do Mali chamam de Sigui. Realizadas a cada 60 anos e com duração de sete anos, essas cerimônias foram primeiramente descritas por Marcel Griaule, em 1907. Durante a cerimônia, os Dogon comemoram a revelação da palavra oral aos homens, a transformação ou regeneração da terra, bem como a morte e funeral dos primeiros ancestrais dogon. É impossível esquecer os cantos e as danças de centenas de pessoas, em ritmo marcado pelo solo árido das montanhas do território dogon, bem como o comentário over, na voz inconfundível do realizador que, como demonstra Mateus Araújo, em ensaio escrito especialmente para a mostra, “interage com as vozes dos Dogon (nunca legendadas), os sons da sua vida comum, as músicas das suas cerimônias (cantos, percussões etc) e a força de suas falas rituais, que Rouch traduz e recita com sua típica entoação encantatória”. Não é a primeira vez que esse filme magistral é exibido no forumdoc: a primeira sessão, interminável, foi realizada dentro da mostra Rouch-Dieterlen de 2000, no antigo Cine Nazaré, talvez em seu último ano de vida, com um projecionista, como bem recorda nosso colega Ewerton Belico, que não sabia trocar os rolos de 16mm, e foi marcada pelas quebras e pausas constantes causadas tanto pela inépcia do projecionista quanto pela antiguidade da cópia. Reza a lenda que essa sessão durou alguns dias, e a sensação era a de uma sessão que nunca iria terminar, como os ritos e filmes de longa-duração.
wake work | trabalho de vigília A mostra “Mortos e a Câmera” será acompanhada de um seminário, no Cine Humberto Mauro (Palácio das Artes-MG), casa do forumdoc desde 1997, que pretende abordar as conexões parciais entre memória, necropolíticas, cosmojustiças e cinema, antropologia, performance e arte. A intenção do seminário é se alinhar à proposta de Michael Gillespie a partir da formulação “cinema na vigília” (cinema in the wake), na esteira de Christina Sharpe, bem como ao chamado de Claudia Rankine, de modo a expandi-los para territórios não explorados por esses autores. O fato de a existência de pessoas negras, mulheres, indígenas e lgbtqi, entre outros, ser uma existência na vigília (existence on the wake), marcada pela escravidão e pelos genocídios, faz toda a diferença para pensarmos os modos como lidamos com a vigília de nossos mortos, em especial quando utilizamos mediações políticas e artísticas, raramente acadêmicas, para fazer esse
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percurso obrigatório de ir e voltar do encontro com nossos mortos. Vale ainda esclarecer que, para Sharpe (2016, p.14), o modo de “existência na vigília” e o “trabalho de vigília” (wake work) são entendidos como formas de consciência/conhecimento (consciousness). Sobre o “trabalho de vigília”, Sharpe resume: “Se, como sugeri até agora, pensamos na metáfora da vigília em todos os seus significados (vigiar os mortos, o caminho de um navio, uma consequência de algo, na linha de voo e/ou visão, despertar e consciência) e se juntamos a vigília ao trabalho, a fim de fazer da nossa vigília e trabalho de vigília nossa analítica, podemos continuar imaginando novas maneiras de fazer vigília na vigília da escravidão, nas vidas após a escravidão (slavery’s afterlives), para sobreviver (e mais) a vida após a morte da propriedade. Em resumo, quero dizer que o fio do trabalho de vigília é um modo de habitar e romper essa episteme com nossos conhecimentos vividos e vidas in/imagináveis. Com essa análise, podemos imaginar o contrário do que sabemos agora na vigília da escravidão”. (2016, p.17-18) A primeira sessão será dedicada ao cinema do e com o povo Tikmũ’ũn (Maxakali). Dois filmes compõem a sessão: Tatakox Vila Nova e Mãtãnãg, a encantada, que será apresentado e comentado por Suely e Isael Maxakali, Charles Bicalho, no dia 23/11, às 17h. No dia 25/11, às 17h, será a abertura do seminário “Mortos e a Câmera”, com a apresentação do coordenador de curadoria Paulo Maia e nossa convidada especial, Leda Maria Martins, poeta e professora da Faculdade de Letras da UFMG. Leda fará uma conferência de abertura, estabelecendo aproximações e afastamentos a respeito do tema proposto. Nesse mesmo dia, às 21h, Arthur Omar estará presente na sessão comentada de seus filmes Ressurreição e Sonhos e Histórias de Fantasmas. No dia 26/11, às 15h, teremos nossa primeira mesa redonda, intitulada “Trabalho de vigília” (wake work), com a participação de Denilson Baniwa, Castiel Vitorino, Davi de Jesus do Nascimento e Célia Xakriabá. Roberto Romero fará a mediação da mesa, cujo foco será dado aos agenciamentos artísticos e políticos que podem ser entendidos na clave dos “trabalhos de vigília”. A segunda mesa ocorrerá no dia 27/11, às 15h, será intitulada “Cinema na vigília” (cinema in the wake) e contará com a participação de André Brasil, Tatiana Carvalho Costa, Fabio Rodrigues e Ademilson Kaiowá. A mediação ficará a cargo de Carla Italiano. Nessa mesa esperamos explorar o cinema, como sugere Michael Gillespie, na vigília, abordando suas experimentações formais e capacidades críticas. Às 17h os filmes Chico Mendes - Eu quero Viver, de Andrian Cowell e Yvy Reñoi, Semente da terra, assinado coletivamente pela ASCURI (Associação Cultural de Realizadores Indígenas) serão comentados por Ruben Caixeta de Queiróz e Ademilson Concianza, membro da ASCURI. No dia 30/11 às 19h, Renato Sztutman irá comentar os filmes Good-Bye Old Man (Adeus Meu Velho), de David MacDougall e Wutharr, Saltwater Dreams (Sonhos de Água Salgada), assinado pelo Karrabing Film Collective (coletivo Karrabing Filme). Fecharemos a mostra/seminário “Mortos e a Câmera” com chave de ouro no dia 1º/12, com a sessão de encerramento, às 21h, com o filme Sigui Synthèse, de Jean Rouch e Germaine Dieterlene, apresentado por Júnia Torres.
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ensaios e entrevistas Na seção de Ensaios e Entrevistas do presente catálogo forumdoc.bh.2019, publicamos o artigo “Death Grips” (Abraços da Morte), de Michael Boyce Gillespie e o ensaio “The Condition of Black Life Is One of Mourning” (A Condição da vida negra é o luto), de Claudia Rankine, ambos traduzidos em primeira mão pelo forumdoc.bh; “Numa terra estranha: sobre Mãtãnãg, a encantada, uma animação de Shawara Maxakali e Charles Bicalho” de Roberto Romero; “O cinema e os ritos funerários Dogon em Sigui 1967-1973: Invenção da Palavra e da Morte (Jean Rouch e Germaine Dieterlen, 1981)” de Mateus Araújo; “Quem cala sobre teu corpo, consente na tua morte” de Fabio Rodrigues Filho; um trecho de uma entrevista de Emmanuel Burdeau com Wang Bing. Também publicamos a transcrição de uma fala de Castiel Vitorino intitulada “Cura Bantu” (2019) , e o ensaio visual “A ponte caiu se vira e atravessa nadando” (2019), de Davi de Jesus do Nascimento.
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Dead Souls • Almas Mortas • Si Ling Hun França/Suíça, 2018, cor, 495’ • direção director Wang Bing • fotografia cinematography Wang Bing • montagem editing Catherine Rascon • produção production Les Films D’ici, CS Productions • contato contact t.lionel@docandfilm.com
Na província de Gansu, no noroeste da China, encontram-se os restos de inúmeros prisioneiros abandonados no Deserto de Gobi há sessenta anos. Designados “ultra-direitistas” na Campanha Anti-Direitista de 1957 do Partido Comunista, morreram de fome em campos de reeducação. O filme convida-nos a conhecer os sobreviventes, para descobrir, em primeira mão, quem foram essas pessoas, as adversidades que tiveram de suportar e qual foi o seu destino. In Gansu Province, northwest China, lie the remains of countless prisoners abandoned in the Gobi Desert sixty years ago. Designated as “ultra-rightists” in the Communist Party’s Anti-Rightist campaign of 1957, they starved to death in the Jiabiangou and Mingshui reeducation camps. The film invites us to meet the survivors of the camps to find out firsthand who these people were, the hardships they were forced to endure and what became their destiny. Cine Humberto Mauro, 28 nov, 19h - Parte 1 • 29 nov, 14h30 - Parte 2
Les Tombeaux Sans Noms • Túmulos Sem Nome • Nameless Grave França/Camboja, 2018, cor, 115’ • direção director Rithy Panh • fotografia cinematography Rithy Panh, Prum Mésar • montagem editing Rithy Panh • música music Marc Marder • produção production Catherine Dussart Production, Arte France, Anupheap Production • contato contact joris@playtime.group
Quando uma criança de 13 anos de idade, que perdeu a maior parte da família sob o regime do Khmer Vermelho, embarca em uma procura pelas sepulturas de seus familiares, o que ela encontra lá? O documentário registra a busca por paz espiritual, tanto para quem foi morto quanto para os sobreviventes do sistema político que dominou o Camboja na década de 1970. When a 13 years old kid, who has lost most of his family under Khmer Rouge’s regime, goes on a search for the graves of his relatives, what will be found? The documentary film shows the search for spiritual peace, both for who was killed and for the survivors of the political system that dominated Cambodia in the 1970s.
Cine Humberto Mauro, 24 nov, 19h
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Ressurreição • Resurrection Brasil, 1987, p&b, 6’ • direção director Arthur Omar • fotografia cinematography Arquivos de Jornais • montagem editing Aida Marques • músicas music Coração Santo, Queremos Deus • produção production Córtex Digital • contato contact arthuromar@gmail.com
Composto com fotografias de arquivos de jornais populares brasileiros especializados em assassinatos violentos, e do Instituto Médico Legal. As estranhas posturas dos corpos massacrados lembram as figuras dos pintores Maneiristas. Menos uma denuncia, que um estudo sobre a ação da lei da gravidade sobre corpos sem vida. The film is made with archive photography from Brazilian newspapers specialized in violent murders and from morgues. The strange postures of the slaughtered bodies remind the pictures of the Mannerism period. It is less a denouncement than a study on the action of law of gravity on lifeless bodies.
Cine Humberto Mauro, 25 nov, 21h *Sessão comentada por Arthur Omar
Sonhos e Histórias de Fantasmas • Dreams and Ghost Stories Brasil, 1996, cor, 45’ • direção diretor Arthur Omar • contato contact arthuromar@gmail.com
Raízes negras e psicanálise selvagem. Um quilombo no interior de Minas Gerais formado por velhos ligados à tradição. Uma turma funk no Rio de Janeiro, jovem, sem qualquer ligação com o passado. Pressão comunitária e êxtase metafísico, com aparições de fantasmas, numa linguagem sensorial. Black roots and wild psychoanalysis. A quilombo in the countryside of Minas Gerais formed by the elderly linked to the traditions. A funk group in Rio de Janeiro, young, not connected to the past. Communitarian pressure and metaphysical ecstasy with ghost appearing in a sensorial language.
Cine Humberto Mauro, 25 nov, 21h *Sessão comentada por Arthur Omar
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Dead Nigga Blvd Estados Unidos, 2015, cor e p&b, 5’ • direção director Leila Weefur • fotografia cinematography Leila Weefur • contato contact leilaweefur@gmail.com
Dead Nigga Blvd encontra-se em algum lugar entre a vida na Terra e a vida após a morte. Emmet Till, Oscar Grant e Trayvon Martin vivem em frustração e confusão ao serem forçados a confrontarem suas mortes da mesma forma que nós as confrontamos, através de uma transmissão. Esses três jovens representam apenas uma pequena porcentagem de mortes causadas por injustiças raciais, mas seus rostos se tornaram icônicos no debate sobre o racismo norte-americano. Dead Nigga Blvd. exists somewhere between life on Earth and the afterlife. Emmett Till, Oscar Grant, and Trayvon Martin dwell in frustration and confusion as they are forced to confront their deaths in the same way we all have confronted their deaths, through a broadcast. These three young men represent only a small percentage of deaths caused by racial injustices but their faces have become iconic in the conversation of American racism. Cine Humberto Mauro, 30 nov, 16h30
Noise+Thirst • Barulho+Sede Estados Unidos, 2018, cor, 7’ • direção director Leila Weefur • contato contact leilaweefur@gmail.com
Noise+Thirst é uma vídeo instalação que apresenta a negritude como habitante do espaço entre barulho & silêncio e entre sede & satisfação. A colagem sonora que a acompanha, uma gestalt da masculinidade negra, questiona até que ponto devemos escrutinar minuciosamente nossa negritude para testemunhar um contraste que ocorre naturalmente? Noise+Thirst is a video installation presenting blackness as an inhabitant of the space between noise & silence and thirst & satisfaction. The accompanying sound collage, a gestalt of black masculinity, asks how closely must we scrutinize our blackness to bear witness to a naturally occurring contrast?
Cine Humberto Mauro, 30 nov, 16h30
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Everybody Dies! • Todo Mundo Morre! Estados Unidos, 2016, cor, 9’ • direção director Nuotama Frances Bodomo • fotografia cinematography Chananun Chotrungroj • montagem editing Colin Elliott • som sound Eli Cohn • produção production Laurie Thomas, Valerie Steinberg • contato contact moreinfo@nuotamabodomo.info
Em um programa de TV de acesso público, Ripa, a ceifadora, ensina crianças negras sobre o dia em que morrerão. A public access tv show in which ripa the (grim) reaper teaches black kids about the day they’ll die.
Cine Humberto Mauro, 30 nov, 16h30
White • Branca Estados Unidos, 2011, cor, 16’ • direção director A. Sayeeda Moreno • fotografia cinematography Jeffrey Kim • montagem editing Frederic Tcheng • som sound Laura Sinnot • produção production Smriti Mundhra • contato contact a.sayeeda. moreno@gmail.com
É mais um dia de 48 graus, a cinco dias do Natal, e calor é a única estação que resta para a cidade de Nova York. Bato e sua esposa Gina estão esperando um bebê. Embora tenham planejado ter o bebê em casa, agora Gina necessita dos serviços de uma clínica para um parto prematuro. Sem dinheiro, Bato começa uma corrida contra o tempo para salvar sua família. It’s another 120-degree day with five more days to Christmas and hot is the only season left in New York City. Global warming has become a tangible threat and everyone is creating new ways to protect themselves from the sun. Bato and his wife Gina are expecting a baby. Although they planned to have the baby at home, Gina now requires the services of a clinic for the premature delivery. With no money, Bato enters into a race against time to save his family. Cine Humberto Mauro, 26 nov, 17h
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still/here • ainda/aqui Estados Unidos, 2001, p&b, 60’ • direção director Christopher Harris • fotografia cinematography Christopher Harris, Joel Wanek • montagem editing Christopher Harris • som sound Christopher Harris • produção production Christopher Harris • contato contact christopher-harris@uiowa.edu
ainda/aqui é uma meditação sobre a vasta paisagem de ruínas e lotes vagos que constitui a zona norte de St. Louis, uma área povoada quase exclusivamente pela classe operária e por trabalhadores pobres afro-americanos. Embora construa um registro documental de flagelo e decadência, ainda/aqui é uma recusa ao fim que reside no espaço da ruptura e confronta a presença de uma ausência profunda. (C.H.) still/here is a meditation on the vast landscape of ruins and vacant lots that constitute the north side of St. Louis, an area populated almost exclusively by working class and working poor African Americans. Though it constructs a documentary record of blight and decay, still/here is a refusal of closure that dwells within the space of rupture and confronts the presence of a profound absence. (C.H.) Cine Humberto Mauro, 30 nov, 16h30
Chico Brasil, 2018, cor, 22’ • direção director Irmãos Carvalho • fotografia cinematography Gabriela Almeida • montagem editing João Rabllo • som sound Gustavo Andrade • produção production Nasceu Na Rua Filmes • contato contact marcosmagalhaescarvalho@hotmail.com, eduardomagalhaescarvalho@yahoo.com.br
2029. Treze anos depois de um golpe de Estado no Brasil, crianças pobres, negras e faveladas são marcadas em seu nascimento com uma tornozeleira e têm suas vidas rastreadas por pressupor-se que elas irão, mais cedo ou mais tarde, entrar para o crime. Chico é mais uma dessas crianças. No aniversário dele, é aprovada a lei que autoriza a prisão desses menores. O clima de festa dará espaço a uma separação dolorosa entre Chico e sua mãe, Nazaré. Brazil, 2029. Black and favela children are marked with an anklet at birth and have their lives monitored since it’s assumed that sooner or later they will join crime. Chico is one of those kids. On his birthday, a law authorizing the arrest of these minors is approved. The party mood will give way to a painful separation between Chico and his mother, Nazaré. Cine Humberto Mauro, 26 nov, 17h
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Apelo • Appeal Brasil, 2014, cor, 13’ • direção director Clara Ianni, Débora Maria da Silva • fotografia cinematography Pedro Sotero • montagem editing Onze Corujas • som sound Confraria de Sons e Charutos • produção production Massa Real • contato contact clara.ianni@gmail.com
Apelo surge da urgência em lidar com a institucionalização da violência no Brasil – consolidada ao longo da história do país. Filmado no Cemitério Dom Bosco na periferia de São Paulo, a obra conecta atos de violência do presente com os do passado por meio de um discurso público de Débora Maria da Silva, que teve seu filho assassinado em 2006, vítima das ações conduzidas por esquadrões da morte da polícia militar de São Paulo. Appeal emerges from the urgency in dealing with the institutionalization of violence in Brazil – consolidated throughout the history of the country. Filmed in Dom Bosco Cemetery, in the outskirts of São Paulo, the film connects violent acts of the present to the ones of the past through a public speech of Débora Maria da Silva, who had her son murdered in 2006, victim of actions of the death squads of the military police of São Paulo. Cine Humberto Mauro, 26 nov, 17h
Pontes Sobre Abismos • Bridges Over The Abyss Brasil, 2017, cor, 9’ • direção director Aline Motta • fotografia cinematography Aline Motta • montagem editing Fernando Lima • som sound Bruno Elisabetsky • produção production Aline Motta • contato contact 1alinemotta@gmail.com
Instigada pela revelação de um segredo de família, Aline partiu em uma jornada à procura de vestígios de seus antepassados. Ela viajou para áreas rurais no Rio de Janeiro, em Minas Gerais, Portugal e Serra Leoa, pesquisando em arquivos públicos e privados e, ao mesmo tempo, criando uma contra-narrativa do que geralmente se conta sobre a forma como as famílias brasileiras foram formadas com sua história violenta e as noções românticas de sua louvada miscigenação. Instigated by the revelation of a family secret, Aline left on a journey to look for traces of her ancestors. She has travelled through Rio de Janeiro, Minas Gerais, Portugal and Sierra Leone researching in public and private archives and creating a counter-narrative about what is usually told about the formation of the Brazilian families.
Cine Humberto Mauro, 26 nov, 17h
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Para Todas as Moças • For All the Ladies Brasil, 2019, cor, 3’ • direção director Castiel Vitorino Brasileiro • montagem editing Castiel Vitorino Brasileiro • contato contact castielvitorinob@gmail.com
Macumba de travesti, só bixa consegue desfazer. Feitiço de bixa, só travesti consegue quebrar. Queen macumba, only queers get to undo it. Queer spell, only queens get to break it.
Cine Humberto Mauro, 26 nov, 17h
A-Gente Laranja Brasil, 2019, cor, 2’ • direção director Denilson Baniwa • fotografia cinematography Imagens de Arquivo • montagem editing Denilson Baniwa • contato contact denilsonbaniwa@gmail.com
No vídeo A-gente Laranja (2019), o artista propõe-se a inter-relacionar imagens de ataques químicos a populações Guarani-Kaiowá perpetrados por fazendeiros no estado do Mato do Grosso do Sul ao longo dos anos 2000, com imagens de arquivo de aviões norte-americanos sobrevoando e lançando o herbicida Agente Laranja em pleno período de Guerra do Vietnã, nos anos 70. O trabalho conecta arquivos e histórias que à princípio não estariam relacionadas. In the short film, the artist proposes the interaction between images of chemical attacks to Guarani-Kaiowa indigenous population perpetrated by farm owners of Mato Grosso do Sul state through the 2000s, with archive images of US choppers spraying the herbicide Agent Orange during the Vietnam War period, in the 1970s. The work connects archive and stories that otherwise wouldn’t be connected. Cine Humberto Mauro, 26 nov, 14h
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Yvy Reñoi, Semente Da Terra • Yvy Reñoi, Seed Of The Earth Brasil, 2017, cor, 15’ • direção director Coletiva da ASCURI • roteiro script Eliel Benites sob orientação do Aty Guasu • fotografia cinematography Ademilson Concianza Verga, Gilmar Kiripuku Galache • contato contact ascuri.ms@gmail.com
A luta dos Kaiowa e Guarani da aldeia Teykue pela retomada do seu território tradicional é marcada por disputas de terra. Em junho de 2016, um novo ataque financiado por ruralistas resultou em mais um indígena morto e quatro feridos. 90 cápsulas de balas foram encontradas na retomada e inúmeras marcas de tiros. Nenhum fazendeiro foi preso. Tudo isso acontece cinco dias após a visita do atual presidente Jair Bolsonaro (então no PSC/RJ) a Campo Grande. Coincidência? The struggle of the Kaiowa and Guarani, of the Teykue hamlet, for taking back their traditional territory has many land disputes. In June, 2016, an attack financed by big farm owners resulted in one more indigenous death and four wounded. 90 bullets jackets were found and countless shot marks. No farm owner was jailed. All this happens five days after the now President Jair Bolsonaro (then in PSC/RJ) visit to Campo Grande. Coincidence? Cine Humberto Mauro, 27 nov, 14h
Chico Mendes: Eu Quero Viver • Chico Mendes: I Want to Live Brasil, 1989, cor, 56’ • direção director Adrian Cowell • fotografia cinematography Vicente Rios, Auro Lu • montagem editing Chris Christophe, Terry Twigg, Andrew Mason • som sound Vanderlei de Castro, Rafael de Carvalho, Nélio Rios • produção production Roger James, Vicente Rios, Morrow Cater • contato contact igpa@pucgoias.edu.br
O filme mostra a trajetória de Chico Mendes, líder seringueiro no Acre, em defesa da Amazônia. Com registros feitos entre 1985 e 1988, acompanhamos Chico Mendes na organização dos seringueiros em defesa da floresta, no nascimento da Aliança dos Povos da Floresta, e na luta pela demarcação das primeiras reservas extrativistas na Amazônia. O filme mostra, ainda, a trama armada para seu assassinato e as repercussões no Brasil e no mundo. The film presents the path of Chico Mendes, a rubber tapper leader form Acre, defending the Amazon. Shot between 1985 and 1988, it shows Chico Mendes organizing the rubber tappers to defend the forest, the birth of Aliança dos Povos da Floresta (Forest People’s Alliance), and the struggle for the demarcation of extractive reserves in the Amazon. The film also presents the plot made to murder him and the repercussion in Brazil and the world. Cine Humberto Mauro, 27 nov, 17h *Sessão comentada por Ruben Caixeta de Queiroz
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Tatakox – Aldeia Vila Nova • Tatakox – Vila Nova Village Brasil, 2009, cor, 22’ • direção director Comunidade Maxakali Aldeia Nova do Pradinho • fotografia cinematography João Duro Maxakali • montagem editing João Duro Maxakali • som sound João Duro Maxakali • produção production Comunidade Maxakali Aldeia Nova do Pradinho • contato contact rtugny@gmail.com
Quando as mulheres sentem saudade das suas crianças que morreram pequenas, os Tatakox vão buscá-las e trazem-nas às aldeias para que as mães as vejam. Com a filmadora nós pudemos ver de onde é que os Tatakox tiram as crianças. Depois, no mesmo dia, os meninos vivos da aldeia são levados de suas mães pelos espíritos para ficar na casa dos homens e aprender. When women miss their children who died small, the Tatakox fetch them so their mothers can see them in their hamlet. With the camera we are able to see from where the Tatakox bring the kids. Then, on the same day, the living boys are taken by the spirits from their mothers to stay in the house of men to learn.
Cine Humberto Mauro, 23 nov, 17h *Sessão comentada por Sueli e Isael Maxakali e Charles Bicalho
Mãtãnãg, a Encantada • Mãtãnãg, the Enchanted Brasil, 2019, cor, 15’ • direção director Shawara Maxakali, Charles Bicalho • fotografia cinematography Jackson Abacatu • montagem editing Charles Bicalho, Jackson Abacatu, Marcos Henrique Coelho • som sound Guilherme Bahia • produção production Charles Bicalho, Cláudia Alves, Marcos Henrique Coelho • contato contact charlesbicalho@gmail.com
Mãtãnãg, a Encantada acompanha a trajetória da índia Mãtãnãg, que segue o espírito de seu marido, morto por uma picada de cobra, até a aldeia dos mortos. Juntos eles superam os obstáculos que separam o mundo terreno do mundo espiritual. Falado em língua Maxakali e legendado em português, o curta se baseia em uma história tradicional do povo indígena Maxakali. Mãtãnãg, the Enchanted follows the path of the indigenous Mãtãnãg, who is following the spirit of her dead husband, killed by a poisonous snake’s bite, to the hamlet of the dead. Together they overcome the obstacles that separate the living world from the dead world. The short film, spoken in Maxakali, is based on a traditional story of the Maxakali indigenous people. Cine Humberto Mauro, 23 nov, 17h *Sessão comentada por Sueli e Isael Maxakali e Charles Bicalho
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Uaká Brasil, 1988, cor, 90’ • direção director Paula Gaitán • fotografia cinematography Jonnhy Howard • montagem editing Aida Marquez • som sound Alberto Camuirano • produção production Tarcísio Vidigal, Hilton Kauffmann • contato contact paulagaitan@gmail.com
Os gestos dos índios Kamayurá, suas vozes, seus adornos corporais e a natureza exuberante do Xingu neste que é um filme-poema ao redor da preparação do ritual do Kuarup. The gestures of the indigenous Kamayurá, their voices, their body adornments and the exuberant nature of Xingu are in this film, which is a poem-film on the preparation of the Kuarup ritual.
Cine Humberto Mauro, 25 nov, 15h
Good-Bye Old Man • Adeus Meu Velho Austrália, 1977, cor, 66’ • direção director David MacDougall • fotografia cinematography David MacDougall • montagem editing David MacDougall • som sound Bryan Butler • produção production AIAS Film Unit (Australian Institute of Aboriginal Studies, Canberra) • contato contact collectionenquiry@aiatsis.gov.au
O último pedido de um homem Tiwi, da Ilha Melville, foi que fizessem um filme sobre a cerimônia de pukumani (luto) de sua morte. O filme acompanha sua família, desde os dias de preparação até a partida final do velho homem. O filme conta com a narração de Thomas Woody Minipini, um dos participantes. A last request of a Tiwi man on Melville Island was that a film be made of the pukumani (bereavment) ceremony to follow his death. The film follows his family, from the days of preparation to their final leave-taking of the old man. Commentary by Thomas Woody Minipini, one of the participants.
Cine Humberto Mauro, 30 nov, 18h30 * Sessão comentada por Renato Sztutman
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Wutharr, Saltwater Dreams • Wutharr, Sonhos De Água Salgada Austrália, 2016, cor, 29’ • direção director Karrabing Film Collective • fotografia cinematography Natasha Lewis • montagem editing Elizabeth A. Povinelli • som sound Leandros Ntounis • produção production Karrabing Indigenous Corporation • contato contact karrabingkarrakul@gmail.com
Através de uma série de flashbacks cada vez mais surreais, uma família indígena discute o que pode ter causado o problema no motor de seu barco que os deixou encalhados no mato. Enquanto especulam os papéis que os ancestrais, o Estado regulador e a fé cristã exerceram sobre o incidente, Wutharr, Sonhos de Água Salgada explora as múltiplas demandas e os incontornáveis vórtices da vida indígena contemporânea. Across a series of increasingly surreal flashbacks, an extended indigenous family argues about what caused their boat’s motor to break down and leave them stranded out bush. As they consider the roles played in the incident by the ancestral present, the regulatory state and the Christian faith, Wutharr, Saltwater Dreams explores the multiple demands and inescapable vortexes of contemporary indigenous life. Cine Humberto Mauro, 30 nov, 18h30 * Sessão apresentada por Renato Sztutman
Sigui Synthèse (1967 - 1973) - L’ Invention de la Parole et de la mort Sigui Síntese (1967 - 1973) - A invenção da palavra e da morte Mali/ França, 1981, cor, 120’ • direção director Jean Rouch, Germaine Dieterlen • fotografia cinematography Jean Rouch • montagem editing Danielle Teissier • som sound Gilbert Rouget, Moussa Hamifou, Guindo Ibrahim • contato contact www.comitedufilmethnographique.com/contact/
Ensaio de síntese da série dos sete filmes de Rouch (1967-1974) sobre as complexas cerimônias do Sigui, que os Dogon do Mali organizam a cada 60 anos para celebrar e reviver a invenção do mundo, a doação da linguagem aos homens e a morte de seus ancestrais. The film is a synthesis essay of the seven films by Rouch (1967-1974) on the complex Sigui ceremonies that the Dogon, of Mali, organize every 60 years to celebrate and revive the invention of the world, the donation of language to humankind and the death of their ancestors.
Cine Humberto Mauro, 01 dez, 21h * Sessão comentada por Júnia Torres
mostra contemporânea brasileira brazilian contemporary showcase
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Mostra Contemporânea Brasileira Carla Italiano Daniel Ribeiro Duarte Ewerton Belico Layla Braz
É grave o momento que vivemos, como são graves os ataques à cultura e à educação que continuamente se sucedem. Neste contexto difícil, com restrições cada vez maiores ao campo da cultura – que limitam não apenas a produção cinematográfica, mas a realização de inúmeros festivais e mostras – a equipe do forumdoc.bh resiste e realiza, em 2019, a sua 23ª edição. Fomos obrigados, entretanto, a lidar com cortes orçamentários severos, o que levou a mudanças consideráveis na estrutura da programação, como, por exemplo, o cancelamento da Mostra Contemporânea Internacional a fim de priorizar a produção nacional. E mais: pelas dificuldades de logística e produção que um extenso número de filmes inscritos acarretaria, tivemos que mudar o método de trabalho, organizando esta Mostra Contemporânea Brasileira não mais por meio de inscrições, mas por convites realizados pela comissão de organização do festival. Torcendo para que essa decisão seja uma excepcionalidade, esperamos que nas próximas edições o forumdoc.bh possa retornar com a abertura de inscrições, que, sabemos, é etapa fundamental para a necessária pluralidade dos filmes exibidos. E que todos os festivais brasileiros que tiveram suas atividades descontinuadas possam ser retomados em breve. Embora tal processo tenha acarretado em um número menor de obras assistidas, procuramos fugir de um conjunto óbvio de filmes e ampliar o escopo da pesquisa, atingindo produções de variados formatos, regiões do país, temas e modos de realização. Os critérios elementares dos nossos debates deram continuidade ao que têm norteado as seleções de anos anteriores, sendo também atravessados por fatores contingenciais, como a diminuição das oportunidades de circulação da produção brasileira de olhar marcadamente documental (com a ausência de festivais de fôlego, como o CachoeiraDoc, no Recôncavo Baiano). Isso levou à preferência, de nossa parte, por filmes que não tiveram lançamento nas salas de Belo Horizonte, ou que eram inéditos em âmbito nacional. Nossas diretrizes também buscaram responder (ou melhor, escutar) aos questionamentos e demandas lançados pelo debate público dos últimos anos acerca dos critérios de valoração do cinema – ou da arte - no cenário contemporâneo, especialmente no que concerne às questões interligadas de representação e representatividade. Assim,
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esta programação foi motivada por pontos como: a permeabilidade entre a forma do filme e a realidade das pessoas filmadas; a densidade das relações que se estabelecem por meio do fazer cinematográfico, sobretudo quando há uma dimensão de inscrição de si aliada a uma afirmação comunitária em jogo; a busca por certa originalidade na abordagem proposta; o investimento em temáticas e situações urgentes no atual contexto; e a consciência dos riscos implicados nessas escolhas. Os onze programas que compõem a Mostra Contemporânea Brasileira deste ano possibilitam apontar algumas linhas de força que nos parecem significativas. A primeira dessas linhas diz respeito a uma escrita de si fílmica, que passa pela elaboração de um estar no mundo enquanto mulher negra, elaboração que se dá, sobretudo, na relação com outras mulheres de diferentes gerações. É o caso, por exemplo, de três filmes criados por jovens realizadoras: os curtas Bup e Motriz, assim como o longa Casa. Já a segunda linha de força tem como foco os corpos em performance atravessados por uma dimensão de performatividade de gênero. Isso ocorre em meio a um potente universo LGBTQI+, especificamente trans, que implode a rigidez das normatividades e suas várias fobias, escancarando, assim, o caráter eternamente mutável da constituição de sujeito e de subjetividade. Isso fica evidente na intersecção entre artes visuais e etnografia proposta pelo curta Swinguerra; ou ainda nos “corpos sem juízo” de Bixa Travesty (como na música da personagem Jup do Bairro), longa com roteiro e presença de Linn da Quebrada. Outra frente importante da mostra está no olhar sensível lançado às manifestações culturais de povos originários, especialmente em suas dimensões ritualísticas, em filmes de autoria indígena que imbricam o ponto de vista fílmico à perspectiva das comunidades. Isso é notável no registro dos cantos e dos saberes de caça que inscrevem a história coletiva de um povo, como em Ma’e Mimiu Haw – A História dos cantos, da etnia Guajajara; nos curtas Kapuakit Nëtë – Dia de caçada e Bakuëbom Bompisën Tëkikbo – Meninos soprando cana fina, ambos com realização coletiva Matis; ou na profundidade e beleza da relação entre vivos e mortos no filme Guarani O Último Sonho. Outra frente diz respeito à juventude enquanto sensibilidade para as forças em atuação no presente, assim como abertura de caminhos para mudanças futuras. Essa perspectiva é modular: está no relato da violência policial sofrida por adolescentes, com as suas distintas formas de resposta através das imagens, presente tanto em Entre-Vistas, fruto de oficinas realizadas em escola de Ouro Preto, quanto em Sete anos em maio, protagonizado por Rafael ‘Fael’ dos Santos. Tal perspectiva também está na lida com o racismo estrutural que cruza o dia-a-dia de três jovens negros na maior universidade da capital paulista, no curta Quantos eram pra tá?; ou em Um filme de verão, cuja força motriz vem da pulsação própria à passagem para a vida adulta, possibilitando entrever, em situações cotidianas, as contradições de um país em plena crise. Tal dimensão é marcante, ainda, na eleição para o grêmio secundarista retratada em Eleições, que é capaz de reverberar toda a complexidade da ambivalente “crença e descrença” do/as brasileiro/as em relação à política partidária. Duas outras linhas de força da mostra se caracterizam pela primazia de suas construções formais. A primeira investe na montagem como um gesto que se auto-afirma, ou como um gesto de re-elaboração da História, com o entendimento que essa história
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também se escreve pelo cinema. Em Sem título #5: a rotina terá seu enquanto, é colocado em curso mais um capítulo da série “Cine (Auto)Biografia em Regresso”, ao mergulhar nas imagens do derradeiro filme de Yasujiro Ozu, de modo a entrelaçar vida e arte, reflexão existencial, nostalgia e amor. Por sua vez, em Tudo que é apertado rasga, são as atrizes e os atores negros que atravessaram a história do cinema brasileiro de modo enviesado, submetida/os a diferentes estereótipos racistas, que agora ganham protagonismo, criando “rasgos” que reinstauram a potência de seus corpos no interior dos arquivos mobilizados pela montagem. Já a segunda dessas frentes formais aposta em um hibridismo que costura intimamente ficção e documentário. Tal aposta está em Enquantos estamos aqui, com seu investimento em um improvável encontro entre imigrantes que emerge dos sons e imagens de procedência documental, evidenciado um amor tornado (provisoriamente) possível apenas através do cinema. Em uma chave bastante distinta, A rosa azul de Novalis cria uma espécie de autobiografia ficcional aos moldes de narrativa memorialística, constantemente questionando a veracidade de seu relato, e convocando, assim, a/o espectador/a a um engajamento tão inquieto quanto instigante. Por fim, a última frente da mostra é marcada pela defesa de diferentes territórios atrelada a lutas cotidianas pelo direito de existir. Ela se faz presente em Zawxiperkwer Kaa – Guardiões da floresta, com a vigília do povo Guajajara nas fronteiras de sua terra indígena sob constante ameaça; em Virou Brasil, na difícil relação dos Awá-Guajá com as forças destrutivas do agronegócio e da mineração, numa dimensão de resistência que convive lado a lado com a potência dos seus rituais, cantos e conhecimentos. E em Chão, que mostra em cinema “direto” a resiliência, aliada à potência do trabalho coletivo e comunitário, de integrantes do Movimento dos Trabalhadores sem Terra no interior de Goiás, em meio a um contexto nacional de crescente criminalização dos movimento sociais e de suas lideranças. Os critérios descritos acima não foram absolutos, é claro. São nossa tentativa de responder ao caminho cada vez mais vertiginoso que se tem tomado em direção à destruição da cultura e dos saberes tradicionais no país, de perseguição dos corpos e modos de vida. Para mais, a seleção seguiu as questões objetivas e subjetivas dos debates, nos quais o encontro de olhares e argumentos reúne o múltiplo ao imponderável. Certamente, as linhas de força acima podem ser reconfiguradas de diversas maneiras, como um quebra-cabeça que se desmonta a cada novo visionamento, ou a cada novo agrupamento de imagens e temas. No entanto, para além dos filmes aqui citados, acreditamos que tais frentes extrapolam o contexto desta mostra e se reverberam no cinema documental brasileiro dos últimos anos, dizendo respeito a muitos outros títulos que não couberam no escopo deste festival. Na seção Ensaios e entrevistas deste catálogo, da página 154 a 220, um conjunto de textos inéditos escritos por autoras e autores convidados busca prolongar esse debate em torno dos atravessamentos que os filmes da Mostra Contemporânea Brasileira nos propuseram.
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Brazilian Contemporary Showcase Carla Italiano Daniel Ribeiro Duarte Ewerton Belico Layla Braz Translation: Henrique Cosenza
The times in which we are living are grave, and so are the attacks on culture and education that occur continuously in Brazil. In this difficult context, with increasing restrictions on the field of culture – limiting not only the cinema production, but also film festivals and showcases – forumdoc.bh’s team resists and, in 2019, organizes its 23rd edition. We were forced, however, to deal with severe budget cuts, leading to considerable changes in the structure of the program, such as the canceling of the International Contemporary Showcase to prioritize national production. And more: due to logistic and production difficulties that a great number of film submissions entail, we had to change our working method, no longer calling for entries for the Brazilian Contemporary Showcase, but by the festival’s organizing committee making invitations to filmmakers. Hoping this decision to be an exception, we expect that in further forumdoc.bh editions we can come back with the public submissions, since we recognize this to be a fundamental step toward a necessary plurality of films. And we also hope that all Brazilian film festivals which had their activities discontinued will be able to come back soon. Although this process has entailed that fewer films were watched, we tried to avoid an obvious collection of films and to broaden the scope of research, reaching several production formats, regions of the country, themes, and making processes. The elementary criteria of our debates is contiguous to what has been the north of previous selections, although being also trespassed by circumstantial factors, such as the decrease of opportunities of circulation of the Brazilian film production with a documentary approach (due to the absence of important festivals such as CachoeiraDoc, in Bahia). This led us to prefer films that were not released in Belo Horizonte or that were unreleased nationwide. Our guidelines also tried to respond (or listen) to the questionings and demands brought by the public debate in the last years concerning the criteria in the appraisal of cinema – or of art – in contemporary setting, specially the issues related to representation and representativeness. Thus, this program was motivated by things such: the permeability of the film’s form and the reality of the people filmed; the density of the relations
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established through the cinematographic making, especially when there is one self’s inscription together with a communitarian assertion at stake; the search of originality in the proposed approach; the investment on urgent themes and situations in the current context; and the consciousness of the risks of those choices. The eleven programs that make up the Brazilian Contemporary Showcase of 2019 make it possible to point at a few guiding lines that seem meaningful to us. The first of these lines concerns the filmic inscription of oneself, which goes through the elaboration of being in the world as a black woman, an elaboration that happens, above all, in the relation with other women of different generations. That is the case of, for example, three films by young women filmmakers: the short-films Bup and Motriz, as well as the feature film Home (Casa). The second guideline has as its focus bodies in performance trespassed by a gender performativity dimension. This occurs amongst a powerful LGBTQI+ universe, especially Trans, which implodes the normative stiffness and its various phobias, thus revealing the ever-changing nature of the constitution of subject and subjectivity. This becomes evident in the intersection between visual arts and ethnography proposed by the short-film Swinguerra; or in the “bodies with no judgement” (like in the song of the character Jup do Bairro) of Tranny fag (Bixa Travesty), a feature film with the script and presence of singer Linn da Quebrada. Another important section of the showcase is in the sensitive look at native people’s cultural manifestations, especially in their ritualistic dimensions, in films of indigenous authorship which overlap the filmic point of view and the community perspectives. This can be observed in the recording of chants and hunting knowledge that inscribe the collective history of a people, like in Ma’e Mimiu Haw – The history of chants (A história dos cantos), from the Guajajara people; in the short-films Kapuakit Nëtë – Hunting day (Dia de caçada) and Bakuëbom Bompisën Tëkikbo – Kids blowing thin reed (Meninos soprando cana fina), both made collectively by the Matis people; or in the depth and beauty of the relation among the living and the dead in the Guarani film The last dream (O último sonho). Another section deals with youth as being the sensitivity for the forces acting in the present, as well as openness to future changes. This perspective is a modular one: it is on the report of police violence on adolescents, with their distinct ways of responding through images, which are present both in Inter-views/Between Views (Entre-vistas), an offspring of workshops held in a state school of Ouro Preto city, and in Seven years in May (Sete anos em maio), starred by Rafael ‘Fael’ do Santos. It is in the dealing with structural racism that crosses the everyday lives of three young black people in the largest university in São Paulo, in the short-film How many should there be? (Quantos eram pra tá?); or in Sun inside (Um filme de verão) , which the driving force comes from the characteristic pulsation of becoming an adult, allowing us to detect, in ordinary situations, the contradictions of a country in the middle of a crisis. This perspective is striking also in the election of a student body pictured in Elections (Eleições), which can reverberate all the complexity of the ambivalent “belief and disbelief” of the Brazilians in political parties and their politics. Two other guiding lines of the showcase are characterized by their primacy in formal constructions. The first is focused in the editing as a gesture that is self-affirming or as a
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gesture of reworking history, understanding that this history is also written by cinema. In Untitled #5: a tune of none at noon (Sem título #5: a rotina terá seu enquanto), another chapter of the series “Cine (Auto)Biografia em Regresso” is put forward by the immersion in the images of the last of Yasujiro Ozu’s film, intertwining life and art, existential reflection, nostalgia and love. On the other hand, in Pressed, Riped apart (Tudo que é apertado rasga), it is the Black actresses and actors that have been subordinated to racist stereotypes through the history of Brazilian cinema that now become protagonists, making “rips” that reestablish the power of their bodies in the archive mobilized in the editing. The second one invests on a hybridism which closely intertwines fiction and documentary film. It can be seen in While we are here (Enquanto estamos aqui), proposing an unlikely meeting among two immigrants emerging from sounds and images of documentary origin, presenting a love made (temporarily) possible only through cinema. In a completely different fashion, The blue flower of Novalis (A rosa azul de Novalis) creates a kind of fictional autobiography made in a memoir manner, constantly questioning the truth of its narrative, and thus calling the viewer in a both intriguing and restless engagement. At last, the final guideline of the showcase is marked by the defense of different territories linked to everyday struggle for the right to exist. It is evident in Zawxiperkwer Kaa – Guardians of the forest (Guardiões da floresta), showing the Guajajara vigil on the borders of their land under sustained threat; in It became Brazil (Virou Brasil) presenting the difficult relations of the Awá-Guajá people with the destroying forces of the agribusiness and mining, in a resistance which coexists with the potency of their rituals, chants and knowledge. And in Landless (Chão), which presents through direct cinema the resilience, together with the power of collective and communitarian work, of members of the Landless Workers Movement (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) in Goiás countryside, in a national context of growing criminalization of social movements and their leaders. The criteria described above were not absolute, of course. They are our attempt to respond to the increasingly vertiginous path that has been taken on the way to destroy culture and traditional knowledge in the country, a path of persecution of bodies and ways of life. Moreover, the selection followed the objective and subjective questions brought up in the debates, in which the exchange of points of view and arguments gathered the multiple to the imponderable. Certainly, the guiding lines here presented can be reconfigured in several ways, like in a jigsaw puzzle that is dismantled under every new look, or after a new grouping of images and themes. However, in addition to the films cited here, we believe that those guidelines go beyond this showcase’s context and reverb in Brazilian documentary cinema of the last years, referring to many other titles that did not fit the scope of this festival.
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A Rosa Azul de Novalis • The Blue Flower of Novalis São Paulo, 2019, cor, 70’ • direção director Gustavo Vinagre, Rodrigo Carneiro • fotografia cinematography Bruno Risas • montagem editing Rodrigo Carneiro • som sound Ruben Valdés • produção production Rodrigo Carneiro, Gustavo Vinagre • contato contact rodrigocarneirocine@gmail.com
Marcelo, 40 anos, possui uma memória inigualável. Revive lembranças familiares em sua cabeça e tem recordações de suas vidas passadas. Em uma delas, foi Novalis, poeta alemão que perseguia uma rosa azul. E nessa vida atual, o que Marcelo persegue? 40-year-old Marcelo possesses an unparalleled memory. He relives familiar memories in his head and recollects his past lives. In one of them he was Novalis, German poet, chasing a blue rose. And in this current life, what does Marcelo pursue?
Cine Humberto Mauro, 26 nov, 21h
Bakuëbom Bompisën Tëkikbo - Meninos Soprando Cana Fina Bakuëbom Bompisën Tëkikbo - Kids Blowing Thin Reed Amazonas (Ti Vale Do Javari), 2018, cor, 13’ • direção director Damë Bëtxun Matis, Chawa Wassa Matis, Damë, Kaxë Mentuk, Shapu Sibo, Dani, Damba Matis, Chawa Atsa, Tumi Rieli • fotografia e som cinematography and sound Damë Bëtxun Matis • produção production CTI (Centro De Trabalho Indigenista) • contato contact manuella@trabalhoindigenista.org.br
Resultado de oficina realizada pelo CTI sobre as tecnologias tradicionais de caça nas aldeias Matis Bukuwak, Tawaya e Kudaya, na TI Vale do Javari/AM. O curta registra os meninos da aldeia imitando os adultos caçando com zarabatanas. A result of a workshop held by the CTI about traditional hunting technologies in the Matis villages Bukuwak, Tawaya and Kudaya, in the Indigenous land of Vale do Javarí/AM. Cine Humberto Mauro, 25 nov, 19h • Sessão BDMG Cultural Cine Humberto Mauro, 27 nov, 10h • Sessão BDMG Cultural Jovem*
• SESSÃO BDMG CULTURAL •
* para alunos do programa Jovem Aprendiz do CEDUC Virgílio Resi
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Bixa Travesty • Tranny Fag São Paulo, 2018, cor, 75’ • direção director Claudia Priscilla, Kiko Goifman • fotografia cinematography Karla da Costa • montagem editing Olivia Brenga • som sound Confraria de Sons & Charutos • roteiro script Claudia Priscilla, Linn da Quebrada, Kiko Goifman • produção production Evelyn Mab • contato contact producoesvalvula@gmail.com
Documentário de longa-metragem com a cantora transexual brasileira Linn da Quebrada. Grande expoente na cena musical de São Paulo, dona de uma forte e ousada presença no palco, busca constantemente discutir e quebrar paradigmas e estereótipos. Feature documentary with Brazilian transsexual singer Linn da Quebrada. Major exponent of São Paulo’s musical scene, holder of a strong and bold presence on stage, she constantly seeks to discuss and break paradigms and stereotypes.
Cine Humberto Mauro, 24 nov, 21h
Bup Pernambuco, 2018, cor, 7’ • direção director Dandara de Morais • fotografia cinematography Dandara de Morais • montagem editing Dandara de Morais • som sound Dandara de Morais • produção production Dandara de Morais • contato contact dandarademorais@gmail.com
Um tributo ao silêncio. Olá, ansiedade! Bup é a ausência do silêncio. Uma tragicomédia em ritmo frenético sobre a presença da angústia, incômoda insegurança e constante inquietude. Que pena que saí do útero. A tribute to silence. Hello anxiety! Bup is the absence of silence. A tragicomedy at a frenetic pace about the presence of anguish, uncomfortable insecurity and constant restlessness. Too bad I have left the womb.
Cine Humberto Mauro, 26 nov, 21h
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Casa • Home Pernambuco, 2019, cor, 93’ • direção director Letícia Simões • fotografia cinematography Breno César, Letícia Simões • montagem editing Eduardo Chatagnier • som sound Nicolau Domingues • produção production Carnaval Filmes • contato contact prod.executiva@carnavalfilmes.com.br
Letícia, a filha recém-separada, se culpa por ter se distanciado da mãe em dez anos longe de casa; Heliana, a mãe, está encarando uma séria crise depressiva que começou depois da decisão de colocar a sua mãe, Carmelita, num asilo de idosos. Na construção dos espaços de afeto entre essas mulheres, Casa questiona o que é sanidade, o que é memória, o que é o feminino, o que é a solidão, o que é família, o que é casa. Letícia, the daughter who recently got divorced, blames herself for being distant from her mother after ten years away from home; Heliana, the mother, is facing a serious depressive crisis which started after putting her own mother, Carmelita, in a nursing home. In the process of building affection spaces among these women, Home questions what is sanity, memory, feminine, loneliness, family, and what home is. Cine Humberto Mauro, 01 dez, 16h30
Chão • Landless Distrito Federal, 2019, cor, 110’ • direção director Camila Freitas • fotografia cinematography Camila Freitas, Cris Lyra, Carol Matias • montagem editing Marina Meliande, Fred Benevides • som sound Camila Machado, Olivia Hernandez Fernandez • produção production Leonardo Feliciano, Camila Machado, Francisco Craesmeyer, Douglas Duarte • contato contact camilasfreitas@gmail.com
Junto ao Movimento Sem Terra, Chão vivencia a ocupação das terras de uma usina de cana-de-açúcar em processo de falência. Apesar da estagnação jurídica e da aridez do agronegócio no sul de Goiás, os mais de 600 acampados regam diariamente a utopia de um lugar por vir, em um futuro projetado no horizonte ainda intocável da reforma agrária. Following the Landless Workers’ Movement, one of the longest-running Brazilian social movements, Ground registers the squatting of lands of a sugarcane plant that has filed for bankruptcy. Despite the legal stagnation and the scarcity of agribusiness in the south of Goiás, where more than 600 people daily foster the utopia of a place to come, in a future projected on the still intact horizon of land reform. Cine Humberto Mauro, 23 nov, 19h
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Eleições • Elections São Paulo, 2018, cor, 100’ • direção director Alice Riff • fotografia cinematography Vinicius Berger • montagem editing Yuri Amaral • som sound Marina Bruno • produção production Heverton Lima • contato contact aliceriff@gmail.com
É época de eleições para o grêmio estudantil. Secundaristas se organizam para a corrida eleitoral. Quatro grupos de estudantes criam propostas, debatem estratégias de campanha e lutam por melhorias na escola. Os conflitos e tensões entre as chapas revelam suas diferenças políticas, e a contundência da realidade cotidiana convive com a resistência do sonho, da amizade e do direito de criar caminhos para o mundo em que se acredita. It’s election time for the student’s union. High schoolers organize themselves for the election race. Four groups of students, with different opinions and worldviews, create propositions, debate campaign strategies and strive for improvements in their school. Conflicts and tensions among the groups reveal their political discrepancies, and the forcefulness of everyday reality coexists with the resistance of dreams, friendship and the right to build ways for the world they believe in. Cine Humberto Mauro, 01 dez, 19h
Enquanto estamos aqui • While we are here Minas Gerais, 2019, cor, 77’ • direção director Clarissa Campolina, Luiz Pretti • fotografia cinematography Clarissa Campolina, Luiz Pretti, Rodrigo Fischer • montagem editing Clarissa Campolina, Luiz Pretti • som sound Pedro Durães, Luiz Pretti • produção production Luana Melgaço • contato contact luana@anavilhana.art.br
Lamis e Wilson são imigrantes em Nova Iorque. Ela, uma libanesa que acaba de chegar e ele, um brasileiro que mora ilegalmente na cidade há 10 anos. Uma narrativa híbrida construída com uma abordagem poética; um diário de viagem que se torna uma crônica e nos leva para a essência da micropolítica humana em tempos de globalização: um reino incerto de desejos, esperança e medo. Lamis and Wilson are immigrants in New York. She is a newly arrived Lebanese, and he is a Brazilian who has lived illegally in the city for 10 years. A hybrid narrative built with a poetic approach; a travel journal that becomes a chronicle and takes us to the essence of human micropolitics in times of globalization: an uncertain reign of desires, hope and fear. Cine Humberto Mauro, 30 nov, 21h *Sessão comentada pelos diretores e equipe
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Entre_vistas • Interviews/Between Views Minas Gerais, 2018, cor, 5’ • direção director Coletivo Olhares (Im)Possíveis • fotografia e som cinematography and sound Pedro Henrique Nunes (Batata), Henrique Julio (Dollynho), Luiz Antônio Santana Junior, Bruno Fernando Ferreira, Hudson Monteiro Sales, Junio Gomes, Wendel Valeriano, Rafael Santos Araújo, Hudson Apolinário • montagem editing Henrique Julio (Dollynho), Luiz Antônio Santana, Hudson Monteiro Sales, Arthur Medrado • produção production Arthur Medrado, Olga Ferreira • contato contact arthurmedrado@gmail.com
Realizado por estudantes da Escola Estadual de Ouro Preto, este documentário experimental partiu de entrevistas e dispositivos utilizados durante as oficinas Olhares (Im)Possíveis. Tendo como prática as metodologias do “Inventar com a diferença” e da “The Black School”, o filme mostra as vivências da juventude negra do Bairro Pocinho. Experimental documentary made by students of the Ouro Preto State School. Through the experimentation with methodologies from the “Inventing with difference” and “The Black School” projects, the film derives from devices used during the (Im)Possible Gazes workshops to show the experiences of the black youth of Pocinho neighborhood. Cine Humberto Mauro, 28 nov, 16h30
Kapuakit Nëtë – Dia de Caçada • Kapuakit Nëtë – Hunting Day Amazonas (TI Vale Do Javari), 2018, cor, 18’ • direção, fotografia e som directors, cinematography and sound Damë Bëtxun Matis, Chawa Wassa Matis, Damë Matis, Kaxë Mentuk Matis, Shapu Sibo Matis, Dani Matis, Damba Matis, Chawa Atsa Matis, Tumi Rieli Matis • montagem editing Damë Bëtxun Matis, Damba Matis, Shapu Sibo Matis, Tumi Rieli Matis • produção production Centro de Trabalho Indigenista (CTI) • contato contact manuella@trabalhoindigenista.org.br
Resultado de oficina audiovisual do Centro de Trabalho Indigenista sobre as tecnologias tradicionais de caça nas aldeias Matis da Terra Indígena Vale do Javari/AM. Nos conta um dia de caçada de macaco barrigudo com “Tëdinte” (zarabatana) e “Pësho” (veneno). This film results from an audiovisual workshop conducted by the Indigenous Work Center about traditional hunting technologies in the Matis villages, located in the indigenous territory of Vale do Javari, in Amazonas state. Cine Humberto Mauro, 25 nov, 19h • Sessão BDMG Cultural Cine Humberto Mauro, 27 nov, 10h • Sessão BDMG Cultural Jovem*
• SESSÃO BDMG CULTURAL •
* para alunos do programa Jovem Aprendiz do CEDUC Virgílio Resi
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Ma’e Mimiu Haw – A História Dos Cantos Ma’e Mimiu Haw – The History Of Chants Maranhão, 2019, cor, 27’ • direção director Jamilson Guajajara, Pollyana Guajajara, Jacilda Guajajara, Lemilda Guajajara • fotografia e som cinematography and sound Jamilson Guajajara, Pollyana Guajajara, Jacilda Guajajara, Lemilda Guajajara, Jocy Guajajara, Milson Guajajara • montagem editing Jamilson Guajajara, Pollyana Guajajara, Jacilda Guajajara, Luisa Lanna, Joelton Ivson • produção production Ana Carvalho, Vincent Carelli • contato contact olinda@ videonasaldeias.org.br
O cantor Tachico Guajajara compartilha a história de como o seu povo aprendeu os cantos sagrados que regem seus rituais e festas. Chanter Tachico Guajajara shares the story of how his people learned the sacred chants that conduct their rituals and festivities Cine Humberto Mauro, 29 nov, 19h
Motriz Bahia, 2018, cor, 15’ • direção director Tais Amordivino • fotografia cinematography Tais Amordivino • montagem editing Tais Amordivino • finalização post-production Daiane Rosario, Julia Morais • som sound design Piratas, F&M • trilha sonora soundtrack Matheus Aragão, Felipe Aragão • produção production Tais Amordivino • contato contact contatotaisamordivino@gmail.com
Apesar dos olhos d’água, Bete carrega consigo um sorriso largo que entrelaça a dor, o afeto e a saudade das filhas. Despite her watery eyes, Bete displays a wide smile that intertwines pain, affection and longing for her daughters.
Cine Humberto Mauro, 01 dez, 16h30
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O Último Sonho • The Last Dream Rio de Janeiro, 2019, cor, 60’ • direção director Alberto Alvares • fotografia cinematography Alberto Alvares, Guilherme Cury • montagem editing Alberto Alvares • som sound Jessica Dionisio • produção production Aldeia Sapukai • contato contact albertotuparay@yahoo.com.br
O documentário de longa metragem O Último Sonho homenageia o grande líder espiritual Guarani, Wera Mirim – João da Silva da aldeia Sapukai/Angra dos Reis – RJ, que teve o seu passamento em 2016. Ele sempre ouvia e seguia a orientação de Nhanderu para guiar o seu povo na caminhada no território através da sabedoria e do seu sonho e de suas belas palavras. The feature documentary honors the great Guarani spiritual leader Wera Mirim – João da Silva – from the indigenous village of Sapukai/Angra dos Reis, in Rio de Janeiro state – who passed away in 2016. He always listened and followed the guidance of Nhanderu to lead his people on the territory through wisdom, his dreams and the beauty of his words.
