Catálogo forumdoc.bh.2020

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forumdoc. bh.2020 24° forumdoc.bh - Festival do Filme Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte

19 a 28 nov.


[a programação estará disponível no site www.forumdoc.org.br]


Aos indĂ­genas mortos durante a pandemia, especialmente a tantas(os) mestres dos saberes, como Bernaldina Macuxi (VĂł Bernal) e Feliciano Lana (Desana) [www.memorialvagalumes.com.br]


sUMário [Summary]

O corpo é território e o território também é corpo célia xakriabá  11 forumdoc.bh.2020, de novo e de novo existir

[forumdoc.bh.2020, to exist again and again] [en]  13

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Sessão de Abertura

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mostra esta terra é a nossa terra

[Opening films]

[This land is our land] [en] carla italiano • ewerton belico • milene migliano

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mostra contemporânea brasileira [brazilian Contemporary Showcase] [en] andré novais oliveira • daniel ribeiro duarte • junia torres • luisa lanna

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Sessões especiais

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fórum de debates: seminário, masterclass, lançamento, sessões comentadas, entrevistas e júri

[Special screenings]

[forum: seminar, masterclass, release, debates, interviews and jury]

113

ensaios e entrevista [essays and interview]

Os “homens verdadeiros” e o Brasil em transe Tentehar - Arquitetura do sensível thiago b. mendonça

O que Há em Ti

eduardo escorel

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118

Loteamentos Clandestinos (1980) 120

erminia maricato

Nós construímos a cidade – o documentário e a luta popular por moradia, de Fim de semana (Tapajós, 1976) a Mulheres no front (Coutinho, 1996) cláudia mesquita  124


Dialéticas de resistência Quando a rua vira casa, Atrás da porta e Braço armado das empreiteiras vinícius andrade de oliveira

131

A luta ainda não acabou Narita: The Peasants of the Second Fortress shinsuke ogawa

134

A câmera da resistência A Narmada Diary

140

alex napier

Aos que partiram e aos que ficaram, o destino comum They do not exist e The Roof marcelo pedroso de jesus

147

A classe roceira: o cinema e a gênese do MST no Paraná rafael urban  150 O canto é a verdade dos lugares Nũhũ yãgmũ yõg hãm: Essa terra é nossa!

157

césar guimarães

Sequizágua

161

roger koza

“Como suas palavras são lindas!” - dedicado à memória do rezador Valdomiro Flores, indígena Ava do Coração da Terra Yvy Pyte - Coração da Terra (Guaiviry) paulo maya

164

Por quê?! Apiyemiyekî?

roberto romero

169

Pisada forte Ingrõny, Pisada forte ana carvalho

• fábio costa menezes • sophia pinheiro  173

Sonhar (n)as redes Topawa

andré brasil

176


Um djéli entre nós Entre nós, um segredo mafuane oliveira

• rafael galante  184

Para sempre, desde sempre - e agora? Aleluia, o canto infinito do Tincoã

187

bruno vasconcelos

À dança da dessemelhança Cavalo

juliano gomes

190

Fé e Fúria

vagner gonçalves da silva

194

Encontro e poesia – Sob a sombra da palmeira e Poemas do Camboja mariana souto  197 Aparições e desaparições em Pajeú tomyo costa ito  200 Entre nós e o mundo

andré novais oliveira

203

Um filme ao rés do chão Território Suape

victor guimarães

205

Imagem de luta na luta pela imagem Entre nós talvez estejam multidões bruna piantino

• priscila musa  207

Fúria: imagens do Brasil a contrapelo Cadê Edson?

210

joão paulo campos

O silêncio de um bamba Belos Carnavais

daniel ribeiro duarte

213

Cabeçabol e Cinema Myky Ãjãí, o jogo de cabeça bernard belisário

216

Corpos de mulheres guerreiras e suas falas-imagens em Nhemongueta Kunhã Mbaraete clarisse alvarenga  219


Nunca real, sempre verdadeiro Sem título # 6: o inquietanto eduardo de jesus

223

QuilomboCinema: ficções, fabulações, fissuras De um lado do Atlântico, Fartura, Nascente, Pattaki e República tatiana carvalho costa

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A moda periférica: beleza e diversidade no cinema de Emílio Domingos julia fagioli  232 Makota Valdina: o filme américa cesar • amaranta cesar  235 Makota Valdina e o mundo invisível • pedro aspahan  238

césar guimarães

O ritual Iraxao, espírito do povo Inỹ koria yrywaxã tapirapé  242 “Na lei do branco” A flecha e a farda paula berbert

244

Gyuri: Uma arqueologia de emoções subterrâneas 247

rogerio duarte do pateo

Arquivos em tempo real Conversa com Jean-Claude Bernardet e Rubens Rewald em torno de #eagoraoque fabio rodrigues filho

• glaura cardoso vale  250

Marcar memórias: demarcar telas: recuperar terras: salvaguardar vidas O índio cor de rosa contra a fera invisível: a peleja de Noel Nutels e Yaõkwa - Imagem e memória renata otto

• ruben caixeta de queiroz  263

280 282 284

arte forumdoc.bh.2020

fotomontagens, por Ge Viana

listas de filmes e diretoras/es [list of films and directors] Créditos [Credits]



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O corpo é território e o território também é corpo*

“O território é cheio de ciência, o limite de uma terra está em nossa consciência”

“O território é nosso galho, é nosso galho, mas também é semente, que nos conecta com nossa matriz mais profunda: da relação com o sagrado. O território é nossa morada coletiva, mas é também nossa morada interior. O território é útero, porque o corpo é território e o território também é corpo. A nossa relação com o sagrado se faz também nas nossas pinturas corporais. Não exatamente na metade, mas porque o território não é a metade do nosso corpo. O território é a totalidade: é o ser-bicho, é o ser-semente, é o ser-gente, e não deixar ser somente. O território para nós é como se pensar toda totalidade do conjunto do pertencimento daquilo que nos pertence. O território é sagrado. Por isso que nós dizemos que quem tem território tem lugar para onde voltar. Quem tem território tem mãe, tem casa, e tem cura”. célia xakriabá

* Fala de abertura da exposição Mundos Indígenas (Espaço do Conhecimento UFMG, 2019-2020).



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forumdoc.bh.2020, de novo e de novo, existir

O Festival do Filme Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte apresenta sua 24ª edição anual em modo integralmente online, inaugurando, para nós, novas formas de partilha possíveis. Se o momento nos faz deixar, ainda que (esperamos) momentaneamente, a experiência irreproduzível da sala de cinema – procedimento sensível singular que nos suspende o mundo ordinário para a ele nos trazer de volta, algo transformados –, a ampliação da difusão da programação pela(s) nuvem(ns) nos leva a transfluências insuspeitas, a novos encontros, espaços, pessoas e lugares, onde esperamos, uma comunidade ainda que breve, mediada pelos filmes e pensamentos que mobilizam, possa se formar e, de novo e de novo, existir. Dando continuidade à programação de mostras temáticas ou retrospectivas resultantes de curadorias que se articulam em torno de conceitos ou movimentos específicos, este ano apresentamos “Esta terra é a nossa terra”, mostra/seminário que organiza um conjunto de filmes clássicos e contemporâneos realizados em torno ao tema das diversas lutas pela terra – pelo direito à terra, pela terra que nos é ancestral, direito ao corpo enquanto primeira terra que habitamos e sobre a impossibilidade de justiça social sem que todxs tenham um chão e teto para viver. 23 filmes organizados em 10 sessões compõem essa curadoria. Lideranças e realizadorxs foram convidadxs a compartilhar suas motivações e trajetórias em quatro mesas de debates que acontecem entre 23 e 26 de novembro nos canais online do festival. A terra que somos é o que nos faz existir. Para a Mostra Contemporânea Brasileira, a comissão selecionou, a partir de centenas de filmes inscritos, 36 produções documentais e poéticas recentes e que refletem questões urgentes do nosso tempo a partir de invenções formais, trazendo obras que ampliam as possibilidades do cinema em sua relação com o mundo. Sete encontros com diretoras e diretores da Mostra foram programados para acontecer “ao vivo” durante a programação do festival. Já as Sessões Especiais, com filmes destacados pela curadoria, trazem cineastas, linguagens e temáticas com as quais o forumdoc.bh estabelece relações especiais há vários anos, como o protagonismo e as questões indígenas ou filmes de caráter etnográfico e político marcado. Uma série de entrevistas com os diretores e diretoras das Especiais, assim como da mostra/seminário Esta terra é a nossa terra, estarão disponíveis online ao longo do festival.


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O forumdoc.bh se afirma também como espaço de formação. Este ano teremos a masterclass O Filme Ensaio e as Margens Entre as Imagens, com Joana Pimenta, realizadora e professora no Sensory Ethnography Lab at Harvard University, diretora de fotografia de Era uma Vez Brasília (2017) e co-diretora com Adirley Queirós de Mato Seco em Chamas (em finalização). Queremos lembrar ainda que todas as edições anteriores do forumdoc.bh aconteceram em nosso amado Cine Humberto Mauro que, neste ano insólito, continua apoiando o projeto. Esperamos voltar em breve à sala, sem no entanto abandonar as possibilidades de ampliação conquistadas pela partilha que se inaugura com esta plataforma de projeção de filmes, criada em contexto tão grave e desafiador. filmes de quintal


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forumdoc.bh.2020, to exist again and again

The Belo Horizonte Documentary and Ethnographic Film Festival presents its 24th annual edition in an entirely online format, inaugurating, to all of us, new possible ways of sharing. While the current situation forces us to leave, however momentarily (we hope), the irreproducible experience of the film theatre – a singular sensitive procedure that suspends the ordinary world only to bring us back to it somewhat changed –; the enlarged online broadcasting of the festival’s program takes us to unsuspected transfluencies. It also takes us to new encounters, spaces, people and places, where we hope, a community may be formed, even if temporarily, mediated by the films and thoughts that mobilize it to exist again and again. This year, continuing the program of thematic or retrospective showcases articulated around specific concepts or movements, we present “This Land is Our Land”. This showcase/seminar assembles a group of classic and contemporary films about the various struggles for land – for the right to own land, for our ancestral land, for the right to our bodies (the first land that we inhabit) – and about the impossibility of achieving social justice without everyone having a floor and a roof to live. 23 films organized in 10 sessions comprise this curatorship. Social activists and directors were invited to share their motivations and trajectories in four roundtables, which will take place on November 23rd through the 26th on the festival’s online channels. The land that we are is what gives us existence. For the Brazilian Contemporary Showcase, the selection committee picked, from an array of hundreds of films submitted, 36 recent documentary and poetic productions which reflect urgent issues of our time, based on formal inventions. Therefore, the committee presents works that expand the possibilities of cinema in its relationship with the world. Seven online meetings with filmmakers featured on the Showcase were scheduled to take place “live” during the festival’s program. The Special Screenings, consisting of films highlighted by the curators, bring filmmakers, languages and themes with which forumdoc.bh has established special relationships for several years, such as indigenous’ issues and protagonism, or films of ethnographic and political character. A series of interviews with the directors featured on the Special Screenings, as well as the showcase/seminar “This Land is Our Land”, will be available online throughout the festival.


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Forumdoc.bh also asserts itself as a formative space. This year we will have the masterclass The Essay Film and the Margins Between Images, featuring Joana Pimenta, director and professor at the Sensory Ethnography Lab at Harvard University, cinematographer for Era uma Vez BrasĂ­lia (2017) and co-director, with Adirley QueirĂłs, of Mato Seco em Chamas (currently in post-production). We would also like to recall that all previous editions of forumdoc.bh took place in our beloved Cine Humberto Mauro, which, during this unusual year, continues to support the project. We hope to return to the film theatre soon without, however, abandoning the possibilities of expansion achieved through the online sharing inaugurated by this film screening platform and conceived in such a somber and challenging context. filmes de quintal


sessĂŁo de abertura opening films



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Tentehar - Arquitetura do sensível [Tentehar - Sensitive architecture] Distrito Federal/Rio de Janeiro, 2020, cor, 90’ direção [director] Paloma Rocha e Luís Abramo fotografia [cinematography] Luís Abramo montagem [editing] Alexandre Gwaz produção [production] Paloma Rocha contato [contact] rochapaloma53@gmail.com

Tentehar significa o homem verdadeiro. Durante o processo da eleição presidencial no Brasil, o filme investiga as seguintes questões: vivemos uma crise civilizatória. E do ponto de vista político o que restará de nós com os direitos humanos reduzidos pela miséria e o abandono? Diante dos desastres ambientais e genocídios: quem são os civilizados? Quem são os selvagens? Desde a Terra Indígena Araribóia, com os Guardiões da Floresta, que tiveram um de seus líderes assassinados por madeireiros em dezembro de 2019, o filme percorre diferente lugares em busca do que move o homem a lutar pelos direitos de existir dignamente. Tentehar means the real man. During the presidential elections in Brazil, the movie investigates the following questions: we are experiencing a civilizing crisis. From a political point of view, what will remain of us with human rights reduced by misery and neglect? Faced with environmental disasters and genocides: who are the civilized? Who are the savages? From Arariboia Indigenous Lands, the Guardians of The Forest, who had one of their leaders murdered by loggers in December 2019, the movie goes through different places searching for what moves men to fight for the rights to have a dignified existence.


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O que Há em Ti [Brazil is thee Haiti is (t)here] São Paulo, 2020, cor e p&b, 16’31’’ direção [director] Carlos Adriano fotografia [cinematography] montagem [editing] som [sound] Carlos Adriano produção [production] Carlos Adriano/ Babushka contato [contact] adriano.carlos.ca@gmail.com

Em 16 de março de 2020, em Brasília, um haitiano desconhecido desafiou o chefe da nação: “Bolsonaro, acabou. Você não é presidente mais.” Convocando manifestações artísticas sobre a revolução haitiana, este cinepoema contrapõe tal situação a duas operações militares da Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti), comandada pelo Brasil, em 6 de julho de 2005 e 22 de dezembro de 2006, em Cité Soleil. On March 16, 2020, in Brasília, an unknown Haitian challenged the head of the nation: “Bolsonaro, it’s over. You’re not a president anymore.” Summoning artistic manifestations about the Haitian revolution, this poetic movie contrasts this situation with two military operations of Minustah (United Nations Stabilization Mission in Haiti), commanded by Brazil, on July 6, 2005, and December 22, 2006, in Cité Soleil.


mostra/ seminĂĄrio esta terra ĂŠ a nossa terra this land is our land showcase/seminar



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Para que seus sonhos imaginem outros mundos reflexões a partir de uma curadoria carla italiano ewerton belico milene migliano

Para a nossa terra, e é a única que é próxima à palavra de Deus, um teto de nuvens. Para a nossa terra, e é a única distante de quaisquer adjetivos, o mapa da ausência. Para a nossa terra, e é a única minúscula como uma semente de gergelim, um horizonte celestial...um abismo secreto. Para a nossa terra, e é a única tão pobre como as asas de uma perdiz, livros sagrados...e uma identidade ferida. Para a nossa terra, e é a única circundada por colinas fraturadas, a armadilha de um novo passado. Para a nossa terra, um espólio de guerra a liberdade de morrer de uma saudade ardente e nossa terra, em sua noite ensanguentada, é uma jóia que brilha do distante acima do distante e ilumina o que está fora... enquanto nós, por dentro nos sufocamos ainda mais (Mahmoud Darwish, Para a nossa terra)

Esta terra é a nossa terra reúne alguns capítulos de uma história possível de um conjunto de relações: entre realizadoras/es e movimentos sociais dedicados às lutas fundiárias, urbanas e rurais. Enquanto tais, privilegia uma modalidade de relação – a articulação in loco com as mobilizações específicas, em pleno nascedouro, os momentos vivos e ainda prenhes de contradições de embates cujo resultado é indefinido.1 São, em sua 1. De certo modo, Esta terra é a nossa terra é a contrapartida historicizante de duas mostras realizadas em 2020: Cinema de Quilombos, coordenada por Cardes Amâncio junto ao Cinecipó; e da LONA - Mostra Cinema e Territórios, coordenada por Aiano Bemfica, Cris Araújo e Fábio Jota. A Lona mantém um acervo online, muito


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grande maioria, filmes de testemunho em ato: menos que elaborações a posteriori sobre o processo histórico de movimentos ou lutas, e sim esboços, ainda parciais, de compreensão e registro de conflitos em curso. Por testemunho em ato, entendemos uma modalidade complexa de articulação entre memória e a elaboração acerca da emergência de experiências coletivas percebidas como inacabadas, em uma “passagem constante, necessária e impossível entre o ‘real’ e o simbólico, entre o ‘passado’ e o ‘presente’, um ‘misto entre visão, oralidade narrativa e capacidade de julgar’”.2 Dessa forma, nos filmes que compõem a mostra há ainda o privilégio de uma tradição estético-política específica: as diversas heranças do cinema direto e da centralidade do testemunho, da voz e da interpretação dos acontecimentos por meio dos protagonistas das diversas agências coletivas em cena.3 Enquanto narrativa historiográfica, Esta terra é a nossa terra se aproxima da rapsódia ao articular “narrativas distintas que podemos comparar a breves melodias consideravelmente mal articuladas umas com as outras que fazem, no entanto, parte de um grande movimento em conjunto e têm uma estrutura bastante fechada a despeito das aparências”.4 Há diversas modalidades de luta popular em cena: desde a resistência camponesa e estudantil à construção do Aeroporto de Narita, em Sanrizuka, no Japão,5 até a luta quilombola urbana nos dias de hoje, nos Luízes, em Belo Horizonte;6 da organização de moradores na crise dos aluguéis na Londres dos anos 19607 às iniciativas de autoconstrução, mutirões e organização popular de bairros nas periferias brasileiras,8 dentre várias outras. Mobilizações profundamente dissonantes entre si, em uma concertação possível: frutos da emergência de um novo conjunto de forças socialistas, em uma espécie de Internacional efêmera e espontaneísta, refeita e desfeita ao sabor de pactos transitórios, da circulação de insurgentes e dissidentes de regimes não-alinhados, por entre guerras coloniais e sublevações, vitoriosas ou fracassadas, contra ditaduras militares; um cosmopolitismo revolucionário no qual a circulação de ideias foi movida ao sabor dos exílios e dos deslocamentos em apoio às novas forças anticapitalistas, e importante, de produções realizadas em ocupações contemporâneas, disponível em: <http://www.mostra-lona. com.br/acervo.html>. 2. Ver SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local do testemunho. Revista Tempo e Argumento, v.2, n.1, 2010, pp. 3-20. 3. Sobre as múltiplas heranças do cinema direto, ver KRAMER, Robert e WISEMAN, Frederick. A discussion. Documentary Box - Yamagata International Documentary Film Festival, 1997. Disponível em <http://www.yidff. jp/docbox/12/box12-1-e.html>. 4. Niklaus, Robert. Diderot et le conte philosophique. In: Cahiers de l’Association internationale des études francaises,, n.13, 1961, p. 302. 5. Sobre o assunto, ver DEBUYSERE, Stoffel e GROETERS, Elias (org.). Of Sea and Soil - The cinema of Tsuchimoto Noriaki and Ogawa Shinsuke. Ghent: Courtisane/Sabzian, 2019. Disponível em: https://issuu.com/ courtisanefestival/docs/tsuchimoto_ogawa-issuu. 6. Ver PEREIRA, Miriam Aprigio. Luízes, um quilombo em contexto urbano - história, memória, travessia e re-existência dos pretos das piteiras. Brasília: UNB, 2018. Disponível em: <https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/35825/1/2019_MiriamApr%c3%adgioPereira.pdf>. 7. Ver DAVIS, John. Rents and Race in 1960s London: New Light on Rachmanism. In: Twentieth Century British History, v. 12, n. 1, 2001, p. 69–90. 8. Ver SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena - experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-80). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.


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no qual a fossa e a autocrítica diante da derrota fertilizavam o florescimento de novas alternativas de mudança social.9 Em suas contradições, a borrasca revolucionária do pós-guerra deitará raízes para algo profundamente distinto de si mesma, através da crítica aos compromissos oligárquicos e coloniais de partidos comunistas e socialistas; aos pactos autoritários com vistas à execução de projetos modernizadores e, em suas derrotas, à suposição de relações verticais e substitucionistas entre vanguarda e massas, à interpretação do leninismo como defesa da insurgência revolucionária enquanto expansão de um núcleo de quadros bem definido ideológica e programaticamente.10 Esta terra é a nossa terra registra uma miríade de movimentos de teor mobilista e basista, desvinculados da estrutura político-partidária de antanho, e documenta-se, juntamente a um conjunto bem definido de reivindicações – a moradia digna, a possibilidade de viver e morrer na terra que pertence a seus ancestrais, o direito de pisar sobre uma terra que não tem donos, o enfrentamento contra as remoções forçadas e os grandes empreendimentos – a emergência e as continuidades de uma nova forma de práxis política e de sociabilidade popular, assentada na pluralidade de vozes e em uma estrutura de poder que surge das bases da própria trajetória proletária. No caso brasileiro, é evidente que a emergência das novas formas de organização popular não se dissocia da história do Partido dos Trabalhadores11 – o que não significa que o conjunto dos novos movimentos sociais que emergem a partir do final dos anos 70 estivessem abrigados no PT, mas que a própria lógica organizacional dos mesmos é que dá origem ao reposicionamento da tradição socialista empreendido pelo partido.12 São exemplares as experiências coletivas de ocupação e autoconstrução que, a partir a precariedade e da limitação de meios, vão dar origem a um amplo espectro de 9. Como mencionado acima, Esta terra é a nossa terra tem a peculiaridade de reunir realizadores/as que partilham o engajamento e a destinação de suas personagens. Podemos citar, em uma enumeração apenas parcial: Ogawa manteve vínculos com diversos dos movimentos de esquerda revolucionária que emergiram nas universidades japonesas nos anos 60; Amiralay vivencia o exílio e depois a ruptura com o baathismo sírio, resultante de seu Everyday Life in a Syrian Village; Pathwardhan também viverá o exílio depois de seu documentário acerca da sublevação de Bihar; Tapajós, integrante da Ala Vermelha, viverá a prisão e tortura pelas mãos da ditadura militar; e a trajetória política e cinematográfica de Eduardo Coutinho é atravessada pela interrupção e retomada de Cabra Marcado para Morrer. 10. Sobre o assunto, ver GUIMARÃES, Juarez. Claro Enigma - O PT e a tradição socialista. Campinas: UNICAMP, 1990, p. 8, e ainda LENIN, Vladimir Ilitch Ulianov. Que fazer? São Paulo: Boitempo Editorial, 2016. 11. Um “movimento que se transforma em partido”, na expressão de Rachel Meneguello. MENEGUELLO, Rachel. PT - a formação de um partido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989; 12. Citamos Sader: “Uma comparação com os padrões existentes no período 1945-1964 certamente ajudaria bastante na compreensão do problema. Também nesse período a heterogeneidade social provocava a emergência de diversas formas de manifestação social (...). No entanto, a diversidade tendia a inscrever-se em registros unificadores, que ordenavam os diferentes movimentos atribuindo-lhes lugares diferentes.(...) Na década de 70 a diversidade se reproduzia enquanto tal apesar da presença de referências comuns cruzando os vários movimentos.” É evidente que as próprias contradições impostas pela competição eleitoral e, posteriormente, com a crise do pacto de classes lulista, passam a fomentar paradoxalmente movimentos que, ao se oporem à administrações petistas se alimentam de uma tradição de organização de base e de expansão do arco de lutas que adentra na cena pública através do próprio partido. Sobre o assunto, ver SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena - experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-80). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001; e ainda SINGER, André. O Lulismo em crise - um quebra cabeça do período Dilma. São Paulo: Cia. das Letras, 2018.


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organizações coletivas que mudaram a face das cidades brasileiras – e cujos rastros estão dispersos por Esta Terra é a nossa Terra em um laborioso percurso de décadas, desde Fim de Semana, de Renato Tapajós, até Atrás da Porta, de Vladimir Seixas e Chapolim. Ou, ainda, a reorganização da mobilização campesina a partir da fundação do MST, com a invenção sócio-espacial do acampamento, onde “novas experiências são criadas, novas lutas nascem num processo contínuo”13 e no qual “outras aprendizagens que impõem a criação de uma vivência coletiva onde cada um(a) depende de todo(a)s e todo(a)s de cada um(a). Instaura-se um código de convivência com regras próprias e as decisões são tomadas em assembléias”.14 Há uma notável expansão do arco de mobilizações (com a emergência de lutas agroecológicas; a defesa das formas de auto-organização de vilas, bairros e favelas; a defesa de relações não-capitalistas com a terra e a natureza, o surgimento de novas formas de organização política de povos originários),15 que corre em paralelo ao “engajamento gradual em uma nova dimensão sonora, dona das imagens, que passa a ter o mesmo peso ontológico que estas últimas no cinema”.16 Ou seja, às tentativas – ainda que em rascunho – de fazer com que a forma da experiência dos agentes da mudança fosse moldada segundo as vozes desses novos protagonistas que adentram a cena fílmica: múltiplas vozes, desde os camponeses de Tabqa aos Maxakalis do Vale do Mucuri, em várias configurações possíveis de um protagonismo coletivo. Trata-se de uma programação de filmes atravessada pela questão de como materializar a aliança, os vínculos que simultaneamente unem e separam ativistas e equipes de filmagem. E talvez ainda, tocada pelos esforços de replicar, na própria dinâmica de produção, os modos de construção coletivos descobertos nas lutas populares – desde o desejo de construção fílmica em coletivo de Ogawa até os esforços de auto-representação da ASCURI, passando pelo experimento da divisão de cinema da Organização para a Libertação da Palestina, dentre outros – e que pudessem dar origem a outros modos de fazer cinema em que: a divisão de tarefas específicas não impede que todos participem de todas as decisões, o que difere profundamente da divisão de trabalho capitalista, alienada, ou do processo hierarquizado de tomada de decisões, onde cada um faz a parte que lhe compete fazer e perde a visão do conjunto, de forma a permitir a dominação centralizadora. A autogestão se opõe a este tipo de dominação.17 13. Ver GONÇALVES, Renata. Acampamentos: novas relações de gênero (con)fundidas na luta pela terra. Lutas Sociais, n. 13/14. São Paulo: Neils, 2005a. p. 156. 14. Ver. GONÇALVES, Renata. op. cit, p. 157. O MST está presente em Esta terra é a nossa terra com os filmes A Classe Roceira, de Berenice Mendes, e Sequizágua, de Maurício Rezende. Mas esses filmes estão longe de esgotar a profícua relação que o movimento estabeleceu com o audiovisual brasileiro, desde sua pré-história, com Fazenda Sarandi, de Carlos Carmo e Ayrton Centeno, passando por trabalhos como Terra para Rose, de Tetê Moraes até o recente Chão, de Camila Freitas, dentre muitos outros. 15. Mesmo que ausentes da mostra, importa ressaltar o trabalho pioneiro empreendido por realizadores como Jorge Bodanzky, Geraldo Sarno, Evaldo Mocarzel, Jeanette Paillan, Zacharias Kunuk, Divino Tserewahú, Vincent Carelli, dentre várias/os outras/os. 16. MAIA, Paulo. Salve o direto. In: forumdoc.bh - 2010. Belo Horizonte: Associação Filmes de Quintal, 2010, p. 18. 17. MARICATO. Erminia. Loteamentos Clandestinos. Revista Módulo, Rio de Janeiro: Ed Avenir, v. 60, 1980, p. 91.


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Os 23 filmes que compõem a mostra desenham essas linhas de força ao longo de dez sessões. A começar com o programa Ocupar, Resistir (1): esse lema dos movimentos sociais em prol de moradia atravessa estas obras às voltas com diferentes projetos nocivos de “revitalização” de cidade: Quando a rua vira casa (1981), de Tetê Moraes, tece uma análise sociológica da apropriação de espaços urbanos de uso coletivo em um bairro carioca; trinta anos depois, Atrás da porta (2010) vai partilhar da experiência de abrir prédios sem uso e dos despejos forçados pelo poder público; enquanto Braço armado das empreiteiras e Audiência Pública (?) (2014) revelam a combativa produção do Movimento Ocupe Estelita contra o projeto do Novo Recife. Outro grupo de filmes se dedica a modos de resistência por meio de Imaginar comunidades (2); está no conhecimento ancestral de Pirakuá - Os Guardiões do Rio Ápa (2014), no político enraizamento das matriarcas de Eles sempre falam por nós (2017), e em Loteamento Clandestino (1978) com seu vislumbre de alianças em prol da constituição de comunidade – entendendo-se instrumento pedagógico, o curta usou como atores e atrizes as próprias lideranças locais e companheiros da luta contra a ditadura. Já Rua São Bento, 405 (1976), em uma defesa Pelo direito de existir (3), constrói um retrato humanista do Edifício Martinelli (primeiro arranha-céu brasileiro), explicitando a falência de certo ideal desenvolvimentista de nação com consequências concretas na vida das pessoas. Tal reivindicação ecoa fortemente nos dois filmes palestinos da mostra, They do not exist (1974) e The Roof (2006), que encontram na construção coletiva (e familiar) de memória de um território originário usurpado a afirmação incontornável de existência. A sessão O povo em movimento (4) reúne trabalhos que buscam na própria forma fílmica intervir no curso de Histórias de injustiça: Amuhuelai-mi - Ya no te iras (1971), de Marilú Mallet, explicita a desigualdade de direitos do povo Mapuche no Chile e o indiano A Narmada Diary (1995) se lança a documentar, no decorrer de cinco anos, as incessantes batalhas populares contra a construção das barragens no rio Narmada. Batalhas essas travadas contra o potencial genocida dos mega-empreendimentos afeitos à era do Antropoceno, e que reaparecem – semelhantes, mas sempre renovadas – em paisagens alhures, como na defesa dos camponeses de Sanrizuka em Narita: The Peasants of the Second Fortress (1971). E a luta continua (5) – afirma a singular equipe da Ogawa Productions em sua monumental empreitada de ativismo político-artístico por anos emaranhada na vida de seus participantes. O cotidiano contra a catástrofe (6) abrange o curta da ASCURI Vida e Luta na Retomada Tei’ykue (2018), produzido no território Kaiowá em meio à terra devastada pelas forças do agronegócio no centro-oeste do país, e Everyday life in a Syrian Village (1974), do sírio Omar Amiralay, com seu olhar insistente aos gestos que se repetem há gerações resistindo à construção de mais uma hidrelétrica. A ação se faz urgente Atrás das barricadas (7): em Kanehsatake - 270 Years of Resistance (1993) da realizadora abenaki Alanis Obomsawin, que registra, no aqui e agora do encontro filmado, um embate entre mundos tendo como mote a terra indígena Mohawk. Já Lutar, morar, construir (8) reúne três médias-metragens sobre organizações comunitárias a forjar e dar a conhecer laços de morada: Fim de Semana (Renato Tapajós, 1976) e Mulheres no front (Eduardo Coutinho, 1996), no cenário brasileiro, e o britânico Not a penny on


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the rents (1969), costurado coletivamente pelo Cinema Action com sua pioneira reivindicação de greve frente ao aumento do valor dos aluguéis. Os dois últimos programas se dedicam à terra em seu potencial de vida. Cantar o solo (9) diz da necessidade de contar/cantar a própria história, visível no média A classe roceira (1985) a testemunhar os primórdios do MST num acampamento rural paranaense em prol da reforma agrária, e no longa maxakali Nũhũ yãgmũ yõg hãm: Essa terra é nossa! (2020), que tem a sua estreia neste forumdoc.bh, em sua sensível caminhada junto aos espíritos yãmĩyxop. Por fim, Do chão brota a vida (10) no saber de cura dos seres sagrados no Tekoha Guaiviry em Pohã Re’yi - Família dos remédios (2020), e na espera resiliente pela chuva no assentamento agroextrativista de Sequizágua (2020), com o emprego de procedimentos mais assumidamente ficcionais. A mostra acompanha ainda um seminário homônimo com lideranças indígenas, quilombolas, de movimentos sociais, pesquisadoras/es e realizadoras/es de diferentes áreas a aprofundar e ampliar os debates. E uma breve fortuna crítica se inicia nas publicações deste catálogo, com a tradução do artigo de Alex Napier sobre o filme de Anand Patwardhan, o manifesto de Shinsuke Ogawa, a republicação de “Loteamentos Clandestinos”, de Erminia Maricato, e cinco ensaios inéditos dedicados aos filmes da mostra escritos por César Guimarães, Cláudia Mesquita, Marcelo Pedroso, Rafael Urban e Vinícius Andrade. Se Esta Terra é a nossa terra é uma rapsódia, é ainda uma narrativa de viagem, acidentada, repleta de interrupções e reviravoltas, que percorre modos de ser, modos de acreditar e lutar pelo direito de existir em seu território, no chão que viu nascer, ou renascer, vidas, desejos, atitudes e ações de transformação da terra em nossa, em lar.


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For their dreams to imagine other worlds reflections based on a program carla italiano ewerton belico milene migliano

Translation: Victor Guimarães

To our land, and it is the one near the word of god, a ceiling of clouds To our land, and it is the one far from the adjectives of nouns, the map of absence To our land, and it is the one tiny as a sesame seed, a heavenly horizon ... and a hidden chasm To our land, and it is the one poor as a grouse’s wings, holy books ... and an identity wound To our land, and it is the one surrounded with torn hills, the ambush of a new past To our land, and it is a prize of war, the freedom to die from longing and burning and our land, in its bloodied night, is a jewel that glimmers for the far upon the far and illuminates what’s outside it ... As for us, inside, we suffocate more! (Mahmoud Darwish, To our land1)

This land is our land brings together some chapters of a possible history of a set of relations: between filmmakers and social movements struggling for land, both urban and rural. As such, it favors a modality of relation – the articulation in loco with specific mobilizations, still in their birth; those living moments, still pregnant with contradictions, dealing with clashes whose result is undefined. They are, for the most part, films of 1. N.T. From The Butterfly’s Burden. Copyright © 2008 by Mahmoud Darwish, English translation by Fady Joudah.


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testimony in action: not a posteriori elaborations on the historical process of movements or struggles, but rather sketches, still partial, of understanding and recording ongoing conflicts. By testimony in action, we mean a complex modality of articulation between memory and elaboration about the emergence of collective experiences perceived as unfinished, in a “constant, necessary and impossible passage between the ‘real’ and the ‘symbolic’, between the ‘past’ and the ‘present’, a ‘mix between vision, narrative orality and the capacity to judge’” 2. Thus, in the films gathered in this screening series, there is also the privilege of a specific aesthetic-political tradition: the diverse legacies of direct cinema, and the centrality of testimony, voice and interpretation of events through the protagonists of the various collective agencies portrayed here.3 As a historiographical narrative, This land is our land approaches rhapsody, by articulating “distinct narratives that we can compare to brief melodies that are considerably poorly articulated with each other, which are, however, part of a great movement and have a very closed structure, despite appearances”.4 There are several types of popular struggle on screen: from peasant and student resistance to the construction of Narita Airport, in Sanrizuka, Japan5, to the urban quilombola struggle in Luízes, Belo Horizonte;6 from the organization of residents in the London rental crisis of the 1960s7 to self-construction initiatives, joint efforts and popular organization of neighborhoods in Brazilian peripheries,8 among many others. Profoundly dissonant mobilizations, in a possible concertation: fruits of the emergence of a new set of socialist forces, in a kind of ephemeral and spontaneistic International, remade and undone through transitory pacts, circulation of insurgents and dissidents of non-aligned regimes, between colonial wars and uprisings, victorious or failed, against military dictatorships; a revolutionary cosmopolitanism in which the circulation of ideas was driven by exiles and displacements in support of new anti-capitalist forces, and in which the pit and self-criticism in the face of defeat fertilized the flourishing of new alternatives for social change.9 In its contra2. See SELIGMANN-SILVA, Márcio. O local do testemunho. Revista Tempo e Argumento, v.2, n.1, 2010, pp. 3-20. 3. About the multiple legacies of direct cinema, see KRAMER, Robert and WISEMAN, Frederick. A discussion. Documentary Box - Yamagata International Documentary Film Festival, 1997. Available in: <http://www.yidff.jp/ docbox/12/box12-1-e.html>. 4. Niklaus, Robert. Diderot et le conte philosophique. In: Cahiers de l’Association internationale des études francaises,, n.13, 1961, p. 302. 5. See DEBUYSERE, Stoffel e GROETERS, Elias (org.). Of Sea and Soil - The cinema of Tsuchimoto Noriaki and Ogawa Shinsuke. Ghent: Courtisane/Sabzian, 2019. Available in: https://issuu.com/courtisanefestival/docs/ tsuchimoto_ogawa-issuu. 6. See PEREIRA, Miriam Aprigio. Luízes, um quilombo em contexto urbano - história, memória, travessia e re-existência dos pretos das piteiras. Brasília: UNB, 2018. Available in: <https://repositorio.unb.br/ bitstream/10482/35825/1/2019_MiriamApr%c3%adgioPereira.pdf>. 7. See DAVIS, John. Rents and Race in 1960s London: New Light on Rachmanism. In: Twentieth Century British History, v. 12, n. 1, 2001, p. 69–90. 8. See SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena - experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-80). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001. 9. As mentioned above, This land is our land has the peculiarity of bringing together filmmakers who share the engagement and destination of their characters. We can quote, in a partial enumeration: Ogawa maintained links with several of the revolutionary left movements that emerged in Japanese universities in the 1960s; Amiralay


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dictions, the post-war revolutionary storm established roots for something profoundly different from itself, through criticism of the oligarchic and colonial commitments of communist and socialist parties, and to the authoritarian pacts aimed at executing modernizing projects; in its defeats, the same storm criticized the assumption of vertical and substitutionist relations between the vanguard and the masses, the interpretation of Leninism as a defense of the revolutionary insurgency as an expansion of a well-defined core of ideologically and programmatically defined members10. This land is our land registers a myriad of movements with a mobilizing and grassroots nature, disconnected from the old political-party structure, and it documents, together with a well-defined set of demands – decent housing, the possibility of living and dying in the land that belonged to one’s ancestors, the right to set foot on land that has no owners, the confrontation against forced evictions and large enterprises – the emergence and continuity of a new form of political praxis and popular sociability, based on the plurality of voices and in a power structure that emerges from the grassroots of the proletarian trajectory itself. In the Brazilian case, it is evident that the emergence of new forms of popular organization is not dissociated from the history of the Workers’ Party (PT)11 – which does not mean that the set of new social movements that emerged since the end of the 1970s were housed in the PT, but that their own organizational logic gives rise to the repositioning of the socialist tradition undertaken by the party.12 Exemplary are the collective experiences of land occupation and self-construction that, departing from precariousness and limited resources, will give rise to a wide spectrum of collective organizations that have changed the face of Brazilian cities – and whose tracks are dispersed throughout This land is our land in a laborious journey of decades, from Weekend, by Renato Tapajós, to Behind the door, by Vladimir Seixas and Chapolim. Or, still, the reorganization of the peasant mobilization since the founding of the Landless Workers’ Movement (MST), with the socio-spatial invention of the practices of camping, where “new experiences are created, new struggles are born in a continuous process” experiences exile and then the break with Syrian Baathism, resulting from his Everyday Life in a Syrian Village; Pathwardhan will also experience exile after his documentary about the Bihar uprising; Tapajós, a member of the Red Wing, will experience prison and torture at the hands of the military dictatorship; and Eduardo Coutinho’s political and cinematographic trajectory is crossed by the interruption and resumption of Twenty Years Later. 10. See GUIMARÃES, Juarez. Claro Enigma - O PT e a tradição socialista. Campinas: UNICAMP, 1990, p. 8, and also LENIN, Vladimir Ilitch Ulianov. Que fazer? São Paulo: Boitempo Editorial, 2016. 11. A “movement that becomes a party”, according to Rachel Meneguello. MENEGUELLO, Rachel. PT - a formação de um partido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. 12. We quote Sader: “A comparison with the standards existing in the period 1945-1964 would certainly help a lot in understanding the problem. Also in this period, social heterogeneity caused the emergence of several forms of social manifestation (...). However, diversity tended to be inscribed in unifying registers, which ordered different movements by assigning them different places. (...) In the 70s, diversity reproduced as such despite the presence of common references crossing the various movements (…)”. It is evident that the contradictions imposed by the electoral competition and, subsequently, with the crisis of the Lulista class pact, the context paradoxically encourage movements that, when opposed to PT administrations, feed on a tradition of grassroots organization and expansion of the range of struggles that enter the public scene through the party itself. See SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena - experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-80). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001. See also SINGER, André. O Lulismo em crise - um quebra-cabeça do período Dilma. São Paulo: Cia. das Letras, 2018.


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and in which “other learnings impose the creation of a collective experience where each one depends on everyone and everyone on each one. A code of coexistence with its own rules is established and decisions are taken in assemblies”14. There is a notable expansion of the mobilization range (with the emergence of agroecological struggles; the defense of self-organization in villages, neighborhoods and slums; the defense of non-capitalist relations with land and nature, the emergence of new forms of political organization of native peoples),15 which runs in parallel with the “gradual engagement in a new sound dimension, now the owner of images, having the same ontological weight as the latter in cinema”16, that is, the attempts – even as drafts – to shape the experience of agents of change according to the voices of these new protagonists who enter the film scene: multiple voices, from the peasants of Tabqa to the Maxakali people of the Mucuri Valley, in various possible configurations of a collective protagonism. It is a film program crossed by the question of how to materialize the alliance, the bonds, which simultaneously unite and separate activists and film crews. And perhaps touched by the efforts to replicate, in the production dynamics itself, the collective modes of construction discovered in popular struggles – from the desire for collective film construction in Ogawa to the self-representation efforts of ASCURI, through the experiment of the cinema division of the Palestine Liberation Organization, among others – and that could give rise to other ways of filmmaking, in which 13

the division of specific tasks does not prevent everyone from participating in all decisions, which differs profoundly from the capitalist, alienated division of labor, or from the hierarchical decision-making process, where each one does his or her part and loses vision of the whole, in order to allow centralized domination. Self-management is opposed to this type of domination.17

The 23 films that make up the screening series draw these lines of strength over ten screenings. Starting with the program Occupy, Resist (1): this motto of social movements in favor of housing runs through the works dealing with different harmful projects of “revitalizing” the city: When the street becomes home (1981), by Tetê Moraes, weaves a sociological analysis of the appropriation of urban spaces for collective use in a neighborhood in Rio; thirty years later, Behind the door (2010) shares the experience of 13. See GONÇALVES, Renata. Acampamentos: novas relações de gênero (con)fundidas na luta pela terra. Lutas Sociais, n. 13/14. São Paulo: Neils, 2005a. P. 156. 14. See GONÇALVES, Renata. op. cit, p. 157. The MST is present in This land is our land with the films A Classe Roceira, by Berenice Mendes, and Sequizágua, by Maurício Rezende. But these films are far from exhausting the fruitful relationship that the movement established with Brazilian audiovisual practices, from its prehistory, with Fazenda Sarandi, by Carlos Carmo and Ayrton Centeno, going through works like Terra para Rose, by Tetê Moraes until the recent Chão, by Camila Freitas, among many others. 15. Even though they are absent from this series, it is important to highlight the pioneering work undertaken by directors such as Jorge Bodanzky, Geraldo Sarno, Evaldo Mocarzel, Jeanette Paillan, Zacharias Kunuk, Divino Tserewahú, Vincent Carelli, among several others. 16. MAIA, Paulo. Salve o direto. In: forumdoc.bh - 2010. Belo Horizonte: Associação Filmes de Quintal, 2010, p. 18. 17. MARICATO. Erminia. Loteamentos Clandestinos. Revista Módulo, Rio de Janeiro: Ed Avenir, v. 60, 1980, p. 91.


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opening unused buildings and confronting forced evictions by the government; while Contracto’s armed wing (2014) and Public Audience (?) reveal the combative production of the Ocuppy Estelita Movement against the New Recife project. Another group of films is dedicated to ways of resistance through Imagining communities (2); they are present in the ancestral knowledge of Pirakuá – The River Ápa’s Guardians (2014), in the political rooting of the quilombola matriarchs of They always speak for us (2017), and in Illegal settlement (1978) with its glimpse of alliances in favor of the constitution of community – understanding itself as a pedagogical instrument, the short film used local leaders and comrades in the struggle against the dictatorship as actors. São Bento street, 405 (1976), in a defense For the right to exist (3), builds a humanist portrait of the Martinelli Building (the first Brazilian skyscraper), making explicit the bankruptcy of a certain developmental ideal of the nation with concrete consequences in people’s lives. Such a claim echoes strongly in the two Palestinian films in the series, They do not exist (1974) and The Roof (2006), which find in the collective (and familiar) construction of the memory of an usurped original territory an unavoidable assertion of existence. The screening The people in motion (4) brings together works that seek in their own film form to intervene in the course of histories of injustice: Amuhuelai-mi Ya no te irás (1971), by Marilú Mallet, makes explicit the unequal rights of the Mapuche people in Chile, while the Indian film A Narmada Diary (1995) sets out to document, over the course of five years, the incessant popular battles against the construction of the dams on the Narmada River. Those battles were fought against the genocidal potential of mega-enterprises that are part of the Anthropocene era, and that reappear – similar, but always renewed – in landscapes elsewhere, as in the defense of the Sanrizuka peasants in Narita: The Peasants of the Second Fortress (1971). And the struggle continues (5) affirms the unique crew of Ogawa Productions in its monumental undertaking of political-artistic activism for years entangled in the lives of its participants. Daily life against catastrophe (6) brings together the short film by ASCURI Life and Struggle in Tei’ykue Resumption (2018), produced in the Kaiowá territory in the middle of the land devastated by agribusiness forces in the central-west of the country, and Everyday life in a Syrian Village (1974), by Syrian director Omar Amiralay, with his insistent gaze on gestures that have been repeated for generations, resisting the construction of yet another hydroelectric plant. Action is urgent Behind the barricades (7): in Kanehsatake – 270 Years of Resistance (1993) by Abenaki director Alanis Obomsawin, who records, in the here and now of the filmed encounter, a clash between worlds with the Mohawk indigenous land as a motto. Fighting, living, building (8) brings together three medium-length films about community organizations to forge and make known links of residence: Weekend (1976) and Woman at the front (Eduardo Coutinho, 1996), in the Brazilian scenario, and the British film Not a penny on the rents (1969), collectively sewn by Cinema Action with its pioneering strike demand in the face of rising rental prices. The last two programs are dedicated to the land in its life potential. Singing the soil (9) tells of the need to tell/sing history itself, visible in the medium-length film The Peasant Class (1985) witnessing the beginnings of the MST in a rural camp in Paraná in favor of agrarian reform, and in the maxakali feature Nũhũ yãgmũ yõg hãm: this land


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is ours! (2020), which has its debut in this forumdoc.bh, in its sensitive walk among the yãmĩyxop spirits. Finally, Life springs from the ground (10) in the healing knowledge of the sacred beings at the Tekoha Guaiviry in Pohã Re’yi – Family of healing (2020), and in the resilient wait for rain in the agroextractive settlement of Sequizágua (2020), with the use of more admittedly fictional procedures. The screening series also follows a homonymous seminar with indigenous leaders, quilombola leaders, activists from social movements, researchers and filmmakers from different areas to deepen and expand the debates. And a brief critical contribution begins in the publications of this catalog, with the translation of Alex Napier’s text about Anand Patwardhan’s film, Shinsuke Ogawa’s manifesto, the republication of the article “Loteamentos Clandestinos”, by Erminia Maricato, and five unpublished essays dedicated to the films in the series, written by César Guimarães, Cláudia Mesquita, Marcelo Pedroso, Rafael Urban and Vinícius Andrade. If this Earth is our land it is a rhapsody, it is still a travel narrative, bumpy, full of interruptions and twists, that goes through ways of being, ways of believing and fighting for the right to exist in your territory, on the ground you saw born , or to be reborn, lives, desires, attitudes and actions to transform the land into ours, into home. If This land is our land it is a rhapsody, it is still a travel narrative, bumpy, full of interruptions and twists, that goes through ways of being, ways of believing and fighting for the right to exist in one’s own territory, on the ground that watched the birth – or the rebirth – of lives, desires, attitudes and actions to transform the land into ours, into home.


35 Not a penny on the rents [Nem um centavo a mais] Reino Unido, 1969, p&b, 25’ direção [director] Cinema Action produção [production] Cinema Action contato [contact] contact@platformfilms.co.uk

Filme panfleto que documenta como os inquilinos do GCL (Greater London Council) organizaram pela primeira vez uma Associação de inquilinos e conduziram a primeira greve de aluguéis contra os aumentos do conselho. Inclui filmagens dos protestos, reuniões em que são apresentados relatórios sobre a proporção de inquilinos em várias áreas que retêm aluguéis em protesto; queima da imagem de Horace Cutler, líder conservador do GCL, e outros eventos. A campaign film that documents how GLC (Greater London Council) tenants first organised Tenants’ Associations and conducted the first rent strikes against council rent rises. It includes footage of tenants’ demonstrations; meetings at which report-backs are given on the proportion of tenants in various areas withholding rents in protest; burning of effigy of Horace Cutler, Tory leader of GLC, and other events.

Amuhuelai-mi - Ya no te Iras Chile, 1971, p&b, 11’ direção [director] Maria Luisa Mallet fotografia [cinematography] Maria Luisa Mallet montagem [editing] Carlos Piaggio produção [production] Instituto de Cinematografia Educativa, Chile Films contato [contact] marilumallet@videotron.ca

Um dos primeiros filmes de Marilú Mallet criado para a Secretaria de Cultura do Ministério da Educação no governo de Unidade Popular de Salvador Allende. O curta combina imagens documentais com cartelas que apresentam a disparidade na distribuição de terras, oportunidades econômicas e direitos civis entre o povo indígena Mapuche e os brancos/mestiços chilenos. Realizado com a colaboração de Carlos Piaggio, Gonzalo Salvo e Francisco Contreras. An early film by Marilú Mallet created for the Education Ministry’s Department of Culture under Salvador Allende’s Popular Unity government. The film combines documentary footage with intertitles that present the disparity in land distribution, economic opportunity, and civil rights between the indigenous Mapuche people and Chilean Whites/Mestizos. Made with the collaboration of Carlos Piaggio, Gonzalo Salvo and Francisco Contreras.


36 Narita: the peasants of the second fortress [Narita: os camponeses da segunda fortaleza] Japão, 1971, p&b, 143’ direção [director] Shinsuke Ogawa fotografia [cinematography] Tamura Masaki montagem [editing] Tatsuo Takahashi som [sound] Asanuma Yukikazu produção [production] Hiro Fuseya, Ogawa Productions contato [contact] infor@athenee.net

Parte da série de documentários sobre a luta de lavradores de Sanrizuka contra a construção do aeroporto de Narita. Realizado durante o terceiro ano de resistência dos camponeses, o filme retrata como os agricultores traçam uma estratégia contra a Airport Corporation e a tropa de choque. Enquanto estudantes batalham fora das barricadas, mulheres dentro da Segunda Fortaleza se acorrentam às árvores. Part of the series of documentaries about Sanrizuka farmers’ long struggle against the construction of the Narita Airport. Shot during the third year of the farmers’ struggles, the film depicts how the farmers lay down a strategy against the Airport Corporation and the riot police. As students battle police outside the barricades, women inside the Second Fortress chain themselves to trees.

They do not exist [Eles não existem] Palestina, 1974, p&b, 24’ direção [director] Mustafa Abu Ali fotografia [cinematography] Samir Nimer, Abdel Hafeth Al Asmar, Mustafa Abu Ali som [sound] Mustafa Abu Ali produção [production] Palestine Film/Palestinian Cinema Institute contato [contact] khabashneh@gmail.com

Filme composto por nove paisagens, ou cenas, precedidas por um título que aparece na tela: “Eles Não Existem”. Quem são os palestinos? Não conheço nenhum povo com este nome, Eles Não Existem. A questão aqui é que, se os palestinos não existem, então quem diabos eles estão bombardeando? Estão bombardeando fantasmas? Este filme é mais uma tentativa de busca por uma linguagem do cinema de revolução. This film is made from 9 landscapes, or scenes, which of is preceded by a title that appears on the screen “They Do Not Exist”. Who are the Palestinians? I don’t know any people in this name, They Do Not Exist. The point here is, that if the Palestinians do not exist, then who the hell they are bombarding?! are they bombarding ghosts?! This film is another try to look for a language of revolution cinema.


37 Everyday life in a Syrian Village [A vida em um vilarejo sírio] [Hayat al-Yawmiyyah fi Qarya Suriyyah] Síria, 1974, p&b, 82’ direção [director] Omar Amiralay fotografia [cinematography] Hazem Bayaa, Abdo Hamzeh montagem [editing] Qais Zubaydi, Adnan Salloum som [sound] Hassan Salem produção [production] National Film Organizarion in Syria contato [contact] iamiralai@googlemail.com

O longa mostra como os habitantes de um vilarejo às margens do rio Eufrates foram afetados pela construção de uma barragem. As entrevistas de Amiralay com agricultores, trabalhadores da saúde e um policial contrastam o ponto de vista dos camponeses com as atitudes dos representantes do governo. Concebido em parceria com o dramaturgo Saadallah Wannous, o filme permanece proibido na Síria. The film shows how the inhabitants of a village along the Euphrates were affected by the building of a dam. Amiralay’s interviews with farmers, health workers and a police officer contrast the peasants’ regard with the government representatives’ attitudes. Conceived in partnership with playwright Saadallah Wannous, the film remains banned in Syria.

Rua São Bento, 405 [São Bento street, 405] São Paulo, 1976, cor/p&b, 22’ direção [director] Ugo Giorgetti fotografia [cinematography] Rodolfo Sanchez montagem [editing] Tércio C. Mota som [sound] Marcelo Kujawski, José A. Motta produção [production] Espiral Cinema Educação e Audiovisual contato [contact] ugo@spfilmes.com.br

O filme conta a história do primeiro arranha-céu de São Paulo, o edifício Martinelli, e registra depoimentos de seus últimos moradores, que tiveram que se mudar após a interdição do prédio pela Prefeitura do Município de São Paulo. Mostra a variedade de tipos humanos e de estabelecimentos comerciais que existiam dentro do tradicional edifício. The film tells the story of the first skyscraper of São Paulo, Martinelli building, and documents testimonials of its last residents who had to move after the city municipality interdiction of the building. The film shows the variety of human types and commercial establishments that used to exist inside this traditional building.


38 Fim de semana [Weekend] São Paulo, 1976, cor, 31’ direção [director] Renato Tapajós fotografia [cinematography] Washington Racy montagem [editing] Olga Futemma, Maria Rosa Gaiarsa som [sound] Ubirajara Castro, Francisco Coca produção [production] Elsa Lopez Kathuni pesquisa [research] Erminia Maricato contato [contact] julio@laboratoriocisco.org

Documentário sobre a autoconstrução em bairros da periferia e municípios da Grande São Paulo. Colhe depoimentos de moradores de três áreas: bairro do Taboão em São Bernardo do Campo; Jardim d’Ávila em Osasco; e Jardim Castilho em Embu. Documenta as condições de vida nessas áreas e os sacrifícios em que se vêem empenhados os trabalhadores que desejam realizar o “sonho da casa própria”: construir, aos poucos, com a ajuda de amigos e parentes, aos fins de semana. Documentary about the self construction in peripheral neighborhoods of São Paulo. It gathers statements of residents of three areas: Taboão neighborhood in São Bernardo do Campo; Jardim d’Ávila in Osasco and Jardim Castilho in Embu. The film registers the life conditions in those areas and the workers’ sacrifice in order to fulfill their dream of owning a house: to build, step by step, with the help of friends and relatives, on the weekends.

Loteamento Clandestino [Clandestine subdivisions] São Paulo, 1978, cor, 22’ direção [director] Erminia Maricato fotografia [cinematography] Odon Cardoso montagem [editing] Rubens Carvalho som [sound] Ronaldo Boergen produção [production] Amílcar Boucinhas, Erminia Maricato contato [contact] erminia@usp.br

Curta sobre o problema dos loteamentos clandestinos e a luta dos moradores pela regularização da posse dos terrenos. Short film about the issue of clandestine subdivisions and the struggle of residents to regularize land ownership.


39 Quando a rua vira casa [When the street becomes home] Rio de Janeiro, 1981, cor, 21’ direção [director] Tetê Moraes fotografia [cinematography] Fernando Duarte, Flávio, Ferreira, Noilton Nunes montagem [editing] Dominique Paris som [sound] Cristiano Maciel, Henrique Santos, Paulo Fortes, Sílvio Da-Rin produção [production] Regina Martinho da Rocha, IBAM contato [contact] vemver@globo.com

No bairro carioca do Catumbi, o planejamento urbano e as transformações constantes afetam o cotidiano dos moradores. At Catumbi neighborhood in Rio de Janeiro, the urban planning and constant transformation affect the daily life of the inhabitants.

A Classe Roceira [The Peasant Class] Paraná, 1985, cor, 28’ direção [director] Berenice Mendes fotografia [cinematography] Flávio Ferreira montagem [editing] Homero de Carvalho som [sound] José Roberto Braga Portela produção [production] Lu Rufalco, Documenta Produções contato [contact] berenicekmendes@gmail.com

Nos acampamentos, à margem das rodovias, a opção pela permanência no campo. A árdua sobrevivência e os hábitos culturais. O chimarrão e as músicas sertanejas como fator de integração e resistência. A organização política: comissões, passeatas, assembléias e bloqueios. A posição dos latifúndios. O confronto: a luta pela reforma agrária. In the campsites, at the edge of highways, the option for staying at the fields. The tough survival and cultural habits. The typical chimarrão (mate tea) and country music, a factor of integration and resistance. The political organization: commissions, marches, assemblies and blockades. The position of the great farmers. The confrontation: the struggle for agrarian reform.


40 Kanehsatake: 270 Years of Resistance [Kanehsatake: 270 anos de Resistência] Canadá, 1993, cor, 119’ direção [director] Alanis Obomsawin fotografia [cinematography] coletiva montagem [editing] Yurij Luhovy produção [production] Wolf Koenig, Alanis Obomsawin, National Film Board contato [contact] festivals@nfb.ca

Em julho de 1990, uma disputa sobre o projeto de construção de um campo de golfe nas terras Mohawk de Kanien’keháka em Oka, Quebec, armou um cenário para um confronto histórico que seria noticiado internacionalmente e ficaria marcado no imaginário canadense. A diretora abenaki Alanis Obomsawin, por vezes acompanhada de uma pequena equipe, outras vezes sozinha, passou 78 dias ao lado dos Kanien’keháka filmando o confronto armado entre os manifestantes, a polícia de Quebec e o exército canadense. In July 1990, a dispute over a proposed golf course to be built on Kanien’kéhaka (Mohawk) lands in Oka, Quebec, set the stage for a historic confrontation that would grab international headlines and sear itself into the Canadian consciousness. Abenaki director Alanis Obomsawin - at times with a small crew, at times alone - spent 78 days behind Kanien’kéhaka lines filming the armed standoff between protestors, the Quebec police and the Canadian army.

A Narmada Diary [Diário de Narmada] Índia, 1995, cor, 57’ direção [director] Anand Patwardhan fotografia [cinematography] Simantini Dhuru, Anand Patwardhan montagem [editing] Anand Patwardhan som [sound] Simantini Dhuru, Anand Patwardhan produção [production] Simantini Dhuru, Anand Patwardhan contato [contact] anandpat@gmail.com

O filme retrata a luta do povo Adivasi nos anos 1990 cujas terras estavam sendo submergidas pela barragem de Sardar Sarover, eixo central do gigantesco projeto do governo indiano nas margens do rio Narmada. São documentados cinco anos de resistência não violenta pelo Narmada Bachao Andolan (Movimento Salve Narmada) contra esse desastroso esquema de “desenvolvimento”. Quando finalizada, a barragem deixaria submersos 37.000 hectares de terras férteis e deslocaria 200.000 pessoas nativas. The film portrays the struggle of the Adivasi people in the 1990s whose land was being submerged by the Sardar Sarover dam, which is the lynch-pin of the Indian government’s mammoth development project on the banks of the river Narmada. It documents five years of non-violent resistance by the Narmada Bachao Andolan (the Save Narmada Movement) to the disastrous “development” scheme. When completed, the dam will drown 37,000 hectares of fertile land and displace over 200.000 indigenous people.


41 Mulheres no Front [Women at the front] Pernambuco/Rio de Janeiro/Rio Grande do Sul, 1996, cor, 36’ direção [director] Eduardo Coutinho fotografia [cinematography] Antonio Luís Mendes montagem [editing] Thereza Jessouroun som [sound] Paulo Ricardo Nunes, Zezé D’Alice produção [production] Thereza Jessouroun, Cecip contato [contact] dinahfrotte@cecip.org.br

Três histórias da atuação feminina em movimentos sociais, próximos na luta, mas distantes no espaço geográfico: a Associação de Moradores de Jardim Uchôa, em Recife; a Associação de Moradores de Rancho Fundo, no Rio de Janeiro; e o grupo de Promotoras Legais Populares em Bom Jesus, Porto Alegre. Vídeo realizado para a Fnuap, Unicef e Unifem. Three stories of female leadership in social movements, close in terms of struggles but distant in geographic space: the Jardim Uchôa Residents’ Association, in the city of Recife; the Rancho Fundo Residents’ Association in Rio de Janeiro; and the group of Legal Promoters at Bom Jesus, Porto Alegre. A video made for Fnuap, Unicef and Unifem.

The Roof [O Telhado] [Alsateh] Palestina, 2006, cor, 63’ direção [director] Kamal Aljafari fotografia [cinematography] Diego Martinez Vignatti montagem [editing] Kamal Aljafari som [sound] Gilles Laurent, Antoine Brochu produção [production] Kamal Aljafari contato [contact] aljafarifilms@gmail.com

Documentário pessoal dirigido pelo palestino Kamal Aljafari que retorna à sua terra natal para testemunhar a vida atual de seus amigos próximos e família. Entre as cidades de Ramleh e Jaffa, o filme paira por memórias cinematográficas e reais, movendo-se pelos cômodos de casas inabitadas, deterioradas ou em ruínas. O título se refere ao telhado que faltava na casa onde a família do diretor foi realojada em 1948, uma casa inacabada, um projeto de construção incompleto. A personal documentary directed by the Palestinian filmmaker Kamal Aljafari who returns to his homeland to see the present life of his closest and further family. Between the cities of Ramleh and Jaffa, the film hovers between real and cinematic memoir, moving around the rooms of homes inhabited, damaged and ruined. The title refers to the roof missing from the house where the filmmaker’s family resettled in 1948, a home unfinished, an incomplete construction project.


42 Atrás da Porta [Behind the door] Rio de Janeiro, 2010, cor, 92’ direção [director] Vladimir Seixas fotografia [cinematography] Chapolim, Sílvia Maria, Vladimir Seixas montagem [editing] Vladimir Seixas som [sound] Chapolim, Sílvia Maria, Vladimir Seixas produção [production] Couro de Rato contato [contact] contato@couroderato.com.br

A experiência de arrombar prédios e criar novos espaços de moradia das famílias sem-teto do Rio de Janeiro em contraposição a uma série de despejos forçados por parte do Estado. Esses despejos dão início a um grande projeto de intervenção na cidade intensificado a partir de 2007. No documentário, o projeto chamado de “revitalização” é questionado pelos próprios moradores de várias ocupações. An experience of breaking into buildings and creating new homes for homeless families in Rio de Janeiro in opposition to a series of forced evictions by the State. These evictions initiate a major intervention project in the city intensified since 2007. In the documentary, the project called “revitalization” is questioned by the residents of various occupations.

Braço armado das empreiteiras [Contractors’ armed wing] Pernambuco, 2014, cor, 4’ direção [director] Ernesto de Carvalho, Juliano Dornelles, Marcelo Pedroso, Pedro Severien fotografia [cinematography] montagem [editing] som [sound] Ernesto de Carvalho, Juliano Dornelles, Marcelo Pedroso, Pedro Severien produção [production] Movimento Ocupe Estelita contato [contact] youtube.com/user/ocupeestelita

Em junho de 2014, a Polícia Militar de Pernambuco usou a violência extrema contra o Movimento Ocupe Estelita. Sem tentar abrir qualquer canal de diálogo, o Batalhão de Choque, o GATI e outros contingentes usaram a força desmedida para uma ação de reintegração de posse do terreno do Cais José Estelita. Ficou claro ao longo do dia que a polícia estava ali apenas para cumprir uma ação judicial, mas para tentar reprimir um movimento legítimo da sociedade civil. In July 2014 the police of Pernambuco used extreme violence against the movement Occupy Estelita. Without trying to open any channel of dialogue, the riot squad, the GATI and other troops used a disproportionate amount of force for the repossession of an area from José Estelita pier. It got very clear during the day that the police were there not only to carry out a lawsuit, but to try to repress a legitimate movement of civilians.


43 Audiência Pública (?) [Public Hearing (?)] Pernambuco, 2014, cor, 19’ direção [director] Ernesto de Carvalho, Leon Sampaio, Luís Henrique Leal, Marcelo Pedroso, Pedro Severien fotografia [cinematography] montagem [editing] som [sound] Ernesto de Carvalho, Leon Sampaio, Luís Henrique Leal, Marcelo Pedroso, Pedro Severien produção [production] Ocupe Estelita contato [contact] youtube. com/user/ocupeestelita

O vídeo trata da incapacidade do poder público de aceitar verdadeiramente a participação popular nas decisões sobre os rumos da cidade. Ao organizar a discussão sobre a utilização de um terreno enorme no centro histórico do Recife - Cais José Estelita - a partir dos interesses do trator da especulação imobiliária, a Prefeitura elimina a real possibilidade de debate. As “Audiências Públicas” se tornam jogos de cena, com o propósito de legitimar os anseios do consórcio “Novo Recife”. The video deals with the incapacity of public authorities to truly accept popular participation in decisions about the future of the city of Recife. By organizing a discussion regarding the use of a huge piece of land in the historic center of Recife - José Estelita Pier - based on the interests of the real estate speculation, the City Hall eliminates any possibility of debate.

Pirakuá - Os guardiões do rio Ápa [Pirakuã - Guardians of the river Ápa] Mato Grosso do Sul/Kaiowá Guarani, 2014, cor, 11’ direção [director] Gilmar Galache fotografia [cinematography] Ademilson Kiki Concianza, Gilmar Galache montagem [editing] Gilmar Galache tradução [translation] Eliel Benites produção [production] Associação Cultural de Realizadores Indígenas (ASCURI) contato [contact] ascuri.ms@gmail.com

Na fronteira do Brasil com o Paraguai, os Kaiowá da Aldeia Pirakuá foram incumbidos por Pai Kuará de cuidar do bem mais importante para os seres humanos, a Água. Confinados em seu território, eles cumprem a missão a eles designada, com muita luta e força, mantendo a mata de pé e sua cultura ecoando pelos serros da Fronteira, orgulhando os Donos da Água. On the border between Brazil and Paraguay, the Kaiowá people from the village Pirakuá were assigned by Pai Huará to take care of the most important asset for humanity, the Water. Confined in their territory, they fulfill their mission with a lot of struggle and strength, keeping the forest standing and their culture echoing through the mountains of the border and making the Water Owners proud.


44 Eles sempre falam por nós [They always speak for us] Minas Gerais, 2017, cor, 65’ direção [director] Carina Aparecida fotografia [cinematography] Felipe Chimicatti montagem [editing] Mirela Persichini som [sound] Pedro Carvalho, Rafael Bottaro, Denis Martins produção [production] Fernanda Brescia, Sarah Alberti contato [contact] bresciafernanda@gmail.com

Um quilombo cercado por concretos e edifícios. O que antes era rio, hoje é avenida que corre acelerada invadindo um território ancestral. Nascidas desta terra, Julia, Maria Luiza, Maria Luzia e Sara têm as vidas e os corpos atravessados pelo Quilombo dos Luízes, localizado no bairro Grajaú, em Belo Horizonte. São mulheres que narram suas memórias e sonhos, em resistência à história oficialmente contada. A quilombo surrounded by concrete and buildings. What used to be a river, today is an avenue that runs fast, invading ancestral territory. Born from this land, Julia, Maria Luiza, Maria Luzia and Sara have their lives and bodies marked by Quilombo dos Luízes, located in the Grajaú neighborhood, in Belo Horizonte. They are women who narrate their memories and dreams, in resistance to the official history.

Vida e Luta na Retomada Tei’ykue [Life and Struggle in Retomada Tei’ykue] Mato Grosso do Sul/Kaiowá Guarani, 2018, cor, 7’ direção [director] ASCURI fotografia [cinematography] Kunumi Rendyju montagem [editing] Kiripuku tradução [translation] Kunã Poty Rendyju, Avaete Ndeju, Avá Jheguaka Jhu, Xiriry Rendy Jhu produção [production] Associação Cultural de Realizadores Indígenas (ASCURI) contato [contact] ascuri.ms@gmail.com

Nesse momento o gambé lustra a bota pra descer a borracha no parente, enquanto isso, produzimos esse material para mostrar o outro lado da história, a voz dos sem voz, a cara dos sem rosto. Vida e luta Kaiowá Guarani de Te’i’ykue, a terra é nossa e ponto, nessa vida ou em outra, nossos ossos vão reclamar por ela. Right now cops polish their boots to beat up our friends, meanwhile, we produce this material to show the other side of history, the voice of the speechless, the face of the faceless. Kaiowá Guarani life and struggle from Te’i’ykue, the earth is ours and that’s that. In this life or another, our bones will reclaim it.


45 Sequizágua Minas Gerais, 2020, cor, 86’ direção [director] Maurício Rezende fotografia [cinematography] Bernard Machado montagem [editing] Daniel Ribeiro Duarte som [sound] Gustavo Fioravante, Marcos Cantanhede produção [production] Alcione Rezende, Janaína Macruz contato [contact] danielribao@yahoo.com

Num assentamento agro-extrativista no Gerais mineiro, as famílias já conseguiram realizar o sonho da terra, mas a falta de chuva e a monocultura de eucaliptos na região dificultam sua sobrevivência. Neste cenário, enquanto os mais velhos procuram transmitir o seu conhecimento da lida com a terra, os mais jovens vêem a vida na cidade como uma oportunidade. In an agro-extractivist settlement in Minas Gerais, families have already managed to fulfill the dream of the land, but the lack of rain and the monoculture of eucalyptus in the region make their survival difficult. In this scenario, while the older ones seek to transmit their knowledge of dealing with the land, the younger ones see life in the city as an opportunity.

Pohã re’yi - família dos remédios [Family of Healing] Mato Grosso do Sul/Kaiowá Guarani, 2020, cor, 17’ direção [director] Joilson Brites, Jhonathan Gomes, Wagner Gomes, Anailson Flores fotografia [cinematography] Joilson Brites montagem [editing] Wagner Gomes, Anailson Flores, Jomalis Franco Gomes, Beybity Flores, Layla Braz, Luisa Lanna som [sound] Joilson Brites produção [production] Luciana de Oliveira, Layla Braz, Guilherme Brant, Luisa Lanna contato [contact] anetetekaiowa@gmail.com

A família extensa Kaiowá inclui não somente os parentes consanguíneos e agregados, mas as relações com seres sagrados, animais e plantas. Nesse curta, vemos tais vínculos duplamente afirmados: na relação com os remédios tradicionais e em sua busca realizada por avó (Crescencia Flores) e neta (Melojaine “Querida” Brites), enfrentando juntas as dificuldades de manter a experiência dos vínculos familiares em face das violências que atingem os parentescos. The extended Kaiowa family includes not only blood relatives and households but relationships with sacred beings, animals and plants. In this short film, we see such family ties doubly affirmed: in the relationship with traditional remedies and in a relationship between grandmother (Crescencia Flores) and her granddaughter (Melojaine “Querida” Brites) searching for it.


46 Nũhũ yãgmũ yõg hãm: Essa terra é nossa! [This land is ours!] Minas Gerais/Tikmũ’ũn/Maxakali, 2020, cor, 70’ direção [director] Isael Maxakali, Sueli Maxakali, Carolina Canguçu, Roberto Romero fotografia [cinematography] Isael Maxakali, Carolina Canguçu, Jacinto Maxakali, Alexandre Maxakali, Sueli Maxakali, Roberto Romero montagem [editing] Carolina Canguçu, Roberto Romero som [sound] Marcela Santos produção [production] Paula Berbert com [with] Delcida, Totó, Mamei, Pinheiro, Arnalda, Dozinho, Vitorino, Israel, Marinho, Américo, Veronildo, Noêmia, Joviel, Neusa, Tevassouro, Manuel Damázio, Manuel Kelé, Pedro Vieira Maxakali contato carolinacangucu@gmail.com, roberomerojr@gmail.com

Antigamente, os brancos não existiam e nós vivíamos caçando com os nossos espíritos yãmĩyxop. Mas os brancos vieram, derrubaram as matas, secaram os rios e espantaram os bichos para longe. Hoje, as nossas árvores compridas acabaram, os brancos nos cercaram e a nossa terra é pequenininha. Mas os nossos yãmĩyxop são muito fortes e nos ensinaram as histórias e os cantos dos antigos que andaram por aqui. In the past, when white people didn’t exist, we used to hunt with our yãmĩyxop spirits. The whites came, cut down the trees, dried up the rivers and scared the animals away. Today, our tall trees are over, the whites surrounded us and our lands are tiny. But our yãmĩyxop are very strong and taught us the stories and chants from our ancients who walked around here.


mostra contemporânea brasileira brazilian contemporary showcase



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“Contrafogos de cinema num país em chamas” andré novais oliveira daniel ribeiro duarte júnia torres luisa bahury lanna

(...) devemos ver o fogo que se esconde em alguém ou numa paisagem. Devemos lutar pelo que descreve Jean-Marie Straub: se não há fogo em um plano, se não há nada ardendo em seu plano, então ele é inútil. Em algum lugar do plano, algo deve estar em chamas. (Pedro Costa)

O país como paisagem em chamas, ateadas pelo empreendimento colonizador que não cessa. Uma Cinemateca em risco de incêndio, pois que abandonada, vilipendiada. Políticas de e para o cinema – que antes permitiram uma ampliação notável de protagonismos na representação cinematográfica de nossa imagem de país, como podemos ainda testemunhar nesta mostra – em voraz processo de desmantelamento e destruição. No presente ano de 2020, os ataques ao cinema brasileiro não se interrompem. Restrições que já vinham se acumulando há alguns anos seguem paralisando a realização e nosso trabalho de difusão de filmes no Brasil. Temos testemunhado, atordoados, como o presente momento consegue ser ainda mais imprevisível e restritivo que nos anos anteriores, quando a pandemia se soma ao desastre roubando-nos a experiência coletiva da sala de cinema, para onde esperamos retornar o mais prontamente possível. Neste contexto, decidimos que seria imprescindível, apesar de todas as dificuldades impostas, abrir novamente as inscrições da Mostra Contemporânea Brasileira (suspensas em 2019), com a disposição de enfrentar todas as dificuldades que viessem. E como não há saída pela desistência, realizamos o forumdoc.bh em formato integralmente online. Era imperativo que filmes recentemente realizados no período dos dois últimos anos pudessem aqui ter abrigo. Especialmente os que com contrafogos respondessem (contrafogos muito diversos, felizmente). Com todas as restrições que marcam o presente, esperávamos um número reduzido de obras, mas nos surpreendemos com a inscrição de um grande fluxo de filmes vindos dos mais diversos lugares, coletivos, artistas, formatos e durações. Entendemos esta produção quantitativamente e qualitativamente expressiva através de dois movimentos:


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• o primeiro deles se deve à força das políticas de audiovisual que foram implantadas

e disseminadas no país nos anos recentes, que deixaram um solo fértil e sementes por germinar. Se esta cadeia de produção e resistência ainda procura se manter às custas de muito sacrifício, o forumdoc.bh procura ser um lugar de reflexão acerca desse cenário, e em alguns casos, diante de uma quantidade maior de bons filmes do que o espaço de programação de que dispomos, os critérios curatoriais privilegiaram aqueles que ao nosso ver enfrentariam as dificuldades de circulação impostas a certas tendências audiovisuais.