• SESSÃO BDMG CULTURAL •
Cine Humberto Mauro, 25 nov, 19h • Sessão BDMG Cultural *comentada pelo diretor e equipe
Quantos Eram Pra Tá • How Many Should There Be? São Paulo, 2018, cor, 30’ • direção director Vinícius Silva • fotografia cinematography Caio Mazzilli • montagem editing Jacqueline Almeida, Vinícius Silva • som sound Ariel Henrique • produção production Studio l • contato contact viniciusausub@gmail.com
Acompanhamos o cotidiano de três jovens estudantes da Universidade de São Paulo. Eles simbolizam uma primeira geração de estudantes negros que, graças à nova política educacional do governo, podem frequentar as melhores universidades públicas do país - lugares tradicionalmente reservados para uma elite branca. We follow the daily lives of three young students at the University of São Paulo. They symbolise a first generation of black students that, thanks to the government’s new education policy, are able to attend the best public universities in the country – places traditionally reserved for a white elite.
Cine Humberto Mauro, 27 nov, 19h
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Sem Título # 5 : A Rotina Terá seu Enquanto Untitled # 5: A Tune of None at Noon São Paulo, 2019, cor, 10’ • direção e fotografia director and cinematography Carlos Adriano • montagem editing Carlos Adriano • som sound Carlos Adriano • produção production Carlos Adriano • contato contact adriano.carlos.ca@gmail.com
Um kino haikai de found footage. Cinepoema de reapropriação composto de elementos ressignificados do último filme de Yasujiro Ozu (1903-1963) – A Rotina tem seu Encanto (Sanma no Aji; 1962) –, de sua filmagem e de filmagens rodadas em 2018 durante uma viagem de trem entre Ouro Preto e Mariana e durante um sol nascente em Salvador. This found footage film haiku poem – whose title plays with the words “Encanto” (charm) and “Enquanto” (meanwhile) – places the wizard of Ozu’s film testament (An Autumn Afternoon) in Brazilian 2018 footage (a train trip from Ouro Preto to Mariana and a sunrise in Salvador, Bahia).
Cine Humberto Mauro, 30 nov, 21h
Sete Anos em Maio • Seven Years in May Minas Gerais, Brasil/Argentina, 2019, 42’ • direção director Affonso Uchôa • fotografia cinematography Lucas Barbi, Rodrigo Beetz • montagem editing João Dumans • som sound Marcela Santos, Bruno Vasconcelos • produção production Camila Bahia, Vasto Mundo, Un Puma • contato contact camilacbbraga@gmail.com
Em uma noite de Maio, sete anos atrás, Rafael chegava em casa depois do trabalho. Quando abria o portão, alguém chamou seu nome. Ele olhou pro lado e viu pessoas que não conhecia. Rafael saiu da sua casa carregado pelos desconhecidos e nunca mais voltou. Desde então ele vive como se aquela noite nunca tivesse terminado. One night in May, seven years ago, Rafael came home from work. As he opened the gate, someone called his name. He looked to his side and saw people he didn’t know. Rafael left his home carried by the strangers and never returned. Since then, he’s lived as if that night had never ended.
Cine Humberto Mauro, 27 nov, 19h *Sessão comentada pelo diretor e equipe
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Swinguerra Pernambuco, 2019, cor, 22’ • direção director Bárbara Wagner, Benjamin de Burca • fotografia cinematography Pedro Sotero • montagem editing Eduardo Serrano • som sound Nicolau Domingues • produção production Dora Amorim, Thaís Vidal, Julia Machado • contato contact doraa.amorim@gmail.com
Na quadra de uma escola pública, dançarinos têm uma rotina altamente disciplinada e ensaiam sob o olhar atento do seu coreógrafo. Tensões assombram desejos pessoais, enquanto eles são observados por uma trupe rival. In a sports court of a public school, dancers have a highly disciplined routine and rehearse under the watchful eye of the choreographer. Personal desires are haunted by tensions, while they are being watched by a rival crew.
Cine Humberto Mauro, 24 nov, 21h
Tudo que é apertado rasga • Pressed, ripped apart Bahia, 2019, cor, 27’ • direção director Fabio Rodrigues Filho • montagem editing Fabio Rodrigues Filho • som sound Fabio Rodrigues Filho • produção production Fabio Rodrigues Filho • contato contact fabiorodrigz@gmail.com
Na tentativa de forjar uma ferramenta capaz de operar o corte por justiça, este filme retoma e intervém em imagens de arquivo na busca de reestudar parte da cinematografia nacional à luz da presença e agência do ator e da atriz negra. In an attempt to forge a tool capable of operating the cut for justice, this film reclaims and intervenes in archive images willing to restudy part of Brazilian cinematography, shedding light on the presence and agency of black actors and actresses.
Cine Humberto Mauro, 26 nov, 21h *Sessão comentada pelo diretor
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Um Filme de Verão • Sun Inside Rio de Janeiro, 2019, cor, 94’ • direção director Jo Serfaty • fotografia cinematography Pedro Pipano • montagem editing Cristina Amaral, Lucas Andrade (assistente/assistant) • som sound Guilherme Farkas • produção production Fagulha Filmes, Julia Motta • contato contact joserfaty@gmail.com
Durante o verão, Karol, Junior, Ronaldo e Caio estão no último mês das aulas na escola pública do Rio de Janeiro. Quando as férias chegam, a temperatura alcança 40 graus. Imersos nos fios emaranhados que cobrem o céu da favela e os súbitos apagões, estes quatro jovens são afetados pela crise da cidade e se reinventam diante de tanta adversidade. During the summer, Karol, Junior, Ronaldo and Caio are in the last month of classes at a public school in Rio de Janeiro. When vacation starts, temperatures reach 40 °C. Immersed in the tangled threads that cover the slum sky and the sudden blackouts, these four teenagers are affected by the city crisis and reinvent themselves in the face of so much adversity. Cine Humberto Mauro, 28 nov, 16h30
Virou Brasil • It Became Brazil Maranhão/Pernambuco, 2019, cor, 81’ • direção, fotografia e som director, cinematography and sound Pakea, Hajkaramykya, Arakurania, Petua, Arawtyta’ia, Sabiá, Paranya • fotografia adicional additional cinematography Vincent Carelli, Alexandre Verá • montagem editing Fábio Costa Menezes • produção production Vídeo nas Aldeias • contato contact olinda@videonasaldeias.org.br
Uma nova geração de jovens Awá-Guajá nos conduz pelos caminhos que levaram sua terra a “virar Brasil”. Hoje, em meio ao assédio dos karaí no entorno e a proximidade com a ferrovia da Vale – que leva obras, projetos e funcionários para dentro da aldeia – estão os desafios para manter a terra e as tradições, enquanto também assimilam-se os novos costumes. A new generation of young Awá-Guajá takes us through paths that have led their land to “becoming Brazil”. Today, amid the harassments from surrounding karaí [white men] and the proximity to Vale do Rio Doce’s railroad, they face the challenges of keeping the land and traditions, while also absorbing new customs. Cine Humberto Mauro, 24 nov, 17h
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Zawxiperkwer Kaa – Guardiões Da Floresta Zawxiperkwer Kaa – Guardians Of The Forest Maranhão, 2019, cor, 52’ • direção director Jocy Guajajara, Milson Guajajara • fotografia cinematography Jocy Guajajara, Milson Guajajara • montagem editing Jocy Guajajara, Milson Guajajara, Luisa Lanna, Joelton Ivson • som sound Jocy Guajajara, Milson Guajajara • produção production Ana Carvalho, Vincent Carelli • contato contact olinda@ videonasaldeias.org.br
Jocy e Milson Guajajara são membros do grupo “Guardiões da Floresta” na Terra Indígena Caru (MA), onde vivem. Como cineastas, documentam as atividades do grupo nas missões de vigilância e proteção do território indígena. Jocy and Milson Guajajara are members of the “Guardians of the Forest” group in the indigenous territory of Caru, in Maranhão state, their homeland. As filmmakers, they document the group’s activities on the surveillance of indigenous territory and protection missions. Cine Humberto Mauro, 29 nov, 19h
sessĂľes especiais special screenings
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Antônio e Piti Brasil, 2019, cor, 78’ • direção director Vincent Carelli, Wewito Piyãko • fotografia cinematography Vincent Carelli, Wewito Piyãko, Tiago Campos, Ernesto de Carvalho, Tsirotsi Ashaninka • montagem editing Amandine Goisbault, Fábio de Menezes, Sérgio Borges, Tatiana Almeida • som sound Camila Machado, Rodrigo Lacerda, Tiago Campos, Vincent Carelli • produção production Olivia Sabino, Alexsandra Araújo, Ana Karenina • contato contact olinda@videonasaldeias.org.br
Uma história amazônica de um amor rebelde que rompe fronteiras morais e culturais da época, narrado por Dona Piti, filha de Chico Coló, um “soldado da borracha”, e por Antônio, um Ashaninka oriundo do Peru. An Amazonian story of a rebel love that breaks the moral and cultural boundaries of the time, told by Dona Piti, daughter of Chico Coló, a “rubber soldier”, and by Antonio, an Ashaninka from Peru
Cine Humberto Mauro, 23 nov, 21h *Sessão comentada pelos diretores e mediada por Juca Ferreira
Rua Guaicurus • Guaicurus Street Brasil, 2019, cor, 75’ • direção director João Borges • fotografia cinematography Lucas Barbi • montagem editing Fabian Remy • som sound Victor Brandão • produção production Yara Produções • contato contact embaubafilmes@gmail.com
A rua Guaicurus é uma das maiores zonas de prostituição do Brasil, localizada no centro da cidade de Belo Horizonte, desde os anos 50. Atualmente funcionam mais de 25 hotéis na região, com aproximadamente três mil trabalhadoras do sexo. O filme vai revelar este enorme complexo de prostituição por meio de situações que eclodem das relações entre suas personagens. Guaicurus Street is one of the largest prostitution zones in Brazil, located in the center of the city of Belo Horizonte, since the 1950s. There are currently more than 25 hotels in the region, with approximately three thousand sex workers. The film intends to reveal this enormous prostitution complex through situations that arise from the relationships between its characters.
Cine Humberto Mauro, 24 nov, 15h *Sessão comentada pelo diretor e equipe
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Filme dos Outros • Other’s Movie Brasil, 2018, cor, 20’ • direção director Lincoln Péricles • fotografia cinematography Lincoln Péricles • montagem editing Lincoln Péricles • som sound Lincoln Péricles • produção production Lincoln Péricles • contato contact astuciafilmes@ gmail.com
Primeiro cinema: Eles se gravam, nóis assiste. Filme realizado a partir de imagens retiradas de cartões de memória que estavam em equipamentos de filmagem roubados. First cinema: they record, we watch. A film made from images taken from memory cards which were in stolen filming equipment. A sessão especial Jean-Claude Bernardet convida irá discutir a obra de Lincoln Péricles, cineasta morador do Capão Redondo (periferia de São Paulo) e as representações da classe trabalhadora no cinema brasileiro. Cine Humberto Mauro, 26 nov, 19h *Sessão comentada por Jean-Claude Bernardet e pelo diretor
Aluguel: O Filme • Rent: The Movie Brasil, 2016, cor, 16’ • direção director Lincoln Péricles • fotografia cinematography Lincoln Péricles • montagem editing Lincoln Péricles • roteiro script Bruno Marra, Felipe Terra, Lincoln Péricles • som sound Bruno Marra • produção production Lincoln Péricles • contato contact astuciafilmes@gmail.com
A reunificação pacífica não acontecerá. The pacific reunification will not happen.
Sessão especial Jean-Claude Bernardet convida Cine Humberto Mauro, 26 nov, 19h *Sessão comentada por Jean-Claude Bernardet e pelo diretor
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Ruim é Ter que Trabalhar • Work Sucks Brasil, 2015, 9’ • direção director Lincoln Péricles • fotografia cinematography Lincoln Péricles • montagem editing Lincoln Péricles • roteiro script Adriano Araujo, Lincoln Péricles • som sound Lincoln Péricles • produção production Lincoln Péricles • contato contact astuciafilmes@gmail.com
Alguns dias antes da Copa do Mundo no Brasil, um operário reflete sobre seu trabalho. A few days before the World Cup in Brazil, a laborer gives thought to his job.
Sessão especial Jean-Claude Bernardet convida Cine Humberto Mauro, 26 nov, 19h *Sessão comentada por Jean-Claude Bernardet e pelo diretor
Tarumã Brasil, 1975, cor, 14’ • direção director Aloysio Raulino, Guilherme Lisboa, Mário Kuperman, Romeu Quinto • contato contact gustavo@movafilmes.com.br
O filme consiste num dramático depoimento rural da região oeste do Estado de São Paulo (Tarumã, nas proximidades de Assis) sobre as condições de vida de sua família e de sua classe social. Coletado para fazer parte do filme Êxodo rural, o depoimento dessa bóia-fria atingiu uma densidade que levou à sua utilização mediante a colagem de duas longas tomadas ininterruptas. The film is a dramatic rural testimonial on the living conditions of a family and their social class in the west region of São Paulo state (Tarumã, near Assis). Sessão especial Jean-Claude Bernardet convida, realizada em parceira com o projeto História Permanente do Cinema/Cine Humberto Mauro. Cine Humberto Mauro, 26 nov, 19h *Sessão comentada por Jean-Claude Bernardet e por Lincoln Péricles
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Jakaira Brasil, 2019, cor, 16’ • direção director Coletiva da ASCURI • orientação de roteiro script advisor Eliel Benites • fotografia cinematography Kiki Concianza, Gilmar Kiripuku Galache, Renan Braga • montagem editing Kiki Concianza, Gilmar Kiripuku Galache produção production ASCURI • contato contact ascuri.ms@gmail.com
Situado na aldeia Guyra Kambi’y do povo Kaiowá (MS/Brasil), o filme nos guia pelo ritual de batismo do milho branco, o Jerosy Puku. Os cantos e as danças que compõem a cerimônia conduzem a vinda de Jakaira: o dono do milho branco, entidade associada à fertilidade das roças. Documental, com elementos ficcionais, o filme aponta para a importância da manutenção dos costumes para a preservação do “jeito de ser” Kaiowá (ñandereko). Located in the Guyra Kambi’y village of the Kaiowá indigeous people (MS/Brazil), the film guides us through the white corn baptism ritual, the Jerosy Puku. Documentary, with fictional elements, the film points to the importance of maintaining customs for the preservation of the Kaiowá “way of being” (ñandereko). Cine Humberto Mauro, 27 nov, 17h *Sessão comentada por Gilmar Kiripuku Galache e Kiki Concianza
Sedução da Carne • Seduction of the Flesh Brasil, 2018, cor, 78’ • direção director Julio Bressane • fotografia cinematography Pepê Schettino, Pablo Baião, Pablo Hoffmann • montagem editing Rodrigo Lima • som sound Damião Lopes • produção production TB Produções • contato contact tbproducoes@gmail.com
Uma escritora tenaz e delicada, viúva há 3 anos, se envolve em conversas frequentes com um papagaio. Entretanto, ela é observada por uma grande porção de carne crua. A tenacious and delicate writer, a widow for 3 years, engages herself in conversations with a parrot. However, she is observed by a big portion of raw meat.
Sessão realizada em parceira com o projeto História Permanente do Cinema/Cine Humberto Mauro. Cine Humberto Mauro, 27 nov, 21h
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A Febre • The Fever Brasil/França/Alemanha, 2019, cor, 98’ • direção director Maya Da-Rin • fotografia cinematography Barbara Alvarez • montagem editing Karen Akerman • som sound Felippe Schultz Mussel, Breno Furtado, Romain Ozanne • produção production Maya Da-Rin, Leonardo Mecchi, Juliette Lepoutre • contato contact contato@tamanduavermelho.com / contato@enquadramen.to
Justino, um indígena de 45 anos do povo Desana, é vigilante do porto de cargas de Manaus. Enquanto sua filha se prepara para estudar medicina na capital, Justino é tomado por uma febre misteriosa. Justino, a 45-year-old member of the indigenous Desana people, is a security guard at the Manaus harbor. As his daughter prepares to study medicine in Brasilia, Justino comes down with a mysterious fever.
Cine Humberto Mauro, 29 nov, 21h *Sessão comentada pela diretora e pela atriz Rosa Peixoto
Uma Semente de Ara Pyau • Una Semilla de Ara Pyau • A Seed of Ara Pyau Argentina/Brasil, 2017, cor, 23’ • direção director Coletivo de Cine Mbyá Ara Pyau (Dalma Chamorro, Hugo Ramos, Ralf Ortega, Aldana Verenice, Karla Benitez, Rosi Benitez, Reyi Remirez, Luiyi Duarte, Luz Duarte, Miriam Benitez, Bernardo Benitez, Ernesto de Carvalho, Bruno Huyer, Matías Barrientos, Thyni Ramirez, Patricia Ferreira, Chiki Villalba, Ariel Ortega, Saul Duarte, Valentin Yoel Benitez, Marcial Paredes, Orlando Benitez, Jonatan Duarte, Leo Duarte, Sandro Duarte, Diego Sanchez, Ariel Sanchez) • montagem editing Ernesto de Carvalho, Coletivo de Cine Mbyá Ara Pyau • produção production Vídeo nas Aldeias, Instituto de Artes Audiovisuales de Misiones (IAAviM), UNAM Transmedia • contato contact olinda@videonasaldeias.org.br
Jovens, crianças e velhos sentem a passagem do tempo e das estações na comunidade de Tamanduá, Misiones. Young people, children and old people feel the passage of time and seasons in the community of Tamanduá, Misiones.
Cine Humberto Mauro, 01 dez, 15h
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Entre Casas • Between Homes Brasil, 2019, cor, 14’ • direção e fotografia director and cinematography Isabella Rodsil, Vinijoe, Matheus Gomes, Cysi dos Anjos, Nym Smit, João Marcos, Camille Reis, Débora Vasconcelos • som sound Yara Torrês • produção production Filmes de Quintal, Arthur Medrado, Layla Braz • contato contact filmesdequintal@gmail.com
No filme somos conduzidos pelas cartografias (individuais e coletivas) de 8 jovens moradores do Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte. Partindo da casa de cada um/a deles/as somos levados pelos caminhos cotidianos e os encontros pelo bairro até chegar ao centro cultural Lá Da Favelinha, sua segunda casa. Entre Casas é resultado da oficina de realização em documentário da mostra de extensão do forumdoc.bh 2019. In the film we are conducted by the cartographies (individual and collective) of 8 young residents of Aglomerado da Serra slam, in Belo Horizonte. Starting from each one’s houses, we are taken by the daily paths and their encounters through the neighborhood until we reach the cultural center Lá Da Favelinha, their second home. Between homes is the result of a documentary workshop organized by the forumdoc.bh 2019 extension project. Cine Humberto Mauro, 01 dez, 15h *Sessão comentada pela equipe
Banquete Coutinho Brasil, 2019, cor e p&b, 74’ • direção diretor Josafá Veloso • fotografia cinematography Ticão Okada • montagem editing Eugenio Puppo, Gustavo Vasconcelos • som sound Fabio Gonçalves, Rica Saito • produção production Eugenio Puppo • contato contact heco@heco.com.br
Banquete Coutinho propõe olhar para a obra de Eduardo Coutinho como um grande todo. Teria um dos mestres do cinema brasileiro feito sempre o mesmo filme? A partir de um encontro filmado com o diretor em 2012 e vasto material de arquivo, o filme mantém acesas as inquietações do cineasta, falecido dois anos após a entrevista. Obra e pensamento de Coutinho resistem ao tempo, que a tudo apagará. Banquet Coutinho proposes to look at the work of Eduardo Coutinho as a great all of it. Would one of the masters of Brazilian cinema have always made the same film? Using a meeting filmed with the director in 2012 and a vast archive material, the film keeps the filmmaker’s concerns burning two years after the interview. The work and the thoughts of Coutinho resist time, which will erase everything. Cine Humberto Mauro, 23 nov, 15h
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Fakir Brasil, 2019, cor, 92’ • direção director Helena Ignez • fotografia cinematography Toni Nogueira • montagem editing Sergio Gag • som sound Sergio Gag • produção production Mercúrio Produções • contato contact smercurioproducoes@ gmail.com
Retrata o sucesso do faquirismo no Brasil, América Latina e França. Esse espetáculo de arte popular originário do circo é apresentado e analisado através de um acervo que revela o êxito dessas apresentações com seus campeonatos de resistência a dor e a grande presença do público. Fakir se estende em filmagens atuais de artistas contemporâneos que mantêm viva essa arte em performances e shows. Fakir portrays the success of fakirism in Brazil, Latin America and France. This show of popular art from the circus is presented and analyzed through a collection that reveals the success of these presentations with their championships of resistance to pain and the great presence of the public. Fakir extends into current footage of contemporary artists who keep this art alive in performances and shows. Cine Humberto Mauro, 30 nov, 15h
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Seminário
Mortos e a Câmera CINE HUMBERTO MAURO
25 de novembro, 17h (segunda-feira) ABERTURA Apresentação: Paulo Maia Conferência: Leda Maria Martins
26 de novembro, 15h (terça-feira) MESA 1: TRABALHO DE VIGÍLIA | WAKE WORK Com: Denilson Baniwa, Castiel Vitorino Brasileiro, Davi de Jesus do Nascimento e Célia Xakriabá Mediação: Roberto Romero
27 de novembro, 15h (quarta-feira) MESA 2: CINEMA NA VIGÍLIA | CINEMA IN THE WAKE Com: Tatiana Carvalho Costa, André Brasil, Fabio Rodrigues Filho e Ademilson Concianza Mediação: Carla Italiano
SESSÕES COMENTADAS
23 de novembro, 15h (sábado) MÃTÃNÃG, A ENCANTADA (Shawara Maxakali, Charles Bicalho, 2019, 15’) TATAKOX VILA NOVA (Comunidade Maxakali Aldeia Vila Nova do Pradinho, 2009, 21’) Comentada por Sueli Maxakali, Isael Maxakali e Charles Bicalho
25 de novembro, 21h (segunda-feira) RESSURREIÇÃO (Arthur Omar, 1987, 6’) SONHOS E HISTÓRIAS DE FANTASMAS (Arthur Omar, 1996, 45’) Comentada por Arthur Omar
27 de novembro, 17h (terça-feira) YVY REÑOI, SEMENTE DA TERRA (direção coletiva ASCURI, 2019, 15’) CHICO MENDES: EU QUERO VIVER (Adrian Cowell, 1989, 56’) Comentada por Ademilson Concianza e Ruben Caixeta de Queiroz
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30 de novembro, 18h30 (sábado) WUTHARR: SALTWATER DREAMS (Sonhos de Água Salgada, Karrabing Film Collective, 2016, 29’) GOOD-BYE OLD MAN (Adeus meu velho, David MacDougall, 1977, 66’) Comentada por Renato Sztutman
1o de dezembro, 21h (domingo) SIGUI SYNTHÈSE (1967 - 1973) - L’ INVENTION DE LA PAROLE ET DE LA MORT (A invenção da palavra e da morte, Jean Rouch, Germaine Dieterlen, 1981, 120’) Apresentada por Júnia Torres
ENDEREÇO Cine Humberto Mauro – Palácio das Artes Av. Afonso Pena, 1537 | Centro | Belo Horizonte – MG Entrada franca
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Mini-currículos Ademilson Concianza é indígena do povo Guarani Kaiowá e membro da Associação Cultural de Realizadores Indígenas (ASCURI). Estudou Montagem na Escola de Cinema Darcy Ribeiro, no Rio de Janeiro. André Brasil é professor do Departamento de Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais, integra o corpo docente permanente do Programa de Pós-Graduação. Pesquisador do CNPq, participa do Grupo Poéticas da Experiência (CNPq/UFMG) e da equipe de editores da Revista Devires - Cinema e Humanidades. Atualmente, integra o Comitê Pedagógico de Formação Transversal em Saberes Tradicionais na UFMG. Desenvolve pesquisas no domínio do cinema e do cinema documentário, com atenção à produção de filmes por diretores e coletivos indígenas. Castiel Vitorino Brasileiro é artista, graduanda em Psicologia na Universidade Federal do Espírito Santo. Pesquisa e inventa relações em que corpos não-humanos se desprendem das amarras da colonialidade. Compreende a macumbaria como um jeito de corpo necessário para que a fuga aconteça. Dribla, incorpora e mergulha na diáspora Bantu e assume a vida como um lugar perecível de liberdade. Célia Xakriabá é ativista indígena do povo Xakriabá, de Minas Gerais. Graduou-se pela primeira turma de Educação Indígena da Universidade Federal de Minas Gerais e mais tarde obteve um mestrado em Educação na Universidade de Brasília. Primeira mestre de seu povo, atualmente cursa o doutorado em Antropologia na UFMG. Davi de Jesus do Nascimento é artista plástico, performer e poeta barranqueiro. Gerado às margens do rio São Francisco, curso d’água de sua pesquisa, Davi trabalha coletando afetos da ancestralidade ribeirinha e percebendo “quase-rios” no árido. Na fotografia, utiliza o corpo como instrumento de medida do mundo. Corpo-médium, confrontado e confundido com a natureza. Uma natureza aquática, barrenta e silenciosa, que pode ser lida como isca, peixe e pedra. Denilson Baniwa nasceu na aldeia Darí, no Rio Negro, Amazonas. Sua trajetória como artista inicia-se a partir das referências culturais de seu povo já na infância. Na juventude, o artista inicia a sua trajetória na luta pelos direitos dos povos indígenas e transita pelo universo não- indígena aprendendo referenciais que fortaleceriam o palco dessa resistência. O artista em sua trajetória contemporânea consolida-se como referência, rompendo paradigmas e abrindo caminhos ao protagonismo dos indígenas no território nacional. Fabio Rodrigues Filho é mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Minas Gerais e graduado no mesmo curso na Universidade Federal do Recôncavo Bahiano. Realizador do filme-ensaio Tudo que é apertado rasga (2019). Cineclubista, coordenou o Cineclube Mário Gusmão, participou do Cine Tela Preta e do Cinema em Vizinhança. Escreve para revistas, catálogos, e para o blog pessoal Tocar o Cinema. Integra o Fórum Itinerante de Curadoria (FIC), membro do Áfricas nas Artes e do Poéticas da Experiência.
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Compôs comissões de seleção de festivais, mostras e laboratórios de filmes (como CachoeiraDoc, Festival Mimoso, DiásporaLab, etc.). Leda Maria Martins é rainha da Irmandade de Nossa Senhora do Jatobá, poeta e ensaísta. Pós-Doutorado em Performance Studies, New York University, Tisch School of the Arts; Pós-Doutorado em Rito, Dramaturgia e Teatralidade, Universidade Federal Fluminense. É professora associada da Universidade Federal de Minas Gerais. Em 2017 foi homenageada com a criação do Prêmio Leda Maria Martins de Artes Cênicas Negras. Tatiana Carvalho Costa é doutoranda e mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais. Fez direção e roteiro para a série Gênero e Diversidade na Escola e a direção de curtas metragens não ficcionais: TransHomemTrans, Muito Prazer: Travestis e Transexuais de Juiz de Fora, Memorial Travestis e Transexuais de BH. Dirigiu os curtas O Ciclone Lento e Sutil (2001), Oficina de Agosto, Pensamentos do Toti e Zezim. Seu curta-metragem Las cartas de la plaza de Santo Domingo foi o projeto vencedor da seleção DOCSDF (México) em parceria com SAV/MinC (Brasil) em setembro de 2009 e recebeu Menção Especial do Júri na 4ª Edição deste festival. Atualmente, coordena os projetos de extensão universitária “Viver Ciências” e “Pretança” no Centro Universitário UNA. É integrante do movimento Segunda Preta.
MEDIAÇÕES Paulo Maia possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (1999), doutorado em Antropologia Social pelo PPGAS - Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (2009) e estágio pós-doutoral (2018) no Performance Department e Hemispheric Institute of Performance and Politics da New York University. Atualmente é professor associado e coordenador do Curso de Formação Intercultural para Educadores Indígenas (FIEI) na Faculdade de Educação (FaE-UFMG). Tem experiência na área de antropologia, com ênfase em Etnologia Sul Americana e Educação Indígena, tendo realizado pesquisa de campo com os Baré (alto rio Negro). Também é um dos idealizadores do forumdoc.bh - Festival do Filme Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte. Roberto Romero é etnólogo, doutorando em Antropologia Social pelo Museu Nacional (UFRJ) e membro do Núcleo de Antropologia Simétrica (NanSi). Desenvolve pesquisa entre os Tikmũ’ũn (Maxakali) sobre os temas dos sonhos, das armadilhas, da doença e da cura. Desde 2009 é um dos organizadores do forumdoc.bh - Festival do Filme Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte. Carla Italiano trabalha com pesquisa e curadoria em cinema. É doutoranda em Comunicação Social pelo PPGCOM-UFMG, com mestrado pela mesma instituição e graduação em Cinema pela UFSC. Desde 2011 integra a Associação Filmes de Quintal e a equipe do forumdoc.bh. Foi co-curadora da Retrospectiva Helena Solberg (CCBB RJ/SP/DF, 2018) e outras, compondo a seleção do festival Olhar de Cinema de Curitiba (2017-2019). É natural do Recife e residente em Belo Horizonte.
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SESSÕES COMENTADAS MOSTRA “MORTOS E A CÂMERA” Arthur Omar é cineasta, fotógrafo, compositor e construiu, desde os anos 1970, uma trajetória que dissolve fronteiras entre diferentes territórios artísticos. Política e poética, sua obra transita entre imagem estática e em movimento, música eletrônica, instalação e web arte, e tem na violência social um tema-chave. Objeto de uma grande retrospectiva no MoMA de Nova York em 1999, expôs na Bienal de São Paulo de 2002 a série de fotografias Viagem ao Afeganistão, realizadas na zona de catástrofe próxima a Cabul. Júnia Torres documentarista e antropóloga, doutoranda em Antropologia Social pelo PPGAN/ Universidade Federal de Minas Gerais, integra a Associação Filmes de Quintal e organiza o forumdoc.bh desde sua primeira edição. Renato Sztutman é professor do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo. É mestre (2000) e doutor (2005) em Antropologia Social pela USP, área de etnologia indígena. Realizou pós-doutorado, em 2015, no Departamento de Filosofia da Universidade de Paris Ouest Nanterre. É pesquisador do Centro de Estudos Ameríndios (CEstA-USP) e do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia (LISA-USP). Foi editor responsável, entre 2013 e 2017, da Revista de Antropologia (Depto. de Antropologia da USP). Foi um dos fundadores e co-editou, entre 1997 e 2007, a revista Sexta-Feira. Ruben Caixeta de Queiroz possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (1987), mestrado em Antropologia Social pela UNICAMP (1991) e doutorado em Letras e Ciências Humanas pela Universidade Paris-Ouest Nanterre la Défense (1998). Atualmente é professor Associado da Universidade Federal de Minas Gerais, onde coordena o Laboratório de Etnologia e do Filme Etnográfico. Foi membro das comissões que criaram o Programa de Acesso e Permanência do Estudante Indígena na UFMG e os cursos de graduação e pós-graduação em Antropologia da UFMG. Isael Maxakali é coordenador da Escola Estadual Isabel Silva, na Aldeia Verde (Reserva Maxakali), em Ladainha/MG. Com uma vasta filmografia, o cineasta indígena dirigiu os filmes “Tatakox” (2007); “Xokxop pet” (2009); “Yiax Kaax – Fim do Resguardo” (2010); “Xupapoynãg” (2011); “Kotkuphi” (2011); “Yãmîy” (2011); “Mîmãnãm” (2011); “Quando os yãmîy vêm dançar conosco” (2012); “Kakxop pit hãmkoxuk xop te yũmũgãhã” (“Iniciação dos filhos dos espíritos da terra”, 2015), “Konãgxeka: o Dilúvio Maxakali” (2016) e “Yãmiyhex: as mulheres-espírito” (2019). Atualmente, é vereador na cidade de Ladainha (MG) e participa, como professor, do Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG. Sueli Maxakali nasceu às margens do córrego Água Boa, onde cresceu cantando e dançando com os yãmiyxop. Em 2007, criou com alguns parentes a Aldeia Verde, onde vive e trabalha. Com o projeto Imagem-corpo-verdade, iniciou seu trabalho como fotógrafa, reunido no livro Koxuk Xop: Imagem. Co-dirigiu com Isael Maxakali os filmes Quando os yãmiy vêm dançar conosco (2011, co-direção Renata Otto Diniz), Xupapõynãg (2013), Kotkuphi (2013) e Yãmĩy (2014) e Yãmĩyhex: as mulheres-espírito. É também co-autora do livro Hitupmã’ãx: curar (Literaterras, 2012) e pesquisadora do OEEI - FaE/UFMG. Foi
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professora convidada do programa de formação transversal em saberes tradicionais da UFMG. Charles Bicalho é graduado em Letras, língua portuguesa (1997) e língua alemã (2000), pela UFMG. Master of Arts pela Universidade do Novo México (2004), EUA. Doutorado em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG com a tese intitulada “Koxuk, a imagem do yãmĩy na poética maxakali” (2010). Organizador geral e curador da Mostra Pajé de Filmes Indígenas em Belo Horizonte. Produtor, roteirista, editor e diretor cinematográfico. Diretor dos filmes de curta-metragem Caligrafilmes (2008); Making of Dicionário (2012); Pirapora (2012); Konãgxeka: o Dilúvio Maxakali (2016) e Mãtãnãg, a Encantada (2019).
ensaios e entrevistas essays and interviews
ensaios • sessão de abertura
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Fragmentos de um cinema-jiboia tikmũ’ũn1 Sueli Maxakali Rosângela de Tugny Isael Maxakali André Brasil
No limiar do fim do mundo, quando os antepassados quase acabaram, quando um mundo está prestes a acabar e outro a surgir, transitando entre os dois, algo surge. Um quase, uma imagem (corpo e verdade). Com fome, descontentes com a voracidade dos homens (que saem para a caçada e não dividem a carne com elas), as mulheres se retiram. Viram as costas (aos homens, ao cinema), miram o rio com os olhos vendados: ali, encontram uma jiboia, que cortam, 1. Para marcar as várias vozes que compõem esta conversa entre os realizadores indígenas Sueli Maxakali e Isael Maxakali e os professores Rosângela de Tugny (UFSB) e André Brasil (UFMG) em torno do filme Yãmĩyhex (2019), optou-se, nestes fragmentos, pela variação do tamanho da fonte e do itálico. Agradecemos ao professor Eduardo Rosse e à equipe editorial do catálogo do forumdoc.bh a leitura generosa e os comentários ao artigo.
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ensaios • sessão de abertura
repartem e comem. Escamas da cobra restam em seus dentes. Os homens descobrem e perseguem as mulheres que mergulham no rio, desaparecendo com seus cantos no mundo subaquático. Sozinha, uma menininha chora à beira do rio, até ser levada à aldeia por kotkuphi (povo-espírito da mandioca).
A partir dessa menina que kotkuphi levou, nós, Tikmũ’ũn, continuamos. ••••
Yãmĩyhex são as irmãs ancestrais das mulheres da aldeia que se tornaram mulheresjiboia. Toda mulher na aldeia tem yãmĩyhex. As meninas possuem yãmĩyhex a quem devem alimentar e oferecer vestidos. As mulheres da aldeia, mães dos yãmĩyxop (os povos-espíritos), cuidam da memória de todas as yãmĩyhex que receberam em vida e das que foram passadas às suas filhas. Não querem esquecê-las. Os homens, “pais dos yãmĩyxop”, agem intermediando estas relações: preparando os objetos necessários para os atos pontuais que serão necessários naqueles encontros, recompondo as palhas do kuxex (a casa dos cantos, ou casa dos yãmĩyxop, que se situa numa das extremidades do círculo da aldeia), trazendo e levando discretos recados para as mulheres, transportando alimentos das casas até os visitantes do kuxex, saindo com os yãmĩyxop no pátio da aldeia, ora dançando, ora secundando seus passos e cantos, ora intermediando os gestos que os yãmĩyxop trocam com as suas mulheres. Tudo se passa entre as mulheres e os yãmĩyxop. Elas se embelezam, preparam os alimentos, costuram os novos vestidos e aguardam com um ativo silêncio os momentos de efusão, com cantos, brincadeiras, lutas e danças, ou realizam discretos gestos de preparo e trocas de alimentos, fumo, bolsas, fazendo-se presentes nos intensos momentos de despedida. Tendo aprendido a arte da pesca com as lontras, as mulheres ancestrais se transformaram, elas também, em seres das águas. Além da pesca, yãmĩyhex trazem em suas visitas às aldeias os cuidados com a casa, a cura das doenças e, sobretudo, buscam calibrar as trocas, os desejos e os vínculos que porventura se encontram em desequilíbrio. Uma fina e complexa rede de parentesco se tece por fragmentos quando estes seres ali se tornam presentes. Somos tentados a traduzir yãmĩy-hex como “espírito-mulher”, ou, quem-sabe, “espírito do feminino”. A respeito de um forte e significativo evento entre as pessoas Kuikuro, Bruna Franchetto nos oferece a tradução “hipermulheres”, nome que também rendeu um belíssimo filme de Takumã Kuikuro2, e que para nós aqui se torna muito sugestivo. A tradução para yãmĩy ou yãmĩyxop (o sufixo xop indicando um coletivizador), que muito
2. As hipermulheres (Takumã Kuikuro, Carlos Fausto e Leonardo Sette, 2011, 80’, cor).
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comodamente vimos glosando como “espírito” ou “povo-espírito”, poderia ser pensada como aquilo que torna capacidades e afetos mais intensos. Roberto Romero (2015, p. 84) relata uma breve e inspiradora conversa sobre a etimologia desta palavra que certamente encerra uma trama conceitual muito mais complexa do que podemos por enquanto alcançar: Quando notei que a palavra continha entre suas raízes o verbo mĩy (fazer), além de yã, um enfatizador, perguntei o óbvio a Isael Maxakali, que nutre um gosto todo especial por etimologia: — Yãmĩy e mĩy se parecem, não? — Sim! Yãmĩy é assim – exemplificou-me – quando uma coisa está formando, formando, mas ainda não acabou... — Como transformando? — Isso! Muito inteligentes, né, os Mõnãyxop...
Assim, se yãmĩy ou yãmĩyxop se aproximam da ação e da potência de fazer, da pura energia transformadora, yãmĩyhex seria a força feminina que se instaura entre todos que ali se encontram, criando sobretudo um “lugar de ressonância para os harmônicos ainda não escutados”, pois ela permite que toda a aldeia possa tratar do indizível, das experiências com o sonho, da necessidade da cura e sobretudo a elaboração daquilo que é monstruoso. Yãmĩyhex deixa de ser uma categoria de seres ou “espíritos” para se tornar uma perspectiva, a do feminino, um evento no qual uma “história impensada tenta se inscrever” (DAVOINE, 2008, p. 64-65). Ouvimos diálogos entre as mulheres que interpelam os homens, mas também os lastros de uma impensável história de perseguição, violência e estupro das mulheres indígenas, pela voz dos imhu, uma legião de espíritos-que-roubam-mulheres, que vociferam atrás das paredes do kuxex. É neste “lugar de ressonância” que também um engenhoso sistema de amizades cerimoniais herdadas e renovadas entre as gerações deve ser observado. Cada canto, cada movimento de troca de alimentos, cada aproximação das mulheres com os yãmĩyxop supõe um criterioso cálculo genealógico e comunitário discutido discretamente entre as casas e o kuxex. Não pode haver equívocos. Cabe às mulheres da aldeia saberem agir diante de uma grande variação de procedimentos adotados nas trocas com os yãmĩyxop. Claudia Magnani tratou belamente do xamanismo feminino e discreto entre as mulheres tikmũ’ũn: ela descreveu como pode se dar esta variação de procedimentos que aprendem desde cedo, chamando atenção para a centralidade das trocas mediadas pelas mulheres na relação entre Tikmũ’ũn e yãmĩyxop. No caso da oferta alimentar, momento importantíssimo em cada ritual, suas modalidades variam: cozinham coletiva ou individualmente; levam comida ao grupo de yãmĩyxop ou a este e àquele singularmente. Em suma, as mulheres têm que saber quando, como e para quem levar comida; se manda-lo para o kuxex ou se esperar em casa que os yãmĩyxop a busquem; se leva-la para os yãmĩyxop que estão no pátio ou para um yãmĩy em particular, às vezes ligado por laços de adoção/ parentesco à própria pessoa ou família. (...) (MAGNANI, 2018, p. 173)
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No filme Yãmĩyhex (Sueli Maxakali e Isael Maxakali, 2019), o tempo se constrói por uma sequência de acontecimentos calmamente preparados, e rapidamente desfeitos: um homem levando um tição puxa uma fileira de outros homens e meninos que sai em linha reta do kuxex em direção à casa situada em seu eixo; uma longa fileira de yãmĩyhex sai do kuxex, dançando com seus vestidos brilhantes e coloridos, os braços entrelaçados, sobre o fundo dos cantos de uma fonte sonora que permanece oculta, movimentos regulados pelo olhar dos pais dos yãmĩyxop; as mulheres replicam a dança dos passos saltitantes dos yãmĩyhex; um yãmĩy envolto em sua pele-cobertor sai com uma grande vara que serve como cabide e aguarda que, uma a uma, mulheres e crianças tragam os vestidos cuidadosamente amarrados com um laço e os pendurem, formando um singular aparato de peles coloridas; uma fileira de yãmĩy sai do kuxex acompanhada de seus cantos e as mulheres, com seus cobertores coloridos, produzem uma cerca que protege a mirada das grávidas e crianças não iniciadas, criando o espaço de uma declamação cantada, cuidadosamente deslocada para suas extremidades; outras fileiras de danças vigorosas em que as mulheres de mãos dadas com suas yãmĩyhex estão de frente e em oposição aos yãmĩy-ãyuhuk, os espíritos dos não-indígenas e os xunĩm; multidões de andorinhas despontam e se multiplicam no pátio com seus anteparos para evitar o toque molhado da cachoeira que as mulheres lhes atiram; ou ainda o bando de lontras que trazem um arsenal de objetos produzidos pelos não-indígenas para expor às mulheres os motivos de um embate corporal que acontece sem tréguas. Em todos estes acontecimentos, que se sucedem, a câmera desenha um movimento quase sistemático: ora estes convidados, yãmĩyhex, yãmĩyxop, yãmĩy, xunĩm, acompanhados de seus pais, saem do kuxex ou da mata, vêm até as casas onde estão as suas “mães” e retornam ao kuxex, ora o cortejo sai do kuxex, vem até o centro do pátio ao encontro das mães, retornando em seguida. A câmera é então o olhar feminino que está atento a estes filhos visitantes, estes filhos-imagens-cantos que chegam, se
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alimentam, dançam, brigam e se despedem retornando a um lugar onde esta mirada não deve alcançar. As mulheres e os homens tikmũ’ũn se referem a eles como filhos, sentem saudades, pedem que venham e os adotam no espaço de cada evento que os torna produção de brilho e vibração acústica, cada um com sua precisão e singularidade. Todos yamĩyxop com seus olhos vendados. Tudo se passa sem que as miradas se cruzem. Aquele monumento-limite, o kuxex, que vimos quase desfeito a certa altura destes encontros, é de onde, por momentos, estes filhos saem, tornam-se perceptíveis, táteis e sonoros e para onde novamente desaparecem.
imagens do sonho (cinema táctil)
“Pode uma imagem vir como um sonho vem? Poderia uma imagem vir em sonho e agir no real, sem permanecer apenas como um resíduo do imaginário, mantido e cultivado à parte, ou uma fantasia encerrada na interioridade de alguém, como o seu pequeno segredo?” (GUIMARÃES, 2019, p. 58)
O filme Yãmĩyhex acompanha este movimento de aparições e desaparições, de entrada e saída do campo visível, deixando que os limiares do kuxex regulem as passagens entre mundos: da aldeia à floresta, da superfície ao subterrâneo ou ao mundo subaquático. Acompanhando essas passagens, articulando suas câmeras a esta câmera-kuxex, o cinema, máquina fenomenológica (que filma o visível), torna-se também máquina cosmológica (a filmar o trânsito do visível ao invisível). Mostra-se assim contemporânea, atual e presente, a transformação das mulheres ancestrais: filma-se o que é visível para que a imagem prossiga, longe dos olhos, em direção ao invisível. Depois de escutar o canto que ecoa pelos espaços, vemos então o grupo de mulheres que brinca, canta e mergulha no rio: o visível para aí e o canto desaparece mergulhando com elas. Seguindo a narração de Sueli Maxakali, a imagem atravessa o limite do que os olhos alcançam, nos exigindo, quem sabe, outro tipo de visão. Um a um, vários corpos transformam-se em um corpo-jiboia (que se fragmentará novamente para se multiplicar). O cinema é máquina cosmológica ainda quando empresta dos cantos xamânicos tikmũ’ũn seus movimentos. Como em outros filmes tikmũ’ũn, aqui também o espaço se altera por chegadas e partidas, por povoamento e esvaziamento; ele se rarefaz, se adensa e se expande, em ligação com o entorno. Assim como nos cantos, são blocos sensíveis que se modulam por coagulação, adensamento e diluição. Repetidamente, nos filmes, a cena abriga a chegada de corpos e sons, seu encontro e adensamento e sua posterior dispersão, até que o plano se esvazie, aberto a um novo evento. Conduzida por Luiza
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Lanna, a montagem abriga longos planos e respeita esse movimento de concentração e expansão, permitindo que o filme respire; que ele guarde os vazios entre eventos de grande intensidade. O trabalho de montagem não hierarquiza as situações filmadas, nem destaca aquelas que seriam tomadas como “rituais”, em detrimento das atividades de sua preparação (sendo estas também, afinal, parte do ritual). Da mesma forma, a montagem respeita os movimentos de fragmentação e “distribuição” das partes do ritual, o que acaba, talvez, por espacializar o tempo: como se o tempo deitasse sobre a aldeia distribuindo-se em fragmentos, partículas, tal como o sereno que cai sobre a madrugada diante do olhar encantado das crianças: os vestidos – suas cores, seus brilhos – suspensos nas fachadas das casas ou a cruzar o espaço entre elas; a dança de braços entrelaçados – os passos lentos ou acelerados – a pontuar dia e noite; os cantos que surgem, desaparecem, se repetem e ecoam pelos espaços, sem que se saiba ao certo sua fonte; a comida que se distribui em pequenos ritos de que se alimentam os yãmĩyxop; a jiboia que se forma por muitos corpos e que se destrincha para que, pendurados nas casas, de seus pedaços surjam mulheres. Aqui, a montagem – que opera mais por contato do que por sucessão – não lineariza, nem armadilha o tempo, mas o distribui pelo espaço, que se altera e se matiza por suas variações. ••••
Este é um cinema-ritual que parece assim retirar sua força do modo efêmero, frágil, como emergem seus fragmentos. E ao mesmo tempo, do modo cioso como são preparados, compostos, distribuídos. Se os eventos emergem em uma espécie de limiar – fazendo-se quase por se desfazer –, se, vez ou outra, as relações se desequilibram – principalmente pela voracidade dos ãyuhuk –, as yãmĩyhex parecem instaurar um mundo de manejo e
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cuidado (manejo cuidadoso, que é o contrário do domínio e da exploração extrativista). É com atenta sensibilidade que o cinema adentra esse mundo constituído por outros, para filmá-lo e para dele participar.
Temos que respeitar, saber como filmar à distância. Não devemos chegar pertinho e filmar, filmar o rosto. Somos tihik, fizemos treinamento e respeitamos o pajé. Nós sabemos filmar com os pajés, aprendendo o que pode e o que não pode mostrar. Nós temos leis diferentes dos ãyuhuk (não-indígenas). Por isso, somos cineastas indígenas. Sobre os rituais, a gente não vai contar tudo. Antigamente, tinha muito mato e os yãmĩy se escondiam dentro do mato. Hoje não, só há um pouquinho de mato e eles estão no nosso cabelo, nos acompanhando. Se disser alguma coisa errada, yãmĩy está me ouvindo. Em fase com os gestos discretos e ciosos das mulheres, com a precisa e intensa emergência de cada evento, com os fios tênues que os ligam, o cinema guia-se pelo tato (mais do que pelo olhar). É assim que, na noite pouco iluminada, enquanto o jovem casal atravessa o pátio para entregar vestidos às yãmĩyhex, os pequenos insetos, as partículas luminosas de poeira, o brilho dos tecidos, o cricrilar dos grilos, o murmúrio das crianças povoam a imagem, conferindo a ela uma qualidade táctil, como se pudéssemos mesmo tocar estes minúsculos acontecimentos. O tato permite que a câmera, ela também discreta, acompanhe os eventos com cuidado, de modo a não desfazer a teia invisível que os conecta, de modo a não iluminar aquilo que deve permanecer à sombra e não adentrar lugares que devem se guardar em segredo.
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Yãmĩyhex aguardam os vestidos em silêncio no interior do kuxex. Nem os homens nem as mulheres podem filmar ali. É um segredo nosso, um segredo que mantemos. Ele também faz parte da cura. Porque se vier um tempo em que não tem mais segredo, acaba nossa cura.
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Vez ou outra, diante de uma imagem que dura e que toma todo o enquadramento, o olhar deve recuar, ou melhor, detém-se, armadilhado em sua complexa tessitura: cerra-se o olhar para que se transforme em tato, novamente, e em escuta. Uma única imagem mostra-se várias, como uma câmara de ressonâncias: o canto dos homens, o canto do galo, os cantos dos passarinhos, o canto-lamento das yãmĩyhex; ou, em outra sequência, o canto das yãmĩyhex a repetir, diferindo, o canto dos yãmĩy. Pouco a pouco, o olhar de novo se desprende para acompanhar os sons e reencontrar sua fonte: a madrugada, a vigília, o dia que chega, as crianças que se aquecem na pequena fogueira. O latido dos cães.
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Aquele que se mostra um evento de contornos tênues, no limite de se desfazer, segue protocolos precisos. O cinema participa de um jogo de visibilidade que o antecede, do qual se compõe e que ele agora ajuda a compor. Ele adentra uma cena de obstruções, refrações e passagens. Em um exemplo, os pajés Totó e Mamei estão em cena a conduzir os cantos. A câmera filma os yãmĩy que, rostos cobertos, não lhe devolvem o olhar. Os cobertores são anteparo: os yãmĩy já são imagem e os meninos que não foram iniciados no kuxex não podem vê-los, assim como as mulheres grávidas. Os cantos, nesse caso, não devem ser traduzidos, não devem ser ensinados aos brancos. “Eu mesma não sei”, diz Sueli Maxakali. No centro da cena, em certo sentido, contribuindo para que ela aconteça, o cinema mostra o ritual, sob a direção dos pajés. Como os cantos, as imagens são passagem (mas constituída de cuidados). Na cena ritual maxakali, o cinema não pode tudo. Pode algo, o que confere aos filmes uma beleza exigente: é preciso fazer recuar o olhar (ou, ao menos, torná-lo tateante) para que outro tipo de visão seja acionada.
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Nas bordas do ritual, as meninas notam (ou sentem) a chegada do sereno: “está lavando o céu para amanhecer”. Elas brincam, saltam e tocam a noite com as mãos, vendo o que não vemos. Ou nos fazendo ver, por meio de seu toque, aquilo que os olhos, em sua mirada, não alcançam. Imagem menos para ser mirada do que para ser tocada, ela nos permite ver, com outros olhos, o que as crianças maxakali veem: um delicado evento cósmico que prepara a chegada da manhã. Se essa se assemelha a uma imagem do sonho não é porque ela nos permite ver de olhos fechados, fazendo o corpo adentrar a noite, ou tatear sua fina película? É assim que estas imagens-sonho nos convidam a entrar nelas – o que não significa conhecê-las por inteiro, mas sentir sua multiplicidade inapreensível – e da mesma forma podem entrar em nós, agir sobre os corpos e os espaços.
Sonhei que um pajé já falecido – Badu – passou lama em mim. Adoeci. Minha mãe – Delcida – passou bolsa de embaúba (tuhut) em mim. Os pajés vieram me curar, ritual veio na minha casa e três dias depois eu sarei. E então, na festa das yãmĩyhex, as lontras passaram lama em meu corpo, na câmera. Nunca havia acontecido isso. Sueli havia confiado à pesquisadora Claudia Magnani (2018, p. 246) uma explicação sobre o poder da bolsa de embaúba manufaturada pelas mãos das mulheres fortes:
Quando você vai fiando a embaúba e você vai molhando a linha com a saliva, você vai passando seu espírito para ela. Quando uma pessoa está doente a mulher vai esquentar sua tuthi [rede de embaúba] e seu yãmĩy que está lá dentro, forte, passa para a pessoa doente, porque o yãmĩy dela está fraco, doente. A mulher passa
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seu yãmĩy na pessoa e ele cura. Mas não é toda mulher que faz isso. Só mulher que respeita yãmĩyxop, que dá comida para yãmĩyxop, que sabe muito canto, entende? Como dona Delcida. Só ela que faz. Daldina fazia também. Só Ũn Ka’ok, só mulheres fortes. Mas só mulher que sabe usar para poder curar. A mulher esquenta, passa no rosto e espanta coisa ruim que está no corpo da pessoa. (Sueli Maxakali, Aldeia Verde, 20 de fevereiro de 2017) Magnani nos lembra que a prática feminina de passar a malha em cima da fumaça para ativar suas qualidades de cura pode ser associada à transformação das mulheres ancestrais em mulheres yãmĩyhex, “a qual, iniciada pela ingestão da sucuri, se completa quando seus corpos passam em cima do fumo”. (MAGNANI, 2018, p. 247)
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“Choveu à noite, mas agora parou. A chuva não é ruim, é muito boa. Ela molha os Tikmũ’ũn e as nossas plantações. E traz água para os Tikmũ’ũn fazerem suas atividades. E para os yãmĩyxop beberem e os bichos também. Já está amanhecendo e agora as andorinhas vão sair para as mulheres molharem.”
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Enquanto a aldeia acorda, Sueli Maxakali comenta a chuva que passou, a noite anterior e o dia que chega. Em sua narração em voz over que pontua o filme, ela menos explica os eventos do que cuida das passagens entre um e outro. Se no ritual, a presença das yãmĩyhex se distribui em eventos-dispositivos que emergem e se dispersam, o comentário alinhava um ao outro, sem desfazer os vazios entre eles. Entre um evento e outro, as tarefas miúdas que os preparam; entre a noite em vigília e o dia, a madrugada ( junto à qual o cinema amanhece); entre uns e outros povos-espíritos, a câmera, vulnerável aos corpos e aos movimentos; entre imagem e som, o tato. Vez ou outra, Sueli e Isael Maxakali adentram a imagem para cuidar de alguma tarefa de preparação do ritual, para dirigir pontualmente esta ou aquela cena. A fotografia é então assumida por outros, parentes e afins (Alexandre e Cassiano Maxakali, Carolina Canguçu, Roberto Romero e Para Yxapy – Patrícia Ferreira – sensível cineasta mbyá-guarani que viajou a Aldeia Verde para compor a equipe), e o filme se constrói nessas alianças, variando, aqui e ali, seu ponto de vista. A película que separa o filme do ritual – que separa aquele que filma daquele que prepara e atua no ritual –, se desfaz, permitindo que o primeiro adentre o segundo, seja para participar de seu curso, seja para dirigi-lo, na companhia dos pajés. E novamente o espaço se esvazia observado à distância (que não é demasiada) pela câmera. O silêncio torna-se tátil – como se, de fato, o trabalho da madrugada fosse manejo de luzes e sons – e pouco a pouco o entorno vai-se povoando por uma leve agitação que faz companhia à cineasta – as primeiras conversas, o ruído das panelas, mulheres e crianças que atravessam de uma a outra casa. É de manhãzinha que as andorinhas (xamoka) chegam, para resvalar seus corpos delicadamente na água. Chegam para brincar e para curar. Ouvimos, neste cinema táctil, uma voz que, detrás da câmera, irrompe em seu desejo de molhar as andorinhas ou ainda lutar corpo a corpo com as lontras lamacentas. São momentos desconcertantes, que nos colocam ali, na cena do enfrentamento, na preparação de corpos que suportariam guerras, totalmente desabrigados de nosso posto de observação, e nunca tão distantes desta consumação voraz das imagens-fantasmas do mundo do espetáculo.
política dos corpos destrinchados A lontra preta atravessa a aldeia silenciosa. O pajé é seu guia, sopra trechos de seu canto solitário que ecoa até os limites das casas cobertas de palha, das outras de tijolos, de um curral vazio, dos barrancos. O canto vasculha em seu silêncio o espaço da aldeia. Os passos da lontra firmes e desajustados ao compasso do canto seguem percutindo quando a voz se recolhe. Após algum tempo, detrás das paredes emana o pranto de uma mãe de yãmĩyxop pouco a pouco ampliado por outras vozes de outras mães. O canto de despedida da lontra preta que vem buscar as fileiras de fumo traz a lembrança de pajés que se foram para as aldeias invisíveis. Outrora a lontra foi filha adotiva de um
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casal Tikmũ’ũn, que, com sua sabedoria, trazia a fartura da pesca. Mas a voracidade de um cunhado que não soube retribuí-la a fez partir e mandar para esta humanidade um dilúvio, um quase extermínio do povo Tikmũ’ũn. São as lontras que retornam hoje às aldeias, lembrando às mulheres que seus vestidos vibrantes e coloridos feitos dos tecidos adquiridos no mercado dos brancos foram trocados pela pele de suas mães. É o desequilíbrio das trocas injustas que está sendo cobrado, sobretudo quando um de seus agentes é o ãyuhuk, o povo dos não-indígenas, este povo voraz, da incontinência, das armas, dos gritos, e de uma certa tecnologia que tudo silencia e tudo quer capturar. Sempre que vêm às aldeias, as lontras trazem e expõem os objetos dos ãyuhuk denunciando o mercado de peles que quase levou ao extermínio este povo das águas doces. Hoje tendo como nova pele estes vestidos, as mulheres os oferecem às suas yãmĩyhex. Os embates corporais que assistimos entre as mulheres e as lontras também intensificam o devir mulher das jovens da aldeia, tornando-as fortes, resistentes e capazes de lidar com a violência e a força que parece contrastar com a etiqueta discreta que também aprendem a observar nestes encontros. Como tão bem nos apresentou Claudia Magnani, se por um lado “ser mulher” entre os Tikmũ’ũn demanda a aquisição de um modo de estar e agir no mundo delicado e quase inaudível – capaz de perceber um campo de indícios sutis, de produzir linhas encantadas e poderosas, de entrelaçar e desvincular parentes – por outro, implica em cultivar um corpo/espírito forte, alegre e resistente – capaz de aguentar dores, fatigas, tristezas e deter seres violentos. (MAGNANI, 2018, p. 333-334)
Há bichos que, pelas regras maxakali, não podemos caçar. Quando alguém na aldeia mata e come uma lontra, yãmĩy vê e xupapõynãg (povo-lontra-espírito) vem para se vingar. É um ritual que expõe a exploração descuidada da mata, da pesca, da caça. Coisas que o homem branco faz. Xupapõynãg volta imitando as coisas do homem branco, volta para mostrar a violência contra a natureza e contra
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os indígenas. Por isso nós enfrentamos xupapõynãg, para mostrar que lutamos contra essa violência. As meninas são muito valentes e não é fácil para filmar a luta. Tem que saber filmar, porque o ritual não é ensaiado, não é igual novela, em que as pessoas ensaiam. É a realidade. Xupapõynãg imita as armas e as tecnologias do homem branco. Celular, gravador e até as filmadoras do cinema ele imita. Esse ano, xupapõynãg veio mais violento, como a polícia, andando com carro, apontando arma pesada. Veio como Bolsonaro, querendo acabar com a aldeia.
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Ĩnmõxa são corpos mortos, semi-apodrecidos, que não alcançaram transcendência, não viraram yãmĩy. Vindos do subterrâneo, em contato com o sol, têm sua pele endurecida, impenetrável. Também surgiram dos cemitérios dos brancos. Devoradores, gritam, não cantam, não dançam e suas mãos de faca nem recebem, nem trocam. Causam medo aos mais íntimos. Para matá-los, é preciso esperar que adormeçam e, com taquaras, furar seus pontos vulneráveis, os olhos, o umbigo. Dona Delcida dispôs dois ĩnmõxa sobre folhas de bananeira: de seus corpos de polvilho do beiju destacam-se apenas os olhos, desenhados com carvão. Os yãmĩy teriam medo destes bichos e os matariam. Vindos da noite silenciosa em torno do kuxex, dois yãmĩy caminham sorrateiramente, torsos curvados, longas varas às mãos. O silêncio é denso, composto dos sons noturnos, percorrido pelos passos dos yãmĩy. Entre eles, um mastro fino e longo divide a imagem,
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divide a noite. Esse fio tênue parece também adentrar o céu noturno permitindo que os seres por ali subam e dali desçam novamente à terra. De súbito, o silêncio se rompe quando, em um, dois, três golpes, os yãmĩy destroçam ĩnmõxa deitados sobre folhas de bananeira. Sua pele dura se esfarela e os dois desaparecem novamente noite adentro. Em um corte, vemos o kuxex, suas paredes quase a se desfazer, enquanto ouvimos o canto (teria surgido das passagens, dos buracos feitos pelas taquaras dos yãmĩy?).
Eu sempre quis fazer um filme, que mostrasse a política. A terra é nossa mãe. Por que a terra é nossa mãe? As mulheres mergulharam no rio e viraram yãmĩyhex. Não tinha mais mulher. O lobo (Kokexkata) foi no barreiro, onde busca barro para produzir panela e tigela, fez sexo com a terra e daí saiu uma menina. Ela nasceu do mesmo barro das panelas e tigelas que usamos para fazer nossas comidas. O lobo escondeu a menina em
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uma bolsa de couro e levou para sua casa. Toda noite, ele tirava a mulher de dentro da bolsa e dormia com ela. Os parentes desconfiaram: Kokexkata morava no centro do pátio e agora mudou para longe. Eles mandaram dois coelhos (kũnĩõg) dormirem na casa do lobo para ver se ele tinha mulher escondida lá. À noite, enquanto os coelhos dormiam, o lobo tirou a mulher da bolsa. Kũnĩõg descobriu e falou: “ah, meu tio tem mulher sim”. Os homens vieram e o lobo jogou a mulher em cima de uma árvore. Toda vez que o ritual saía, a mulher barreira respondia aos cantos lá de cima da árvore. Os homens derrubaram a menina, destrincharam e distribuíram as partes dentro das casas. Eles saíram, mudaram para outra aldeia. Passaram-se quinze dias e quando voltaram, mandaram o beija-flor para ver se havia mulheres na aldeia. Beija-flor vinha, via, voltava e não tinha. Aí voltaram, beija-flor levou a resposta de que havia mulher já dentro das casas. Dos pedaços, surgiram as mulheres.
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Deste corpo da mulher de barro despedaçada (da qual nasceram as mulheres tikmũ’ũn) surgem os eventos-dispositivos do filme Yãmĩyhex: em pedaços, o filme se compõe e se distribui. De cada fragmento – quase a se desfazer – nasce um mundo de corpos, movimentos, brilhos e ressonâncias. Estes pedaços são memória de tempos ancestrais e notícias do mundo, a crônica de suas alianças, de suas violências e desequilíbrios. São também “receitas”, modos de fazer, possibilidades de cura que não se dissociaram do segredo e do sonho. E não se dissociaram tampouco de uma forma de povoar os territórios pelos ancestrais tikmũ’ũn. Se os corpos são acúmulos de sequências de cantos adquiridos ao longo da vida e dos encontros com os yãmĩyxop, quando são destrinchados e distribuídos, assim como o é o mĩmãnãm (o mastro “brilhante”, colorido, impregnado de grafismos), permitem recompor vínculos com os territórios que percorrem. Esta é uma forma quase invisível de resistirem à guerra que lhes é perpetrada pelo Estado, retirando-lhes seus corpos e seus espaços de circulação. Esta foi a tese trilhada por Douglas Campelo em um extenso e cuidadoso trabalho. O corpo de uma pessoa tikmũ’ũn pode ser quebrado e começar a fazer circular os cantos por aquelas pessoas com quem elas começarem a estabelecer algum tipo de troca. Possivelmente foi isso o que ocorreu nesses deslocamentos de pequenos bandos oriundos da Bahia e de outras regiões de Minas Gerais. Essas pessoas carregavam em seus corpos cantos e os fizeram circular entre outras pessoas, que assim estabeleceram relações. Não é incomum ouvir esses nomes de pajés do passado circularem no espaço da kuxex enquanto os pajés procuram rememorar sequências de cantos e assim fazer a máquina do parentesco começar a agir nos corpos das pessoas tikmũ’ũn. Essa forma de produzir sociabilidade através da circulação dos cantos remete àquela reflexão de Suely Maxakali, quando ela nos diz que do corpo da mulher se dividiu partes que foram diferenciadas ao longo do tempo. Dos corpos desses pajés circularam cantos que foram partidos entre os vivos, produzindo agenciamentos e devir em coletivos e pessoas. (CAMPELO, 2018, p. 352)
Outras histórias narradas pelos tikmũ’ũn remetem ao corpo despedaçado, como é o corpo do ancestral que se transformou em gavião e foi deplumado pelos seus parentes. De seu corpo morto surgiu um povo encantado dos gaviões-espíritos, uma pletora de espécies, cantos, brilhos, línguas, palavras e formas de dançar. Esta fragmentação corporal, uma quase-morte, é também narrada pelo xamã Davi Kopenawa, quando “os novos espíritos vão chegando a nós aos poucos”: Depois de me cortarem, os xapiri fugiram depressa com as partes do meu corpo que tinham acabado de trinchar, para longe da nossa floresta, muito além da terra dos brancos. Eu tinha perdido a consciência e foi minha imagem que eles desmembraram, enquanto minha pele permanecia no chão. Voaram para um lado com meu torso e para o outro com o meu ventre e minhas pernas. Carregaram minha cabeça numa direção e minha língua em outra. Foram as imagens dos sabiás yõrixiama, dos japins ayokora e dos pássaros sitipari si, todos donos dos cantos, que arrancaram minha língua. Pegaram-na para refazê-la, para torná-la bela e capaz
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de proferir palavras sábias. Lavaram-na, lixaram-na e alisaram-na, para poder impregná-la com suas melodias. Os espíritos das cigarras a cobriram com penugem branca e desenhos de urucum. Os espíritos do zangão remoremo moxi a lamberam para livrá-la aos poucos de suas palavras de fantasma. Por fim, os espíritos sabiá e japim puseram nela as de seus magníficos cantos. Deram-lhe a vibração de seu chamado: “Arerererere!”. Tornaram-na outra, luminosa e brilhante como se emitisse raios. Foi assim que os xapiri prepararam minha língua. (...) Então, assim que eles recompuseram as partes do meu corpo, meu pensamento começou a desabrochar de novo. Senti-me acordar, imerso no perfume forte da tinta de urucum com que me tinham pintado e na fragrância de suas plantas mágicas yaro xi e aroari. A tropa dos xapiri recém-chegados permanecia junto a mim, todos imóveis, no brilho de seus adornos magníficos. Tinham concluído sua dança de apresentação. Agora estavam ansiosos para construir uma casa nova na qual pudessem se instalar! (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 154-155)
Nossos rituais registram muita coisa do mundo hoje. Se vê algo novo, vai surgir o canto também, o pajé vai sonhar com yãmĩy e vai trazer o novo canto. Nossos cantos registram tudo o que vemos: os rios, o céu, os bichos; coisas do fazendeiro, carro, avião. Nossos rituais fazem canto de casa, carro, objetos dos não-indígenas Onde moramos, a terra é pequena. Tem pouca caça também. Antigamente, era muita floresta, muita caça e muita fruta. O nosso canto canta através dos bichos, da caça, da pesca. Se não tem mais os bichos, não vamos ter os cantos. Mas os cantos preservam os bichos que não existem mais hoje: a onça pintada, a
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anta. Não acabou, porque está nos cantos. Não acaba porque nossos desenhistas estão registrando também Acabou, mas não acaba.
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A mulher de barro tinha colares no pescoço e nos tornozelos. Quando seus pedaços destrinchados se transformaram em outras mulheres, as partes com colares brilhantes, que haviam ficado com os pajés, demoraram mais tempo para se transformar. Toda vez que as mulheres maxakali iam pegar água, cantavam: “colar, se transforma rápido”.
Como que atraídas pelo canto, uma breve multidão de mulheres chega com a manhã. Elas carregam cobertores estampados e coloridos e formam uma longa fila diante do kuxex. A câmera acompanha a fila, agora nos mostrando os rostos abrigados pelos cobertores: o cinema parece cumprir ali, precariamente, sua tarefa política, aquela que Georges Didi-Huberman (2011) resumiu pela pergunta: “como fazer para que os povos se exponham a si mesmos e não ao seu desaparecimento?”. Como fazer para que seus rostos apareçam, em recusa seja à sua invisibilidade (uma subexposição), seja à sua visibilidade demasiada (uma sobreexposição)? De que maneira pode o cinema, tal como reivindica Huberman (a partir de Hannah Arendt), dar a ver ou cumprir “uma parcela da humanidade”?
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Mulheres e crianças aguardam o momento em que as yãmĩyhex lançarão cinzas, aquelas cinzas encantadas do corpo queimado da primeira mulher que os homens mataram, para que tenham sorte na pescaria por vir. Enquanto a fila caminha, uma nuvem se forma, como se estivéssemos a ver, em câmera lenta, a rápida passagem da cobra multicor, que deixa o rastro de poeira em sua passagem.
Referências CAMPELO, Douglas Ferreira Gadelha. Das partes da mulher de barro: a circulação o de povos, cantos e lugares na pessoa tikmũ’ũn. Tese de doutorado. Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2018. DAVOINE, Françoise. Don Quichote, pour combattre la mélancolie. Paris: Stock, 2008 GUIMARÃES, César. A estética que vem. In: PICADO, Benjamin. Escritos sobre comunicação e experiência estética: sedimentos, regimes, modalidades. Belo Horizonte: PPGCOM/UFMG, 2019. HUBERMAN-DIDI, George. Coisa pública, coisa dos povos, coisa plural. In: Silva, R. (Org.). A república por vir: Arte, política e pensamento para o Século XXI. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011. KOPENAWA, Davi & ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Trad. Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das letras, 2015. MAGNANI, Claudia. Un ka’ok – Mulheres fortes: uma etnografia das práticas e saberes extra-ordinários das mulheres tikmũ’ũn-maxakali. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Educação: Conhecimento e Inclusão Social da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2018. ROMERO, Roberto. A errática tikmũ’ũn_Maxakali: imagens da guerra contra o Estado. Dissertação de mestrado. Programa de Pós Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, UFRJ. Rio de Janeiro, 2015.
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ensaios • mostra mortos e a câmera
Abraços da Morte1 Michael Boyce Gillespie2 Tradução: Victor Guimarães
Estou interessada em maneiras de ver e imaginar respostas ao terror nas várias e variadas maneiras em que nossas vidas negras são vividas sob ocupação; maneiras que atestam as modalidades da vida negra3 na, como, sob e apesar da morte negra. Christina Sharpe em In the Wake: On Blackness and Being
A concepção de Christina Sharpe de “trabalho na vigília” se concentra em abordar como a cultura visual e expressiva representa e contempla a morte e a vida após a morte da escravidão na vida negra4. Para Sharpe, isso envolve um foco em como “a literatura, a performance e a cultura visual observam e mediam essa des/sobrevivência”.5 Sua abordagem da existência “na vigília” como um posicionamento crítico se relaciona ao estrutural e ao afetivo, com referência a uma gama de conotações, incluindo “velar os mortos, o caminho de um navio, uma consequência de algo, na linha de fuga e/ou de visão, o despertar e a consciência6”.7 O trabalho de Sharpe mobiliza novos investimentos para
1.Publicação original: Gillespie, Michael Boyce, “Death Grips” in Film Quarterly, Vol. 71, no. 2, Winter 2017, pp. 53-60 (c) 2017 by the Regents of the University of California. Published by the University of California Press. [Publicado originalmente pela Universidade da Califórnia Press] 2. Michae Boyce Gillespie é um teórico e historiador do cinema com interesse em cultura visual e expressiva negra, teoria do cinema, gênero, historiografia visual, cinema global, estudos da música popular e arte contemporânea. É autor do livro Film Blackness: American Cinema and the Idea of Black Film (Duke University Press, 2016). 3. N.T. Há um dissenso atualmente em torno da melhor maneira de traduzir o vocábulo “black”. Alguns tradutores, reivindicando um movimento semelhante ao que aconteceu nos Estados Unidos a partir do fim dos anos 1960, com a adoção do “black” (em contraposição ao “negro”, que era a palavra politicamente correta para se referir às populações afro-americanas até aquele momento), têm preferido valorizar o termo “preto/a”. No entanto, diante de uma predominância do “negro” nas discussões de cinema no Brasil – “cinema negro”, “crítica negra”, “produção negra” – e da presença minoritária de expressões como “cinema preto”, preferimos manter o termo “negro”. 4. SHARPE, Christina. In the Wake: On Blackness and Being. Durham: Duke University Press, 2016, p. 20. 5. Ibidem, p. 14. 6. N.T. As expressões de Christina Sharpe são “wake work” e “in the wake”. O vocábulo wake possui uma polissemia intraduzível para o português: pode significar vigília, despertar, velório, mas também, num campo semântico distinto, o rastro deixado por uma embarcação na água, que leva a expressões figurativas como “na esteira de” ou “no encalço de”. Como aponta Michael Gillespie, a autora explora no livro as ressonâncias entre os vários sentidos, em um jogo de palavras que não se pode traduzir inteiramente. 7. Ibidem, pp. 17-18.
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o estudo da morte negra e da arte da negritude. Com o cinema e o vídeo contemporâneo negro em mente, seu trabalho sugere de forma vital uma mudança de ênfase, do retrato do horror para uma concentração em como as formas cinematográficas promovem uma resistência crítica e estética ao horror do antinegritude. A morte negra no cinema contemporâneo exige entender como a negritude cinematográfica sempre envolve provocar novas e entrelaçadas medidas das capacidades estéticas, culturais, políticas e sociais da cultura visual e expressiva negra. Como resultado, a consequência crítica da negritude cinematográfica sempre envolve questões de afeto, narratividade, historiografia visual e gêneros/modalidades.8 A morte negra, portanto, significa tanto a violenta injustiça das mortes afro-americanas quanto a representação da morte no cinema. Três curtas-metragens de cineastas negras representam um arquivo cada vez maior de trabalhos recentes que merecem atenção crítica à medida que avançam práticas cinematográficas que apontam para novas filosofias políticas e circuitos de conhecimento relacionados à morte negra e à forma fílmica. Tomados em conjunto como um “cinema na vigília”, os três – Dead Nigga BLVD., de Leila Weefur (2015), Everybody Dies!, de Frances Bodomo (2016) e White, de A. Sayeeda Clarke (2011) – lançam uma miríade de proposições formais sobre a morte negra que incluem a animação, o grotesco racial e a ficção especulativa. Essas representações são mediadas por telas, filtradas por vozes estranhas e processadas por quantidades infinitas de dados digitais... Eu me debati com as formas de comunicar as maneiras pelas quais os corpos negros são constantemente confrontados e negociam o espaço liminar entre a vida e a morte. Eu queria construir esse lugar fictício como se ele existisse. Mas, como o céu e o inferno, ele não possuía localização ou associações específicas a uma geografia tangível... O lugar e os personagens nele tinham que habitar e funcionar dentro do espaço da necrose, ao qual o staccato natural do stop motion se presta.
Leila Weefur9 Um boneco é introduzido no quadro por um barbante pendente de cima, e colocado em um espaço desolado ao lado de modelos de edifícios, garrafas espalhadas no chão fabricado e cordas de forca penduradas em árvores artificiais. Três outros bonecos chegam ao longo do filme. Um dos bonecos veste calça, camisa social e chapéu fedora, o outro veste jeans e um capuz cinza e o terceiro tem um boné de malha preto, capuz preto e jeans. No entanto, esses bonecos não são objetos anônimos ou desconhecidos. Cada um deles porta uma imagem icônica distinta como rosto: Emmett Till, Trayvon Martin e Oscar Grant.10 Esses objetos com rosto de fotografia produzem um eterno 8. Ver GILLESPIE, Michael Boyce. Film Blackness: American Cinema and the Idea of Black Film. Durham: Duke University Press, 2016. 9. WEEFUR, Leila. (Comunicação pessoal). 29 de junho de 2017. 10. N.T. Nomes nacionalmente conhecidos de jovens negros brutalmente assassinados em situações de racismo nos EUA. Aos 14 anos de idade, Emmett Till foi assassinado em 1955 em Money, Mississipi, supostamente depois
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retorno do olhar: seus olhos são aberturas para três almas ausentes, todas consideradas ameaçadoras, julgadas descartáveis e emolduradas como inelegíveis para empatia ou proteção.11 Filmado em preto e branco, Dead Nigga BLVD. de Leila Weefur centra-se nesses três bonecos solenes.12 Graça seletiva: três para o mundo inteiro ver. Constituídos como força fantasmagórica por meio da animação em stop motion, os bonecos são “objetos performáticos” posicionados como imagens em movimento encarnadas.13 Aqueles que foram, de forma terminal, desarticulados, tornam-se figuras articuladas em movimento. Como Jack Halberstam observou, “a dinâmica entre movimento e quietude é a dinâmica entre a vida e a morte, que não é captada em nenhum lugar de maneira mais dramática do que na animação em stop motion”.14 Além disso, a inspiração da prática de animação dos primeiros anos de Jan Švankmajer desperta a fabulação da própria Weefur de uma revista de hantologia15 contemporânea. Não o tropeço ou a gagueira dos que foram enterrados indevidamente, nem dos mortos-vivos. Essas figuras em movimento ecoam um argumento que Sianne Ngai tece em suas considerações sobre raça, automação e animação: como o efeito da animação demonstra uma fusão de “sinais de sujeição do corpo ao poder com sinais de sua liberdade ostensiva”.16 Dead Nigga BLVD. emprega animação para conjurar matéria negra, numa intimação em stop motion dos remanescentes ativos da morte. Ao longo do filme, a voz over opera menos como um narrador onisciente e abstrato do que como uma voz de deliberação, processamento e disputa. Há um deslizamento impressionante na narração, uma vez que ela opera, em partes iguais, como narradora onisciente e como monólogo interior de suas figuras corporificadas. Consideremos esta passagem, por exemplo: “Como passamos a existir nesse estado de nada... Há um momento em que seus sentidos do trabalho exterior se dissolvem e você pode sentir,
de ter assobiado para uma mulher branca. Em 2009, Oscar Grant foi morto aos 22 anos, em Oakland, Califórnia, com um tiro pelas costas disparado pelo policial Johannes Mehserle enquanto estava algemado e de joelhos. Trayvon Martin, aos 17 anos, foi assassinado pelo segurança de um condomínio, George Zimmerman, em Sanford, Flórida, em 2012. Nos protestos do movimento Black Lives Matter, esses nomes foram constantemente invocados. 11. KELLEY, Robin D. G. “Thug Nation: On State Violence and Disposability”. In: CAMP, Jordan T. HEATHERTON, Christina (eds). Policing the Planet: Why the Policing Crisis Led to Black Lives Matter. New York: Verso, 2016, pp. 67–68. 12. Após a decisão do júri de não indiciar Daniel Pantaleo (3 de dezembro de 2014) pelo assassinato de Eric Garner (17 de julho de 2014), a galeria Smack Mellon no Brooklyn, Nova York, adiou uma exposição planejada e abriu uma chamada para trabalhos que respondessem ao “fracasso contínuo dos Estados Unidos em proteger seus cidadãos negros da discriminação e violência policial”. Grande parte dos trabalhos recebidos nessa chamada se tornaram a exposição Respond, que ficou em cartaz de 17 de janeiro a 22 de fevereiro de 2015. Dead Nigga BLVD., realizado durante o primeiro ano de Weefur como aluna de MFA no Mills College, é uma das peças incluídas na exposição Respond. Disponível em: http://smackmellon.org/index.php/exhibitions/past/respond/ 13. Ver PROSCHAN, Frank. “The Semiotic Study of Puppets, Masks, and Performing Objects”. Semiotica, 47 (1983), p. 4. 14. HALBERSTAM, Jack. The Queer Art of Failure. Durham: Duke University Press, 2011, p. 177. 15. Conceito criado pelo filósofo Jacques Derrida em seu livro Espectros de Marx (1993). O neologismo (no francês, “hantologie”) costuma ser traduzido assim. 16. NGAI, Sianne. Ugly Feelings. Cambridge and London: Harvard University Press, 2005, p. 100.
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tocar, ver e provar o fim… No Dead Nigga BLVD., a soma de nossa existência é quase irrecuperável”. O rosto do boneco de Emmett Till é a fotografia de um garoto bem vestido e sorridente do natal de 1957, uma imagem que antes era metade de uma díade esmagadora, destinada a obrigar o reconhecimento e a empatia pela vida de um garoto comum, filho de alguém, alguém que era amado.17 A fotografia de Trayvon Martin é uma selfie com capuz – seu autorretrato e sua autovaloração casuais circularam retroativamente como uma veneração e um prenúncio.18 O rosto do boneco de Oscar Grant o mostra sentado e sorrindo com um bebê no colo. Essa fotografia, fornecida por sua família e posteriormente cortada e distribuída amplamente, usualmente mostra uma parte da cabeça do bebê em seu canto inferior esquerdo, um corte que conota uma ruptura brutal, uma demarcação de sua perda de lugar entre os vivos. Todas as três fotografias ressoam com a solicitação identificativa de um “Eu sou ____”, emoldurada para atestar uma vida e uma injustiça.19 Eles são meninos e homens negros executados por assassinos tanto institucionais como contratados. Essas fotografias icônicas, juntamente com seus bonecos em movimento, são generativamente imbricadas e impulsionadas por historiografias dedicadas à mobilização de corpos e às provocações de resistência. Como Leigh Raiford argumenta de maneira vital: As fotografias se tornam ferramentas para auxiliar a memória. Somos convidados, demandados, até exigidos a recontar e rememorar. A lembrar. Mas o que exatamente estamos sendo demandados a lembrar? Como estamos sendo demandados a lembrar? E com que finalidade?20
Cada uma dessas fotografias, reapropriadas como o rosto de um boneco, transmite uma frequência visual distinta de memória e capacidade de reclamação, uma irreconciliação própria.21 A senciência indicial das fotografias é combinada e amplificada pela escritura formal de Weefur como um estado além da morte. Em três sequências recorrentes, cada boneco se aproxima individualmente de um monitor em uma das paredes do modelo de edifício que projeta as circunstâncias de suas respectivas chegadas neste local. Esta é a sua vida. Esta é a sua morte. O monitor de Till mostra um close-up de sua foto de natal, um caixão levado por carregadores, a foto de um garoto destruído e um corpo que uma mãe não deixaria que fosse silenciado por soda cáustica e mentiras. O monitor da figura de Martin mostra as imagens de vigilância 17. Ver BAKER, Courtney. Humane Insight: Looking at Images of African American Suffering and Death. Urbana– Champaign: University of Illinois Press, 2015. 18. FLEETWOOD, Nicole R. Racial Icons: Blackness and the Public Imagination. New Brunswick: Rutgers University Press, 2015, pp. 16–17. 19. SCHWARTZ, Margaret. Dead Matter: The Meaning of Iconic Corpses. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2015, p. 60. 20. RAIFORD, Leigh. Imprisoned in a Luminous Glare: Photography and the African American Freedom Struggle. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2011, p. 4. 21. Ver BUTLER, Judith. Frames of War: When is Life Grievable? New York: Verso, 2009. N.T.: Tradução brasileira: BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: Quando a Vida é Passível de Luto? Tradução de Sérgio Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
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de suas compras de Skittles e um chá gelado da marca Arizona antes de voltar para casa e encontrar seu fim. Ele veste um capuz e, portanto, convida a um cenário letal de perfis em que “o capuz primeiro sinaliza uma possível ameaça e depois torna visível o possível criminoso”.22 Para a figura de Grant, o monitor reproduz as imagens de celular de seu assassinato na estação Fruitvale. A circulação viral do vídeo de Grant ocorreu, como em muitos outros casos em que gravações digitais de afro-americanos sendo assassinados pela polícia, na esperança de que a visão do ato em si pudesse ser uma verdade probatória que garantiria justiça.23 Esse arquivo visual representa os canais midiáticos do jornalismo impresso, das mídias sociais e da “contra-vigilância” dos registros digitais.24 As narrativas coletivas do trio demonstram os horrores cotidianos e sistêmicos da vida negra, não aqueles perpetrados pelo Destino, mas aqueles impostos por árbitros e executores aleatórios. Os três bonecos exibem tristeza, consolam-se, agitam-se com conversas e se unem numa comunhão dos mortos negros. A reunião deles sugere que os mortos negros precisam de mais do que moedas nas pálpebras para encontrar a paz (ou justiça) do outro lado. Os mortos negros podem atravessar com a ajuda daqueles que foram antes, dos roubados, como Claudia Rankine explica: “porque os homens brancos não são capazes de policiar sua imaginação, os homens negros estão morrendo”.25 Nos seus comentários finais sobre a antinegritude americana e sua representação na cultura visual e expressiva negra, Elizabeth Alexander acrescenta: “O que as pessoas fazem com suas histórias de horror? O que significa testemunhar no ato de assistir a uma narração? O que significa carregar a memória cultural na carne?”26 Dead Nigga BLVD. oferece uma proposição adicional: “O que significa para os mortos testemunharem suas próprias mortes?” Antes do início da sequência de créditos no fechamento do filme, aparece uma nota: Quando Isso Terminará? A animação com bonecos do filme, seu exercício da vida dos objetos negros, sugere uma resposta a essa pergunta, reconhecendo que o que distingue um boneco de uma pessoa, uma coisa de um sujeito, é uma questão de poder e não apenas de interpretação.27 Eu estava sendo demandada a fazer um filme de sonhos, mas eu estava tendo muitos pesadelos em torno da violência policial e essas eram as imagens em minha mente... O centro emocional do meu filme é uma mulher chamada Elizabeth Poles. Ela era uma mulher negra mais velha que se levantou um dia e simplesmente começou a andar. Ela estava andando numa estrada
22. NGUYEN, Mimi Thi. “The Hoodie as Sign, Screen, Expectation, and Force”. Signs, 40.4, Verão de 2015, p. 799. 23. Ver MALKOWSKI, Jennifer. Dying in Full Detail: Mortality and Digital Documentary. Durham: Duke University Press, 2017, p. 170. Ver JUHASZ, Alexandra. “How Do I (Not) Look? Live Feed Video and Viral Black Death,” Jstor Daily, 20 de julho de 2016. Disponível em: https://daily.jstor.org/how-do-i-not-look/. 24. Ver BROWN, Simone. Dark Matters: On the Surveillance of Blackness. Durham: Duke University Press, 2015. 25. RANKINE, Claudia. Citizen: An American Lyric. Minneapolis: Graywolf Press, 2014, p. 135. 26. ALEXANDER, Elizabeth. “‘Can You Be Black and Look at This?’: Reading the Rodney King Video(s)”. Public Culture, 7.1, 1994, p. 94. 27. Ver CHIN, Mel. Animacies: Biopolitics, Racial Mattering, and Queer Affect. Durham: Duke University Press, 2012, p. 210. Ver MCMILLAN, Uri. “Objecthood, Avatars, and the Limits of the Human”. GLQ: A Journal of Lesbian and Gay Studies 21.2/3, Junho de 2015, pp. 224-227.
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na Virgínia e tinha sido vista em vários estados, vestida de negro da cabeça aos pés, com uma bolsa preta e uma bengala. Havia um peso emocional nela, nesse momento desvairado, que ficou impregnado em mim.
Frances Bodomo28 “O racismo é a produção e a exploração de vulnerabilidades diferentes de grupos específicos à morte prematura, sejam elas sancionadas pelo Estado ou extrajudiciais.”29 Ruth Wilson Gilmore mapeia como as forças institucionais e não institucionais regulam, constroem e manobram as possibilidades de vida de grupos específicos, de acordo com suscetibilidades específicas. Essa é a lógica em jogo que pressiona em direção ao resultado da morte prematura. A irracionalidade brutal da antinegritude sempre prevê a ocasião do grotesco racial, o que, no cinema, invariavelmente significa considerar como a própria forma do filme encena a antinomia entre humano e não humano, entre pessoa e propriedade.30 O poder epistemológico gerado pelas representações do grotesco racial produz uma oposição direta à cultura visual antinegra.31 Everybody Dies!, de Frances Bodomo, encena uma lógica que carrega resultados inquietantes de absurdo e morte violentos na América.32 A palavra “PLAY” aparece no canto superior direito de uma tela azul. A imagem em tela cheia é suave e acompanhada por um ruído na trilha sonora. As linhas de rastreamento se espalham pela tela enquanto as imagens aparecem ao longo da parte superior e inferior do quadro, numa onda permanente de pedaços de óxido ausentes, um glitch à moda antiga, baseado na degradação da fita de vídeo, as memórias materiais de um colecionador fantasma. Num gesto em direção a uma mídia abandonada, a aparência do vídeo induz a uma nostalgia analógica.33 Um corte leva da tela azul até uma sequência de montagem com imagens de crianças negras brincando, seus rostos em expressões variadas, o título do programa organizado
28. BODOMO, Frances. (Comunicação pessoal). 30 de julho de 2017. Poles foi vista caminhando da Geórgia até Ohio ao longo de vários meses durante o verão de 2014. 29. GILMORE, Ruth Wilson. “Race and Globalization”. In: JOHNSTON, R. J. TAYLOR, Peter J. WATTS, Michael J. (eds). Geographies of Global Change: Remapping the World. Malden, MA: Blackwell, 2002, p. 26. 30. Ver BEST, Stephen. The Fugitive’s Properties: Law and the Poetics of Possession. Chicago: University of Chicago Press, 2010. Ver CASSUTO, Leonard. The Inhuman Race: The Racial Grotesque in American Literature and Culture. New York: Columbia University Press, 1997. 31. Ver GILLESPIE, Michael Boyce. Film Blackness: American Cinema and the Idea of Black Film. Durham: Duke University Press, 2016, pp. 17-49. Ver GILLESPIE, Michael Boyce. “Dirty Pretty Things: The Racial Grotesque and Contemporary Art”. In: MAUS, Derek. DONAHUE, Jim. Post-Soul Satire: Black Identity after Civil Rights. Jackson: University Press of Mississippi, 2014, pp. 68–84. 32. Everybody Dies! é um dos cinco curtas-metragens de cinco cineastas diferentes de Nova York que compõem a antologia Collective: Inconscious (2016). Cada cineasta (Daniel Patrick Carbone, Lauren Wolkstein, Josephine Decker, Lily Baldwin e Bodomo) compartilhou uma “descrição de sonho”, uma descrição muito breve de um sonho que eles tiveram, que foi então designado e adaptado por um dos outros cineastas. O filme de Bodomo é uma adaptação expansiva do sonho de Josephine Decker. 33. HILDERBRAND, Lucas. Inherent Vice: Bootleg Histories of Videotape and Copyright. Durham: Duke University Press, 2009, p. 6 e p. 13.
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para se parecer com um arco-íris e uma mulher negra com uma túnica preta e um grande xale preto na cabeça. Em um plano, ela segura uma foice. Em outro, ela fica ao lado de uma porta com a inscrição “MORTE”. Um locutor diz o texto de abertura do programa, sobre os ruídos de gritos e aplausos de crianças: “Da antecâmara da morte, seja bem-vindo a Todo Mundo Morre, seu portal para a vida após a morte, toda quinta às 8:30 da manhã. Veja como sua anfitriã, Tripa, a Estripadora, recebe os recém-mortos em seu novo lar. E agora, a estrela de Todo Mundo Morre, Tripa, A Estripadora!”. Tripa (Tonya Pinkins) está no palco, um proscênio improvisado com uma parede de serpentinas douradas como pano de fundo, um mapa dos Estados Unidos e o banner de arco-íris de Todo Mundo Morre pendendo de cima, e um microfone em um suporte conectado a um amplificador no chão. Uma legenda anuncia seu título oficial: Departamento da Morte Negra. Os adesivos nas portas que ficam à esquerda e à direita do palco simplesmente indicam: VIDA e MORTE. Uma bola de espelhos paira acima. Esta é a discoteca da morte. A baixa fidelidade dos valores de produção desse programa de televisão alude à programação da televisão aberta e sua comunidade pressuposta de um “nós”, mas, como sugerem os rostos da montagem inicial, este é um programa voltado para as crianças negras, seu público-alvo em todos os sentidos. O conceito do filme – um programa de televisão sobre crianças negras mortas sendo introduzidas à vida após a morte – é uma comédia absurda construída a partir da combinação entre uma emissão de TV aberta, um programa infantil e um game show. Com a descartabilidade negra apresentada como entretenimento, o grotesco racial fervilha de críticas às economias afetivas da morte negra. O filme produz um anacronismo cruel, uma incongruência entre o passado analógico e o horror cotidiano do presente futuro. No entanto, Everybody Dies! não é simplesmente uma reedição de um estilo antigo ou morto, uma vez que sua encenação dramatiza o impacto duradouro da antinegritude e da supremacia branca. “Você pode não estar pronto, mas eu estou pronta para você”, diz Tripa. Ela mantém seu sorriso por muito tempo, enquanto um xilofone a leva a cantar a música-tema do programa com a melodia de “Brilha, brilha, estrelinha”, uma canção de ninar que significa, aqui, algo mais profundo e permanente do que fazer dormir. Vocês sabem que vai acabar Não precisam nem tentar Podem chorar ou sofrer Todo mundo vai morrer Sou sua última e única amiga É assim que sua história termina Me dê a mão, vamos caminhar E esse mundo vamos deixar
“Você pode não estar pronto, mas eu estou pronta para você”, diz Tripa, enquanto lista as maneiras inesperadas de perecer: escorregar no chuveiro, ser atropelado por um carro ou sucumbir a uma doença súbita. A trajetória de estranhamento do filme aumenta
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com o som dos gritos das crianças, enquanto tiros apontam para um mapa que o locutor declara ser “O Mapa do Assassinato”. Vinculando uma cartografia da morte negra a uma aula de geografia cultural americana, o mapa entra em erupção com o piscar das lâmpadas vermelhas que sinalizam alguém recém expirado. Tripa puxa seu microfone de cabeça enquanto seu tom muda de formal para desvairado, e ela começa a sair do roteiro: “Você pode estar fugindo da polícia. Você pode estar fugindo de um estranho que pensa que ele é a polícia. Você pode estar brincando com uma arma de brinquedo. Você pode não estar vendendo cigarros”. Ela adiciona novas letras à música-tema: Todo mundo vai morrer Ela e ele e você e você Cuidado com o atropelo Especialmente se você é negro
Aparentemente, uma decisão executiva é tomada a partir da sala de controle do estúdio, a tela é tomada por barras coloridas e aparece uma mensagem: “Por favor, aguarde. Estamos enfrentando dificuldades técnicas”. Michael Brown. Trayvon Martin. John Crawford III. Tamir Rice. Eric Garner. Eles são os assassinados a quem Tripa alude em seu desvio do roteiro, complementando a litania de circunstâncias acidentais com incidentes de intenção fatal e deliberada. Existem os fatos naturais e existem os atos cruéis. Numa variante arrepiante do jogo de carnaval conhecido como caça à toupeira, um segmento CAÇA À ALMA se abre com uma foto estática de um jovem garoto negro, com a legenda “DeShawn Matthews. Delinquente juvenil”. Segue-se um corte seco para uma mão ensanguentada disparando dardos em uma sacola, depois um grito e, em seguida, um corte para Tripa se curvando e golpeando a sacola com uma frigideira de metal. Quando a sacola está parada, ela se levanta e diz: “É assim que você caça uma alma”. Ela então se esforça enquanto arrasta a sacola pela porta marcada MORTE. No segmento intitulado “Captura de hoje”, Tripa pergunta a cinco crianças negras: “Qual é a resposta certa?”. As crianças respondem com: “quarenta e oito anos”, “caramujo”, “Nova Jersey”, “12h30” e “basquete”. Tripa responde: “Ohhhh, crianças. Essas respostas estão erradas. A morte é a resposta certa, porque todo mundo morre!” As crianças gritam enquanto são empurradas, puxadas e arrastadas pelo portal da MORTE. Não há lógica para explicar suas mortes. Tripa está tendo um dia ruim em seu trabalho, que não tem a glória e a elegância de seu mítico antecessor, Charon. Ela tenta sair e escapar de seu papel, mas está tão presa na armadilha quanto as crianças. Ela corre pela porta da MORTE apenas para chegar de volta à porta da VIDA. Tripa é uma mera marionete do Departamento da Morte Negra, o rosto institucional de uma burocracia maior fora da tela. Tripa é apenas uma trabalhadora, não uma gerente, não uma executiva e, certamente, não uma integrante do conselho. O papel de Tripa como uma pastora sisifiana do passado/presente/futuro invoca uma longa história de jogos mortais nos quais o show deve continuar. O ciclo vicioso da forma do programa produz significado para a incessante morte negra. No final, Tripa
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tenta cantar a canção de ninar novamente, mas agora seu sorriso treme enquanto ela chora. A voz de um locutor direciona abruptamente os espectadores para o próximo ciclo. “Isso é tudo, pessoal, no episódio desta semana. Sintonize na próxima semana, e vamos começar tudo de novo!”. Corte seco para o preto. Nesse espaço de nada, ouvimos o som de uma inspiração aguda, o som de alguém surpreso – ou arrebatado. Jogando com uma relíquia VHS de um tempo sem esperança, no qual vidas negras não importavam, Everybody Dies! é um programa infantil para crianças que nunca são codificadas como crianças. EJETAR. Você abre esta porta com a chave da imaginação. Além dela está outra dimensão – uma dimensão de som, uma dimensão de visão, uma dimensão da mente. Você está entrando numa terra de sombra e substância, de coisas e ideias. Você acaba de chegar Além da Imaginação.
Rod Serling34 O tipo de crítica especulativa de Rod Serling em Além da Imaginação (The Twilight Zone, CBS, 1959-1964) operava consistentemente ao longo de um arco temático que incluía estranhamento, ironia, deus ex machina ou simplesmente justiça poética. Não há tempo suficiente; nós deixamos o diabo livre. Nós não acreditamos em desejos; nós nos afastamos de um sol que não veio. Nós estamos mortos. Parte do significado duradouro de Além da Imaginação está nas maneiras pelas quais a série de televisão representou o tempo. A ficção especulativa geralmente se concentra em medir as condições do presente através de uma escavação dos restos do amanhã, que distende as lógicas temporais e epistemológicas da narrativa e da historiografia. Consequentemente, as ficções especulativas negras promovem prodigiosas encenações da vida política, das memórias culturais, das capacidades expressivas e visuais e das texturas historiográficas da negritude. O afrofuturismo opera como um princípio organizador e uma narratividade crítica da tradição especulativa negra e de suas “possibilidades de intervenção dentro da dimensão do preditivo, do projetado, do proléptico, do previsto, do virtual, do antecipatório e do futuro condicional”.35 Isso é o que Kodwo Eshun chama de possibilidades “cronopolíticas” do afrofuturismo, como um modo artístico de resistência que concebe o tempo como o cerne gerador da fabulação cultural e política. Digo às pessoas que, no instante em que fomos colocados nos navios negreiros, já estávamos vivendo no mundo do Branco. Qualquer coisa que pudesse ser extraída de nós – nossas almas, nosso próprio ser – foi tomada e transformada em mercadoria.
34. Narração de abertura da quarta e quinta temporadas de Além da Imaginação (The Twilight Zone, CBS, 1959–1964). 35. ESHUN, Kodwo. “Further Considerations on Afrofuturism”. CR: The New Centennial Review, 3. 2, Verão de 2003, p. 293.
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Sayeeda Clarke36 Em White, de A. Sayeeda Clarke, Além da Imaginação é reinventado em uma chave especulativa negra. O filme fez parte da segunda temporada de FutureStates (201014), uma iniciativa de websérie inspirada em Além da Imaginação, desenvolvida pelo Independent Television Service (ITVS) para apoiar e financiar o cinema independente em uma plataforma alternativa conduzida por cineastas independentes (“prognosticadores”), selecionados para “explorar possíveis cenários futuros através das lentes das realidades globais de hoje”.37 Com uma paleta estética inspirada tanto em Um Dia de Cão (Sidney Lumet, 1975) como em Filhos da Esperança (Alfonso Cuarón, 2006), White abre com a cena de um homem negro andando de bicicleta pela rua. O nome dele é Bato (Elvis Nolasco). Ativista comunitário, ele grita “Nem uma gota!”, enquanto entra pelas ruas ladeadas pelo mercado. Não há carros. Uma transmissão de rádio envia notícias e celebra o feriado. Esta é a cidade de Nova York cinco dias antes do natal, em um dia típico sob uma temperatura de 48 graus. Bato chega ao centro comunitário onde trabalha. Ao entrar, ele rasga panfletos que dizem: “PRECISA DE CA$H RÁPIDO. HÁ UMA RESPOSTA FÁCIL: EXTRAÇÃO. TRANSFORME COR EM CA$H.” Corta para o interior e uma sala cheia de crianças desenvolvendo projetos de arte. A sala é decorada com ilustrações de Emory Douglas, desenhos de James Baldwin e Jean-Michel Basquiat, um letreiro “Happy Kwanzaa” e uma pintura de uma menorá. Enquanto as crianças juntam suas coisas para ir embora, uma jovem fica para trás em sua mesa de desenho. Quando Bato pergunta o que está errado, ela responde: “Meu pai fez isso”. Bato faz uma pausa. “É um apagão”, ele diz, enquanto pega a mão dela, toca sua pele e diz: “Você sempre terá a herança dele em você”. Bato é chamado em casa. Sua parceira, no último mês de gravidez, está prestes a entrar em trabalho de parto e precisa de atenção médica. Eles não têm recursos para a taxa de inscrição da clínica. Precisando encontrar dinheiro imediatamente, Bato sai apressado, mas não antes que sua sogra lhe diga solenemente: “Você sabe o que eles levarão ao invés disso”. O cofre do centro comunitário está vazio, a tentativa de assalto à mão armada de Bato é frustrada. Sua única opção restante é então revelada. Bato entra em um Centro de Extração de Melanina, identificado por uma placa com um slogan tranquilizador: “Juntos podemos sobreviver ao sol”. Corta para a um consultório médico dentro do prédio, onde Bato está de pé na frente de um mapa do mundo em vários tons de marrom, com a legenda: Distribuição de Cores da Pele Humana. Bato fica pensativo enquanto olha para um formulário de consentimento. Perguntado sobre sua raça por um funcionário, Bato responde: “Negro. Porto-riquenho negro.” O técnico diz a ele que, após o procedimento, seu status oficial será “desmelanizado”. A cena final do filme é a de Bato chegando em casa a tempo do nascimento de sua filha. Seus
36. CLARKE, A. Sayeeda (Comunicação pessoal). 4 de agosto de 2017. 37. “FutureStates”. Pbs.org, 2017, Disponível em: www.pbs.org/show/futurestates/.
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braços cinzentos, desmelanizados, seguram sua bebê recém-nascida, rica em melanina. O choro da criança continua audível quando a tela fica preta. Com o conceito de uma camada de ozônio severamente comprometida, White ressoa como uma forma daquilo que Selmin Kara chamou de “Antropocinema”. Para Kara, esse termo refere-se a um cinema que “em vez de focar nas causas de nossa morte ecológica... nos coloca frente a frente com os efeitos da chamada Era do Homem, ou Anropoceno, incluindo a possibilidade de um colapso ecossistêmico total ou de uma auto-aniquilação humana.”38 A ciência e as teorias da adaptação sustentam que pessoas de pigmentação escura, com níveis mais altos de melanina, toleram melhor a exposição sustentada e elevada à radiação ultravioleta, em comparação às pessoas de pele mais clara, com baixo nível de melanina.39 Assim, no futuro de White, a melanina circula como um remédio exclusivo e eficaz para a crise ecossistêmica de maior suscetibilidade, uma mercadoria comprada de pessoas de cor a uma taxa fixa para ser graduada, refinada e vendida lucrativamente para brancos ricos, agora conhecidos como “pessoas com deficiência de melanina”. Clarke cria um conceito eco-fanoniano de adaptação às mudanças climáticas, pelo qual a epidermalização é reformulada como um processo industrial de tecnologia de extração de melanina e capital financeiro. Esse comércio de pele diz respeito às políticas climáticas, à sustentabilidade e às iniciativas ecológicas. Em White, o “desmelanizado” é desprovido de herança e autobiografia, esfolado e abandonado como um recurso esgotado.40 O slogan de Bato (“Nem uma gota”) reverte a “regra de uma gota de sangue” do período Jim Crow e sua retórica baseada no medo da miscigenação e nas fantasias de pureza. Em White, essas gotas se tornam uma moeda em um clima de antinegritude financeira e preços segundo a escala pantone: Nozes Negras. Mocha de Chocolate, Amêndoa Queimada no 9.41 Sara Ahmed sugere que a pele funciona como uma fronteira de sentimento e um limiar afetivo entre interioridade (o sujeito) e exterioridade (o outro), mas no caso de White, Bato é um corpo sem fronteiras ou opções.42 A análise de Hortense Spillers sobre gênero e o comércio transatlântico de escravos, no qual os corpos eram transformados em carne, é crucial para a compreensão de White. Para Spillers, a “lucrativa ‘atomização’ do corpo em cativeiro fornece outro ângulo para pensar sobre a carne dividida...
38. KARA, Selmin. “Anthropocenema: Cinema in the Age of Mass Extinctions”. In: DENSON, Shane. LEYDA, Julia. (eds). Post-Cinema: Theorizing 21st Century Film. Falmer: REFRAME Books, 2016, p. 770. Considerações sobre o status epocal do Antropoceno requerem atenção ao comércio escravagista transatlântico, ao genocídio e à supremacia branca. Ver LUCIANO, Dana. “The Inhuman Anthropocene”. Avidly, um canal da Los Angeles Review of Books, 22 de março de 2015. Disponível em: http://avidly.lareviewofbooks.org/2015/03/22/the-inhumananthropocene/. Ver MIRZOEFF, Nicholas. “It’s Not The Anthropocene, It’s The White Supremacy Scene, Or, The Geological Color Line”. In: GRUSIN, Richard (ed). After Extinction. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2018. 39. JABLONSKI, Nina G. Skin: A Natural History. Berkeley: University of California Press, 2013, p. 83. 40. Ver PROSSER, Jay. “Skin Memories”. In: AHMED, Sara. STACEY, Jackie. Thinking Through the Skin. New York: Routledge, 2001, 52-68. 41. Ver o “Humanae Project”, de Angélica Dass. Disponível em: www.angelicadass.com/humanae-workin-progress. 42. AHMED, Sara. Strange Encounters: Embodied Others in PostColoniality. New York: Routledge, 2000, pp. 44–45.
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os procedimentos adotados para a carne em cativeiro demarcam uma objetificação total, pois toda a comunidade cativa se torna um laboratório vivo.”43 O emaranhado de ciência, finanças e personalidade no laboratório vivo do filme significa a “fungibilidade da mercadoria” durante a escravidão e suas vidas posteriores.44 “Juntos podemos sobreviver ao sol”. O futuro da ecopolítica previsto por White é aquele em que raça e classe se tornam opções mais acessíveis do que qualquer esforço de adaptação ou mitigação das mudanças climáticas.45 “Nós” não sofreremos igualmente. Os negros e pardos são vulneráveis a algo mais que o sol quando o acesso à assistência médica, a falta de emprego e os credores predatórios se tornam acessórios em um processo de colheita. Bato inicialmente atribui o valor da pele a uma herança cultural e histórica, mas o valor de mercado da pele anula essa garantia de herança. Seu próprio esgotamento e obsolescência sinalizam um apagamento total, uma morte social.46 Com concepções distintas e convincentes sobre a morte negra, esses três curtas-metragens estão profundamente localizados em seu momento americano contemporâneo. Pensar com esses filmes envolve pensar através dos objetos performativos, do grotesco racial e do futuro da exclusão social. Juntos, esses filmes suspendem, promovem rupturas e perturbam, constituindo historiografias e estratégias visuais distintas. Dead Nigga BLVD., com sua articulação em stop-motion dos mortos, reúne três narrativas históricas para demonstrar um agravante arco de injustiça. Everybody Dies! se apropria dos estilos mortos de um game show infantil de televisão aberta para considerar a frequência enlouquecedora e o acúmulo da injustiça violenta. A encenação do afrofuturismo em White, como uma modalidade de vida após a morte da escravidão, reconsidera os efeitos desiguais da crise global. Como um cinema na vigília, esses filmes são perturbados por incitações da forma fílmica, materialidades, temporalidades e concepções do ser negro. Porém, ainda mais importante, pensar sobre a morte negra através da experimentação formal e das capacidades críticas desses trabalhos é enfrentar uma urgência duradoura: a precariedade da vida negra.
43. SPILLERS, Hortense. “‘Mama’s Baby, Papa’s Maybe’: An American Grammar Book”. In: Black, White, and in Color: Essays on American Literature and Culture. Chicago: University of Chicago Press, 2003, p. 208. 44. HARTMAN, Saidiya. Scenes of Subjection: Terror, Slavery, and Self-Making in Nineteenth-Century America. New York: Oxford University Press, 1997, p. 21. 45. Sou muito grato a Harold Perkins por seus pensamentos sobre White e o futuro da adaptação à mudança climática. (Comunicação pessoal). 14 de outubro de 2014. 46. No meu projeto mais amplo sobre a morte, agora em andamento, considero White e sua carne lucrativa em relação a outras obras de ficção especulativa e ficção científica, tendo como objeto a utilidade dos corpos negros e pardos. Isso inclui a adaptação de “The Space Traders”, de Derrick Bell, Cosmic Slop (Reggie Hudlin, 1994), Sleep Dealer, de Alex Rivera (2008), Transfer, de Damir Lukacevic (2010) e Corra! (Get Out, 2017), de Jordan Peele, juntamente com seus abundantes intertextos.
Dead Nigga BLVD (Leila Weefur, 2015)
Everybody Dies! (Frances Bodomo, 2016)
White (A. Sayeeda Clarke, 2011)
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A condição da vida negra é o luto1 Claudia Rankine2 Tradução: Roberto Romero
Uma amiga recentemente me disse que, quando ela deu à luz ao seu filho, antes de nomeá-lo, antes mesmo de amamentá-lo, seu primeiro pensamento foi: eu tenho que tirá-lo deste país. Nós duas rimos. Talvez nosso humor negro tenha a ver com a compreensão de que sair não era uma opção nem o desejo real. É assim a nossa vida. Aqui trabalhamos, temos cidadania, pensões, seguro de saúde, família, amigos e assim por diante. Ela não poderia ir embora, ela não foi. Anos após seu nascimento, sempre que seu filho sai de casa, seu status de mãe de um ser humano permanece tão precário como sempre. Somado aos medos naturais de todos os pais que enfrentam a aleatoriedade da vida, há ainda o conhecimento das maneiras pelas quais o racismo institucional funciona em nosso país. O nosso riso foi o riso da vulnerabilidade, do medo, da identificação e de uma estagnação absurda. Perguntei a outra amiga como é ser mãe de um filho negro. “A condição da vida negra é o luto”, ela disse sem rodeios. Para ela, o luto habitava em tempo real a realidade dela e do filho: a qualquer momento ela pode perder a razão de viver. Embora a imaginação liberal branca goste de se sentir temporariamente mal com o sofrimento dos negros, não há realmente nenhum modo de empatia que possa replicar a tensão diária de saber que, como pessoa negra, você pode ser morto por simplesmente ser negro: sem as mãos nos bolsos, sem estar tocando música, sem movimentos bruscos, sem dirigir seu carro, sem andar à noite, sem andar de dia, sem entrar nesta rua, sem entrar neste prédio, sem se deitar no chão, sem estar aqui, sem estar ali, sem ficar parado, sem responder, sem usar armas de brinquedo, sem viver enquanto for preto. Onze dias depois que eu nasci, em 15 de setembro de 1963, quatro meninas negras foram mortas no atentado à bomba da Igreja Batista da Rua 16 em Birmingham, Alabama. Agora, 52 anos depois, seis mulheres negras e três homens negros foram baleados e mortos durante uma reunião de estudo da Bíblia na histórica Igreja Episcopal Metodista Africana de Emanuel em Charleston, SC. Eles foram mortos por um terrorista doméstico, identificado como um supremacista branco, que também pode ser um “jovem perturbado”
1. Originalmente publicado no jornal The New York Times, em 22 de Junho de 2015. 2. Claudia Rankine é professora de inglês em Pomona College. É autora de cinco coletâneas de poemas, incluindo, mais recentemente, Citizen.