• uma segunda linha que identificamos em meio à grande quantidade de inscritos são

os chamados filmes de quarentena. Motivados pelo isolamento social e por algumas linhas de apoio governamental surgidas neste momento histórico ímpar – em que a solidão das casas se soma à oferta de meios de produção compactos – vários autores de experiências diversas se lançaram a estas produções de duração às vezes ínfima e de qualidades desiguais. Nessa linha, poucos foram os filmes que prenderam realmente a nossa atenção. Encontramos aí poucos filmes que realmente se sustentassem numa seleção final.

Partilhamos os filmes que, por fim, respondiam ao nosso entendimento de que o cinema pode ser uma atividade e uma poética que avança lentamente, por entre o conhecimento e o desconhecimento do mundo. Com este ritmo e esta atenção, o cinema assimila em sua forma as intempéries do processo e constrói um saber que vem menos da atualidade que a imagem consegue capturar do que de uma certa inatualidade que, embora seja conquistada no presente das filmagens, atinge uma série de camadas históricas invisíveis aos olhos mais turísticos quando se envolve por um tempo ampliado com aqueles que são filmados. Um esforço fundamental de nosso trabalho foi o de reconhecer aquelas obras que vão além de um primeiro momento nas relações de filmagem e, por esta persistência, conseguem revelar os feixes de força e poder que se escondem nas sombras de cada situação. Não existe uma fórmula para realizar essas operações, e nem mesmo as estratégias convencionais do documentário podem restringir a multiplicidade de abordagens possíveis. Muito dessa força vem do lugar de onde partem os filmes, quem filma, o que filma. Um exemplo disso, e que o forumdoc.bh tem tido a alegria de acompanhar, refere-se ao fenômeno da ampliação dos protagonismos de autoria dos cinemas negros, periféricos e indígenas, que vem abalando as estruturas do cinema que se faz hoje. Tratam-se de obras que entram em relação de contiguidade com universos singulares, somente possíveis serem alcançados, revelados, partilhados por novos gestos, corpos, formas e disposições. Há aqui um cinema que bebe nas relações duradouras capazes de transformar formas fluidas entre seres em co-presença, mediados pelo aparato da imagem. Destacamos, ainda, no conjunto apresentado, autores com grande força poética, lírica, subjetiva, capazes de invenção e coragem na linguagem, constituindo um cinema que amplia a relação entre os supostos procedimentos documentais e não-documentais, entre a vida e o sonho.


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Foi com esta variedade de visões, lutas e formatos que lidamos nos últimos meses, e não sem dificuldade, pois ainda deixamos de mostrar tantos filmes bem realizados pela impossibilidade de reuni-los aqui nesse breve espaço. Segue nosso recorte possível – que sabemos precário e sempre incompleto – e as articulações propostas por essa comissão de curadoria entre os filmes compartilhados.

O sagrado que personagens e filmes evocam

Os filmes partilhados na Mostra Brasileira Contemporânea foram organizados em doze sessões. Em uma delas estão reunidos o curta Trindade e o longa Fé e Fúria, abordando de maneiras diferentes uma intercessão entre a fé religiosa e a vida social. A proposta de Trindade é a imersão no mundo e na subjetividade de Maria Trindade, uma personagem que vai além do convencional por sua história de agruras, mas também por sua superação. A simplicidade e rigor formal junto à disposição deste filme para a escuta parecem ser o terreno fértil para que o mergulho em relatos tão pesados ganhe densidade e revele a força do engajamento espiritual que teria resgatado a personagem de uma espécie de miséria existencial. Por fim, somos conduzidos pela própria personagem a uma virada final: no registro de um ponto de caboclo, o filme recebe, como vibração anômala, a impressão de sua experiência espiritual. Fé e Fúria se insere nesta discussão por um viés mais explicitamente politizado, trabalhando a guerra espiritual instaurada pelo neo-pentecostalismo no Brasil contra as religiões afro-brasileiras como o Candomblé e a Umbanda. O filme é construído sobre um recorte amplo entre Rio de Janeiro e Belo Horizonte, em que 25 personagens são entrevistados e filmados em seus momentos de trabalho religioso, gerando um mosaico tenso acolhido pela montagem e que propicia o embate entre ideias, encampando este debate de uma forma bastante completa e abrangente. Outro grupo de filmes ligados aos rituais afro-brasileiros é estruturado em torno de Aleluia, o canto infinito do Tincoã, um filme de encontro com o mestre Mateus Aleluia, sua filosofia, música e inspirações. Acompanhando o compositor por uma viagem através de paisagens fundamentais de sua obra, como Cachoeira e Luanda, mas também abrindo espaço para uma geografia interior e infinita ligada à sua vida espiritual – farol de sua musicalidade – o filme dá breves indicações biográficas, mas sem se deter em cronologias ou detalhamentos. Antes, prefere expandir cada traço encontrado em direção a uma certa infinitude, que condiz com o sagrado que o personagem evoca com sua presença. Ao lado desta força expansiva que mobiliza o cinema encontramos espaço para curtas como Obatala Film, que procura oferecer ao espectador, pela junção de batidas de tambor do candomblé com padrões e grafismos de pinturas corporais, uma experiência de transe audiovisual. Integrando a mesma sessão, Nascente persegue a questão do retrato de família entre as famílias negras, já trabalhado por Safira Moreira em curtas anteriores, quando observou a ausência de memória fotográfica e a estigmatização da imagem do povo negro. Construído como um filme de quarentena, no espaço doméstico e em isolamento social, Nascente explora um formato curto mas em nada vazio de temporalidades, já que as personagens manuseiam alimentos rituais, folhas, velas, incensos, além de sons que embalam uma experiência de transe vivida por


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mulheres da família Moreira que atualizam esta ancestralidade viva. Fartura completa esta sessão que é toda marcada pela forma como na matéria se encontra passagens para o amplo espaço da espiritualidade, mas indicando um outro caminho por onde tocá-lo. Através de material de arquivo encontrado entre as prateleiras de famílias comuns, este filme é o que menos se compromete a fazer o trajeto que liga os costumes à sua raiz afro-brasileira, mas talvez seja o que encontra, através da alimentação e da maneira como ela se encontra imbricada nas tradições festivas negras, a força desta cultura disseminada e vivenciada como elemento propriamente popular.

“Enquanto morar for privilégio, ocupar é um direito”

Duas sessões estão dedicadas, de forma particular, a questões territoriais ligadas à política fundiária, ou melhor, à ausência de uma política de organização e divisão fundiária justas, um dos problemas históricos desse país, como sabemos e como poderemos acompanhar nos filmes da mostra Essa terra é a nossa terra, que compõe a programação do forumdoc.bh este ano. Os longas Cadê Edson?, Território Suape, e Entre nós talvez estejam multidões são filmes que combatem junto aos que fazem valer a justa afirmação: “enquanto morar for privilégio, ocupar é um direito”. Mobilizando diferentes estratégias narrativas, onde tanto o acompanhamento no tempo, na longa duração, das lutas e dos sujeitos que as empreendem, assim como o estar atento (e forte) nos momentos de tensão torna-se matéria fundamental do fazer fílmico. Tais disposições transformadas em estratégias fílmicas apresentam um cinema implicado que faz da proximidade e da luta sua forma. Enfrentando a árdua tarefa de confrontar o inimigo por meio do cinema e expô-lo ao mundo em todas as suas contradições e asperezas, revelando estratégias de dominação e expulsão fantasiadas de consumo legítimo, Território Suape nos coloca no centro desse jogo desigual e nos posiciona ao lado dos expropriados, aqueles que têm uma relação tradicional com o território. O essencial Mineiros enfrenta dilemas ainda mais trágicos. Entram em cena as grandes corporações da mineração e a expulsão da população que vive não distante de nossa “Belo Horizonte”: horizontes expropriados dos muitas vezes descendentes daqueles que vieram trazidos forçadamente pelo ouro e agora expulsos pelo ferro de seus territórios afetivos. Casas, quintais e ruas outrora cheias de vida aparecem vazias, desocupadas compulsoriamente, prestes a serem invadidas pela tragédia que sobre elas desmorona, pelo uso – utilitarista – das montanhas e dos seres que as habitam (incluindo os minerais). Formamos fileiras ao lado do cinema anti-corporações, fazendo coro também com Ailton Krenak em seu livro mais recente, A Vida não é Útil, afirmando que a vida deveria ser co-existência com tais seres e não, sua (e nossa) aniquilação.

Sob o descompasso do “progresso”

Em outro conjunto, foram reunidos três filmes cuja reflexão encontra, de maneiras distintas, o descompasso entre uma ideia hegemônica de progresso linear e as consequências e reações da natureza em relação a esse ritmo devastador de exploração. Como um grito desesperado, Hasta el fin del mundo opera, por meio do encontro entre duas mulheres – uma liderança indígena Sikuani e uma artista plástica brasileira – um gesto


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performático em que caminham pela floresta, os seringais e as cidades amazônicas e nos situam em relação ao fim do mundo, ou ao menos o fim do mundo de um povo que se extingue pela sanha devastadora de empresas que lhes vilipendiam o território e assassinam seus membros. O grito contra-colonial dessas duas mulheres, inscrito num filme a um só tempo contemporâneo e inatual, nos vem alertar para o perigo da gananciosa devastação que, ao encerrar com as possibilidades de certas cosmologias e modos de vida, está também colocando em risco o balanceamento que garante as condições de habitação deste planeta por humanos. Em Sob a sombra de uma palmeira, filme realizado no Cambodja, um jovem poeta caminha com o realizador por um campo que foi propriedade de sua família, resultado de uma política governamental dos anos 80 que oferecia a propriedade de terrenos a quem arrancasse as árvores. O pai do personagem durante 10 anos trabalhou arduamente transformando um pedaço de floresta em um campo de arroz que nesse momento não está mais sendo plantado. É um caso em que a devastação de uma paisagem externa se confunde com um vazio na paisagem sentimental, ainda que a concessão do terreno aparentemente seja um benefício. Ao se referir a uma foto 3x4 tirada pelo pai enquanto arrancava as árvores, o rapaz consegue ver, retrospectivamente, um rosto vazio, desprovido de sentimentos, como uma paisagem desertificada, infértil e sem cultura. Uma palmeira, entretanto, funciona para o rapaz como um ponto da paisagem que ativa a memória dos momentos em que, com o pai, se alimentavam, descansavam, e ele ouvia suas lições de vida. Em meio às imagens simples deste filme de terra arrasada, no fio de afeto que conecta pai e filho, o realizador encontra um núcleo luminoso. Pajeú, por sua vez, encontra a sua terra arrasada em Fortaleza, e o seu fio de memória no pequeno rio Pajeú, presente na fundação da cidade mas ocultado e esquecido pelo desenvolvimento urbano. Pajeú lança mão de um procedimento ficcional que, fazendo referência aos filmes de terror, simboliza o rio desfigurado como uma entidade monstruosa que vem dos subterrâneos e lança a sua ira sobre a população. Esta entidade maléfica que se tornou o rio – espelho poluído do mal que a própria cidade lhe faz – quer hipnotizar a professora Maristela e levá-la, como a outros, para que sintam, como ele, o que é ser esquecido. Do terror ao documental, o filme consegue reunir pontas muito distintas do cânone cinematográfico para, através de uma mescla surpreendente, revelar de que forma a vida represada e recalcada dos rios pode se tornar uma força monstruosa que das cidades irá se vingar.

Pelo direito de seguir sendo

Sessões que se fazem da relação entre as imagens em movimento e as ontologias, cosmologias e historicidade dos povos indígenas estão presentes em três momentos desta mostra. Em uma das sessões articulamos imagens e sons como testemunhas das histórias singulares de grupos originários, realizadas por personagens indigenistas no maior e melhor sentido: pessoas que dedicaram suas vidas à aliança pelo direito de existir destes povos. Nesta sessão, temos fotógrafos/cinegrafistas de tempos e espaços diversos: o sanitarista Noel Nutels, o fotógrafo e cineasta Vincent Carelli e o casal de indigenistas Egydio e Doroti Schwade. Estes últimos são os interlocutores do belo, poético, inventivo e cortante Apiyemiyekî? (em língua Kiña Por que?) em que revelam


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sua vida ao lado dos Waimiri Atroari, povo vitimado pelo maior genocídio de Estado perpetrado pela ditadura militar contra os povos indígenas. Eles repetem a pergunta que não se cala, porque se atualiza, no presente, tragicamente: “Por que kamña (civilizado) matou Kiña?”. Por que continuam sendo mortos? Por que? Sem responder à pergunta, mas prolongando-a, o raro e belo material fílmico mobilizado pela montagem em O Índio Cor de Rosa Contra a Fera Invisível: A Peleja de Noel Nutels, se vale do acervo (em película) do médico sanitarista Noel Nutels. São imagens filmadas durante suas expedições aos cerrados e florestas habitados por diferentes grupos, trazendo até o presente imagens inéditas de povos de recente contato, acontecido em décadas ainda próximas (de 40 a 70), o que nos dá o tamanho da tragédia (etnocídio) perpetrada na história recente do Brasil. Trata-se de um trabalho primoroso de montagem, uma forma de eternizar as imagens e discurso de denúncia de Nutels, que infelizmente segue sendo tão atual e urgente. Se trazer à luz tais arquivos e a memória e reflexões que carregam é fundamental, o que dizer de devolvê-las às comunidades filmadas, para que possam elas mesmas ressignificá-las, conhecê-las, manuseá-las, e por meio delas se emocionar coletivamente na aldeia, décadas mais tarde? Este é o gesto de Yaõkwa - Imagem e Memória, o novo filme de Vincent Carelli e sua filha, Rita Carelli, filme que lançamos no forumdoc.bh.2020. Realizado entre os Enawenê Nauê e fruto, podemos dizer, de uma vida de relações mútuas entre os diretores e pessoas desse coletivo indígena, o filme propõe que, na aldeia, revejam juntos as imagens testemunhas de uma época de pujança da vida deste povo-ritual. São imagens que nos chocam por evidenciarem a velocidade das transformações que se passam em uma geração, mas imagens que, ao mesmo tempo, nos alimentam de uma esperança imensa no cinema pelo o que é capaz de mobilizar, gerar, criar junto. O visionamento das imagens movimenta a aldeia e gera o pensamento dos Enawenê Nauê sobre a própria cultura. A invenção de um lugar para o cinema segundo os modos de existir de cada coletivo indígena que o acolhe, tem resultado em filmes que reconfiguram o documentário produzido contemporaneamente em nosso país. Gesto contra-colonial por definição, realizado por cineastas de tantos e diversos coletivos que nas últimas décadas acompanhamos e celebramos no forumdoc.bh, a auto-representação desses povos, continua a apresentar obras marcantes. Cinemas rituais, cinemas animais, cinemas envolvidos em uma outras cosmopolíticas das imagens. Este ano se fazem presentes por meio de belas sessões que partilhamos com os espectadores do forumdoc.bh: Nhemongueta Kunhã Mbaraete, um longa estruturado em forma de vídeo-cartas, no qual três mulheres cineastas guarani, vivendo em lugares distantes do país – nordeste (Graci Guarani), tekoha no MS (Michele Kaiowa) e no extremo sul (Pará Yxapi, Patrícia Ferreira) –, e uma artista visual não indígena falam de suas questões existenciais. Nas vídeo cartas, nosso mundo agora confinado se conecta ao mundo de certa maneira há muito confinado dos povos indígenas, e em particular os povos guarani, atingidos pela colonização e sua imposição de fronteiras e limites. Esta etnia fazia dos percursos pelo território o gesto central de sua experiência de busca da perfeição ao encontro da “terra sem males”. A partir da observação, do encontro e da reflexão, até sobre as formigas e sua roça, esse cinema nos leva pelas belas palavras e imagens, ao seu mundo particular


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e ao seu cinema profundamente existencial. Xandoca é o novo filme do conhecido realizador Takumã Kuikuro, um dos raros cineastas indígenas que filma fora de sua aldeia. Nesse curta, ele acompanha uma interessante personagem que vive o limiar entre uma cultura indígena e o mundo ocidental. Ingõny, Pisada Forte, filme recente resultado de processos formativos do Vídeo nas Aldeias, traz a experiência de cinema dos Kayapó dirigido pelo Coletivo Beture de Cineastas Mebengokre, no qual velhos guerreiros desse povo rememoram a aldeia mãe e as histórias dos primeiros contatos. Na montagem da sessão, o longa é precedido da pequena obra prima Topawa, do realizador Kisedje, Kamikia e de Simone Giovine, que documenta a produção de redes artesanais do povo Parakanã e, por entre os fios tecidos pelas mãos das mulheres, recebe o tesouro de histórias passadas. O programa se completa com Ãjãí: o Jogo de Cabeça dos Myky e Manoki dirigido por Typju Myky e André Lopes. Filme que resulta da colaboração entre realizadores indígena e não indígena e que nos leva a um lugar desconhecido e pulsante, no Brasil central, a um jogo de cabeçabol e ao desejo de “seguir sendo” não branco, não ocidental, mas afirmando formas próprias de vida em comum. Ainda compõe essa lista de filmes de autoria indígenas o inaudito e instigante Yvy Pyte – Coração Da Terra (Guaiviry) dirigido por Genito Gomes e Johnn Nara Gomes (os mesmos realizadores de um marco dos cinemas de autoria indígena: Ava Yvy Vera, A Terra do Povo do Raio). Que viva o cinema indígena!

Corpo-político-periférico desde dentro

Filme de domingo, de Lincoln Péricles, inicia uma sessão em que formas ficcionais/ ensaísticas são desconstruídas pelos corpos negros que as criam ou que nelas atuam. A obra traduz a experiência destes corpos periféricos e por esta é alargado, já que a proposta é de uma ficcionalização coletiva que parece ir se construindo ao sabor do processo. As imagens se convidam e se chocam umas às outras e o filme avança de forma impetuosa e livre, quase como se estivesse reinventando o cinema a partir de uma sensibilidade periférica, grafiteira e afro-brasileira. Um personagem médico e babalorixá, o tio que visita uma mãe solteira e sua filha são os personagens que nessa construção vão remexendo o cotidiano em busca de criar o afeto, nos remetem a raízes profundas que vão tocar até mesmo na questão da ancestralidade. Outro filme que envolve uma ficcionalização coletiva – e que se constitui em torno de um núcleo de realidade denso, o assassinato do menino Theilor, morto pela polícia – é Entre nós e o mundo. Colocando-se de uma forma muito sensível em relação à dor das personagens, sobretudo a mãe, grávida de um outro filho, o filme trabalha numa amplitude afetiva muito extensa. Em relação à maior parte dos títulos que abordam a matança da juventude negra, consegue partir de um conceito de vida que não se reduz ao pertencimento social a um lugar e à subjetividade, pois vincula a existência a uma certa capacidade de sonhar, projetar futuros e elaborar emocionalmente os acontecimentos. Ainda assim, não é um filme descolado da realidade em que é feito, pois os limites e opressões estão todos ali, atravessando os personagens. É um filme potente porque coloca todas essas forças em confronto, mas sem achatar a experiência. A morte branca do feiticeiro negro escova a história a contrapelo ao convocar um achado arquivístico raro: a carta de


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suicídio de Timóteo, um negro escravizado do Brasil colônia. A carta aparece no filme como uma legenda escrita em português antigo, e a montagem, que trabalha com material de arquivo, imagens em preto e branco, e uma construção sonora sombria nos dá uma sensação de opacidade da matéria que está sendo tratada. Se aparentemente esta opacidade do arquivo nos afasta temporalmente da experiência, por outro ela nos submerge na realidade de um homem negro cuja impossibilidade de viver a sua própria subjetividade nos conecta a uma multidão de homens e mulheres negras de hoje. Desmontando o racismo desde a história profunda de onde ele se origina, A morte branca do feiticeiro negro encontra um espaço simultaneamente político e cinematográfico por onde fazer ressurgir esta carta histórica. Completando esta sessão, República traz a potência do corpo e da imaginação de Grace Passô, em um filme rodado já no período de isolamento social. Por meio de uma proposição simples, o de uma mulher que recebe um telefonema no meio da madrugada, a atriz e realizadora consegue lançar mais do que uma reflexão sobre o Brasil: República solicita a outras epistemologias, outros pensamentos mais complexos que o ocidental (um Xamã, aquele…) que nos libertem de nosso excesso de realidade, e como num grito lancinante se alivia com a possibilidade de que este país não seja nada além de um sonho. Um sucessivo jogo entre realidade e ficção nos remete à possibilidade de que a linguagem seja talvez um abrigo para novas formas de viver e pensar, já que este país que já foi considerado lugar utópico, alegre e futurista, após tornar-se um gigante recém-acordado revelou-se um monstro devorador de vidas e de esperanças.

Encontros, desvios de linguagem e fontes de invenção

Numa sessão que reúne cinco curtas de temáticas e formatos diversos, procuramos privilegiar um aspecto que nos surgiu como de relevância máxima no encontro com as três centenas de filmes deste processo de curadoria. Se a cada visionamento éramos confrontados com o largo espectro de urgências políticas e sociais que persistem em eclodir por todo o mundo, nem sempre os filmes condiziam formalmente com o tremor e a intensidade que estes eventos parecem produzir em quem os fez. Contra um método de seleção temático, encontramos o cinema documentário como uma forma vazia ou não-preexistente, que precisa a cada vez se construir praticamente do zero diante daquilo que a motiva. Esta sessão tem grande significado porque reúne trabalhos que se deixam contaminar por aquelas realidades sobre as quais desejam versar, mas o fazem produzindo desvios de linguagem e os colocando como fonte de sua invenção. Contra a falsa necessidade de transparência, Yvy Pyte propõe, em um único plano, mergulhar na poética sagrada do rezador kaiowá Valdomiro Flores. Com toda sua opacidade, o pôr do sol visto da janela de um carro em movimento é a única imagem que acompanha as belas palavras do rezador neste precioso curta. Em voz off, Valdomiro versa sobre o território originário e o modo de viver kaiowá, esticando o tempo dos breves sete minutos do filme enquanto tentamos ressignificar os raios de sol refratados que recaem sobre a extensa planície ocupada pela plantação de soja. Trata-se do fenômeno kuarahy jeguaka, o cocar ou enfeite de cabeça do Sol, “nosso pai” para os Kaiowá. O espectador não kaiowá deve renunciar a qualquer busca pelo


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entendimento pleno dessa conversa sagrada entre palavras e imagens e entregar-se à experiência lírica. Sem título #6: O inquietanto, mais um belíssimo trabalho de montagem de Carlos Adriano, se coloca no vertiginoso campo de pensamento sobre a loucura, e constrói um filme verdadeiramente poético em todos os seus gestos. Este poema visual trabalha com planos de muitas épocas do cinema e algumas fotografias de seu arquivo pessoal para colocar o espectador diante de momentos de precariedade do equilíbrio mental de seus personagens, expressando clausura, angústia, loucura, humanidade e liberdade. É um filme inquietante que nos toca, atravessa e provoca pela sofisticação não cerebral do uso da linguagem. Poemas do Camboja é outro filme de Tomyo Costa Ito, que já integra outra sessão com Sob a sombra da palmeira, e neste caso trabalha com imagens coletadas por ruas e lugares escondidos de Phnom Pehn, leituras em língua khmer e um trabalho de montagem que se por um lado nos apresenta um pouco do cotidiano cambojano, por outro revela um pensamento sobre a poesia que a mergulha na vida das mulheres e homens ordinários para sair dela com a matéria mesma de sua construção. É também de um poema que se origina Pattaki, em que a realizadora Everlane de Moraes traduz, para o cinema, um poema do cubano Virgilio Piñera, vertendo não apenas as palavras e atmosferas aquáticas em texturas imagéticas, mas trabalhando estas formas em colaboração com performers cubanos que vão do mais corriqueiro trabalho físico a gestos barrocos que emergem da escuridão, embalados pelas imagens mais inventivas do poema. A sessão se completa com Belos Carnavais, filme sobre a morte de um sambista da Velha Guarda da Vai-Vai, tradicional escola de São Paulo. A aparente simplicidade das imagens talvez esconda a complexidade desta produção, que envolve atores não-profissionais e membros de mais de três escolas. O que não fica escondido é um rigor formal que está a serviço de revelar a força e a poesia que emanam de um sambista, e toda a emotividade que se gera em torno da morte de um destes heróis do samba.

Corpos, gestos negros performam o mundo

Morde e Assopra, Joãozinho da Goméia e Cavalo não têm somente a performance como ponto em comum, mas o corpo negro que através do movimento, da dança, de sua voz e transpiração apresenta uma posição no mundo – não só o mundo presente, mas atingindo camadas históricas que pelo movimento podem ser reelaboradas em ato. Os três filmes, cada um à sua maneira, encaminham o gesto desses corpos e seus discursos em direção a esta contundência e ação. A performance, como ensina Leda Maria Martins é “local de inscrição de conhecimento, que se grafa no gesto, no movimento, na coreografia (...). Numa sincronia, o passado habita o presente e o futuro, sendo também por eles habitado. Nesse sentido, a performance pode ser dispositivo de rememoração e de elaboração da história por meio das expressões artísticas. No espaço-tempo que o corpo em performance instaura e no interior do qual se cria e se transforma, ele elabora, em ato, aquilo que da história nele se inscreveu” (Martins, 2003). Esta potência de reelaboração histórica está presente no deboche de Stanley Albano, na sabedoria e força de Joãozinho da Goméia ou na expressão da dança em Cavalo. Enquanto Morde e Assopra enfia o dedo na ferida de uma velha tradição de classe


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que se projeta no cenário cultural, em Cavalo e Joãozinho da Goméia é apresentado o tradicional na religião e sua ancestralidade, mesmo que seja pra romper o que parecia improvável (como se faz com as vestimentas para os orixás do pai de santo do Rio), ou mostrando o próprio ritual com uma beleza ímpar, mesclando-o e colocando-o lado a lado com outras manifestações como o rap, o funk e a dança contemporânea. Essa sessão nos remete diretamente a esses gestos-pensamentos-memórias.

Pelo Atlântico: narrativas de ancestralidade e um recado na garrafa

De um Lado do Atlântico, de Milena Manfredini, experimento muito bem realizado de reivindicação de memória histórica, oferecido como uma carta na garrafa endereçada ao diretor Christopher Harris, abre a sessão dedicada às relações que se estabeleceram entre os continentes, países e pessoas na diáspora negra. Para que não se esqueça o trauma e os signos da violência colonizadora e que tira da superação pelo discurso estético na articulação entre o texto e a imagem, sua força e seu posicionamento no mundo. A ancestralidade é o corpo e a voz também de Entre nós, um segredo e Negras Vozes, Tempo de Alakã. A sessão que agrupa esses filmes convida a uma travessia de mão dupla pelo Atlântico. Se em Entre nós, um segredo as palavras guiam o espectador pelos ensinamentos dos djélis da família do diretor e também djéli Toumani Kouyaté numa viagem ao Mali, seu país natal, em Negras Vozes, tempo de Alakã, os tambores do Bloco Afro Ilú Obá de Min em São Paulo reverenciam o esplendor da influência africana nas experiências religiosas e culturais diaspóricas. Contadores de histórias e intermediadores de conflitos, os Djélis são os guardiões da história do Império Mandé. Filho de uma linhagem tradicional desses contadores, Toumani, que vive com a família no Brasil, é convocado a regressar ao país de origem para ouvir uma última história de seu avô. Em Entre nós, um segredo acompanhamos essa estadia emocionante, repleta de afetos, ensinamentos e é claro, histórias. Toumani conduz a co-diretora Beatriz Seigner pela magia das palavras ditas diante da câmera. O encanto está justamente na escuta. Aqui, a câmera é, acima de tudo, um ouvido atento. “Adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história”, nos ensina Ailton Krenak. É preciso saber escutar as histórias que adiam o fim. Foi justamente adiando o fim do mundo por séculos a fio que, através da oralidade, as tradições africanas se perpetuaram na música, na religiosidade e no modo de viver da população que experiencia a diáspora no Brasil. Negras Vozes, tempo de Alakã registra o desfile dessa majestosa influência pelas ruas do carnaval paulista. O filme acompanha quase que integralmente o cortejo monumental do Bloco Afro Ilú Obá de Min trazendo imagens inebriantes das danças, cantos e performances do bloco. O registro etnográfico dá espaço aos corpos e aos discursos de luta que surgem durante o cortejo fortalecendo o que se vê. Destaca-se a bela homenagem aos 40 anos de fundação do Movimento Negro Unificado, quando a procissão do bloco termina nas escadas do Teatro Municipal de São Paulo. Tambores e palavras se fortalecem nessa sessão que reverencia a inteligência ancestral e sua engenhosa tecnologia de sobrevivência. Cientes de que este recorte, embora de certa forma abrangente, ainda não consegue contemplar a complexidade e a riqueza do cenário documental, apresentamos ao


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espectador esta seleção de filmes. Com ela, procuramos nos somar, num cenário em chamas, ao conjunto de lutas que, de um modo ou de outro, procuram defender mundos que se extinguem, ou vidas que tristemente se apagam. Nossa intenção não é de maneira alguma conservar um passado, mas, penetrando pelos veios que nos são oferecidos por este conjunto de filmes, encontrar nesses lugares de ancestralidade (palavra que tantas vezes passou por este texto e relação que passou por tantas obras) uma real diferença estética e histórica, algo que nos pareça finalmente novo e nos encaminhe para um outro futuro. Os filmes nos quais encontramos esta solicitação não são um retrato do mundo ou de qualquer realidade – são justamente aqueles que, com elementos do mundo, conseguem evocar uma outra coisa, diferente, talvez mais enfática, forte ou luminosa. Junto dos filmes aqui reunidos, queremos somar vozes com Pedro Costa, quando escreve: “Esse é nosso mundo e ao mesmo tempo nos parece abstrato. Cinema não é exatamente vida. Ele trabalha com ingredientes da vida que, então, organizamos, damos a eles funções diversas da vida. Iremos vê-los sob uma luz diversa. Não é a vida, mas ao mesmo tempo é feito de seus elementos, o que é algo bastante misterioso e por vezes um tanto belo”.


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“Cinema counterfires in a country on fire” andré novais oliveira daniel ribeiro duarte júnia torres luisa bahury lanna

Translation: Henrique Goulart and Pedro Veras

(...) we must see the fire that’s hidden in a person or in a landscape. We must strive for what Jean-Marie Straub describes: if there’s no fire in the shot, if there’s nothing burning in your shot, then it’s worthless. Somewhere in the shot, something must be on fire. (Pedro Costa)

The country as a landscape in flames, ignited by the unceasing colonizing enterprise. A Cinémathèque at risk of burning down due to abandonment, vilification. Government policies directed to and created for cinema – which previously allowed a notable expansion of protagonisms in the cinematographic representation of our country’s image, as we still witness in this exhibition – face a voracious process of dismantling and destruction. In the present year of 2020, the attacks on Brazilian cinema have not ceased. Previous restrictions that had been accumulating for some years continue to paralyze filmmaking, our work and the dissemination of films throughout Brazil. We have witnessed, stunned, how the present moment turns out to be even more unpredictable and restrictive than in previous years, when the COVID-19 pandemic has added to the disaster, robbing us of the collective experience of the film theatre, where we hope to return to as soon as possible. In this context, we decided that it would be essential, despite all the imposed obstacles, to reopen calls for entry for the Contemporary Brazilian Showcase (suspended in 2019) with the willingness to face all the difficulties that might come up. And as quitting is not an option, we have conducted forumdoc.bh in a fully online format. It was imperative that recently made films, shot in the last two years, found shelter here. Especially those which fired back (through various ways to counterfire, fortunately). Given all present restrictions, we expected a reduced number of films, but we were surprised by the submission of a


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large flow of films coming from the most diverse places, collectives, artists, formats and durations. We regard this quantitatively and qualitatively expressive production as a result of two factors:

• the first is related to the strength of the audiovisual policies that were implemented

and disseminated in the country in recent years, which left behind a fertile soil and seeds to germinate. While this chain of production and resistance still seeks to survive at the cost of much sacrifice, forumdoc aims to provide a place for reflecting on this scenario. In some cases, given the number of good films being greater than the available programming space, the curatorial criteria favored those which, in our view, would face the circulation difficulties imposed on certain audiovisual trends.

• a second trend that we identified among the large number of subscribers is related to

the so-called quarantine films. Motivated by social distancing and by some government funding options created during this unique historical moment – in which the domestic solitude combines with the availability of compact filmmaking processes – several authors of different experiences turned to productions of sometimes diminutive duration and uneven quality. Along these lines, there were few films that really caught our attention. There, we found very few films that survived the final selection. Finally, we share the films that correspond to our understanding that cinema can be an activity and a poetics that progresses slowly, between the known and the unknown of the world. Meanwhile, it assimilates, in its form, the tempest of such process and constructs a knowledge coming not so much from the actuality captured by the image, but from a certain timelessness that is only conquered in the present. At the same time, it reaches a series of historical layers invisible to most pedestrian eyes when it engages, for a long time, with those who are filmed. A fundamental effort of our work was to recognize those films capable of going beyond a first stage of filming relations and, through this persistence, manage to reveal the bundles of strength and power hidden in the shadows of each situation. There is no formula for carrying out these operations; even conventional documentary strategies cannot restrict the multiplicity of possible approaches. Much of this strength comes from the place where the films are from, who films them and what is filmed. An example of this – that forumdoc has had the joy of following – refers to the expansion in the authorship of Black, peripheral and indigenous cinemas, which has been shaking the structures of cinema being made today. These are films that enter into a contiguous relationship with singular universes, only possible to be reached, revealed, shared by new gestures, bodies, shapes and dispositions. Here is a cinema based on the lasting relationships capable of transforming fluid forms among beings in co-presence, mediated by the image apparatus. We also highlight, in the presented film selection, directors with great poetic, lyrical, subjective strength, capable of an inventive and courageous language, constituting a cinema that broadens the relationship between alleged documentary and non-documentary procedures, between life and dream.


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It was this variety of visions, struggles and formats that we have dealt with in the last few months – not without difficulty, as we still left out so many well done films due to the impossibility of assembling them here in this brief space. What follows is our possible cut, which we know to be precarious and always incomplete, along with the film articulations proposed by this curatorial committee.

The divine evoked by characters and films

The films in the Brazilian Contemporary Showcase were organized in twelve sessions. In one of them, the short and feature films titled Trindade and Faith and Fury are brought together, dealing with an intercession between religious faith and social life in different ways. Trindade proposes an immersion in the world and in the subjectivity of Maria Trindade, an unconventional character due to her history of hardships, but also of survival. The simplicity and formal rigor along with the film’s willingness to listen seem to be the fertile terrain needed for the immersion in hard life stories to acquire density and reveal the spiritual strength that would have rescued the character from a kind of existential misery. Finally, we are led by the character herself to a climatic turn: by recording a “ponto de caboclo”1, the film receives, as an anomalous vibration, the imprint of her spiritual experience. Faith and Fury inserts itself in this subject through a more explicitly politicized bias, portraying the spiritual war established by Brazilian Neo-Pentecostalism against Afro-Brazilian religions, such as Candomblé and Umbanda. The film is built upon a wide framework ranging from Rio de Janeiro to Belo Horizonte in which 25 characters are interviewed and filmed in their moments of religious duty. Faith and Fury generates a tense mosaic embodied by the film’s montage that provides a clash between ideas while portraying this debate in a complete and comprehensive manner. Another group of films related to Afro-Brazilian rituals is structured around Aleluia, the infinite song, a film that offers an encounter with musical master Mateus Aleluia, his philosophy, music and inspirations. By following the composer on a journey through the main landscapes of his work – such as Cachoeira and Luanda – but also making room for an interior and infinite geography linked to his spiritual life – the beacon of his musicality –, the film offers brief biographical indications without clinging to chronologies or excessive details. On the contrary, it prefers to expand each characteristic found toward a certain infinity, which is consistent with the holiness evoked by the character’s presence. Alongside this expansive force that mobilizes cinema, we found a place for short films such as Obatala Film, which aims to offer an audiovisual trance experience to the viewer by combining Candomblé drum beats with body painting patterns and graphics. As part of the same session, Headwaters pursues the issue of family portrait among Black families, a topic already depicted by Safira Moreira’s previous short films, when she observed the absence of photographic memory and the stigmatization of Black people’s image. Shot as a quarantine film in the domestic space and in social distancing, Headwaters explores a short-length format that in no way is void of temporalities since its characters handle ritualistic foods, leaves, candles, incense, 1. T.N.: Ponto de caboclo refers to a traditional chant within the Afro-Brazilian religion of Umbanda.