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(como várias agências de notícias o descreveram). Foi relatado que uma mulher negra e sua neta de 5 anos sobreviveram ao tiroteio por terem se fingido de mortas. Elas são duas dos três sobreviventes do ataque. A família branca do suspeito diz que para eles esse é um momento difícil. Isso é indiscutível. Mas para as famílias afro-americanas, essa vida em um estado de luto e medo permanece lugar-comum. O espetáculo do tiroteio sugere um evento fora do tempo, como se o assassinato de negros com justificativa supremacista branca interrompesse qualquer coisa que não fosse a programação regular da televisão. Mas Dylann Storm Roof não se criou do nada. Ele cresceu com a retórica e a orientação do racismo. Ele viu homens brancos como Benjamin F. Haskell, Thomas Gleason e Michael Jacques se declararem culpados ou condenados por queimarem a Igreja de Deus da Macedônia em Cristo em Springfield, Massachusetts, apenas algumas horas após a eleição do Presidente Obama. Qualquer declaração racista que ele tenha feito, ele pode ter ouvido durante toda a sua vida. Ele, assim como o resto de nós, tem vivido cercado por corpos negros mortos. Vivemos em um país onde os americanos assimilam cadáveres em suas idas e vindas diárias. Negros mortos fazem parte da vida normal aqui. Morrendo em cascos de navios, jogados no Atlântico, pendurados em árvores, espancados, mortos a tiros em igrejas, mortos a tiros pela polícia ou alojados em prisões: historicamente, não há cotidiano sem o corpo negro escravizado, acorrentado ou morto para ser contemplado, para ouvir-se falar ou se posicionar contra. Quando os negros ficam sobrecarregados com a desordem da nossa cultura e protestam (em última análise, para nosso próprio prejuízo, porque o protesto justifica a militarização da polícia, como fizeram em Ferguson), a falsa questão é: que tipo de selvagens somos? Em vez de: em que tipo de país nós vivemos? Em 1955, quando o corpo mutilado e inchado de Emmett Till foi resgatado do rio Tallahatchie e colocado numa caixa de pinho fechada com pregos para o sepultamento, sua mãe, Mamie Till Mobley, exigiu que seu corpo fosse transportado do Mississippi, onde Till estava visitando parentes, para sua casa em Chicago. Depois que a funerária de Chicago recebeu o corpo, ela tomou uma decisão que abriria um novo caminho sobre como pensamos um corpo linchado. Ela pediu que o caixão fosse aberto e permitiu que tirassem e publicassem fotos do corpo desfigurado do seu filho morto. A recusa de Mobley em manter o luto pessoal em privado permitiu que um corpo que não significava nada para o sistema de justiça criminal se tornasse uma evidência. Ao colocar tanto o seu corpo quanto o do filho em posições de recusa em relação à etiqueta do luto, ela se “desidentificou” da tradição da figura linchada deixada à vista do público como um aviso para a comunidade negra, usando assim a tradição do linchamento contra si mesma. O espetáculo do corpo negro, em suas mãos, tornou pública a injustiça inscrita no cadáver de seu filho. “Deixe as pessoas verem o que eu vejo”, disse ela, acrescentando: “eu acredito que todo os Estados Unidos estão de luto comigo”. É muito improvável que sua crença num luto nacional tenha sido plenamente realizada, mas seu desejo de fazer com que o luto adentrasse o nosso dia-a-dia criava um novo tipo de lógica. Ao se recusar a desviar o olhar da carne de nossos assassinatos domésticos, insistindo em que olhemos com ela para os mortos, ela reformulou o luto como um
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método de reconhecimento que ajudou a energizar o movimento pelos direitos civis nas décadas de 1950 e 1960. A decisão de não divulgar fotos da cena do crime em Charleston, talvez por deferência às famílias dos mortos, não impede nosso luto. Mas, ao fazê-lo, os corpos que demonstram de maneira muito trágica que “a pele negra não é uma arma” (como dizia um pôster de protesto lido no ano passado) são transformados em abstração. Uma coisa é imaginar nove corpos negros sangrando no chão da igreja e outra coisa é vê-la. A falta de evidências visuais permanece em contraste com o que vimos em Ferguson, onde a polícia, em sua recusa em mover o corpo de Michael Brown, talvez tenha continuado, sem saber, onde a mãe de Till parou. Depois que Brown foi baleado seis vezes, duas delas na cabeça, seu corpo foi deixado de bruços na rua pelos policiais. Seja qual tenha sido o raciocínio deles, ao não mover o cadáver de Brown quatro horas após o assassinato, a polícia fez do luto por sua morte parte do que significava captar os detalhes de sua história. Ninguém poderia considerar os fatos da interação de Michael Brown com o policial de Ferguson, Darren Wilson, sem pensar no corpo cheio de balas sangrando no asfalto. Seria um erro presumir que todos que viram a imagem lamentaram Brown, mas uma vez exposta a ela, uma pessoa teve que decidir se seu corpo negro morto importava o suficiente para ser lamentado. (Outra opção, é claro, é que ela se torne um espetáculo para a pornografia branca: o corpo morto como um objeto que satisfaz um desejo ilícito. Talvez seja aqui que Dylann Storm Roof tenha entrado em cena). O Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), movimento fundado pelas ativistas Alicia Garza, Patrisse Cullors e Opal Tometi, começou com a premissa de que as experiências incomensuráveis do racismo sistêmico criam condições de jogo desiguais. A imaginação americana nunca foi capaz de se recuperar totalmente dos seus primórdios supremacistas brancos. Consequentemente, nossas leis e atitudes têm se esforçado contra a desvalorização do corpo negro. Apesar das boas intenções, as associações da negritude com a criminalidade bestial e desarticulada persistem sob a aparência da civilidade branca. Este pressuposto enquadra e determina nossas interações e experiências individuais como cidadãos. A tendência americana de normalizar as situações privilegiando a branquitude foi consciente ou inconscientemente demonstrada quando certos brancos, como o presidente do Smith College, procuraram alterar a linguagem do “Black Lives Matter” (Vidas Negras Importam) para o “All Lives Matter” (Todas as vidas importam). O que a princípio deveria ser interpretado como um movimento humanista – “não somos todos apenas pessoas aqui?” – não levou em conta um sistema habituado com cadáveres negros em nossos espaços públicos. Quando o juiz na audiência de Charleston com Dylann Storm Roof pediu apoio para a família de Roof, também foi uma mudança sutil para longe de valorizar o corpo negro em nosso tempo de profundo desespero. O racismo contra os negros está na cultura. Está nas nossas leis, nos nossos anúncios, nas nossas amizades, nas nossas cidades segregadas, nas nossas escolas, no nosso Congresso, nos nossos experimentos científicos, no nosso idioma, na Internet, nos nossos corpos (independentemente da raça), nas nossas comunidades e, o que talvez seja mais
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devastador, no nosso sistema de justiça. Os corpos negros desarmados e mortos nos espaços públicos transformam a tristeza em nosso sentimento cotidiano de que algo está errado em todos os lugares e o tempo todo, mesmo que localmente as coisas pareçam normais. Tomando café, passeando com o cachorro, lendo o jornal, pegando o elevador para o escritório, deixando as crianças na escola: toda essa vida boa é cercada pela sensação de que, a qualquer momento, uma pessoa negra está sendo morta no meio da rua ou em sua casa pelo ódio armado de um colega americano. O movimento Black Lives Matter pode ser lido como uma tentativa de continuar lamentando uma dinâmica aberta em nossa cultura, porque as vidas negras existem em um estado de precariedade. O luto então suporta tanto a vulnerabilidade inerente às vidas negras quanto a instabilidade em relação a um futuro para essas vidas. Ao contrário dos movimentos black power anteriores que tentavam lutar ou segregar para a autopreservação, o Black Lives Matter se alinha com os mortos, continua o luto e recusa o esquecimento diante de todos nós. Se o movimento pelos direitos civis do Reverendo Martin Luther King Jr. fez exigências que alteraram o curso das vidas americanas e as sustentou com a vontade de desistir de sua vida a serviço dos seus direitos civis, com o Black Lives Matter, mais mudanças internas estão sendo solicitadas: reconhecimento. A verdade, a meu ver, é que se homens e mulheres negros, meninos e meninas negros, importassem, se fôssemos vistos como viventes, não estaríamos morrendo simplesmente porque os brancos não gostam de nós. Nossas mortes dentro de um sistema racista existiam antes de nascermos. O legado dos corpos negros como propriedade e consequentemente como três quintos humanos continua a poluir a imaginação branca. Para gozar plenamente da nossa cidadania, nós precisamos não somente entender isso, mas também atingir isso. Nas palavras do dramaturgo Lorraine Hansberry: “o problema é que precisamos encontrar um meio com esses diálogos para mostrar e incentivar o liberal branco a deixar de ser liberal e se tornar um radical americano”. E, como meu amigo crítico e poeta Fred Moten escreveu: “eu acredito no mundo e quero estar nele. Quero estar nisso até o fim, porque acredito em outro mundo e quero estar nele”. Esse outro mundo, esse mundo, provavelmente seria aquele em que vidas negras importam. Mas não podemos chegar lá sem reconhecer profundamente o que está aqui. O ódio indisfarçável de Dylann Storm Roof por pessoas negras; Black Lives Matter; cidadãos gravando as mortes de negros; o Departamento de Polícia de Ferguson deixando o corpo de Brown na rua – todas essas ações apoiam a crença de Mamie Till Mobley de que precisamos ver ou ouvir a verdade. Precisamos da verdade de como os corpos morreram para interromper o curso da vida normal. Mas se manter os mortos à frente da nossa consciência é crucial para o nosso corpo político, o que dizer das famílias dos mortos? Como deve ser para um membro da família entender que o falecido é mais importante como evidência do que como indivíduo para ser enterrado e repousar? A mãe de Michael Brown, Lesley McSpadden, foi mantida afastada do corpo de seu filho porque era uma evidência. A ela foram negados os direitos de uma mãe, um fato triste que lembra os tempos anteriores à Guerra Civil, quando, como escrava, não teria direito legal a seus filhos. McSpadden soube de sua nova identidade como mãe de um filho morto a partir das testemunhas: “tinha algumas meninas lá em baixo que gravaram
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a coisa toda”, disse ela a repórteres. Uma garota, ela disse, “me mostrou uma foto em seu telefone. Ela disse: ‘esse não é seu filho?’, eu apenas gritei ainda mais. Só para ver isso, meu filho deitado sem vida, sem motivo aparente”. Circulando o perímetro ao redor do corpo do filho, McSpadden tentou dispersar a multidão: “tudo o que eu quero que eles façam é pegar meu bebê”. McSpadden, ao contrário de Mamie Till Mobley, parecia ter pouco desejo de expor o corpo de seu filho à mídia. Seu filho não era um corpo órfão para todo mundo ver. Ela queria que ele fosse coberto e removido da vista. Ele pertencia a ela, seu bebê. Depois que o cadáver de Brown foi finalmente levado, duas semanas se passaram antes que sua família pudesse vê-lo. Essa perda de controle e autoridade pode explicar porque, após a morte de Brown, McSpadden estava supostamente na posição precária de abordar ambulantes que vendiam camisetas exigindo justiça para Michael Brown, que usavam o nome de seu filho. Não foram apenas os procedimentos em torno do cadáver de seu filho; seu nome havia sido comoditizado e assimilado aos nossos modos de capitalismo. Alguns dos vizinhos de McSpadden em Ferguson também queriam criar uma distância entre eles e a vida pública da morte de Brown. Eles não precisavam de um lembrete constante de como os corpos negros não importam para os policiais no seu bairro. A pedido da comunidade, o memorial improvisado original – com flores, fotos, anotações e ursinhos de pelúcia – foi finalmente removido pelo pai de Brown no que seria seu aniversário e substituído por uma placa oficial instalada na calçada ao lado de onde Brown morreu. O lembrete permanente pode ser acionado ou ignorado, dependendo dos desejos do pedestre. Para ficar longe do local do assassinato de seu filho, Tamir Rice, Samaria saiu de sua casa em Cleveland e foi para um abrigo. (Sua família acabou mudando de lugar). “O mundo inteiro viu o mesmo vídeo que eu vi”, disse ela sobre Tamir sendo baleado por um policial. O vídeo, que foi exibido e reexibido na mídia, documentou os dois segundos que a polícia levou para chegar e atirar; os dois segundos que marcaram o fim da vida de seu filho e que se tornaram um documento a ser examinado por todos. É possível que esse escrutínio compartilhado explique por que a polícia reteve seu corpo de 12 anos durante seis meses após sua morte. Todos podiam ver o que a polícia teria que explicar. O sistema de justiça não foi capaz de fazê-lo, e um juiz encontrou uma causa provável para acusar o policial que matou Rice por assassinato. Enquanto isso, para Samaria Rice, a memória de seu filho desenterrado tornava seu bairro insuportável. Independente dos desejos dessas mães – mães de homens como Brown, John Crawford III ou Eric Garner, e também mães de mulheres e meninas como Rekia Boyd e Aiyana Stanley-Jones, cada um deles morto pela polícia – a morte de seus filhos irá permanecer nos discursos públicos. Para aqueles que acreditam que o mesmo comportamento que fez com que essas pessoas fossem mortas se exibido por um homem ou menino branco não teria encerrado suas vidas, o fracasso subsequente em indiciar ou condenar os policiais envolvidos nesses vários casos exige que o luto público continue e permaneça por tempo indeterminado. “Quero ver um policial atirar nas costas de um adolescente branco desarmado”, disse Toni Morrison em abril. Ela continuou: “quero ver um homem branco condenado por estuprar uma mulher negra. Então, quando você
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me perguntar: ‘acabou?’, eu direi que sim”. Morrison está certa ao sugerir que essa ação sinalizaria mudanças, mas a mudança real precisa ser uma reorientação da crença interior. É um desafio individual que precisa acontecer antes que qualquer ação de um sistema de justiça política signifique uma verdadeira mudança social. Os assassinatos em Charleston nos alertaram para o fato de que num sistema tão imerso no racismo qualquer dia pode ser temporada de caça aberta para qualquer pessoa negra – velha ou jovem, homem, mulher ou criança. Não existe realidade equivalente para os americanos brancos. A bandeira de batalha confederada continua a voar na sede da Carolina do Sul como um lembrete de uma história marcada por corpos negros linchados. Podemos nos distanciar desse fato até a próxima matança horrível, mas não conseguiremos superar isso. A autoridade da história sobre nós não se quebra mantendo um silêncio sobre seus efeitos contínuos. É necessário um estado permanente de luto nacional pelas vidas negras, a fim de apontar a sua inegável desvalorização. A esperança é que um tal reconhecimento rompa um movimento que as leis não conseguiram alterar. Susie Jackson; Sharonda Coleman-Singleton; DePayne Middleton-Doctor; Ethel Lee Lance; o Rev. Daniel Lee Simmons Sr .; a Rev. Clementa C. Pinckney; Cynthia Hurd; Tywanza Sanders e Myra Thompson foram assassinados por serem negros. É extraordinário o quão banal é para o nosso pesar se assentar neste fato. Uma amiga disse: “eu tenho tanto medo todos os dias”. A infância de seu filho parece impossível, porque ele terá que ter – tem que ter – muito mais cuidado. Nosso luto, este luto, está em sincronia com as nossas vidas. Não há vida fora da nossa realidade aqui. Isso é algo que pode ser visto e conhecido pelos pais de crianças brancas? Essa é a pergunta que me incomoda. O luto nacional, como preconizado pelo Black Lives Matter, é um modo de intervenção e interrupção que pode ser assimilado na categoria da perturbação pública. Isso é totalmente possível; mas também é possível reconhecer que falta um sentimento pelo outro que é o nosso problema. A tristeza, portanto, por esses mortos outros pode alinhar alguns de nós, pela primeira vez, com os vivos.
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Numa terra estranha: sobre Mãtãnãg, a encantada, uma animação de Shawara Maxakali e Charles Bicalho Roberto Romero1
A morte não existe para os mortos Carlos Drummond de Andrade
A história de Mãtãnãg, a encantada, é transmitida há gerações entre os Tikmũ’ũn, mais conhecidos como Maxakali, cerca de 2.000 pessoas vivendo em três terras indígenas no Vale do Mucuri (MG). Mãtãnãg foi uma mulher muito antiga que, inconformada com a morte do marido por uma picada de cobra, recusou-se a enterrá-lo e resolveu acompanhá-lo até a aldeia dos mortos. O caminho até lá é tortuoso: Mãtãnãg prepara beijús com a carne do marido morto e come para encantar-se e seguir os seus rastros. No percurso, uma série de desafios dificulta o seu caminho: o tronco de uma árvore que gira tentando impedir sua passagem sobre um rio; um mamoeiro que lança seus frutos; uma nuvem de gafanhotos ferozes, tudo parece feito para impedir a passagem dos vivos ao mundo dos mortos. Mas chegando lá, a surpresa: a aldeia dos mortos é habitada por espíritos e feras como onças, leões, elefantes e hipopótamos. Assustada e com saudades dos parentes do lado de cá, Mãtãnãg decide voltar, porém, sob uma condição: não contar nada do que viu para os vivos. Toda elaborada a partir do trabalho dos desenhistas tikmũ’ũn em Aldeia Verde (Ladainha, MG), Mãtãnãg, a encantada (2019), segunda animação de Charles Bicalho desta vez com a estreante Shawara Maxakali na direção e assessoria de Isael e Sueli Maxakali pode ser muito bem entendida como uma “transformação do mito”. Recentemente, Isael Maxakali explicava para uma plateia de professores da rede municipal de Belo Horizonte o conceito tikmũ’ũn de transformação:2 “Se eu fizer um desenho, eu vou formar, transformar, eu vou formar o desenho do bicho, aí fiz transformou, entenderam?”. Assim, este filme sobre um mito é, a seu modo, um mito. Uma variação do mito que
1. Roberto Romero é etnólogo, doutorando em Antropologia Social pelo Museu Nacional (UFRJ) e membro do Núcleo de Antropologia Simétrica (NanSi). Desenvolve pesquisa entre os Tikmũ’ũn (Maxakali) sobre os temas dos sonhos, das armadilhas, da doença e da cura. Desde 2009 é um dos organizadores do forumdoc.bh – festival do filme documentário e etnográfico de Belo Horizonte. 2. O conceito tikmũ’ũn de transformação, yãy hã mĩy, é tema da exposição coletiva Mundos Indígenas, com curadoria de Isael e Sueli Maxakali, entre outros, no Espaço de Conhecimento da UFMG.
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mais uma vez demonstra – agora através do cinema – sua capacidade aparentemente interminável de se transformar. Os Tikmũ’ũn contam muitas outras histórias em que os antigos atravessaram os limites deste mundo, indo ao encontro das terras estranhas onde habitam espíritos, mortos e povos-animais. Certa vez, um homem ingeriu a cabeça da larva do morotó kutekut, um poderoso alucinógeno usado pelos antigos, e cruzou uma comprida taquara até chegar no céu, onde foi ter com o seu cunhado morto, que vivia entre o povo urubu-rei. A certo ponto, os urubus farejaram a carniça de uma anta morta e prepararam-se para descer. Como ele não sabia voar, o cunhado o ajudou fincando penas nos seus braços e juntos eles saltaram do céu, descendo, voando. Aqui na terra, os parentes do homem que virou urubu-rei cantavam ao redor do seu corpo desfalecido, chamando o seu koxuk (alma) de volta. Ao descer com o bando de urubus, o homem ouviu os parentes e sentiu saudades. Decidiu voltar. Com o tempo, conforme os Tikmũ’ũn me contavam essas e outras histórias, comecei a perceber a profunda semelhança entre estes percursos dos antigos e aqueles que eles percorrem à noite, em seus sonhos. Os Tikmũ’ũn dizem que, durante a noite, enquanto dormem, o koxuk (alma) das pessoas deixa os seus corpos e perambulam por aí, muitas vezes indo parar, como Mãtãnãg, nas aldeias distantes onde vivem os seus parentes mortos. Chegando lá, eles são invariavelmente recebidos com tentadoras ofertas de comida. Os pajés ensinam que o koxuk viajante deve recusar, mas sempre tem quem se esqueça disso durante o sonho. O problema é que quem partilha da comida dos mortos tende a se identificar com eles, a se “acostumar” – como dizem em português – com o lado de lá... Quem desperta de um sonho assim, não costuma passar bem. Acorda cansado, preguiçoso, sem vontade de fazer nada, o que os Tikmũ’ũn encaram com enorme preocupação. Confirmada a doença, os parentes da pessoa convocam os pajés da aldeia para examiná-la e a primeira pergunta que fazem ao doente é: “com o que você sonhou?”. Só então os pajés decidem cuidadosamente o repertório de cantos que irão cantar para o doente, na tentativa de chamar de volta a sua alma, que se encontra como que dividida entre os vivos e os mortos. Como na história do homem que comeu kutekut, ouvindo os parentes daqui, espera-se que o koxuk viajante sentirá saudades e voltará ao corpo que lhe pertence. A pessoa, então, estará curada. Enquanto realizava seu trabalho de campo entre os Piro, na Amazônia Peruana, o antropólogo escocês Peter Gow ouviu certa tarde a história de “um homem que viajou para dentro da terra”. Na história, um homem cansado de viver entre os seus parentes decide partir para a floresta até que encontra um buraco de onde saíam os porcos do mato. O homem entra no buraco e vai parar “do outro lado”, onde quase é morto num ataque dos porcos. Mas a dona dos porcos lhe devolve a vida e pergunta se ele gostaria de viver por lá, ao que ele responde “sim”. Ela então o veste com couro e pelos típicos dos habitantes daquele mundo. Após um tempo, porém, o homem sente saudades dos seus parentes “do lado de lá” e pede para voltar e chamá-los para junto de si. No retorno, porém, ele já não reconhece aquele mundo como antes: tudo é vermelho e por pouco ele não encontra o caminho da antiga casa. Chegando lá, tampouco sua esposa o aceita e apenas um dos seus filhos decide acompanhá-lo. Ao voltar ao mundo subterrâneo,
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o homem se casa novamente “com uma pequena porca do mato, talvez” – especula o narrador – e, quando é a vez do filho sentir saudades e querer voltar já é tarde demais: o buraco havia se fechado (GOW, 2001). Analisando este mito e a sua história, o antropólogo observa que, em muitos aspectos, a trajetória daquele homem confundia-se com a sua própria, um escocês que decide “abandonar” seus parentes para viver entre os Piro. Porém, mais do que isso, o mito, como o etnólogo demonstra, dizia também sobre como os Piro concebem a própria ideia de “morte”, as relações entre “vivos” e “mortos” e os modos particulares de relação com a alteridade e, em especial, com os “gringos” na história da região. Como concluía Artemio Gordón, seu compadre, pouco depois de ter-lhe narrado a história: “eu jamais poderia viver longe daqui. Seria como a morte. O que é a morte senão nunca mais ver os seus parentes de novo, sua mãe e seu pai?” (GOW, 2001; tradução minha). Se levarmos a sério a afirmação de Artemio ou aquilo o que os relatos tikmũ’ũn de sonhos e viagens – ou dos sonhos como viagens e vice-versa – parecem igualmente afirmar, então a “morte” não é, nestes contextos indígenas, uma questão de “vida ou morte”, mas um problema de gradiente de transformação ou de ponto de vista. Se, como definiu Tânia Stolze Lima, “o ponto de vista implica uma certa concepção, segundo a qual só existe mundo para alguém” (1996, p. 31), então não é exagerado afirmar que, nestes mundos, também só existe “morte” para alguém: para os vivos, notadamente. Como disse o poeta: “a morte não existe para os mortos”. A consequência disso é que estar vivo (e não morto) é muito mais uma questão de com quem e como quem alguém decide viver ou se aparentar – nos sentidos tanto de “parecer-se com” quanto de “tornar-se parente de”. Mesmo tendo atravessado para o “lado de lá”, Mãtãnãg, que viajou de corpo e alma para a aldeia dos mortos, não é capaz de se identificar com os moradores dali: suas axilas não projetam raios como as das mulheres-espírito, ela não consegue pescar... Estivesse morta, possivelmente veria os habitantes da aldeia como gente, e não como espíritos, onças, elefantes e hipopótamos. O desajuste entre as perspectivas logo torna inviável a sua permanência entre eles e Mãtãnãg, com saudades dos parentes, decide voltar. O preço é o segredo que, uma vez rompido, é cobrado com a sua própria morte. Mas agora, ela diz ao final do filme, “estou igual ao meu marido e posso ficar com ele. E quando tiver um ritual na aldeia, eu vou junto entranhada nos cabelos das pessoas, como os espíritos yãmĩy costumam fazer”. Os mortos vão, mas sempre voltam.
Referências GOW, Peter. An amazonian myth and its history. Oxford, Oxford University Press, 2001. LIMA, Tânia Stolze. 1996. O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi. Mana, Rio de Janeiro, v.2, n.2, p. 21-47.
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O cinema e os ritos funerários Dogon em Sigui 1967-1973: Invenção da Palavra e da Morte (Jean Rouch e Germaine Dieterlen, 1981) Mateus Araújo1
Jean Rouch nunca chegou a se tornar uma autoridade antropológica em relação ao povo Dogon, que o encantou porém desde sua primeira visita ao seu país em 1946. Quatro anos mais tarde, ele voltou a visitá-lo, e fez ali seu primeiro filme sobre um rito funerário daquele povo, o curta Cemitérios na falésia, de 1950-1. Na década seguinte, voltaria a este universo, já credenciado por uma obra imponente de cineasta (que incluía filmes de impacto como Os Mestres Loucos, Eu um Negro, A Pirâmide Humana, Crônica de um Verão, Caça ao Leão com Arco e Gare du Nord) e por uma tese de doutorado de estado em antropologia defendida em 1952 na Sorbonne sobre a religião e a magia dos Songhay, sob a orientação de Marcel Griaule. De meados da década de 1960 aos inícios da de 1980, Rouch faria uma dúzia de filmes sobre ritos funerários dos Dogon, nove dos quais sobre o Sigui, um ciclo de cerimônias que eles organizam a cada 60 anos e se estende por sete anos consecutivos, em cada um numa cidade diferente do território Dogon, para celebrar e reviver a invenção do mundo, a doação da linguagem aos homens e a morte de seus ancestrais. À diferença de seu mestre comum Marcel Griaule (1898-1956), que se limitou a descrevê-las a partir de testemunhos dos próprios Dogon sobre o ciclo anterior de 1907-1913, Germaine Dieterlen e Jean Rouch tiveram a sorte de assistir de perto às cerimônias de 1967-1973 e, assim, de poder documentá-las numa série de oito filmes etnográficos de primeira importância: 1) Sigui année zéro (1966, 10’); 2) Sigui 1967: A Bigorna de Yougo [L’enclume de Yougo] (38’); 3) Sigui 1968: os Dançarinos de Tyogou [Les Danseurs de Tyogou] (26’); 4) Sigui 1969: A Caverna de Bongo (39’); 5) Sigui 1970:
1. Professor de teoria e história do cinema na ECA-USP. Organizou ou co-organizou os volumes Glauber Rocha / Nelson Rodrigues (Magic Cinéma, 2005), Jean Rouch 2009: Retrospectivas e Colóquios no Brasil (Balafon, 2010), Straub-Huillet (CCBB, 2012), Charles Chaplin (Fundação Clóvis Salgado, 2012), Jacques Rivette (CCBB, 2013), Godard inteiro ou o mundo em pedaços (CCBB/Heco, 2015), O cinema interior de Philippe Garrel (CCBB, 2018), Glauber Rocha: crítica esparsa e Glauber Rocha: O Nascimento dos deuses (Fundação Clóvis Salgado, 2019, no prelo).
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Os Clamores de Amani (36’); 6) Sigui 1971: A Duna de Idyeli (56’); 7) Sigui 1972: As Tangas de Yamé [Les Pagnes de Yamé] (52’); 8) Sigui 1973-4: O Abrigo da circuncisão [L’auvent de la Circoncision] (18’), este último reconstituindo em 1974 aspectos da cerimônia de 1973, que Rouch não conseguira filmar em virtude de uma seca severa que assolara a região. Com a exceção do primeiro da série, que precedeu o ciclo das cerimônias numa espécie de reconhecimento do terreno e contato inicial com algumas autoridades religiosas que o coordenariam nos anos seguintes,2 os sete outros filmes traziam uma estrutura relativamente parecida, com uma ou outra variante. As diferenças maiores estavam no de 1969 (o único comentado em over por Rouch a partir de texto escrito por Germaine Dieterlen) e no de 1974, cuja reconstituição parcial da cerimônia de 1973 não mobilizou a comunidade do povo Dogon, e se limitou a reencenar a itinerância de três de suas autoridades religiosas de vilarejo em vilarejo. De uma maneira geral, os filmes começavam mostrando as paisagens do lugar em que ocorreriam as cerimônias (os vilarejos de Yougo, Tyogou, Bongo, Amani, Idyeli, Yamé e Songo, respectivamente), para se concentrar em seguida nos seus preparativos imediatos, nos seus componentes materiais (roupas, paramentos, máscaras, pinturas, instrumentos musicais, bebidas rituais etc.) e no seu desenrolar festivo, diante do qual Rouch tendia a adotar uma postura humilde e discreta, contentando-se em registrar “ao rés do rito”, com câmera na mão e som direto, suas principais etapas, sem intervir no comentário verbal, sem legendar falas e cantos Dogon, sem inventar muito na montagem. Apesar desta contenção estética (ou por causa dela?), os documentos que daí resultam são preciosos, sem prejuízo da exuberância plástica de vários dos desfiles, das procissões e das danças mostradas. Este ciclo de filmes apresentava portanto um caráter eminentemente descritivo, como uma espécie de primeira organização do material que permitisse a Rouch e a Dieterlen (a verdadeira especialista da dupla em cultura e cosmologia Dogon, na linhagem de Griaule) ir estudando e elucidando progressivamente os ritos mostrados, com a ajuda incontornável de seus informantes e amigos nativos, com o auxílio dos textos referenciais do próprio Griaule, e com o feedback dos Dogon, a quem conseguiram mostrar num dado momento os filmes resultantes. Vendo e revendo as imagens com a ajuda de todos os interlocutores, os cineastas podiam ir assim completando as informações, identificando personagens e situações, decifrando simbologias inicialmente opacas, associando elementos que permaneceriam dispersos se as filmagens não permitissem fixá-los e compará-los a posteriori. Numa palavra, estes filmes não só constituíam preciosos documentos etnográficos como ajudavam a produzir conhecimento antropológico. Este trabalho paulatino, sempre em progresso, de exame e decifração propriamente cinematográficos dos ritos do Sigui encontra uma segunda sistematização no longa-metragem Sigui 1967-1973: Invenção da Palavra e da Morte [Invention de la Parole et de la Mort], finalizado em 1981 por Rouch e Dieterlen. Em pouco mais de duas horas, a montagem de Danièle Tessier condensa nele o que os cineastas julgam essencial das mais 2. Segundo uma ficha recente do CNC (VVAA. Jean Rouch, l’Homme-Cinéma: Découvrir les films de Jean Rouch, Paris, CNC, 2017, p.159), este filme teria uma duração original de 50’. Como só tive acesso a uma cópia em vídeo de 10’, suponho que o filme mostre muito mais coisa do que vi.
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de três horas dos oito episódios iniciais, inserindo ainda pontualmente cenas de pelo menos dois outros filmes de Rouch sobre ritos funerários Dogon, o já referido Cemitérios na Falésia (1950-1), e o maravilhoso Dama de Ambara (1974), uma das obras-primas da sua filmografia. Nesta montagem sintética, as sete etapas anuais do Sigui, de 1967 a 1973, aparecem recompostas em obediência à cronologia do seu desenrolar, ano a ano, emolduradas por um prólogo trazendo informações de caráter histórico sobre os Dogon, sua civilização, sua cosmologia e suas cerimônias, que ocuparão todo o filme, até que um desfecho retome imagens aéreas do país Dogon, e se refira ao próximo ciclo do Sigui em 2027. Se o prólogo evocava a história dos Dogon e a tradição ancestral do Sigui, o desfecho apontava para o seu futuro, vislumbrando seu próximo ciclo e fechando de modo simétrico o filme. Este assumia assim, em sua própria forma, o caráter de elo intermediário numa cadeia de transmissão daquela tradição ancestral, cuja vigência se deseja garantir. Num gesto cultural paradoxal, o cinema vem assim assumir a função do Griot, substituindo o relato oral do narrador tradicional por um complexo dispositivo audiovisual que procura assegurar a transmissão da experiência cosmológica dos Dogon. Esta parecia duplamente ameaçada: de um lado, pelo rolo compressor da civilização moderna – de que o cinema é ao mesmo tempo emblema e agente; de outro, pela própria ordem natural das coisas, evidenciada pelas mortes recentes do velho Anaï Dolo (1848-1971), do Hogon de Sanga e de Ambara Dolo, ancestrais Dogon e guardiães de sua memória coletiva, cujos funerais Rouch filmou respectivamente em Funerais em Bongo - O Velho Anaï (1972), O Enterro do Hogon (1972-3) e O Dama de Ambara (1974-80). A exemplo do que já ocorria neste último filme, a transmissão da memória dos Dogon encontra eco e paralelo, em Sigui Síntese, numa segunda transmissão, esta concernindo a comunidade do próprio Rouch. Seu comentário over, que atravessa o filme do início ao fim, com algumas pausas no miolo, configura a transmissão em ato de um saber antropológico sobre os Dogon, de Griaule a Dieterlen, e desta a Rouch. Sua voz interage com as vozes dos Dogon (nunca legendadas), os sons da sua vida comum, as músicas das suas cerimônias (cantos, percussões etc.) e a força de suas falas rituais, que Rouch traduz e recita com sua típica entonação encantatória. O texto apresenta a civilização dos Dogon, descreve as suas cerimônias que vemos, relata a experiência concreta dos cineastas ao filmá-las, invoca a respeito delas os ensinamentos de Griaule e instaura os de Dieterlen, amparados em pesquisas de longa data mas resultantes também de novas pesquisas ajudadas pelos informantes Ambara Dolo, Amadigné Dolo, Diamgouno Dolo e Youssouf Tata Cissé. Desta síntese de imagens e sons compósitos e entrelaçados, o resultado é um experimento antropológico de rara pregnância.
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Quem cala sobre teu corpo, consente na tua morte Fabio Rodrigues Filho1
Um grito rompe o breu do plano, como estas palavras querem romper a palidez da página. Uma mulher em trabalho de parto numa cela coloca sozinha um filho no mundo, e a sombra de um policial vistoria por função a dor da detenta, mas logo lhe dá as costas. Frieza maior do que a morte é a do matar. O enquadramento nos faz ver de fora da cela, nos ata por dentro e nos segura diante da cena. Perante os gritos que suplicam ajuda, ser espectador parece pouco, não dar as costas já é muito. Ela é um corpo, ele uma sombra que se quer totalitária. Seu rosto? Uma mão branca que segura uma tornozeleira de controle e que, por sua vez, sobreidentificará o destino daquela criança que nem nome ainda tem (nem sequer título do filme apareceu). Parto dos primeiros instantes de Chico (Irmãos Carvalho, 2016) para falar das mães neste conjunto de filmes, ou melhor seria dizer: falar de dar à luz, dar/inaugurar a vida apesar ou na iminência da morte que ronda – tarefa próxima à elementar função das imagens. As primeiras palavras em Pontes sobre Abismos são: “vejo uma mãe”, quando apenas vemos um rosto se multiplicar. Em Apelo, são os passos de Débora Maria da Silva, uma das integrantes do movimento Mães de Maio que, logo do acompanhá-la ao longe andando no desterro, nos encontramos frente a frente à sua interpelação: “foram nossos filhos que morreram indigente”. Não esqueçamos, o direito ao nome foi um dos primeiros usurpados pela empreitada colonial. Entre aquele condenado antes mesmo de ter um nome (e apresentar um rosto), e os tantos que foram mortos sem direito à sepultura, lápide, ou mesmo um corpo para enterrar... sem direito, enfim, a um nome, o direito e o dever da memória se estende e se complica. Como lembrar daquilo que não se pode nomear? Como lembrar daquilo em que o corte brusco da morte matada se impôs com tal requinte de crueldade, com tal força de interrupção da juventude, que faz a vida ter parecido morte, e morrer o que marca o corpo? As mães se apresentam aqui em primeiro momento para lembrar, como diz Débora: “eles viveram! (...) Nós demos à luz, nós demos a vida, e isso nós não vamos esquecer”. Antes de mortos, vidas interrompidas.
1. Atua em curadoria, montagem e design para cinema. Mestrando em Comunicação na UFMG, é membro do Poéticas da Experiência e do Áfricas nas Artes (Cahl/UFRB). Escreve para o blog pessoal Tocar o Cinema.
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O ano é 2029, amanhã é o aniversário de Chico, mas a comemoração será hoje. Bolo feito pela mãe, mas comemorado pela avó – tal como parido pela segunda, e carregado pela primeira. Poderíamos pensar a recente produção do Cinema Negro no Brasil a partir das recorrentes cenas de aniversário nos filmes, e logo reconheceríamos neste aspecto comum o quanto a felicidade do negro é uma felicidade guerreira, como bem canta Gilberto Gil. Nas entrelinhas da celebração, no subtexto da canção de parabéns, o reconhecimento de mais um ano vivo frente à guerra genocida que é o racismo. Parece-nos, no entanto, que o pedido ao assoprar a vela, não das personagens, mas dos próprios filmes, é o mesmo. Em Chico, foi preciso adiantar o aniversário sob pena de faltar o aniversariante a sua festa. É na catástrofe política, na guerra anunciada, que uma mãe sonda o impossível e solda a possibilidade de libertar para além da polícia, da moral, da política, do menino Jesus, e da ficção aquela criança – paradigma do humano, verdadeira pátria trucidada em continnum pela ordem e progresso que estampa a imagem e o discurso nacional. A mãe entrega ao filho um presente que nem ele mesmo pode ver, entrega-lhe a imensa vontade que ele permaneça vivo, que o amanhã lhe seja um direito. Nós espectadores vemos, testemunhamos seu nascimento, sabemos do destino que lhe aguarda e lemos nas entrelinhas do ríspido falar da mãe, na violência do gesto que o amarra na pipa, uma fagulha de amor revolucionário negar a morte matada e o destino imposto. Esta fagulha, que durante o filme faz com que a mãe construa a máquina-pipa que o fará livre, para ao final empiná-la, toca o real não só por uma suposta verdade dos corpos filmados, mas por uma espécie de festa da imaginação, ou se preferirmos, um incêndio, ardor da imaginação que reabre a utopia. Haveria aqui uma modalidade de imagem que se apresenta pelo gesto e olhar da mãe que o espelha, que seria: imagens que enchem nossos olhos de água. Choremos pra ver se irriga os campos desolados pela guerra genocida em curso neste país, dentro e fora do filme. Como filmar algo que já por si fere nossos olhos? Se em Chico o tremor da câmera, a inscrição do humano que a segura e lhe confere humanidade a faz próxima e implicada na dor que se mostra, a câmera que vê, em Apelo (Clara Ianni e Débora da Silva, 2014), a câmera que olha desliza e parece facilmente driblar as covas, lápides e entulhos. Mas é a voz e o discurso de Débora Silva que, sem titubear, impede que façamos uma visita passageira por sua história de vida (dela e de tantas outras pessoas), mostrada aberta como uma ferida que não para de doer porque desprezada e permeada de injustiça. Ferida histórica, trauma brasileiro, como diz Castiel Vitorino Brasileiro (2019). Sangue derramado, sangue nosso que, como fala Débora, rega essa terra, “sangue nosso que dá de beber à lavoura e dá liga aos cimentos a cada nova cidade”. Fora os trabalhadores do cemitério Dom Bosco que aparecem na cena final, Débora é a única pessoa que vemos na paisagem filmada, habitada por moscas, saúvas, e por um vazio imenso. Vazio não só pelas mortes que se acumulam ali, pela perda que nos olha em cada cova (em que a estaca que a identifica com um número sequer forma uma cruz), mas por ser aquele um cemitério que até pouco tempo era clandestino – sintoma de nossa história nacional, arco entre a ditadura militar de 64 e os dias de hoje. Em algum momento, vemos Débora proferir um discurso: “Não podemos ter medo, não podemos ter medo da bala, não podemos ter medo do açoite. Eles não vão viver alimentados do
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meu medo”. Se o cemitério foi sempre palco para narrar os horrores, é ali que uma mãe singulariza aquela história, num gesto de subjetivação e negação do medo. Porém, profere sua incisiva fala pro vazio de olhos e de ouvidos. Duplo dever nosso diante do depoimento de Débora. O primeiro exposto de modo eloquente na fala da própria personagem: “me ajude a barrar as rajadas das metralhadoras”; o segundo apontado dolorosamente pelo filme ao nosso olhar e a nossa escuta. Ser um espectador vivo diante daquela imagem e ter um nome reconhecido nos concerne uma função inalienável: “Temos que lembrar dos mortos, temos que lembrar dos nossos, esse é o dever dos vivos. Esse trabalho não é um trabalho perdido”. A mise-èn-scéne que em primeiro momento faz ela discursar ao vazio, para covas abertas ou preenchidas de uma dupla ausência, nos exige ser todos olhos e ouvidos, oferecer o mínimo: “não deixar que o grito se transforme numa palavra muda a ecoar pela paisagem”. Para respeitarmos Débora e sua dor incomensurável é preciso que acionemos uma espécie de olhar opositivo (HOOKS, 2019, p. 216) ao próprio filme, resistir ao corte que emudece o grito naquela paisagem que a câmera olha de modo niilista. Nossa mudez não pode se estender diante dessa imagem e, sobretudo, do chamado gritado de Débora. A eloquência do grito na cena ameaça se perder na ausência, no anonimato, na morte – dever de quem ver aquela mulher, oferecer um ouvido que escute e uma boca que grite. “Quem cala, morre contigo, mais morto que estás agora” é o desdobramento do alerta que faz o título deste texto e metáfora justa ao que devemos recusar diante do apelo daquela câmera. O dever exibido inverte a proposição lançada: trata-se mais aqui dos vivos e a câmera. O fogo do esquecimento ameaça os mortos e os vivos porque significa, aqui, a vitória do inimigo. E como bem escreveu Walter Benjamin em 1940, “o inimigo não tem cessado de vencer”. Se a imagem em alguma medida parece aderir ao desterro daquele cemitério, é a experiência e convocação de Débora que reacende o fogo. Fogo porque faz aparecer ali naquele lugar onde quiseram silêncio, anonimato e impunidade, voz, nomeação e presença. Onde se queria cinzas, ausência de rastros e a vitória da frieza do matar, emerge calor de não esquecer e brasa que volta a queimar. Fogo da convocação porque é a justiça do fogo, justiça sensível, mas não menos decisiva que está em jogo. Falo de justiça sensível, e gostaria de lembrar um fator básico que marca a nossa história, além do aprisionamento pelas próprias leis, o sistema escravocrata também significou um “longo processo de construção de incapacidade jurídica” (MBEMBE, 2018, p. 44). A perda do direito de recorrer aos tribunais, escreve Mbembe, “fez do negro uma não pessoa do ponto de vista jurídico” (2018, p. 45), aliás, tratava-se de um sistema legítimo e legitimado perante a lei. Inevitável a conexão com nosso tempo presente. É preciso que demos corpo e nome ao “você” que Débora convoca, mínimo gesto de humanidade e pacto pela marcha da justiça que não se fará pelo apagamento. Dualidade do fogo que aqui se apresenta: negar o fogo do esquecimento e realizar o fogo da justiça. Um segredo contado é uma espécie de fósforo que se acende e resguarda na sua intermitência de chama a possibilidade de incêndio, é isso que acontece em Pontes sobre Abismos (Aline Motta, 2017). Antes da morte, a avó conta para a neta o fato de nunca ter conhecido o pai. A história familiar dá a ver uma marca registrada da história nacional,
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mas o incêndio não está apenas em recolher as cinzas e tão somente encontrar o nome ausente da certidão de nascimento. A operação de justiça é muito mais complexa do que a inversão, ou tê-la como quebra-cabeça da qual a peça faltante uma vez encontrada resolveria a imagem por se completar. A verdade aqui não se contenta nem com o desvelar, nem o revelar, mas com o incêndio do véu, ao desmascarar o real – trazendo à tona a realidade que nos conforma. O tempo se embaraça na trança que Aline entretece. É nisso, pois, que a justiça que se esboça é sensível, ela não se acomoda aos limites jurídicos, mas sim ao cuidado com os vivos e os mortos, evoca-se as imagens, lava-se com água, quara-se no vento, como quem lava a história e solta-se dos vícios e lodos do poder. Ora, fazer justiça a história, as memórias, é uma possibilidade de descansar em paz. Se intitulei este modesto texto com um trecho da música Menino (1976), canção gritada por Milton Nascimento, e composta por ele e Ronaldo Bastos após o assassinato do estudante Edson Luís, em 1968, foi para não só chamar atenção à infeliz atualidade da canção, mas extrair do gesto (o que se canta e como se canta) alguma energia de luta, alguma palavra que, longe de resolver, nos acenda uma pequena vela – intermitente calor mas fundamento da prece, ponto de contato e de diálogo. Vela que nos ajudaria menos a analisar este conjunto de filmes, do que pensar nossa posição diante deles. Castiel Vitorino Brasileiro, a mesma que nos lembra em um dos seus filmes que “o grito é um canto” (e vice-versa), canta em Para todas as moças (2019) uma evocação: “se meu corpo é água de hibisco, quando eu virar vento serei chuva que irá fertilizar essa terra maldita, essa terra que me assassina”. Com a força dos elementos a justiça se fará, os segredos serão preservados, embarcações serão quebradas, nos ensina Castiel, tal como a fábula do leopardo, do amigo do fogo, em Pontes sobre Abismo, resguarda uma lição não apaziguada porque dual: a destruição pelo fogo é por vezes irreparável, mas deixa suas marcas em quem se relacionou com ele. Sendo canto o grito, é dever citar o inverso complementar do título: “quem grita, vive contigo”. Não é que podemos muito, mas cantar é uma forma, pois, de estarmos e gritarmos juntos e, sobretudo, um modo dos inimigos não viverem alimentados do nosso medo e, assim, não consentirmos a tantas mortes injustas que ameaçam o tempo inteiro nos calar.
Referências MBEMBE, Achile. O sujeito racial. In: Crítica da Razão Negra. Trad.: Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 Edições, 2018. Pág. 27-77. NASCIMENTO, M.; BASTOS, R. Menino. Rio de Janeiro: UMG (em nome de EMI Music Brasil Ltda), 1976. (2min46seg) BRASILEIRO, Castiel Vitorino. O trauma é brasileiro. [Entrevista concedida a] Diane Lima. Revista Contemporary And América Latina, 2019. Disponível em: <http://amlatina. contempo raryand.com/pt/editorial/trauma-brasileiro-castiel-vitorino/?fbclid=IwAR3XsLyNsU09LYGicYo f1zjsNSXSGJg51BgFMutEmv0EGibTUMlb90F_3gM>. Acesso em: 11 de outubro de 2019
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DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tocam o real. In: Revista Pós. Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), v.2, ed. nr. 4, 2012. HOOKS, bell. Olhar Opositivo: mulheres negras espectadoras. In: Olhares Negros: raça e representação. Trad.: Stephanie Borges. São Paulo: Editora Elefante, 2019. Pág. 214-240. BENJAMIN, W. Teses sobre o conceito de história. In: Magia e Técnica, Arte e Política ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas, volume I, 2ª edição, São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.
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Entrevista com Wang Bing1 Emmanuel Burdeau Tradução: Luis Fernando Moura
Emmanuel Burdeau: De onde surgiu seu interesse pela história da repressão no fim dos anos 1950 e 1960, contra aqueles que o governo chinês chamava de “os direitistas”? O que você sabia sobre esse período da história antes de começar a imensa pesquisa que resultou em Almas mortas? Wang Bing: Sem que eu fosse um especialista no assunto, sabia sim um pouco sobre ele. Por exemplo, eu sabia que dois dos irmãos do meu pai tinham sido acusados de ser direitistas. A mesma coisa aconteceu a outros habitantes do meu povoado. E na minha infância eu ouvia falar sobre esse momento particularmente sombrio da nossa história recente. Como eu, muita gente sabe sobre ele. Sabíamos que tinha havido uma repressão, que um grande número de pessoas tinha sido enviado para um campo de reeducação porque tinham escrito ou pronunciado uma única frase, ou por um detalhe, às vezes por absolutamente nada… Mas não sabíamos nada sobre a realidade desses campos e da vida lá. Não estávamos cientes da magnitude das remoções, das incontáveis mortes, da escala nacional do movimento antidireitista. Sabe-se pouco sobre tudo isso. A perspectiva das pessoas não ia além do alcance de uma família ou de um povoado. E.B.: A maior parte dos testemunhos incluídos em Almas mortas foi registrada em 2005. Por que você esperou doze anos para fazer este filme? W.B.: Eu estava ocupado com outros projetos, e com um filme de ficção, The Ditch, em particular, cuja realização impulsionou minha pesquisa sobre os direitistas. Em 2004, quando eu era um artista residente na Cinéfondation em Paris, li o livro de Yang Xianhui, Chronicles of Jiabiangou, que lida diretamente com a repressão a partir de testemunhos das vítimas. Imediatamente adquiri os direitos de adaptação do livro para o cinema. No final da minha residência, eu tinha escrito o roteiro do filme. O livro serviu como a base do filme, mas não era suficientemente detalhado no que diz respeito a locais e à vida nos campos. Para que fosse verdadeiramente completa, sua transposição para o cinema precisava de pesquisa aprofundada.
1.Trecho originalmente publicado no material promocional do filme Almas mortas no contexto do seu lançamento no Festival de Cannes em 2018. Cf.: “Excerpt from an interview with Wang Bing”: <http://grasshopperfilm.com/ wp-content/uploads/2018/07/DEAD-SOULS-Press-Kit_Icarus-Films-and-Grasshop per-Film-1.pdf>.
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No intuito de preencher as lacunas, e sem antes pensar em nada que não fosse realizar meu filme de ficção, saí em busca de outros testemunhos de pessoas que tinham vivido nos campos. Mas eu sou antes de tudo um documentarista: provavelmente é por isso que desde muito cedo tive a impressão de que havia um filme para ser feito destes relatos, ou ao menos a promessa de um filme. Logo comecei a pensar sobre realizar um documentário que compilasse o máximo possível de testemunhos de sobreviventes. Muito rapidamente notei que o projeto era de uma grande complexidade. Primeiramente porque vasta investigação era necessária. E, em segundo lugar, porque os recursos e o tempo requeridos para filmar em basicamente todas as regiões da China tinham que ser buscados. E então veio a questão mais importante: como exatamente o filme iria ser estruturado. Essa questão surgia naturalmente a cada entrevista, que eu tentava conduzir com uma visão geral do filme em mente, mas na realidade só encontrei a estrutura do filme depois de vasto trabalho de montagem. The Ditch foi finalizado em 2010. Em 2011, depois de ter filmado Três Irmãs, fiquei seriamente doente e tive que parar de trabalhar por um tempo. Eu então fiz Até que a loucura nos separe e foi apenas em 2014 que eu tive condições de começar a trabalhar em Almas mortas de novo. E.B.: Havia três campos: Jiabiangou, Mingshui, Xintiandun. Quais as diferenças entre eles? É importante fazer uma distinção entre eles ou eles faziam parte de um único complexo? W.B.: Jiabiangou era o nome do conjunto completo de campos de trabalho situados na província de Gansu. O complexo era formado pela unidade central de Jiabiangou, de Xintiandun, seu anexo situado a aproximadamente sete quilômetros da unidade principal e pelo campo de Mingshui aberto depois, no outono de 1960, quando a maioria dos direitistas de Jiabiangou já tinha morrido de cansaço e fome. E.B.: E, ainda assim, é esse último local que é anunciado quando o filme começa: “Minghsui, I”. Por que esse campo é tão importante? E por que você quis falar sobre esse campo primeiro quando, historicamente falando, foi o último campo a ser aberto? W.B.: Para responder sua questão, devo contar a você que, durante a montagem, eu não segui a ordem cronológica dos acontecimentos mas, antes, a ordem das entrevistas. E acontece que as primeiras entrevistas foram filmadas na cidade de Lanzhou, e essa cidade é localizada perto da região de Mingshui. Todos os testemunhos eram relacionados a esse campo e é por isso que ele é mencionado antes. E.B.: Por que essa maneira de estruturar o filme prevalece sobre uma reconstituição cronológica? W.B.: Uma reconstituição cronológica parecia mesmo mais lógica e mais fácil de compreender… mas não teria valorizado suficientemente os testemunhos, o que para mim era absolutamente essencial. O que todas essas pessoas têm em comum? Todas foram acusadas de ser direitistas, todas passaram por coisas horríveis, inimagináveis. E todas tinham em comum, é claro, o fato de que sobreviveram. Isso é o que fundamentalmente as distingue das milhares que nunca retornaram. Seus relatos são, portanto, muito pessoais. O foco delas está em descrever os campos e aqueles que morreram lá,
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mas acima de tudo elas revelam o que cada uma delas teve que fazer para permanecer viva, assim como as injustiças a que foram submetidas desde que foram classificadas como direitistas até sua reabilitação em 1978, o que não dissipou a marca que continuou a pesar sobre elas e suas famílias. No princípio, isso me surpreendeu um bocado e eu devo dizer que justo o aspecto pessoal dos relatos delas me incomodava um pouco. Eu tinha tido a impressão de estar o mais perto possível da verdade quando eu estava na região dos antigos campos, situado no meio daquelas zonas vazias, desertificadas, tomadas por ossos que tinham sido abandonados, sem túmulos, por décadas. É essa a sensação que eu queria sentir de novo com os relatos e memórias dos sobreviventes. Mas eu não a encontrei, ou não propriamente. E.B.: Como você preencheu a lacuna entre as palavras dos sobreviventes e o silêncio dos mortos? W.B.: Esse problema me atormentou por muitos anos, até o ponto em que questionei a possibilidade mesma de realizar o filme. Como costuma ser o caso, contudo, o problema era a solução: eu finalmente entendi que era essa lacuna que seria o objeto de Almas mortas. Eu finalmente notei que o que me interessava, mediante a memória dos sobreviventes, era poder chegar à realidade daqueles que tinham morrido. Mas tudo isso permanece muito teórico… De um ponto de vista prático, eu ainda não sabia como a realidade daqueles que estavam mortos iria se apresentar a partir dos relatos daqueles que estavam, em contrapartida, ainda vivos e que, quando eram entrevistados, falavam praticamente só disso: o fato de que tinham sobrevivido. Só achei a resposta para essa questão em 2014. Eu tinha decidido re-entrevistar as testemunhas que eu tinha encontrado em 2005. Estava determinado a perguntar a elas questões mais precisas sobre seus companheiros mortos. Mas, no meio tempo, algumas dessas testemunhas tinham morrido, e outras tinham ficado muito fracas. Suas memórias estavam falhando. Em certo sentido esse obstáculo era terrível, mas em outro terminou por ser uma grande vantagem. O esforço que essas pessoas faziam, sendo agora de fato muito idosas e elas mesmas perto da morte, para lembrar coisas que tinham acontecido tanto tempo atrás, as tentativas delas de lembrar os rostos e nomes dos seus companheiros que tinham desaparecido eram muito comoventes. De repente eu estava diante de duas relações com a morte extremamente próximas uma da outra: a morte nos campos e a morte devido à velhice. A segunda é natural; a primeira, não. Ainda que em oposição uma à outra, elas se tocam. E, em especial, visualmente. Eu me lembro de uma pessoa especialmente, entre outras: Zhou Zhinan, a quem filmei com uma idade bastante avançada numa cama de hospital; magro e fraco, sua voz era quase inaudível. A imagem dele deitado em sua cama parecia ilustrar os relatos que seu irmão Zhou Huinan tinha acabado de me fazer, e especificamente quando ele me contou do seu companheiro de quarto que tinha morrido de fome em Mingshui… Eu tenho muita dificuldade em expressar com palavras o que eu senti naquele momento exato. Mas eu sei que é algo que me incentivou consideravelmente a fazer Almas mortas.
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E.B.: Voltando à estrutura do filme, como a organização dos testemunhos veio a se relacionar com o que você tem chamado de “relato”2 em cada um dos seus filmes documentários? W.B.: O primeiro testemunho em Almas mortas é o de um casal, Zhou Huinan e sua mulher. Eles nos fornecem alguns dados contextuais: como alguém chega a ser acusado? Quem eram os direitistas? Um segundo testemunho abre os portões dos campos de trabalho e explica como eles eram operados. Um terceiro nos conduz até as profundezas da vida no campo. Daí em diante, começamos a ouvir testemunhos mais detalhados sobre os prisioneiros que morreram. Uma visão de conjunto progressivamente se forma: depois de três horas, o relato nos oferece uma perspectiva tão global quanto concreta das condições de vida nos campos. A partir da quarta hora, os testemunhos são todos de sobreviventes que vieram do mesmo local, e que mais ou menos se conheciam antes de serem enviados para longe. O que acontece então, de uma maneira completamente natural e sem qualquer interferência da minha parte, é que os testemunhos se tornam eles mesmos interligados. E.B.: Aqueles com quem você se reuniu tinham sido vítimas da repressão. Você planejava também dirigir suas investigações para o outro lado, quer dizer, reunir-se com os acusadores e entrevistá-los? W.B.: A única pessoa com quem eu tive como me reunir foi um guarda. Ele aparece na parte final do filme e é através dele que descobrimos uma foto do campo. Devemos lembrar que os líderes do Partido tinham já em torno de quarenta anos de idade em 1950. Estão todos falecidos. Essa é a razão porque, à parte esta única exceção, estão ausentes do filme. E.B.: Você desperta memórias incômodas, tão dolorosas quanto, para muitos, humilhantes. Aqueles com quem se encontrou consentiram facilmente em falar sobre seu suplício? W.B.: Quando eu iniciei as entrevistas, a China estava experienciando um período de abertura política e econômica. Algumas das pessoas que contatei não quiseram falar sobre o que aconteceu, mas a maior parte delas prontamente aceitou partilhar suas histórias. Estou ciente, é claro, de que omitiram coisas a mim. Todo mundo tem um jardim secreto. E.B.: A extraordinária cena do funeral de Zhou Zhinan é um dos raros momentos em que o filme se afasta do dispositivo do testemunho. Por que abrir esses parênteses? W.B.: A história não é abstrata. É composta de indivíduos reais, de carne e osso. A indignação do filho de Zhou, que fala das injustiças a que seu pai fora submetido, é exemplar nesse sentido. Ele não faz nenhum discurso, não fala em generalidades. Ele nos conta quem seu pai foi, como ele viveu, como ele morreu. A mim me pareceu que
2. N.T.: Na primeira versão da entrevista, publicada em francês, “récit”. Na tradução em inglês, “recounting”. Entendemos que há um valor conceitual na ideia, que a diferencia de noções como a de “testemunho”, e optamos por respeitar todas as suas menções na edição francófona (por vezes substituída por “testimony” ou “story” na anglófona). Neste sentido, seguimos o texto em francês também para fins de desambiguação entre “testemunho” e “depoimento”, optando pela primeira, bem como para identificar menções a “história” (“histoire”) ou “dispositivo” (“dispositif”).
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uma cena como essa era necessária já logo no início para permitir ao espectador realmente entrar no filme. E.B.: O filho teve que, em contrapartida, pagar pelos supostos erros do pai dele? W.B.: Sem sombra de dúvida. Até 1978, todos os filhos de direitistas eram excluídos da universidade e banidos da sociedade. E.B.: No conjunto, que material você finalmente compilou? W.B.: 120 testemunhos. Em torno de 600 horas de filmagens. E.B.: Como você decidiu por onde começar a organizar e reduzir um volume como esse? W.B.: Eu estabeleci algumas normas de montagem para mim mesmo. Não queria que nem um único testemunho sobressaísse em relação aos outros. Eu queria assegurar um tipo de balanço, porque era o todo que deveria sobressair. De um ponto de vista formal, os relatos todos tinham que ocupar mais ou menos o mesmo espaço. E notei, durante a montagem, que uma boa duração para um testemunho era em torno de meia-hora, e que todos os testemunhos podiam respeitar esse limite. Um outro princípio: se o filme deveria ser percebido como um todo, cada testemunho precisava ter sua própria unidade, sua própria autonomia. Então decidi nunca cruzá-los, à diferença de alguns documentários que, em vez disso, entrelaçam as histórias que estão sendo contadas. Se uma pessoa é vista duas vezes no filme é porque eu retornei para entrevistá-la alguns anos depois. Dessa maneira, pude respeitar a decisão que tinha feito e mencionei anteriormente, ou seja, progredir com a narrativa seguindo a cronologia das entrevistas mais que a dos acontecimentos. É por isso que cinco horas de filme – as últimas cinco – são dedicadas aos direitistas que vieram todos do mesmo local. Sejam os direitistas que foram eles mesmos enviados aos campos, ou outros, como Fan Peilin, que era a mulher de um direitista, ou ainda aqueles com quem nos familiarizamos através das suas cartas. Há ainda incontáveis testemunhos que registrei em outras regiões. Eles vão encontrar seu lugar em meus projetos futuros.
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Cura Bantu1 Castiel Vitorino Brasileiro2
Tudo isso surge com uma promessa que um Preto Velho fez a mim, mas uma promessa também que fiz a ele quando ele comprou meu primeiro carrinho de bebê; meu avô. Então “O trauma é brasileiro” surge dessa promessa mútua que eu faço com Benedito Brasileiro, que é Bininho, que é Castiel e que é Augusto Brasileiro também. Veja, o meu avô Benedito conseguiu fazer com seu filho o que seu pai fez com ele; fez isso com o nome. Então, sobre meu bisavô que é o pai de meu avô Benedito: um senhor branco de escravos deu a ele o nome de Brasileiro e inaugurou em minha história familiar um novo trauma. Isso no início do século XX. E esse mesmo bisavô que criou para si um outro significado pro nome Brasileiro, também criou para si um outro nome: Augusto. E meu avô, Benedito Brasileiro, deu o nome do seu primeiro filho, de Augusto Brasileiro. E meu pai, Augusto Brasileiro, também tem se chamado de Gustavo, e assim como eu criou para si um nome de guerra. Então a Família Brasileiro é uma família de guerra, assim como a Fonte Grande é uma experiência de aquilombamento. Quando o quilombo passa a ser compreendido como uma experiência de crueldade? Por quem? Por quem, na contemporaneidade e, porque, a Fonte Grande e a Piedade tem sido entendidos como territórios não de aquilombamentos e de Cura e sim de perigo e de violência? Por quem e para quem? É a partir disso que eu subo a Fonte Grande e assumo essa promessa e crio essa promessa com o meu avô Binhinho. Mas não só com meu avô Bino, também com minha avó Julite, com minha avó Éda, com minha mãe Ingrid que desapareceu há 10 anos, com Renato Santos e com todas as vidas que compõem esse território e com todas as vidas que compõem essa fotografia. É uma promessa que assumo com os cachorros que estão nesta fotografia e com o banco e com a terra e com a vista. Eu assumi uma promessa com essa vista, de sobreviver e, a partir desse desejo de sobreviver, eu subo a Fonte Grande todos os dias. A promessa 1. Transcrição da participação de Castiel Vitorino Brasileiro na roda de conversa Cura Bantu, junto de Renato Santos. Essa conversa pública aconteceu em 02 de Julho de 2019, e fez parte das atividades da primeira exposição individual da artista, “O trauma é brasileiro”, na Galeria Homero Massena, Vitória/ES. 2. Artista, graduanda em Psicologia na Universidade Federal do Espírito Santo. Pesquisa e inventa relações em que corpos não-humanos se desprendem das amarras da colonialidade. Compreende a macumbaria como um jeito de corpo necessário para que a fuga aconteça. Dribla, incorpora e mergulha na diáspora Bantu, e assume a vida como um lugar perecível de liberdade. Idealizadora do projeto de imersão em processos criativos decoloniais Devorações. Mora em Vitória/Espirito Santo – Brasil. Contato: castielvitorinob@gmail.com, https://castielvitorinobrasileiro.com/sobre.
Foto: Acervo da Família Brasileiro
que eu fiz para a Fonte Grande e pra todas as vidas é de subir a Fonte Grande toda semana enquanto eu quiser continuar viva. E essa subida não é apenas de subindo o morro, mas a subida é quando eu encontro Renato Santos aqui atrás e converso com ele sobre a Fonte Grande. É uma subida afetiva, cognitiva, emocional, espiritual e energética, de um modo que quero que seja inexplicável ainda para alguns. Como falar de cura? Que trauma é esse? Porque essa exposição anuncia-se num trauma mas, a experiência dela é de cura. Eu, assim como Renato, assim amigos meus, artistas negros e racializados também como indígenas contemporâneos, estamos dando gargalhadas do ideal da branquitude em cima de nossas experiência estéticas. Aqui não há tentativa nenhuma de criar um espetáculo em cima de nossas experiência de adoecimento. Não quero que as pessoas que me violentam cheguem aqui e sintam-se confortáveis em me ver sofrendo. Mas esse não querer é um desejo meu e não delas; delas e de alguns de vocês que estão comigo agora compondo esse território. Conosco. É o desejo que não tenho controle e também não quero ter controle sobre o desejo do outro. O único desejo que eu posso talvez ter controle e direcionar, é o meu. E qual desejo eu quero desejar? É o desejo da sobrevivência e da Cura. E quero continuar viva e para eu continuar viva, Renato precisa continuar vivo, Nape Rocha precisa continuar vivo, Felipe precisa continuar viva, minhas amigas precisam continuar vivas. É um desejo de vida. E daí vem o “O trauma é brasileiro”. Nessa exposição eu apresento minha terceira experiência instalativa Quarto de Cura, que é um quarto onde… não é uma apresentação de resultados das experiências estéticas que tive na Fonte Grande mas é uma proposição de um outro marco nessa experiência de imersão que eu assumi com a Fonte Grande no leito de morte do meu avô Bininho, na última vez que o vi nesta vida terrena e quando eu
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disse pra ele: você não estará aqui nesta exposição com o seu corpo terreno, mas você estará aqui no meu nariz, na minha tonalidade de pele e no meu desejo de comer peixe e também no Brasileiro. Eu não sabia muito bem como seria o nome dessa exposição, mas assumimos ali, na ultima vez que eu senti o seu sopro de vida, daquela forma, que no nome da exposição teria Brasileiro. E a partir daí eu começo a assumir essa pesquisa e nomeá-la. Veja, “Cura Bantu;’ esse é o nome com que resolvi nomear esse encontro. Bem, semana passada completei 23 anos de existência terrena e carnal. E hoje acontece um eclipse solar na lua nova. Será que a lua e sol se cansam enquanto dançam? E o que acontece nessa dança, que me faz querer continuar o giro do anti horário? E como giro ou danço, se estou cansada? Enquanto estou cansada, ainda me movimento, pois o descanso é uma dança, é uma respiração. É a dança que o vento faz dentro de mim durante minha meditação. Eu medito desde os primeiros anos que assumi a guerra. Nunca precisei me assumir bixa ou travesti, pois o meu corpo é autônomo a essas linguagens faladas, criadas por essa ocidentalidade. Antes da linguagem, há a língua. Veja, antes da linguagem há a língua. Mas não é só o ver, é também o sentir. Sinta essa língua, o órgão, o corpo. Antes da linguagem verbalizada, acontece a linguagem gestual. Antes do convite ser aceito, meu corpo já dança com a lua e com o sol. E o convite, qual é esse convite? Eu convido você a entrar nesse território de liberdade perecível que é o Quarto de Cura. Aqui eu proponho alguns convites, e não são a todos e podem ser para alguns; que juntos fazem o todo. E esse é o todo que venho criando, é esse todo que venho desejando. Um todo criado por alguns. Esse quilombo que tenho construído é diferente daquele que existe na Fonte Grande e, que existia e que já existiu. É uma pergunta e uma constatação: é diferente? Já deixou de existir esse quilombo na Fonte Grande e na Piedade? E como é? É uma pergunta e uma constatação. É uma verdade ou uma origem que não descubro e sim crio enquanto visito e crio aquilombamento na Fonte Grande. Não há uma tentativa de descobrir uma origem em um passado que teoricamente está estático. Há uma experiência de construção dessa origem. E que origem é essa que tenho construído? É de fato essa origem Bantu que Renato tanto me ensina todos os dias que eu ligo pra ele - e às vezes ele não me atende. É uma ordem que se cria enquanto danço lá em cima e enquanto quero dançar na boca da mata. Essa foto foi tirada na boca da mata. Essa casa foi construída pelos meu bisavós. Esse quintal hoje e essa casa, pertencem a uma família indígena evangélica que tem vergonha de ser indígena. E continua sendo indígena e continua sendo quilombo. Dançar nessa boca enquanto percebo e enquanto lembro no gesto que sou filha da lua crescente. Dançar na boca da mata e lembrar que sou filha da boca crescente. Nasci semana passada e quando Renato me convidou para montar o Quarto de Cura em sua casa na Fonte Grande. A gente passou 30 dias em sua casa ao modos das benzedeiras e das psicólogas anti racistas, que não são quaisquer psicólogas. Eu me propus, eu e Renato Santos, a ficarmos lá por 30 dias. Montei o Quarto de Cura lá, antes daqui. Ficamos de dezembro de 2018 até janeiro de 2019, produzindo descarrego
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desses traumas coloniais e descarrego dos carregos dessa colonialidade que cria uma experiência de mortificação e violência para pessoa negras. Negras capixabas, mas não só, também as pessoa negras que vivem a experiência da diáspora nesse planeta. E nasci enquanto morria, porque eu morri quando lembrava de minha existência; que são de quinhentos anos e mil anos. Quando pergunto quantos anos eu tenho ou quando me questiono sobre minha existência, eu afirmo: eu não tenho vinte e dois anos. Eu não tenho vinte e três anos e eu não tenho e não terei vinte e quatro anos. Assim como já tive dezoito, e quinze e também já tive e tenho ainda hoje quinhentos e mil anos. A minha existência é composta por mil anos anos e mil vidas. E não só mil vidas mas é composta por um conjunto de vidas que eu não consigo nem nomear. Esse conjunto de vidas que muitos deles estão justamente nas Kalungas que Renato tanto diz e me ensina. Então, quantos anos de fato eu tenho? Quero ter a idade de uma semente e ser novamente plantada pela minha avó Julite e pela minha avó Éda. Mas se ainda não sou, serei aquela que irá plantar um jardim para não precisar de ir na farmácia. É assim que surge a Vila Rubim? De um desejo de não querer ir na farmácia? Pois é assim que me curo, indo na Vila Rubim. Coreografias aprendidas enquanto desaprendo a colonialidade. É quando crio meus eclipses solares e lunares. E hoje realmente está acontecendo um eclipse solar na lua nova, em uma lua de câncer. Sim, os crio sempre que choro ou descaso, mas não tenho chorado ou descansado muito nos últimos meses. Faz alguns meses que não chove em meus sonhos e também faz alguns meses que meus músculos desejam o descanso. A Cura é assim isso e é assim que faço a cura. Compreendendo-a para continuar viva. A Cura é uma questão de Tempo, e os meses podem ser dias ou meia hora. O amor de Marinheiros é um amor de meia hora. Quanto Tempo dura meia hora? Estou descobrindo quanto Tempo dura meia hora enquanto me proponho a todas as semanas e a todos os dias subir e descer a Fonte Grande e criar ali uma outra situação temporal e geográfica. E qual Tempo que se inaugura na Fonte Grande quanto eu subo e quando decido subir? Quando eu faço o Quintal Bantu lá, junto com Renato, Rafael Segatto, Natan Dias, junto com Kika Carvalho, junto com Felipe Lacerda, junto com tantos outros artistas que juntos construímos uma situação aí de liberdade e de cura e de crueldade. Esse Tempo estou descobrindo e estou descobrindo enquanto estou virando sereia. Assim como já fui e sou uma planta. Sou um corpo-flor. Sou planta, terra e mar. E se todo conhecimento tem uma origem, qual origem consigo criar com o meu corpo cansado? É sempre quando eu consigo mergulhar nas kalungas sem me afogar. E como aprendi a nadar? Como estou aprendendo a nadar nessa kalunga, nesse mar, nesse atlântico? Eu aprendo a nadar quando tive a coragem de mergulhar e aprender. Obrigada.
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a ponte caiu, se vira e atravessa nadando Davi de Jesus do Nascimento1
“a ponte caiu, se vira e atravessa nadando”, exorcismo de dor, lembrete e fotografia contidos dentro de fragmento de álbum, 33 x 26 cm, 2013-2018. trabalho realizado dias após a morte de minha mãe.
depois que minha mãe morreu ainda morei um ano em pirapora. nesse um ano eu ia com muita frequência no cemitério onde ela foi enterrada, pra catar as sementes do pé de tamboril – que caíam sobre o túmulo – e tomar café com cuscuz e umbuzada. fazia esse lanche lá pra me sentir mais conectado com os chocalhos. percebi que o som que eu produzia quando mastigava e tomava um gole do café balançando as sementes ao mesmo tempo, parecia com o cheiro do sorriso marrom da gengiva de minha mãe atolada no esqueleto do maior inseto que encontrei na vida de uma caranguejeira.
1. Artista plástico, performer e poeta barranqueiro. Gerado às margens do rio São Francisco, curso d’água de sua pesquisa, Davi trabalha coletando afetos da ancestralidade ribeirinha e percebendo “quase-rios” no árido. Na fotografia, utiliza o corpo como instrumento de medida do mundo. Corpo-médium, confrontado e confundido com a natureza. Uma natureza aquática, barrenta e silenciosa, que pode ser lida como isca, peixe e pedra.
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ensaio sobre fragilidades sobre Bup, de Dandara de Morais, e Motriz, de Taís Amordivino Alessandra Brito1
O primeiro filme que assisti na vida foi Esqueceram de mim (Chris Columbus, 1990). Eu, minha mãe, meu irmão e minha irmã tínhamos ido dormir na casa da minha vó e estava passando o filme na Tela Quente. Era uma televisão preto e branco. Achei o filme assustador, a criança sozinha em casa, tudo era meio sombrio. Isso talvez porque eu tive muito medo do escuro até os meus 13, 14 anos mais ou menos. Fiquei pensando no contexto de uma criança esquecida em casa e no modo como ela arma aqueles truques maldosos contra os invasores, no final, acho que peguei no sono antes do filme acabar. A primeira vez que fui numa sala de cinema eu tinha 19 anos, vi um filme do James Bond, 007 - Casino Royale (Martin Campbell, 2006), era comemoração de aniversário de um amigo. Saí do cinema e tomei uma casquinha de sorvete refletindo sobre a história da personagem Vesper Lynd, o que poderia estar por trás das decisões tomadas por ela no enredo. Hoje eu não tenho mais tanto medo do escuro, compreendo um pouco melhor porque as personagens Bond Girls, como é o caso da Vesper Lynd, não têm trajetórias próprias em filmes do agente 007, e, sobretudo, me pergunto, por que tantos outros corpos não ganham vidas e existências nas imagens? Assistindo Bup (Dandara de Morais, 2018) e Motriz (Taís Amordivino, 2018) me lembrei de todas essas histórias – as minhas, as dos filmes e as que criamos, depois que vemos os filmes, com elementos que muitas vezes não podemos ver ali, materializados na imagem, mas que se misturam com o que somos no mundo. Dandara de Morais, Taís Amordivino, Dona Nilzabete, Grasiele e as palavras de Conceição Evaristo me convidam a observar os silêncios, os olhares e a capturar o que escapa às imagens. O professor e pesquisador Mahomed Bamba escreveu que “além de produzir uma forma de pensamento a partir dos filmes, o teórico do cinema pode ser também um ‘escritor’ da sua própria vida e de sua relação com os filmes” (BAMBA, 2016, p. 299). Este texto se move fortemente por esse esteio, pelas palavras de bell hooks sobre a espectatorialidade das mulheres negras e por sua defesa do amor como uma metodologia de
1. Jornalista graduada pela Universidade Federal do Tocantins (UFT), mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e militante junto à segundaPRETA.
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resistência política e caminho para construção de imagens partindo do exercício do poder de olhar. O filme Bup começa com a voz em off da ex-presidenta Dilma Rousseff, Dandara se sentando e mostrando um papel onde consta seu nome, altura e telefone. Durante os 4 minutos e 40 segundos ela olha para a câmera. Cabelos trançados, tranças sobre os ombros, uma profusão de palavras, a voz da atriz e diretora, sons, músicas, outras vozes ocupando a tela convidam o espectador para um outro universo confuso, acelerado, barulhento em contraponto à face séria de Dandara, que segue nos observando. O que podemos e o que não podemos capturar na imagem de uma mulher negra olhando para uma câmera? Olho o silêncio e ouço o caos, o “Lago dos Cisnes”, a sobreposição das músicas, sinto vontade de encontrar uma brecha. Dandara inventa uma maneira de dizer aquelas coisas que são difíceis de falar, nos apresenta fragilidades que podem parecer quase invisíveis, irreveláveis, mesmo para quem está ali, a se mostrar diante da câmera. “Dói tudo, dói até a alma. A alma dói porque não posso dançar. Hahaha. Que cafona!”, ela diz sem mover os lábios, se recostando no sofá, cobre a face com as mãos numa carícia que denuncia as unhas com esmaltes descascando. Em uma linguagem experimental, desfiando pensamentos, Dandara nos apresenta, ainda que flertando com o desejo de ocultar, uma parte de seu mundo. “Um tributo ao silêncio. Olá, ansiedade! Bup é a ausência do silêncio. Uma tragicomédia em ritmo frenético sobre a presença da angústia, incômoda insegurança e constante inquietude. Que pena que saí do útero”, diz a sinopse do filme. Em um comentário sobre o filme na internet alguém disse: “Pisou em Cisne Negro”, em referência ao filme de Darren Aronofsky (2011), mas me interessa pensar quais corpos têm permissão para expressar alguma fragilidade? Em Motriz, Taís também nos entrega um pouco do seu mundo, sua família, sua mãe, referenciado seu olhar como Conceição Evaristo referenciou os olhos de Dona Joana Josefina Evaristo Vitorino: olhos d’água. O filme começa com a viagem, a janela do ônibus, a paisagem mudando. Salvador à Jordânia. Tela preta escrito “Motriz. Substantivo feminino. Força que impulsiona, que faz mover ou ocasiona o movimento”. Taís pergunta à sua mãe nome, idade e faz uma pequena entrevista. A câmera conduzida pela filha cineasta nos mostra sua mãe de perto, muito perto. A proximidade me causa uma sensação de que ela tenta nos mostrar algo que talvez estivesse para além da imagem. Penso nas visitas que faço à minha mãe, em como me encanta observar seus movimentos pela casa, coisas mínimas, sutis, e que são dela, só dela. Talvez fosse essa a busca de Taís. Como no conto de Conceição, apesar dos olhos em lágrimas, sua mãe sorria feliz, Dona Nilzabete nos dá seus sorrisos e suas lágrimas. E há também aqueles momentos em que elas nos entregam seus silêncios, um tomar café distraída na cozinha, catar feijão, cozinhar, cuidar da casa, cuidar de si, pentear-se. Aquela mulher que, como tantas de cor semelhante, recebe a missão de ser a personificação da força, vive a sutileza de sua existência, de uma vida que segue com uma filha a menos. Tela preta, a palavra “Saudade. Substantivo feminino. Sentimento melancólico devido ao afastamento de uma pessoa, uma coisa ou um lugar”.
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O espaço é um elemento importante na narrativa dessas mulheres, vemos, pelo olhar delicado da diretora, o cotidiano de uma família – avó, mãe e filha –, a cidade pequena, suas ruas, seu céu, suas flores, seus sons, seus meninos que brincam na rua. O modo como ela captura essa espacialidade diz também de suas ausências. Um ano. O tempo e suas transformações e permanências. A mudança no cabelo de Dona Bete, e a passagem do desconforto de alguns momentos com a câmera até o momento em que ela diz sobre sua filha ser cineasta, assiste a um corte do filme, se comove. Patricia Hill Collins (2013) referia-se a uma recusa das imagens controladoras e estereotipadas sobre mulheres negras, reclamando a autodefinição e a autovalorização para criação de imagens autênticas dessas mulheres. Penso que é esse o movimento feito por Taís e sua mãe, com a inscrição de seus corpos na cena, suas histórias, sua família de mulheres. bell hooks diz que “ao olharmos e nos vermos, nós mulheres negras nos envolvemos em um processo por meio do qual enxergamos nossa história como contramemória, usando-a como forma de conhecer o presente e inventar o futuro” (HOOKS, 2019, p. 240). Com as imagens de Taís Amordivino, eu invento um dia em que eu, minha mãe e meu pai vamos ver um filme – vai ser a primeira vez deles no cinema – e assistimos Motriz.
Referências BAMBA, Mahomed. Reflexões sobre o valor heurístico do uso da experiência pessoal na formalização teórica da espectatorialidade fílmica. In: Pesquisa em comunicação: metodologias e práticas acadêmicas. MOURA, Cláudia Peixoto de; LOPES, Maria Immacolata Vassallo (Orgs.) Porto Alegre: EDIPUCRS, 2016. p. 296-317. COLLINS, Patricia Hill. O poder da autodefinição. In: Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. Trad. Natália Luchini. Seminário Teoria Feminista, Cebrap, 2013. [Em inglês, Black feminist thought: knowledge, consciousness, and the politics of empowerment. Nova York/Londres, Routledge, 1990. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4123078/mod_resource/ content/1/Patricia%20Hill%20Collins.pdf>. Acesso em: 15/05/2019. HOOKS, bell. Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Elefante, 2019.
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Entre o passado implacável e as interações vivas: a casa-cinema de Letícia, Heliana e Clementina sobre Casa, de Letícia Simões Roberta Veiga1
Casa, de Letícia Simões, é um filme de família, porém não no sentido consagrado, de filmes caseiros rodados em ambiente doméstico, em ocasiões festivas, que podem ou não vir a público, mas num sentido complexo: quando a família falta, pode o cinema intervir? Pode o cinema ser menos forma de representação e mais aparato de intervenção nos vínculos afetivos de modo a tencioná-los e reinstitui-los, a partir de ações pragmáticas no universo familiar? Casa é isso: um cinema de experiência pessoal, feminino, um documentário que quer reunir três gerações de mulheres de uma mesma família: a de Letícia, a diretora e personagem do filme, a de Heliana, sua mãe, e a de Carmelita, sua avó. Letícia volta a Salvador, sua cidade natal, e morada da mãe e da vó, em busca das formas de relação entre elas: as arruinadas pela dor, as existentes ainda que aos pedaços, e, principalmente, as possíveis, aquelas que o filme irá disparar, como dispositivo de elaboração e produção de afetos comuns. Apartadas pela distância geográfica, temporal, ou por histórias e temperamentos diferentes, as três mulheres em uma tríade ou em suas díades – filha-diretora com mãe; neta-diretora com vó; mãe com mãe – se abrem ao chamado do cinema, à reconstrução mnemônica do familiar, de uma casa onde a união, empírica e imaginária, é possível. Não alheio aos procedimentos de filmes de experiência pessoal,2 que lidam com a vida íntima e familiar, nos quais a cineasta se inscreve filmicamente, muitas vezes ao biografar um ente próximo, o mecanismo cinematográfico de Casa se institui. Em seus atos de busca pelas memórias e afetos que constituem os laços e as vivências cruzadas dessas mulheres, Letícia faz uso de arquivos fotográficos domésticos; das conversas entre
1. Professora adjunta do Departamento de Comunicação e do PPGCOM da FAFICH-UFMG. Editora da Revista Devires – Cinema e Humanidades. É coordenadora do grupo de pesquisa Poéticas Femininas, Políticas Feministas; a mulher está no cinema (UFMG). Tradutora do livro Nothing Happens: Chantal Akerman’s Hyperrealist Everyday, de Ivone Margulies, autora de vários artigos em revistas sobre o tema “cinemas femininos em primeira pessoa: o pessoal é político”, e de capítulos nos livros Feminismo e Plural: mulheres no cinema brasileiro e Mulheres de Cinema. 2. Sobre o conceito de filme de experiência pessoal cf. VEIGA.
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elas; da revisita às casas onde a família viveu em algum passado; de cenas de uma, duas ou três, feitas nos encontros suscitados pela câmera; bem como de imagens-paisagens do mar, da praia. Tanto os arquivos vindos do passado quanto as cenas gravadas no presente serão recobertas pela voz off da diretora-personagem e narradora, seja em primeira pessoa – no caso das pequenas biografias das três (do pai e do avô), inseridas ao longo do filme –, seja em terceira pessoa, nas leituras das mensagens trocadas entre Letícia e Heliana. Para além dessas estratégias, há momentos de maior experimentação, nos quais propostas performáticas, mise-en-scènes fotográficas e intervenções pictóricas nos arquivos fazem a passagem do documentário ao ensaio. O resultado é um dispositivo mnemônico complexo no qual a diretora como filha se recoloca na relação com a mãe, que, através do filme, se reafirma em relação a sua própria mãe, a avó de Letícia, que, ao filmá-las, virando a câmera para si e para as duas, ora se inclui no jogo, ora se mantém de fora, incapaz de abrir mão do lugar da cineasta que, do antecampo, pensa o que e como filmar. Ao oscilar entre fora e dentro da casa de mulheres, do ponto de vista fílmico e memorial, Letícia cria por vezes uma permutação de lugares e funções, por outras uma tensão entre eles, e ainda uma sobreposição dessas instâncias de modo a permitir que o processo de criação seja mais coletivo, que os afetos passem por ela, como filha e neta, e enseje a elaboração de experiências íntimas que atravessam as três mulheres.
Do arquivo ao inconsciente implacável Já próximos ao fim do filme ouvimos a mãe, Heliana, dizer: “você quer que eu vá pegar os arquivos implacáveis, né Letícia?” Nesse momento, nos perguntamos novamente acerca da implacabilidade dos tais, uma vez que desde o início do filme compartilhamos com Letícia a curiosidade pela foto que teria capturado um momento de extrema felicidade na casa de Itaparica em que ainda criança, ao entrar no mar com o amiguinho, ela teria tirado a calcinha. Tal momento, junto a outras lembranças, sabemos estar guardado entre os arquivos que Heliana nomeia implacáveis, por ela trancados a muitas chaves, dos quais Letícia, durante o filme, negocia a abertura pela qual aguardamos. Quando a filha insiste que os mostre, a mãe responde que “está tudo arrumado”. E para que mexer no passado que ela já organizou? Porque o filme não se contenta, ao contrário, só se faz de lembranças, remexendo-as. Na mensagem, que ouvimos em off, enquanto Letícia caminha pela praia carregando a foto do pai como que lhe procurando, a filha pergunta à mãe se ele poderia ser um espírito obsessor sobre ela, ao que Heliana responde: “obsessor é o inconsciente, esse sim implacável!”. O significante (que se referia aos arquivos) se refere agora ao inconsciente. É a deixa para o espectador de que não haverá acesso fácil àquelas imagens, assim como não há acesso direto às imagens guardadas na memória. Fotos antigas são como lembranças do passado arquivadas em profundos armários escuros. E para Heliana tanto os arquivos materiais (de papel) como os imateriais (as imagens que rondam o inconsciente) são implacáveis. Implacável é aquilo que é inabalável, por isso impossível de se aplacar. Incomplacente, portanto incapaz de perdoar, e de ser flexível
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como o é Letícia (que segundo a mãe, nesse aspecto, diferente dela, se assemelha ao pai). É duro, inclemente, como Heliana com sua mãe. Ao mesmo tempo, o implacável também é o cruel, o algoz, assim como Carmelita, a vó de Letícia, fora com a filha. Não restam dúvidas que esses arquivos encarnam materialmente afetos e sentimentos de uma vida em família impossíveis de se acalmar, de se atenuar. Por mais que Letícia se esforce em apaziguar, eles estão ali trancados para que não retornem indóceis a cobrar a reparação dos danos do passado, teimando em fazer justiça pelo que realmente houve. Daí que a lida de Letícia com os arquivos materiais é, como nos lembra Didi-Huberman (via Walter Benjamin), própria à dinâmica da história: imaginada, sonhada, rememorada, e não um passado instituído. Ao se valer dos arquivos físicos, as velhas fotografias guardadas, revolvê-las, temporalizá-las e conjugá-las para o filme, o cinema de Letícia remonta também (no presente) o imaterial da vida, aquilo que se foi (o passado), para o que poderá ser (o futuro dos muitos sentidos e entregas que o filme irá gerar). É ali que ela pode intervir e intervirá. Pois ainda que achemos que estamos esperando, e ainda que esperemos o filme inteiro pela abertura dos arquivos tão intocados por Heliana, desde o começo as fotos antigas, amareladas, descascadas – que vemos em sequências; empunhadas pela cineasta-personagem em sua visita à casa de Itaparica; postas em cena num ritual em que afundam nas águas do mar; dispostas no asfalto encharcado, recostadas num velho muro; que vemos passar pelas mãos da mãe e da filha – constituem o arquivo implacável. Esse que está a todo momento sendo cinematograficamente profanado pelo gesto da diretora de torná-lo filme e por isso fazendo da história doméstica uma história partilhada, que transborda para a escravidão, o racismo, a miséria, o cangaço, para um Brasil de um povo apagado, e que mesmo pouco nítido na imagem surrada pela idade das fotos, ainda “lampeja nesse instante de perigo” (como dirá Benjamin) em que vivemos. Rasuradas de azul – por listas, reenquadramentos, flores – ao reconstruir as biografias das mulheres, do pai e do avô, mãe e avó dialogam entre si e constroem o filme da filha e neta – que chegou depois, trazendo o alento e a força do mar de Salvador no azul “insistente” –, para a família que “somos nós uma casa”, como ela mesma diz em seu canto final.
As interações vivas Se a mãe parece certa de que aprisionar arquivos ordenados em armários aliviará qualquer inquisição dura do passado, ao mesmo tempo ela aceita de imediato que a filha retorne a Salvador para fazerem o filme. Talvez Heliana tenha subestimado a força do cinema em intervir nas relações, revolver lembranças, criar afetos. Em sua dimensão processual, a câmera provoca e testemunha interações que também cobram das personagens-mulheres que se mostrem, se digam, se desloquem. Daí que os encontros entre filha-mãe-neta-avó-mãe não acontecem sem tensões, mas na oscilação de Letícia – de estar fora (cineasta-narradora) e dentro (personagem) – que turva certas águas e transforma outras em tempestades. Talvez em busca da imagem que falta para integralizar sua lembrança feliz, perseguida desde o início do filme – a infância na casa de Itaparica – a cineasta conduza o
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filme para aquela morada da memória como a um telos e, por isso, escute menos dois apelos recônditos da mãe, mas que voltam no processo fílmico (que também atesta sua autonomia): a velhice e a pobreza. Percebemos que Heliana teme cansar a filha com sua doença, crises e problemas. Em uma primeira interação, no carro, logo após a filha ajeitar a câmera no painel, a mãe diz angustiada: “apesar de ter anos de terapia, eu estou enfrentando um problema novo... a velhice”. Essa frase ressoa na diferença visível entre as duas flagradas frontalmente (se Heliana é frágil em sua bipolaridade anunciada, a filha é jovem e bem resolvida). Mas Letícia vira o rosto para a paisagem que passa pelas janelas do carro e corta. Daquele fio de dor, a filha não faz laço, desfita. Em seguida, ao ser questionada sobre qual seria o título de sua autobiografia “não-autorizada” – essa que ela mesma não sabe que está escrevendo ao se inscrever ali3 – Heliana responde que seria “pobre menina pobre”. A filha é incisiva: “como você começaria a contar... como?”. Mas, e esses dois “pobres” na mesma frase? Já não se tratariam de um começo e tanto para história, ao implicarem duas pobrezas diferentes? No entanto, a pergunta de Letícia leva a uma burocratização. A mãe se põe a falar do começo, da data, de quando nasceu, e ainda assim a pobreza não sai dali. Após esse detour, ela volta a dizer que o momento de epifania de sua vida foi quando viu o padrinho chegar em Itaparica acompanhado de seu pai pela manhã: “meu padrinho, meu deus do céu, conseguia ser mais pobre que a gente. Ah a pobreza!”. Não há como dissociar o amor pelo padrinho de uma dignidade da pobreza, e a cineasta novamente arrasta o fio da memória para a casa de Itaparica. A conversa se (re)burocratiza em uma discussão geográfica que visa situar a mesma imagem da memória que o filme procura. Mas não há saída, no caminho dessa casa, novamente surge a velhice. Depois de identificarmos o limite nebuloso entre as duas – a mãe acha que não deve se meter na vida da filha, que por sua vez lhe cobra diálogo – Letícia abrirá os seus arquivos pessoais: seu álbum de casamento. Ao justificar sua ausência na cerimônia, a mãe lembra que não ficou bem de saúde depois de ir à festa de uma colega e sofrer uma queda. Ela repete: “eu estava me sentindo muito velha”. (Tanto para cair quanto para ir ao casamento da filha?) Mais um desolhar. Letícia então conta do aborto, uma outra impossibilidade – signo do conservadorismo materno que a filha tenta apaziguar – se desdobra: a mãe é contra o ato, como é contra assumir seus cabelos enrolados, seus traços negros, assim como exalta valores conservadores – o casamento, filhos, família – laços que, nas interações vivas que o filme propõe, faltam. Quando a avó entra no jogo, a neta-cineasta se vira contra a mãe tentando apaziguar as relações e fechar o triângulo do filme, porém parece impossível que Heliana perdoe Carmelita. Ela já contara que fora abusada pela mãe física e moralmente, chorando em cena por um passado que não passa. Na visita à avó, a câmara se esforça para colocar as três em quadro. Carmelita está assentada na cama, Letícia ao lado dela, e Heliana numa cadeira afastada, no canto do enquadramento, com as mãos no rosto num gesto de quem sofre por estar ali. A avó pede a ela que melhore a cara, reclama da depressão que também não passa. Quando chega o Natal, a tensão explode, Letícia não suporta ver a mãe atacar a avó. Diz que Heliana estragou seu Natal, que diz: “e Carmelita estragou
3. Sobre conceito de “autobiografia-autorizada” cf. VEIGA, 2016.
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o meu”. Quem terá estragado o Natal de Carmelita uma vez que sua mãe (a bisavó) não está lá? Falta uma mãe... e percebemos que o triângulo não fecha porque não é a figura correspondente. Trata-se de um rizoma onde muitas mães e muitas famílias vão aparecer. Depois que a avó morre, resta filme até que a cineasta tenha que cortar, para fazer outro, para que a vida dela siga naturalmente. Já para a mãe fica a pergunta: como voltar à vida, se aquele filme com a filha era a possibilidade de fazer família. Se aquele filme foi até ali à sua casa? Fica então a ressoar, no cinema e pelo cinema, o pedido de Carmelita à neta-cineasta que reze, que faça com que a filha lhe abra o coração.
Referências BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. In: Magia e Técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1996 DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2015. VEIGA, Roberta. Autobiografia “não-autorizada”: por uma experiência limiar no documentário na primeira pessoa. Doc On-line, n. 19, p. 42-59, mar.de 2016. ____________. Por uma política da rememoração: a potência histórica no cinema de experiência pessoal. Contracampo, Niterói, v.35, n. 03, dez. 2016/ mar. de 2017.
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A batalha está no campo do corpo conversa com Barbara Wagner e Benjamim De Burca sobre Swinguerra Nina Gazire1
Em 2015, Barbara Wagner e Benjamim De Burca iniciaram uma pesquisa de campo sobre os grupos de swingueira, ritmo também conhecido como pagode baiano, axé rápido, originário da periferia de Salvador. A pesquisa resultou em Swinguerra (2019) atentando para a relação de resistência dos grupos dançarinos da periferia recifense e para as competições de dança das quais costumam participar. A princípio parece mostrar na performance destes coletivos, todos de dançarinos profissionais, uma preparação cujo campo de batalha se inicia na escola pública CAIC-Atenção Integral à Criança e ao Adolescente, em Peixinhos, Olinda. O complexo foi desenvolvido nos anos 1990 pelo arquiteto João Filgueiras, o Lelé, também responsável pelos CIEPS-Centros Integrados de Educação Pública do Rio de Janeiro, projetos que se tornaram utopia para a educação brasileira. Inicialmente o trabalho teve caráter instalativo em dois canais, e representou o Brasil no pavilhão nacional na 58ª Bienal de Veneza, em 2019. De caráter inclassificável, o filme é o resultado do desenvolvimento de uma metodologia que tensiona tipologias do campo das artes, do cinema etnográfico e do cinema em continuidade com a mídia pop (youtube e a estética da “viralização” de corpos “instagramados”, não-binários), não por isso menos potente e que foge aos exotismos clichês. De maneira virtuosa, Wagner e De Burca transformam esse modus operandi que engana/encanta o expectador de um jeito “quase hitchcockiano”, mas estamos em 2019. “É muito importante que o que seja entendido aqui é que nossa metodologia parte de uma ética em relação ao olhar sobre o mundo e outros artistas que trabalham com a gente diante de um contínuo que não cabe mais em rótulos e que inclui artistas que criam suas dinâmicas próprias”, afirma a dupla. Trabalhando juntos desde 2013, Wagner e De Burca criam sempre com outros grupos de artistas em tempos e situações difíceis. Talvez o exemplo mais conhecido é Terremoto Santo (2017), exibido ano passado no forumdoc, imprimindo uma responsabilidade difícil ao expectador ao mostrar a performance de uma cantora Gospel cantando uma
1. Marina Gazire é jornalista, curadora e professora universitária. Possui mestrado em Comunicação e Semiótica e é uma das pioneiras em pesquisadoras sobre arte, tecnologia e ciberfeminismo no Brasil.
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música homônima, onde câmera e performer perdem seus limites juntos. O filme foi extremamente polemizado. Swinguerra não é diferente. Adaptado agora para os festivais de cinema mundo afora, o curta foi exibido no formato de canal único, em agosto, no tradicional festival de Locarno, na Suíça. Em entrevista para o catálogo do forumdoc. bh.2019, os artistas conversaram sobre Swinguerra e seu caráter híbrido: N.G.: Inicialmente Swinguerra foi concebido como uma instalação comissionada pela 33ª Bienal de São Paulo, sob responsabilidade do curador Gabriel Pérez-Barreiro, que levou o trabalho em formato instalação para o Pavilhão Giardini da Bienal de Veneza, de 2019. Como é para vocês essa transição do trabalho, primeiro idealizado para ser uma instalação, depois a uma mostra de cinema etnográfico e para outros circuitos diferentes? B.W.: O meu trabalho em parceria com Benjamin tem essa natureza híbrida. Os filmes que fazemos circulam tanto nas instituições da arte quanto em festivais de cinema. Isso é uma escolha intencional, não é casual. Nos atentamos às diferenças desses espaços e a forma como esses trabalhos são recebidos, tanto no Brasil quanto fora. E a gente se interessa, principalmente, por esse cruzamento de linguagens e público e canais de circulação. Isso é uma questão que está impressa nos nossos trabalhos. Trabalhamos com uma equipe de cinema: direção, diretores de fotografia, técnicos de captação de som e montamos uma equipe que pense em um plano de filmagem, que tenha um tratamento muito profissional com as pessoas que participam do filme, o elenco, etc. A pós-produção é realizada dentro de um tipo de prática que é advinda do cinema profissional, diferentemente dos filmes que a gente pode chamar de videoarte, filmes de arte ou filmes de artista. Queremos, intencionalmente, trabalhar dentro da convenção do cinema como prática e como indústria, mas o que fazemos no sentido artístico é experimentar no processo de pesquisa e produção. B.d.B: Falando especificamente dessa transição de Swinguerra, este filme nunca será mostrado, no caso de museus e galerias, em único canal. Mas para o cinema isso muda. Tivemos que adaptar para o cinema ao exibi-lo no Festival de Locarno em agosto. Eu digo isso, porque o filme foi feito para ser mostrado como instalação primeiramente. Talvez essa seja uma questão que não faria diferença atualmente, mas no caso de Swinguerra isso é diferente. As pessoas entram no Pavilhão do Brasil e existem duas telas: uma de um lado esquerdo e outra do lado direito que mostram variações. É o mesmo filme, só que com outras tomadas e diferentes vistas. Porém, nesse caso, o expectador fica no meio do filme. Como se o expectador estivesse no meio da batalha e tivesse que escolher um lado. Ali não há como consumir a imagem, no cinema você a consome. O que eu acho mais importante no caso da Bienal de Veneza é que o Swinguerra é visto por pessoas de diferentes lugares do mundo e eles querem consumir uma imagem. E o queremos com este filme é exatamente o contrário, especificamente as imagens dos corpos. Impedimos uma objetificação dessa imagem. Não se trata de levar um produto cultural das swingueiras para eles consumirem, mas forçá-los a entender outra dinâmica. E eles são obrigados a isso quando se posicionam dentro da instalação.
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N.G.: Vocês trabalharam com três grupos de swingueira que aderem a ritmos e suportes diferentes em suas práticas. La Mafia, que trabalha com brega-funk, o Passinho do Maloka que faz coreografias específicas para instagram, e o Extremo, que tem como ritmo preferencial a swingueira. Nos Estados Unidos, um dos maiores programas de audiência é o programa American Best Dance Crews, com modus operandi da coreografia parecidos com os grupos de swingueira, em se tratar de um treinamento e coreografia quase militarizados em sua precisão. Em Swinguerra vemos referências a Beyoncé, e toda uma gramática dessa cultura que parece ser desmembrada em nível global e local, mas que estão intrinsicamente ligados às culturas periféricas e corpos marginalizados. Como vocês analisam esse fenômeno pensando na hibridização desses fenômenos? B.W.: O filme não é pensado apenas em relação ao circuito. O trabalho é, principalmente, sobre jovens que se encontram semanalmente, até mais de uma vez por semana, nas periferias do Recife. Eles encontram-se em quadras esportivas de escolas públicas ou praças. Esses dançarinos têm em torno de 15 a 25 anos, em situação precária de acesso à educação e emprego. Isto engloba, também, questões de gênero. Nos últimos anos, na nossa pesquisa sobre a swingueira, percebemos uma fluidez de gênero muito natural. Isso é um dado muito importante. Mas a prática da dança nas quadras esportivas resulta em um concurso onde os grupos de dança performam na frente de jurados. Se a etnografia clássica dá a ver e dá a ouvir voz e visibilidade aos grupos não visíveis e invisíveis, ou não descobertos pela mídia, ou pela produção de imagem – no sentido de tipologias – o que fazemos hoje quando decidimos fazer Swinguerra, desde 2015, foi dar ênfase à nossa pesquisa com estes coletivos que praticam e produzem sua própria arte em circuitos mais alternativos, reconhecemos que eles são visíveis e têm domínio e controle sobre a própria voz. E aí que fica visível o nosso entendimento de etnografia. A única maneira de contribuirmos é fazendo um trabalho em colaboração com eles, porque também estamos aprendendo etapas e metodologias das práticas destes artistas. O que é mais importante para nós, em suma, é que esses jovens performam a si próprios. Existe essa questão delicada, de lugar de fala, onde não há como redimirmos. Sobre essa questão da influência dos grupos de dança internacionais e sua penetração nas periferias do Brasil, e na periferia do Recife, o que esses jovens realizam é uma adaptação, não dá para entender que isso venha de cima para baixo.
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A retomada de posse das corpas dissidentes sobre Bixa Travesty, de Claudia Priscilla e Kiko Goifman Giovanna Heliodoro1
Você já se questionou sobre o que torna determinados corpos alvo de interesse ou controle de muitas instituições e grupos sociais? Você já se reconheceu enquanto uma identidade, uma raça, uma sexualidade, um gênero dominante ou um sujeito cisgênero? Você já pensou sobre quais são os mecanismos, as práticas e as suas ações que colaboram com a morte simbólica e física de travestis e transexuais? É comum pensarmos que o preconceito, as fobias e os tabus fazem parte da nossa estrutura social, mas dificilmente conseguimos nos reconhecer enquanto sujeitos preconceituosos, proponentes, propulsores ou integrantes desta estrutura. Ninguém deseja ser associado à transfobia, mas tão pouco sabe dizer sobre onde estão as travestis e as transexuais em sua vida. Uma prova disso é que certamente você não tem em seu círculo social nenhuma travesti ou transexual como amiga, que uma travesti nunca visitou a sua casa, nunca integrou o seu cotidiano, nunca sequer foi abraçada por você e que você nunca assistiu a um filme protagonizado por uma travesti NEGRA. O documentário Bixa Travesty (Claudia Priscilla e Kiko Goifman, 2018), te faz reconhecer enquanto sujeito privilegiado, propõe encontros, confrontos e incômodos necessários através de vivências da protagonista – e co-roteirista – Linn da Quebrada. Uma travesti negra, artista, compositora, jovem, à margem da sexualidade dominante e dos discursos que insistem em patologizar as identidades travestis, trans e intersexuais como distúrbios e ou anomalias. Contrapondo a isso, essa obra promove um papel fundamental de naturalização dos corpos dissidentes, é a partir dela que aqueles sujeitos que nunca conviveram ou sequer pensaram em estabelecer trocas com pessoas marginalizadas passam a criar determinada aproximação. Por meio da lógica de que os encontros podem estabelecer mudanças, a protagonista cria então um canal direto ou programa radiofônico que estabelece um diálogo com as pessoas cisgêneras. Ao mesmo tempo em que as temáticas
1. Giovanna Heliodoro é uma travesti negra, da zona norte de Belo Horizonte, historiadora pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Artista independente, pesquisadora de gênero, articuladora política e social. Integra o Coletivo Pretas T, é protagonista do Canal Trans Preta no Youtube e autora do livro Raízes – Resistência Histórica.
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ligadas à harmonização, à binariedade, à família, ao corpo biológico e à solitude de corpas travestis vão sendo apresentadas em fragmentos. Entre o ficcional e o espontâneo vão se construindo narrativas que expõem registros dos shows, das performances artísticas, do cotidiano, das reflexões, das trocas com a mãe e da amizade de Linn com as suas parceiras Jup do Bairro, Gabriella Duchamp e Liniker Barros. É inegável a tamanha exposição e aproximação que a artista estabelece durante o filme. Talvez esse inclusive venha a ser o único contato intimista de muitos espectadores com uma travesti. Entre os confrontos e muitos questionamentos, o corpo da protagonista se apresenta como ela mesma narra, uma arma. Um instrumento de ressignificações, ocupações, experimentações, existência, sobrevivência e sobretudo resistência. Ao mesmo tempo também, este mesmo corpo se mostra frágil quando tece lembranças do passado ou de sua solidão, tornando a Linn da Quebrada naturalizada como humana, como um sujeito amplo, mais próximo. Ao final ressalto que sim, nós travestis e transexuais já estamos estabelecendo proximidade de vocês, pessoas cisgêneras, para conquistar a retomada de posse do direito sob o nosso corpo, aprendemos as suas técnicas e agora vamos aprimorá-las em prol de nossas vidas.
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O canto da boca da mata: notas sobre Ma’e Mimu Haw – A história dos cantos sobre filme de Jamilson, Pollyana, Jacilda e Lemilda Guajajara Cristiane Lima1
Protagonizado por Tachico Guajajara, o filme dirigido por Jamilson Guajajara, Pollyana Guajajara, Jacilda Guajajara, Lemilda Guajajara (2018) propõe um breve percurso em meio à mata no entorno da Aldeia Maçaranduba, território indígena Caru, no Maranhão, recontando as origens dos seus cantos e como estes atravessaram gerações até os dias de hoje. O filme se inicia com um plano de algum lugar entre o céu e a terra, no início de uma manhã, ao sabor dos sons da floresta. Seguem-se alguns breves planos das copas das árvores, enquanto escutamos uma miríade de sons que se sobrepõem e se diferem, compondo uma massa sonora descontínua e rica em nuances, na qual conseguimos distinguir gorjeios de pássaros de diferentes espécies, cricrilar de grilos, zumbidos de insetos (abelhas, talvez) que se aproximam do dispositivo de gravação. O balanço das folhagens ao vento remete ao movimento, à vibração e nos deparamos com um retrato da mata como lugar de múltiplas formas de vida, cuja presença se faz sensível, mesmo que não de todo visível na imagem – o que já de saída nos remete às características mesmas do som enquanto fenômeno acústico, esse objeto-subjetivo, que é concreto e ao mesmo tempo invisível e impalpável; “que está dentro e fora, não pode ser tocado diretamente, mas nos toca com uma enorme precisão” (WISNIK, 1989, p. 28). O som – e o canto, como sabemos – é elemento que conecta, que põe em relação, que permite a comunicação dos seres viventes entre si e também com os espíritos, em diferentes povos, indígenas e não indígenas. Logo veremos Tachico percorrer a mata com familiaridade, conversando com aqueles por detrás da câmera, bebendo água no rio usando a folha como suporte. Mas antes disso, ele se detém no meio do caminho para entoar o canto do Tepetepen, o dono dos cantos da mata. Embora ele seja hoje o porta-voz deste e de outros cantos transmitidos pelos pássaros a seus parentes, ele explica que a vida de cantor é triste, pois já não há
1. Cristiane Lima é professora da Universidade Federal do Sul da Bahia e doutora em Comunicação Social pela UFMG.
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jovens interessados em aprender os cantos sagrados. Fica explicitada aí a importância do filme – como já vimos em tantas produções do Vídeo nas Aldeias – enquanto dispositivo de memória. Porém, há saberes que não serão revelados – pelo menos não agora, como é o caso do canto da chuva. Conforme contaram seus antepassados, houve um índio que, ao sair para caçar, subiu uma colina e encantou-se com os belos cantos entoados por vários pássaros em forma de gente (Tepetepen, Viramé, Zyriu, Pacahu, Arara, Tucano Viruhu, Zapu, Virapon), reunidos ao fundo de um boqueirão da mata. Mas como Tachico explica, todos os bichos têm seu canto (mesmo a rã, a borboleta). O índio caçador então, comovido pelos cantos, desce até o boqueirão para escutar de onde vinha aqueles sons, quando encontra os pássaros na forma de homens, mulheres, velhos. E antes de partir, o gavião entrega-lhe os cantos para que os leve para sua aldeia. Tem-se assim o início de sua transformação em pajé, agora que se tornara conhecedor da sabedoria dos cantos. Zyriu está aqui. Zyriu está aqui. O canto está aqui. O canto está aqui. É aqui que o canto está sendo cantado pra nós. A música é diferente pela manhã. Zyriu está aqui. Zyriu está aqui.
Veremos mais um plano geral da mata – dessa vez visto de longe – até chegarmos à vida em comum na aldeia, quando os cantos encontram finalmente as novas gerações. Não sabemos por quantos anos eles serão retransmitidos aos mais jovens, mas já sabemos que o canto está aqui hoje e desde sempre. Ele está na aldeia, ele está no filme, impregnado em suas imagens e sons desde o primeiro frame. Cabe dizer, para encerrar, que Ma’e Mimu Haw – A história dos cantos foi produzido durante as oficinas de formação audiovisual do Vídeo nas Aldeias, dentro das Ações do Plano Básico Ambiental do Projeto de Expansão da Estrada de Ferro Carajás (EFC) da mineradora Vale. Embora se trate de um outro contexto, ao ler os créditos finais do filme, nos lembramos do triste episódio ocorrido em 25 de janeiro de 2019, quando a Mina Córrego do Feijão, sob responsabilidade da mesma mineradora, em Brumadinho, situada na região metropolitana de Belo Horizonte, se rompeu, ocasionando a morte de 249 pessoas e deixando 21 desaparecidos até a data.2 As consequências diretas e indiretas do desastre ainda são incalculáveis. Sabe-se que o acidente teve impactos na vida dos indígenas pataxó hã-hã-hãe, da aldeia Naõ Xohã, no município de São Joaquim de Bicas, às margens do Rio Paraopeba, que assistiram à morte dos peixes na região e a uma crise no abastecimento de água potável – para citar apenas dois exemplos. Nos
2. Cf.: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/09/oito-meses-apos-rompimento-de-barragem-bombeiros-encontram-corpo-em-brumadinho.shtml>.
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lembramos ainda das palavras de Ailton Krenak, nascido na região do Rio Doce, lugar profundamente afetado pela atividade mineradora (lembremos também do rompimento da barragem do Fundão, em Mariana, em novembro de 2015, empreendimento conjunto das empresas Samarco, Vale e BHP Billiton, que levou à morte o Rio Doce ao longo de toda a sua extensão). No livro Ideias para adiar o fim do mundo (2019), Krenak denuncia o discurso de “humanidade” e “sustentabilidade” entoado pelas empresas multinacionais capitalistas “para justificar o assalto que fazem à nossa ideia de natureza” (KRENAK, 2019, p.16). Para adiar o fim do mundo que nos é imposto diariamente por essas corporações que buscam apenas multiplicar seus lucros, caberia às pequenas constelações de gente conectada à terra e à natureza – os povos indígenas, mas também quilombolas, comunidades pesqueiras, ribeirinhas ou rurais, etc. – insistir com suas histórias, danças e cantos. Cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu é comum em muitas tradições. Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo, mas um existencial. É enriquecer as nossas subjetividades, que é a matéria que este tempo que nós vivemos quer consumir. Se existe uma ânsia por consumir a natureza, existe também uma por consumir subjetividades – as nossas subjetividades. Então vamos vivê-las com a liberdade que formos capazes de inventar, não botar ela no mercado. Já que a natureza está sendo assaltada de uma maneira tão indefensável, vamos, pelo menos, ser capazes de manter nossas subjetividades, nossas visões, nossas poéticas sobre a existência. (KRENAK, 2019, p. 33)
Embora o fim do mundo não seja objeto de reflexão do filme propriamente, lembremos, pois, como estratégia de sobrevivência, do primeiro plano do filme, direcionado ao ar, àquele lugar entre céu e terra, o Iwak, onde moram os donos dos cantos que ainda nos dias de hoje – contrariando as forças do capital – insistem em sair da boca da mata.
Referências KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. WISNIK, José Miguel. O som e o sentido. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
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Olhares de Matis jovens nos filmes Dia de caçada e Meninos soprando cana fina Clarisse Alvarenga1
Os Matis vivem na bacia do Rio Javari, que em quase toda sua extensão constitui a fronteira Brasil-Peru, na região do Alto Solimões, sudoeste do estado do Amazonas. Da parte do Brasil, a maior parte da população está distribuída entre 3 aldeias na Terra Indígena Vale do Javari, uma das maiores terras indígenas do país, reconhecida em 1999, demarcada fisicamente em 2000 e homologada em maio de 2001. Ali também habitam outros povos falantes de línguas Pano (os Marubo, Matses, Kulina Pano, Korubo), os Kanamari (de língua Katukina), os Kulina (de língua Arawá), além de grupos indígenas que permanecem em isolamento voluntário, apesar do contato mortífero com não-indígenas desde o final dos anos 1970. Em conjunto os filmes Dia de caçada e Menino soprando cana fina nos apresentam os saberes e práticas envolvidos na caçada Matis, tal como realizada pelos anciãos (no primeiro filme) e reproduzida pelas crianças (no segundo). O primeiro filme se dedica a acompanhar um dia de caçada dos adultos desde o preparo minucioso da coleção de dardos com veneno, que serão lançados pelas zarabatanas, até o retorno à aldeia no fim do dia. O segundo concede atenção às crianças, que sopram a cana fina como se fosse zarabatana e o barro como dardo para imitarem a maneira como seus pais e avós caçam, numa encenação na qual por meio da brincadeira experimentam a situação da caça. No entanto, é preciso lembrar que quem de fato transita entre as duas circunstâncias são jovens, pois é um grupo constituído por nove Matis jovens de três aldeias – Kudaya, Tawaya e Bukuwaya – que realiza o filme: Damë Bëtxun Matis, Chawa Wassa Matis, Damë Matis, Kaxë Mentuk Matis, Shapu Sibo Matis, Dani Matis, Damba Matis, Chawa Atsa Matis, Tumi Rieli Matis. Eles e elas estão com suas câmeras a testemunhar que a passagem entre a caçada dos anciãos para a das crianças não se dá de maneira direta – muito se transformou e continua a se transformar ao longo do tempo.
1. Professora adjunta da Faculdade de Educação da UFMG, onde atua como docente no Curso de Formação Intercultural para Educadores Indígenas (FIEI) e como coordenadora do Laboratório de Práticas Audiovisuais (Lapa). É autora do livro Da cena do contato ao inacabamento da história (Edufba, 2017) e realizadora dos longas-metragens Ô, de casa! (2007) e Homem-peixe (2017).
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Dia de caçada se inicia com uma criança tentando entrar na espaçosa maloca onde os adultos estão a preparar os instrumentos usados na caçada. Mas, ela é advertida por meio de uma voz que escutamos, sem saber quem exatamente a profere, dizendo que o menino Matis não poderia entrar vestido de camisa. Assim, um adulto retira a camisa dele enquanto escutamos alguém dizer também que, em seguida, a camisa precisa ser lançada ao chão. Depois desse aviso dado à criança desavisada e a nós, espectadores, somos introduzidos ao ambiente interno da maloca. Os homens reunidos explicam que estão aplicando veneno no dardo para pegar macaco barrigudo gordo na caçada. Uma voz que, mais uma vez não identificamos de quem seria, mas que obviamente pertence a um ancião, alerta que não se pode preparar os dardos da maneira como os adultos homens estão preparando. O correto, na sua concepção, seria preparar o dardo sozinho e não em grupo, esperando moça na beira do rio, para onde elas vão tomar banho. A aplicação do veneno teria que se dar dentro da mata e não na maloca. Nessas duas ponderações fica, portanto, a sugestão de que o trabalho de preparação da caçada, na explicação dos anciões, alcançava a relação entre homem e mulher e também de que não são apenas as crianças que desconhecem as regras que cercam a caçada: até mesmo os caçadores que passaremos a acompanhar parecem desconhecê-las. Essa preparação, feita hoje pelos adultos dentro da maloca, serve como uma espécie de introdução, tanto do filme como da situação da caçada. Após essa primeira parte do filme, os caçadores saem de barco pelo rio. A atividade do olhar é filmada, como se a câmera buscasse enquadrar de perto o olhar dos Matis caçadores vigiando a floresta. Nesse momento, escutamos sons de cantos que foram inseridos posteriormente na montagem sobre o som do motor do barco. Quando adentramos na mata, os planos se tornam mais abertos e a atividade de escuta é enfatizada. Um deles explica que a partir dali vão imitar macaco preto. O som direto capta justamente os sons que os caçadores fazem para dialogar com os macacos. Nesse momento, um dos caçadores sugere que os realizadores deixem a câmera no mato para pegar depois, na volta. Surge um segundo comentário no sentido de que a câmera deveria ser posta na ponta da zarabatana, o que indica talvez um lugar privilegiado a se postar o olhar na situação da caçada. Nesses dois breves comentários fica subentendido que a câmera é tratada como um instrumento de caça ou é posta em relação com eles, assim como a relação entre homem e mulher estava vinculada à preparação no passado, por exemplo. A partir daí, inicia-se um momento em que avistamos a floresta do alto, com mais movimentação entre os caçadores, que se deslocam, assobiam e fazem tentativas de abater os macacos. Trata-se do momento de maior proximidade com a presa, em que a atenção dos caçadores e de nós, espectadores, está toda voltada para acertar os macacos. É como se o ponto de vista realmente fosse o da ponta da zarabatana. Tendo conseguido abater os macacos, um após o outro, eles mostram como retiram o dardo do corpo atingido e como amarram as presas com uma corda de palha. Uma mulher pede para que seja mostrado para a câmera os dois procedimentos. Alguém pergunta quem irá carregar os macacos e um outro caçador brinca dizendo que os meninos é que
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vão carregar. Ao que os meninos respondem dizendo que irão carregar correndo, como se fosse fácil para eles suportar a carga, o que é uma ironia. Chega o momento de retornar ao rio, quando escutamos novamente cantos Matis até que a embarcação chega à aldeia. As mulheres preparam a comida no fogo. O filme termina com um dos caçadores descansando na rede ao lado de cachorros, que também dormem, e galinhas ciscando. O filme Meninos soprando cana fina se inicia com os meninos saindo de dentro da mata e explicando que da mesma maneira como os velhos fazem zarabatanas para caçar macaco barrigudo, as crianças fazem cana fina para matar gafanhotos. No momento em que eles fazem o corte da cana fina, uma formiga ferroa uma das crianças, mostrando que ali talvez elas sejam as presas. Após cortarem cana fina, passam ao rio onde pegam barro e amassam. Esse barro é usado para fazer um suporte na zarabatana de cana fina onde se apoia a mão, sendo que o barro também é usado como dardo. As crianças disparam suas zarabatanas de frente para a câmera, mirando no alto, e dizendo: me filma, branco (nawa)! Daí em diante, partem para uma encenação da situação da caçada. Metade do grupo assume o lugar das presas, subindo nas árvores como fazem os macacos. Os caçadores fazem a disputa por quem ataca os macacos e reproduzem a sonoridade da cena da caçada. Os macacos-crianças atingidos caem das árvores como ocorre aos macacos barrigudos na caçada dos adultos. São retirados os dardos dos corpos deles que supostamente teriam sido atingidos. Voltam pra aldeia, carregando suas caçadas-crianças nas costas. Ambos os filmes foram feitos pelo mesmo grupo de realizadores, no entanto são muito diferentes do ponto de vista da maneira de filmar. O filme dos adultos é bastante detalhista, enfatiza o olhar dos caçadores e as técnicas usadas no preparo dos instrumentos e na caçada. A relação entre o instrumento que produz o filme (a câmera) e os instrumentos da caçada é explicitada. O filme das crianças enfatiza a maneira como as crianças experimentam a caçada ao seu modo, por meio da brincadeira, por vezes tratando a caçada como uma encenação. Nesse sentido, talvez os olhares de Matis jovens sejam olhares que transitam – não de maneira fácil e sem antes serem advertidos –, entre as fases da vida e, ao fazer isso, acabam indicando caminhos possíveis de diálogos entre gerações. É esse caminho, aberto pelos Matis jovens, que o cinema vai seguir, buscando captar as transformações do ritual da caçada e das formas como ela pode ser partilhada com as novas gerações.