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as well as sounds that cradle a trance experience lived by women in the Moreira family, who renew their living ancestry. Abundance ends this session marked by the manner in which, through matter, one finds passages to the wide realm of spirituality. However, the film indicates another way to reach it. Using archival material found on the shelves of ordinary Brazilian families, this film is the least committed one to making the journey that connects customs to its Afro-Brazilian roots. Yet, Abundance is perhaps the one that finds – through food and the way it is intertwined with Black festive traditions – the strength of this culture disseminated and experienced as a truly popular element.

“When housing is a privilege, occupying is a right”

Two sessions are dedicated, in particular, to territorial issues linked to land policy, or rather, to the absence of a fair land organization and distribution policy. As we know, this is one of the major historical problems in this country and we can follow it in the films of the “This Land is Our Land” showcase, which is part of this year’s forumdoc program. The feature films Where’s Edson?, Suape Land, and There may be crowds among us are films that struggle alongside those who are worthy of the statement: “when housing is a privilege, occupying is a right”. The films mobilize different narrative strategies, in which, following the long term of the struggle and the historical subjects who undertake them, as well as being attentive (and strong) in face of moments of tension, become the fundamental matter of filmmaking. Transformed into filmic strategies, such dispositions present an engaged cinema that turns proximity and struggle into form. By facing the arduous task of confronting the enemy through cinema and exposing all of his contradictions and harshness to the world, and by revealing strategies of domination and eviction disguised as legitimate consumption, Suape Land places us at the center of this unequal game, siding with the dispossessed, with those who have a traditional relationship with the territory. The essential film Mineiros faces even more tragic dilemmas. Here, large mining corporations and the eviction of the population living nearby our “Belo Horizonte” come into play: entire horizons taken from the descendants of those who, in the past, were forcibly brought by the gold rush and now are expelled from their affective territories by the iron ore extraction. Houses, backyards and streets, once full of life, appear empty, compulsorily unoccupied, ready to be invaded by the tragedy collapsing upon them, by the – utilitarian – usage of the mountains and the beings inhabiting them (including minerals). We side with anti-corporate cinema, echoing Ailton Krenak in his most recent book, A Vida não é Útil (Life is not Useful), and stating that life with such beings should be based on co-existence and not on their (and our) annihilation.

Under the disharmony of “progress”

Grouped in another section, there are three films reflecting – through different ways – on the mismatch between a hegemonic idea of linear progress and the natural consequences and reactions resulting from this devastating pace of exploration. Like a cry of despair, Hasta el fin del mundo operates a performative gesture through an encounter between two women – a Sikuani indigenous leader and a Brazilian visual artist – in


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which they walk through the forest, among the rubber trees and the Amazonian cities, while placing us at the end of the world. That is, at the end of the world as seen by a people being extinguished by the devastating fury of companies that vilify their territory and murder their members. Inscribed in a film that is both contemporary and outdated, these women’s anticolonial cry warns us of the danger of greedy devastation which, by shutting down certain cosmologies and ways of life, also risks the balance that makes this planet inhabitable. In Under the shade of a palm tree, a film shot in Cambodia, a young poet walks with the director through a field that was owned by his family, as a result of a government policy in the 1980s that offered land to anyone who uprooted the trees. The character’s father had worked hard for 10 years to turn a part of a forest into a rice field that was no longer being cultivated. It is a case in which the devastation of an external landscape mingles with an inner void in the sentimental landscape, even though the concession of the land seems to be a benefit. When referring to a 3x4 photograph taken by his father while he uprooted the trees, the boy is able to see, in retrospect, an empty face, devoid of feelings, like a desert, infertile and uncultivated landscape. A palm tree, however, serves as a point in the landscape that activates the boy’s memory of the moments when, alongside his father, they ate, rested, and he listened to his life teachings. Amid this film’s simple images of devastated land, the director finds a luminous core in the thread of affection connecting father and son. Pajeú, in turn, finds its devastated land in Fortaleza, and its memory thread in the small Pajeú river, present in the city’s foundation but concealed and forgotten, as a result of urban growth. Pajeú deploys a fictional expedient drawn from horror films to symbolize the disfigured river as a monstrous entity that comes from underground and casts its ire on the population. This evil entity that has become the river – a polluted mirror of the evil it has suffered from the city itself – wants to hypnotize Professor Maristela and take her, like others, to feel, like it does, what it means to be forgotten. From terror to documentary, the film manages to bring together very different strands of the cinematic canon to unveil, through a surprising mixture, how the damned and repressed life of rivers can become a monstrous force that will take revenge on cities.

For the right of existing

Sessions originated by the relationship between moving images and indigenous’ peoples ontologies, cosmologies and historicity are present in three parts of this exhibition. In one of the sessions, we assembled images and sounds as witnesses to the original peoples’ unique stories carried out by indigenist characters, in the greatest and best sense of the word: people who have dedicated their lives to the allegiance in favor of these peoples’ right to existence. In this session, there are photographers/directors from various times and places: the sanitarian Noel Nutels, the photographer and filmmaker Vincent Carelli and the indigenist couple Egydio and Doroti Schwade. The latter are the interlocutors of the beautiful, poetic, inventive and cutting Apiyemiyekî? (“Why?”, in Kiña language) in which they show their lives alongside the Waimiri Atroari, a people victimized by the largest state genocide perpetrated by the Brazilian military dictatorship against indigenous peoples. They repeat the question that remains unanswered


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because it is tragically reenacted in the present: “Why did kamña (civilized) kill Kiña?” Why are they still being killed? Why? Without answering the question, but rather expanding it, the rare and beautiful film material employed in The pink indian against the invisible beast: Noel Nutels’s battle, draws from sanitary doctor Noel Nutels’ collection (on negative film). These are images filmed during his expeditions to the cerrados and forests inhabited by different groups, bringing to the present unprecedented footage of recently contacted peoples taken in past decades (from the 1940s to 70s) that gives us a sense of the tragedy (ethnocide) perpetrated in recent Brazilian history. It is an exquisite work of montage, a way of eternalizing Nutels’ images and denunciation speech, which unfortunately remain so pressing and urgent nowadays. If bringing these files, the memory and reflections they carry to light is fundamental, what about returning them to the filmed communities, so that they can resignify them, get to know them, handle them, and be moved by them decades later in the village? This is the gesture of Yaõkwa – Image and Memory, Vincent Carelli’s and his daughter Rita Carelli’s new film that will premiere at forumdoc.bh.2020. Shot among the Enawenê Nauê people and resulting, one can say, of a life of mutual bonds between the directors and the people from this indigenous collective, the film proposes that the villagers once again watch the images that testify to an era of strength in the life of this ritual-people. These are shocking images to us because they show the speed of the transformations that took place in a generation’s time. At the same time, these are images that nurture us with an immense hope for what cinema is capable of collectively mobilizing, generating, creating. The viewing of the images mobilizes the community and fosters the Enawenê Nauê’s thinking about their own culture. The invention of a place for cinema, following the ways of existence of each indigenous collective that welcomes it, has resulted in films that reconfigure the documentary scope produced in our country. As an anticolonial gesture by definition, conducted by filmmakers from various and diverse collectives that we have followed and celebrated in forumdoc throughout the past decades, the self-representation of these peoples continues to present remarkable works. Ritualistic cinemas, animal cinemas, cinemas involved in other image cosmopolitics. This year, they are presented in beautiful sessions that we share with forumdoc’s viewers. Nhemongueta Kunhã Mbaraete, a feature film structured in the form of video-letters, in which three Guarani filmmakers, living in distant places in the country: Northeast (Graci Guarani), Tekoha in Mato Grosso (Michele Kaiowa) and in the far South (Pará Yxapi, Patrícia Ferreira), alongside a non-indigenous visual artist, talk about their existential issues. Through the video-letters, our now confined world connects to the indigenous peoples’, which, in a way, has long been confined, and particularly the Guarani peoples, affected by colonization and the imposition of borders and limits. For this ethnic group, journeys into the territory were a central gesture in their experience of seeking perfection through the encounter with the “land of no evil”. By means of observation, encounters and reflections, on their fields and even on the ants, this cinema takes us, through beautiful words and images, to its private world and to a form of deeply existential cinema. Xandoca is the new film of well-known director Takumã Kuikuro, one of the few indigenous filmmakers to record outside his


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village. In this short film, he follows an interesting character who lives at the threshold between an indigenous culture and the Western world. Ingõny, strong stomp, a recent film originated in the formative courses of Vídeo nas Aldeias (Video in the Villages), brings the Kayapó cinema experience, directed by the Collective Beture of Mebengokre Filmmakers, in which old warriors recall the mother village and the stories of their first contacts with outsiders. Following the session’s program, the feature film is preceded by the short masterpiece Hammock, by Kisedje filmmaker Kamikia and Simone Giovine, which documents the production of artisanal hammocks by the Parakanã people and, through the threads woven by the women’s hands, collects past stories. The program concludes with Ãjãí: the Headball game of the Myky and Manoki, directed by Typju Myky and André Lopes. Resulting from the collaboration between indigenous and non-indigenous filmmakers, the film takes us to an unknown and pulsating location in central Brazil where a game of “headball”2 takes place. It invokes the desire to “remain” not white, not Western, while stating their own forms of common life. Also included in this list of films by indigenous authors is the unprecedented and thought-provoking Yvy Pyte - Earth’s heart, directed by Genito Gomes and Johnn Nara Gomes (the same directors of the indigenous cinema landmark Ava Yvy Vera - The Land of the Lightning’s People). Long live the indigenous cinema!

Peripheral-Political-Body from the inside

Lincoln Péricles’ Sunday’s movie opens a session in which fictional/essayistic forms are deconstructed by the Black bodies creating or acting on them. The work both reflects and is expanded by the experience of those peripheral bodies, since its idea is a collective fictionalization that seems to be conceived along the process. The images invite and clash with each other, as the film strides in a fierce and free manner, almost as if it were reinventing cinema from a peripheral, graffiti and Afro-Brazilian sensibility. In this structure, a doctor, who is also a babalorixá, an uncle visiting a single mother and her daughter are the characters who rummage through daily life in search of affection, sending us to deep roots that comprise even the issue of ancestry. Another film which involves collective fictionalization – and is built around a core of dense reality, the murder of the boy Theilor by the police – is Between us and the world. By positioning itself in a very sensitive way in regard to the characters’ pain, especially the mother, pregnant with another child, the film offers a wide emotional amplitude. In relation to most of the works that deal with the killing of the Black youth, the film is based on a life perception that is neither reduced to social belonging to a place nor to subjectivity, because it links existence to a certain capacity to dream, to project futures and to emotionally express events. Yet, it is not a film detached from the reality in which it is made, for the limits and oppressions are all there, permeating the characters. It is a powerful film because it puts all these forces in confrontation, without flattening the experience. The white death of the Black wizard brushes history against the grain by summoning a rare archival 2. T.N.: Cabeçabol, also known as Jikunahaty, is a sport created by the Pareci people who reside in the Northwest of the state of Mato Grosso, Brazil, in which players can only touch the ball with their heads. The goal is to make the ball hit the ground on the adversary’s field.


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find: the suicide letter from Timóteo, an enslaved Black man in colonial Brazil. In the film, the letter appears in the form of captions written in archaic Portuguese, and the montage, which amasses archival material with black and white images, associated with a somber sound design, give us a feeling of opacity of the matter in question. If, on one hand, the opacity of the archival documents may apparently distance us, in time, from the experience, on the other hand, it makes us dive into the reality of a Black man whose inability to live his own subjectivity connects us to a multitude of Black men and women of present times. By dismantling racism from the historical starting point that originated it, The white death of the Black wizard discovers a space at the same time political and cinematographic, through which it makes that historical letter reappear. The session concludes with Republic, which delivers the power of Grace Passô’s body and imagination, through a film shot during social distancing. Through a simple premise, that of a woman who receives a phone call in the middle of the night, the actress and director puts forth more than a reflection on Brazil: Republic pleads for other epistemologies, and thoughts more complex than the Western ones (“a Shaman, that one…”), to free us from our exorbitant reality, and, in a piercing cry, it expresses relief with the possibility of this country being nothing but a dream. The film presents a successive game between reality and fiction leading us to the possibility that language may be a shelter for new ways of living and thinking. Specially since this country was once considered a utopian, joyful and futuristic place, a giant that, after “awakening”, revealed itself to be a monster, a devourer of lives and hopes.

Encounters, language deviations and sources of invention

In a session that brings together five short films with different themes and formats, we tried to privilege an aspect that surfaced with the utmost relevance during the encounter with the three hundred films comprising this curatorial process. If, at each viewing, we were confronted with the broad spectrum of political and social urgencies that keep breaking out all over the world, the films did not always formally match the tremor and intensity that such events seem to produce in those who made them. Contrary to a thematic selection method, we found documentary cinema as an empty or non-existent form, which, each time, needs to build practically from scratch given what motivates it. This session has great significance because it brings together works that allow themselves to be contaminated by the realities which they intend to discuss. However, they do so by producing language deviations and by considering them the source of their inventions. Against the false need for transparency, Yvy Pyte - Earth’s heart offers, in a single shot, a dive into the sacred poetry of the Kaiowá shaman Valdomiro Flores. Seen from the window of a moving car, the sunset, with all its opacity, is the only image that accompanies the shaman’s beautiful words in this precious short film. In a voice-over, Valdomiro speaks about the native territory and the Kaiowá way of living, expanding the time of the film’s brief seven-minute length, while we try to resignify the refracted rays of sunlight that fall on the extensive plain, taken over by soy plantations. This phenomenon is called the kuarahy jeguaka, the sun’s war bonnet or headdress, “our father”, according to the Kaiowá. The non-Kaiowá viewer must renounce any search


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for the full comprehension of this sacred conversation between words and images, and indulge into the lyrical experience. Untitled #6: the nouncanny, another beautiful work of montage by Carlos Adriano, places itself in the unsettling field of reflecting about madness, and builds a truly poetic film in all of its gestures. This visual poem incorporates frames from many eras of cinema, along with some photographs from the director’s personal archive, to place the viewer in the face of the precariousness from its characters mental balance, expressing cloister, anguish, madness, humanity and freedom. It is a disturbing film that touches, traverses and provokes us by the non-cerebral sophisticated use of language. Poems of Cambodia is another film by Tomyo Ito, who already integrates another session with his Under the shade of the palm tree, and which incorporates images collected within the streets and hidden places of Phnom Pehn, and readings in Khmer language. Its montage structure presents us, on one hand, a little bit of Cambodian daily life, on the other hand, it reflects about poetry, diving into the lives of ordinary women and men while surfacing with the very material of its construction. A poem is also at the origin of Pattaki, in which director Everlane de Moraes translates Cuban Virgilio Piñera’s poem to cinematic language, not only converting words and aquatic atmospheres into imagery textures, but also working on these forms in collaboration with Cuban performers. Their performances range from the most ordinary physical movements to baroque gestures that emerge from the darkness, embraced by the poem’s most inventive images. The session ends with Beautiful carnivals, a film about the death of a samba artist from the Vai-Vai’s Old Guard, a traditional samba school from São Paulo. The apparent simplicity of the images may hide the complexity of this production, which involves non-professional actors and members from more than three samba schools. What is not hidden is a formal rigor that reveals the strength and poetry emanating from the samba artists as well as the emotion generated around the death of one of these samba heroes.

Black bodies and gestures perform the world

Bite & Blow, Joãosinho da Goméa - the Candomblé king and The horse share not only the aspect of performance, but also the Black body, which through movement, dance, voice and sweat reveals a place in the world – not only in the present world, but within historical layers that, through movement, can be reassessed in the scene. The three films, each on its own way, conduct these bodies’ gestures and speeches towards such forcefulness and action. Performance, according to Leda Maria Martins, is “a place for inscribing knowledge, which is engraved in the gesture, movement, choreography (...). In synchrony, the past inhabits the present and the future, and is also inhabited by them. In this sense, performance can be a device for remembering and elaborating history through artistic expressions. In the space-time established by the body in performance, and within which it is created and transformed, it elaborates, in action, what history has engraved in it” (Martins, 2003). Such potency of historical re-elaboration is present in Stanley Albano’s mockery, in Joãozinho da Goméia’s wisdom and strength or in the dance expression in The horse. While Bite & Blow rubs salt into the wound of an old class tradition that projects itself in the cultural scene, The horse and Joãosinho da


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Goméa - the Candomblé king present the tradition of religion and its ancestry to the point of breaking what seemed unlikely (similar to what is done with the orixas’ clothing of Rio’s babalorixá), or by showing the ritual itself with unique beauty, mixing it and putting it side by side with other manifestations such as rap, funk and contemporary dance. This session refers us directly to these gestures-thoughts-memories.

Across the Atlantic: ancestry narratives and the message in a bottle

Offered as a letter in a bottle addressed to filmmaker Christopher Harris, Milena Manfredini’s On one side of the Atlantic is a very well done experiment regarding historical memory reparations which opens the session dedicated to the relations between continents, countries and Black people of the diaspora. Without forgetting the trauma and signs of colonizing violence, the film draws its strength and its place in the world from the transcendence of the aesthetic discourse articulated in text and image. Ancestry is also the body and voice of Between us, a secret and Black voices - Alakan time. The session that groups these films invites us to a two-way journey across the Atlantic. While in Between us, a secret, words guide the viewer through the teachings of the djélis in the filmmaker’s family – the director, Toumani Kouaté, is also a djéli himself – during a trip to his native country Mali, in Black voices - Alakan time, the drums of the Bloco Afro Ilú Obá de Min, from São Paulo, praise the splendor of African influence in diasporic religious and cultural experiences. Storytellers and conflict intermediaries, the djélis are the guardians of the Mandé Empire’s history. Son of a traditional lineage of those storytellers, Toumani, who resides in Brazil with his family, is summoned to return to his native country to hear one last story from his grandfather. In Between us, a secret, we follow this exciting visit, filled with affections, teachings and, by all means, stories. Toumani leads co-director Beatriz Seigner through the magic of the words spoken in front of the camera. The enchantment dwells precisely in listening. Here, the camera is, above all, an attentive ear. “Postponing the end of the world is exactly to always be able to tell one more story”, teaches us Ailton Krenak. It is necessary to listen to the stories that postpone the end. It was precisely by postponing the end of the world through orality that African traditions were preserved in music, religiousness and in the way of life of the Brazilian diasporic population. Black voices - Alakan time records the parade of this majestic influence through the streets, during São Paulo’s carnival. The film follows almost entirely the monumental parade of the Bloco Afro Ilú Obá de Min, showcasing hallucinating images of the group’s dances, songs and performances. The ethnographic recording makes room for the bodies and the narratives of struggle arising from the parade, bolstering what the viewer sees. It’s worth mentioning the beautiful tribute in honor of the 40th anniversary of the Black Unified Movement’s (Movimento Negro Unificado - MNU) foundation, when the group’s parade ends at the stairs of the Municipal Theater of São Paulo. Drums and words are invigorated in this session, by praising ancestral intelligence and its ingenious survival technology. While we are aware that this selection, although somewhat comprehensive, still fails to contemplate the complexity and richness of the documentary scene, we present this film program to the viewer. With it, we intend to engage ourselves, amid a burning


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historical scenario, in a series of struggles that, in one way or another, seek to defend worlds that are being extinguished or lives that are being sadly erased. Our intention is not aimed at preserving the past but, rather, by penetrating through the veins offered to us by certain films, to find in those places of ancestry (a word that has so often come across this essay and traversed so many films) a real aesthetic and historical difference. Something that seems ultimately new to us and points us to another future. The films in which we find such urge are not a portrait of the world or of any reality – they are precisely those that, using elements of the world, evoke something else, different, perhaps more emphatic, powerful or luminous. Along with the films here selected, we want to echo Pedro Costa (Op. cit.) when he writes: “It’s our world, and at the same time it’s very abstract. Cinema is not exactly life. It works with the ingredients of life and you organise, construct these ingredients in a manner different from life. We’re going to see them in a different light. It’s not life, but at the same time, it’s made using the elements of life, which is something very mysterious and sometimes quite beautiful”.


71 A morte branca do feiticeiro negro [The white death of the black wizard] Santa Catarina, 2020, cor/p&b, 10’ direção [director] Rodrigo Ribeiro fotografia [cinematography] Carlos Adelino, Rodrigo Ribeiro montagem [editing] Rodrigo Ribeiro, Carlos Eduardo Ceccon, Julia Faraco som [sound] Cadu Tenório, Juçara Marçal edição de som e mixagem [sound editing and mixing] Rodrigo Ribeiro, Leandro Cordeiro produção [production] Julia Faraco, Luiz Gustavo Laurindo, Rodrigo Ribeiro contato [contact] rodrigo.rbo@gmail.com

Memórias do passado escravista brasileiro transbordam em paisagens etéreas e ruídos angustiantes. Através de um ensaio poético visual, uma reflexão sobre silenciamento e invisibilização do povo preto em diáspora, numa jornada íntima e sensorial. Memories of the Brazilian slavery past overflow into ethereal landscapes and harrowing noises. Through a visual poetic essay, an intimate and sensory journey reflects on the silencing and invisibility of black people in diaspora.

Ãjâí: o jogo de cabeça dos Myky e Manoki [Ãjâí: the headball game of the Myky and Manoki] Mato Grosso, 2019, cor, 48’ direção [director] Typju Myky, André Lopes fotografia [cinematography] Typju Myky, Tamuli Myky, Napjokuwy Myky, Ujepai Myky, Kamanowy Myky, Takarauku Myky, Njãwayruku Myky, Njãsyru Myky e Mãkakoxi Myky montagem [editing] Typju Myky, André Lopes e Léo Fuzer som [sound] Kajowy Myky, Tamuli Myky, Typju Myky, Wakasi Myky e Wãtu Myky produção [production] Typju Myky, André Lopes e Renato Sztutman apoio support LISA-USP, CESTA-USP e FAPESP contato [contact] tupxi@usp.br

O Ãjãí é um jogo em que somente a cabeça pode encostar na bola. Essa prática, compartilhada por poucos povos indígenas, está presente entre as populações Myky e Manoki do MS, falantes de um idioma de família linguística isolada. Jovens indígenas do povo Myky decidem filmar pela primeira vez o seu jogo, para divulgá-lo fora das aldeias. Mas para organizar essa grande festa, seus chefes encontrarão alguns desafios pela frente. The Ãjãí is a game where only the players’ heads can touch the ball. This practice, shared by few indigenous people is present among the Myky and Manoki populations, speakers of an isolated family language. Young Myky indigenous decided to film for the first time this game and spread it outside the village.


72 Aleluia, o canto infinito do Tincoã [Aleluia, the infinite song] Bahia, 2020, cor, 67’ direção [director] Tenille Bezerra fotografia [cinematography] Tenille Bezerra, Gabriel Teixeira, Bruno Saphira montagem [editing] Tenille Bezerra e Iris Oliveira som [sound] Ana Luiza Penna produção [production] Fabiana Marques e Tiago TAO contato [contact] tenillebezerra@gmail.com

Integrante do trio vocal “Os Tincoãs”, o cantor e compositor Mateus Aleluia desenvolveu sua carreira musical entre Brasil e Angola. De volta ao Brasil por volta dos anos 2000 ele retoma o trabalho artístico em uma aclamada carreira solo. Acompanhando o processo de composição do seu segundo disco, o documentário “Aleluia, o canto infinito do Tincoã” se lança na construção de um imaginário em torno da obra e da vida do artista. Component of the vocal trio “Os Tincoãs”, the singer and composer Mateus Aleluia developed his musical career between Brazil and Angola. Back in Brazil around the 2000s he retakes his artistic production in an acclaimed solo career. Following the process of composition of his second album, the documentary “Aleluia, The Infinite Song” addresses in the construction of the imagery around the artist’s life and work.

Apiyemiyekî? São Paulo - Brasil/França/Portugal/Holanda, 2019, cor/p&b, 27’ direção [director] Ana Vaz fotografia [cinematography] Ana Vaz montagem [editing] Ana Vaz som [sound] Ana Vaz, Nuno da Luz produção [production] Ana Vaz, Anze Persin (Stenar Projects), Olivier Marboeuf (Spectre Productions), Annemiek van Gorp & Rene Goossens (De Productie) contato [contact] catarina@stenarprojects.com

Um arquivo de desenhos feitos pelos Waimiri-Atroari durante a sua primeira experiência de alfabetização compõe uma memória visual coletiva a partir do seu processo de aprendizagem, perspectiva e território, ao passo que documenta o encontro com o “homem civilizado”. A drawing archive made by the Waimiri-Atroari during their first alphabetizing experience composes a collective visual memory from their learning process, perspective and territory, while documents the encounter with “civilized men”.


73 Belos Carnavais [Beautiful Carnivals] São Paulo, 2020, cor, 16’ direção [director] Thiago B. Mendonça fotografia [cinematography] Lucas Barbi montagem [editing] Cristina Amaral som [sound] Jorge Rauli, Guile Martins produção [production] Rafael Gonzaga, Marco Escrivão, Renata Jardim, Leandro Safatle e Bebel Mendonça, Memória Viva contato [contact] memoriavivacine@gmail.com

Dadinho, um velho sambista, é levado por sua neta ao enterro de seu irmão, sambista de uma Escola de Samba rival. Neste percurso uma história de rivalidade, samba e traição emerge do passado. Dadinho, an old samba composer, is taken by his granddaughter to his brother’s funeral, composer from a rival samba school. Along this path a history of rivalry, samba and betrayal emerges from the past.

Cadê Edson? [Where’s Edson?] Distrito Federal, 2019, cor, 74’ direção [director] Dácia Ibiapina fotografia [cinematography] Victor de Melo montagem [editing] Elder Patrick e Guile Martins som [sound] Francisco Craesmeyer produção [production] Camila Machado, Dácia Ibiapina, Francisco Craesmeyer, Leonardo Feliciano contato [contact] dacia.ibiapina@gmail.com

Um filme sobre movimentos populares em defesa da moradia. Apresentando: o Estado contra os sem teto na capital do Brasil. A movie about popular movements in defense of housing. Starring: the State against the homeless in the capital of Brazil.


74 Cavalo [The horse] Alagoas, 2020, cor, 85’ direção [director] Rafhael Barbosa e Werner Salles fotografia [cinematography] Roberto Iuri montagem [editing] Werner Salles e João Paulo Procópio som [sound] Simone Dourado produção [production] Adriana Manolio contato [contact] rafhaelbarbosa@gmail.com

Envolvidos num processo artístico, sete jovens dançarinos são provocados a um mergulho em suas ancestralidades. Involved in an artistic process, seven young dancers are provoked to dive into their ancestry.

De um lado do Atlântico [On one side of the Atlantic] Rio de Janeiro, 2020, p&b, 7’ direção [director] Milena Manfredini fotografia [cinematography] Antoine d’Artemare montagem [editing] Saulo Martins produção [production] Milena Manfredini contato [contact] milenamanfredini@ gmail.com

De um lado do Atlântico trata-se da primeira de uma série de filmes nos quais um diálogo é proposto entre a cineasta Milena Manfredini e seus referenciais afetivos e artísticos. São filmes de contato nos quais a realizadora lança ao mar cartas imagéticas numa tentativa de borrar barreiras geográficas, de finitude terrena e de temporalidade. Este lançamento marítimo destina-se ao também cineasta Christopher Harris. On one side of the Atlantic is about the first of a series of movies where a dialogue is proposed between the filmmaker Milena Manfredini and her artistic and affective references. These are movies where the director spears on the sea letters in an attempt to blur geographical, earthly finite and temporal barriers. This release is also destined towards the filmmaker Christopher Harris.


75 Entre nós e o mundo [Between us and the world] São Paulo, 2019, cor, 17’ direção [director] Fabio Rodrigo fotografia [cinematography] Rodolfo Figueiredo montagem [editing] Caroline Neves som [sound] Juliana Santana, Henrique Gentil e Luana Santos produção [production] Jorge Guedes, Cinegrama Filmes contato [contact] fr.apdosantos@gmail.com, cinegramafilmes@cinegramafilmes.com.br

Erika teve um de seus filhos, Theylor de 16 anos, recentemente assassinado em uma abordagem policial e está preocupada com o outro, Nicolas, de 17, que segue vivendo no mesmo bairro. Erika está grávida. Medo, dor e felicidade se misturam demais na periferia de São Paulo. Erika had one of his sons, the 16 year-old Theylor, recently murdered on a police approach and is concerned about her other son, Nicolas, 17, that lives in the same neighborhood. Erika is pregnant. Fear, pain and happiness mix too much at São Paulo’s outskirts.

Entre nós talvez estejam multidões [There may be crowds among us] Pernambuco/Minas Gerais, 2020, cor, 95’ direção [director] Aiano Bemfica, Pedro Maia de Brito fotografia [cinematography] Aiano Bemfica, Pedro Maia de Brito, Raphael Malta, Rick Mello montagem [editing] Gabriel Martins som [sound] Marcela Santos, Glaydson Mendes produção [production] Aiano Bemfica, Pedro Maia de Brito contato [contact] maiaapedro@gmail.com

Entre nós talvez estejam multidões propõe uma jornada imersiva junto aos sujeitos e agentes da ocupação Eliana Silva, em Belo Horizonte, durante o período eleitoral que conduz ao poder o projeto fascista capitaneado por Jair Bolsonaro. A obra é conduzida por meio dos sonhos, contradições e lembranças dos sujeitos que nela vivem, formulando assim o imaginário dessa comunidade num filme que articula-se como uma pintura mural. There May Be Crowds Among Us proposes an immersive journey with the subjects and agents from Eliana da Silva occupation, in Belo Horizonte, during the election period that drives to the power the fascist project headed by Jair Bolsonaro. The work is conducted through the dreams, contradictions and memories from their inhabitants, formulating the imagery of this community in a film that articulates itself as a mural painting.


76 Entre nós, um segredo [Between us, a secret] Rio de Janeiro/São Paulo, 2020, cor, 78’ direção [director] Beatriz Seigner e Toumani Kouyaté fotografia [cinematography] Beatriz Seigner montagem [editing] Verônica Saenz som [sound] Banouhoun Sidibé produção [production] Erica de Freitas, Beatriz Seigner e Bruna Haddad contato [contact] producao@encantamentofilmes.com.br

Entre nós, um segredo conta a história de Toumani Kouyaté que em 2014, estabelecido com sua família e vivendo no Brasil, foi surpreendido pela convocação de seu avô a retornar com urgência ao Mali, seu país natal, junto a outros mais de 40 cidadãos malineses que moravam fora, para ouvi-lo contar uma última história. Seu avô sentia a morte se aproximar e precisava passar segredos da nação para a linhagem de Djélis mais jovens, a fim de que seguissem com a tradição. Between us, a secret tells the story of Toumani Kouyaté that in 2014, established with his family living in Brazil, was surprised by his grandfather convocation to come back urgently to Mali, his home country. Together with over 40 other Malian citizens living abroad, they come back to hear him tell one last story. His grandfather felt death coming and needed to pass forward secrets from the nation to the young Djélis bloodline in order to follow their tradition.

Fartura [Abundance] Rio de Janeiro, 2020, cor, 27’ direção [director] Yasmin Thayná montagem [editing] Luana Cortes som [sound] Yasmin Thayná, Luana Cortes produção [production] Juliana Nascimento contato [contact] yasminthayna@gmail.com, julianancosta9@gmail.com

A partir da observação de imagens domésticas feitas por famílias negras de periferias e favelas cariocas, Fartura investiga as relações entre encontros familiares e a comida como elemento simbólico que não só alimenta um corpo, mas também é capaz de calibrar afetos e simbolizar rituais de vida e morte. From the observations of household images made by black peripheral families and slams in Rio de Janeiro, “Abundance” delves into the relationship between family gatherings and food as a symbolic element that nourishes not only the body, but is capable of gauge affections and symbolize rituals of life and death.


77 Fé e fúria [Faith and fury] Minas Gerais, 2019, cor, 103’ direção [director] Marcos Pimentel fotografia [cinematography] Matheus Rocha montagem [editing] Ivan Morales Jr. som [sound] Giordano Lima, Vitor Kruter, Luizinho Sant´anna, Juno Soares, Guilherme Reis edição de som e mixagem sound editing [and mixing] Pedro Durães produção executiva [production] Leo Ayres contato [contact] marcospimentel.cinema@gmail.com

Documentário que aborda os conflitos religiosos existentes em favelas e subúrbios do Rio de Janeiro e de Belo Horizonte. Fé e fúria aborda a conduta dos “traficantes evangélicos”, revelando como religião e poder caminham juntos nas periferias das grandes cidades brasileiras e alimentam a crescente onda conservadora que paira sobre o país. Documentary that raises the existing religious conflicts in slums and suburbs of Rio de Janeiro and Belo Horizonte. Faith and Fury addresses the conduct of “evangelical dealers”, revealing how religion and power go together in the peripheries of large Brazilian cities and feed the growing conservative wave that hovers over the country.

Filme de domingo [Sunday’s movie] São Paulo, 2020, cor, 28’ direção [director] Lincoln Péricles roteiro [script] Adriano Araujo, Francineide Bandeira Isaú e Lincoln Péricles fotografia [cinematography] Ronaldo Dimer e Lincoln Péricles montagem [editing] Lincoln Péricles som [sound] Lincoln Péricles produção [production] Lincoln Péricles contato [contact] astuciafilmes@gmail.com

Domingo de sol na quebrada. Um tio babão, uma mãe zika, uma criança artista. Sunny Sunday on the hood. A proud uncle, a fabulous mother and an artist kid.


78 Ingrõny, pisada forte [Ingrõny, strong stomp] Pará, 2019, cor, 76’ direção [director] Coletivo Beture de Cineastas Mebêngôkre (Kayapó) fotografia [cinematography] Coletivo Beture de Cineastas Mebêngôkre (Kayapó) montagem [editing] Ana Carvalho e Tita som [sound] Coletivo Beture de Cineastas Mebêngôkre (Kayapó) produção [production] Associação Floresta Protegida/Vídeo nas Aldeias contato [contact] simonegiovine@gmail.com

Em Pykarãrãkre, lugar da pisada forte, velhos guerreiros Mebêngôkre rememoram a aldeia mãe e as histórias dos primeiros contatos. No dia-a-dia da aldeia, atravessam e resistem, a sua maneira, às transformações do novo mundo que se apresenta. In Pykarãrãkre, place of the strong stomp, old Mebêngôkre warriors remember their mother village and the stories of their first contacts. On the village’s daily life, they go through and resist, in their own way, to the transformations of the new world that comes up.

Joãosinho da Goméa - O rei do Candomblé [Joãosinho da Goméa - The Candomblé King] Rio de Janeiro, 2019, cor, 14’ direção [director] Janaina Oliveira ReFem e Rodrigo Dutra fotografia [cinematography] Alexandre Rosa montagem [editing] Walter Madeira som [sound] Lu Brasil produção [production] Carolina Braga e Dutra Filmes contato [contact] contatodutrafilmes@gmail.com

O filme apresenta Joãosinho da Goméa como narrador principal de sua história. Com músicas cantadas por ele, performances provocadoras e arquivos diversos que ressaltam o quanto ele é importante para as religiões de matriz africana. A Rainha Elizabeth II disse que se o candomblé tivesse um rei, esse seria Joãosinho da Goméa, o Rei do Candomblé. The film presents Joãosinho da Goméia as the main narrator of the story. With songs sang by him, provoking performances and many archives that highlights how he is important to the African origin religions. The Queen Elizabeth II said that if candomblé had a king, he’d be Joãosinho da Goméia, the Candomblé King.


79 Mineiros Minas Gerais, 2019, cor, 23’ direção [director] Amanda Dias fotografia [cinematography] Amanda Dias, Caio Seixas (imagens drone) montagem [editing] Diogo Sousa produção [production] André Castro contato [contact] andre_rmc@ msn.com, amanda.azevedodias@gmail.com

Minas é o principal estado minerador do país. A mineração está na raiz, na origem, na economia e no nome de Minas Gerais. O sangue dos mineiros está na mineração. Minas is the main mining state of the country. Mining is at its roots, origin, economy and name, Minas Gerais. Miners’ blood is in the mining.

Morde & Assopra [Bite & Blow] Minas Gerais, 2020, cor, 10’ direção [director] Stanley Albano fotografia [cinematography] Raul Lansky montagem [editing] Raul Lansky som [sound] Raul Lansky produção [production] BROTA contato [contact] stanleyslaws844@gmail.com

Fui contemplada num programa de redução de danos da burguesia: um final de semana num casarão que meu avô já trabalhou! Depois de anos só cortando dobrado... a preta quer virar artista de cinema. Será que eu estraguei seu filme? I was contemplated in a damage reduction program of the bourgeoisie: a weekend on a mansion where my grandfather used to work! After years of hard work… the black girl wants to become a movie star. Did I ruin your movie?