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De como utilizar a câmera como se fosse um petyngua sobre O último sonho, de Alberto Alvares Daniel Ribeiro Duarte1
Porque o filme é igual a um cântico. Por exemplo, para você aprender a cantar em Guarani, tem que aprender a ouvir o som e o ritmo do canto. A mesma coisa com a câmera, você tem que aprender a guardar a sabedoria e tem que usar o equipamento como se fosse o segundo olho, ouvindo e respeitando o momento de cada entrevistado, assim aprendo com os mais velhos a cada momento na aldeia. Alberto Alvares
O último sonho cumpre uma das tarefas primordiais do cinema indígena, a de guardar com a imagem a memória da cultura. Se antigamente esta memória era integralmente transmitida pela oralidade, agora os povos indígenas se beneficiam do vídeo para fortalecer a cultura no presente e para o futuro. Neste filme, Alberto Alvares o faz através da “homenagem ao grande sábio Wera Mirim”, como ficamos sabendo num lettering logo nos primeiros segundos. Esta homenagem póstuma, entretanto, vai atingir camadas mais profundas do que um simples filme memorial, pois além de trabalhar com imagens de arquivo do Xeramoin (avô, ou um dos mais velhos da aldeia em língua guarani), o cineasta mostra estas imagens aos parentes que o conheceram, dando-nos a dimensão do vasto conhecimento que detinha, mas também registrando na comoção dos espectadores guarani a forma como sua presença alargava e insuflava o sentido da vida em comunidade. Em O último sonho, o realizador trabalha a história do Xeramoin que, em um sonho, visualizou o lugar propício para a aldeia Sapukai, procurou-o por dois anos e liderou a fundação desta, próximo a Angra dos Reis. Não se trata de um sonho individual – nem aspiração pessoal nem vagueação noturna – mas um sonho que se projeta coletivamente e se alarga em cada gesto de Wera Mirim que, segundo vemos no filme, o viveu até o último dia de sua vida. Logo no início do filme vemos a imagem de uma criança em primeiro plano e em segundo plano Alberto Alvares com a câmera, filmando. Este é um plano de afirmação do
1.Pesquisador, curador e realizador de cinema. Integra o coletivo Filmes de Quintal. Doutor em Cinema pela Universidade Nova de Lisboa.
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realizador indígena e sua presença, mas é também, e principalmente, um indício de que o filme, inspirado na sabedoria que vem do passado (de um sábio já falecido), tem o seu centro gravitacional no futuro. Sendo O último sonho um filme de escuta e transmissão, a aparição do realizador com a criança em primeiro plano figura este endereçamento da sabedoria em direção à continuidade da cultura. Wera Mirim era um grande sábio entre os Guarani Mbya. Sabia “como se caminhava antes”, nos tempos ancestrais, em busca da “Terra Sem Males”. Trata-se de um lugar mítico guarani, onde não há violência, fome ou mau-proceder. Vale lembrar que este povo, quando da chegada dos europeus à América do Sul, distribuía-se numa faixa territorial que ia de onde hoje está o litoral de São Paulo até o Rio Grande do Sul, estendendo-se também a oeste até a fronteira tríplice de Paraguai, Brasil e Argentina e por todo o território paraguaio até a Bolívia.2 Sua grande população (contando-se as variantes Kaiowá, Mbya e Nhandeva) foi drasticamente reduzida entre as colonizações portuguesa e espanhola, a expansão agrícola cada vez mais industrial e o surgimento das grandes cidades. Se ainda há cultura guarani, é pela resistência de gerações de sábios como Wera Mirim que, tendo a visão de sua cultura e a força do bom proceder – o Nhandereko − conseguiram manter as tradições vivas enquanto o seu território original era sucessivamente invadido para dar lugar às maiores ocupações tanto rurais quanto urbanas do Brasil atual. Nas imagens de arquivo, Wera Mirim ensina o Xondaro, uma dança guarani mas também uma arte marcial que segundo o Xeramoin era ensinada para que cada um aprendesse a tomar conta de seu espaço.3 Seu domínio da palavra e da tradição espiritual também o fazia um grande rezador, capaz de liderar com seriedade e alegria os rituais. Tudo isso podemos ver através deste bem composto filme de arquivo, em que as imagens conseguem recuperar um pouco da presença de Wera Mirim. Depois destas imagens de arquivo, vemos um ritual póstumo, feito no lugar onde o Xeramoin está sepultado, no qual uma mulher, com seu petyngua, faz um longo discurso sobre ele e todos cantam, muitos choram e se lamentam. Vemos imagens que se demoram nos rostos dos parentes e amigos, e sentimos num tempo distendido a dificuldade trazida pela sua ausência. Segue-se uma sequência de muitas imagens da mata, quando Alvares explica em voz off que as pessoas que morrem não se vão completamente. Na cultura guarani, o corpo se vai mas o espírito fica. Assim, os ancestrais estão próximos daqueles que rezam por eles, protegendo o lugar e as pessoas que nele vivem, participando das danças, estando presentes às reuniões e fumando o petyngua quando os vivos o fumam. Talvez seja a primeira sequência do filme em que a presença humana não está 2. Através do Mapa Guarani digital, online em <https://guarani.map.as>, podemos visualizar a ocupação Guarani original, as aldeias e terras indígenas existentes e os sítios arqueológicos desta tradição. 3. “Tem vários motivos para essa dança ser praticada. Xondaro é uma forma de chamar os meninos que desde pequenos recebem ensinamentos e metodologias dos mais velhos, pessoas experientes e sábios em geral. A dança em si ensina muitas coisas, como se defender, ter agilidade, estar sempre atento para tudo e estar disposto a tudo. Os vários movimentos ajudam a ter o corpo mais ágil e leve, e também a ter mais saúde, principalmente através do suor, que elimina as doenças e limpa a pessoa. Assim, ficamos mais alegres e mantemos nosso estado físico e espiritual.” Xondaro Mbaraete: a força do Xondaro. Coordenação editorial Centro de Trabalho Indigenista (CTI). São Paulo, 2013. p. 28.
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evidente, pois o que vemos são plantas, mas as palavras de Alberto Alvares convocam uma multidão de ancestrais para estarem nestas imagens, invisíveis. Talvez este filme seja uma concretização ainda mais radical do que o realizador escreveu sobre o seu aprendizado com o cinema em Os verdadeiros líderes espirituais. Para ele, filmar o Wera Tupã havia sido um aprendizado de como utilizar a câmera da mesma forma que os velhos utilizam o petyngua: Depois da palavra do xeramoin Alcindo, passei a usar a câmera como se fosse um petyngua, para me conectar espiritualmente com a sabedoria do silêncio. Passei a usar minha imaginação no mundo da lente, sem ter o medo de quebrar o equipamento. O equipamento tem preço, podemos consertar. A memória tem valor maior, inestimável. Não tem preço. E quando ela se perde, é difícil trazê-la de volta.4
“Quando não lembrarmos mais dos espíritos, eles não saberão mais viver” – é como Alvares finaliza, no filme, o seu relato de como o mundo espiritual está sobreposto ao cotidiano da aldeia. Se o petyngua é um instrumento de meditação que convoca os espíritos dos ancestrais, permite a sua aproximação silenciosa e o aconselhamento, Alberto Alvares procura dar à câmera um uso semelhante. Numa atitude de espera e escuta o realizador se aproxima da figura ausente-presente de Wera Mirim e consegue se conectar com a sabedoria do silêncio, permitindo que o seu espírito e o de outros ancestrais fortaleçam os Guarani em sua caminhada.
4. ALVARES, Alberto. Da aldeia ao cinema: o encontro da imagem com a história. Trabalho de conclusão do curso de Formação Intercultural para Educadores Indígenas da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018. p.18.
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Sete anos em maio: entre a solidão do sobrevivente e a expansão do trauma1 sobre filme de Affonso Uchôa Cláudia Mesquita2
No artigo “Conversa em torno da fogueira” (2012), Jacques Rancière escreveu que a política seria, em um filme, o cruzamento entre uma questão de justiça e uma prática de justeza. Sete anos em maio (Affonso Uchôa, 2019) também abriga uma conversa noturna à beira do fogo, associação que me levou a essa citação de Rancière. Permito-me então começar por ela; afinal, neste filme, à urgência do problema, e à violência extrema que ele encerra, corresponde o rigor da busca (ensaística) de formas justas para elaborá-lo. No centro de Sete anos em maio, está o testemunho de Rafael dos Santos Rocha, o Fael, morador do Bairro Nacional (Contagem/MG), confundido com um traficante e barbaramente torturado por oito policiais, em 2007, quando tinha 20 anos. A transmissão dessa experiência traumática move o filme, que desdobra, em cada uma de suas três partes, tentativas de elaborá-la. Bastante diferentes entre si, as sequências do filme se relacionam por alguns elementos em comum. O mais decisivo é o corpo de Fael, presente em todas elas. Outro traço fundamental é a escuridão: noturnas, as três partes se conectam pela atmosfera clandestina, de sonho sombrio ou coisa obscura, que marca o filme todo. A começar pelo primeiro plano, fragmento denso, espécie de cifra, anterior às três sequências que estruturam a narrativa. Nele, Fael caminha sozinho por uma estrada escura, precariamente iluminada por postes e faróis intermitentes. Ele caminha em direção à câmera, como quem “retorna”. Corpo em contraluz, mal se distingue seu rosto: Fael é como uma sombra. A errância do personagem, sua fuga e desterro são aí cifrados, bem como um movimento de “volta”, para contar. O plano figura ainda a solidão extrema do
1. Esse artigo é debitário de muitas conversas. Em especial, com Rafael dos Santos Rocha, Ewerton Belico e estudantes da turma de Formas e processos da imagem (PPGCOM-UFMG), em 2019/2. A todxs, obrigada! 2.Claudia Mesquita é professora do curso de graduação e do programa de pós-graduação em Comunicação Social da UFMG, onde integra o grupo de pesquisa Poéticas da Experiência, e orienta pesquisas de graduação, mestrado e doutorado. Em 2018-2019, realizou pós-doutorado na UFC, desenvolvendo o projeto “O presente como história - estéticas da elaboração no cinema brasileiro contemporâneo”.
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sobrevivente, condição de quem não sucumbiu ao próprio assassinato (“fechei o olho e escutei quatro disparos (...) pra mim eu tava morto já”), mas experimentou no corpo a fissura: desconexão da vida familiar e cotidiana, espécie de sina de “morto-vivo” (“não tinha jeito deu voltar para casa”, “minha vida desandou totalmente”, “fiquei vagando”).3 A primeira parte, a seguir, propõe uma reencenação do episódio traumático. À noite, em um descampado, parcialmente iluminado por lanternas e focos de mato seco queimando, um grupo de rapazes do Bairro Nacional, às voltas com roupas e objetos dispostos em uma mala pela equipe do filme, vestem-se de policiais. Escolhem seus “figurinos” e armas, buscam a cumplicidade da câmera, exibem-se uns para os outros, entre gracejos e pequenas atuações (“sempre quis usar uma roupa assim”). O trabalho de (re)encenar é exposto em seu caráter construído, precário, parcial (é apenas um fragmento) e também lúdico, apesar da gravidade do episódio reencenado. “Brincando” de polícia, os rapazes abordam Fael, que integra o grupo, mas dele se distingue: na cena que se defasa, brechtianamente, da situação real, Fael é o único que viveu precisamente o papel que encarna. Daí a ambiguidade do segmento, que não deixa de expor, no corpo de Fael em cena, o sofrimento real de que foi vítima e que o marcou. Noutras palavras: mesmo que não se pretenda repor o acontecimento de modo verossimilhante e naturalista, em sua inteireza de fato passado, a elaboração presente ainda passa pelo corpo marcado do sobrevivente. Não que os garotos do bairro tenham se transformado em algozes. Eles, que atuam ironicamente “como policiais”, provavelmente já foram vítimas do racismo e da truculência da polícia; tiveram amigos, irmãos, primos ou vizinhos violentados. Sua atuação, entre irônica e desejante, expõe sobretudo o repertório que manejam, por serem alvos constantes desse tipo de abordagem: gestos abusivos, falas intimidatórias, crueldades “de polícia”. Já o registro de Fael – que faz o seu próprio papel – não poderia passar pela distância irônica. Seu corpo em cena conecta a encenação improvisada à experiência real (com tudo o que ela traz de não-compartilhável). Um plano marca precisamente a passagem entre o fragmento de reencenação e a sequência seguinte, centrada no testemunho do protagonista: Fael vagueia sozinho pela subestação da Cemig onde foi torturado, observando o espaço, silenciosamente. Reforçado pelo que ouviremos em seu testemunho a seguir, o plano sugere que há, ali, algo mais para se ver do que geradores e postes iluminados. O corpo retornado de Fael assinala naquele espaço aparentemente inócuo outras camadas de tempo, a latência de vestígios, de histórias desconhecidas. A subestação da Cemig torna-se assim uma testemunha muda, algo como um “não lugar de memória” (lugar de tortura, morte, destruição, apagamento).4 Será preciso que Fael vocalize o seu testemunho para subtrair esse espaço ao silêncio. É o que se faz na segunda parte, a mais longa do filme. Tendo como premissa que um testemunho deve ser colocado em cena para que seja inscrito (em um filme), podemos
3. Assim dizendo, antecipo informações e provavelmente sobrecarrego o primeiro plano do filme. Embaraço da escrita. Pois cada segmento de Sete anos em maio não encerra em si tantos sentidos; eles vão se somando à medida que as sequências, coordenadas, se sucedem, e o espectador ressitua o que viu a partir das chaves que lhe oferece o trecho seguinte. A não ser que haja outra indicação, as citações entre aspas, em primeira pessoa, foram extraídas do testemunho de Fael, na segunda parte do filme. 4. Refiro-me aos “lugares de memória” teorizados por Pierre Nora (1984), sítios nos quais, em momento de crise
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elencar algumas características fundamentais dessa contundente mise-en-scène testemunhal. Sentado no chão, próximo a uma fogueira acesa numa lata, Fael fala no mesmo lugar onde foi torturado. Sozinho em campo, ele desfia um longo relato, testemunho de anos de uma vida, em um plano sem cortes. A princípio, imaginamos que o personagem, quase sempre cabisbaixo, sem olhar diretamente para a câmera (trabalho de enquadramento), narre o que viveu motivado pela presença da equipe no antecampo (em uma situação tipicamente “documentária”). Mas o monólogo se revela diálogo quando, depois de 17 minutos de performance testemunhal, um corte vem expor a presença de outro personagem em cena. Sete anos encena, assim, não apenas o testemunho, mas uma escuta precisa. Impossível qualificar a violência bárbara e covarde de que Fael foi vítima. Seu relato da tortura que lhe impingiram oito policiais é de uma precisão inaudita, difícil de suportar. O trauma e a ameaça dos policiais (foram exigidos dele, “para sexta-feira” e em troca da sobrevivência, “5 mil em crack, 5 mil em cocaína, e 5 mil em dinheiro”) provocaram a errância, o desterro forçado, “épico do escape e da fuga” (na expressão de Affonso Uchôa)5 que parece não ter fim (“isso nunca mais saiu da minha cabeça”, “o pior é essa raiva que nunca passa”, “é como se aquele dia nunca deixasse de existir”). Fael viveu em muitos lugares, e sobreviveu de muitas maneiras, antes de voltar “para casa”. Embora ele se refira ao passado, seu testemunho não encena esse retorno. Mantendo uma lacuna entre a errância e o presente da filmagem, Sete anos em maio posiciona o próprio testemunhar como “ponte”, possibilidade de “retorno”, de reconexão e retomada do fluxo da vida, a partir de uma escuta. Nesse sentido, é muito estratégico posicionar o relato testemunhal como diálogo, figura “prototipicamente ficcional”, no dizer de Affonso Uchôa. Quem escuta é um jovem negro, alguém como Fael, da periferia, sujeito à violência arbitrária e impune do Estado, alguém que pode dizer: “a sua história é triste, igual a de muitos que eu encontrei por aí, a minha é igual à sua”. Se o filme figura, através de algumas de suas escolhas, a solidão do sobrevivente, o diálogo que se segue vem tirar o testemunho de Fael do círculo da literalidade e da unicidade extremas, vem “des-singularizar”, situando sua experiência traumática numa história coletiva de violências, apagamentos e injustiças. Não é só isso que realiza essa conversa precisa – e, por vezes, emblemática – entre os dois personagens. Ela instaura uma reflexão sobre a justiça, da perspectiva de quem vive à margem da Justiça (com J maiúsculo). É possível justiça? Que justiça? Ruminar a própria dor (e o desejo de vingança) não seria a única forma de manter viva a memória da violência sofrida? Afinal, esquecer não é justamente o projeto dos algozes? Mas se é da transmissão, “pendura-se” a memória coletiva. A expressão “não-lugares de memória” foi utilizada por Claude Lanzmann para sublinhar a diferença marcante dos espaços revisitados por sobreviventes do Holocausto em seu filme Shoah (1985): sítios arruinados, marcados pela ausência, pelo apagamento, pelo projeto nazista de não deixar rastros. O retorno de Fael à sub-estação da Cemig faz pensar na volta de Simón Srebnik, um dos dois únicos sobreviventes do campo de extermínio de Chelmno, ao sítio na Polônia onde esteve confinado (quando tinha apenas 13 anos de idade). Ele volta para a filmagem de Shoah, 34 anos depois do final da Guerra. 5. “Um épico do escape: formas de retratar uma vida”. Entrevista com Affonso Uchôa por Adriano Garret. Site CineFestivais, publicado em 19/06/2019. Disponível em: <http://cinefestivais.com.br/affonso-uchoa-fala-sobre-sete-anos-em-maio/>. As outras citações do cineasta provêm dessa entrevista.
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remota a hipótese de reparação pública, a possibilidade de vingança também é colocada em questão pelo interlocutor de Fael (vivido por Wederson Neguinho, de A vizinhança do tigre): “polícia é igual formiga, você vai atrás de um, vem cinco mil, 20 mil atrás de você para te pegar”. Por fim, e não menos importante, o diálogo prepara o registro alegórico que marcará a última parte do filme. No final da conversa, a fala de Neguinho alça voo literário, e parece poder se referir, em sua densidade e enigma, a muitas dimensões da experiência: da necessidade (inclusive terapêutica) do testemunho à tenebrosa conjuntura sociopolítica do país; das escolhas do filme à expansão da história trágica de Fael, assim situada em um processo de apagamento continuado, de extermínio (e ocultamento de suas marcas) da juventude negra, pobre e periférica no Brasil:6 “Ainda dá para ver as manchas de sangue no asfalto. E não é só o seu. Tem muita gente morrendo todo dia. A gente tá cercado por uma pilha de gente morta. E essa pilha só tá crescendo, desde antes da gente nascer. E ela já tá tão alta que já tapou até o céu. E é por isso que tá tudo tão escuro. Mas não tem noite que dure para sempre. A gente tem é que seguir adiante. Por nós e por eles também”. Sobrepassando o testemunho, o diálogo não apenas o transmite, em suma, mas reflete sobre a necessidade, a exigência ética do testemunhar; situa a experiência de Fael numa história coletiva, sem deixar de figurar a solidão absoluta do sobrevivente, corpo fissurado pelo trauma. E abre ainda uma reflexão sobre a justiça, o que alinha essa conversa a outras “conversas noturnas em torno da fogueira”, verdadeiro topos no cinema, como indica Jacques Rancière, ao tratar de um filme dos Straub (Da nuvem à resistência), no artigo já mencionado.7 “Por nós e por eles”. A última frase do interlocutor de Fael ecoa no plano seguinte, o primeiro da terceira parte do filme, em que vemos dezenas de jovens caminhando, pernas e pés atravessando o quadro. Quando saem de campo, a câmera se detém no asfalto, e ficamos a imaginar as manchas de sangue na calçada. Nesse segmento também noturno, jovens periféricos performam o jogo infantil de “vivo ou morto”, sob o comando de um policial. De novo, como no diálogo, a sequência, propositiva e alegórica, sugere uma expansão da experiência de Fael (que agora, participante do jogo, não está sozinho). Mas 6. Apenas no Rio de Janeiro, desde 1997, mais de 16 mil pessoas foram mortas por policiais. Em janeiro de 2018, foram 158 pessoas, cerca de 5 por dia. Em torno de 98% dos inquéritos sobre mortes ocorridas em ações policiais acabam arquivadas sem investigação. Segundo o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a polícia matou, entre 2015 e 2016, três vezes mais negros do que brancos no Brasil (dos 5.896 boletins de ocorrência de mortes devido a intervenções policiais, 76,1% das vítimas eram negros). Grande parte é jovem: 35,5% têm idades entre 18 e 29 anos, e cerca de 10% são menores de idade (estatística baseada nos casos em que esse dado foi levantado). 7.“A conversa noturna em torno da fogueira é um episódio cinematográfico bastante familiar. Lembremos o seu papel nos filmes de faroeste, em que confere uma dupla profundidade à ação que fica suspensa. É primeiro uma espessura biográfica, um tempo liberado do ritmo da ação, os personagens contam sua história, falam do lugar de onde vêm e para onde gostariam de ir. É também uma reflexão sobre a justiça da ação encetada para afirmar um direito, praticar uma vingança ou receber um prêmio. (...) A diferença está em que, no filme de faroeste, as perguntas surgidas na discussão noturna sempre são resolvidas quando a ação recomeça. (...) Não é o que acontece nos filmes dos Straub. Nenhuma ação vai resolver o objeto da discussão. A ação do filme consiste nesses diálogos em que os personagens apenas discutem sobre o que é justo e injusto” (2012, p. 124). No livro As distâncias do cinema (RJ: Contraponto, 2012).
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um por um, entre os comandos de “vivo!” ou “morto!”, os jovens vão saindo da brincadeira e de cena. Ao final, Fael resta sozinho no quadro, de pé, insistindo em permanecer vivo (apesar dos insistentes comandos de “morto!” do policial). Tendo como matéria a violência desmedida sofrida por Rafael,8 Sete anos em maio não se deixar tragar pelo horror (o que não significa minimizá-lo). Emoldurado por sequências alegóricas (o plano na estrada, o jogo do “morto, vivo”) e ficcionalizado no diálogo, o testemunho é encenado como fragmento de um trauma coletivo. Mas notemos que o filme começa e termina com Rafael sozinho em quadro: sua história é parecida com inúmeras outras, mas seu corpo segue carregando o peso do vivido.
8. Posteriormente à finalização deste texto, soube do trabalho apresentado por Ana Caroline de Almeida (UFPE) na Socine 2019: “Constelação de imagens ardentes: um cinema brasileiro ao redor do fogo”. A partir de imagens do elemento “fogo” extraídas de sequências de seis filmes brasileiros contemporâneos (entre eles, Sete anos em maio, Tremor Iê, Branco sai preto fica e Era uma vez Brasília), a pesquisadora propõe pensar a convocação de “processos de transformação ora desejados, ora frustrados”: o fogo como “organizador de uma condição política do Brasil dos anos 2010”.
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Saber Cinema:
A práxis cinematográfica contemporânea e as imagens porvir sobre Um Filme de Verão, de Jo Serfaty, e Entre-Vistas, do coletivo Olhares (Im)possíveis Ana Tereza Melo Brandão1
Um Filme de Verão, de Jo Serfaty, e Entre-Vistas, do coletivo Olhares (Im)possíveis, são filmes produzidos com jovens brasileiros, moradores de comunidades populares. Com diferentes motivações, estratégias de abordagem e recursos narrativos, são filmes que se abrem ao olhar dos adolescentes sobre si mesmos, sobre os outros, e sobre o mundo que vivenciam. Em suas especificidades estéticas, os dois filmes buscam desestabilizar o estatuto do “real”, abrindo-se aos imaginários juvenis através de narrativas autobiográficas, inserindo brechas às subjetividades condicionadas e concomitantemente inventivas, potentes em seus devires. As tensões entre o cotidiano e o imaginário, entre trabalho e lazer, entre a adolescência e a vida adulta são singularizadas e recriadas pela mise-en-scène de suas próprias experiências. São vivências potentes pela diferença que os aproxima em uma busca ontológica “de ser mais”, uma procura do que Paulo Freire chamou de “inédito viável”. A noção de comunidade se amplia rompendo paradigmas que guiaram a produção cinematográfica dos anos 2000, expandindo-se para além do território geográfico e da classe social, indicativa da ideia do comum partilhado, simultaneamente estilhaçado em territórios e sentidos identitários múltiplos. Em um trecho do filme Entre-Vistas, por exemplo, um jovem pergunta ao colega: – “Qual é a sua comunidade?”. O colega compreende apenas depois de nova pergunta sobre sua “cultura” e responde: “Negro”. Em uma passagem do Um Filme de Verão, Carol se transfigura em uma cantora pop oriental e encena um videoclipe pelas ruas de seu bairro, e Caio lida com o candomblé diante da renovação evangélica. São sujeitos em câmbios identitários, em constante negociação consigo mesmos.
1. Ana Tereza Brandão é produtora audiovisual, mestre em Educação e pesquisa a relação com o saber e as práticas midiáticas juvenis. Dirigiu a Associação Imagem Comunitária, a Oi Kabum! Escola de Artes e Tecnologia, e coordenou diversos projetos de produção audiovisual e programas públicos de arte e cultura da Secretaria Municipal de Cultura de Belo Horizonte. Foi diretora da Rede Minas de Televisão, e participou da implantação do Educom.TV- ECA-USP.
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A influência da mediação da tecnologia no uso de recursos da narração de si nos dois filmes é objeto de processos educativos na construção das narrativas e das montagens, um saber construído na interação pela internet, pelo uso da câmera observando a vizinhança, pela procura de referências musicais diversas pelo youtube. Observam e se apropriam criticamente de linguagens de diferentes culturas. Os tradicionais papéis de personagens, público, artistas, autores são embaralhados, e a morte do narrador é anunciada: “Definindo-se como narrador defunto”, “morto por dentro”, “ele pode escrever a própria morte”, parte do diálogo dos jovens no pátio da escola, falas emblemáticas dos jovens personagens coautores do roteiro do filme. Richard Sennet chama atenção para a diferenciação histórica que se deu na literatura entre narradores e autores, sendo os primeiros mais próximos da antiga figura do artífice, aquele que faz, e os segundos mais próximos do artista, aquele que cria. A noção de autoria se mantém revigorada nos circuitos profissionais de cinema. O diretor controla de modo menos ou mais dialógico os procedimentos do filme. Incluído esse outro em seus processos criativos, respeitada a alteridade desse outro filmado, o cinema se renova com esse encontro e com novos modos de contar a vida, como na belíssima montagem de Um Filme de Verão. No curta Entre-Vistas, parodiando modelos televisivos, jovens anônimos, sem rostos, falam do medo, da violência, do desejo de lazer, e da arte. O filme usa técnicas rústicas, trucagens, preservando o espontaneísmo típico da adolescência. Produzido fora dos circuitos tradicionais e modos de produção vigentes, a autoria se dissolve. Um coletivo pressupõe horizontalidade nas práticas de produção do filme, e para a moral da arte burguesa, misturar-se em uma massa anônima seria perder-se de sua singularidade. No entanto, segundo o filósofo brasileiro Álvaro Vieira Pinto (2008), essa concepção ingênua deixa de lado, por exemplo, o desejo do anonimato entre os que são ameaçados constantemente em suas buscas existenciais. Ser visto é uma ameaça, em algumas situações, para quem vive em camadas populares. Importante pensarmos sobre as mistificações de nossas artes e saberes, pois no encontro com esse outro estranho a mim, devo ser capaz de reconhecer-me também outro, compreendendo o papel de mediação de nossas ideias, de nossas obras de arte, que em si mesmas não produzem sentido algum esse outro, além de alienação e fetichização do conhecimento. O que esses filmes parecem indicar é que a produção cinematográfica se expande pela escola, pela web, e se transforma ao recriar modos de abordagem e relações estabelecidas dentro da produção de filmes. São filmes que seguem a crescente de ficcionalização do real, da exibição da intimidade de ‘qualquer um’, e a estetização subjetiva. O “povo” agora tem relativo acesso aos recursos de produção audiovisuais, antes restritos às classes privilegiadas, e não precisa mais que cineastas contem suas histórias. É curioso notar que é exatamente a fascinação pelas histórias ordinárias, pela ficcionalização do real e pelo desejo de empoderamento do lugar de fala que parece ser o centro gerador de um mercado milionário midiático. E o cinema diante disso? É a sala de cinema ou o circuito de distribuidoras que definem a nossa arte? E como ficam os ideais libertadores da arte, o desejo de autoria desvencilhado das amarras do mercado? Qual é o real espaço para diferença no cinema nacional contemporâneo? E quais ilusões e potências sustentamos
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quando propomos novos encontros, a suspensão de hierarquias, e abertura para esse outro que desconhece o cinema como meio de pertença?
Referências FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2014. PINTO, Álvaro Vieira. O conceito de tecnologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. SIBILIA, Paula. O show do eu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. SENNETT, Richard. O artífice. Rio de Janeiro: Record, 2008.
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Disputar imagens e espaços. Encerrar cordialidades sobre Quantos eram pra tá?, de Vinícius Silva Breno Henrique1
Existem espaços de agência para pessoas negras, onde podemos ao mesmo tempo interrogar o olhar do Outro e também olhar de volta, um para o outro, dando o nome ao que vemos. bell hooks
Como poderiam as imagens disputar e reconfigurar novos mundos quando não constituídas por medo? Como o cinema responderia à história se articulado e dominado por aqueles sobre os quais sempre lançou projeção? Como criar um espaço fílmico capaz de descolonizar o pensamento e romper com as estruturas de poder que se encontram atualmente vigentes? Como poderia o cinema dar a ver modos de criação de espaços, onde a inscrição e constituição dos dissensos que agenciam as relações raciais se deem por outro interlocutor? Diante de extremas disparidades que sustentam e organizam a produção e realização de cinema e audiovisual no Brasil, o curta metragem se apresenta e se impõe cada vez mais como lugar-espaço de resistência e disputa para cineastas e realizadores negros e negras. Articulados de forma independente, produzidos por coletivos e movimentos sociais, realizados como trabalhos de conclusão de curso, filmes elaborados nesse respectivo formato se apresentam como território de disputa e dispositivo de tencionamento para com a história lida como oficial. “Quantos eram pra tá?” “Me diz, quantos?”. A primeira informação incidida e concebida ao curta metragem Quantos eram pra tá? se constitui como uma interrogação elaborada no fora de campo do filme. O questionamento colocado pelo rapper Sant, na canção Eram pra tá, nos interpela de modo objetivo e pragmático: discutiremos ausências históricas e sistemáticas reivindicando sobretudo reparações sobre as mesmas. Ao nos apresentar três estudantes negros da Universidade de São Paulo, o filme dirigido por Vinícius Silva elabora um prismático movimento de construção da mise-en-scène. 1. Pesquisador de cinema e realizador. Mestrando em Comunicação Social pela UFMG. Integra o grupo de pesquisa Poéticas da experiência (UFMG). Dirigiu o curta-metragem Como se o céu fosse oceano, vencedor do prêmio de melhor filme pelo júri oficial da Mostra Competitiva Minas do 21º Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte.
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Dandara (Dandara de Morais), Vinicius (Vinicius Silva) e Luiz (Luiz Felipe Lucas) compartilham a complexa, desafiadora e não confortável experiência de serem corpos negros, atravessados por múltiplas e distintas experiências sociais, em um território construído para a branquitude. A materialidade do filme e os enquadramentos apresentados nos informam estudantes negros em situações, contextos e dinâmicas minoritárias atuando de modo a disputar a hegemonia branca que se faz presente em espaços de produção e legitimação do conhecimento. Interseccionados por gênero, classe, orientação sexual e geografias dissidentes, múltiplos e plurais, elaborando perspectivas e leituras de mundo multifacetadas, continuam pretos, e, portanto, em falta em espaços de poder e instituições da vida social. Vinicius atravessa a cidade para se deslocar até a universidade, contextualizando-nos de certo modo sua existência em territórios periféricos. Dandara veio da região nordeste e dorme no alojamento concedido como auxílio estudantil pela universidade. Luiz complexifica nosso olhar sobre as relações afetivas que se dão entre os três amigos, ao se inserir em uma realidade socioeconômica que destoaria da de seus colegas. O racismo ecoa e escorre nos ambientes e espaços que cerceiam Luiz, Vinícius e Dandara, aparece com as violências que são imanentes ao seu caráter estrutural e institucionalizado, e por vezes se dá de forma velada pelos brancos que compartilham o espaço acadêmico, nunca horizontal e abertamente democrático com os três jovens. Em um ambiente hostil, uma comunidade de afeto, de aquilombamento, é construída. Entre signos em comum, obstruções partilhadas de forma semelhante, a aparição de fraternidades e fronteiras passa a ser desenhada, localizando sempre as nuances que compõem a singularidade de cada indivíduo. A dimensão das fraturas, distanciamentos e desigualdades promovidas pela branquitude se dá a maior parte do tempo pela palavra, através da fala e do diálogo que surge a partir dos três jovens. Embora frequentem cursos diferentes (Dandara, aluna de ciências sociais. Vinícius, estudante de cinema, Luiz, matriculado no curso de teatro), cada um a seu modo se depara em alguma medida com os vestígios e resquícios do período colonial na universidade. Em uma aula de teatro, uma professora profere de modo altivo e orgulhoso sua suposta e aparente capacidade em interpretar uma pessoa pobre, ainda que presentificada em um corpo que “expressasse riqueza”. Discutindo e refletindo indagações sobre a mesquinhez que agencia comportamentos dos alunos da USP com uma amiga branca, Dandara devolve perguntas ao lembrar que o ato de questionar não exclui a trajetória e experiência branca de mundo que a mesma (sua amiga) possui. Entre agressões e violências cíclicas que se dão em dimensões micros e macros, existe um âmbito e atmosfera de resistência promovida e engendrada pelo filme. Para além das potências e implicações que significam se assumir como um jovem negro na atual conjuntura política, existem reparos e desestabilizações para com ordens hegemônicas em reivindicar que pessoas, espaços e instituições também se reconheçam brancas. Se as primeiras cenas do filme nos apresentam os personagens solitários em seus distintos territórios, deslocando seus respectivos corpos negros implicados com específicas objeções até a universidade, as cenas finais irão elaborar outro movimento. A
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dinâmica observacional promovida pela câmera é subvertida, e os olhares interpelam de certa forma o público ativando e desafiando futuras e possíveis espectatorialidades. Após a trajetória apresentada, o racismo exposto e problematizado, o filme convoca movimentos de ação e resolução para o mundo. Em gestos performáticos de dança, os três jovens apontam e sugerem possibilidades iniciais de resolução para conflitos que talvez se façam sempre irresolutos. Ao som da cantora Rihanna, celebrando apesar do caos, o som novamente incide através do fora de campo a inscrição e constituição da imagem. As palavras ecoam e se desdobram do filme potencializando o fim de pactos de cordialidade. Bitch Better Have My Money é a canção que encerra o filme, mas aparentemente não o debate.
Referências ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018. HOOKS, bell. Loving Blackness as Political Resistance. In: Black looks: race and representation. Boston: South End Press, 1992. p. 9-20.
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As imagens também se elegem sobre Eleições, de Alice Riff Carol Almeida1
De todos os movimentos políticos surgidos no Brasil pós-2013, talvez aquele que, de fato, tenha aberto uma janela utópica e cindido o horizonte de desalento tenha sido justamente o liderado por estudantes secundaristas de escolas públicas no segundo semestre de 2016. O material audiovisual da época é vasto: foram vídeos e mais vídeos, gravados quase sempre dos celulares dos próprios estudantes, com enfrentamentos e depoimentos extremamente afinados em consciência política, debates identitários e novas formas de organização na ação. Com esse arsenal de imagens em mente, assistir ao segundo longa-metragem de Alice Riff não deixa de ser uma experiência que desloca algumas expectativas – ou esperanças – de como pode funcionar o microcosmo político de uma escola pública secundarista tão pouco tempo depois dos movimentos de 2016. Eleições é filmado no começo de 2018, não apenas ano eleitoral no Brasil, mas ano em que Marielle Franco é assassinada. Esse fato, aliás, atravessa o filme em um momento muito importante. A proposta é acompanhar todo o processo de formação de chapas de alunos que irão disputar as eleições para grêmio estudantil na Escola Estadual Doutor Alarico da Silveira, localizada no centro da cidade de São Paulo. Do primeiro momento em que o professor de sociologia dá uma aula explicando a importância de ter representatividade nas decisões que dizem respeito à escola até a votação em si, o que se vê de modo geral é uma reprodução dos vícios e tiques daquilo que se consolidou como imaginário da arena política brasileira: mesmo que existam várias boas intenções, há debates pouco profundos, propostas esvaziadas de ação, bate-boca e pequenas infrações eleitorais. Há um elemento adicional também bastante presente no contexto contemporâneo: a neopentecostalização da discussão: uma das chapas é inspirada nos princípios de uma
1. Doutoranda no programa de pós-graduação em Comunicação na UFPE, com pesquisa centrada no cinema contemporâneo brasileiro. Faz parte das equipes curatoriais do Festival Olhar de Cinema/Curitiba e do Recifest/ Recife e dá oficinas sobre crítica de cinema, curadoria e representação de mulheres no cinema. Já integrou juris de festivais como Tiradentes, Mostra de São Paulo, FestCurtas BH, Janela de Cinema e Animage. Escreve sobre cinema no blog foradequadro.com.
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igreja frequentada por aquele que talvez seja o rapaz mais articulado em suas falas – e certamente o mais empenhado em ganhar a eleição em questão. Ainda que assuma as premissas do cinema direto e certamente tenha criado uma relação de intimidade entre a câmera e os adolescentes ao longo das filmagens a ponto de haver a ilusão da invisibilidade da presença da equipe e seus equipamentos, o filme anda numa corda bamba no seu exercício de observação distanciada. Mesmo não tendo situações nitidamente encenadas, como acontecia em seu primeiro longa, Meu corpo é político (2017), aqui Alice Riff cria um roteiro que se retroalimenta dos personagens que elege, induzindo conversas que só existem em função da presença da câmera – como uma em que duas meninas falam sobre o que querem fazer no futuro e são filmadas de frente e de costas para quem as assiste. Tudo, no entanto, é feito sempre com a cautela de não riscar mais profundamente as intensidades em cena. Há uma decisão prévia, que se mantém na montagem do filme, de não desenvolver a fundo a vida não-escolar de nenhum dos adolescentes. Surge um risco pensado nesse gesto. Ao mesmo tempo que o documentário nos oferece a ideia de escola como um organismo vivo em si, com todas as peculiaridades de convivência, afetos e atritos dentro dela, com todas as rachaduras na parede no fundo da cena, com todos os vazamentos que atravessam a parede sempre que chove, há também brechas abertas para planificações de todos esses jovens em uma massa única de pessoas ora desinteressadas em qualquer tipo de debate, ora ainda confusas em relação aos interesses genuínos de seus respectivos grupos (o grupo LGBTQI e o rapaz evangélico se encaixam nessa última categoria). Curiosamente o interesse pela escola enquanto parte de um sistema de poder parece ser algo bem mais abstrato para todas essas alunas e alunos que, certamente, conviveram com aquelas e aqueles estudantes das ocupações de 2016. Para além da captura de todo o processo de criação das chapas e das disputas eleitorais, o filme cria um artifício de manter duas alunas como correspondentes de todas as etapas dessas eleições e esse é um recurso que, se por um lado dá a ver corpos já treinados por uma coreografia artificial diante da câmera – como age um corpo “popular” dentro da escola? o cinema e a TV costumam responder a isso –, por outro termina esvaziando ainda mais o debate político que estaria no cerne do filme. Há, de fato, três momentos em que o político toma a imagem. Quando primeiro surge a fotografia de Marielle no centro do quadro, e essa é uma foto que causa desconforto porque os próprios alunos não sabem muito bem lidar com a gravidade do que tinha sido a execução da vereadora poucos dias antes dessa cena acontecer; quando, depois, filmagens de celular mostram a ação da polícia reprimindo alunos para não entrarem na escola após o horário limite; e, finalmente, quando a diretora da escola, ciente de que está sendo filmada, age como a voz do Estado que a contrata. Confrontada por alguns alunos em relação à severa política de horários de entrada para as aulas, a diretora da escola faz a seguinte afirmação: “Nós temos a nossa vida, desde que nascemos até quando morremos, toda regida pelo quê? Por normas e leis e regras”. Uma vida “toda regida” fundamentalmente por normas e leis e regras parece ser a raiz do problema. E, no entanto, esse depoimento, tão sintético e catalisador de todos os problemas de vigilância e punição que oprimem qualquer possibilidade de educação
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libertadora, não consegue ter maiores desdobramentos nas operações do filme. Por quê? Permito-me criar uma suspeita: não se trata de culpabilizar o modo cinema direto. Mas de talvez questionar como é possível, sob determinados contextos políticos, que o cinema se aproxime ou mesmo interfira delicadamente nas coisas mantendo sempre uma distância segura delas? O registro panorâmico dos fatos tem sua importância histórica e seus méritos estilísticos, mas carrega também o ônus de se preservar em momentos extremamente tensos quando essa preservação pode ser o problema político mais essencial de todos.
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Anotação de instantes sobre Sem título # 5: a Rotina terá seu Enquanto, de Carlos Adriano João Paulo Rabelo1
Quando floresce a ameixeira nada sei como o coração dos poetas Matsuo Bashô
“O haicai não é um pensamento rico reduzido a uma forma breve, mas um acontecimento breve que acha, de golpe, sua forma justa”, afirma Roland Barthes em O Império dos Signos (2007, p. 99). De súbito, esta forma poética nos põe no limite da linguagem, numa estreita faixa em que a distinção entre significante e significado se encontra travada, fazendo as palavras emergirem como coisas concretas, que destacam o instante do tempo que foge e logo silenciam. O haicai sustém, em intensidade, o que se esconde nas experiências rotineiras sob o signo do “banal”. Como uma vibração curta, ele dá a ver o “enquanto” de uma circunstância. De maneira isomórfica, Sem título # 5: a Rotina terá seu Enquanto (Carlos Adriano, 2019) se aproxima da cultura japonesa ao fazer um elogio do exato momento, do tempo presente, do que a vista alcança: o nascer do sol, o retorno às imagens de um filme querido, um passeio de trem em boa companhia. Pela delicadeza de seu exercício estético, na matriz do cinema experimental, o cineasta nos conduz para um passeio de contemplação, que se dirige mais aos sentidos do que ao sentido (aquele que se deseja pleno, satisfeito, colmatado). O filme, quinto da série apontamentos para uma autocinebiografia (em regresso), é construído segundo os procedimentos do cinema de reapropriação de arquivo, conhecido como found footage – a rigor, metragem de filme encontrada. O gênero, explorado pelo cineasta desde o seu terceiro filme, Remanescências (1994-97), se apropria de imagens alheias e as ressignifica por diversas operações, como intervenções cromáticas, cortes, texturas, interferências sonoras, ralentações ou alterações na progressão. Num gesto amoroso – ao cinema e à vida –, os cinepoemas de Carlos Adriano buscam produzir um reencantamento com as imagens. No caso de Sem título # 5, com as imagens do último
1. Mestre em Comunicação Social pelo PPGCOM/UFMG com a dissertação O que amas de verdade permanece: A poética da memória no cinema de Carlos Adriano (2018).
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filme dirigido por Yasujiro Ozu (1903-63), A Rotina tem seu Encanto (1962). Gesto que se manifesta, logo de saída, no jogo entre o título original e sua derivação: um deslocamento que multiplica os significados. Por homofonias quase perfeitas, a justaposição faz corresponder o encantamento com aquilo que diz da duração. No limite, este eco cria uma nova unidade de sentido que sugere a estrutura do haicai: o vital maravilhamento dentro do fluir habitual do tempo. Um momento suspenso que rapidamente atravessa a linguagem. A primeira sequência traz as mesmas cartelas dos créditos iniciais de Ozu, com a mesma trilha musical. Sem legendas, elas podem ser apreendidas apenas em sua beleza harmoniosa, como biombos japoneses que separam o dentro e o fora do filme. Um corte no som inscreve um haicai de Bashô sobre um fundo preto. Logo em seguida vemos um homem, de costas, que fotografa o nascer do sol. O registro, feito para o curta-metragem, nos aparece brevemente em preto e branco. O título surge e, então, alvos de um campo de golfe tomam a tela, com reenquadramentos e coloração avermelhada em algumas bordas. No instante seguinte, um gesto lúdico propõe uma conversa inventiva com o estilo de Ozu, conhecido pela rigorosa composição do quadro – simétrico, harmônico, equilibrado: a imagem de um corredor, em rotações espelhadas, alterna o teto e o chão, mantendo sempre o portal do fundo como eixo. Num diálogo progressivo com os ambientes construídos pela câmera do diretor japonês, duas lâmpadas acesas em cenários diferentes coincidem no mesmo ponto, em revezamento, como uma rima visual percebida dentro do filme original. Propondo derivações para a arquitetura precisamente registrada por Ozu, Carlos Adriano reconstrói os espaços, pela montagem, com alterações nas bordas. As duplicações laterais deslocam o centro simétrico para algum lado da tela e nos causam um estranhamento na percepção. Uma vista da rua ou cômodos entrevistos pelos corredores nos engajam na busca pelo que destoa, até que o olhar se reorganize neste novo espaço. O gesto atualiza os cenários que o espectador do cinema de Ozu já toma como naturais. Reinsere o estranhamento no familiar. Propõe uma nova contemplação do comum. Quando uma porta de correr se abre, as imagens seguem o mesmo movimento, variando na tela como se estivessem sobre trilhos. Outros ambientes também aparecem com semelhantes padrões de duplicação enquanto ouvimos ruídos de construção, com batidas ao longe. Mas não são apenas os espaços que são retrabalhados. As relações humanas também são manejadas de modo sensível, como na sequência em que os homens confraternizam. Enquanto bebem – com as falas em maior parte suprimidas –, podemos colher algo do gesto, dos olhares, do estar junto. No Japão, como escreveu Roland Barthes, “o império dos significantes é tão vasto, excede a tal ponto a fala, que a troca dos signos é de uma riqueza, de uma mobilidade, de uma sutileza fascinantes [...]. A razão é que lá o corpo existe, se abre, age, se dá sem histeria, sem narcisismo [...]” (2007, p. 18). Outros trechos nos inserem nesta dimensão cotidiana da vida: cozinhar, limpar a casa, dar corda num relógio, enrolar uma fita métrica, ficar em silêncio, chorar. Tudo é simples, sem gravidade, como um deslizar suave pelo rio do tempo – que ouvimos, na trilha, em badaladas. O encantamento, como nos mostra o haicai, não é pretensioso.
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O rumor de água acompanha algumas imagens – chuva ou lágrimas são, naturalmente, estações da vida. Mas também há os momentos de celebração, de amizade, de êxtase diante da beleza. O reencontro do protagonista (fuzileiro naval da Segunda Guerra Mundial) com um subordinado, à época, expõe no filme este sentimento festivo. A banda sonora e as perfurações laterais da película – a dimensão material da arte cinematográfica –, que já víamos em diversas cores, se tornam mais frequentes nesses momentos. Até que florescem, como cerejeiras, num tom rosa que emoldura o companheiro de viagem de Carlos Adriano e Ozu no set de filmagem. O trem da ficção passa. O cinema dobra o tempo. Os dois homens de hoje embarcam. O amor, entre as imagens, lampeja.
Referências BARTHES, Roland. O Império dos Signos. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.
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Afrofabulando imagens: Tudo que é apertado rasga sobre filme de Fabio Rodrigues Filho Kênia Freitas1
O que fazer diante de um arquivo que é ao mesmo tempo e na mesma intensidade violência e potência de vidas negras? Essa é uma das perguntas da qual parte Saidiya Hartman no seminal artigo “Venus in two acts” (HARTMAN, 2008). Em seu texto, diante da impossibilidade de achar nos registros do tráfico escravagista do Atlântico Negro algo além do desdém, da crueldade e da interrupção brusca da narrativa e da vida das mulheres negras, Hartman se colocará então a fabular criticamente o que poderia ter sido. O método historiográfico proposto não evita assim a materialidade violenta do arquivo, mas suspende a sua reprodução no presente por mera repetição. Nas brechas abertas pela negociação com o narrar histórico, é possível buscar fagulhas de existências (imaginárias e reais) não mortificadas das pessoas negras. Diante de outro arquivo – das atuações das atrizes e atores negras e negros no cinema brasileiro – o filme Tudo que é apertado rasga (Fabio Rodrigues Filho, 2019) nos faz perguntas semelhantes à questão de Hartman. O que fazer diante das imagens e sons que machucam? Como pensar os protagonismos que não existem? Como prolongar uma presença no cinema que a princípio foi assistida sem ser vista e ouvida sem ser escutada? É possível falar do que aperta e rasga sem refazer os gestos de violências primordiais (do apagamento, invisibilidade e estereotipização)? Como colar novamente os pedaços há décadas fragmentados do cinema negro brasileiro (AUGUSTO, 2018) e da representação negra no cinema nacional? O método fabular crítico proposto por Fabio Rodrigues Filho será o de uma montagem cinematográfica das imagens de arquivo que passa pelo corte e pelo reenquadramento. Um processo de aproximação intensivo e rítmico sobre as imagens das atrizes e atores negras e negros em suas encenações nos filmes da Atlântida, da Vera Cruz e sobretudo do Cinema Novo. Uma aproximação tão insistente que parece querer ver (e nos mostrar) o que há (ou pode haver) atrás daquelas imagens. Um método que ao mesmo tempo
1. Professora, crítica e curadora de cinema, com pesquisa sobre Afrofuturismo e o Cinema Negro. Pós-doutoranda (CAPES/PNPD) em Comunicação da UNESP. Escreve críticas para o site Multiplot! Integra o Elviras - Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
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que singulariza e repensa a encenação negra, deixa evidente que como imagem e sons do cinema, ela também é uma materialidade dobrável, manipulável, rasgável. O método recoloca em movimento uma sina que atravessa a produção do cinema contemporâneo: o fato que atrás de uma imagem existem já (e sempre) outras imagens. Mas que imagens podem existir atrás dos lampejos de presença negra não estereotipada do cinema hegemônico (branco) nacional? O que Fabio Rodrigues Filho evidencia com o seu método é o fato de que atrás destas imagens estão imagens do cinema negro que faltam (BARROS; FREITAS, 2018). Perante essa ausência, o que o filme se põe a fazer é reinventar, criar e fabular encontros impossíveis – e por isso mesmo necessários. Assim, cortando e dobrando imagens e sons uns sobre os outros, é possível que a narração do poema lido por Jorge (interpretado por Zózimo Bulbul) em Compasso de Espera (Antunes Filho, 1973) ecoe sobre as imagens de Alma no Olho (Zózimo Bulbul, 1974). E Alma no Olho que foi feito das sobras de o Compasso de Espera reencontra sua matriz no espelhamento da encenação de Bulbul. Da mesma forma é possível e necessário que no grito cantado de Zezé Motta caibam os gritos silenciosos de Ruth de Souza, Milton Gonçalves, Grande Otelo... As duas partes do filme dedicam-se a materialidades diferentes das ausências negras nas imagens e sons. Na primeira, “O aperto”, o filme busca nas entrevistas televisivas de Zezé Motta, Grande Otelo, Ruth de Souza, entre outras atrizes e atores negros os testemunhos dessa falta. A repetição das histórias, piadas, comentários, denúncias e reclamações sobre a invisibilidade e a sub representação negra no cinema e na mídia nacional, mostra o caráter verborrágico da televisão no regime de produção de imagens e sons. Tudo é dito. Tudo é repetido. Mas ninguém ouve. E no programa seguinte Zezé Motta repetirá a mesma piada sobre fazer papel de empregada, com novos risos da plateia. Depois do aperto, vem “O rasgo”. Estamos de volta ao cinema. Olhando e examinando atentamente o mesmo arquivo fílmico: Também Somos Irmãos (José Carlos Burle, 1949), Sinhá Moça (Tom Payne, Oswaldo Sampaio, 1953), Rio Zona Norte (Nelson Pereira dos Santos, 1957), Barravento (Glauber Rocha, 1962), Ganga Zumba (Cacá Diegues, 1963), a lista segue... Agora no entanto o corte de Fabio Rodrigues Filho encontra os personagens negros que devolvem o olhar. Eles nos encaram. E por alguns instantes quebram o jogo, mostram a sua codificação e como subvertê-la em um gesto simples. Gesto que Tavia Nyongo (2018) chamará de performar para e contra a câmera – um lugar de resistência que complica as relações de poder do cinema hegemônico sobre os corpos negros e de outras minorias. Essas atrizes e atores por instantes, ao devolverem o olhar, afetam a hierarquização das imagens. É isso o que algo atravessa a locomotiva do cinema e a faz rasgar de volta.
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Referências AUGUSTO, Heitor. Passado, presente e futuro: cinema, cinema negro e curta-metragem. In: SIQUEIRA, Ana [et al]. Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte (catálogo). Belo Horizonte: Fundação Clóvis Salgado, 2018. BARROS, Laan; FREITAS, Kênia. Experiência estética, alteridade e fabulação no cinema negro. Revista ECO-Pós, 21.3 (2018): 97-121. Disponível em: <https://revistas.ufrj.br/ index.php/eco_pos/article/view/20262>. Acesso 13 Set. 2019 HARTMAN, Saidiya. Venus in Two Acts. In: Small Axe, 1 June 2008. NYONG’O, Tavia. Afro-Fabulations: The Queer Drama of Black Life. New York: NYU Press, 2018.
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Ainda estamos aqui sobre Enquanto estamos aqui, de Clarissa Campolina e Luiz Pretti Eduardo de Jesus1
Haveria uma paisagem, de cada vez que o espírito se deslocasse de uma matéria sensível para outra, conservando nesta última a organização sensorial conveniente ou, pelo menos, a sua lembrança. A terra vista da lua por um terráqueo. O campo visto pelo citadino, a vila pela agricultor. A desorientação seria a condição da paisagem. Jean-François Lyotard
Cinema e cidade se relacionam de forma intensa desde suas origens, contaminam-se mutuamente de distintos modos entre tramas que enlaçam visível e invisível. O visível do espetáculo – da cidade do capitalismo global – e o invisível das texturas sutis da vida cotidiana, dos lugares ordinários e das vidas comuns. Aquilo que “ainda não é observado, o que não se tornou olhar, o que não para de passar, o tempo e seu cortejo de fantasmas (...)” (COMOLLI, 2008, p. 180). Neste jogo – entre visível e invisível, experiência e memória, corpo e olhar – construímos paisagens entre fixos e fluxos, que a seu modo o cinema tenta captar. Geografia da montagem, que permite que o cinema em sua invenção possa desterritorializar a cidade de seu espetáculo neoliberal contemporâneo para reterritorializa-la como fabulação de uma cidade outra, com outros espaços, que apesar de ressoarem as ausências conseguem trazer fragmentos de uma singularidade nômade, que se depreende das experiências de distanciamento da terra natal. Enquanto estamos aqui (Clarissa Campolina e Luiz Pretti, 2018) parece colocar em movimento justamente esse processo de desterritorialização para fazer com que a cidade se revele como um gesto narrativo poético, sutil e potente que surge nos espaços urbanos mais ordinários como praças, estações de metrô, estacionamentos vazios e ruas comuns. No jogo entre visível e invisível, a narrativa mistura-se com a paisagem urbana comum criando poéticos jogos de sentido entre palavra e imagem, entre o que vemos na imagem e o que as narrações nos trazem. A forma fílmica, com isso, assume as forças características de modos peculiares de experimentar a cidade e faz figurar essas dimensões ordinárias das paisagens urbanas cheias de poesia. A fugacidade polifônica da cidade
1. Professor do Departamento de Comunicação Social da UFMG.
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surge no filme pelas músicas, nos ruídos e no som ambiente e se reforça ao trazer um texto poeticamente lacônico na narração sussurrante de Grace Passô. Da mesma forma, os fluxos intermitentes e eruptivos, que cruzam a cidade e suas relações, também atravessam a narrativa fazendo com que a história da libanesa Lamis e do brasileiro Wilson reverbere em muitas outras histórias possíveis, em diferentes dimensões que ao se tangenciarem, alargam o alcance. As entradas dos fragmentos poéticos de Ana Martins Marques e Rodrigo Fischer atravessam e ampliam as potências de sentido da narrativa. Na cidade-imagem, paisagem de encontro e solidão, o filme se constrói assumindo para si as forças da cidade e seus modos de ser. No entanto, ao contrário de revelar as desgastadas imagens típicas da cidade em suas grandiosidades turísticas, lança-se ao oposto e nos mostra a poesia dos lugares comuns e ordinários, onde, assim como Lamis e Wilson, também experimentamos nossa vida cotidiana. Da mesma forma, fluxos imagéticos nos fazem passar de uma cidade a outra como se passássemos de uma lembrança a outra. A produtiva e resistente desorientação da paisagem. Desorienta-se porque desloca-se. Estrangeiros em fluxo migratório que se de um lado descobrem, inventam e enfrentam a cidade, de outro trazem consigo a impossibilidade da terra natal. “Os indianos, os mexicanos, os filipinos conversam entre os seus”. Qualquer lugar, qualquer um, em qualquer tempo. Em alguns momentos são as lembranças, como as da infância, que invadem a narrativa. “(...) até que aos poucos, no fundo da memória, surge uma melodia distante, sua infância” e ouvimos o belo samba de Wilson Batista. A memória que vem do fora de campo, do fora de lugar, do outro continente atravessa imagem e narrativa instaurando relações ainda mais complexas, já que a lembrança talvez possa criar outras gradações mais nuançadas entre visível e invisível. Com isso, na desterritorialização instaurada, o filme com esses sujeitos em deslocamento, nos faz lembrar com suas imagens, outras histórias, lembranças e experiências que, em sua fugacidade, a cidade ao guardar, deixa sumir. Vestígio mínimo que em alguns momentos explode no filme em quase epifanias, como no momento que Lamis pousa sua mão no ombro de Wilson, na fugacidade de alguns instantes. Nessas operações entre tempos, as lembranças são embaladas por cartas, músicas ou imagens que invadem a cena. Em diversas passagens o tempo parece estar suspenso, especialmente nos momentos que a narração se silencia por longos períodos, nos fazendo ouvir a cidade e ver seus espaços vazios. Quase melancólicos, esses espaços vazios revelam-se importantes na narrativa para marcar esse outro tempo, entre memórias e “agoras”. Estranha duração do tempo presente deslocando-se para a paisagem. Em um dos momentos, Lamis fala com seu tio sobre sua vida, enquanto vemos uma imagem de montes de entulhos e escombros de construção, em um rigoroso e bem composto plano aberto, diante dos quais corre suavemente um canal. Antes de ouvirmos a voz vemos essa imagem durar silenciosamente no quadro, com sua crueza industrial que contrasta com a suave voz de Lamis. Tanto nessa passagem quanto em outras, a intensidade do tempo presente marca o filme com imagens que desejam revelar um instante do qual não se sabe a duração, fugacidade extrema da cidade e das narrativas que vemos na cidade-imagem diante de nós. No entanto, apesar da cidade tramar-se em múltiplas
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memórias o filme nos informa pela narração: “(...) tão pouco sabemos há quanto tempo esse momento aconteceu, mas sabemos que ele se dá no presente, sempre no presente”. Frase que se repete no filme em algumas passagens e que instaura um produtivo paradoxo: como saber do tempo quando nos desorientamos na paisagem? Talvez fazendo a memória ressoar pelos espaços, contrapondo assim o urgente tempo presente da cidade, que não para de passar, com as lembranças de outros tempos e espaços que guardamos. Esse modo de operação da memória no espaço, traz um traço literário que se ressalta nas narrações. No entanto, nos longos trechos sem narração, o filme explora a paisagem urbana como protagonista dessas histórias, nesse urgente tempo presente do agora que passa incessantemente na cidade, mas que a cada instante nos mostra fragmentos, estilhaços das histórias dos dois imigrantes. Por isso, o que se efetiva na paisagem urbana que se constrói nessas operações fílmicas é muito mais que pano de fundo ou cenário, é a cidade ativando a cena, se insinuando para nossos olhares e nos fazendo pensar no inescapável ponto de passagem entre presente e passado. Paradoxo entre passagem do tempo e permanência da memória que o filme alimenta e se serve para nos colocar em meio a cidades das quais a paisagem que emerge nos convoca – tanto em níveis pessoais, quanto nos mais coletivos – a construir cidades subjetivas que guardem histórias dos sujeitos em fluxo.
Referência COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder A inocência perdida: cinema, televisão, ficção e documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
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O triunfo da Ideia sobre A rosa azul de Novalis, de Gustavo Vinagre e Rodrigo Carneiro Luiz Soares Júnior1
Com exceção do expressionismo, o cinema levou muito tempo para individualizar um retrato, e do sujeito retirar o arcabouço do contexto e estirá-lo nu sob os holofotes da autópsia; de fato, precisamos ultrapassar todos os limites na representação de uma sociedade (pensemos nos planos de conjunto e sequência de Mizoguchi e Renoir dos anos 30, baladas mortuárias para invocar a multidão pela última vez, pelo menos segundo um gregarismo que coubesse no plano, agora mais plástico e variável) para aceder, persignados e culposos, à sua célula-mater: o indivíduo. E o que este dejeto de tantas multidões, esta quase-parte maldita da divina Criação – que no cinema, arte de fatura monstruosa espacial, sempre privilegiou o conjunto de indivíduos –, este irredutível Uno chamado Homem tem a nos dizer, quando colocado num tête-à-tête tantas vezes perverso, majoritariamente narcisista, com a câmera? Ao ver A rosa azul de Novalis, de Gustavo Vinagre e Rodrigo Carneiro, lembrei-me a princípio de um desses filmes de tête-à-tête que soube aliar a confissão intimista à performance, e que foi a baliza intermediária entre os painéis, existenciais ou épicos, dos 60 e as sociedades secretas dos 70, o Retrato de Jason, de Shirley Clarke. O que nos dizia Jason? Que não existe vida íntima, que não existe vida performativa (pensemos como os lógicos: o verbo do ato, da vida como ação) sem a palavra; mas não qualquer palavra. Esta palavra, de que Jason nos deu os Codex da Cena com suas piruetas de bêbado e lágrimas de mártir underground, é, digamos, uma supra-palavra, pois agrega a seu significante de base os êxtases do Gesto, as acrobacias artaudianas do grito, a textura tamisada de sonho de uma inscrição deste corpo no corpo do plano de cinema; só aí já temos dois corpos; imaginemos, então, o vasto e ressoante fora de campo inervado pelo trabalho do campo, imaginário e memória dos espectadores inclusos, e temos um espetáculo de si-mesmo que rivaliza em grandeza cênica com as feiras circenses que assistiram à aurora do cinema. Porém, tudo isto em Retrato de Jason ainda é virtual, estritamente vinculado à palavra-sintoma (de vária textura cênica e diapasão, é certo), mas à palavra de nosso herói negro e miché; A rosa azul de Novalis dá talvez um passo além, ou empreende
1. Luiz Soares Júnior é crítico de cinema, tradutor do francês e ensaísta, formado em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco.
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materializar no corpo do filme esta bifurcação do corpo de Marcelo Diorio em pelo menos dois corpos outros: um corpo que fala (e esta fala não apenas descreve o que lhe aconteceu, gênero memorial intimista, mas emite valores, perverte os dados herdados da família conservadora, mitifica, oniriza o real, trazendo-o para as categorias, os modus operandi, os textos do personagem Marcelo) e um corpo encenado, com o auxílio do filme, em três cenas que nos oferecem um vértice triangular como fundamento de um terceiro corpo, chamado, numa operação de conversão do imanentismo-crônica do filme para uma referência de transcendência cultural e cultual, – no caso, o romantismo de Iéna –, de Rosa azul de Novalis; temos acesso a pelo menos três sequências essenciais para se entender este processo de mão dupla na qual o corpo que fala, um soma que se exprime, torna-se também este elemento cênico semi-utópico, no qual a fantasia presentifica os valores do personagem, os materializa cenicamente: o velório do irmão, coroado pelo beijo incestuoso que resgata as notas de rodapé nas quais Freud interpretou a homossexualidade como um Édipo falho, aqui sobre-elevado, e portanto redimido, à categoria de pulsão estruturante da Cena familiar; e as duas trepadas, o ‘frango assado’ e o boquete no rapaz mascarado; estas três cenas de denotação sexual assinalam ao mesmo tempo a conotação mítica de um Marcelo Diorio que se engendra com o auxílio de presentificação do próprio filme: o triunfo da Ideia, com a implicada transfiguração das vicissitudes da imanência em um luminoso escopo de mediações fantasiosas: o que seria destas ações sem o discurso tantas vezes irônico ou autocomplacente de Diorio, e em igual medida o que nos revelaria este discurso se não fora encarnado em atos cênicos que o cravassem com a firmeza de um promontório de significante, sobre o corpo, fundamento de todo gesto ou fala, lugar necessário de fixação de uma palavra que jamais cederá a ser tragada pelas estruturas mais abstratas da linguagem? O sexo para Diorio é o equivalente aos distúrbios domésticos de Nina Simone, à carta amargurada de Kafka ao Pai, à misantropia de Glenn Gould, referenciais culturais (e repito: de culto, por parte do personagem) que o processo de reapropriação do filme torna característicos da persona de Marcelo, integra a este, aquele que busca a divindade da transcendência ao aprofundar o buraco negro da imanência, como nos revela o plano final, que se converte em um Outro por intercessão de uma sondagem escatológica de sua Mesma profundeza desejante: falar e trepar (ou beijar) são duas moedas da mesma economia libidinal, ou poderíamos ainda falar como Freud que boca e cu (Linguagem e pulsão) pertencem a um mesmo e outro canal de excreção, um na superfície da boca e outro na cauda que restou do cóccix, e que aquilo que os diferencia é apenas uma questão de interpretação, de releitura dos baixios segundo códigos mais elevados, como um filme? A Rosa azul é este terceiro corpo de Marcelo Dirorio, interstício ou efeito metafórico da contraposição entre o corpo falante e o corpo desejante ‘em ação’; é o buraco do olho do cu – e atenção redobrada a ambas as expressões, pois o olho aqui representa-nos o olhar de Apolo na cultura grega, ou consciência de si, enquanto que o cu é o lugar da excreção da matéria absorvida pela percepção; em todo caso, ao contrário do que nos pode parecer a princípio, ambos fazem parte de um mesmo sistema de enunciação, e se relacionam paradigmaticamente, pois não é, tanto como o cu, o olho, equivalente cinematográfico da boca, o lugar de uma expulsão do fenômeno absorvido sob a forma
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de linguagem? – que nos contempla ao final do filme; a rosa azul, jamais encontrada por Novalis mas que por isso mesmo vive como o Mito de uma aspiração ao infinito, é antes de tudo o triunfo da Ideia, pois esta se caracteriza, como a história do olho batailliana ou as pirâmides sadianas (a primeira também citada no filme), por um uso superior que se imprime às adversidades da vida física ou, para ainda pensar como Freud, um destino sublime para dois corpos que vigem sob o império da imanência; o filme de Gustavo Vinagre e Rodrigo Carneiro se ancora numa concepção do corpo outra que o corpo-organismo, mas também de linguagem, pois ao discurso direto livre do cinema verdade ele integra a fantasia do personagem falante, lugar de uma bifurcação disléxica entre a imanência e o Eterno.
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Guardiões da Floresta: CÂMERAS EM AÇÃO! sobre filme de Jocy Guajajara e Milson Guajajara Ruben Caixeta de Queiroz1
Guardiões da Floresta (Jocy Guajajara; Milson Guajajara, 2018) é um filme, tal qual Virou Brasil (Pakëa; Hajkaramykya; Arakurania; Petua; Arawayta’ia; Sabiá; Paranya, 2019), que surgiu a partir de duas oficinas realizadas, em 2017, pelo projeto Vídeo nas Aldeias no noroeste do Maranhão, respectivamente nas aldeias Maçaranduba e Tiracambu, ambas situadas na Terra Indígena Caru. Esta Terra se insere numa região habitada por três povos indígenas tupi-guarani: Guajajara, Awá-Guajá e Ka’ apor. Ali, os povos indígenas resistem contra a invasão de seus territórios pelos madeireiros e criadores de gado! Tendo devastado a floresta amazônica na parte ocidental do Maranhão, os colonizadores cobiçam agora o que resta de madeira e de mata no interior das terras indígenas: ramais de estradas e serrarias cortam a floresta, ameaçando, inclusive, a sobrevivência dos índios isolados Awá-Guajá, que se refugiam nas zonas de mais difícil acesso. O filme não mostra, mas se o leitor quiser facilmente ver uma imagem aérea desse lugar, basta abrir o google earth, procurar pelo nome de uma cidadezinha (as aldeias não são “visíveis”), por exemplo, Zé Doca ou Santa Inês, e encontrará algumas manchas verdes de floresta. Não precisa se espantar, elas são os limites circunscritos pelas terras indígenas ou unidades de conservação. O resto, o que está fora destes limites, já foi totalmente devastado pelas madeireiras e pelas fazendas. Para transitar entre essas ilhas de verde, os povos indígenas precisam cruzar os terrenos baldios, ex-florestas que viraram pasto para gado. O pior, o que resta de floresta no interior das terras indígenas está sendo destruído pelas madeireiras, pelo fogo, pelo gado invasor! Guardiões da Floresta é um filme que retrata as ações de uma auto-organização homônima dos indígenas para proteger o que ali resiste de floresta! O filme apenas evoca esse cenário e o espectador que quiser saber mais sobre essa realidade precisa ir atrás de outras informações. Se ele ainda quiser saber mais sobre a história, a organização social e a cosmologia dos povos que ali habitam, precisa ler os trabalhos de antropologia, como aqueles de Darcy Ribeiro, Willian Balée, Eduardo Galvão e, mais recentemente, Uirá Garcia e Renata Otto. 1. Professor de antropologia da UFMG, etnólogo e pesquisador do CNPq. Pesquisa junto aos povos indígenas Karib das Guianas desde 1994.
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Um filme documentário (ou de ficção), como se sabe, apenas evoca ou exprime parte de uma realidade. Um recurso narrativo muito empregado neste tipo de filme é a voz off ou voz over, como forma de alargar a compreensão do tema apresentado ou de reforçar o que é mostrado pela imagem. No entanto, a opção em Guardiões da Floresta, foi pela supressão completa deste tipo de comentário, se concentrando apenas nas imagens das ações (de vigilância territorial) que ocorrem no momento mesmo que a oficina de vídeo é realizada. Por isso, trata-se de um filme em direto, quase que próximo do tipo “cinema observacional”, e muito distante de outros filmes do projeto Vídeo nas Aldeias, como Corumbiara (Vincent Carelli, 2009) e Martírio (Vincent Carelli, 2016), nos quais o comentário over revela-se fundamental para tecer os fios de uma história e do protagonismo indígena contra a colonização e a expropriação violenta de seus territórios. Ao contrário também dos filmes de Isael Maxakali – nos quais, no momento mesmo da captação da imagem e do som, o cineasta emite um comentário sobre o que está sendo filmado –, o filme guajajara parece querer apenas acompanhar as ações de fiscalização, e a câmera, de certa forma, age como uma arma ou uma câmera de vigilância não ligada de forma ininterrupta (algumas vezes camuflada e observando de longe, outras de muito perto, disposta sempre a partir do ponto de vista dos índios, não do inimigo), mas pronta a ser disparada assim que seja detonada do outro lado (do invasor, de frente para a objetiva) uma reação armada ou violenta. O suspense do filme também é criado em torno da possibilidade de um abate do gado pelos índios em ação de fiscalização, fato que é recorrentemente aludido ao longo da narrativa e nas conversas entre indígenas e invasores (em geral, pequenos proprietários rurais, vaqueiros ou empregados de madeireiras que estão na linha de frente das atividades predatórias das terras indígenas e que também são vítimas das práticas de grilagem de terras e do latifúndio no país). Na montagem do filme constrói-se este suspense, já que, logo no início, nos é dado a ver, numa cerca disposta na beira da terra indígena (marcada pela placa da Funai, que anuncia a sua proteção legal e interdição de ocupação por não-indígena, de acordo com a legislação em vigor), uma fileira enorme de carne de gado a ser secada pelo sol. Mas, ao longo de todo o filme, não vemos sequer um animal abatido pelos índios, não vemos sequer uma ação violenta deles contra os invasores (como a gente sabe, por outras fontes, às vezes isso ocorre de fato, pois os índios podem prender, amarrar e expulsar aqueles criminosos que se encontram no meio das suas terras tirando madeira ou criando gado), e vice-versa. O que vemos é um diálogo ou uma conversa mais dura das lideranças indígenas contra os invasores, explicando-lhes a ilicitude de suas práticas e a necessidade de proteção da floresta, muito embora o semblante dos índios (alguns deles encapuzados ou com rostos pintados) e dos próprios invasores seja de medo ou de revide. Se podemos ver essa “expectativa” e esse “suspense” estampado no filme Guardiões da Floresta, ali pouco discernimos quem são mesmo esses índios por trás da câmera ou das ações de vigilância. Só um profundo conhecedor da realidade local poderia saber que dentre eles se encontram misturados os índios Guajajara e Awá-Guajá. Eles ( juntamente com os Ka’ apor) realizam hoje inúmeras ações de proteção de suas terras (o que seria uma obrigação legal do Estado, aqui, ausente), por conta própria, criando para isso o que
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chamam de brigadas de guardiões da floresta, uns se inspirando nos outros. Em alguns casos, os índios de mais longo contato com a sociedade nacional, agem exatamente no sentido de proteger aqueles que ainda estão isolados (e ameaçados) no meio da floresta.
O cerco e o extracampo No entanto, no extracampo, a violência é cotidiana e muito mais estampada e difundida por uma população que, insuflada pelos ruralistas e pelos políticos do país, acredita que os indígenas são entraves ao desenvolvimento. No caso da Terra Indígena Araribóia (um dos lugares onde habitam os Guajajara), segundo dados do Conselho Indigenista Missionários (CIMI), desde 2006, foram 13 índios mortos, dos quais, três agentes ambientais indígenas conhecidos por guardiões da floresta: Afonso, Acísio e Cantídio Guajajara. De acordo com uma liderança indígena, junto ao corpo de Afonso, os madeireiros deixaram uma lista com os nomes dos outros agentes ameaçados, como um recado da violência futura. “Os caras (madeireiros) deixam claro: ‘se eu ver o guardião eu vou matar’”.2 Como já dissemos, naquelas terras indígenas do Maranhão, há a presença de índios isolados, os Awá-Guajá, cada vez mais ameaçados pelos invasores e pelo fogo que destroem a floresta onde habitam. A proteção destes índios foi justamente uma das motivações para o surgimento, na Terra Indígena Araribóia, em 2011, dos guardiões da floresta. Antes disso, em 2007, os índios Guajajara já tinham passado por uma experiência dolorosa e começaram a pensar numa forma de organização autônoma para a resistência: naquele ano o cacique Tomé Guajajara expulsou alguns madeireiros que tinham invadido a terra indígena, e, em retaliação, um mês depois, um grupo de homens armados apoderou-se da aldeia, entrou na casa de Tomé e o executou. A esposa e o filho foram baleados, mas sobreviveram.3 De forma paralela, a partir de 2010, os vizinhos Ka’ apor (um povo também tupi-guarani, habitante da Terra Indígena Alto Turiaçu) organizaram uma experiência inédita na qual articula um sistema de educação com a proteção territorial: junto com o “Projeto de vida e formas de pensar a gestão territorial e ambiental do TI Alto Turiaçu”, organizaram o “Projeto pedagógico e curricular de educação básica ka’apor” (Ka’ namo jaju jumu’e há katu – aprendendo com a floresta). Através desta articulação foram criadas formas de valorizar a cultura e de cuidar das pessoas com proteção territorial, na busca de maior autonomia e sustentabilidade. Num documento denominado “Nossa floresta é nossa vida: o povo Ka’apor não aceita mais mentira do governo e invasão do território por madeireiros”, elaborado pelos próprios Ka’apor, podemos ler: Não vamos aceitar que mais ataques e ameaças. Por isso, decidimos cuidar e proteger nosso território e não esperar mais pela Funai, pelo governo. Eles sempre pedem para esperar. Enquanto 2. Instituto Socioambiental. Assim lutam os Guajajara, guardiões da floresta. Disponível em: <https://outraspalavras.net/outrasmidias/assim-lutam-os-guajajara-guardioes-da-floresta/>. Acesso em: 05/10/2019. 3. Instituto Socioambiental. Assim lutam os Guajajara, guardiões da floresta. Disponível em: <https://outraspalavras.net/outrasmidias/assim-lutam-os-guajajara-guardioes-da-floresta/>. Acesso em: 05/10/2019.
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isso os invasores destroem nossos bens naturais, enganam nosso povo, dão bebidas para nossos parentes, levam nossas caças, tiram alimento de nossos filhos. Só nós sabemos de nossos problemas porque sentimos e sofremos. Só nós sabemos os caminhos que temos que seguir. Não aceitamos mais que o governo decida e faça por nós. Nós mesmos vamos vigiar, proteger e trabalhar a gestão de nosso território.4
A câmera como arma O filme Guardiões da Floresta documenta essa experiência de proteção territorial na qual os índios Guajajara e Awá-Guajá enfrentam os madeireiros e criadores de gado, que estão invadindo e devastando as terras indígenas. Armados, ora de flechas (empunhadas pelos Awá-Guajá, que também estão uniformizados de preto), ora de espingardas (portadas pelos Guajajaras, que estão pintados para a guerra), os índios percorrem o seu território e observam de longe o gado invasor e os vaqueiros, ao mesmo tempo que, numa base de vigilância, tentam dialogar e “pacificar” os invasores: “a proteção desta terra e da floresta é importante para nós, mas também para todo mundo”, dizem aos forasteiros. No filme, conforme já dissemos, nenhum tiro é disparado, nenhuma flecha é usada seja para atingir os invasores, seja para matar o gado. A câmera tudo filma, acompanha as ações dos guardiões, está presente nos momentos mais tensos de enfrentamento direto. Dessa forma, a câmera funciona a favor dos indígenas como testemunha e como arma na proteção do território, e da vida! No momento político atual do país, de ataque tão brutal contra os direitos dos povos indígenas, contra a floresta e a vida, Guardiões da Floresta (2018), juntamente a Virou Brasil (2019), se revelam filmes indispensáveis para nos informar, nos tocar e nos formar numa aliança com os povos da floresta. E isso deveria ser feito não apenas por uma questão de solidariedade ou de empatia, pois, não é exagero dizer, a nossa sobrevivência, de todos nós (indígenas e não-indígenas), depende cada vez mais da sabedoria indígena – e não da “nossa” civilização. Zezico Rodrigues, uma liderança guajajara, diz que “quando chegou o europeu começou um processo de extermínio para ocupar o Brasil. E a gente foi sobrevivendo, se salvando. [...] Eu abracei essa causa porque desde quando o Brasil foi formado, que era o nosso território, muitos parentes foram assassinados. [...] Se a nação indígena acabar, toda a nação irá junto. Toda a floresta, todos os animais, vão junto”. Recentemente, o indígena Flay Guajajara, que colaborou na produção de imagens para Guardiões da Floresta, postou na internet uma filmagem curta de seu encontro na mata com um índio isolado Awá-Guajá, com o objetivo de que essa imagem pudesse circular e evitar a extinção desse povo no Maranhão. Ele mesmo traçou o seu objetivo: “Esperamos que esse filme traga um resultado positivo e faça uma
4. Nossa Floresta é nossa vida. O Povo Ka’apor não aceita mais mentira do governo e invasão do território por madeireiros. Disponível em: <https://pib.socioambiental.org/pt/Not%C3%ADcias?id=128726>. Acesso em: 05/10/2019.
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repercussão internacional com um olhar voltado para a questão de proteger um povo, uma floresta, uma nação, uma terra e uma história”.5 A câmera e a imagem são armas cada vez mais usadas pelos indígenas e por coletivos como o “Mídia Índia”, para sua proteção e para dar recado aos brancos. Assim como as câmeras, inclusive as de celulares, as ações em campo de proteção territorial e da floresta, as palavras dos xamãs, as rezas e os cantos são formas de evitar “a queda do céu e o fim do mundo”. Nesse sentido, um índio Awá-Guajá sabe muito bem que o canto é uma forma de suspender a rudeza da vida mundana e, ao mesmo tempo, uma maneira de abrir caminho para o céu, como tão lindamente nos mostra uma sequência de cantos seguida da indignação de uma mulher awá no filme Virou Brasil (2019): “pergunte pros Karaí [brancos]: por que querem nos matar?”. Ao que um cantor-dançarino responde: “Não sei porque eles querem nos matar, a gente nem fica aqui na terra.” Mais à frente, depois de uma turma awá atravessar um caminho antigo de caça, agora esburacado pela fúria de um trator e da construção da Estrada de Ferro Carajás, um homem awá fala para a câmera: Eu penso, se eu ficar velho com meus filhos e morrer... Quando a gente fica velho, morre. Aí o trator virá aqui pra perto deles. Por isso eu canto. Eu sempre canto, eu não fico à toa, sem cantar. Por isso eu tenho a memória boa, a cabeça boa. Eu sempre penso lá na frente, no meu futuro. Eu olho para os Karaí e me pergunto se querem mesmo trabalhar ou apenas tomar nossa terra. Aí, eu olho para os meus filhos e vejo eles animados com o trabalho dos Karaí. Eu digo pra eles: logo vão matar a gente, eles estão de olho na terra do índio. É o que eu falo pros meus filhos: esses Karaí não estão aqui à toa. O chefe deles, que vive longe, está de olho na terra do índio.
É dessa forma que o índio awá está lendo os ataques e a cobiça de sua terra pela elite capitalista do país (e do mundo), comandada pelo atual Presidente. Salivando tanto ódio contra os índios, disfarçado de patriotismo e desenvolvimentismo, o Presidente e seus seguidores têm vociferado coisas como “no meu governo índio não terá nem mais um milímetro de terra”; “os estrangeiros não estão interessados no índio ou na porra da árvore, mas no minério”; “os estrangeiros querem que o índio continue como o homem pré-histórico, que não tem acesso à tecnologia, à ciência, às mil maravilhas da modernidade”. Diante destas falas, creio que todas as pessoas minimamente informadas reconhecem que o Presidente está, na verdade, por trás de sua truculência e estupidez, defendendo grandes interesses da indústria madeireira e da mineração. Essas “maravilhas da modernidade” não podem disfarçar, por exemplo, a miséria e a violência que rondam nossas cidades, muito menos as mortes causadas pelo rompimento das barragens, ou a ferrovia e o projeto minerário da Serra dos Carajás, no Pará, que, dentre outros estragos, rasgaram ao meio a terra dos índios Awá-Guajá (aqueles mesmos retratados na saga de Karapiru, no filme extraordinário de Andrea Tonacci, Serras da Desordem, 2006). Ao contrário do que pensam os partidários do Presidente, 5. Ver o filme e a fala de Flay Guajajara aqui: <https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/ geral/m%C3%ADdia-ind%C3%ADgena-divulga-imagens-de-etnia-isolada-e-amea%C3%A7ada-por-madeireiros-no-brasil-1.353347>.
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há uma outra civilização que detém a mais avançada das mais avançadas das tecnologias – que é um conhecimento e um respeito profundo pela floresta e pela vida humana e não-humana que os brancos não têm e, parece, nunca terão. Restam-lhes ouvir a voz e o pensamento indígenas, antes que o fogo e a busca ilimitada por produção e consumo de mercadorias possam nos engolir todos juntos, decretando a extinção da humanidade. Corte final, ou consumo final! Apaguem as luzes, e as câmeras! Fins dos tempos, de criação. Fogo! Morte! Desmatamento! Tempos sombrios e escuridão parecem marcar a obsessão perseguida pelo atual governo. Que os povos indígenas possam nos apontar uma luz, a partir do interior de suas câmeras e de suas mentes avançadas, como diria Caetano Veloso! Vejam os filmes Guardiões da Floresta (2018) e Virou Brasil (2019), pensem, saiam do conforto, leiam esse apelo dos Guardiões da Floresta, um coletivo de indígenas extremamente corajosos e inspiradores que estão colocando suas vidas6 em risco para proteger a floresta Amazônica da destruição: Caros amigos, Estamos enviando estas palavras a vocês hoje porque precisamos de apoio urgente. Nossa terra está sendo invadida, agora, neste momento. É uma emergência. Nós patrulhamos a floresta, identificamos os madeireiros, destruímos seus acampamentos e os expulsamos. A gente já combateu muita invasão de madeireiros. Está funcionando. Nós recebemos constantemente ameaças de morte da poderosa máfia madeireira. Três de nós já foram assassinados. Mas, nós continuamos, porque a floresta é nossa vida. Sem ela, todos nós estaríamos mortos. Nossos irmãos isolados também vivem na floresta. Eles não sobrevivem se ela for destruída. Enquanto nós estivermos vivos, nós estamos lutando por todos nós aqui, pelos isolados, e pela natureza.
6. Já quase indo para a impressão, na data de hoje, 02/11/19, lemos a notícia na Folha de S. Paulo, confirmada pela Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e Participação Popular do Maranhão, que um grupo de madeireiros ilegais, dentro da TI Arariboia, fez uma emboscada contra os Guardiões da Floresta, atirando e assassinando o líder indígena Paulo Paulino Guajajara. Ainda, um outro líder indígena, Laércio Souza Silva, sofreu ferimentos graves. Toda força aos Guardiões da Floresta, e o forumdoc.bh conclama pelo fim da política genocida contra os povos indígenas que está em curso no país, ainda e com maior força.
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Virou Brasil sobre filme de Pakea, Hajkaramykya, Arakurania, Petua, Arawtyta’ia, Sabiá e Paranya Renata Otto Diniz1
Virou Brasil resulta de uma oficina, realizada pelo pessoal do Vídeo nas Aldeias, entre os Awá-Guajá, da aldeia Tiracambu, na TI Caru, situada no Maranhão, no ano de 2017. Certamente vocês conhecem o Vídeo nas Aldeias. Do contrário, podem imediatamente consultar as informações disponíveis no site do projeto.2 Talvez seja bom apenas ressaltar o caráter pioneiro do VNA em promover o domínio dos equipamentos audiovisuais pelos indígenas no Brasil. Ressaltar ainda que o efeito mais original dessa atitude tem sido o surgimento de filmes nos quais tanto o enquadramento (o quadro, o foco, o recorte etc.), quanto o campo enquadrado (a matéria, os fluxos, talvez possamos dizer, a vida em continuidade) são definidos nos termos do mundo indígena. Mesmo que o “índio” mire os “brancos”, ou os cachorros, ou o invisível..., o mundo que ele mira é sempre o indígena, porque nada está fora do mundo de alguém que está em posição de sujeito. Virou Brasil é um exemplo extraordinário do sucesso desse mecanismo de composição, ou melhor, de tradução entre mundos, acionado por meio audiovisual. Não pela ênfase no polimento ou no esmero perfeccionista – ainda é um filme debutante. Mas justamente pela sua pungência, pelo frescor com que os protagonistas – os Awá-Guajá, estando por trás e na frente das câmeras – manobram sua auto mise-en-scène. Provavelmente vocês não conhecem os Awá-Guajá. Eles são um dos cerca de “225 povos indígenas” que vivem atualmente no Brasil.3 Eles são talvez menos conhecidos que os demais por terem sido apenas recentemente “contatados”. O primeiro contato do órgão indigenista com os Awá, aquele que conta no censo, deu-se em 1973, em plena “década da destruição da Amazônia”.4 Na verdade, foram dois contatos naquele mesmo ano. Ambos frutos de expedições indigenistas, seguindo notícias sobre “bandos” de
1. Mestre em antropologia social pelo Museu Nacional/UFRJ e doutoranda pelo PPGAS da Universidade de Brasília. Foi técnica em antropologia da FUNAI entre 2009 e 2014, onde atuou nas coordenações de delimitação e demarcação de terras; e proteção aos índios isolados e recém contatados. Co-dirigiu, com Isael Maxakali e Sueli Maxakali, o filme Quando os Yãmiy Vêm Dançar Conosco (2012). Integra o coletivo da Filmes de Quintal. 2.Cf.: Vídeo nas Aldeias: <http://videonasaldeias.org.br/2009/>. 3. Consultar: <https://pib.socioambiental.org/pt/Quadro_Geral_dos_Povos>. 4. O cineasta Adrian Cowell tem uma série de filmes sob esta alcunha. Consultar o acervo disponível na pagina da Fundação Oswaldo Cruz, acessível em <http://basearch.coc.fiocruz.br/index.php/decada-da-destruicao>.
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uma gente “nômade” que estava sendo alvo de toda sorte de violência: aprisionamento, deslocamento forçado, afugentamento com tiro e cachorros, mortandade por doenças etc. A primeira expedição, feita nas regiões do vale do rio Turiaçu (atualmente no interior da TI Alto Turiaçu), onde habitam os índios Ka’apor, encontrou 15 pessoas awá, entre crianças, homens e mulheres adultos, velho nenhum, habitando 4 casas de acampamento – tapiris. A segunda deu-se no vale do Rio Pindaré, nas cabeceiras do rio Caru, região atualmente demarcada no interior da TI Caru, onde também habitam os Guajajara. Esta segunda expedição encontrou apenas dois “sobreviventes”, dois garotos doentes, cujos pais e irmãos foram encontrados mortos no antigo abrigo. Segue-se, durante as décadas 1980 e 90, quase uma dezena de contatos ou avistamentos com o objetivo daquilo que os sertanistas chamam de “resgate”. Por isso, o que se deu com os Awá não foi um “contato”. O contato oficial com os Awá-Guajá consiste numa série interminável, cujo episódio mais recente se deu em 2015.5 Além disso, atualmente res(x)istem famílias em grupos que rejeitam o contato e vivem no interior da TI Araribóia, também habitada pelos Guajajara no estado do Maranhão. Se os Awá estampam o noticiário é mais por conta dessa porção de sua população que mantêm-se em “isolamento voluntário”. Mas, provavelmente, vocês já viram os Awá em filme. Foram eles que encenaram, com Andrea Tonacci, o incrível Serras da Desordem (2006). Inclusive, os Awá protagonistas do Serras e do Virou Brasil são quase os mesmos, pessoal da mesma aldeia, Tiracambu. Só que no filme de Tonacci, o protagonismo awá ainda se restringia à mise-en-scène em frente à câmera. Tratava-se lá, de contar a saga de Karapiru,6 justamente como um exemplo daquilo que se passou reiteradamente na história dos Awá, no momento da invasão dos karaí sobre seu território, seus harakwá, sua T/-terra, sua “terra-planeta”, como diz Davi Kopenawa. Karapiru é um homem awá que sobrevivera à emboscada de capangas de fazendeiros invasores em 1978. Os pistoleiros incendiaram o mato e as casas e abriram tiroteio contra crianças, mulheres e homens. Karapiru escapara das balas e do fogo jogando-se ao igarapé, levando consigo seu bebê de colo. Sem poder olhar para trás, e saber se haveria outros parentes vivos, Karapiru segue sua fuga frenética. Seu filho não suporta e falece. Karapiru continua andando e alcança um lugarejo ocupado por sertanejos no interior da Bahia. Lá ele é recebido por uma família que lhe abriga temporariamente. Quase uma década depois em 1987, é “resgatado” por Sidney Possuelo, então coordenador do departamento de Índios Isolados da FUNAI, e seu companheiro, Wellington Figueiredo. Eles o levam de carro para Brasília. Ao tentar identificar sua língua e sua etnia, o pessoal de Possuelo convoca Benvindo Xiramuku Guajá, jovem adulto que residia nas imediações do Posto de Atração do interior da TI Alto Turiaçu, local do primeiro contato awá-guajá. Tendo sido criado no convívio com os indigenistas, Xiramuku trabalhava eventualmente para eles e falava português. Poussuelo quis testar a mútua compreensão linguística entre os homens e tentar desvendar a história de Karapiru. Ao se encontrarem 5. Sobre esse contato, consultar meu próprio artigo: “Outra vez, me deixa em paz, crônicas do (des)encontro tupi no Maranhão”. na Revista de Antropologia da UFSCAR, 2017 acessível em: <http://www.rau.ufscar.br/wp-content/ uploads/2017/10/4_Renata_Otto_Diniz.pdf>. 6. Conforme Luis Carlos Forlini na Revista ANTHROPOLÓGICAS, ano 11, volume 18(2): 293-302 (2007).
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em Brasília, Karapiru e Xiramuku percebem que não apenas falavam a mesma língua (guajá), mas que se reconheciam pessoalmente. Eram pai e filho. Tinham sido separados no momento da chacina que colocou Karapiru em fuga para um lado e Xiramuku para outro. Grande história! Grande narrativa! Grande filme! Serras é um exemplo dos extermínios awá-guajá, uma história do sertão do Maranhão, com seus coronéis. Mas também uma história de gente da terra - dos índios antes dos brancos, e dos sertanejos desvirados índios... Como no sonho de Karapiru, que inicia o filme, Serras conta como antes a história dos Awá era harmoniosa, tranquila, confortável, idílica até. E como uma violenta e extravagante passagem os transportou para o tempo de depois: o tempo da estrada de ferro aberrante, do trem da Vale, este animal monstruoso dos brancos que chafurdou e cortou o território awá e separou os parentes, muitos em definitivo. Virou Brasil já se inicia no tempo de depois. Ele parte daí para então voltar atrás, ou melhor, pelo avesso, para dar a ver a versão awá sobre a sua relação com estes agentes da morte. Mas também apresentar, amistosamente, as coisas fundamentais de sua socialidade. Nesse sentido, podemos enumerar várias lindas passagens:
As pegadas de Maxikoa Maxikoa apanha mangas caídas dos pés nos arredores do posto. Já disseram certa vez que as aldeias Awá ficam no posto e não o contrário. Mas Maxikoa anda seu andar antigo mesmo ali. Ela tem o caminhar típico das mulheres e homens awá que viveram muito tempo habitando na mata, a pisada torce o metatarso para dentro do calcanhar. Assim, os pés escapam das ramas que poderiam embaraçar a caminhada. São detalhes do corpo, detalhes do filme que revelam a T/terra-saber. Maxikoa anda como se estivesse caminhado o seu harakwá, o que significa literalmente meu saber. Para o andar na mata, se diz wata ka’a pe. Watá se traduz por caçar e andar. Ka’a pe significa lugar da floresta. Donde se conclui que não se anda por andar na floresta. Mas se anda-caça. Assim como se constrói o território. Harakwá é uma terra-saber. O saber andar na floresta entre os Awá constrói sua atenção, seu corpo, sua “(r)ex(s)istência”. As pegadas de Maxikoa o revelam.
O testemunho de uma velha mulher sobre o bem viver Amy Paranawãj seca fibra de tucum e conta sua própria trajetória. “A gente só comia capelão e jabuti. A gente não encontrava nem inhame do mato. Quando chegamos ao cocal, deixamos nossa bagagem lá. A gente foi morando lá. Nosso marido pegando guariba. A gente assava porque não sabia cozinhar. Uma vez a gente estava comendo, quando chegou a turma do Xiami. Eles chegaram de surpresa, falando igual karaí. Nosso marido perguntou: tudo bem, karaí? A gente não conhecia eles, a gente achava que eram mesmo karaí. Todo mundo ficou curioso querendo saber quem eram. Xiami respondeu: Eu sou awá também. Mataram meu pai e minha mãe. Depois, eles foram embora e voltavam para nos visitar. A gente foi se acostumando. Mas eu fiquei gripada, como sempre estou
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desde então. Nosso marido dava guariba ao Xiami. Nosso marido falava: eu sou índio do mato mesmo, estou morando aqui, comendo babaçu, só porque no mato acabaram os frutos. Era bom quando era apenas a nossa família!”.
Uma ausência significativa Majakaty, que era um garoto pequeno na época em que o Serras foi rodado (início da década de 2000), hoje, jovem adulto, casado, pai de filhos, talvez dentre todos da aldeia Tiracambu aquele que mais perfeitamente fala português, não gosta de ser famoso entre os brancos, por ter sido filmado curumim, garoto nu, se divertindo no acampamento com seu bicho, o porco, maty. Quando, na aldeia, algum karaí amigo propicia uma sessão do Serras, Majakaty dá um jeito de sumir. Majakaty também não apareceu no Virou Brasil (a não ser muito brevemente nas primeiras tomadas, em planos gerais coletivos). Talvez nos próximos filmes, ele deixe de se ressentir com o enquadramento branco dos Awá e tome parte no enquadramento awá dos brancos... Todavia, ressalto que o sentimento-atitude de raiva-vergonha de Majakaty não prevalece para a maioria dos Awá. Ao contrário. Mihaxa’á, por exemplo, que no Serras representou Karapiru jovem, em Virou Brasil, se compraz em representar a si. Aliás, é ele quem explica a chegada desastrosa dos karaí sobre seus territórios, e emboca a expressão título, “virou brasil”. Para ele, ou para seu irmão, Majhuxa’á, e suas respectivas esposas Pakawãj, Ameri, para a mãe deles, Amy Paranawãj, para a jovem mulher Pinowá e seu sábio marido, Akamaty, para o velho cantor Kamairu, o grande mestre de cerimônias, renomado em todas as aldeias awá, para todos eles, o filme desvela um desejo de expressarem-se, de afirmarem e refletirem suas ações.
Presenças míticas Os irmãos Mihaxa’á e Majhuxa’á estão na frente do “olho da câmera” durante várias cenas. Eles encabeçam a saída de caça. No caminho, matam uma cobra. Acham uma colmeia no tronco de uma árvore. Cortam a árvore. Retiram e tomam o mel. Perseguem os macacos guaribas. Abatem os animais. Alimentam a flecha no sangue da presa. Tomam café. Se revoltam contra os tratores. Mostram como os trilhos da estrada de ferro cortaram seus caminhos antigos... Não resisto em comparar essas passagens protagonizadas por eles, com os episódios em que, os irmãos míticos, Maíra e Mukura, filhos do primeiro demiurgo, Maíra-pai, vão dando forma ao mundo atual, na medida de suas aventuras no patamar terrestre, desde que este se descolou do céu. Os dois pares de irmãos (gêmeos), demiurgos e atuais, contam como o mundo foi estabelecido ou transformado a partir do que já estava.7 O filme como a vida awá, às vezes, confundem os tempos. 7. Lembro ainda que o nome Majhuxa’á é derivado do nome majhu, que designa uma cobra do tipo jiboia. Esta, para os Awá, conforme uma versão mítica contada por eles, foi a forma adotada por Maíra pai, para enganar o urubu-gavião-coruja, Urutá, que era o dono original do fogo. Na forma de Majhu, Maíra fingiu-se de morto e começou a feder. Assim, atraiu Urutá, para sua carcaça. Urutá ainda hesitou um pouco porque o olho do bicho
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O mel, primeiro avatar da coleta: Os caçadores, dentre os quais Mihaxa’á e Majhuxa’á, encontram uma árvore com uma colmeia. Cortam o tronco com o machado para retirar dela o mel. Ao fazerem isso, comentam: “Os brancos vão pensar: tudo isso só para pegar mel? Mas nós somos Awá mesmo!” (aliás, awá é o termo que várias línguas da família Tupi-Guarani empregam para se referir às pessoas humanas, algo como a gente, mais ou menos como um pronome inclusivo para a categoria de humanos. Pode ser que ainda adjetivem awá-té, nós, gente de verdade). “Nós não ficamos parados não! Quando vemos o mel, cortamos logo para tomar”. O mel é um alimento ambíguo: líquido, que, todavia não serve para matar a sede, ao contrário, a provoca. Alimento líquido, encontrado preferencialmente durante a seca. Alimento líquido, todavia, conceitual e empiricamente seco. Alimento, enfim, que não mata propriamente nem a fome, mas serve, melhor, como uma sobremesa. O mel é um alimento cozinhado por natureza, apanhado pronto. O mel é um requinte, um suplemento. O Mel é uma delícia! Um alimento lascivo, como, aliás, os irmãos não deixam de comentar às risadas: “Você está enfiando a mão no buraco melado! É gostoso!”. “Nossa, eles vão pensar que você é sujo!” – como quem diz também, ambiguamente, “promíscuo”. Ao que uma mulher, Ameri, responde: “Não, eles irão pensar: esta é a comida deles! Os brancos apenas irão pensar: eles comem a comida deles, assim como nós comemos a nossa”. Sim, ao tomar o mel, eles estão num banquete cerimonial! Os dois casais encenam num quadro perfeitamente composto, simetricamente espelhados, os dois homens no centro, ladeados pelas esposas, com os mesmos gestos, os braços coreografados, apanhando e sugando o mel com ajuda de ramas. O quadro baixo, imóvel, compõe um retrato falado, uma crônica exemplar da vida awá. Sim, o mel é um alimento fundamental na “dieta”, e na vida awá em geral. Pois se as “saídas para a mata”, que consistem na prática que alicerça a economia trivial, podem ter, e frequentemente têm, a extração do mel por propósito, não há saída para a mata em que não se procure o mel. Assim, o mel pode ser tomado como avatar da “caminhada”, do andar na mata, “watá ka’a pe”. Enfim, o mel é o avatar da própria “coleta”.
O guariba, primeiro avatar da caça Existem outros sujeitos que podem revezar este lugar-avatar da caminhada. A captura dos macacos guariba, waria, é, melhor, o avatar do watá ka’a pe, quando o motivo é mais propriamente a caça (do que a coleta). A cena em que os mesmos irmãos perseguem os guaribas, junto a um grupo maior, ostentando suas coleções de flechas, há um quadro anterior “vazio” em que se escutam os guaribas cantando alto. Os machos cantam muito! Por isso são chamados capelões. Os caçadores escalam o alto das árvores, ao modo de suas presas potenciais. As mulheres falam com eles: “Nossos maridos vão matar vocês, ainda brilhava e acusava a vida no corpo. Mas não se conteve, pousou sobre ele, no que este lhe desferiu o bote e lhe tomou a chama original em favor dos humanos. Pois bem, Majhuxa’á, dei-me conta enquanto escrevo, tem o próprio olho cicatrizado por um ferimento antigo.
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porque estamos com fome”. Kamairu, o velho, o mestre cantor, fala na língua deles: “wam wam wam”. Os bichos são abatidos. As flechas que lhes atingiram são alimentadas pelo sangue da presa. Se tornarão doravante melhores, mais eficientes, estarão melhor criadas, como flechas. A caça foi um sucesso, pois o guariba foi caçado!
Por quê cantam os Awá? O velho Kamairu também se mostra para o filme cantando muito. Os outros homens também o fazem, mas Kamairu, especialmente, faz questão de anunciar e comentar o que está ou estão fazendo em cena, por meio do seu cantar. Ele volta da caçada ao waria cantando: “eles não queriam que a espingarda se mostrasse, mas eu a mostro. Agora não há mais munição” etc. Noutra cena, Kamairu aparece construindo flechas. Está sentado no chão apontado a taquara. Ele canta contando isto. Segue cantando, e por meio do seu canto, conta como foi que aprendeu cantar e porque: Quando ele era bem garoto, sua mãe perguntou por que ele não subia ao céu? Então, ele foi saber com os homens adultos. Ele experimentou cantar e uma vez subiu ao céu. Ele viu o céu. Ele canta desde então. O canto é a chave para a subida ao lugar celeste! Kamairu não se arrisca a perdê-la! O canto também tem seu momento espetacular no contexto ritual, quando os homens se paramentam para a grande subida. Aí, o canto é coletivo. Vários homens cantam, as mulheres respondem cantando também. É noite, a jornada terrestre está terminando, inicia-se a jornada celeste, aquela que faz colar os patamares de volta. Assim como tinha sido antes, nos velhos tempos, quando cantam, os homens awá caminham o céu.
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Enfim, Virou Brasil coleciona cenas da vida, privada ou pública, que sintetizam a forma particular da socialidade awá. Mas talvez ainda sua maior riqueza seja tornar evidente o orgulho com que o fazem. Sua alegria e altivez em demonstrarem-se. Têm certeza de que o filme é uma oportunidade de ensinar os brancos. Requintam em elaborar a forma de existir dos brancos. Antes, os brancos não existiam. Chegaram bem depois, só recentemente. Antes, o mundo já era mundo. Só depois é que, desfortunadamente, “virou brasil”.
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CHÃOS sobre filme de Camila Freitas Antônio Bispo dos Santos1
No mês de junho do ano de 1995, tive a honra de participar da coordenação de duas importantes ocupações de terras no município de Canto do Buriti, no estado do Piauí. As ações faziam parte de uma jornada de lutas chamadas grito da terra Brasil e eram organizadas pelo MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), MSTR (Movimento Sindical de Trabalhadores Rurais) e vários outros movimentos sociais que atuavam e ou atuam no campo. Eu participei como representante da FETAG (Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Piauí). As fazendas ocupadas foram: fazenda INCA (Indústria Nordestina de Carnes) e Caju Norte. Ambas as áreas faziam parte de vários projetos agrícolas e ou agropecuários pertencentes a um senhor de Pernambuco conhecido como Fernando Brasileiro e estavam abandonadas já a algum tempo. Projeto é a denominação popular, criada para identificar supostas fazendas, que na época contraíam dinheiro público através de grandes empréstimos… A maioria captava esses empréstimos através da SUDENE (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste) e vários outros agentes públicos de financiamento. Os empréstimos geralmente eram subsidiados, ou a juros muito baixos e com prazos de pagamento a perder de vista… mesmo assim os supostos fazendeiros, aplicavam uma pequena parte dos recursos, desviavam uma grande quantia e depois sucateavam o pouco que investiam e quando chegava o tempo de pagar, geralmente eram agraciados com negociações generosas que geralmente se transformavam em anistia. Só nos municípios de São João do Piauí e Canto do Buriti do Piauí, esse moço chamado Fernando Brasileiro, sucateou e abandonou quatro grandes projetos que hoje são assentamentos do MST. As ocupações das quais eu participei foram bastante exitosas. Eu fiquei mais tempo no acampamento – onde hoje é o assentamento – Malhada Inca, por isso é de onde eu posso faltar com mais pertencimento. Se eu fosse descrever essas ocupações, as pessoas que assistiram ou assistirem o documentário Chão, poderiam pensar que se tratava da mesma situação e não estariam erradas, pois mesmo acontecendo em lugares e tempos diferentes, os personagens, o roteiro e as cenas se assemelham. Então, poderia surgir a seguinte pergunta… nesse sentido, qual a importância do documentário? Eu pessoalmente 1. Escritor e liderança quilombola na comunidade Saco do Curtume, município de São João do Piauí, é autor de Colonização, quilombos: modos e significações, publicado em 2015 pelo INCT de Inclusão/CNPq/UNB, com republicação em 2019.
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diria que o documentário Chão vem exatamente comprovar que a história é consequente e, por assim ser, algumas vezes ela aparece como repetição e outras como permanência… De forma mais pragmática, o documentário nos ensina sobre a grande capacidade de percepção, mobilização e comunicação do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) tanto na oralidade, através das palavras de ordem, como na escrita através de cadastros e anotações que aparecem em várias cenas e audiovisual, através das belas imagens e falas dos personagens, quando de formas bem articuladas, retratam a realidade de uma sociedade colonial que ainda hoje, manda para os impérios a maior parte do seu patrimônio natural. Diante disso, também pode surgir a seguinte pergunta… o que aquelas ocupações realizadas em 1995 tem a ver com esse filme e o que o filme tem a ver com elas?... Eu acostumo dizer que a história, contada só por um lado, não é história, é ficção. Também acostumo falar que não existem críticas construtivas e críticas destrutivas… críticas são críticas e ponto! Sem adjetivos e com fundamentos, ao contrário, não são críticas! São xingamentos! Digo isso para dizer que sou um dos mais ferrenhos críticos dos movimentos sociais! Crítico e autocrítico. Então é isso que aquelas ocupações que foram realizadas em junho de 1995, no município de Canto do Buriti no estado do Piauí, tem a ver com o filme Chão… a questão é essa! Eu estava lá! Eu não era, nem nunca fui do MST, porém, estou fazendo a crítica e o filme proporciona várias abordagens. Conforme falei no início do texto, as duas ocupações das quais eu participei como dirigente sindical dos trabalhadores rurais fizeram parte de uma ação integrada por vários movimentos sociais do campo, era uma agenda nacional chamada grito da terra Brasil, que depois passou a ser uma agenda do MSTTR (Movimento Sindical dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Rurais), enquanto o MST passou a fazer uma outra jornada de lutas chamada abril vermelho… Vale ressaltar que as duas ocupações realizadas com êxito, nas fazendas sucateadas Caju Norte e INCA, durante algum tempo, tiveram orientações políticas compartilhadas, depois ficando apenas sobre a orientação do MST. Para a Caju Norte, que passou a ser chamada Caju Nossa... foram aproximadamente três quartos das famílias mobilizadas e apenas um quarto para a INCA, que passou a ser chamada Malhada Inca… Ah! Você pode estar se perguntando: e qual foi o critério para decidir sobre quem ia para qual área? Essa foi uma das partes mais bonitas de todo o processo, senão vejamos: a ideia inicial era fazer as duas ocupações, porém aconteceram alguns problemas que dificultaram a mobilização e, diante disso, parte da coordenação avaliava que com as famílias mobilizadas só dava para fazer uma ocupação e a outra parte defendia que dava para fazer as duas. Nesse caso, como é de praxe, fomos para a famosa votação em uma assembleia deliberativa e foi aí que nos deparamos com a seguinte surpresa: três quartos das famílias mobilizadas votaram a favor de uma única ocupação e seria a Caju Norte porque ainda restava um pouco de infraestrutura e um quarto votou de fazer as duas ocupações porque queriam ir para a INCA. Resultado? Uma aula de deliberação, maioria e minoria se respeitaram e cada uma delas foi para o lado que escolheu. E, naquele momento, eu aprendi que as deliberações encaminhadas por maiorias matemáticas, o que convencionalmente chamam de democracia… são nada mais nada menos que ditaduras coletivas! O que aquelas famílias fizeram
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foi decidir de forma compartilhada. Como chamar isso, não sei, porém, o resultado vou dizer no final. As duas áreas tinham infraestrutura bem diferentes: na Caju Norte, com uma área de aproximadamente 50.000ha (cinquenta mil hectares), embora sucateada, ainda sobraram aproximadamente 3.000ha, com algumas cercas e um resto de plantações de capim e caju. Existiam também algumas casas, não me recordo quantas… ainda tinha uma rede de energia elétrica instalada, só que estava cortada e com um débito muito grande. Com relação à propriedade da terra, descobriu-se que eram terras públicas devolutas, pertencentes ao patrimônio público imobiliário do estado do Piauí. O que a princípio facilitaria, transformou-se em um grande complicador. É que depois do desencadeamento de várias batalhas tanto no judiciário como no administrativo, na hora que estava tudo pronto para criar o assentamento, no ano de 2003… o governo do estado do Piauí, com o aval do Governo Federal, resolveu fazer um convênio mirabolante com uma suposta empresa chamada Brasil Ecodiesel e lançaram o enigmático Programa Biodiesel! Não vou aqui me aprofundar nessa parte do biodiesel, pois esse não é mais um capítulo da mesma história e, sim, mais uma história com muitos capítulos e trabalho para muitos autores. Já a INCA tinha uma área de aproximadamente 1.800ha, uma casa sede e seis pequenos açudes construídos em sequência. No entanto, segundo o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), as terras eram particulares e por isso foram desapropriadas e transformadas em assentamento da reforma agrária… Eis a parte que me anima! Então, esse é o capítulo que falta no filme, ou esse é o filme que falta no capítulo?... O que em 1995, era a carcaça de uma suposta fazenda e virou uma ocupação, hoje é o assentamento Malhada Inca. As famílias que ocuparam na época, hoje são aproximadamente o dobro. E aqueles 1.800ha de terras que serviam para que uma única família vivesse saqueando os recursos públicos... hoje é um lugar onde várias pessoas vivem de forma harmoniosa com a natureza e ainda alimentam muitas pessoas na cidade de Canto do Buriti. Ah! Você quer dados estatísticos? Temos sim! No ato da ocupação, eu que fazia parte da coordenação, tinha que estar muito atento a tudo que acontecia. Foi quando, de repente, um dos companheiros se aproximou de mim e perguntou… posso dar um tiro? E perguntei como assim? Ele respondeu: eu estou com vontade de dar um tiro! Então eu falei, olha, se você atirar agora, os outros companheiros podem pensar que é um ataque e pode complicar tudo. Porém, depois que tivermos acampados falaremos sobre isso. Quando acampamos e tudo estava tranquilo, chamei o companheiro e perguntei porque você quer atirar? Ele me prometeu que depois que atirasse me dizia…Então, concordamos, ele atirou e depois me disse: agora estou feliz! Atirei e acertei na escravidão! Na minha opinião, a maior estatística sobre um povo é a sua liberdade e a liberdade é o mais importante produto da Reforma Agrária e de todas as formas de lutas dos povos! Anos depois, visitei esse companheiro e ele me falou… quem quiser saber o que é fome não venha para o assentamento Malhada Inca! Aqui ninguém sabe o que é isso! Com relação à Caju Norte, que virou Caju Nossa e depois virou Santa Clara, com a intervenção do Estado com o pretexto de produzir biodiesel… recomendo um turismo desenvolvimentista! Eu prefiro falar das flores!
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Diante de tudo isso, expresso toda minha gratidão ao MST e a todas as pessoas que de uma forma ou de outra compuseram esse documentário! Por proporcionar a mim e, com certeza a muitas outras pessoas, as possibilidades de se reeditar na ficção e se conectar na realidade. Pois a história sem ficção seria insuportável! Aproveito para dizer que o Brasil colônia não é o meu país! Porém, os assentamentos, os quilombos, as aldeias e todos os territórios dos povos e comunidades contracolonialistas são os nossos CHÃOS! AQUILOMBAR-SE SEMPRE! Abraços contracolonialistas!
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Tempo de cultivo sobre Chão, de Camila Freitas Vinícius Andrade1
Se eles tivessem o conhecimento que a gente tem, se eles pegassem a enxada, todos os dias levantassem às 5 horas da manhã, ir pra terra, trabalhar, plantar e depois colher, eles não tavam fazendo isso com a gente Lucicleide Maria dos Santos (liderança do Assentamento Normandia, Caruaru-PE)2
Como ensaiar uma primeira aproximação ao filme Chão, de Camila Freitas, sem pinçar de sua sequência de abertura a tocante frase “Vou correr atrás do meu sonho”, verbalizada por uma jovem senhora militante sentada a fitar o horizonte, cabelos grisalhos, perfil marcado, chamada carinhosamente de vó pelo homem com quem dialoga?3 Aparentemente banal, mas selecionada do contexto de uma não menos tocante conversa, tal frase não tem a ver apenas com seu impacto sensível em quem assiste, ela nos ajuda a introduzir algumas ideias gerais sobre o filme. Chão acompanha um conjunto de processos vinculados à luta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no estado de Goiás, com destaque para a disputa em torno da Usina Santa Helena, latifúndio de cerca de 15 hectares dominado pela monocultura da cana-de-açúcar, em débito com a União, e então legitimamente ocupado por cerca de 600 famílias de trabalhadores. A experiência de pesquisa com filmes engajados4 nos ensina que um proveitoso método para examinar casos de colaboração entre documentaristas e movimentos sociais é sondar as maneiras pelas quais a dimensão formal dos filmes se revela permeável à luta: como um determinado documentário se organiza narrativamente e cria procedimentos em diálogo com as estratégias de ação do movimento, como adota recursos para expressar pautas, discursos, slogans e cânticos
1. Doutor em Comunicação Social pela UFMG com pesquisa sobre documentários engajados em lutas urbanas, mestre também em Comunicação Social pela UFPE. 2. Trecho de matéria feita pela jornalista Helena Dias para o site Marco Zero Conteúdo. 3. São Natalina Cândida e Wilmar Fernandes, o P.C., cujos nomes constam nos créditos finais do filme. 4. Me refiro à tese de doutorado Intervir na história - Modos de participação das imagens documentais em lutas urbanas no Brasil que concluí em maio desse ano sob a orientação da professora Cláudia Mesquita, a quem agradeço pelo amadurecimento das reflexões nas quais me amparo neste texto.