80 Nakua pewerewerekae jawabelia [Hasta el fin del mundo] [Até o fim do mundo] [Until the end of the world] Pernambuco - Brasil/Colômbia, 2019, cor, 16’ direção [director] Juma Gitirana Tapuya Marruá e Margarita Rodrigues Weweli-Lukana fotografia [cinematography] Felipe Chamarrabi e Vaneza Vargas montagem [editing] Gurcius Gwedner som [sound] Juma Gitirana Tapuya Marruá e Felipe Chamarrabi produção [production] Juma Gitirana Tapuya Marruá contato [contact] folegovivo70@gmail.com

Realizado a partir do encontro de diferenças entre a cabilda gobernadora do Resguardo Indígena Sikuani El Merey-La Veradicta Margarita Rodriguez Weweli-Lukana e a indígena urbana, em processo de retomada cultural, Juma Gitirana Tapuya Marruá. Este vídeo foi uma tentativa ritual de sanação das dores coloniais, dessas feridas abertas que nos doem a todos, human@s e não-human@s, naturezas de Abya Yala. Realized from the encounter of differences between the counselor governor from the indigenous reserve Sikuani El Merey-La Veradicta Margarita Rodriguez Weweli-Lukana and the urban-indigenous in a cultural recovery process, Juma Gitirana Tapuya Marruá.

Nascente [Headwaters] Bahia, 2020, cor, 5’ direção [director] Safira Moreira fotografia [cinematography] Safira Moreira montagem [editing] Safira Moreira som [sound] Safira Moreira, Lucas Carvalho, Rose Juam produção [production] Safira Moreira contato [contact] safiramoreira1@gmail.com

Um rio e seus afluentes. A river and its affluents.


81 Negras vozes - Tempos de Alakan [Black voices - Alakan Time] São Paulo, 2020, cor, 41’ direção [director] Beto Brant fotografia [cinematography] Alice Vaz, Dimitre Lucho, Domenica Guimarães, Julio Andrade, Leleco Maestrelli, Matheus Brant, Rose de Paula e Thais Guisasola montagem [editing] Willem Dias som [sound] Ruben Valdes produção [production] Beto Brant contato [contact] betobrant@uol.com.br

Há 14 anos, o Ilú Obá De Min - Educação Cultura e Arte Negra promove cortejos pelas ruas de São Paulo com seu bloco afro feminino que celebra seus carnavais temáticos onde sempre uma mulher negra é homenageada, abrangendo nossa história, luta e produções negras. Nesse de 2019, entoamos “Negras Vozes” e proliferamos “Tempos de Alakan” - palavra que em yorubá significa alianças. For the past 14 years, the Ilú Obá de Min - Educação Cultura e Arte Negra promotes parades on the streets of São Paulo with its afro feminine band that celebrates themed carnivals. There’s always an homage to a black woman, embracing our history, fight and productions. In 2019, we sang “Black Voices” and spread “Alakan Time” - word that means alliances in Yoruba.

Nhemongueta Kunhã Mbaraete Goiás, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Mato Grosso do Sul, 2020, cor, 40’ direção [director] Michele Kaiowá, Graciela Guarani, Patrícia Ferreira Pará Yxapy e Sophia Pinheiro fotografia [cinematography] Michele Kaiowá, Graciela Guarani, Patrícia Ferreira Pará Yxapy e Sophia Pinheiro montagem [editing] Fábio Costa Menezes e Alexandre Pankararu som [sound] Michele Kaiowá, Graciela Guarani, Patrícia Ferreira Pará Yxapy e Sophia Pinheiro produção [production] Instituto Moreira Salles contato [contact] sophiaxpinheiro@gmail.com

A obra-processo Nhemongueta Kunhã Mbaraete é uma troca de vídeo cartas entre três mulheres indígenas e uma não indígena, sob a perspectiva afetiva, etnofilosófica e crítica perante o processo atual de isolamento social e ao universo que as permeia. The artwork-process Nhemongueta Kunhã Mbaraete is an exchange of video letters between three indigenous and a non-indigenous woman from an affective, ethnophilosophical and critic perspective towards the current process of social isolation and the universe that permeates them.


82 O índio cor de rosa contra a fera invisível: a peleja de Noel Nutels [The pink indian against the invisible beast: Noel Nutel’s battle] Rio de Janeiro, 2020, cor/p&b, 71’ direção [director] Tiago Carvalho fotografia [cinematography] Arquivo de Noel Nutels montagem [editing] Cláudio Tammela edição de som e mixagem [sound editing and mixing] Damião Lopes produção [production] Maria Flor Brazil contato [contact] bandafilmes.contato@gmail.com

Entre as décadas de 40 e 70, o médico Noel Nutels percorreu o Brasil tratando da saúde de indígenas, ribeirinhos e sertanejos e filmou suas expedições em16mm. Em 1968 foi convidado a falar sobre a questão indígena à CPI do índio, dias antes do AI5. Imagens inéditas do seu acervo e o único registro de sua voz se unem neste filme para denunciar o que ele chamou de massacre histórico contra as populações indígenas. Between the 1940s and 70s, the doctor Noel Nutel went through Brazil treating indigenous, small towns inhabitants and farmers and filmed several expeditions in 16mm. In 1968 he was invited to talk about the indigenous investigation few days before the AI5. Unpublished images from his collection and the only record of his voice come together to report what he called a historic massacre against indigenous populations.

Obatala film Minas Gerais, São Paulo, 2019, p&b, 7’ direção [director] Sebastian Wiedemann fotografia [cinematography] Sebastian Wiedemann montagem [editing] Sebastian Wiedemann som [sound] Sebastian Wiedemann produção [production] Sebastian Wiedemann contato [contact] wiedemann.sebastian@gmail.com

O corpo re-existe e insiste, pois nunca é um envoltório fechado, mas sim canal de passagem e transe entre as mais diversas dimensões espirituais (Obatala Film). Filme-devoção, filme-oferenda. Filmado na mítica Ile-Ife, cidade sagrada do povo Yorubá e fundada pelos próprios Orixás, este filme procura afirmar de modo sensorial a vertigem de entrar em relação com Obatala, orixá criador do mundo, da luz. Transe de faíscas de luz, de corpos em conexão espiritual. The body re-exists and insists because it’s never a closed wrap, but a channel of passage and trance between the most diverse spiritual dimensions. Film-devotion, film-offering. Filmed at the mythic Ile-Ife, sacred city to Yoruba people and founded by the Orishas, this movie seeks to affirm in a sensorial way the vertigo of relating to Obatala, orisha that is creator of the world and light. Trance of sparks of light, of bodies in spiritual connection.


83 Pajeú Ceará, 2020, cor, 74’ direção [director] Pedro Diogenes fotografia [cinematography] Victor de Melo montagem [editing] Guto Parente e Victor Costa Lopes som [sound] Lucas Coelho produção [production] Caroline Louise e Amanda Pontes contato [contact] pedrodiogenescine@gmail.com

Maristela está sendo atormentada por um sonho constante: uma criatura emergindo das águas do Riacho Pajeú. A estranheza e insistência do pesadelo começam a atrapalhar o seu sono e cotidiano, a procura de uma solução para seu problema, inicia uma pesquisa sobre o Riacho. Os pesadelos não param. Sonho e realidade se misturam. Pessoas próximas a Maristela começam a desaparecer. A angústia dela aumenta junto com o medo de também sumir. Maristela is haunted by a constant dream: a creature emerging from the waters of Pajeú River. The weirdness and insistence of the nightmare starts to disturb her sleep and daily life. Seeking for a solution for her problem, she starts researching about the river. The nightmares won’t stop. Dream and reality mix up. Close friends begin to disappear, agony increases, she fears she might also vanish.

Pattaki Bahia, 2019, cor, 21’ Brasil direção [director] Everlane Moraes fotografia [cinematography] Flávio Rebouças montagem [editing] Keily J. Estrada som [sound] Vitor Coroa produção [production] Gregório Rodriguez, Tatiana Monge contato [contact] everlanemoraes@gmail.com

Em um universo mítico, a água que inunda e falta, afoga e salva, ocupa o cotidiano dos habitantes locais em uma noite densa, iluminada pela lua. A maré está cheia e eles estão hipnotizados por Iemanjá, a deusa do mar. In a mythic universe, in the dense night, when the moon lifts the tide, beings trapped in the daily life of water scarcity are hypnotized by the powers of Yemaya, the goddess of the sea.


84 Poemas do Camboja [Poems of Cambodia] [កំណាព្យពីកម្ពុជា]

Minas Gerais, 2020, cor, 25’ direção [director] Tomyo Costa Ito fotografia [cinematography] Tomyo Costa Ito montagem [editing] Tomyo Costa Ito som [sound] Tomyo Costa Ito produção [production] Chheangly Yeng contato [contact] tomyocostaito@gmail.com

Uma série de poemas cambojanos conduz o olhar estrangeiro da câmera que percorre as cidades, campos e templos do país. Juntas, imagem e poesia se afetam e multiplicam seus sentidos que tocam questões sociais, ambientais e políticas. A series of Cambodian poems leads the foreign gaze of the camera through cities, fields and temples of the country. Together, image and poetry affect themselves and multiply their meanings that approach to social, environmental and political issues.

República [Republic] São Paulo, 2020, cor, 16’ direção [director] Grace Passô fotografia [cinematography] Wilssa Esser montagem [editing] Wilssa Esser som [sound] Wilssa Esser contato [contact] wilssae@gmail.com

Numa noite, uma brasileira desperta num país exausto de atos violentos. República é um curta metragem realizado em casa, no início da quarentena de 2020, no centro da cidade de São Paulo, no bairro República. One night, a Brazilian woman wakes up in a country exhausted from violent acts. Republic is a short film realized at home, in the beginning of 2020s quarantine, in the center of São Paulo, República neighborhood.


85 Sem título # 6 : O inquietanto [Untitled # 6 : The Nouncanny] São Paulo, 2020, cor, 15’54’’ direção [director] Carlos Adriano fotografia [cinematography] Carlos Adriano montagem [editing] Carlos Adriano som [sound] Carlos Adriano produção [production] Carlos Adriano/Babushka contato [contact] adriano.carlos.ca@gmail.com

À companhia de Antonin Artaud e Robert Walser, um convite ao abismo, familiar e desconhecido – unheimlich. O mistério da memória e do amor, além da alma; o inesperado da angustiante estranheza; o que retorna outrora. Laços e lapsos poéticos de um cinepoema de found footage e de um ensaio documentário, entre um filme experimental japonês (1926) e um filme industrial norte-americano (2010). An invitation to the abyss joined by the company of Antonin Artaud and Robert Walser, familiar and unknown unheimlich. The mystery of memory and love beyond the soul; unexpected and strange agony; what formerly returns. Poetic lapses and bonds from a movie poem of found footage and a documentary essay, between an experimental Japanese movie (1926) and a North American industrial movie (2010).

Sob a sombra da palmeira [Under the shade of a palm tree] [រោមម្លប់ដើមត្នោត]

Minas Gerais, 2020, cor, 17’ direção [director] Tomyo Costa Ito fotografia [cinematography] Tomyo Costa Ito montagem [editing] Tomyo Costa Ito som [sound] Tomyo Costa Ito produção [production] Chheangly Yeng contato [contact] tomyocostaito@gmail.com

Um jovem poeta cambojano retorna à sua vila natal onde seu pai cultivava arroz. O realizador, operador de câmera e amigo, é conduzido pelas palavras e pelas imagens do poeta que quer contar ao pai ausente como vai a vida. História que concede poesia e dignidade às questões políticas da terra e do trabalho. A young Cambodian poet returns to his home village where his father used to crop rice. The filmmaker, camera operator and friend, is conduced by the words and images of the poet that wants to tell his father how is life going. History that grants poetry and dignity to the political issues of land and work.


86 Território Suape [Suape land] Pernambuco, 2020, cor, 70’ direção [director] Cecilia da Fonte, Laércio Portela e Marcelo Pedroso fotografia [cinematography] Cecilia da Fonte e Marcelo Pedroso montagem [editing] Cecilia da Fonte, Laércio Portela e Marcelo Pedroso som [sound] Catharine Pimentel produção [production] Cecilia da Fonte, Laércio Portela e Marcelo Pedroso contato [contact] marcelo.pedroso@gmail.com

A chegada do complexo portuário e industrial de Suape trouxe oportunidades de negócio para as grandes construtoras e seus bairros planejados de “alto padrão” em contraste com a vida vivida na periferia e área rural do Cabo de Santo Agostinho (PE), cidade de maior vulnerabilidade para o jovem negro no Brasil. The arrival of the Suape port and industrial complex brought business opportunities for large construction companies and their planned “high standard” neighborhoods in contrast to the life in the periphery and rural area of Cabo de Santo Agostinho (PE), the most vulnerable city for the young black men in Brazil.

Topawa [Hammock] Pará, 2019, cor, 7’ direção [director] Kamikia Kisedje e Simone Giovine fotografia [cinematography] Kamikia Kisedje, Simone Giovine montagem [editing] Zrinka Ivanko som [sound] Simone Giovine produção [production] Associação Parakanã Tato’a/ TNC, Tucum contato [contact] producaomingugu@gmail.com

As redes de tucum, o primeiro contato com os brancos. As mulheres Parakanã tecem os fios da sua história. Tucum’s hammocks were the first contact with white people. The Parakanã women weave the strings of their history.


87 Trindade Minas Gerais, 2020, cor, 28’ direção [director] Rodrigo R. Meireles fotografia [cinematography] Rodrigo R. Meireles montagem [editing] Silnara Faustino, Rodrigo R. Meireles som [sound] Márcio Zaum produção [production] Marcelo Lin, Marco Antonio Pereira, Joffre Faria Silva, Abdução Filmes contato [contact] rodrigomeireles1987@gmail.com

Trindade ouve os ecos da escravidão desde menina. Agora, é ela quem canta. Trindade hears the echoes of slavery since she was a kid. Now, she sings.

Xandoca Mato Grosso, 2019, cor, 13’ direção [director] Takumã Kuikuro e Davi Marworno fotografia [cinematography] Takumã Kuikuro montagem [editing] Takumã kuikuro som [sound] Takumã kuikuro produção [production] Takumã Kuikuro contato [contact] 66-98131-2558

A anciã Indígena do povo Karipuna, dona Alexandrina, também conhecida por Xandoca, conta um pouco da sua história e da aldeia Santa Isabel, Terra Indígena Uaça, no município de Oiapoque, no Amapá. Um documentário de Takumã Kuikuro e Davi Marworno. The ancient woman from the Karipuna people, lady Alexandrina, known as Xandoca, tells a little about her story and the Santa Isabel village, Indigenous Land Uaça, in the town of Oiapoque, in Amapá. A documentary by Takumã Kuikuro and Davi Marwono.


88 Yaõkwa - Imagem e memória Pernambuco, Mato Grosso, 2020, cor, 21’ direção [director] Rita Carelli e Vincent Carelli fotografia [cinematography] Tiago Campos Torres; Altair paixão e Vincent Carelli (imagens de arquivo) montagem [editing] Tiago Campos Torres som [sound] Wallace Nogueira produção [production] Margareth, Olivia Sabino e Vídeo nas Aldeias contato [contact] videonasaldeias@gmail.com

O Vídeo nas Aldeias realizou com os índios Enawenê Nawê, durante quinze anos, extensos registros do Yaõkwa, seu mais longo ritual, em que os mestres de cerimônia puxam, durante sete meses, uma miríade de cantos, afim de manter o equilíbrio do mundo terreno como mundo espiritual. Neste filme, outros quinze anos mais tarde, os Enawenê Nawê reencontram essas imagens e, com elas, parentes falecidos, costumes que caíram em desuso e preciosos cantos rituais. Video In The Villages realized with the Enawenê Nawê indigenous people, during fifteen years, extensive records of Yaõkwa, their longest ritual, in which masters of the ceremony sing, for seven months, a myriad of songs in order to maintain the balance of the earthly and spiritual world. In this film, fifteen years later, the Enawenê Nawê rediscover these images and, with them, deceased relatives, habits that got disused and precious ritual songs.

Yvy Pyte - Coração da Terra (Guaiviry) [Earth’s Heart] Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, 2019, cor, 7’ direção [director] Genito Gomes e Johnn Nara Gomes fotografia [cinematography] Genito Gomes, Johnn Nara Gomes, Luciana de Oliveira e Paulo Nazareth montagem [editing] Arthur Bonani de Oliveira Paiva som [sound] Ana Carvalho, Genito Gomes e Valmir Gonçalves Cabreira produção [production] Luciana de Oliveira contato [contact] anetetekaiowa@gmail.com

Curta experimental que propõe um mergulho lírico nas palavras sagradas do rezador Valdomiro Flores sobre o território originário e o modo de ser Kaiowá, a partir de imagens do fenômeno do kuarahy jeguaka (o cocar ou enfeite de cabeça do Sol). This experimental short film proposes a lyrical plunge into the sacred words of the shaman Valdomiro Flores about the original territory and the traditional way of being Kaiowá indigenous people (Mato Grosso do Sul/Brazil) elaborated from a set of images of the phenomenon of kuarahy jeguaka (head ornament of the Sun).


sessĂľes especiais special screenings



91 #eagoraoque [#andnowwhat] São Paulo, 2020, cor, 70’ direção [director] Jean-Claude Bernardet e Rubens Rewald fotografia [cinematography] Andre Moncaio montagem [editing] Gustavo Aranda som [sound] João Godoy produção [production] Simone Hernández e Emily Hozokawa contato [contact] rrewald@gmail.com

É possível mudar as coisas? Como agir politicamente? E agora, o que fazer? Um intelectual e suas contradições. Is it possible to change things? How to act politically? What do we do now? An intellectual and his contradictions.

A flecha e a farda [The arrow and the uniform] São Paulo, 2020, cor, 85’ direção [director] Miguel Antunes Ramos fotografia [cinematography] Ernesto de Carvalho montagem [editing] Luisa Lanna e Miguel Antunes Ramos som [sound] Bruno Vasconcelos produção [production] Angelo Ravazi contato [contact] miguelar2@gmail.com

Cinquenta anos depois de sua feitura, reaparece a filmagem da formatura da primeira e única turma da Guarda Rural Indígena. Em 1970, oitenta indígenas marcharam, fardados, no pátio de uma delegacia, para a cúpula do regime militar. Cinquenta anos depois, o filme busca estes guardas - seus corpos, suas histórias, suas memórias. As fraturas, os silêncios, aquilo que permanece e aquilo que se perde na violenta história brasileira. Fifty years after it was recorded, the footage of the graduation of the first and only class of the Indigenous Rural Guard reappears. In 1970, eighty indigenous marched, in uniform, in the courtyard of a police station, to the leadership of the military dictatorship. Fifty years later, the film seeks out these guards - their bodies, their stories, their memories. Fractures, silences, what remains and what is lost in violent Brazilian history.


92 Amador [Amateur]                 SESSÃO HOMENAGEM Minas Gerais, Goiás, 2020, cor/p&b, 81’ direção [director] Cris Ventura fotografia [cinematography] Cris Ventura montagem [editing] Cris Ventura som [sound] Cris Ventura produção [production] Cris Ventura contato [contact] crisventura7@gmail.com

Vidigal compositor, cantor e performer, vivia entre as ruas do baixo centro belorizontino, onde faleceu após uma crise convulsiva e pela falta de atendimento. As filmagens interrompidas pela distância geográfica, pretendiam retratá-lo apenas em condições de sobriedade, valorizando sua inteligência criativa. Vidigal, singer, composer and performer, used to live downtown in the streets of Belo Horizonte where he passed away after the lack of help following a convulsive crisis. The filming, interrupted by geographical distance, tried to portray him in conditions of sobriety valuing his creative intelligence.

Apyãwa (Tapirapé) Mato Grosso, 2019, cor, 35’ direção [director] Paula Grazielle Viana dos Reis fotografia [cinematography] Vandimar Marques Damas, Paula Grazielle Viana dos Reis, Itandehuy C. Demesa montagem [editing] Paula Grazielle Viana dos Reis, Luís Otávio Mendonça de Oliveira som [sound] Vandimar Marques Damas; Paula Grazielle Viana dos Reis, Itandehuy C. Demesa produção [production] Vandimar Marques Damas; Paula Grazielle Viana dos Reis contato [contact] paulaviananp@ gmail.com

No médio rio Araguaia, no tempo das chuvas, o filme-ritual entre os índios Apyãwa (Tapirapé) e Inỹ se concretizou em meio à escassez dos principais alimentos para o rito Iraxao Rarywa, devido à seca dos córregos e das roças presentes no território Tapi’itãwa situado na Terra Indígena Urubu Branco. O filme apresenta a força do parentesco indígena e da cosmopolítica amazônica, em plena era do Antropoceno. In the middle of the Araguaia River, on rainy season, the film-ritual between the Apyãwa (Tapirapé) and Inỹ indians took place among the scarcity of the main food for the ritual Iraxao Rarywa, owing to the drought of the streams and crops in the Tapi’itãwa territory, located at the Indigenous Lands of Urubu Branco. The movie presents the strength of the indigenous kinship and Amazonian cosmopolitics in the age of Anthropocene.


93 Corpoterritório [Bodyterritory] Rio de Janeiro, 2019, cor, 22’ direção [director] Maria Lutterbach e Elisa Mendes fotografia [cinematography] Elisa Mendes montagem [editing] Maria Lutterbach som [sound] Leonardo Kraus produção [production] Maria Lutterbac contato [contact] marialutterbach@gmail.com

As vozes das ativistas Célia Xakriabá, Sônia Guajajara e Watatakalu Yawalapiti guiam o olhar para a 1ª Marcha das Mulheres Indígenas, realizada em Brasília em agosto de 2019. Corpoterritório é um retrato desse encontro inédito que reuniu 2 mil mulheres indígenas de mais de 100 diferentes povos nas ruas da capital do país, revelando o protagonismo delas no movimento indígena hoje. The voices of the activists Célia Xakriabá, Sônia Guajajara and Watatakalu Yawalapiti guide the point of view at the 1st Indigenous Women March, realized in Brasília in August 2019. Bodyterritory is a portrait of this unprecedented encounter that got together 2 thousand indigenous women and over 100 different communities on the streets of the country’s capital, revealing their power on the indigenous movement today.

É rocha e rio, Negro Leo [Riverrock] São Paulo, 2020, cor, 152’ direção [director] Paula Gaitán fotografia [cinematography] Lucas Barbi montagem [editing] Paula Gaitán som [sound] Rubem Valdez produção [production] Vitor Grazie contato [contact] paulagitan@gmail.com

Um encontro com o músico compositor, poeta, sociólogo e pensador Negro Léo. Ele articula ideias sobre o desenvolvimento da música, sobre a política brasileira e internacional, sobre a ascensão das religiões neopentecostais e sobre a obsessão pelas redes sociais, em paralelo com sua própria história de vida. Riverock is and encounter with the poet, sociologist, musician and composer Negro Léo. He articulates ideas about music evolution, international and Brazilian politics, the ascension of neopentecostal religions and the obsession with social media, in parallel with his own life story.


94 Favela é Moda [Favela is Fashion] Rio de Janeiro, 2019, cor, 75’ direção [director] Emílio Domingos fotografia [cinematography] Léo Bittencourt montagem [editing] Jordana Berg som [sound] Bruno Espírito Santo produção [production] Leticia Monte e Lula Buarque de Hollanda contato [contact] contato@osmosefilmes.com.br

Favela é Moda acompanha o cotidiano e o desenvolvimento de jovens modelos de uma agência localizada na favela do Jacarezinho, Zona Norte do Rio de Janeiro. A partir do conceito Moda Resistência, questionam o padrão estético no mercado da moda no Brasil. Favela is Fashion follows the routine and growth of young models from an agency located at the Jacarezinho slum, north side of Rio de Janeiro. From the concept of fashion resistance they question the aesthetic standards of the fashion industry in Brazil.

Guahu’i guyra kuera [Encanto dos pássaros] [Enchantment of birds] Mato Grosso do Sul, 2020, cor, 12’ direção [director] Anailson Flores, Beibity Flores, Cledson Amarília Ricarte, Jhonlailson Gomes Almeida, Jhon Malison, Jomalis Franco Gomes, Wagner Gomes fotografia [cinematography] Cledson Amarília Ricarte, Jomalis Franco Gomes montagem [editing] Anailson Flores, Beybity Flores, Wagner Gomes, Jomalis Franco Gomes, Layla Braz, Luisa Lanna som [sound] Cledson Amarília Ricarte, Jomalis Franco Gomes produção [production] Luciana de Oliveira, Layla Braz, Guilherme Brant, Luisa Lanna contato [contact] anetetekaiowa@gmail.com

Uma caçada de passarinhos é oportunidade para dar a ver nesse curta, a situação de escassez no tekoha onde a exígua mata rodeada pela monocultura do agronegócio não provê as espécies e as condições de caça. É, também, acontecimento que irrompe na lógica sagrada da vida cotidiana para descortinar o encantamento, respeito, poesia e a arte da afirmação da vida por jovens que insistem em experimentar o risco do ponto de vista dos pássaros. A bird hunt is an opportunity to show in this short film, the situation of scarcity in the tekoha where the small forest surrounded by the monoculture of agribusiness does not provide the species and the hunting conditions. It is an event that breaks out in the sacred logic of everyday life to reveal the enchantment, respect, poetry and the art of life affirmation.


95 Gyuri Pernambuco, 2019, cor, 87’ direção [director] Mariana Lacerda fotografia [cinematography] Pio Figueiroa, Marcelo Lacerda montagem [editing] Paula Mercedes som [sound] Gustavo Fioravante produção [production] Carol Ferreira, Luiz Barbosa, Marcia Vaz contato [contact] laneto@gmail.com

Gyuri traça uma linha geopolítica improvável entre uma aldeia húngara (a pequena cidade de Nagyvarad) e a Terra Indígena Yanomami, na Amazônia Brasileira. Isso se dá através da história de vida de Claudia Andujar. Judia, sobrevivente da segunda guerra mundial, Claudia perdeu toda sua família em campo de concentração nazista. Exilada no Brasil, dedicou sua vida à salvaguarda dos povos Yanomami. Gyuri traces an improbable geopolitical line between a Hungarian village (the small town of Nagyvarad) and the Yanomami Indigenous Land, in the Brazilian Amazon. That occurs through Claudia Andujar’s life story. Jewish, a survivor of the second world war, Claudia lost her entire family in a Nazi concentration camp. Exiled in Brazil, she dedicated her life to safeguarding the Yanomami people.

Makota Valdina Minas Gerais/Bahia, 2019, cor, 52’ direção [director] César Guimarães e Pedro Aspahan fotografia [cinematography] Pedro Aspahan montagem [editing] Pedro Aspahan som [sound] Guilherme Brant produção [production] César Guimarães contato [contact] pedroaspahan@gmail.com

Makota Valdina, mametu nkisi do Candomblé de Angola no Terreiro Nzo Onimboya, em Salvador. Desde os anos 1970 até sua recente passagem, foi figura central na história brasileira das lutas em defesa das religiões de matriz africana, dos direitos das mulheres e das populações negras. Nesse filme ela narra sua história de vida, a relação entre a cosmologia do Candomblé, plantas, elementos da natureza, trabalhos de cura, aprendizado e cantos. Makota Valdina was a mametu nkisi (mãe de santo/afro brazilian shaman) of Angola’s Camdomble at the Terreiro Nzo Onimboya in Salvador. Since the 1970s until her recent passing away, she was a central figure in the struggle for the defense of African religions, black populations and women’s rights. In this film she tells her life story, the relationship between Candomble’s cosmology, plants, nature, healing work, knowledge and chants.



fórum de debates:

seminário, masterclass, lançamento, sessões comentadas, entrevistas e júri

forum: seminar, masterclass, release, debates, interviews and jury



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seminário

Esta terra é a nossa terra 23 a 26 de novembro | 15h às 17h30 [online]

O seminário Esta terra é a nossa terra propõe atualizar as discussões a respeito das diversas lutas pela terra – pelo direito à terra, pela terra que nos é de direito ancestral, direito ao corpo enquanto primeira terra que habitamos e sobre a impossibilidade de justiça social sem que todos tenham um chão, e teto, para viver. A partir das discussões suscitadas pelos filmes que compõem a mostra homônima e pela realidade cada dia mais acre vivenciada pelos que sabem que sem a terra não são – povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, camponeses, migrantes, trabalhadoras e trabalhadores pobres das metrópoles brasileiras – convidamos lideranças atuantes e inspiradoras para compartilhar suas motivações e trajetórias nas mesas de debate do Seminário do forumdoc.bh.2020. A terra que somos é o que nos faz existir.

23/11: Mesa 1: Os corpos resistem pela nossa terra Alessandra Korap (liderança Munduruku) Carolina Iara (ABRAI e Loka de Efavirenz) Sandra Silva (Associação N’golo) mediação: Roberto Romero 24/11: Mesa 2: As lutas existem pela nossa terra Cacique Babau (Terra indígena Tupinambá de Olivença) Joelson Ferreira (Teia dos Povos/MST) Preta Ferreira (artista e ativista no MSTC) mediação: Ewerton Belico 25/11: Mesa 3: Nossa terra é espaço e sonho David Karai Popygua (Terra Indígena Jaraguá) Maria Ricarda (Quilombo Campo Grande) Poliana Sousa (MLB) mediação: Milene Migliano 26/11: Mesa 4: Imagens e lutas pela terra Carina Aparecida (realizadora Eles sempre falam por nós) Eliel Benites (ASCURI) Júlia Ferreira da Silva (Quilombo dos Luízes) Pedro Severien (Movimento Ocupe Estelita) mediação: Carla Italiano


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mini-currículos

Alessandra Korap É liderança indígena Munduruku de Itaituba, Pará, na Amazônia. Reconhecida defensora dos direitos das mulheres, dos povos indígenas e do meio ambiente, ela tem usado sua voz para denunciar abusos de direitos humanos resultantes de megaprojetos de infraestrutura em áreas de proteção na região amazônica, como o Projeto Hidrelétrico São Luiz do Tapajós, Portos e a ferrovia Ferrogrão. Alessandra Korap foi a primeira mulher a coordenar a Associação Indígena Pariri, que representa as famílias de dez aldeias da região do Médio Tapajós em Itaituba. Cacique Babau Cacique Babau, da aldeia Serra do Padeiro, na Terra Indígena Tupinambá de Olivença (sul do Estado da Bahia), é uma das lideranças de maior destaque nacional e internacional pela sua atuação na denúncia das violações de direitos indígenas. Está inserido no Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos (SDH/PR) por ter sido preso quatro vezes ilegalmente e sofrer constantes ameaças de morte. Recebeu a Comenda Dois de Julho (ALBA), a medalha Chico Mendes de Resistência bem como o título de Doutor Honoris Causa da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Carina Aparecida Tem seus trabalhos em audiovisual e fotografia inspirados na relação memória, identidades e protagonismo das mulheres. Viveu na Venezuela, onde realizou trabalhos jornalísticos e documentais para o canal internacional TeleSUR. Recentemente, foi uma das participantes da residência artística “Estética da Autonomia e Feminismos”, na cidade de São Cristóbal de Las Casas, México, onde também buscou referências sobre a relação arte - ancestralidade. É neta da Sinhana, parteira e benzedeira. Filha da Maria Catarina, faxineira. Estuda cinema escutando “causos” e contemplando sonhos. Carla Italiano Pesquisadora em cinema e programadora de mostras e festivais. Doutoranda em Comunicação Social pelo PPGCOM-UFMG, com mestrado pela mesma instituição. Foi co-curadora das mostras Retrospectiva Helena Solberg (CCBB, 2018) e Jonas Mekas (forumdoc 2013), entre outras. É uma das organizadoras do forumdoc.bh e integrante da programação de longas-metragens do Olhar de Cinema de Curitiba. Natural do Recife e residente em Belo Horizonte. Carolina Iara Carolina Iara de Oliveira é travesti, intersexo e negra. É escritora, poetisa, mestranda em Ciências Humanas e Sociais na Universidade Federal do ABC (UFABC), assistente de políticas públicas da prefeitura de SP. Membra da ABRAI (Associação Brasileira de Intersexos), da coletiva Loka de Efavirenz e pré-co-candidata pela Bancada Feminista do PSOL à vereança em São Paulo, onde nasceu e desde criança presenciou a luta


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por moradia e urbanização na Zona Leste da cidade, protagonizada por mulheres que a inspiraram a lutar pelos direitos de existir. David Karai Popygua Nascido na Terra indígena do Jaraguá, é da etnia Guarani Mbya. Professor desde 2008 na escola estadual Djekupe Amba Arandy na TI Jaraguá. Como liderança já participou de lutas nas organizações indígenas ABIP, Comissão Guarani Yvy Rupa, foi presidente do Conselho estadual dos povos indígenas de São Paulo. Atualmente em trabalho de fortalecimento espiritual, busca estar mais juntos aos líderes espirituais para se fortalecer espiritualmente e poder passar sua cultura para seus filhos e aos mais jovens da comunidade Eliel Benites Da etnia Kaiowá,é mestre em educação pela Universidade Católica Dom Bosco/UCDB e Doutorando em Geografia pela Universidade Federal da Grande Dourados/UFGD. É membro da Associação de Realizadores Indígenas (ASCURI) e integra o movimento dos Professores Indígenas Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul. Desde julho de 2013 atua como professor efetivo no Curso da Licenciatura Intercultural Teko Arandu da UFGD. Ewerton Belico É curador, professor, roteirista e diretor. É um dos curadores do forumdoc.bh e foi curador do Festival Internacional de Curtas-Metragem de Belo Horizonte e do Fronteira - Festival Internacional de cinema documentário e experimental de Goiânia. Curador da Mostra CineTropicália, realizado no SESC/Palladium, em Belo Horizonte. Foi professor da Escola Livre de Cinema. Foi co-roteirista de Subybaya, dirigido por Leo Pyrata, e co-roteirista e co-diretor do longa Baixo Centro, lançado na XXI Mostra de Cinema de Tiradentes, no qual foi vencedor do prêmio de melhor longa-metragem concedido pelo júri da crítica. Joelson Ferreira de Oliveira Um dos fundadores do MST na Bahia, foi um dos criadores e é um dos coordenadores da Teia dos Povos, rede agroecológica, programa de educação ambiental e de economia solidária, articulando assentamentos, comunidades quilombolas, camponeses, e mestres da tradição oral. Morador do Assentamento Terra Vista, há 20 anos vem construindo o projeto de transição agroecológica no assentamento. Vem desenvolvendo o trabalho de militância em defesa da terra, do território e da agroecologia no estado da Bahia. Júlia Ferreira da Silva Júlia Ferreira da Silva, 86 anos, é uma das matriarcas do Quilombo dos Luízes. Tem uma trajetória como liderança comunitária, também em Brasília, onde atuou em grupo de mães, Conselho Tutelar, construção de moradias e creche. Artesã e escritora, escreveu o livro “Mulheres do Brasil”, em que relata a vida e trabalho de diversas mulheres. Uma


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parte do livro, intitulada “Eu, mulher”, é dedicada a sua própria história, resgatando memórias e acontecimentos de sua vida. Ama plantar e todos os dias conversa com suas plantas, que habitam todos os cantos da casa. Milene Migliano Pós-Doutoranda no Grupo de Pesquisa Juvenália: Culturas Juvenis: comunicação, imagem, política e consumo, no PPGCOM ESPM-SP e professora na UNIP, onde integra o Grupo de Pesquisa Urbesom: Culturas Urbanas, Música e Comunicação, em São Paulo. Doutora em Arquitetura e Urbanismo pelo PPGAU/UFBA, mestre em Comunicação pelo PPGCOM /UFMG, onde graduou-se jornalista com formação em cinema. Participa da Filmes de Quintal, desde 2003 na equipe do forumdoc.bh. Membro do Grupo de Estudos em Experiência Estética: Comunicação e Arte, da UFRB, lançou o primeiro livro, “Entre a praça e a internet: outros imaginários políticos possíveis na Praia da Estação”, 2020, Editora UFRB. Integra o GT Infâncias e Juventudes da CLACSO. Ricarda Maria Gonçalves da Costa Nasceu há 70 anos na roça a luz de lamparina em uma casa de taipa coberta por sapé, já na condição de sem-terra. Aos 13 anos, os pais lavradores resolvem-se mudar para o ABCD, no êxodo rural dos anos 60. Trabalhou em metalurgia, associou-se ao sindicato, sua escola política em plena ditadura militar, onde entendeu o mundo do trabalho e do trabalhador participando de grandes greves. Depois de 30 anos pode comprar um terreno próximo à área rural de São José dos Campos, onde ficou 10 anos, mas a vontade de voltar para a roça continuava existindo, imensa. Foi quando decidiu partir para Campo do Meio, integrando o MST há 18 anos. Pedro Severien Realizador audiovisual, professor, pesquisador e ativista. Possui mestrado em Produção de Cinema e Televisão (Universidade de Bristol) e Comunicação (UFPE). Participou da realização de uma série de filmes coletivos engajados na luta pelo direito à cidade no Recife junto a movimentos sociais como o Ocupe Estelita, e conduz processos pedagógicos em roteiro, direção, documentário e a relação entre estética e política. Realizou diversos curtas-metragens, entre eles, Canção para minha irmã (2012) e Loja de Répteis (2014). Em longas-metragens, é diretor da ficção Todas as cores da noite (2015) e codiretor do documentário Onde começa um rio (2017). Poliana Souza Mãe da Luana e do Pedro, moradora da ocupação Eliana Silva na região do Barreiro. É militante e dirigente nacional do MLB - Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas, e membro do diretório estadual da Unidade Popular - UP. Feminista, coordenou a primeira ocupação de mulheres da América Latina, a ocupação Tina Martins, hoje casa de referência. Educadora popular, dedica-se à educação de jovens e adultos nas periferias e também junto às creches das comunidades. Em 2020 é candidata à vereança em Belo Horizonte pelo partido Unidade Popular.


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Preta Ferreira Janice Ferreira, a Preta, é multiartista, comunicadora inata e de formação. Na adolescência, veio da Bahia para São Paulo e, desde cedo, trabalhou para ajudar na complementação da renda familiar. Formada em publicidade, consolidou sua carreira na produção cultural. É também a autora e intérprete do single Minha Carne. Na Ocupação 9 de Julho, Preta organiza eventos culturais e socioeducativos, desde pesquisas acadêmicas, laboratórios, oficinas, shows e ações de saúde e lazer. Roberto Romero É etnólogo e documentarista. Doutorando em Antropologia Social pelo Museu Nacional (UFRJ) e membro do Núcleo de Antropologia Simétrica (NAnSi). Integra a Associação Filmes de Quintal e colabora com o forumdoc.bh desde 2009. Foi assistente de direção do longa “Yãmĩyhex: as mulheres-espírito” (2019) e co-dirigiu “Nũhũ yãg mũ yõg hãm: essa terra é nossa!” (2020). Sandra Maria da Silva Andrade Sandra Maria da Silva Andrade, nasceu na comunidade quilombola Carrapatos da Tabatinga, Bom Despacho-MG. Em mais de 40 anos de ativismo na causa quilombola, é uma das lideranças mais ativas no estado, sendo uma das fundadoras da N’GOLO Federação das Comunidades Quilombolas de Minas Gerais. Integra também a CONAQ Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas como coordenadora executiva e coordenadora do núcleo de mulheres. Sandra enfatiza a importância da luta pelos direitos das mulheres, compondo a AMNB - Articulação de Mulheres Negras Brasileiras e o Mulheres no Campo.



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masterclass

O filme ensaio e as margens entre as imagens Masterclass com joana pimenta 28 de novembro | 16h [online] Nos filmes As Figuras Gravadas... e Um Campo de Aviação, Joana Pimenta trabalha o filme-ensaio como uma forma possível de etnografia sensorial. Ocupam-se temporariamente diferentes geografias e territórios, que são posteriormente reconstruídos a partir da memória dos espaços reais e através de pequenas maquetes, dentro das quais se filma. Será discutido aqui esse movimento de ocupação de um território real e a sua transferência para um território imaginado, reconstruído dentro de casa para um espaço de cinema, e técnicas de construção de espaços através de maquetes, iluminação a partir de materiais quotidianos e reinventados, escalas de som, inserção de texto e trabalho com legendagem de sons. Num segundo momento, olha-se para esse movimento de transferência proposto pela etnografia sensorial quando entra numa rota de colisão com a proposta de etnografia da ficção, de Adirley Queirós. Adirley e Joana colaboraram em dois filmes recentemente, os longas Era Uma Vez Brasília e Mato Seco em Chamas. Para Era Uma Vez Brasília, a direcção de actores proposta por Adirley era aplicada também à direcção de fotografia, com personagens e jogos de imagem propostos para chegar nos enquadramentos do filme. “Aterrei em Brasília, a pedido do Adirley, como uma alienígena do passado que só trazia com ela uma Bolex de 16mm, uma máquina de polaroid, e um pequeno gravador de áudio. Umas semanas depois, agarrei no material colectado nessas semanas perdida na cidade, e segui para Ceilândia, para começarmos a rodagem”. Era Uma Vez Brasília e Um Campo de Aviação foram dois filmes que foram construídos a par e passo, em diálogo – uma direção de imagens que é também uma performance e um personagem, e dois filmes que se constroem a partir das margens um do outro. Joana Pimenta é uma realizadora portuguesa. O seu filme mais recente, Um Campo De Aviação, estreou na competição internacional do 69º Festival de Cinema de Locarno, e foi exibido nos festivais de cinema de Toronto, Nova Iorque, Roterdão, CPH:Dox, Rencontres Internationales Paris – Berlin, Valdivia, Lima, Mar del Plata, Edinburgo, entre outros, e recebeu o Prémio de Melhor Filme em Competição no Zinebi ’58. O seu primeiro filme, As Figuras Gravadas Na Faca, recebeu o prémio do júri da competição nacional no Indielisboa, e o Tom Berman Award para realizador emergente do festival de cinema de Ann Arbor, e foi exibido nos festivais de Toronto, Nova Iorque, Mar del Plata, Jihlava, Taipei, VideoEx, Syros, entre vários outros. O seu trabalho de instalação


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em vídeo, filme e fotografia foi exibido no Festival Temps d’Images, National Art Gallery, Harvard Art Museums, Solar – Galeria de Arte Cinemática, Fundacion Botin, Casa Niemeyer, entre outros. Foi a directora de fotografia para a longa-metragem Era Uma Vez Brasília (Menção Honrosa no 70º Festival de Cinema de Locarno), pela qual recebeu o prémio de Melhor Direcção de Fotografia do 50º Festival de Cinema de Brasília. Está neste momento a co-realizar dois filmes de ficção com o realizador brasileiro Adirley Queirós, a curta-metragem RÁDIO CORAÇÃO e a longa-metragem Mato Seco Em Chamas. Joana doutorou-se em Film and Visual Studies and Critical Media Practice pelo Departamento de Art, Film and Visual Studies da Universidade de Harvard, onde desenvolveu filmes no âmbito do Film Study Center e o Sensory Ethnography Lab. Ensinou realização em cinema (sobretudo documentário e ficções documentais) nas Universidade Rutgers e em Harvard. É actualmente professora visitante do Departamento de Arte, Cinema, e Estudos Visuais da Universidade de Harvard, directora de estudos de doutoramento em Critical Media Practice, e directora interina do Film Study Center da Universidade de Harvard.

Foto: divulgação


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lançamento

Revista Devires – Cinema e Humanidades v. 14 n.1, jul/dez 2017 Lançamento com organizadoras e Paola Lagos Labbé 28 de novembro | 10h [online]

A revista Devires – Cinema e Humanidades, no ensejo do 24º forumdoc.bh, lança o dossiê temático “Cinema e Escritas de si”, cuja motivação é discutir as formas através das quais o cinema autobiográfico – inscrito no regime documental e com seus diversos métodos de elaboração e encenação do eu – resiste como experiência de alteridade e convoca sua vocação política. Coordenado por Roberta Veiga, Carla Italiano e Ilana Feldman, o dossiê aborda, a partir de diferentes dispositivos e contextos de autoinscrição no cinema, em artigos de autoras e autores do Brasil e de outros países, uma amostra modesta, mas confiante de que a escrita de si é também histórica. [Devires – Cinema e Humanidades magazine, on the occasion of the 24th forumdoc.bh, published the thematic dossier Cinema e Escritas de si, motivated by the forms in which autobiographical cinema – inscribed in the documentary regime and with its different methods of elaboration and staging of the self – resists as an experience of otherness and calls forth its political vocation. Coordinated by Roberta Veiga, Carla Italiano and Ilana Feldman, the dossier addresses, through different devices and contexts of self-inscription in film in articles by authors from Brazil and abroad, a modest but confident sample that the writing of oneself is also historical.]


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sessões comentadas

Encontros com realizadoras(es) da Mostra Contemporânea Brasileira sexta 20 nov 17h Encontro 1: Cinema-território Aiano Bemfica e Pedro Maia de Brito (Entre nós talvez estejam multidões) Amanda Dias (Mineiros) Cecília da Fonte, Laércio Portella e Marcelo Pedroso (Território Suape) Dácia Ibiapina (Cadê Edson?) Mediação: Victor Guimarães

sábado 21 nov 17h Encontro 2: Retratos indígenas: memória e imagens de si Ana Vaz (Apiyemiyekî?) Genito Gomes e Johnn Nara Gomes (Yvy Pyte - Coração da Terra/Guaiviry) Kamikia Kisedje e Simone Giovine (Topawa, Ingrõny - Pisada forte) Tiago Carvalho (O índio cor de rosa contra a fera invisível: a peleja de Noel Nutels) Vincent Carelli e Rita Carelli (Yaõkwa - Imagem e memória) Mediação: Renata Otto e Ruben Caixeta

domingo 22 nov 19h Encontro 3: Pelo Atlântico Negro Beatriz Seigner e Toumani Kouyaté (Entre nós, um segredo) Beto Brant (Vozes negras – Tempos de Alakan) Milena Manfredini (De um lado do Atlântico) Sebastian Wiedemann (Obatala Film) Tenille Bezerra (Aleluia, o canto infinito do Tincoã) Mediação: Luisa Lanna

segunda 23 nov 19h Encontro 4: Sobre poemas e invenções formais Carlos Adriano (sem título # 6: o inquietanto)


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Flávio Rebolças (diretor de fotografia Pattaki) Pedro Diógenes (Pajeú) Thiago B. Mendonça (Belos Carnavais) Tomyo Costa Ito (Poemas do Camboja, Sob a sombra da palmeira) Mediação: Daniel Ribeiro Duarte

terça 24 nov 19h Encontro 5: Demarcar telas Juma Gitirana Tapuya Marruá (Nakua pewerewerekae jawabelia / Até o fim do mundo) Michele Kaiowá, Patrícia Ferreira Pará Yxapy e Sophia Pinheiro (Nhemongueta Kunhã Mbaraete) Takumã Kuikuro (Xandoca) Typju Myky e André Lopes (Ãjãí: o jogo de cabeça dos Myky e Manoki) Mediação: Júnia Torres

quarta 25 nov 19h Encontro 6: Cosmologias, religião e o corpo em performance Janaina Oliveira ReFem e Rodrigo Dutra (Joãozinho da Goméia) Marcos Pimentel (Fé e Fúria) Rafhael Barbosa e Werner Salles (Cavalo) Rodrigo R. Meireles (Trindade) Stanley Albano (Morde & Assopra) Mediação: Pedro Aspahan

sexta 27 nov 19h Encontro 7: Cinema: corpo-político-periférico Lincoln Péricles (Filme de domingo) Fabio Rodrigo (Entre nós e o mundo) Juliana Nascimento (produtora Fartura) Rodrigo Ribeiro (A Morte Branca do Feiticeiro Negro) Safira Moreira (Nascente) Mediação: Fabio Rodrigues Filho


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entrevistas

Entrevistas com realizadoras(es) [disponíveis online] Sessões Especiais É Rocha e Rio, Negro Leo Paula Gaitán e Negro Leo Mediação: Carla Maia Favela é Moda Emílio Domingos. Participação: Roger Deff Mediação: Julia Fagioli A Flecha e a Farda e Gyuri Miguel Antunes Ramos e Mariana Lacerda Mediação: Paula Berbert e Eduardo Viana Vargas Esta terra é a nossa terra A classe roceira Berenice Mendes Mediação: curadoras/es da mostra Nũhũ yãgmũ yõg hãm: Essa terra é nossa! Isael Maxakali, Sueli Maxakali, Carolina Canguçu e Roberto Romero Mediação: curadorxs da mostra

Os filmes da programação estarão disponíveis de 19 a 28 de novembro de 2020 com a exceção de: Tentehar - Arquitetura do Sensível e O que Há em Ti: 19 nov 12h a 22 nov 23h59 Aleluia, o canto infinito do Tincoã: 19 nov a 23 nov 23h59 Pajeú: 22 nov 12h a 24 nov 11h59 Fé e Fúria: 25 nov 12h a 26 nov 11h59


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júri de longas metragens Henrique Borela É realizador audiovisual e curador/programador de cinema. Formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Goiás, vive e trabalha na cidade de Goiânia. É um dos criadores da Barroca Filmes e do Fronteira - Festival Internacional do Filme Documentário e Experimental. Como realizador produziu e dirigiu alguns curtas, entre eles Porfírio (2015), e também os longas Taego Ãwa (2016) e Mascarados (2020). Kênia Freitas Professora, crítica e curadora de cinema, com pesquisa sobre Afrofuturismo e o Cinema Negro. Doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Realizou a curadoria das mostras “Afrofuturismo: cinema e música em uma diáspora intergaláctica”, “A Magia da Mulher Negra” e “Diretoras Negras no Cinema brasileiro”. Atualmente, integra a equipe curatorial do IX CachoeiraDoc. Escreve críticas para o site Multiplot!. E integra o Elviras - Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema. Naara Fontinele Pesquisadora, professora, educadora e curadora de cinema. Doutora em Estudos Cinematográficos e Audiovisuais pela Université Sorbonne Nouvelle - Paris 3 e em Comunicação Social pela UFMG, com graduação em Cinema pela UFSC. Realiza projetos no âmbito da pedagogia do cinema em Paris e em Porto Velho (RO). Foi curadora da Mostra “Documentário: invenção de formas/pensamento crítico (1964-1983)“ no 19o FestCurtasBH e de duas mostras dedicadas ao documentário brasileiro no Festival États généraux du film documentaire (Lussas, França).

Júri de curtas-metragens Alberto Alvares Diretor de cinema, da etnia Guarani, nascido no MS, vive próximo à Tanguá, RJ, junto a outras famílias de seu povo. Tendo iniciado sua formação em audiovisual no Curso de Formação Intercultural de Educadores Indígenas pela UFMG, também é ator, historiador e tradutor do guarani. Idealiza, fotografa, edita, finaliza e distribui seus filmes, além de ministrar oficinas. Seus filmes têm se destacado em festivais. Os Verdadeiros Líderes Espirituais foi premiado no forumdoc.bh.2014 e A Origem da Alma (2015) selecionado para o Cachoeira.Doc. O diretor participou da mostra “Ameríndia”, dedicada a cinema de autoria indígena, realizada na Fundação Gulbenkian Lisboa, 2019. Seu longa mais recente, O Último Sonho foi premiado no Doc.Lisboa, 2020.


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Juliano Gomes Crítico e professor. Editor da Revista Cinética, onde escreve desde 2010. Publicou na Filme&Cultura, Folha, Piauí e diversos catálogos de mostras e festivais. Foi Júri do DocLisboa, Mostra Tiradentes, Cachoeira Doc e Fronteira. Leciona regularmente na AIC-Rio. Publicou sobre teatro na revista Horizonte da Cena e sobre música no catálogo do festival Novas Frequências, além de apresentar dois discos de Rômulo Fróes. Mestre em Comunicação pela UFRJ, com dissertação sobre Jonas Mekas. Dirigiu com Léo Bittencourt os curtas As Ondas (2016) e ... (2007). Maya Da-Rin Cineasta e artista visual, Maya Da-Rin estudou Cinema e História da Arte na Sorbonne Nouvelle, e cursou oficinas na Escola de Cinema e TV de Cuba. Seu primeiro longa de ficção como diretora, A Febre (2019), teve sua estreia mundial na competição internacional do Festival de Locarno, onde ganhou o Leopardo de Ouro de Melhor Ator, além do prêmio da crítica internacional FIPRESCI e do prêmio do especial do júri. Até o momento, “A Febre” já foi exibido em mais de 60 festivais internacionais e ganhou 30 prêmios, incluindo Melhor Filme nos festivais de Brasília, Biarritz, Pingyao, Indie Lisboa e Mar del Plata, e Melhor direção em Chicago e Rio.


ensaios e entrevista Essays and interview



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Os “homens verdadeiros” e o Brasil em transe >>> Tentehar - Arquitetura do sensível (Paloma Rocha e Luís Abramo, 2020) thiago b. mendonça1

Entre as décadas de 1920 e 1960 do século passado, pensadores e artistas se perguntavam “O que é o Brasil?”, num esforço generoso e coletivo de criar um projeto de país. Dos modernistas ao Cinema Novo, de Sérgio Buarque a Darcy Ribeiro, buscou-se, a partir do confronto com nossas raízes, construir uma nação para o futuro. Mas, como cantou um dia Paulinho da Viola, “tudo não passou de um sonho”. Veio o golpe de 1964 e 21 anos de ditadura, seguidas da redemocratização (um nome questionável, pois indica um retorno a algo que nunca vivemos de fato) e, após três décadas, uma nova ruptura. O jornalista Jânio de Freitas, refletindo sobre a queda de Dilma Rousseff, em artigo seminal de 2016, dizia: “Estamos na décima situação de golpe, consumado ou não, só no tempo de minha vida (...). Na décima, já seria para ter me acostumado. Nem de longe”. É este Brasil que emergiu após o golpe que Tentehar - Arquitetura do sensível, de Paloma Rocha e Luís Abramo, busca compreender. “Tentehar” é a autodenominação de um povo indígena grandioso, popularmente conhecido como Guajajara, que habita o Maranhão. Como nos explica o filme, Tentehar significa “homem verdadeiro”. São esses verdadeiros que formaram um grupo de defesa das matas do Maranhão, conhecido como “Guardiões da Floresta”. Guerreiros cumprindo a perigosa missão de proteger seus territórios, desempenhando um papel que deveria ser de todos: impedir a devastação e a destruição do modo de vida indígena. Um desses guardiões que participam do filme, Paulo Guajajara, foi assassinado algum tempo depois. O filme é dedicado à sua memória. Os Tentehar são uma espécie de coração do filme, que permite que seu sangue circule (ou escorra) por outras realidades brasileiras. O que veremos é uma polifonia de situações em regiões diversas, em um país cindido entre direita e esquerda, representados no filme por seus líderes, Jair Bolsonaro e Lula. Um dos muitos méritos deste trabalho é não aderir ou negar a priori nenhum lado, embora assuma claramente uma

1. Thiago B. Mendonça é diretor de cinema, roteirista e escreve regularmente em veículos ou colunas dedicados à crítica cinematográfica.


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visão à esquerda: é no exercício de escuta das realidades que o filme ganha corpo. É por ouvir sem preconceitos as razões do bolsonarismo e deixar que suas inconsistências apareçam por si, sem a mão pesada dos entrevistadores, e por dotar de humanidade o lado “adversário”, que o filme permite construir hipóteses sobre a ascensão da direita. E no contraponto, sem medo de apontar também contradições no campo progressista, traçar um retrato instigante de um país em transe. Não seria exagero dizer que Paloma retoma em outra chave alguns dos temas trabalhados no cinema por seu pai, Glauber Rocha: a relação entre religiosidade e política, a formação multicultural e multirracial brasileira, o transe como representação de um momento de crise profunda. E ainda, a forma como a diretora se coloca corporalmente no filme, em uma relação muito direta e por vezes provocativa com seus interlocutores, lembrando a atuação de Glauber no programa Abertura, também documentado pelo par de diretores em outra obra recente, Antena da Raça: um filme irmão de Tentehar, com procedimentos, entrevistas e imagens muito semelhantes (os dois filmes chegam a compartilhar partes diferentes de uma mesma entrevista). Em Antena da Raça o contraponto com o Brasil contemporâneo está na abertura política do final dos anos 1970 sob a ótica de Glauber e sua presença insurgente. Mas algo não flui com a mesma força de Tentehar, e desconfio que essa diferença se deva não à forma do filme, mas ao peso do tempo: um desconforto com os sonhos que não se cumpriram, diante de um presente que parece não mais dialogar com as possibilidades em aberto da redemocratização. Em um momento forte de Antena, vemos Glauber declarar que a discussão importante que precisava ser retomada no final dos anos 1970 eram as reformas de base, motivo maior do Golpe de 1964. Pois bem, mais de três décadas se passaram, a esquerda governou o país por 14 anos, e nenhuma das reformas idealizadas outrora aconteceram. Essa disfunção entre as esperanças da abertura e as promessas não cumpridas caracterizam esse período de maior liberdade, estabilidade política e mudanças tímidas dos anos 1990 e 2000. Bolsonaro é a representação mais acabada da decepção de grande parte dos brasileiros com esse futuro que não vingou. E Tentehar nos revela, a seu modo, o retrato de um país que não mais sonha. É nos espoliados de sempre, no entanto, que o filme aponta caminhos. Nos sem terra, na mãe negra e homossexual, no pai de santo, no pensador das ruas e principalmente nos indígenas, que nunca deixaram de sofrer a dor da violência concreta e cotidiana. Como afirma a liderança Sônia Guajajara no filme, hoje todos estão preocupados com o fascismo, mas para os índios, fascismo foi o que eles viveram o tempo todo. Paloma responde ao grito “a culpa não é do povo!”, endereçado a Paulo Martins (protagonista de Terra em transe), deixando que o povo narre seus confrontos. E é ele quem vai à luta. A autocrítica do intelectual não se dá pelo gesto suicida da guerrilha, como apontava Glauber, mas pela compreensão e elaboração do fracasso, organizadas de uma forma muito lúcida em Tentehar pelo escritor João Silvério Trevisan. Ele narra a paralisia da esquerda, deixando o medo devorar a alma. É no vácuo deixado por esse movimento de desistência e medo que o fascismo toma forma e poder. O corpo frágil


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de Trevisan convoca para enfrentar a encruzilhada, pois não há como fugir do aqui e agora da vida. Tentehar formaliza esse momento em suspenso, em que pouco enxergamos, tateando no ar para dar um próximo passo, talvez em falso. No seu encontro com o bolsonarismo percebe menos fascistas empedernidos do que cidadãos desencantados. Não cai na tentação de humilhá-los, expor sua estupidez. Reflete. Mas também não deixa de afirmar a simpatia pelo outro lado e passa longe do discurso torto da polarização, que cai como uma luva para a direita menos radicalizada. Não se trata de extremos, pois não há extremismo na ponta esquerda. O centro do mapa é relativo e depende de outras referências para sua localização. Nos diálogos ao longo do filme, Paloma algumas vezes afirma, mas fundamentalmente pergunta. Seu gesto de incerteza nos coloca no lugar da busca. Se não possui a ingenuidade dos loucos, não carrega tampouco a convicção dos cínicos. Há uma honestidade grande em seu caminhar no nevoeiro, sem saber ao certo se vai em direção a um futuro ou a um abismo. O que o filme aprende com os “verdadeiros” é que é preciso continuar, pois essa é a vida que temos, e é neste caminho sem fim que se tece este grande cordão invisível que une lutas, povos e memórias: uma arquitetura do sensível soprada pela sabedoria Tentehar.


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O que Há em Ti1 eduardo escorel2

Hoje, quarta–feira, 16 de setembro, dia de esta coluna ser publicada, faz exatos seis meses que um homem comum, preto, disse ao capitão reformado, entre outras coisas: “…acabou…você não é presidente mais…”. Gesto inconsequente, por certo, mas carregado de simbolismo – vindo do Haiti, mas declarando ser brasileiro, o homem diz ao atual presidente da República que seu governo terminou. Em seguida, desaparece, passando a ser chamado pela imprensa de “o haitiano”, sem ter sido identificado. A gravação da cena no portão de acesso ao Palácio da Alvorada, em 16 de março, é retomada em O que Há em Ti (2020, 16 min 29 seg), exercício refinado de linguagem e argúcia política que Carlos Adriano, o diretor, define como cinepoema. Repetida algumas vezes ao longo da trilha sonora, a sentença “você não é presidente mais” é o refrão da narrativa em que são estabelecidas conexões entre os massacres de 2005 e 2006 cometidos nas favelas de Cité Soleil, em Porto Príncipe, e a composição do governo federal, integrado, além do general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, por outros militares, que a partir de 2004 também participaram da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti – Minustah. Tropas brasileiras e de outros países atuaram mais de treze anos no Haiti, tendo sido acusadas de serem responsáveis por uma epidemia de cólera, e de terem cometido estupros e atos de violência contra estudantes e a população pobre. Uma operação militar realizada em 2005, época em que o general Augusto Heleno era o comandante da Minustah, teria cometido 63 assassinatos e causado ferimentos em outras trinta pessoas. O massacre foi objeto de denúncia feita à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão autônomo da Organização dos Estados Americanos (OEA). A gravidade das acusações referidas em O que Há em Ti e as interconexões estabelecidas com a cúpula do governo federal presidido por você sabe quem, são responsáveis, em parte, pelo impacto do filme. Decisivo para o vigor do cinepoema, porém, são a atualidade do tema, suas implicações políticas e, em especial, a forma dada ao relato, filiada ao construtivismo russo. Coerente com seus documentários anteriores, Adriano não se satisfaz com o que imagens de arquivo têm a oferecer de mais evidente. Ele vai

1. Originalmente publicado: Eduardo Escorel_Revista Piauí, 16/09/2020. Disponível em: <https://piaui.folha. uol.com.br/o-que-ha-em-ti-e-o-que-esta-por-vir/>. 2. Crítico, montador e realizador de cinema.


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adiante com maestria, escavando com delicadeza, para conseguir ver e mostrar o que está encoberto, além do que é visível ao olhar desprevenido. Em e-mail enviado a Adriano, Nicole Brenez, professora da Universidade Paris 3, historiadora e curadora, escreveu: “Seu filme merece uma palavra evidente: obra-prima. Ele vem diretamente da sua raiva, indignação, revolta – graças a todo o seu profundo conhecimento sobre imagens e a maneira de trabalhar com elas. É o que chamamos na França de “um clássico instantâneo”, uma obra humana que encapsula seu tempo com gênio e merece ser transmitida a todas as gerações enquanto a humanidade ainda existir. Normalmente seus filmes falam sobre amor; desta vez você falou sobre ódio, sobre os desastres gerados pelo fascismo e, de certa forma, você venceu a batalha das imagens com suas próprias armas contra ele. Suas armas são todo um arsenal de texturas, ritmos, relações, movimentos, que nos trazem brilhantemente o Zeitgeist de como um coração amoroso, revoltado pela injustiça e a idiocracia, não suporta e pode lutar contra com toda a energia de sua inteligência.” Agradeço a autorização de Adriano e Brenez para publicar a mensagem citada acima. Diante da precisão dessas palavras, não há mais a dizer sobre O que Há em Ti, a não ser recomendar que assistam ao filme.


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Loteamentos Clandestinos (1980)1 erminia maricato

Por entenderem que seu conhecimento é instrumento de centralização e reforço do poder instituído, através das relações formais do trabalho profissional, é que arquitetos, médicos, advogados e outros profissionais buscaram ligação com os movimentos reivindicatórios urbanos, movimentos que se fortaleceram a partir da última década nas grandes cidades brasileiras. Colocar-se a serviço da luta popular, e não do poder autocrático vigente (mas sim contra ele), significa uma ruptura ideológica dos nossos intelectuais, tradicionalmente intermediados pelo Estado em suas atividades no Brasil anterior à década de 70. Nas relações profissionais de compra e venda da força de trabalho, o arquiteto empregado nas empresas privadas ou profissional autônomo, trabalhador produtivo,2 vê excluído da clientela para quem desenha a grande maioria da população, cujo poder aquisitivo mal chega para a própria sobrevivência, como atestam, inclusive, levantamentos oficiais. Quando o cliente é o Estado, ou quando o arquiteto é empregado do aparelho administrativo, ele raramente deixa de seguir as diretrizes políticas fixadas. Muitos arquitetos que trabalham nos órgãos públicos federais, estaduais ou municipais que não estão vinculados diretamente a produção de arquitetura mas à área de planejamento, percebem que seu trabalho contribui para o fortalecimento da dominação do Estado através de planos e propostas demagógicas (desfavelamento, urbanização de favelas, etc.) cujo principal papel é de propaganda e alimentação de falsas expectativas, já que sua realização, nos raros casos em que se efetiva, não passa de gotas diante do oceano das necessidades populares. (Não estamos nos referindo a experiências individuais e isoladas, mas ao caráter político do aparelho de Estado e sua lógica geral). A nova opção ideológica significa ruptura com o conhecimento burocratizado do aparelho administrativo, ou com o conhecimento acadêmico, ou com o conhecimento profissional, determinado pelas relações de trabalho capitalista. Isto não significa que, ao se comprometer com um movimento político de massa (popular), o arquiteto abdica de seu conhecimento específico, mas sim que, com a vinculação política e ideológica 1. Originalmente publicado em Revista Módulo, Rio de Janeiro: Ed Avenir, v. 60, 1980, p. 90-94. 2. Ver a respeito O canteiro e o desenho, Sergio Ferro, Projeto Editores Associados Ltda., São Paulo, 1980.


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vai toda a cabeça, e não apenas uma parte dela, ou seja, não apenas a parte que corresponde à competência profissional. O profissional não vai apenas contribuir para o movimento com seu conhecimento, mas também vai aprender. Ali, na luta popular urbana, se aprende o que não é possível aprender em nenhum curso de pós-graduação, ou em nenhuma pesquisa acadêmica dentro da mais rigorosa cientificidade. Ali se aprende um ponto de vista contrário à prática dos gabinetes e se entende por que essa luta se faz não através do Estado, mas contra ele.3 Acompanhar o processo real de produção do espaço urbano e a luta da maior parte da população para arrancar do Estado maiores investimentos a ela destinados é, sem dúvida, indispensável, até mesmo para quem se propõe apenas a um trabalho profissional sério. As intervenções são ditadas pelas necessidades do movimento reivindicatório e pelo avanço da luta política. Um dia é preciso discutir o problema das crianças que ficam abandonadas no bairro, pois os pais saem para trabalhar. Em outro instante, discute-se o projeto da creche. Em outro instante ainda é preciso lutar junto à prefeitura para construí-la e mantê-la. A divisão de tarefas específicas não impede que todos participem de todas as decisões, o que difere profundamente da divisão de trabalho capitalista, alienada, ou do processo hierarquizado de tomada de decisões, onde cada um faz a parte que lhe compete fazer e perde a visão de conjunto, de forma a permitir a dominação centralizadora. A autogestão se opõe a este tipo de dominação.

O movimento dos loteamentos clandestinos

O movimento pela regularização dos loteamentos tende à expansão em todo território nacional, na medida em que as administrações municipais se equipem no sentido de modernizar seus cadastros de contribuintes. A tendência à modernização administrativa de controle do uso e ocupação do solo vai de encontro às formas de ocupação que se dão à margem da lei, no caso, os loteamentos que não levam em conta as exigências municipais, estaduais e federais de parcelamento do solo. Os moradores desses loteamentos começam a se organizar a partir do instante em que, terminado o pagamento das prestações relativas à compra do terreno, é impossível obter a escritura, pois na medida em que o loteamento está irregular em relação às exigências da lei, a prefeitura não o aprova e o registro de imóveis não emite a escritura de cada lote. A reivindicação, motor da ação dos moradores é a obtenção da escritura. Ela é bastante mobilizadora, já que os lotes são pagos com muito sacrifício durante anos, e a impossibilidade de conseguir a escritura, que legitima a propriedade, traz bastante insegurança à família do trabalhador, que já sofre toda a sorte de carências e pressões (instabilidade no emprego, falta de atendimento à saúde, alta do custo de vida, transporte precário e o restante do rosário, que inclui também aspectos subjetivos).

3. Ver a respeito Acumulação Monopolista, estado e urbanização: a nova qualidade do conflito de classes. In: Revista Contraponto, n. 1, Francisco de Oliveira, São Paulo, 1971.


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O drama não se restringe à dificuldade em obter a escritura, mas vai muito mais longe. A luta pela casa própria, pelo pedaço de terra na periferia das nossas grandes cidades caracteriza um verdadeiro faroeste. Empresas imobiliárias inescrupulosas, fiscais corruptos da prefeitura, advogados desonestos, preparam constantes achaques à população semi-alfabetizada, completamente ignorante de seus direitos. É comum, por exemplo, a imobiliária pedir o contrato inicial de compra e venda do lote para alterar o preço e estender o período de pagamento das prestações. É prática constante, ainda, a imobiliária retomar o terreno depois de um atraso de 2 meses na prestação sem restituir nada do que foi pago. Neste faroeste, como naquele da conquista do Oeste americano, não falta a violência institucional. O próprio Estado, através da prefeitura municipal, contribui para o massacre: alguns loteamentos, que são ilegais, que não são cadastrados para efeito de distribuição de benefícios, o são para efeito de arrecadação, pois pagam impostos. Pagam impostos com multa pelo fato de a casa ser construção irregular não cadastrada na prefeitura.4 Ainda entre o rosário de fatos que compõem esse drama, a pincelada surreal é dada pelo contato que os moradores tentam com a prefeitura: intermináveis romarias, de uma seção à outra, informações contraditórias, dias de trabalho perdidos, desânimo, impotência. A burocracia administrativa cumpre seu papel de proteger os que dominam e tornar difusa e difícil a consciência dessa dominação. As leis que regem a produção do espaço de residência da classe trabalhadora e a expansão da cidade são as da economia política (leia-se do capitalismo selvagem, entre nós) muito mais reais, concretas e determinantes do que as normas jurídicas com seus padrões acéticos de ocupação do solo, de recuos, de aberturas, de área mínima, etc. As massas migrantes, que constituem os trabalhadores urbanos mal-remunerados, não têm poder aquisitivo para comprar um lote urbanizado, tal como exige a lei, e dentro das condições do mercado imobiliário. O Estado por sua vez não arca com os custos da habitação da população cuja renda está abaixo de 5 salários mínimos (a maciça maioria da população) através da política urbana e da política habitacional, que são dirigidas de acordo com a lógica da acumulação de capital. Daí, a habitação ser produzida através de expedientes marginais mas que muito contribuem para o dinamismo da economia (manutenção de baixos salários e sem desviar os recursos «públicos da reprodução do capital»): favelas, loteamentos clandestinos com autoconstrução das casas.5 No município de São Paulo, de acordo com estimativas oficiais, já que não há levantamentos sobre o assunto, há 4000 loteamentos clandestinos. Em Salvador, declaração dos colegas arquitetos durante palestra que proferi no IAB-BA, dão como legais e cadastradas apenas 12% das construções da cidade (?!). No Rio de Janeiro já

4. Não é por outro motivo que em qualquer cidade de porte grande ou média, o setor que tem informações mais completas acerca de espaço urbano nunca é o de planejamento, mas o de finanças. Os setores de planejamento trabalham frequentemente com dados irreais. Certas áreas consideradas zonas especiais, de preservação de mananciais, estavam ocupadas (clandestinamente) antes mesmo de ser promulgada a lei de proteção dos mananciais em São Paulo. 5. Ver a respeito A produção capitalista da casa e da cidade no Brasil industrial, E. Maricato (organizadora), Ed. Alpha Omega, São Paulo, 1979.


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há um vigoroso movimento popular pela regularização de loteamentos em Nova Iguaçu, o mesmo ocorrendo na periferia de Belo Horizonte. Como atuar diante desta regra, tida como exceção pelo planejamento acadêmico ou administrativo? Quais as normas mais adequadas de ocupação do solo neste faroeste que caracteriza a urbanização no Brasil? Atualmente há uma lei que vale para todo o território nacional e que prevê a punição com prisão para o loteador clandestino.6 É a lei federal no 6766/79, de autoria do ex-senador Otto Cyrillo Lehmann, que pelo seu rigor já motivou reuniões de loteadores em nível nacional (brigas entre capitais? ). Apesar da corrupção fiscal, ela sem dúvida terá poder de coibir o loteamento clandestino em área urbana causando 2 consequências bastante sérias para o desenvolvimento das nossas cidades corn mais de 50 mil habitantes: proliferação maior (ainda) de favelas em área urbana e proliferação de loteamentos clandestinos em áreas rurais, procedimento que já é comum atualmente. A tendência de expansão horizontal das nossas cidades irá se acentuar, mesmo que novas medidas forcem a colocação dos vazios urbanos no mercado imobiliário, pois as áreas servidas de equipamentos e infra-estrutura estão cada vez mais distantes do poder aquisitivo da massa trabalhadora. As normas jurídicas, embora não tão importantes quanto as leis da acumulação de capital na produção do espaço urbano e arquitetônico são, entretanto, mais poderosas do que os profissionais da arquitetura, cujos projetos devem se submeter a padrões muitas vezes ridículos, como os fixados nos códigos de obras municipais. As normas jurídicas são instrumentos importantes dos capitais financeiro e imobiliário em que pesem serem, às vezes, contraditórias. Esses motivos são mais do que suficientes para exigir dos arquitetos uma atuação específica na luta política, travestida de jurídica, não para defender padrões abstratos e idealistas de arquitetura, mas para contribuir com a luta que se trava nos bairros populares por melhores condições de vida, contra o Estado autoritário. Não serão malabarismos através da legislação ou mesmo projetos criativos em si, que irão melhorar as condições de habitação da grande massa. Eles mudam de qualidade quando são objeto de reivindicação dos movimentos e quando contribuem para seu avanço, organização e conscientização. O debate acerca da arquitetura perde aqui sua autonomia, tão ao gosto da leitura formal idealista, para compor um todo no conjunto da luta política.

6. A lei Lehmann estabelece critérios mínimos para todo o país a respeito de: dimensões dos lotes (125 m2), frente mínima (5 m2), área destinada à circulação, equipamentos e urbanos e área livre (35% da gleba), declividade máxima permitida para o loteamento (30%), entre muitas outras exigências, documentos, que certamente dificulta a atuação do pequeno capitalista no setor.