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de luta, como se abre às tomadas de palavra dos militantes, entre outras possibilidades jamais dadas de antemão.5 Em Chão, nos ocorre que essa permeabilidade encontra expressão decisiva na temporalidade administrada pelo filme – nutrida na observância a algumas importantes conversas, gestos, corpos e paisagens, que faz ritmo fora de uma lógica industrial. Ora, é sabido que o centro de atuação do MST está na terra e trabalhá-la requer tempo, tanto para o cultivo de diferentes plantios quanto para o cultivo dos modos de existência a eles associados. Temporalidade paciente do filme, que ecoa o manejo que o solo exige, o respeito aos ciclos que regem a agricultura (diários e sazonais), em sua escala familiar, ecologicamente comprometida, orgânica e sustentável. Com isso, do mesmo modo que “o tempo é luta”, para lembrar inspiradora formulação da professora Amaranta Cesar em entrevista sobre o cinema de intervenção feito hoje,6 podemos dizer também que luta é tempo. Não obstante, numa das sequências finais de Chão, em que um grupo de trabalhadores se prepara para o ato político de ocupação de uma fazenda, uma das coordenadoras adverte que não é necessário registrar a ação com celulares, já que alguns militantes estariam incumbidos de cumprir tal tarefa. Quando o trabalho imediato de circulação e divulgação das informações de um movimento já está encaminhado, o cinema se vê “liberado” para operar em fluxo distinto. Lembro, então, outra entrevista, dessa vez de Renato Tapajós,7 na qual o documentarista afirma que a produção de registros urgentes abre aos cineastas a possibilidade de construir, numa chave complementar, narrativas de fôlego diferenciado, aprofundadas. A temporalidade identificada em Chão parece guiar a proposta que permite ao documentário acomodar e articular as diversas dimensões que compõem a luta do MST. Exemplo do que acontece na já mencionada cena inicial, em que o conteúdo da conversa, o desenho das casas projetado na lousa por P.C., o horizonte recortado pela janela e fustigado pelos sonhos de Dona Natalina, a “vó”, sugerem um imbricamento entre resistência, trabalho e sonho. Ou ainda na maneira como o filme transporta uma pedagogia de luta, interessando-se por reuniões, encontros, bate-papos, em que ressalta o processo de construção eminentemente coletiva do movimento, a terra enquanto conquista por se efetivar. E se conquistá-la é um sonho atrás do qual se corre através do tempo, é igualmente, ou deve ser, um direito. A ideia de permeabilidade também sugere reflexões sobre as possibilidades e limites da colaboração estabelecida entre documentarista e movimento social. Este debate não caberia no espaço deste texto, mas gostaríamos de adiantar uma especulação. Ao optar, não raras vezes, por manter posições de média distância em relação aos sujeitos filmados, dosando o que poderia ser confundido com a perspectiva situada dos trabalhadores, 5. Trata-se da ideia de permeabilidade entre cena política (a situação concreta de conflito) e a cena fílmica (as formas inventadas pelo filme para expressá-la), compartilhada generosamente por César Guimarães conosco na ocasião da banca de qualificação da tese mencionada na nota anterior. 6. Concedida ao jornalista e militante Chico Ludermir para a Revista Cardamomo. 7. Concedida a membros do Laboratório Multiusuário da Unicamp, a propósito da participação do documentarista na disciplina “Questões Agrárias e Multimeios”.
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Chão age não para desacreditar das possibilidades das imagens, mas para nos fazer perceber melhor suas potências e os pontos de apoio concretos e simbólicos entre militância e produção audiovisual – que podem ser desde o registro documental de saberes e práticas forjados nos conflitos com os poderes instituídos, para posterior transmissão, até a difusão das pautas e reivindicações do movimento, fornecendo lastro para a expansão de suas alianças. Planos com relativo distanciamento fazem-se presentes também numa chave mais convencional, sobretudo para dar conta das plantações de cana. Estas tomadas abrem e retornam ao final do filme, como fossem responsáveis por nos informar, visualmente, as circunstâncias adversas que o MST precisa enfrentar. Mas depois de retornarem, passeamos uma última vez o olhar pelo acampamento Leonir Orback. Ventanias revolvem poeira e o lugar não parece exatamente o mesmo que conhecemos ao longo da narrativa. Mas aqui a ação do tempo não sugere um refluir da luta, pelo contrário; atesta que Chão permanece numa frequência capaz de retroalimentar as energias e vibrações no interior das quais foi tramado.
Referências CÉSAR, Amaranta; LUDERMIR, Chico. O tempo é luta: Entrevista com a curadora Amaranta Cesar. 2017. Disponível em: <http://www.revistacardamomo.com/o-tempo-e-luta-entrevista-com-a-curadora-amaranta-cesar/>. Acesso em: 03 de outubro de 2019. DIAS, Helena. Qual a importância do Centro Paulo Freire?: Fomos à Normandia para entender. 2019. Disponível em: <https://marcozero.org/qual-a-importancia-do-centro-paulo-freire-fomos-a-normandia-para-entender/>. Acesso em: 08 out. 2019. TAPAJÓS, Renato. Palestra do Documentarista e Escritor Renato Tapajós. 2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=W5C_SdCmAQU>. Acesso em: 05 out. 2019
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Rememorações em Apiwtxa: a emancipação Ashaninka
sobre Antônio e Piti (2019), de Vincent Carelli e Wewito Piyãko César Guimarães1 Um filme é mais bonito quando a gente deixa ele guardado por um tempo. Vira história. Isaac Piãko
“Quando eu via os kampa passando assim, lá no seringal onde nós morava, eu tinha um amor por esse povo. Aí, quando chegava aquele horror, horror mesmo de ashaninka, lá, eu achava muito bonito, eu achava lindo, lindo, tudo varejando...”. A voz feminina que narra esse encontro – amoroso desde o princípio – com o povo Ashaninka vem da curva do rio Amônia, no extremo oeste do Acre, mas a imagem mostrada vem da região dos seus parentes no Peru. Vestidos com as kushmas amarronzadas (como a pele da cobra), dezenas e dezenas deles chegam em suas canoas, lenta e astuciosamente, para tomarem o gigantesco barco daquele delirante barão da borracha, fã de Enrico Caruso, que almejava construir uma casa de ópera na cidade de Iquitos, na Amazônia peruana. Estamos diante de um plano de Fitzcarraldo (1982), mas os indígenas que um dia atuaram anonimamente – não sem coerção ou violência – como figurantes do controverso épico de Werner Herzog, deram lugar aos protagonistas de uma saga familiar que se inicia com uma história de amor proibido – entre Piti (filha do seringueiro Chico Coló) e Antônio (filho de Samoyri Piãko, o fundador da aldeia de Apiwtxa) –, prossegue rememorando as trajetórias de luta e resistência do casal, e alcança a atuação de quatro de seus filhos nos dias de hoje: Wewito, Isaac, Moisés e Benki. Todos envolvidos nas tarefas e funções da vida em comunidade, distribuídos entre as lidas de professor, liderança política, pajé, cineasta e manejadores dos recursos da fauna e flora da região. Em Antônio e Piti (2019), de Vincent Carelli e Wewito Piyãko, a cena de conversação em torno da história de amor marcada por um interdito cultural – tenazmente alimentado pelo preconceito dos brancos frente aos indígenas – se inicia na casa de Piti, enquanto ela tece no tear (à maneira ashaninka, aprendida com a sogra). Com os netos brincando ao redor, ela conta sua história aos autores do filme, começando pelo conflito gerado pela sua decisão de se casar – nas duras palavras do pai – com um “índio puro”, escolha que “faria vergonha” à família. Decidida a seguir com Antônio para o Peru,
1. Professor Titular do Departamento de Comunicação Social da FAFICH-UFMG e pesquisador do CNPq.
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se preciso fosse, ela acaba por ganhar o apoio do pai, que consente na união, embora contrariado. A mãe, porém, negou-se a participar da cerimônia. Enquanto escutamos esses episódios, surgem e duram na tela, delicadamente, as fotografias de Piti e Antônio, em diferentes épocas: mais próximas do nosso tempo (emoldurados no porta-retratos, como um casal) ou mais distantes, ainda na juventude deles. No retrato da jovem Piti, as ranhuras e os desgastes da película colorida – marcas da passagem dos anos – não apagaram a força da decisão sustentada com firmeza e alegria (como se vê no sorriso dela, que atravessa as épocas). É também numa cena de conversação de Wewito com seu pai, Antônio, que este recorda passagens da sua história: ele caçou muito com seus cunhados e tirou muita pele de gato-do-mato até conseguir dinheiro suficiente para se casar com Piti. Instado pelo filho (“Pai, conta um pouco do meu avô?”), ele fala do velho Samuel (Samoyri Piãko), enquanto trabalha na confecção do amatherentsi, o chapéu feito da palha da palmeira cocão e de penas de arara. Fugindo da patroa peruana que os explorava, Samuel e outros ashaninka “um dia se cansaram e fugiram”, descendo o rio Amônia até chegar em Apiwtxa, onde trabalharam por muitos anos, extraindo madeira. A narração de Antônio é entremeada por fotografias extraídas de coleções de museus etnográficos (como as que Georg Huebner fez entre os Ashaninka do Peru) e outras realizadas pelo antropólogo Arno Vogel. Wewito acrescenta suas lembranças do avô: ainda cedinho, ele era visto tecendo a rede de pescar; de tardinha, dispunha várias esteiras para se sentar, escolhia seu canto, e quando chegava a noite, convidava a todos para beber ayuhasca com ele. Um pouco mais adiante – após uma cena cotidiana na qual as crianças sussurram entre si, entretidas perto da fogueira, na manhã friorenta –, o filme expõe o motivo que o guia, em voz over:
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Eu, Wewito, e meu irmão Isaac, éramos alunos nas oficinas de vídeo quando gravamos, em 2003, o depoimento de Chico Coló, pai da nossa mãe Piti. A ideia era fazer um filme sobre a história de nossa família. Fizemos os outros filmes, mas este não. O Vincent retomou a ideia, e o Isaac encontrou a fita de 2003, que assistimos agora, pela primeira vez, anos após a morte do velho Chico Coló.
Acionada pelas conversas iniciadas por Vincent e Wewito e combinada em novos arranjos pela montagem, a rememoração põe as imagens para circular, movimenta o passado, entreabrindo-o às reflexões e afetos que surgem no presente. O filme planejado em 2003, sobre a história da família de Antônio e Piti, agora se desenvolve diante dos nossos olhos.
A primeira imagem retomada oferece o testemunho de Chico Coló, ex-soldado da borracha, pai de Piti. Reunidos à volta de um notebook, Isaac, Wewito, Antônio e Piti (comovida) reencontram o velho seringueiro. Ele relembra o seu primeiro encontro com o povo então chamado de kampa e a hospitalidade do líder deles, que lhe oferecera caiçuma. Gesto exemplar: os povos ameríndios não precisam nem integrar (assimilando e matando a diferença) nem expulsar o outro que deles se aproxima. Tragicamente, a recíproca não é verdadeira: os brancos invadem as terras indígenas, devastam seus recursos naturais e promovem o genocídio dos seus habitantes. A conversa gravada com Chico Coló será mostrada aos parentes da mãe que moram na reserva extrativista próxima à cidade de Marechal Thaumaturgo, onde Isaac se candidatara a prefeito. Juntos, os familiares comentam brevemente a imagem do passado que viera ao seu encontro: “Forte, né?” (...) “Parece que tudo tá vivo, né?” (...) “É tudo real”. Isaac conta que quando vinha pelo rio, gostava de encostar a canoa para conversar com o avô, que estava sempre atualizado, a par do que acontecia no país e em Marechal
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Thaumaturgo. A conversa chega no tema da eleição para prefeito, e um dos homens afirma: “Quando o primo for embora, vai vim um pior que o primo”. Frente ao ceticismo dos parentes de Piti diante da política, considerada uma irremediável sucessão de quadrilhas no poder local, Vincent pergunta se Isaac tem chance de ganhar a eleição. “Acho que dá pra tentar. Tá difícil. Eu não acredito não, por causa do povo, que tem muito preconceito”, responde o primo sentado na rede, traduzindo o sentimento dos habitantes da região, que temem, segundo ele, que com um prefeito indígena, toda a região se transformaria em terra indígena. O prognóstico, pessimista, será contrariado ao final do filme, com a vitória de Isaac nas eleições. Outra parente relembra o medo inspirado pelos kampa (conhecidos como grandes guerreiros) que, na época dela criança, chegavam ao povoado em sua “fieira de canoas”. Hoje as compridas canoas, movidas a motor, levam para a escola as numerosas crianças que embarcam nos barrancos à beira do rio, com cadernos e lápis nas mãos.
Ao persistente preconceito sofrido pelos Ashaninka, o velho Samuel já respondera há muito tempo atrás, quando acolhera Piti e também o irmão dela, Chico Velho, visitado por Isaac em sua campanha para angariar o apoio dos parentes na candidatura a prefeito de Marechal Thaumaturgo. Chico Velho viveu por mais de vinte anos na vizinhança de seu compadre Antônio, ambos dividindo, reciprocamente, o resultado de suas caçadas. Foi só com a demarcação das terras ashaninka, em 1992, que alguns parentes de Piti se mudaram para a reserva extrativista do Alto Juruá. Nesse momento, por um breve instante, a montagem nos conduz de volta à cena da conversa e do tear, quando Vincent menciona a expressão “caboclos da Piti”, como era conhecida, antigamente, a aldeia do velho Samuel. Piti narra então o esforço para que os filhos aprendessem a ler e a escrever, e conta do professor peruano que um dia ela contratou, que dava suas lições às crianças na praia do rio, escrevendo no chão. Ela própria se valera dos seus conhecimentos para impedir que os comerciantes brancos enganassem os Ashaninka, assim como se envolvera em vários conflitos para defendê-los. Seu protagonismo nesses embates com o mundo dos brancos é ressaltado pelo marido, Antônio. Em sua tessitura de lembranças e relatos, o filme vai pouco a pouco ressaltando a importância crucial que os Ashaninka deram aos seus projetos de emancipação, a
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começar por aquele do velho Samuel, como destaca Antônio, ao comentar o processo de demarcação das terras iniciado com a chegada da Funai: “Tudo aconteceu de maneira muito rápida, porque já estávamos organizados. O Samuel já tinha um projeto. Não houve patrão nem desmando que conseguisse desestruturar sua família”.2 É admirável o empenho da comunidade de Apiwtxa em sustentar os seus diferentes projetos, valendo-se estrategicamente das imagens como um potente aliado, como afirma Isaac Pyãko: “hoje a gente tem um trabalho de sistema agroflorestal, de repovoamento de pequenos animais. Eu considero o vídeo, também, como uma forma de pesquisa para você organizar a questão dos trabalhos”.3 A escola, com suas várias atividades, tendo à frente os professores indígenas, bem como as diferentes iniciativas ligadas ao ensino das técnicas de sustentabilidade e de reflorestamento – como o Centro Yorenka Ãtame (Saberes da Floresta), fundado por Benki em Marechal Thaumaturgo – são iniciativas decisivas para a construção da auto-determinação do povo Ashaninka. Em uma das aulas, que reúne crianças, homens e mulheres de diferentes idades, o pajé Moisés – que também pinta as visões oferecidas pela ayuhasca – narra os diversos abusos e violências cometidos pelos brancos contra as mulheres ashaninka, presenciados na sua infância, e que a mãe ajudou a coibir (como reforça a narração de Wewito). “Os brancos só queriam a nossa derrota, pisavam em cima da gente”, afirma Moisés, com veemência. Donos de seu discurso e atores da sua própria história, figurados em variadas auto-mise-en-scènes construídas em aliança com o povo do cinema (o projeto Vídeo nas Aldeias), os Ashaninka se desvestem dos nomes que lhe foram concedidos um dia (kampa ou caboclos) e afirmam sua identidade, reatando sua vinculação com o passado, como diz Antônio, dançando e batendo seu tambor, em uma das festas de comemoração da demarcação das terras, realizadas anualmente: “Não fiquem sentados. É assim que faziam nossos antepassados”. Porém, mesmo hoje, quando estão “unidos em torno de um território”, tendo abandonado o “predatório modelo extrativista da região” (como diz Wewito), os Ashaninka ainda necessitam de guerrear em novas frentes, como mostram as passagens retomadas do filme A Gente Luta mas Come Fruta (2006), de Isaac Pinhanta e Valdete Pinhanta, em que grupos organizados se põem a fiscalizar e a vigiar a floresta, afugentando os madeireiros e caçadores que invadem suas terras. O tempo da festa – como naquela caiçumada na qual Chico Velho, irmão de Piti, canta um forró ao lado de Antônio, seu compadre e antigo companheiro de caçadas – ainda não se separou do tempo da luta. Entre uma e outra, ao anoitecer – desde as noites ancestrais, incontáveis – conduzidos pela ayuhasca e pelos cantos, os Ashaninka ascendem a novos aprendizados, nos encontros com povos e seres – felizmente – inalcançáveis pelas viagens que os brancos costumam realizar no território dos outros.
2. Vídeo nas aldeias, 25 anos: 1986-2011 (Ana Carvalho Ziller Araújo, organizadora). Olinda: Vídeo nas aldeias, 2011, p. 83. 3.Vídeo nas aldeias, 25 anos: 1986-2011 (Ana Carvalho Ziller Araújo, organizadora). Olinda: Vídeo nas aldeias, 2011, p. 85.
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Na pele tesa das coisas sobre Sedução da Carne, de Julio Bressane Victor Guimarães1
Sedução da Carne começa como um filme de viagem. A câmera explora paisagens recônditas que ora se descortinam, ora se desarranjam diante do olhar de quem filma – o próprio Bressane, presente na imagem desde o primeiro plano. Mais do que extensão do olho, a câmera é uma continuação das mãos: percorre o tronco das árvores, tateia as pedras, explora mil angulações oblíquas entre a floresta, as montanhas e o mar, enquanto ouvimos a respiração do viajante e o ruído do vento. Reconhecemos os arredores de Sils Maria, o vilarejo suíço onde Nietzsche passou seus últimos verões a caminhar e a escrever algumas de suas obras mais célebres, geografia fundante em Nietzsche Sils Maria Rochedo de Surlej (Julio Bressane, Rosa Dias e Rodrigo Lima, 2019). De súbito, o céu claro de Sils Maria dá lugar a uma menina a mergulhar em câmera lenta, e o rochedo piramidal às margens do lago de Silvaplana convoca uma praia de mar bravio, de ares indianos, povoada por pescadores a puxar a rede em meio à algazarra das aves marítimas. Novamente, é o sentido do tato que impera: a câmera roça a superfície da corda, enquanto a vibração do vento no microfone impõe sua força de presença; os movimentos da imagem intranquilizam o olhar sobre a paisagem, enquanto a banda sonora incorpora os ruídos da filmagem e faz do ouvido um órgão permanentemente retesado. Como a filosofia derradeira de Nietzsche, a obra recente de Bressane é um cinema da imanência. Mais do que adotar os pressupostos filosóficos nietzschianos, porém, trata-se de desdobrá-los, encontrar uma reverberação formal dessa imanência na carne das imagens e dos sons. Da deriva na praia oriental, onde umas gotas de sangue se anunciam na areia, uma elipse – temporal, espacial, cósmica – nos leva ao mergulho concentrado num espaço cênico fechado, onde uma mulher, Siloé (Mariana Lima), contracena com um papagaio, uma porção de livros, uma jarra d’água e um prato cheio de carne crua. A elipse introduz uma perspectiva – narrativa, imagética, corporal – nova: agora é essa mulher que nos conduzirá pelo filme. Viúva há três anos, ela nos conta que seu marido morreu de repente, numa viagem que faziam juntos “por lugares quase secretos desse mundo”. Tudo o que vimos até aqui é tragado pela voracidade da ficção, sem perder nada de sua presença material. As imagens do prólogo se afirmam em sua imanência carnal, 1. Crítico de cinema, programador e professor. Escreve regularmente na revista Cinética e no portal Con Los Ojos Abiertos. Contribuiu com publicações como Senses of Cinema, La Fuga, Desistfilm e La Furia Umana. Doutor em Comunicação Social pela UFMG, com passagem pela Université Sorbonne-Nouvelle (Paris 3).
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ao mesmo tempo em que são imantadas por uma força narrativa que, agora sabemos, é parte do universo ficcional de Sedução da Carne. O filme de viagem que víamos até ali se transforma em memória enlutada, no mesmo movimento em que a prosa memorialista de Siloé é encampada por uma encenação que busca a vibração tátil das superfícies: a pele ou as penas, as páginas dos livros, os objetos de cena delicadamente iluminados, o suor ou a saliva. “A poesia, a imaginação, os meus sonhos, tudo isso é real” – diz Siloé, como se reverberasse a empreitada do filme. A deriva agora não é pela imensidão das paisagens secretas, mas pelos meandros dessa eremita e de seu reino. Ela nos conta do sexo entre homens e animais – fartamente documentado nos livros de história da arte que ela folheia – ou das exegeses de João Ribeiro para os aforismos da língua portuguesa, enquanto a câmera desliza pelas penas do papagaio ou pelas curvas do vestido de Mariana Lima. Numa súbita aparição de imagens de arquivo, um microfone ausculta as inscrições gravadas em pedras imemoriais ou registra um indígena andino a tocar seu charango. De volta ao espaço cênico, o som dos arquivos rebate na banda sonora, numa interpenetração que não cessa, como se o filme se tornasse uma membrana permeável, constantemente vazada pelas cenas de outrora: os ruídos do mar a perturbar o sono da viúva, a multiplicação insistente dos pios de pássaro, até que eles passem a operar como acompanhamento musical das derivas de Siloé pelo espaço. Enquanto a carne se acumula no prato, o corpo de Mariana Lima se reparte em perambulações, converte-se em superfície pictórica, desfaz-se em espelhamentos, sombras, desfigurações. Se o papagaio, no dizer de Siloé, é o “guardião da memória das coisas antigas” – como o bicho levado dos trópicos por Humboldt, que guardava na voz a língua da tribo exterminada dos maipuré –, Bressane não é o último zelador da grande tradição da mise-en-scène entre nós, como quer uma crítica idealista, mas sobretudo um colecionador obsessivo das espessuras acústicas do passado e do presente, um guardião curioso das intensidades luminosas de ontem e de hoje. Os ecos do passado estão aqui, junto com os filmes anteriores do cineasta – a obra recente de Bressane é também uma autobiografia fílmica em processo –, mas sem um pingo de nostalgia. O cineasta que decide incluir na trilha sonora uma canção interpretada por Nora Ney ou arvora elogios à prosa elegante e “atenta aos arcaísmos” de João Ribeiro é o mesmo que investiga a materialidade das câmeras amadoras, deixa vazar as conversas com Rosa Dias na banda sonora ou constrói um espaço cênico perfeitamente insular, hermeticamente fechado, para depois implodir o artifício, sempre integrando-o na energia do filme como uma dobra insuspeita da ficção. As geografias de algures, as páginas dos livros, a penugem do papagaio, a luz que vaza pelo tecido do estúdio, a língua vermelha e as cavidades do rosto de Mariana Lima: tudo é imanência, tudo é proximidade, tudo é superfície imantada. Bressane filma como quem roça a pele das coisas – que, arrepiadas pelo toque, devolvem a energia em forma vibrátil. Perto do fim, essa obsessão pelas texturas encontra um anteparo: na convocação das longas sequências do matadouro de O Sangue das Bestas (Georges Franju, 1949), não por acaso o filme que, junto com Noite e Neblina (Alain Resnais, 1955), introduzira Serge Daney em seu longo aprendizado das distâncias do cinema, a paixão carnal de
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Sedução da Carne encontra seu limite. O olho enfrenta o intolerável. É então que os pedaços de carne acumulados no prato durante todo o filme se voltam contra Siloé de forma avassaladora. Mas, antes do final terrível, a carne será manuseada, vestida, penetrada pela língua ereta de Mariana Lima, num êxtase triunfal. Ainda que a eremita enuncie que “a matança diária e industrial dos animais é um espelho de nós mesmos”, ainda que a carne morta reviva e se rebele contra a protagonista, espalhando-se pela casa e possuindo-a mortalmente, Bressane continuará sempre fiel à vida que se aninha na carne das matérias. Do primeiro plano até o último, Sedução da Carne é um filme sempre teso, de atenção máxima à sensualidade das superfícies, às suas vibrações imprevistas. Um filme inteiramente seduzido pelo mistério sob a pele de tudo, testemunha contumaz de suas manifestações exteriores. No aparente contrassenso da aniquilação da protagonista pela carne ressuscitada, aninha-se uma lição mais profunda: frente a um cinema cada vez mais desencarnado, é preciso reencontrar, na pele tesa das coisas, a carne viva do mundo.
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Tudo que aqui tem espaço mesmo sem língua notas à margem de A Febre, de Maya Da-Rin Ewerton Belico1
Nosso caminho listrado O caminho encontrando Venham para cá! Tronco de tucum-japó Qual espinhento tronco Falantes pássaros da terra Cantando e cantando vêm Yawa Shokã (canto para atrair os porcos do mato, por Antônio Marubo)
Em entrevista ao Estado de São Paulo sobre A Febre, Maya Da-Rin afirma: “Para muitos povos indígenas, a compreensão de uma dimensão mágica ou fantástica é complexa e não está necessariamente apartada da vida cotidiana. Ou seja, não se trata de uma fantasia em oposição à realidade; são universos que coexistem e dialogam. Os filmes do Apichatpong Weerashethakul também trabalham nessa chave2”. Aparentemente, A Febre se situaria em um campo estético-político cujas coordenadas poderiam ser delineadas com razoável simplicidade: tratar-se-ia de uma modalidade de inserção dependente de realizadores provenientes de cinematografias periféricas, na qual a incorporação de elementos fantásticos em uma roteirização de base realista aludiria à cosmologia de povos originários, e cujo exemplo mais acabado seria o trabalho de Apichatpong Weereshethakul.3 Esse campo possuiria uma fatura narrativa privilegiada – o protagonista 1. Ewerton Belico é diretor, roteirista, professor e curador. É um dos curadores do forumdoc.bh - festival do filme documentário e etnográfico de Belo Horizonte -, e foi ainda curador do Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte e do Fronteira - Festival de cinema documentário e experimental de Goiânia. Foi corroteirista do longa-metragem Subybaya, dirigido por Leo Pyrata, e lançado na XX Mostra de Cinema de Tiradentes; e corroteirista e codiretor ( juntamente com Samuel Marotta) do longa-metragem Baixo Centro, vencedor do prêmio de melhor longa metragem da XXI Mostra de Cinema de Tiradentes. Atualmente desenvolvem o roteiro do projeto A Luta que não pode Parar, com fomento da CODEMGE. 2. “Maya Da-Rin no termômetro de Locarno”, entrevista concedida a Rodrigo Fonseca, https://cultura.estadao. com.br/blogs/p-de-pop/maya-da-rin-no-termometro-de-locarno/ 3. Sobre essa breve caracterização que faço do cinema de Apichatpong, ver INGAWANJI, May Adalol. “Animism
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em condição liminar, que oscila entre o mundo moderno e o tradicional, entre o mundo dos vivos e o dos mortos, frequentemente acossado por uma moléstia inexplicável nos termos do pensamento ocidental – ao mesmo tempo que oferece uma solução aceitável, no horizonte de expectativas da crítica que orbita em torno do universo do world cinema, à nossa tão contemporânea rejeição à ambiguidade e à decepção de expectativas:4 a informação narrativa que é negada, o plot que permanece fraturado e inacabado, toda obscuridade enfim é imediatamente imputada ao universo indevassável de um pensamento mítico que permanecerá oculto aos espectadores ocidentais.5
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Mas talvez as rotas dessa cartografia não sejam tão claras. Pensemos nos trabalhos anteriores de Maya, Margem e Terras, nos quais o deslocamento é tanto procedimento quanto objeto.6 Tomo Terras como exemplo, no qual a dissolução de fronteiras constitui-se como princípio articulador do conjunto heteróclito de materiais que o compõe. Entre Tabatinga (Brasil), Letícia (Colômbia) e Santa Rosa (Peru), fronteira tríplice afastada dos centros metropolitanos de seus respectivos países, na passagem entre as cidades e a floresta, os deslocamentos são tanto espaciais quanto subjetivos: o barqueiro que leva passageiros e mercadorias, os taxistas que atravessam incessantemente as fronteiras, o povo Bora que se espalha pelos três países indiferentes às separações postas pelos estados nacionais, a vendedora de pupunha que circula entre a floresta e a cidade; mas também a retomada dos mecanismos de cura tradicionais e dos usos da ayahuasca em contexto urbano, a crescente presença cristã em contexto indígena, plasmada na cantiga religiosa entoada em tukano; tudo parece apontar para um universo em que pouco há de estanque, e no qual as separações, sejam entre pessoas ou espaços, continuamente se revelam porosas. Terras afigura um imaginário espacial sobre a Amazônia no qual o urbano aparece atravessado pela mata, em uma incrustação no qual convivem os sons da floresta e o ruído incessante de motores de motos e de rádios; e ainda deslocados e migrantes diversos para os quais a floresta é desde sempre um espaço tanto de residência quanto de trânsito.7 and Performantive Realist Cinema in Apichatpong Weereshethakul”. In: NARRAWAY, Guinnevere and PICK, Anat. Screening Nature - Cinema beyond human. Oxford/New York: Berghahn Books, 2013 4. Penso aqui no tão frequente quanto infrutífero debate que explode de quando em vez sobre qual posição política seria afinal “traduzida” por esse filme ou aquele. 5. No caso brasileiro, poderia citar de modo mais imediato Chuva é cantoria na aldeia dos mortos, de Renée Nader e João Salaviza, como exemplar desse paradigma acima delineado. 6. Talvez pudéssemos traçar um paralelo da trajetória de Maya Da-Rin com outra cineasta-viajante: Marília Rocha que, assim como Maya Da-Rin, realizou mais recentemente seu primeiro trabalho ficcional, e que também, por vias próprias, vem realizando um trabalho no qual espaço e subjetividade parecem se cruzar como estrutura fundante de seus filmes. Sobre isso, ver DUMANS, João. “Um outro espaço”. IN_BRASIL, André e TEIA. IN_TEIA 2002-2012. Belo Horizonte: Teia, 2012. 7. Sobre Terras, ver <http://www.pixfolio.com.br/arq/1458144068.pdf>.
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A porosidade de fronteiras parece contaminar os modos de apresentação de Terras, em um ecletismo deliberado que transita entre a entrevista e a observação, renunciando periodicamente à aderência a esse ou aquele procedimento, hibridismo que destoa da contradição que se afigurava no documentário brasileiro entre um primado da fala (realizado na entrevista, em uma herança direta do cinema praticado por Coutinho a partir dos anos 2000) e um primado do corpo8 (materializado no gosto por personagens em trânsito, solitários, desenraizados, universo pelo qual transitaram autores e filmes diversos, tal como Andarilho, de Cao Guimarães). Há continuidades importantes entre os procedimentos de Terras e Febre: o deslocamento constante de suas personagens (sobretudo de seu protagonista, Justino, cujos espaços que compõem sua travessia diária vemos com uma constância ritmada que atravessa A Febre; mas há ainda vários outros, representados e anunciados, tal como de Vanessa, sua filha, cujo anúncio de mudança se ata inextricavelmente ao mal-estar que contamina a trajetória de Justino); o desenho de som, que cruza os sons da floresta com os ruídos constantes de máquinas e de motores;9 a iconografia porosa no qual as sombras e as massas de escuridão parecem irmanar espaços naturais e industriais, em um procedimento de contágio que germina em Terras; na retomada de elementos de uma espiritualidade tradicional em contexto urbano; no trânsito constante entre línguas diversas, cifra da deriva identitária que permeia seus filmes. Gostaria de chamar a atenção para dois elementos importantes, anunciados nos trabalhos anteriores de Maya e retomados em A Febre: o primeira deles, uma certa dialética entre a mudez e a expressividade. Justino é um trabalhador solitário, flagrado no exercício de um conjunto solitário de atividades cotidianas, no trabalho e em trânsito entre sua casa e o porto. A solidão e o silêncio de Justino – que não é o silêncio de A Febre, sempre povoado por uma banda sonora rica e complexa – atravessam a narrativa, em um conjunto cíclico de ações que se sobrepõem à ordenação sucessiva dos acontecimentos. A “falta de palavras e a dificuldade de dizê-las10” parece se constituir no signo de um duplo lugar social que se materializa em Justino: a do trabalhador precarizado e a do indígena deslocado para um espaço citadino povoado sobretudo de indiferença. Seu silêncio, que se irmana com um segundo emudecimento, àquele das personagens indígenas cercadas pela incompreensão de homens e mulheres brancos, tem como antípoda um segundo conjunto de segmentos no qual ao silêncio se opõe a narração: seja em português ou em tukano, Justino é sobretudo um narrador, seja em feição singularizante – na língua dos estrangeiros, quando fala de sua trajetória pessoal ao colega de trabalho recém-apresentado, para quem ele é “o índio” – seja na transmissão de um saber coletivo – agora em tukano – ao contar o mito sobre a caça para as crianças
8. Sobre essa questão, ver VALENTE, Eduardo. “Na fronteira”. IN_ Cinética, outubro de 2009. <http://www.revistacinetica.com.br/terras.htm> e ainda FOSTER, Lila. “O Homem e o mundo”. In: Cinética, abril de 2007. <http:// www.revistacinetica.com.br/caolila.htm>. 9. Sobre o desenho de som de A Febre, realizado por Felipe Mussel, ver a entrevista de Maya Da-Rin constante em https://cineuropa.org/en/interview/376513/ 10. Retomo aqui a expressão de Cláudia Mesquita, constante em MESQUITA, Cláudia. “Os nossos silêncios: Sobre alguns filmes de Teia”. BRASIL, André e TEIA. In: TEIA 2002-2012. Belo Horizonte: Teia, 2012.
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que comem. A visão da mata, a febre constante que se segue ao anúncio da mudança de Vanessa, a criatura cuja sombra parece persegui-lo, figuram uma perda da experiência coletiva sumarizada na condição do exilado, e expressa na própria impossibilidade de se expressar: o que se vive não pode mais ser dito, pois se perdeu um horizonte comum de experiência. O segundo elemento para o qual gostaria de chamar a atenção é que, se essa dialética parece retomar em nova chave a ambiguidade essencial de procedimentos que era fundante de Terras, entre o primado do corpo e o primado da linguagem, também religa A Febre uma questão essencial do cinema brasileiro dos anos 90 e do começo dos anos 2000, a dizer: “uma dramaturgia dos espaços e encontros reticentes11”. Ou seja, uma certa sensação de desidentificação, de não-pertencimento – que se materializa narrativamente no trânsito constante das personagens e que no cinema moderno era sobretudo cifra da experiência burguesa na modernidade tardia – e que assume no cinema brasileiro o papel de signo da precariedade ao dar forma à experiência de personagens marginalizados, conectando “imigração, encontros e desencontros e a pauta de personagens angustiadas12”.
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A título de epílogo, gostaria de mencionar outra fronteira porosa presente em A Febre, a dizer, aquela entre ficção e etnografia, presente sobretudo no modo como o filme elabora narrativamente o adoecimento de Justino.13 Indígena Desana,14 Justino pertence a um povo para o qual a doença “não se reduz a uma simples desordem biofisiológica, mas integra-se num sistema de explicações que remete ao conjunto das representações do homem, de suas atividades na sociedade, do seu ambiente natural15”. A condição liminar de Justino patenteia uma espécie de relação com a natureza que não tem mais lugar no espaço urbano e moderno onde reside, e que permanece obscura à medicina ocidental doravante praticada por Vanessa. Sem maiores pretensões de me alongar sobre os modos
11. Ver a entrevista de Ismail Xavier “Wenders marcou a geração dos 90, aponta Xavier”. Folha de São Paulo/ Caderno Ilustrada, São Paulo, sábado, 03 de fevereiro de 2007. Ver <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/ fq0302200708.htm>. 12. XAVIER, I. Op. Cit. 13. Sobre isso, ver a conversa entre Gustavo Beck e Maya Da-Rin, em “Mysteries of Nature: Maya Da-Rin discusses The Fever”, Notebook, 13 de agosto de 2019. <https://mubi.com/pt/notebook/posts/ mysteries-of-nature-maya-da-rin-discusses-the-fever>. 14. Os Desana são um dos 15 grupos patrilineares exogâmicos do grupo linguístico tukano oriental que vivem na região do Uapés, nos dois lados da fronteira colombiano-brasileira. Os Tukano compartilham uma área geográfica contínua e um mesmo modo de vida básico, que inclui a caça e coleta, mas no qual predomina a pesca e a agricultura de coivara, sendo a “mandioca brava” o principal produto. Sobre os tukano, ver “Etnias do Rio Uapés - Tukano”, Povos indígenas do Brasil, ISA - Instituto Socioambiental <https://pib.socioambiental.org /pt/Povo: Tukano>. 15.BUCHIELLET, Dominique. “Interpretação da doença e simbolismo ecológico entre os Desana”, Boletim do Museu Emílio Goeldi, série Antropologia 4(1), 1988.
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como o saber etnográfico é recebido em A Febre – questão que por si só demandaria uma investigação mais detida – gostaria de concluir chamando a atenção para dois traços do mal-estar de Justino: seu caráter relacional – uma vez que as representações da doença, por um lado, põem a pique sua aparente integração ao mundo dos brancos, e por outro assumem uma dimensão cosmológica, na qual o conjunto de seres que compõe o ambiente sócio-natural Desana é mobilizado no processo mesmo de adoecimento – e tradutório – pois a doença e uma possível cura de Justino mobilizam séries de esboços de traduções possíveis: entre medicina ocidental e dos saberes tradicionais indígenas, entre o tukano e o português, entre os homens e os animais, entre o mundo dos vivos e o mundo frio e inerte dos ancestrais.
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Artistas da fome sobre Fakir, de Helena Ignez Jair Tadeu da Fonseca1
“ao distinto público, ouvintes de casa, vou ficar aqui exposto à audição pública como o faquir da dor” Jards Macalé e Waly Salomão
“Nas últimas décadas o interesse pelos artistas da fome diminuiu bastante. Se antes compensava promover, por conta própria, grandes apresentações desse gênero, hoje isso é completamente impossível. Os tempos eram outros.” (KAFKA, 1991, p. 23). Assim começa “Um artista da fome”, conto que o próprio autor escolheu para fazer parte de sua primeira coletânea de narrativas, no estilo misto de realismo e absurdo que caracteriza sua obra, algo relacionável ao filme escrito e dirigido por Helena Ignez, e lançado em 2019: documentário sobre o “faquirismo” e muito mais do que isto. Pois ao lidar com algo que para muita gente pareceria absurdo, de uns tempos para cá, mas que fez parte de nossa estranha realidade, Fakir, como Kafka, projeta tudo isso numa “trama do cosmos”, conforme se ouve a própria cineasta dizer, ao fim do filme, que pode ser considerado como parte de um cinema “corpo mais alma” (SGANZERLA, 2010, p. 83). Trama-se um documentário, num dos sentidos clássicos do termo, a designar um filme que reúne documentos (principalmente imagens de artigos publicados na imprensa, de gravações para TV, de memorabilia em geral, depoimentos de voz e locuções) sobre cenas culturais importantes do Brasil, em décadas anteriores, criando-se também cenas cineteatrais sobre essas cenas culturais, no presente da realização do filme, mesclando-se diferentes tipos de registro e ligando-se temporalidades diversas, a indicar-se que as épocas de antes eram outras, embora correspondam às que se inventam e se “documentam” no aqui e agora da filmagem e da montagem. Fakir não apenas reúne documentação sobre o faquirismo – o movimento ou a condição dos faquires e principalmente das faquiresas no Brasil dos anos 50 e 60, de modo até didático-informativo, mas procura sugerir, de maneira poético-alegórica, a relação dessa manifestação paradoxalmente popular e marginal, com a situação do Brasil em geral, e em particular com a situação da arte e dos artistas no país, especialmente as mulheres. Quanto à primeira dimensão, histórico-político-social, é notável que a própria realidade “documentada” permita a percepção das relações entre a cena do faquirismo e a cena
1. Professor de Teoria Literária do Centro de Comunicação Social da UFSC, e pesquisador das relações entre literatura e outras artes. Poeta e cancionista.
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político-institucional da época. Por exemplo, mesmo a imprensa e o rádio, que exploravam e alimentavam de modo sensacionalista esses pobres e espantosos espetáculos, encarregavam-se de apresentá-los como importantes, devido à presença neles de “altas autoridades civis e militares”, como a de Ademar de Barros (1901-1969), importante político paulista, populista de direita que, segundo matéria de um jornal, ilustrada com foto, “entrou em negociações com a esposa do faquir Silki, para colocar pessoalmente no jejuador a faixa de ‘Campeão Mundial da Fome’”. Em uma sequência seguinte, que trata da faquiresa Verinha, salienta-se um recorte de jornal, também com foto, no qual se lê que “uma bandeira do Brasil ao fundo dava uma solenidade quase cívica ao ambiente”. Sendo tal ambiente a câmara da artista da fome, assemelhada a uma câmara de tortura, onde se coloca a urna ou cama de pregos, com cobras, para o jejuador ou a jejuadora ficarem expostos à visitação pública. Tais ambientes são muitas vezes toscos tugúrios, e em um caso, significativamente, uma sala de cinema popular, o Cineac Trianon, do Rio. Embora noutro diapasão, cabe lembrar aqui a reflexão de Glauber Rocha sobre as difíceis condições políticas, econômicas e sociais em que as artes, particularmente o cinema, se dão em países como o Brasil, através do que ele chamou, em 1965, de “Estética da fome” (ROCHA, 2004). A fome, como parte da realidade cruel e injusta de grande parte do povo pobre, é tomada como metáfora não só de tudo o que falta a uma plena realização artística, mas principalmente como questionamento dessa plenitude e como entendimento da arte enquanto falta. Quanto à segunda dimensão acima referida, e que se relaciona à primeira, é a da arte e dos artistas, principalmente as mulheres e outras forças oprimidas e marginalizadas, evidenciando-se no filme a relação do faquirismo com o chamado cinema marginal, dos anos 1960 e início dos 70, e com outras modalidades artísticas, como a da literatura, principalmente no campo da chamada poesia marginal, e antes no teatro e na canção pop-popular. Pois o que era considerado lixo cultural passou a ser algo valorizado a partir da Tropicália, ou Tropicalismo, como parte do que constituiria a cultura no Brasil. Não por acaso, a cena da boate de O Bandido da Luz Vermelha (Rogério Sganzerla, 1968), com uma dançarina e sua cobra, é enxertada em Fakyr, havendo neste, também, trechos de O Profeta da Fome (Maurício Capovilla, 1970) e de filmes de José Mojica Marins. Sobre isso, cabe lembrar o que não está no filme de Helena Ignez, mas a ele pode ser relacionado: as odaliscas e vedetes dos filmes de Julio Bressane e seu recurso zombeteiro ao estilo “grosso” da imprensa sensacionalista da época, também encontradiço em Sganzerla, os cenários de “trens fantasmas” dos parques de diversões mambembes de Ivan Cardoso e Luiz Rosemberg Filho, os quais também lançaram mão de referências a gêneros populares, como o da chanchada cinematográfica, e seus antecedentes circenses, desprezados como de baixo valor, e relativos ao teatro de revista mais pobre, fontes importantes para os espetáculos de faquirismo, que vinham, de fins do século XIX e do início do XX, justamente quando surge o cinema, numa Europa que explorava em caça-níqueis o fascínio popular pelo exotismo orientalista, e pelo bizarro que, também nos Estados Unidos, se materializou nos freak shows, nas exibições de aberrações e atrocidades, ou shows de horrores.
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Confirmando essa importante reconsideração das marginalizadas (as mulheres) entre os marginalizados em Fakyr, uma sequência visual sucede a um depoimento verbal em que se afirma serem as faquirezas as fichadas pela polícia, inclusive junto a prostitutas: a câmera faz um travelling pelas paredes de um interior, nas quais há uma série de quadros com fotos de algumas das faquiresas, junto a lutadoras de luta livre, vedetes e atrizes diversas, como Luz Del Fuego ou Marilyn Monroe, e um retrato da própria cineasta enquanto jovem atriz e “artista da capa”, sem que haja legenda, fala ou indicação disso, afora o close nessa imagem na parede. Tal discreta autorreferência faz de Helena Ignez parte solidária daquilo de que trata, sendo seu evidente papel na direção de cenas cineteatrais do filme e sua própria voz na locução de Fakyr algo que mostra não haver fronteiras fechadas entre a suposta objetividade documentária e a subjetivação, entre ficção e “vida real”, entre o quadro histórico-social e os traços autobiográficos particulares. Nesse aspecto, outro detalhe sutil está em um recorte do jornal Última Hora a noticiar o concurso da “Rainha das Atrizes”, de que participa uma das mais extraordinárias personagens da saga de Fakyr, Susi King, a qual aliás apresenta uma série de nomes grafados de diversas maneiras e estilos. Uma de suas concorrentes, como se mostra, é a vedete Janete Jane, e não por acaso este é nome que inaugura, em O Bandido da Luz Vermelha, a transgressiva e brilhante galeria de personagens encarnadas por Helena Ignez nos filmes que fez com Sganzerla.
Referências KAFKA, Franz. Um artista da fome. In: Um artista da fome e A construção. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 22-35. MACALÉ, Jards; Salomão, Waly. O faquir da dor. In: Aprender a nadar. São Paulo: Rock Company, 1974. CD. Faixa 1. ROCHA, Glauber. Eztetyka da fome. In: Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac Naify, 2004. p. 63-67. SGANZERLA, Rogério. Corpo mais alma. In: Textos críticos I. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2010. p. 83-88.
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NATUREZA MORTA, Denilson Baniwa, 2019 Karen Shiratori1
Um satélite baniwa aponta suas lentes para a Amazônia. As imagens produzidas correspondem ao período de 2016 a 2019, anos conhecidos pelo aumento significativo das taxas de desmatamento e outras formas de destruição da floresta e seus habitantes, humanos e não humanos. Em janeiro de 2019, o Sistema de Alerta de Desmatamento do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia) detectou 108 quilômetros quadrados de desmatamento na Amazônia Legal, um aumento de 54% em relação a janeiro de 2018, quando o desmatamento somou 70 quilômetros quadrados. Já em junho de 2019, foram destruídos 920,4 quilômetros quadrados de floresta amazônica contra 488,4 quilômetros quadrados no mesmo período de 2018, segundo o Inpe (Instituto de Pesquisas Espaciais), cuja política de transparência de dados é um instrumento fundamental para o monitoramento da Amazônia há mais de uma década. Na sequência das imagens, o solo nu expõe as cicatrizes deixadas pelo corte raso feito por tratores, correntões e motosserras; o que aparece inicialmente como mancha de desmatamento adquire uma nitidez aterradora nas infogravuras vindas do satélite indígena. Elas revelam, ou melhor, escancaram a destruição da floresta no contorno dos corpos que a constituem, pois floresta é feita de gente, de aves, de bichos, de plantas, de fungos, também de microrganismos, em suma, de vidas incontáveis, todas relacionadas num complexo emaranhado que passamos a chamar de sociobiodiversidade. No chão desnudado, os contornos do corpo indígena morto, que lembram aquelas marcas feitas para sinalizar os vestígios da cena de um crime, coincidem com aqueles do avanço predatório dos madeireiros, fazendeiros, grileiros. A imagem prescinde de legenda, não há mistério: destruir a floresta é também exterminar os seus povos. Para quem não faz um corte radical entre humanidade e natureza nem considera floresta uma mercadoria, é isso a natureza morta, obra do artista Denilson Baniwa. Toda árvore que tomba é o anúncio de outros fins. Denilson Baniwa é um artista indígena; é indígena e é artista, e seu ser indígena lhe leva a inventar um outro jeito de fazer arte, onde processos de imaginar e fazer são por força intervenções em uma dinâmica histórica, a história da colonização dos territórios originários que hoje conhecemos como Brasil.
1. Doutora em antropologia pelo Museu Nacional. Atualmente, é pós-doutoranda do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo e pesquisadora do Cesta /Centro de Estudos Ameríndios.
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índice de diretores index by director
A. Sayeeda Moreno 38 ASCURI 42 Adrian Cowell 42 Affonso Uchôa 64 Alberto Alvares 63 Alice Riff 60 Aline Motta 40 Aloysio Raulino 73 Arakurania 66 Arawtyta’ia 66 Arthur Omar 36 Bárbara Wagner 65 Benjamin de Burca 65 Camila Freitas 59 Camille Reis 76 Carlos Adriano 64 Castiel Vitorino Brasileiro 41 Charles Bicalho 43 Chawa Atsa Matis 57 Chawa Wassa Matis 57 Christopher Harris 39 Clara Ianni 40 Clarissa Campolina 60 Claudia Priscilla 58 Coletivo de Cine Mbyá Ara Pyau 75 Coletivo Olhares (Im)Possíveis 61 Comunidade Maxakali Aldeia Nova do Pradinho 43 Cysi dos Anjos 76 Damba Matis 57 Damë Bëtxun Matis 57 Damë Matis 57, 61 Dandara de Morais 58 Dani Matis 61 David MacDougall 44 Débora Maria da Silva 40 Débora Vasconcelos 76 Denilson Baniwa 41 Fabio Rodrigues Filho 65 Germaine Dieterlen 45 Guilherme Lisboa 73 Gustavo Vinagre 57 Hajkaramykya 66 Helena Ignez 77 Irmãos Carvalho 39
Isabella Rodsil 76 Isael Maxakali 13 Jacilda Guajajara 62 Jamilson Guajajara 62 Jean Rouch 45 Jo Serfaty 66 João Borges 71 João Marcos 76 Jocy Guajajara 67 Josafá Veloso 76 Julio Bressane 74 Karrabing Film Collective 45 Kaxë Mentuk Matis 57 Kiko Goifman 58 Leila Weefur 37 Lemilda Guajajara 62 Letícia Simões 59 Lincoln Péricles 72, 73 Luiz Pretti 60 Mário Kuperman 73 Matheus Gomes 76 Maya Da-Rin 75 Milson Guajajara 67 Nuotama Frances Bodomo 38 Nym Smit 76 Pakea 66 Paranya 66 Paula Gaitán 44 Petua 66 Pollyana Guajajara 62 Rithy Panh 35 Rodrigo Carneiro 57 Romeu Quinto 73 Sabiá 66 Shapu Sibo Matis 57 Shawara Maxakali 43 Sueli Maxakali 13 Tais Amordivino 62 Tumi Rieli Matis 57 Vincent Carelli 71 Vinícius Silva 63 Vinijoe 76 Wang Bing 35 Wewito Piyãko 71
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índice de filmes index by film
A Febre 75 A Rosa Azul de Novalis 57 A-Gente Laranja 41 Aluguel: o Filme 72 Antônio e Piti 71 Apelo 40 Bakuëbom Bompisën Tëkikbo – Meninos Soprando Cana Fina 57 Banquete Coutinho 76 Bixa Travesty 58 Bup 58 Casa 59 Chão 59 Chico 39 Chico Mendes: Eu Quero Viver 42 Dead Nigga Blvd 37 Dead Souls (Almas Mortas/Si Ling Hun) 35 Eleições 60 Enquanto Estamos Aqui 60 Entre Casas 76 Entre_Vistas 61 Everybody Dies! (Todo Mundo Morre!) 38 Fakir 77 Filme dos Outros 72 Good-bye Old Man (Adeus meu velho) 44 Jakaira 74 Kapuakit Nëtë – Dia de Caçada 61 Les Tombeaux sans Noms (Túmulos sem Nome) 35 Ma’e Mimiu Haw – A História dos Cantos 62 Mãtãnãg, A Encantada 43 Motriz 62 Noise+Thirst (Barulho+Sede) 37 O Último Sonho 63 Para Todas as Moças 41 Pontes Sobre Abismos 40 Quantos eram pra tá? 63 Ressurreição 36 Rua Guaicurus 71 Ruim é ter que Trabalhar 73 Sedução da Carne 74 Sem Título # 5: A Rotina Terá Seu Enquanto 64 Sete Anos em Maio 64 Sigui Synthèse (1967 - 1973) - L’invention de la parole et de la mort (A invenção da palavra
e da morte) 45 Sonhos e Histórias de Fantasmas 66 still/here (ainda/aqui) 39 Swinguerra 65 Tarumã 73 Tatakox – Aldeia Vila Nova 43 Tudo que é Apertado Rasga 65 Uaká 44 Um Filme de Verão 66 Uma Semente de Ara Pyau 75 Virou Brasil 66 White (Branco) 38 Wutharr, Saltwater Dreams (Sonhos de Água Salgada) 45 Yãmiyhex, As Mulheres-Espírito 13 Yvy Reñoi, Semente da Terra 42 Zawxiperkwer Kaa – Guardiões da Floresta 67
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organização geral • produção filmes de quintal Júnia Torres Carla Italiano Layla Braz Andreza Vieira Ana Carolina Antunes Daniel Ribeiro Duarte mostra/seminário mortos e a câmera curadoria Paulo Maia organização Roberto Romero Carla Italiano Júnia Torres mostra contemporânea brasileira curadoria/seleção Daniel Ribeiro Duarte Carla Italiano Ewerton Belico Layla Braz sessões especiais seleção Júnia Torres
revisão técnica Glaura Cardoso Vale Roberto Romero colaboração Valéria de Paula Martins projeto gráfico & diagramação Ana C. Bahia arte Denilson Baniwa Natureza Morta, 2019 gestão e assessoria jurídica Diana Gebrim Sociedade Individual de Advogados Diversidade Gestão e Desenvolvimento de Projetos produção executiva Layla Braz Junia Torres captação Pedro Leal coordenação de logística/tradução Ana Carolina Antunes
programa de extensão forumdoc.ufmg Claudia Mesquita Paulo Maia Ruben Caixeta de Queiroz
site Gustavo Teodoro Mariana Nunes
catálogo produção editorial e organização Glaura Cardoso Vale Júnia Torres Carla Italiano
redes sociais Andreza Vieira
vinheta Luísa Lanna
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fotografia/cobertura Edgar Xakriabá tradução/legendagem Henrique Cosenza Luís Fernando Moura Pedro Veras Roberto Romero Victor Guimarães autoração digital/ projeção forumdoc.bh Hatari Filmes Julio Cruz Vitor Miranda assessoria de imprensa Helga Prado colaboração/assistência de produção Cora Lima Fernanda Torres Campos Gabriel Nunes da Silva Marcos Afonso Alves Rocha Mariana Nunes colaboração/pesquisa filmes indígenas Ana Carvalho gerência de cinema Cine Humberto Mauro gerente Bruno Hilário produção Julio Cruz Mariah Soares Matheus Pereira Vitor Miranda estagiária Josi Santos administrativo Roseli Miranda
agradecimentos acknowledgements Ademilson Concianza, Adirley Queiroz, Adrien Vidal-Berthaud, Alessandra Brito, Alice Lamounier, Ana Carvalho, Ana Estrela, Ana Martins Marques, Ana Tereza Brandão, André Brasil, André Di Franco, Antônio Bispo dos Santos, Arthur Omar, Bernard Machado, Breno Henrique, Bruno Hilário, Bruno Pinheiro Wanderley Reis, Bruno Vasconcelos, Roberta Veiga, Nina Gazire, Carol Almeida, Castiel Vitorino, Célia Xakriabá, César Guimarães, Charles Bicalho, Christopher Harris, Cínthia Gil (Doc Lisboa), Claudia Rankine, Cláudia Mesquita, Clarisse Alvarenga, Claudiney Ferreira, Cristina Amaral, Cristiane Lima, David MacDougall, Daniel Queiroz, Daniela Vargas, Davi de Jesus, Denilson Baniwa, Diana Taylor, Eduardo de Jesus, Eliane Lopes (IGPA/PUC Goiás), Elizabeth Povinelli, Emmanuel Burdeau, Ernesto de Carvalho, Fábio Andrade, Fabio Rodrigues Filho, Film Quarterly, Francisco Rocha, Gabriel Portela Saliés, Gabriel Sanna, Gabriela Moullin, Gilmar Galache, Giovanna Heliodoro, Heitor Augusto, Isabel Casimira, Isael Maxakali, Israel do Vale, Jair Fonseca, João Paulo Rabelo, Juca Ferreira, Karen Shiratori, Karime Gonçalves, Kênia Freitas, Leda Maria Martins, Leonardo Lessa, Luís Felipe Flores, Luiz Soares Júnior, Marcial Godoy, Mateus Araújo, Matheus Pereira, Michael Boyce Gillespie, Miguel Ribeiro, Milene Migliano, Olívia Sabino, Paula Berbert, Paula Gaitán, Pedro Aspahan, Pedro Portella, Rafael Barros, Renata Marquez, Renata Otto Diniz, Renato Sztutman, Rosângela de Tugny, Stella Penido, Sueli Maxakali, Tatiana carvalho Costa, Théo Lionel,Tomyo Costa Ito, Vicente Rios, Victor Guimarães, Vinícius Andrade, Wellington Cançado, e a todxs xs realizadorxs, equipes e coletivos que compõem esta 23ª edição do forumdoc.bh.
projeção Cine Humberto Mauro Frames
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ISBN: 978-85-63837-18-9 (impresso) ISBN: 978-85-63837-19-6 (eletrônico) Impressão: Imprensa Universitária da UFMG