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Nós construímos a cidade – o documentário e a luta popular por moradia, de Fim de semana (Tapajós, 1976) a Mulheres no front (Coutinho, 1996) cláudia mesquita1

Uma pesquisa realizada em São Paulo durante a década de 1970 destaca a moradia como preocupação primeira dos migrantes entrevistados.2 Com a segunda etapa de industrialização do país, a partir dos anos 50, intensifica-se o movimento migratório e as cidades se expandem. A queda do poder aquisitivo dos trabalhadores e a política habitacional “centralizadora e elitista” dos governos militares (MARICATO, 1982) fazem do morar uma incerteza. Não por acaso, em torno do lote, da casa e da infraestrutura do bairro, ressurge uma das principais frentes dos movimentos populares no Brasil, depois de uma década de fechamento autoritário. Dois filmes exibidos na mostra “Esta terra é a nossa terra” – Fim de semana (Renato Tapajós, 1976) e Mulheres no front (Eduardo Coutinho, 1996) – ajudam a situar a centralidade das questões da moradia na retomada (e consolidação) dos movimentos sociais durante o regime militar e pouco após o seu término. Eles também nos oferecem imagens preciosas de situações e trajetórias concretas envolvendo organização, liderança e luta em bairros pobres de grandes cidades brasileiras. Colocados lado a lado, ainda, Fim de semana e Mulheres no front projetam um arco de 20 anos (entre 1976 e 1996), e nos permitem observar – mesmo tendo sido realizados em cidades distintas – o processo histórico de expansão das periferias no Brasil, de proletarização do espaço (MARICATO, 1982) e de luta popular por infraestrutura urbana, central na redemocratização do país.3 Fim de semana começa por uma longa panorâmica da esquerda para a direita, descortinando a paisagem periférica de Taboão de São Bernardo do Campo. No final 1. Professora do curso de Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG, onde integra o grupo de pesquisa Poéticas da Experiência. Pesquisadora do cinema brasileiro, desenvolveu, em 2018-2019, na Universidade Federal do Ceará, a pesquisa de pós-doutorado “O presente como história estéticas da elaboração no cinema brasileiro contemporâneo”. 2. Migração, pobreza e participação do migrante na periferia de São Paulo 1975-1983, Centro de Estudos Migratórios (SADER, 1988, p. 94). 3. Também centrado nas batalhas em torno da moradia, um terceiro filme da mostra, o britânico Not a penny on the rents, do coletivo Cinema Action (1968), põe em cena uma realidade histórica distinta, a de um país central onde, como escreve Ermínia Maricato (1982), “o Estado toma para si o encargo de produzir ou financiar habitações populares a preços acessíveis”. A crise desse modelo é flagrada em ato pelo coletivo, que se engaja


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do plano, a voz de Seu Amaro, um dos pioneiros do bairro, onde foi morar em 1959, nos conduz para a cena em que ele rememora os tempos em que abria picadas e caçava tatus e nhambus no antigo “matagal” – que deu lugar às ruas e casas visíveis na imagem. A partir de 1963, “com o desenvolvimento industrial, o bairro foi crescendo e melhorando as condições”, conta Seu Amaro, enquanto aponta a paisagem que ainda conserva a cor da terra – a câmera se movimenta para abarcar o espaço extensivo, salpicado de casas rústicas, onde se avista também o galpão de uma indústria. Um corte nos conduz à sequência de créditos, iniciada por uma panorâmica em sentido contrário à que abrira o filme. A câmera se desloca e se fixa nas paredes e fachadas de edifícios sofisticados, alguns deles em construção, a verticalidade da paisagem impondo outros desafios às imagens – o contraste com a cidade horizontalizada e improvisada da primeira sequência é nítido. Aço, concreto e vidro marcam as fachadas da Avenida Paulista, sobre cujos planos, comentados por um coro solene, incide o título. Destacam-se trabalhadores em andaimes de obras e soldando janelas. Fica claro que o “fim de semana” do título acontece fora de campo, “na fronteira da expansão urbana”, como dirá o narrador do filme – tempo de descanso em que, alhures, os trabalhadores se engajam na construção de suas próprias casas. Embora sua força de trabalho seja fundamental para o desenvolvimento e a modernização da cidade, seu acesso às benesses do “progresso” é mínimo. Sentidos que se depreendem da montagem das primeiras sequências de Fim de semana. Outro corte nos reconduz à paisagem periférica. Ruas de terra e casas de um só cômodo marcam o espaço recém-ocupado, “onde a cidade se mistura com o campo”, como nos diz o narrador. O filme passa a alternar o argumento da narração (na voz de Fernando Pacheco Jordão) e as vozes de trabalhadores filmados em três bairros periféricos da Grande São Paulo: Taboão (São Bernardo do Campo), Jardim d´Ávila (Osasco), e Jardim Castilho (Embu). Registrados em entrevistas e/ou trabalhando na construção de suas casas, eles nos contam histórias de compra financiada de lotes “quase clandestinos” em bairros distantes, para “fugir do aluguel”; de mutirões de autoconstrução de casas que permanecem em processo, erguidas com material barato nos finais de semana, com a ajuda de familiares e amigos. O narrador recolhe, passo a passo, as informações e experiências trazidas pelos filmados, incorporando-as à argumentação, em um trabalho de enunciação que, apesar do tom solene e do afã totalizante, se deixa permear pelas falas e reflexões dos trabalhadores.4 Realizado a partir da pesquisa da arquiteta e urbanista Ermínia Maricato, professora da USP, que também pagou o custo da película 16mm,5 valeria para o filme de Renato na documentação dos processos de organização e luta de inquilinos contra o aumento dos aluguéis. O filme nos permite acessar ainda outra forma de engajamento do cinema na organização popular: o documentário “de agitação”, finalizado no curso das lutas e visando contribuir para a mobilização. 4. Estratégia que remete a Quando novos personagens entraram em cena - Experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-80), livro fundamental de Eder Sader, dedicado à emergência de movimentos sociais em São Paulo nos anos 1970. Passo a passo, Sader incorpora ao texto as trajetórias de vida e as falas de trabalhadores entrevistados. 5. “Eu peguei a indenização por ter saído de um emprego e paguei o filme (os custos de um 16 mm) que contou com a participação gratuita de muitos amigos. Apresentei o filme na reunião da SBPC de 1975. A partir daí ele


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Tapajós o que Naara Fontinele dos Santos escreveu para Viramundo (Geraldo Sarno, 1964): partindo de interpretações desenvolvidas por uma pesquisa acadêmica prévia, Fim de semana também orquestra “as afirmações recolhidas junto aos atores reais e as imagens da realidade (...) de maneira a compor uma estrutura argumentativa vigorosa” (2020, p. 184). Como “cineasta intérprete”, na expressão de Naara em sua tese,6 Tapajós não se limita a filmar processos de autoconstrução de moradias em São Paulo em 1975 (quando um quarto das habitações da cidade, segundo a narração, haviam sido construídas por seus moradores): a partir da articulação de imagens e vozes, ele elabora uma interpretação marxista desses processos, em diálogo direto com a perspectiva de Ermínia Maricato. A hipótese, em síntese, é de que “a construção do bairro e a expansão da cidade acabam saindo do bolso e do trabalho gratuito dos moradores”, como afirma o narrador. Ou, como escreve Ermínia em seu livro A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial (1982), resultante da mesma pesquisa que gerou o filme, “se a habitação, a chamada infra-estrutura urbana, e os equipamentos constituem mercadorias, se a política habitacional é centralizadora e elitista, e se por outro lado o salário é mantido a um nível abaixo do que permitiria a compra desses bens, as necessidades são em grande parte supridas pela prática da auto-construção (ou não são supridas)”. Trabalhando nos finais de semana para construir a própria moradia, os trabalhadores estariam, no limite, produzindo excedente e contribuindo para os processos de acumulação capitalista.7 “Mas”, sublinha o narrador, “os trabalhadores não sabem disso, e continuam (...) lutando para melhorar os seus bairros”. Em sua primeira parte, o filme se detém nas dificuldades enfrentadas pelos filmados, da compra de material aos processos de construção, da insalubridade da moradia autoconstruída à infraestrutura inexistente nos bairros. Quando se descola das falas dos filmados para alcançar o que eles “não sabem”, Fim de semana sobrecarrega as imagens de sentidos prévios. É o caso da recusa – no trilho de Francisco de Oliveira – da ideia de que a autoconstrução, ao reconectar “o trabalhador e o fruto do seu trabalho”, teria efeitos desalienantes (1982, p. 16). Ao contrário, pois as condições precárias o impediriam: na autoconstrução, afirma o narrador, “a criatividade popular não encontra condições mínimas para se manifestar”. A bela cena que se segue, entretanto, parece tensionar tal premissa. Ao som de Roberto Carlos, a câmera passeia pelo interior de

teve uma carreira muito bem sucedida em cineclubes de todo o Brasil”, escreve Ermínia em seu site. Poucos anos depois, ela dirigiria Loteamento clandestino (1978), filme que “nasceu para ser um instrumento pedagógico de corte paulofreyreano”: “Pretendia explicar aos compradores de loteamentos ilegais porque não eram donos formais de seus lotes após comprar e pagar a imobiliárias que os vendiam em plena luz do dia”. Ver <https:// erminiamaricato.net/2016/02/01/filmes-fim-de-semana-1975-e-loteamento-clandestino-1978/>. 6. “Lorsque le cinema s´occulte et s´étend au coeur du désordre” – puissances critiques du documentaire brésilien (1960-1976) (Paris 3 / UFMG, 2020). 7. “O salário deveria incluir os gastos com a habitação. Mas o salário não dá. Ao construir a sua casa nas horas vagas, se endividando com o terreno e com o material, o trabalhador está cobrindo, com seu esforço, uma despesa que deveria estar incluída em seu salário. Isso acaba permitindo que o salário seja mantido abaixo de suas reais necessidades. Assim, o trabalhador está na verdade produzindo um excedente, poupando capitais que vão servir não para ele, mas para o crescimento industrial” (narração em Fim de semana).


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uma casa, flagrando pequenas situações cotidianas (uma menina assiste à TV, uma mulher costura), transcorridas em meio a móveis e objetos que compõem um arranjo cuidadoso (onde domina o vermelho). Buscando empatia e cumplicidade com o universo dos filmados, cenas como essas remetem ao questionamento de Tapajós, em entrevista: Quando o filme ficou pronto eu fiquei profundamente chocado com o resultado na medida em que o que tinha força no filme não era a tese. Ela atrapalhava. O que conferia ao filme algum tipo de vitalidade era justamente o que ocorria à margem da tese.8

Caso das imagens de um domingo no Jardim Castilho (Embu), onde uma banda de crianças e adolescentes executa em caixas “Eu te amo meu Brasil” (canção gravada pelos Incríveis que se tornou um dos “hinos” da ditadura). Situando assim, de modo complexo e sutil, os processos que vimos em um contexto autoritário (de impedimento à liberdade de expressão, organização e participação populares), o filme nos conduz à sequência final, onde a agência dos trabalhadores ganha força. A começar pela fala de Timóteo, liderança do Jardim D’Ávila, filmado em meio ao mutirão de construção da sede da Sociedade Amigos do Bairro. É ele quem formula a ideia de que “a vila também é uma construção nossa”, mote para que o narrador afirme: “a cidade também é uma construção”. Realizando gratuitamente não apenas suas casas, mas “obras de uso público”, os trabalhadores melhoram os bairros, batalham por serviços inexistentes, produzem artesanalmente o espaço urbano. A última sequência de Fim de semana se dedica assim à emergência da organização popular em bairros periféricos de São Paulo, com protagonismo das “sociedades de amigos” que, como afirma taticamente outra liderança, “não cuidam de política”, só “reclamam do poder público o que é mais básico”. Reencontramos Seu Amaro, que introduziu o filme, e descobrimos que a história de Taboão de São Bernardo também deve ser creditada às trabalhadoras e trabalhadores, organizados para enfrentar a precariedade e o descaso do poder público: “não tinha transporte, ruas calçadas, posto de saúde, faltava tudo”. Uma panorâmica da paisagem do bairro (em sentido contrário ao movimento inicial), encerra o filme, instigando-nos a ver agora na imagem as marcas de uma história popular (essa que os livros não contam). Realizado em outras cidades brasileiras, Mulheres no front – o impacto das lideranças femininas nas comunidades (Eduardo Coutinho, 1996) nos permite observar desdobramentos desse processo, 20 anos depois. O momento é outro: de redemocratização e

8. Ver GRANATO (UFF, 2008, p. 68). Tendo realizado seus primeiros filmes nos anos 60, junto ao coletivo Kuatro, de São Paulo, Tapajós adere à guerrilha urbana, por meio da Ala Vermelha, dissidente do PC do B, entrando na clandestinidade. É detido e permanece preso entre 1969 e 1974. As leituras feitas na prisão teriam conduzido integrantes da Ala Vermelha à formulação de uma autocrítica, que consistiu sobretudo, segundo Tapajós, na recomendação “(...) aos militantes que se liguem às massas, ou seja, morem em bairros operários, entrem nos sindicatos, façam trabalho junto às organizações de bairro”. Primeiro documentário de Tapajós ao sair da prisão, Fim de semana antecede o ciclo de filmes realizados em parceria com o sindicato de metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Encontro essas informações na tese de doutorado de Vinícius Andrade de Oliveira, Intervir na história – modos de participação das imagens documentais em lutas urbanas no Brasil (UFMG, 2019), referência fundamental para a presente abordagem.


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consolidação de movimentos sociais que, resistentes à ditadura, tiveram participação decisiva na abertura e na construção da chamada “Constituição Cidadã” (1988). Sob encomenda de Unicef e Fnuap (Fundo de População das Nações Unidas), Coutinho realiza para o Cecip (Centro de Criação de Imagem Popular, organização civil que ajudou a fundar),9 um vídeo institucional voltado para o protagonismo feminino em três experiências populares: a associação de moradores do Jardim Uchôa (Recife); a associação de moradores de Rancho Fundo (Nova Iguaçu, Grande Rio); e a formação de promotoras legais populares no bairro Bom Jesus (Porto Alegre). A primeira parte, no Jardim Uchôa (que surgiu da ocupação, em 1979, do terreno de uma antiga usina, como nos informa o narrador), começa por uma assembleia na associação, em que a presidente Maria da Penha rememora as condições precárias do espaço recém-ocupado, na origem das lutas (cenário de Fim de semana). Manuseando fotografias antigas, ela remete aos tempos sem água encanada: “Que dificuldade para lavar roupa, para lavar louça... E vocês sabem que o marido sai para trabalhar e quem botava a lata d´água na cabeça?”. Sua fala contundente, pontuada pelo olhar atento de muitas outras mulheres na assembleia, enfatiza o que Fim de semana não destacava: o protagonismo feminino na organização comunitária. Acompanhando Penha no decorrer da primeira parte, saberemos que as batalhas por luz, água encanada, creche e coleta do lixo, já conquistadas, deram lugar a outras lutas: a comunidade ainda sofre com as enchentes do Rio Tejipió e os problemas de saúde decorrentes da falta de saneamento. Mas o corte para a segunda cena, em que Coutinho conversa com Maria da Penha em sua casa, reforça o que interessa ao documentário, especialmente: não só o impacto da organização sobre o cotidiano da comunidade, mas aquele da liderança na vida pessoal das mulheres filmadas. No deslocamento do enfoque estão abrigados 20 anos de história: importa agora não apenas sublinhar o enfrentamento da precariedade (que origina e faz prosseguir a luta), mas o aprendizado político e as mudanças existenciais que a organização aporta. Passamos de uma abordagem macro (em Fim de semana) para outra micropolítica, conduzida pela conversa em cena entre Coutinho e as filmadas (mesmo que a narração de tom solene e autorizado imponha limites a essa construção). Na comparação entre os dois filmes, a historicidade da técnica também se faz sentir: a agilidade do vídeo imprime maior mobilidade à câmera e acentua a interação espontânea em Mulheres no front. Na casa de Maria da Penha, por exemplo, convocado para a cena e ciente da mediação da câmera, o marido “Preto” se diz “plenamente” favorável à atuação política da mulher. “No início teve dificuldades”, ele reconhece, lacônico; entendemos que Penha conquistou o seu espaço desdobrando-se entre o trabalho na comunidade e “as minhas responsabilidades dentro de casa”. Sua afirmação da atuação política se articula à recusa de um histórico familiar de violência doméstica e submissão feminina: “Minha mãe era muito submissa, demais. Ela só fazia o que meu pai queria. E ele era violento, ele batia na minha mãe. Então aquilo ali... eu já fui assim... eu vou querer isso nada!”. 9. Para um aprofundamento nessa parceria, remeto ao nosso artigo “Alianças audiovisuais em tempos sombrios: Eduardo Coutinho, o Centro de Criação de Imagem Popular (CECIP) e os movimentos civis”, escrito com Vinícius Andrade de Oliveira (Doc Online, set. 2020).


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Nas falas de Lourildes, Maria e Lindalva, lideranças do bairro Rancho Fundo, em Nova Iguaçu (RJ), encontramos outras histórias de mulheres pobres, cujas vidas, “classificadas pela expressão não pode”, como sintetiza Lourildes, afirmaram a duras penas “posso”, em estreita relação com a mobilização comunitária. A abordagem de Coutinho reforça o entrelaçamento “entre trajetórias de vida e luta” (MESQUITA; OLIVEIRA, 2020), como vemos também na roda de conversa com o grupo de promotoras populares do bairro Bom Jesus, em Porto Alegre, na sequência seguinte.10 Na Baixada Fluminense, organizadas para regularizar a coleta de lixo na comunidade, as mulheres fundam a associação, inicialmente presidida por Lindalva. No arquivo da TV Maxambomba,11 a vemos ao lado do prefeito de Nova Iguaçu, exigindo o compromisso do poder público “de dar uma força nesse saneamento”. Como víramos Penha na sequência anterior, em foto com Jarbas Vasconcelos, então prefeito de Recife, para quem ela teria dito: “Eu sim sou o prefeito autêntico (...) Eu sentia o problema, eu vivia na comunidade”. Sugestão de participação na política institucional que a candidatura de Maria, umas das lideranças de Rancho Fundo, a vereadora de Nova Iguaçu, em 1996, parece selar. Com suas diferenças de abordagem (reveladoras da historicidade dos processos sociais, das técnicas de registro e das formas de engajamento do cinema na experiência popular), os filmes de Tapajós e Coutinho documentam presentes em luta, engajados na construção de outros futuros. Em ambos, a organização popular escreve uma história viva do país – que vemos se atualizar, prosseguir e pulsar, a despeito de todas as dificuldades impostas por nosso tempo sombrio, em filmes como Cadê Edson? (Dácia Ibiapina, 2019) e Entre nós talvez estejam multidões (Aiano Bemfica e Pedro Maia de Brito, 2020).

Referências GRANATO, Maria Carolina. O cinema na greve e a greve no cinema. Memórias dos metalúrgicos do ABC (1979-1991). Tese, Niterói, UFF, 2008. MARICATO, Ermínia (org). A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1982. MESQUITA, Cláudia & OLIVEIRA, Vinícius Andrade. Alianças audiovisuais em tempos sombrios: Eduardo Coutinho, o Centro de Criação de Imagem Popular (CECIP) e os

10. “Antes a gente sabia que tinha direitos, agora sabemos quais são os nossos direitos”, afirma uma delas. A importância da Constituição de 1988, como expressão de lutas e conquista de direitos, se faz sentir na abordagem de Marli, que levava um exemplar dentro da bolsa. Formadas pela Themis, associação de advogadas feministas (cujo objetivo é “enfrentar a discriminação contra mulheres no sistema de justiça”), nas horas vagas do trabalho assalariado (em geral, como domésticas), as “promotoras” auxiliavam mulheres e crianças da vizinhança que sofriam com a violência doméstica (como muitas delas também haviam sofrido). 11. Realizada pelo Cecip na Baixada Fluminense, a emissora comunitária “buscava oferecer aos moradores do local um canal para se expressarem e retratarem sua realidade, inclusive através da participação na realização dos materiais, que posteriormente eram exibidos em praças públicas da região” (MESQUITA & OLIVEIRA, 2020).


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movimentos civis. Doc On-line 28 (Revista Digital de Cinema Documentário, Dossiê Política e Ideologia), setembro de 2020, pp. 78-96. OLIVEIRA, Francisco de. Prefácio. In: MARICATO (org). A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1982. OLIVEIRA, Vinícius Andrade. Intervir na história – modos de participação das imagens documentais em lutas urbanas no Brasil. Tese, Belo Horizonte, UFMG, 2019. SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena - Experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-80). Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1988. SANTOS, Naara Fontinele. “Lorsque le cinema s´occulte et s´étend au coeur du désordre” – puissances critiques du documentaire brésilien (1960-1976). Tese, Paris/Belo Horizonte, Paris 3/UFMG, 2020.


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Dialéticas de resistência >>> Quando a rua vira casa (Tetê Moraes, 1980), Atrás da porta (Vladimir Seixas; Chapolim, 2010) e Braço armado das empreiteiras (Realização coletiva, 2014) vinícius andrade de oliveira1

O que é uma rua? Uma rua é um caminho entre dois renques2 de casas. Uma rua significa também qualquer logradouro público. É, ainda, o conjunto de seus habitantes. E é a oposição do “fora ao dentro”. Tais definições, assim perfiladas, por mais elucidativas que pareçam, não põem satisfeito o filme Quando a rua vira casa, que acrescenta uma indagação complementar: e o que é uma casa? “(...) É o domínio, por excelência, do íntimo, do privado”, arremata um dos narradores-personagens. A pluralidade de definições surgidas da dinâmica de perguntas e respostas adotada na condução do documentário se combina a uma montagem de fotografias feita sobre uma mesa, reiventando, à maneira artesanal, a vizinhança entre as casas de uma rua. A cena figura o bairro do Catumbi (no Rio de Janeiro), cuja formação é posta em perspectiva histórica por Tetê Moraes através dos diálogos travados por Carlos Nelson Ferreira dos Santos e colegas urbanistas – da narração a várias vozes, até os debates encenados. Os diferentes níveis de conversação sugerem uma dialética existente no âmago do filme: espaço público e espaço privado se definiriam não meramente por suas diferenças, mas pelo atravessamento de um no outro. Operar a partir da conjunção temporal – quando a rua vira casa – significa localizar a natureza eminentemente histórica do problema da relação entre os espaços de uma cidade, enfatizando a filiação ao método materialista de abordagem. Contudo, devemos atentar que o foco de Tetê Moraes e seus colaboradores residirá em um dos “vetores” dessa dialética: não a tessitura de ambientes íntimos, mas o processo pelo qual os espaço públicos se constroem, de fato, como públicos – ou, nos termos da pesquisa da qual partiu o roteiro, o processo que envolve a “apropriação de espaços de uso coletivo”. A perspectiva exposta na narração a respeito das práticas de lazer (tomadas como campo preferencial de observação) de que estas seriam propícias sempre “(...) onde houver movimento e onde o espaço permita que a imaginação tome 1. Doutor em Comunicação pela UFMG, mestre na mesma área pela UFPE, tem produzido textos para diversas publicações e feito curadoria para festivais, mostras e cineclubes. Possui experiência em docência no nível técnico e superior, atuando na interface entre o audiovisual e a militância social. 2. Palavra que parece ter sua origem no catalão renc e significa série de pessoas, coisas ou objetos alinhados.


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conta dele” parece dar substância ao modo como o filme deseja projetar a reflexão sobre as possibilidades de ocupação do espaço urbano. Constelações3 fílmicas diversas poderiam ser experimentadas entre Quando a rua vira casa, Atrás da porta e Braço armado das empreiteiras, mas a dialética identificada no primeiro e suas implicações funcionam como farol para os gestos e disputas documentadas nos outros dois filmes. Ora, não se pode ignorar que a ideia de que a rua pode ser tornar casa comporta não só “a demanda pela manutenção do caráter público do espaço urbano” (ROLNIK, 2015, p. 375),4 mas também a constatação de que, nas cidades brasileiras, o acesso de trabalhadores e trabalhadoras aos direitos sociais está longe de se concretizar. Os filmes aqui reunidos inscrevem experiências singulares nesse campo de disputas, pairando no sentido duplo extraído do documentário de Tetê Moraes: entre os limites da exclusão e os horizontes da luta. Em Atrás da porta, de Chapolim e Vladimir Seixas, essas disputas acontecem não muito longe do bairro do Catumbi. No longa-metragem filmado entre 2008 e 2009 como desdobramento da aproximação de Seixas com a Frente de Luta Popular (FLP), testemunhamos o esforço de permanência de trabalhadores na chamada zona portuária do Rio de Janeiro, também pertencente ao centro da cidade. As informações geográficas e sobre o processo do filme são relevantes, afinal, ele foi produzido em paralelo a três curtas5 que retratam, por diferentes formas, a tentativa reiterada de expulsão de populações trabalhadoras, majoritariamente negras, de territórios ancestrais de resistência – onde se localizava, por exemplo, um dos ditos maiores cortiços já existentes na cidade, o “Cabeça de porco”. Se a história do “Cabeça de porco” denuncia a perpetuação da violência contra as famílias de ex-escravizados, revela também a enorme resiliência desses grupos sociais. Atrás da porta tem uma dialética própria para evidenciar isso: opera em avanços e recuos temporais, entre tomadas diretas de remoções sofridas pelas famílias e entrevistas com militantes. O desfecho do filme carrega certo amargor, já que o principal coletivo acompanhado (os “Guerreiros do 510”) se torna alvo de novo despejo. Mas, aqui, a aliança entre as lutas urbanas e as imagens documentais fornece aprendizados: a importância de documentar os propósitos sociais de uma ocupação, resguardar, com a presença da câmera, as vidas de trabalhadores em instantes de perigo, dar apoio na construção de uma visibilidade distinta daquela veiculada pela mídia corporativa e fazer resistir e reverberar histórias que os poderes instituídos se esforçam em apagar. Braço armado das empreiteiras não é só ilustrativo da tônica de repressão a movimentos sociais em uma cidade na qual o mais proeminente “urbanista é o capital”,6 mas, à luz dos filmes anteriores e junto a outras produções do Movimento Ocupe Estelita (MOE),7

3. Como nos ensina Mariana Souto no texto “Constelações fílmicas: um método comparatista no cinema” (2020). 4. Para usar dessa vez as palavras da urbanista Raquel Rolnik no seu livro fundamental “Guerra dos Lugares - a colonização da terra e da moradia na era das finanças” (2015). 5. Me refiro à Entre (2009), Ruído Negro (2009) e À sombra da marquise (2010). 6. Frase frequentemente lembrada pelos militantes em faixas usadas em manifestações na cidade. 7. Como À margem dos trilhos (2014) e Recife: cidade roubada (2014).


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faz saltar a questão de fundo: o projeto de construção de onze luxuosas torres no centro histórico do Recife é a “renovada” versão local do sequestro dos bens públicos por interesses privados. Os documentaristas8 apoiadores da ocupação pela “retomada” do terreno irão explorar visualmente o antagonismo marcante dessa disputa territorial: de um lado, os integrantes do MOE em defesa do Cais, de outro, a linha de ataque da polícia. No contraste com toda a violência que o filme reporta, Braço armado se mostra povoado, no fora de campo sonoro, de gritos de protesto dos ativistas (do coro inicial conclamando um “abraço” no terreno ao característico cântico de “Ocupar, resistir!” do final) – procurando indicar não o triunfo da repressão, mas a continuidade da resistência. Marca do conjunto de filmes do movimento refletida neste, em particular: o reforço aos discursos mobilizados pela militância como forma de devolver a ela as energias de luta que atravessaram a própria realização das obras. Se a ocupação tentava “publicizar” o uso do espaço, o audiovisual encontra seu papel tratando de implicar mais pessoas na discussão sobre os rumos políticos da cidade.

Referências ROLNIK, Raquel. Guerra dos Lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. 1ed. São Paulo: Boitempo, 2015. SOUTO, Mariana. Constelações fílmicas: um método comparatista no cinema. Galáxia

(São Paulo), n. 45, p. 153-165, dez. 2020.

OLIVEIRA, Vinícius Andrade de. Intervir na história: modos de participação das imagens documentais em lutas urbanas no brasil. 2019. 336 f. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019.

8. Nesse caso, Ernesto de Carvalho, Juliano Dornelles, Marcelo Pedroso e Pedro Severien.


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A luta ainda não acabou1 Narita: The Peasants of the Second Fortress shinsuke ogawa, 1972

Tradução: Daniel Ribeiro Duarte

De volta à zona rural

Por que escolher Sanrizuka?

Esta é claramente a pergunta que me fazem com mais frequência, e por consequência é também aquela para a qual eu posso encontrar o maior número de respostas, algumas mais vagas do que as outras. De qualquer forma, penso que atualmente estou numa posição de dar uma resposta muito precisa, ainda que isso tudo ainda pareça uma mentira. Você pode facilmente imaginar que, quando cheguei a Sanrizuka, eu não sabia onde estava me metendo; quem teria imaginado no início que íamos permanecer por tanto tempo? Devo dizer que algo me fascinava: o cheiro da terra – e estou falando sério. Antes de tudo, gosto de ver como algo pode acontecer nessas vidas imersas em lama. Mesmo quando eu morava na cidade, antes de começar Nihon kaiho sensen – Sanrizuka no natsu [The Battle Front for the Liberation of Japan – Summer in Sanrizuka], pensava nisso com frequência. Por exemplo, por trás de Sakiya, às margens do rio Koshu, há uma margem que foi limpa, mas foi justo onde até recentemente havia toda uma área de favelas ou algo do tipo, com todas as prostitutas servindo como um pano de fundo para o templo. Foi um pouco antes dos Jogos Olímpicos de 1964. Uma vez, até passou pela minha cabeça me envolver com essas vidas confusas e rastrear de perto todas as vicissitudes de uma família. De qualquer maneira, por fim eu acabei me envolvendo nisso tudo, e até comecei a pesquisar. Na época de Assatsu no mori [Forest of Oppression] era praticamente a mesma coisa. Tudo isso poderia ter acontecido em outro lugar que não fosse Sanrizuka. Isso sem dúvida vai soar estranho, mas está claro que eu só queria situações em que a vida estava exposta, desnuda. Na época, aconteceu de Sanrizuka ser aquilo de que as pessoas estavam falando; era o campo de uma batalha em que famílias inteiras participaram. Isso significava que a totalidade da vida doméstica estava envolvida. Havia também uma outra razão, que operava num nível mais intuitivo; era o fato de eu sentir que os problemas dos agricultores representavam algo denso e com significado. Ainda mais porque a maior parte dos intelectuais japoneses estava completamente desinteressada. Mais uma vez, eu tive um sentimento mais intuitivo do que racional. Ainda mais porque eu mesmo era agricultor.

1. Publicado em “Cinema giapponese degli anni’60” Quaderno informativo, 41 (Pesaro: Mostra Internazionale del Nuovo Cinema di Pesaro, 1972). Originalmente traduzido para o inglês por Giulia Galvan e Sis Matthé.


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Imaginemos por um momento que o aeroporto de Sanrizuka fosse transferido para o centro de Tokyo, para um distrito de operários, por exemplo; bem, estou convencido de que eles não teriam feito todas essas perversidades. Nenhuma dessas atrocidades teria acontecido. O fato é que o governo, sem nem mesmo brevemente consultar os fazendeiros, tomou essa decisão, dessa maneira. Pelo amor de Deus, agora que o Japão é um país em pleno desenvolvimento industrial, o que importam essas pessoas pobres? O que é preciso é industrializar, produzir mais e mais. E os produtos agrícolas? Bem, você ainda pode comprá-los por um bom preço dos países miseráveis do Sudeste Asiático, ou mesmo ver se pode comprá-los nos EUA, que tem mais do que precisa. É assim que a linha de discriminação de classe do governo japonês funciona. Après nous, le déluge!2 Estas são as coisas que você pode e precisa ouvir. Eu fui realmente tomado pela raiva. Além disso, eu era enormemente interessado nesse tipo de situação em que a vida cotidiana está em jogo. Até aquele momento, eu tinha feito filmes muito distantes das questões humanas, filmes promocionais, basicamente. Era inevitável que se produzisse em mim uma reação oposta a esta tendência. Eu não poderia nem mesmo dizer que cheguei a Sanrizuka com um plano claro e delineado para ser desenvolvido metodicamente. Mas o que não sairia da minha mente e do coração era a nossa tendência a continuar confortavelmente assentados na nossa própria pilha de preconceitos, no nosso próprio racismo de classe, seja em nome da Nação, da Cultura Japonesa, ou em nome do progresso do Japão. De fato, não deveríamos perder de vista o fato de que há pouco tempo, na era Meiji para ser preciso, 80% da população consistia em agricultores e que o país não hesitou em arrebentar com essas pessoas. É nessa “indelicadeza” que nos assentamos, com o nosso arsenal autoritário de carros, torradeiras, batedeiras, assadeiras, televisões a cores, circuitos integrados e por aí vai. Por exemplo, na universidade eu me interessei por etnografia; menciono isso porque na realidade eu nunca estive fora da cidade, nem uma vez. Naquela época, não havia nada além da cidade. Ao passo que é óbvio que muitas coisas surgem nas vilas, nas regiões remotas, nos chamados rincões: lendas como Momotarō,3 por exemplo, práticas e costumes que te chocam quando você as vê pela primeira vez. Todas essas formas de vida, esses arquétipos da “consciência Japonesa” que achamos tão importantes, definitivamente não são encontrados nas cidades, mas na zona rural. Tudo isso me interessou imensamente. Mas antes de falar sobre a discriminação de que, com este tipo de governo, a população camponesa é vítima preferencial, é preciso assinalar que as vilas agrícolas ou pesqueiras não estão afinadas com a atual ideia de civilização japonesa. Elas estão, em outras palavras, ficando para trás. Pegue o arquipélago de Okinawa, por exemplo; 2. Nota do tradutor: Expressão de origem francesa citada por Ogawa no original. O significado literal é “Depois de nós, o dilúvio” e se refere a pessoas que não se preocupam com o futuro (e nem com as vidas alheias), já que as consequências de suas ações (o dilúvio) só serão sentidas depois de sua própria morte. 3. N.T.: Momotarō é um personagem popular do folclore japonês. Momo vem de pêssego e Tarō significa o filho mais velho. Nascido de um pêssego, ele teria sido encontrado por uma lavadeira sem filhos enquanto descia flutuando um rio. Já na adolescência, deixou a família para enfrentar Oni (ogros, demônios) que estavam saqueando as terras vizinhas à sua casa e, com o auxílio de amigos animais como um cão, um macaco e um faisão, conseguiu derrotar os invasores.


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mesmo que seja cada vez mais atacado pelo capital, ele permanece uma imensidade de ilhas no meio do nada, onde só se chega de barco, e não é todo dia. Bem, você precisa ir a essas ilhas se quiser reunir evidências sobre a origem de qualquer fenômeno cultural verdadeiramente japonês. Sobre mitologia, teogonia, etc. Há sempre algum desses lugares perdidos no fundo do meu coração. No Japonês moderno, a vida de um agricultor e suas atividades são sempre designadas com o termo “indústria agrícola”, mas eu não gosto nada dessas duas palavras. Primeiramente porque o termo “agrícola” deveria ser considerado num sentido humano infinitamente mais amplo e total; já sobre a outra palavra, “indústria”, é melhor nem falar. Antigamente, estas palavras não existiam. Elas foram inventadas depois da Era Meiji. O que eu vejo aqui, em Sanrizuka, não são “indústrias agrícolas”, mas agricultores. A criação do aeroporto internacional reuniu à força, por assim dizer, estes dois conceitos, “campo, terra” e “indústria”. É precisamente contra essa racionalização da exploração na sua versão mais moderna que o povo da terra se levantou e disse “não!”. É um “não” que habitava em mim, creio, muito antes de eu poder gritá-lo aqui em Sanrizuka. Entre todos os integrantes da equipe de camaradas que está comigo, deixando a retórica de lado, meus quatro – ou cinco – anos de experiência me dizem que cada um deles vive esta verdade e esta rejeição, seja física ou moralmente. Eles vivem integralmente a contradição de uma expressão como “indústria agrícola” e eles compreendem o quanto a agricultura ou trabalhar a terra é mais importante num nível humano. Colher os frutos da terra, do mar, das montanhas (ou seja, das minas), que costumavam ser a indústria primária, é uma atividade que foi deixada para trás e ridicularizada, tiranizada numa extensão tal que qualquer um que trabalhasse lá não tinha a possibilidade de sair. Portanto, um tipo de proletariado passou a existir, mas um tipo não proletarizado. Todo o meu argumento é bastante frouxo, já que estou muito próximo dessa realidade, mas os problemas que acabo de expressar deveriam ser pensados se nós realmente desejarmos prevenir as piores catástrofes. Toda a equipe que trabalha aqui, aliás, está perfeitamente ciente desses problemas. Por que continuamos filmando quando pode-se dizer que a luta contra o aeroporto internacional acabou, chegou ao fim? Porque eu acho que ela não acabou. Não! A luta não acabou. É claro, as pistas de decolagem já estão prontas, bem como as instalações; nesse sentido, você pode claramente dizer que o aeroporto foi construído, enfim. Mas o que eu fiz, para ser mais preciso, o que nós fizemos, ou o que é isso efetivamente, esta tarefa que queríamos completar? Deste ponto de vista, de fato, a questão se torna mais significativa. Já que eles dizem que o aeroporto está pronto e que então a luta acabou, está perdida, então qual é a nossa tarefa? A Frente Nacional para a Libertação do Vietnã não teria uma razão plausível para continuar lutando até esse ponto, e ainda assim o fez, ainda o está fazendo, e não é pouco. O aeroporto está pronto. Muito bem. Mas as pessoas, os agricultores que dizem não a este aeroporto, continuam a declarar a sua recusa a todo o momento. Logo, este aeroporto não está pronto. Absolutamente não está pronto! Enquanto nós vivermos, continuaremos a testemunhar e revelar o significado e as profundas implicações sociais, políticas e históricas desta “insubordinação” entre as


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pessoas que ainda continuam a viver e existir. Logo, vamos continuar sempre e em todo o lugar a dizer que “não, o aeroporto não está pronto”; este é, definitivamente, o significado que demos às nossas vidas. A citação de Fanon certamente é bem conhecida: “Se a construção de uma ponte não vai enriquecer a consciência daqueles que nela trabalham, então não se construa a ponte”.4 Eu acho que o que Fanon quer provar está muito claro. Quando a construção de um aeroporto leva ao desaparecimento de uma família, apenas uma, e a alguém que comete suicídio,5 o aeroporto precisa ser demolido. É tão simples quanto isso! Quando começamos a falar sobre suicídios, eu penso que o poder está perdendo as suas “boas razões”, se alguma vez houve alguma, de construir um aeroporto aqui. Além disso, gente demais já morreu aqui. Eles morreram de ressentimento, asfixiados pela ira, pela raiva de assistir um aeroporto sendo construído aqui a despeito deles. É por isso que todas as razões legítimas do poder para construir um aeroporto se desmancham no ar. Refletindo nas palavras de Fanon, se alguém ainda se admira com a resistência sistemática dos agricultores, eles deveriam cair em lágrimas; isso é o quanto a resposta é óbvia. Apenas um momento de reflexão, e ninguém deveria nunca mais ser apanhado pela panóplia de truques monstruosos da imprensa, sempre ávida pelo sensacional. Não para informar, mas para fornecer coisas sensacionais, para fascinar, para distorcer! O que, para os poderosos, aparentemente tem a grande vantagem de impedir as pessoas de refletir, de impedir qualquer atividade mental que seja. Porque pensar certamente não é o estudo implacável de Kant, Marx ou Hegel, mas perguntar, coletivamente, como vamos viver amanhã. Tudo isso implica que, se há um aeroporto aqui, ele existe somente na imaginação e nos sonhos grandiosos do poder. Na nossa história, para nós, não, jamais deveria haver lugar para ele. Então, no que nos diz respeito, isto não é um aeroporto. Na cabeça do Satō Eisaku6 deve haver pistas de decolagem, sim; mas para nós, diante de nossos olhos, há apenas um vasto deserto, um descampado. É assim que eu vejo. Em virtude de tudo isso ainda faz sentido estar aqui e continuar a rodar os meus filmes, os nossos filmes. Está claro, contudo, que eu não tenho a intenção de ficar aqui para o resto da minha vida. Eu ainda quero sair e ver outras coisas, e se eu o tivesse feito, isso não mudaria as coisas no meu ponto de vista. Porque onde quer que eu vá, sempre levarei comigo, como o presente mais valioso, tudo o que me aconteceu de ver e aprender por aqui. Mas por agora nós temos esse desejo de insubordinação que os agricultores, estes agricultores que chegamos a conhecer bem, nos mostraram com 4. FANON, Franz. Os condenados da terra. 2. ed. Tradução de José Laurênio de Mello. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p.164. 5. O suicídio de Sannomiya Fumio, um jovem da Vila de Heta e um dos mais amados membros da Brigada de Ação da Juventude, provocou uma onda de choque na Hantai Domei (a liga anti-aeroporto). Este fato marca um momento em que a “luta de Sanrizuka” (também conhecida como “batalha de Narita”) entrou em seu período mais sombrio. O suicídio também afetou enormemente os cineastas da Ogawa Produções. Alguns de seus membros tiveram acesso à carta de suicídio de Sannomiya, e observaram uma série de cadernos que o jovem deixou em sua mesa de trabalho. Os cadernos registravam vários aspectos do vilarejo, os personagens da história local e os hábitos que usualmente são transmitidos oralmente de geração em geração. Isso forneceria a chave de inspiração para o conceito do filme Sanrizuka – Heta Village (1973). 6. Primeiro-ministro do Japão entre 1964 e 1972.


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seus corações, seus corações ardentes, mesmo se eles o tenham feito sem nunca terem consciência disso. De qualquer maneira, você nunca poderia sequer imaginar como os corações deles transbordam de amabilidade. Diga o que quiser, mas eu acredito que para acorrentar-se a uma árvore e não se deixar entregar ao poder, você precisa de uma base sólida de amabilidade. E quem compreenderá essa extrema amabilidade, essa humanidade que as pessoas de Sanrizuka demonstraram melhor que os Coreanos no Japão, os miseráveis e discriminados habitantes dos nossos barracos de párias (párias entendidos como na Índia), ou os ainda mais miseráveis, que viram coisas inimagináveis em suas vidas? Entre estas pessoas, a saga de Sanrizuka não vai restar como uma carta não entregue. Afinal, é por isso que estamos organizando várias séries de exibições por todo o Japão. Nos distritos de mineração da ilha de Kyushu, por exemplo. Você deveria ver como as velhas senhoras coreanas compreenderam imediatamente do que nós queríamos falar! É um prazer ver como as pessoas podem ser tão vivas em seu interior!

Liberdade

Na Ogawa Produções todos são livres. As pessoas deveriam ser livres, penso que isso é um ponto fundamental. Como eu disse, nós não pertencemos a nenhuma organização e, por uma rotina diária, nós vivemos juntos, comemos juntos e por aí vai. A liberdade é uma aspiração primordial para a humanidade, como oxigênio para nossos pulmões. Seguindo as regras, eu direi que necessitamos primeiro proteger certos valores para querermos ou podermos ser livres, que precisamos confrontar algumas lutas, que fundamentalmente implicam na responsabilidade que você tem que assumir, incluindo a responsabilidade pela dignidade e sensibilidade de cada indivíduo. Para mim, a liberdade não é nada mais que isso. E para chegar a este estado de liberdade é indispensável obter recursos para ajudar os outros, o que nos leva à conclusão de que se você vive em isolamento, e não em uma comunidade com todo o tipo de gente, essa liberdade vai permanecer um conceito impossível de realizar. Isso pode parecer a princípio paradoxal. A liberdade dos ascetas que se escondem nas montanhas não pode ser chamada liberdade. Usando uma imagem, eu acredito que a liberdade é como uma chama, uma chama singular que queima em cada indivíduo. E eu também acho que nós, como uma organização, não temos que nos preocupar com essa chama. Eu digo organização, mas se a Ogawa Produções é uma organização isso ainda tem que ser provado. O defeito de uma organização em larga escala é que ela quer interferir por todo o lado, de uma forma bastante rude. Nós não. Nós não interferimos de forma alguma. Ao invés disso, se alguém deseja realmente refletir sobre a liberdade, deveria prestar mais atenção à humanidade das pessoas, sem a qual elas jamais vão experimentar qualquer liberdade.

Sobre a Mise-en-scène no Documentário

Até onde me diz respeito, isso não existe. A equipe chega no local com o operador de câmera, e eles podem perfeitamente agir sem a minha presença, porque eu gasto a maior parte do tempo dormindo aqui. Mais do que a mise-en-scène, o que me preocupa é, por exemplo, a introdução de elementos explosivos na discussão, nos debates.


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Esta é a parte eletrizante do trabalho de equipe, o fato de que cada indivíduo no grupo claramente tem a sua própria personalidade, formada por toda uma configuração de experiências passadas. Rodar um filme é como juntar uma multidão de personalidades, como reunir as telhas de um telhado, por assim dizer. Porque todas essas personalidades, mesmo tentando se adaptar às necessidades do trabalho em equipe, só podem fazê-lo de uma forma profundamente falha, o que leva a conflitos, sombras, buracos, às vezes até mesmo abismos. Todos podem sentir algo assim no colega enquanto trabalham. Todos vão tomar a palavra ou se expressar por meio do lugar que lhes foi designado no grupo. Os operadores de câmera vão se expressar através de seu equipamento, e mesmo os assistentes vão se expressar através de seu trabalho como assistentes. Cada um vai visualizar a parte pela qual assumiu responsabilidade. É como um desenho em pastel. Se a questão não fosse fixar imagens em um filme, os problemas de personalidade dos membros da equipe não seriam importantes, mas esse tipo de trabalho tem a ver com acumular, juntar personalidades para extrair algo de sua diversidade, o que é em si um meio de expressão muito efetivo. Eu acho que isso se aplica a todos. Em minhas atribuições de diretor, preciso cumprir um papel explosivo, e não sei se consigo isso sempre. Houve um tempo em que eu nunca deixava um operador de câmera sozinho, e dava a eles milhões de orientações de como eu gostaria que o plano ficasse. Mas agora não é mais assim. O que, em certo sentido, é muito melhor porque permite aos técnicos criar uma equipe de camaradas que se complementam uns aos outros perfeitamente, ainda que haja as reservas que expressei antes. E onde eles não se complementam uns aos outros, onde eles se sobrepõem ou por fim até mesmo falham em tocar, isso é onde o indivíduo, o ser humano aparece. Um ser humano que tomou uma posição sobre Sanrizuka. De fato, o que nós filmamos não é uma Sanrizuka universal, mas uma Sanrizuka como nós vimos, ou seja, como nós todos vimos. E da mesma maneira, quando um membro da equipe está na presença de um habitante de Sanrizuka, novamente uma espécie de sombra se forma porque mais uma vez nos encontramos face a face com seres humanos, e não com personagens secundários, já que eles são protagonistas da tragédia que nós dispomos em filme para apresentar ao mundo. Uma espécie de sombra se forma, eu disse, porque nesse tipo de diálogo um interlocutor sempre ofusca o outro, do agricultor ao operador de câmera, ou vice-versa. É precisamente esse jogo constante e sutil de expansão e contração, de ataque e defesa, e vice-versa, o qual ocorre quando um indivíduo está na presença de outro ou quando um grupo de indivíduos está na presença de outro grupo, que eu gosto de preservar e cultivar na nossa forma de filmar. Exatamente o oposto, portanto, de mise-en-scène. Nuances, ainda que frágeis, não me parecem menos reais e na realidade são extremamente importantes. Tudo o que eu acabo de dizer naturalmente leva ao fato de que eu tento, o máximo possível, remover tudo o que diz respeito ao trabalho de mise-en-scène.


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A câmera da resistência1

A Narmada Diary alex napier

Tradução: Victor Guimarães

Quem tem a ganhar e quem tem a perder...? (Medha Patkar)

O lugar da barragem de energia na iconografia do modernismo tecnológico foi estabelecido entre as duas guerras mundiais. Sua fusão de monumentalidade, forma funcional e potência (a eletricidade suplantou a irrigação no imaginário urbano-industrial) ofereceu possibilidades emblemáticas óbvias demais para serem ignoradas. Nas décadas do imediato pós-guerra, projetos multifuncionais de engenharia hídrica em grande escala foram apresentados em todo o mundo como vetores de domínio sobre a natureza e progresso social. A barragem de energia não foi concebida como uma entidade discreta, mas sim como um nó em um sistema extenso e potencialmente integrado de fluxos e conversões recíprocas de água, energia, safras, indústria, dinheiro, que poderia ser modelado e medido quantitativamente (taxa-usuário, pé-acre, quilowatt-hora). Foi precisamente essa racionalidade técnica multifuncional que despertou a admiração modernista. Hoje, o lado sombrio desse gigantismo tecnoambiental e dessa ambiciosa engenharia social tornou-se mais visível, e as vozes de suas vítimas e críticos, mais audíveis. Reações ecológicas imprevistas e modos de deterioração zombaram do prospecto dos planejadores, enquanto o conteúdo social oculto das tecnoestruturas de alto custo/alto risco – as formas específicas de dominação e dependência, enriquecimento e empobrecimento que elas acarretam – tornou-se flagrantemente aparente. Talvez estejamos agora entrando no crepúsculo cada vez mais longo desse gigantesco complexo hídrico. Se assim for, a era das mega barragens está se encerrando com um florescimento grandioso nos rios Yangtze e Narmada. É o Vale do Narmada, no oeste da Índia, que oferece o cenário para o documentário mais recente de Patwardhan. Narmada Diary é um “registro esporádico em vídeo” de cinco anos de resistência popular ao Narmada Valley Development Scheme (Esquema de Desenvolvimento do

1. Publicado originalmente em inglês em PIX 2, janeiro de 1997, organizado e editado por Ilona Halberstadt. Disponível no site oficial de Anand Patwardhan: <www.patwardhan.com/?page_id=415>.


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Vale do Narmada), um gigantesco projeto de uso hidroelétrico e agroindustrial do rio Narmada, um empreendimento considerado “vital para a prosperidade da Índia”. Esse é o maior plano de engenharia hídrica já concebido (uma super-barragem, 29 barragens grandes, 135 barragens médias e 3.000 pequenas, além de vasta irrigação e canalização), abrangendo 40 milhões de pessoas. Seu núcleo é a alta barragem de Sardar Sarovar, em Gujarat, cujo reservatório de cabeceira e a canalização associada a ele deslocarão mais de meio milhão de habitantes – uma grande faixa de pescadores ribeirinhos, fazendeiros e moradores da floresta, agora convocados para “fazer um sacrifício pela nação”. A partir de dezembro de 1990, Dhuru e Patwardhan criaram um diário das ações do Narmada Bachao Andolan (NBA, Movimento Salve o Narmada), uma luta local que alcançou ressonância global em 1992-93, precipitando uma crise política para o Banco Mundial. Essa crise foi resolvida apenas com o término de seu financiamento, aparentemente a pedido do governo indiano (a Índia é historicamente o maior cliente do Banco!). As greves de fome subsequentes e o compromisso voluntário dos ativistas do movimento com o auto-afogamento sacrificial, em face da obstinação contínua do governo indiano e dos governos estaduais, reforçaram a imagem de um movimento enraizado, corajoso e com muitos recursos. Por meio desse caso local, a câmera participante documenta a resistência das comunidades nativas da população rural pobre da Índia frente a uma forma de desenvolvimento tecnocraticamente projetada, excludente e coercitivamente implementada, que os posiciona como objetos. As “anotações” de abertura e de fechamento no Diário são simétricas: imagens documentárias oficiais do governo exaltando os benefícios irresistíveis de um futuro rural eletrificado e fruto da engenharia hídrica (“Velocidade e Tecnologia”) são contrapostas a imagens do aparentemente atemporal festival da colheita de Holi, celebrado em março de 1994 na vila de Domkheri, ameaçado de iminente alagamento pelas cabeceiras da barragem. O tempo linear, progressivo, industrial confronta o tempo cíclico, ritual, agrário. Mas em sua retomada da cerimônia tradicional no encerramento, Dhuru e Patwardhan nos deixam ver o que agora podemos entender mais inteiramente: os dançarinos adivasi com o corpo pintado e vestidos com cabeças confrontam e queimam seus demônios, com destaque para a mais nova e maior maldade de todas, a própria barragem de Sardar Sarovar. Sua dança ritual é uma reconfiguração da atualidade, vivência da experiência coletiva, aberta à história. A resistência foi integrada, de forma inovadora, na atividade cotidiana, na linguagem e nos ritos do povo desta região – esmagadoramente adivasis, há muito desprezados como “tribais”, descendentes dos habitantes pré-arianos e aborígenes da Índia. Subjugados, mas não totalmente assimilados pelo hinduísmo bramânico e pela sociedade de castas, os adivasis agora enfrentam a expropriação ambiental. Eles são supérfluos para a geografia social reprojetada do vale do Narmada. Para pertencer e se apropriar desse ambiente humano ameaçado, é essencial caminhar. Uma filigrana de trilhas e caminhos – da casa ao campo, de vila a vila, da encosta à margem do rio – ordena o nexo das figuras e da paisagem. Não vemos ninguém andando de bicicleta, nenhum carro de boi (na verdade, muito pouco rebanho além das aves). Todos caminham por toda parte, sejam vistos em silhueta ou em profundidade como


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indivíduos, em arquivos ou em grupo – o motivo das figuras caminhando significa a habitação do ambiente. Os cineastas, como Medha Patkar, a indomável organizadora do NBA, descobriram a indispensabilidade do engajamento incansável em um modo de vida pedestre (baixa “Velocidade”, baixa “Tecnologia”) como condição de entrada nos ritmos, significados e preocupações deste mundo. À medida que nossa visão vai se tornando mais pedestre, reinterpretamos a procissão e as marchas em cidades regionais próximas ou em cidades maiores como uma incursão desse ritmo e dessa motilidade rurais no espaço urbano mais agitado, acelerado e industrializado. Mesmo na água, os barqueiros caminham. O simples punt é o meio de transporte mais comum – embora seja um intermezzo lírico, a bordo de um barco elegante, baixo e equipado com cordas latinas, que nos leva sem esforço para um pôr-do-sol tropical suspenso. Ficamos tão acostumados com a apropriação da localidade pelos caminhantes que é um choque quando, quase no final do filme, uma carreata chega ao local da barragem para descarregar um contingente de figurões do governo, do partido e do empresariado, com a intenção de reforçar sua reivindicação do lugar. O que poderia ser mais adequado do que celebrar os últimos ritos de Chinanbhai Patel, ex-ministro-chefe e avatar da industrialização de Gujarat, bem aqui neste local, e mergulhar suas cinzas sob a barragem que ele promoveu? Enquanto os dignitários juram realizar o sonho do ex-ministro, os motoristas vigiam discretamente os veículos. O tempo não é neutro nesse conflito. Há uma urgência ditada por uma luta conduzida contra a construção de barragens em andamento e a consequente inundação de campos, árvores, templos, aldeias, acentuada a cada temporada de monções. Atrasos e procrastinações servem ao governo. A forma do diário reconhece essa realidade. Dhuru e Patwardhan filmam um andolan (movimento) já solidamente estabelecido: o trabalho de construção do movimento não é seu foco (há vislumbres laterais e breves lampejos do passado). Eles tampouco definem o movimento no interior de uma narração histórica. O que mais os concerne é a captura das expressões idiomáticas, do repertório e dos significados da resistência à medida que ela é encenada, falada, cantada e dançada, individual e coletivamente – uma etnografia política da insurgência. Uma atenção escrupulosa é dada às particularidades da ação e da fala – e à membrana sensível que as une e separa. Reuniões, marchas, despejos, confrontos com autoridades, idas de delegações ao espaço estrangeiro da cidade, celebrações do sucesso, partilhas do luto – tudo é explorado em episódios, vinhetas, entrevistas, compostas e editadas para liberar espaços de desvelamento, uma microscopia íntima da luta política. O NBA originou-se como uma organização para fazer valer as reivindicações dos atingidos, mas foi impulsionado a estender sua área de resistência a uma oposição que abrangesse o esquema de desenvolvimento por uma lógica da radicalização do movimento: o desmascaramento crítico da retórica oficial e a identificação de interesses reais. Não apenas os arranjos de reassentamento e compensação eram visivelmente defeituosos, mas o projeto era contestável em termos de economia, desigualdade social, impactos ambientais e implicações para os direitos humanos e a saúde pública. Movimentos emergentes são frequentemente personificados. Medha Patkar, a articulada, apaixonada e dedicada organizadora e porta-voz do NBA, foi rapidamente


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identificada como a catalisadora da radicalização. Em Narmada Diary, sua força intelectual, moral e pessoal informa cada quadro em que ela aparece. Mesmo assim, os cineastas mostram que essas qualidades estão difundidas por todo o movimento. Os aldeões entrevistados após o protesto de Kevadia (março de 1993) demonstram o poder vigoroso do conhecimento situado e local, com seu resumo sucinto da interação entre mudanças econômicas, políticas e ecológicas no vale do Narmada (o conteúdo de várias publicações acadêmicas é apresentado em algumas poucas observações expressivas). Uma jovem, voluntária para samarpan (autoimolação nas águas ascendentes), se explica com uma dignidade racional, que se torna ainda mais memorável porque a entrevista é filmada à noite, clandestinamente, sem luz, enquanto uma batida policial procura pelos ativistas. Sonibai e Punya, pais enlutados de Remal Vasave, um adolescente baleado pela polícia durante um levante agrário, falam com firmeza para a câmera de seu compromisso ininterrupto com o andolan, enquanto compartilham uma bebida funerária, dividem uma refeição e fumam com amigos e parentes. Após a refeição, a mãe Sonibai se levanta, vai até a porta aberta, envolvendo a cabeça e o rosto com o sári – e o filme corta para uma barragem silenciosa, com as comportas fechadas. O andolan empregou as armas dos fracos, nomeadamente a capacidade de jogar com os vários registros de legitimação de protestos que marcam a cultura política multifacetada da Índia. Utilizando-se de uma legalidade constitucional precária, ciente das realidades institucionais de coerção e corrupção, o NBA se posicionou simbolicamente por meio de sua adesão altamente manifesta à norma da não-violência (a filiação a Gandhi vividamente representada nas mãos atadas dos manifestantes). Autoentendimento, solidariedade e determinação renovam-se comunicativamente em um vernáculo de música, canto e dança que acompanha os acontecimentos da luta. A musicalidade resistente é apreendida por Dhuru e Patwardhan, integrada em sua sintaxe para orquestrar tempos, ritmos, movimentos, climas. A síntese cinética alcançada, presente ao longo do filme, pode ser ilustrada por um episódio de trabalho de câmera e montagem dinamicamente fluentes: a operação policial para evacuar a vila de Manibeli. Desde o plano inicial (caminhões da polícia entram), até a conformidade inicial (quadros domésticos despojados; objetos pessoais guardados para remoção) – ambos acompanhados por voz over – somos levados a um momento crucial da contestação coletiva. Dois músicos emergem da multidão, fazendo soar um toque de resistência: o primeiro, um homem idoso, mal alimentado, esforçando-se para contrabalançar o peso de um tambor de proporções enormes, avança em direção à câmera, do plano médio para o close-up, até que seu instrumento quase preencha inteiramente o quadro. Uma imagem inesquecível. Em seguida, corta para um final carnavalesco, que figura o domínio comunal da polícia por aldeões dançantes: a câmera gira lentamente enquanto se afasta para revelar o círculo giratório de dançarinos de mãos dadas – em seu centro, um policial confuso e cativo. A sequência se resolve com imagens da rotina bucólica restabelecida (colheitas, lavagens de roupas). Através da mobilização, por parte do andolan, dos idiomas plurais do protesto – formais e informais, tradicionais e modernos, locais e nacionais – a identidade coletiva adivasi é ao mesmo tempo validada e redefinida.


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E os adversários do movimento? Suas vozes, gestos, ações também ocupam espaço expressivo. Um primeiro porta-voz analisa o conflito com a sublimidade patriarcal: “uma noiva chora quando vai para a casa do marido. Os pais também choram, mas sabem que ela deve ir. É natural – uma vez que estejam lá, eles se estabelecerão”. Outros apresentam tropos mais “modernos”, hipostasiando o progresso e o bem comum: “Há uma compulsão para o desenvolvimento...”, “Eu sou um homem de negócios...” (o que não é inteiramente verdade, descobrimos depois). E, quando as coisas ficam sérias, um discurso previsivelmente sinistro se revela – o mesmo Chefe Regional do partido que está no poder no Congresso, que encontramos pela primeira vez falando sobre “desenvolvimento” (a câmera eloquentemente faz uma panorâmica para revelar o gramado imaculado e a mansão que são seus frutos), reaparece após o saque dos escritórios do NBA. Sua inimizade ameaçadora é agora indisfarçável: “Este cachorro morde, não chegue perto dele”. E, no entanto, apesar de tais momentos – incluindo uma entrevista coletiva estranhamente descontrolada com Kamal Nath, Ministro do Meio Ambiente da Índia, cujo cansaço e falta de informações são palpáveis – ​ sentimos que o “poder por trás da barragem”, como nomeado por Medha Patkar, permanece elusivo. É um problema complexo, frustrantemente difícil de lidar. A sensibilidade materializada nesse filme implicado e participativo é profundamente humanista e democrática. O assunto, os meios técnicos, as escolhas estéticas são coerentes. Consideremos o uso da voz over do diretor – não-didática, interrogativa, reduzida, recusando as dissimulações da neutralidade objetivista e as banalidades da autorreferência indulgente. Essa não é a voz do comentário, mas sim da ação comunicativa. Da mesma forma, a câmera portátil (vídeo: meio circulante para atores sociais contemporâneos) busca uma relação interativa com os sujeitos. Estejam agachados, sentados, em pé ou em movimento, os entrevistados são interpelados como indivíduos e iguais. Um homem que perdeu tudo nas águas que sobem, visto por cima do ombro, parado debaixo de uma árvore florida, termina a sua própria entrevista: “Teria sido melhor ter morrido – é tudo o que tenho a dizer”. Com isso, ele se afasta, abandonando o quadro e deixando-o para a folhagem em flor e o lago artificial. A barragem não é deixada de lado como protagonista, surgindo em várias fases de sua construção. Ela é vista geralmente de cima ou em um ângulo oblíquo, com sua verticalidade e monumentalidade curvilínea diminuídas, recusando a imagem-clichê. A escala é frequentemente manipulada, colocando em primeiro plano os manifestantes e os moradores (embora nunca os trabalhadores da barragem, que podem ter sido inacessíveis aos cineastas). Nós vemos através de uma cerca de perímetro. É uma presença invisível que se aproxima. Em uma entrevista poderosa filmada em deslocamento, sob um céu nublado, ouvimos o som de um trovão distante. À medida que ouvimos mais atentamente o estrondo persistente, surge uma suspeita perturbadora: não o trovão das monções, mas o rugido constante da água da represa fornece um comentário sônico sobre esses relatos de expulsão. Essas figurações da barragem conduzem a uma reconsideração dos interesses e estilos documentais opostos exibidos em Narmada Diary. Nas filmagens feitas pelo governo indiano (de Uma Aldeia Sorri etc.), o projeto de engenharia hídrica em grande


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escala é representado como um presente do governo ao povo. A barragem, a linha de energia e o canal de irrigação como vetores universais e inequívocos de uma vida melhor. Mesmo aqueles que estão enraizados e reassentados podem esperar benefícios. “Como esta terra é fértil em Gujarat’s Hareswar!”, entoa o porta-voz do governo diante de seu público inquieto e intimidado pelos deslocamentos. “Muito fértil!”, o eco retorna. “Pai Chandrya, o senhor lamenta ter mudado?” – “Não, não!”. Um posicionamento triangular é estabelecido entre a barragem de Sardar Sarovar (uma forma-fetiche do progresso inelutável), o Governo (iniciados, tutores e administradores dos poderes do fetiche) e uma população de destinatários. Esse estilo de documentário do regime, um resultado tardio dos filmes de “estética do pilão” dos anos 30 e 40, está comprometido com o mesmo romantismo tecnológico que elide o domínio ambiental com a libertação social. Sua retórica de conciliação é projetada para mediar a recepção da escala impressionante e da produtividade generativa da barragem de Sardar Sarovar, incluindo-as no registro da “experiência humana” individual tipificada. A monumentalidade sentimentalizada continua íntegra nessa retórica. A câmera móvel, “pé-descalço”, de Dhuru e Patwardhan descentra e dessublima a barragem, questiona suas promessas – “HARMONIA ECOLÓGICA PLANEJADA ENTRE HOMENS, ÁGUA, TERRA E VEGETAÇÃO”, proclama uma placa indicativa do local da barragem – por meio da presença dissonante e oposicionista do NBA. A recusa do andolan à sujeição de ser um mero recipiente expõe a mega barragem-fetiche e seus asseclas a um interrogatório profano. À medida que observamos, ouvimos e montamos mentalmente os materiais do Narmada Diary, uma sofisticada ecologia política do gigantesco complexo hídrico é tematizada: um conhecimento crítico, seja aquele falado no dia-a-dia ou o vocabulário técnico das requisições ao Governo, ao Supremo Tribunal, ou ao Banco Mundial. Não é a “harmonia”, mas a polarização social e a perigosa desestabilização ecológica que estão impressas no gigantismo de Sardar Sarovar. “Antes de Sardar Sarovar, nossas colinas não tinham estradas. Este ano, as estradas vieram e as florestas foram derrubadas. Agora vai ficar mais quente, a doença vai se espalhar”. “Você não pode comer ou beber eletricidade...”. A recomposição agroindustrial do campo e a crescente urbanização – “canaviais e vasos sanitários com descarga nas cidades”, como observa Medha Patkar – oferecerão pouco conforto aos pobres do campo. Pesquisas governamentais, procedimentos de implementação e carapaças burocráticas são investigados. Cumulativamente, Sardar Sarovar é desmistificada não apenas como tecnologia ambiental, mas também como tecnologia política. Ao escolher seguir a resistência crítica do NBA a Sardar Sarovar, Dhuru e Patwardhan não estão preocupados apenas com o resultado de uma disputa particular sobre os usos do rio Narmada, nem somente com a questão mais ampla da ecologia social do desenvolvimento do capital intensivo. Eles se engajam em uma lida com os estereótipos da Índia em termos de identidade coletiva e relações sociais; construções míticas, épicas, religiosas e políticas sedimentadas de pureza, hierarquia, diferença, alteridade. Um encolher de ombros desdenhoso no saguão de um hotel em Bombaim pode transmitir a realidade da distância social codificada. O incidente, trivial em si mesmo, ocorre em um episódio de incongruências grotescas e perseguições fúteis. Os delegados do NBA


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que tentam conseguir uma entrevista com Lewis Preston, o Diretor do Banco Mundial, em uma visita à Índia após a crise de financiamento, o localizam em um desfile de moda, aparentemente organizado em homenagem ao Sr. e à Sra. Preston. Exigindo admissão, os representantes do andolan encontram seu caminho barrado por um dândi de terno de seda imaculadamente penteado, cujo verniz de sofisticação urbana desmorona na mera aproximação a esses adivasis rústicos. Ele gira sobre os calcanhares, interrompendo o contato – Duhru e Patwardhan aceitam o presente, focam a câmera na linha dos ombros impecavelmente cortada e no comprimento da calça do terno. Embora os delegados falhem em encurralar Preston, eles têm um vislumbre fantasmagórico das principais modelos de Bombaim fazendo sua parte pela indústria da moda da Índia. O trabalho de Patwardhan até o momento parece buscar uma exploração tortuosa, mas consistente das variedades e perplexidades da subjetividade política e da identidade na Índia contemporânea. As identidades “tribais” – como as “outras” conquistadas, subordinadas e atrasadas da Índia – estão agora sendo contestadas pelos próprios adivasis, na recuperação de suas histórias, na busca pelo auto entendimento e na redefinição de suas reivindicações. Os adivasis não são fósseis vivos, nem curiosidades étnicas, mas atores sociais contemporâneos que podem contribuir muito para as forças democratizantes da vida pública indiana. No grande baile de máscaras da resistência de hoje, há muitos dançarinos. Mas movimentos autônomos que expressam as necessidades de grupos sociais até então desprezados, marginalizados ou oprimidos, suas demandas por reconhecimento e justiça social, ainda podem ser distinguidos de coalizões de ressentimento e vitimização espúria. Existem “identidades” e “identidades”… O NBA, em sua resistência específica e local, confrontou as tecnologias do poder na Índia – desde a barragem de energia, que não irá beneficiá-los, até o “poder por trás da barragem”, aqueles que estão organizados para comandar a natureza transformada tecnologicamente. Relações alternativas – equitativas e sustentáveis – na sociedade. Em um momento em que as linguagens e agências da política emancipatória são tão contestadas, tão fragmentadas, a modéstia de se colocar como testemunha observadora pode ser o gesto mais sutil deste documentário.


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Aos que partiram e aos que ficaram, o destino comum >>> They do not exist (Mustafa Abu Ali, 1975) e The roof (Kamal Aljafari, 2006) marcelo pedroso de jesus1

A aproximação entre os filmes They do not exist (Mustafa Abu Ali, 1975) e The roof (Kamal Aljafari, 2006) nos sugere a possibilidade de observar o conflito árabe-sionista a partir da divisão entre aqueles que partiram e aqueles que ficaram. Ou, mais precisamente, entre os que partiram e os que não conseguiram fazê-lo, já que a narrativa do documentário de Aljafari encontra sua gênese na tentativa frustrada de seus familiares de deixarem a Palestina em 1948, após a criação de Israel. “Por que vocês queriam fugir em 1948?”, pergunta o diretor a sua avó, residente da cidade de Jaffa. “Nós estávamos assustados como todo mundo. Os israelenses estavam atirando nos palestinos.” Mas sua tentativa fracassou. O barco em que estavam retrocedeu porque o mar estava muito agitado. Chegaram a ficar uma semana no porto esperando uma oportunidade de tentar novamente a empreitada, mas afinal desistiram. A avó expõe os desdobramentos da diáspora: de todos seus irmãos, só voltou a ter contato com um deles. Outro morreu em um ataque à bomba no próprio porto de Jaffa, enquanto outros dois tornaram-se refugiados na Jordânia e no Líbano. A saga da família é emblemática do que sucedeu a milhares de palestinos em consequência daquilo que chamam de “nakba” – palavra árabe que significa “catástrofe” ou “desastre”. Evocada pelo tio de Aljafari durante a entrevista, a nakba passou a ser usada para designar o êxodo de mais de 700.000 palestinos que foram expulsos de suas casas durante os conflitos que sucederam à criação do Estado hebreu. Enquanto os que partiram tornaram-se refugiados em países vizinhos, os que ficaram passaram a viver sob o jugo de um governo militarizado que lhes nega sua própria existência. Tal negação se expressa de várias formas mas nenhuma tão explícita quanto a frase, quase sentenciosa, proferida por Golda Meir, primeira ministra de Israel entre 1969 e 1974, em entrevista a um jornal britânico. “Não é como se houvesse um povo palestino na Palestina considerando a si mesmo como tal e nós chegamos e o tiramos de seus

1. Trabalha com audiovisual há aproximadamente 15 anos, mora em Recife, onde desenvolve atividades profissionais e militantes ligadas ao cinema (realizador, pesquisador e educador).


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país. Eles não existem.” A formulação foi retomada por Mustafa Abu Ali para dar nome ao curta que registra a vida no campo de refugiados palestinos de Nabatieh, no Líbano, antes e depois de um ataque aéreo israelense que dizimou a população. Ter deixado o território palestino, como as personagens de They do not exist, ou ter permanecido, como em The roof, tornam-se movimentos de um regime de experiências que, embora diferentes, partilham de condições análogas, como o alijamento do território, o cerceamento dos direitos, o risco iminente à vida, a reconfiguração da existência a partir da ressignificação da ideia de pertencimento. Um destino comum que se faz notar por uma sensação de confinamento que atravessa os dois filmes, demarcando uma experiência de cotidiano sitiado, onde as personagens parecem sempre expostas a uma força exterior que as quer limitadas e circunscritas às definições do regime de não-existência imposto pelo projeto sionista. “Às vezes eu ando pelas ruas de Jerusalém e quando falo árabe, as pessoas reagem como se não vivêssemos no mesmo país. Como se tivessem medo”, responde a irmã de Kamal Aljafari à pergunta do diretor sobre como é viver em Israel. Não pertencer ao país ou despertar medo entre seus habitantes “legítimos” são traços do propósito genocida que definem o imaginário de representações possíveis dos árabes de acordo com a visão construída pelo Estado hebreu. Estes dois pólos de significados conferem a palestinos o estatuto de párias, ora identificados com o estrangeiro, ora com o terrorista. Um arco de representações que justificam e autorizam as violências, físicas e simbólicas, praticadas contra este “outro” que cabe na designação de “não-judeu” imposta aos palestino após a nakba. Neste caso, o “não” que precede a categorização do tipo de existência tida como ideal – qual seja, a judaica, objeto dos esforços de defesa, manutenção e prosperidade – sinaliza não apenas para o reverso do padrão desejado como também para a ameaça e o risco a sua efetivação. Acontece que todo projeto genocida (como o que acomete os “não”-brancos aqui no Brasil) supõe a implementação de uma complexa engenharia que atua no simbólico a fim de descaraterizar e muitas vezes subtrair a humanidade dos grupos-alvos. Edward Said, em sua trajetória intelectual e também militante, insistia na importância de se reverter esse imaginário como estratégia de interromper o extermínio. “Simplesmente nunca aprendemos a importância de organizar nosso trabalho político, de modo que, por exemplo, o norte-americano médio não pense imediatamente em ‘terrorismo’ cada vez que se diz a palavra ‘palestino’”. O que antecede ou se dá em paralelo aos conflitos físicos, Said parece querer ressaltar, é a batalha travada no plano dos discursos, das representações, dos afetos que determinam a sensibilidade que desenvolvemos para enxergar o outro. “Israel tem podido lidar conosco com impunidade pelo fato de não contarmos com a proteção de qualquer opinião pública capaz de impedir Sharon de cometer seus crimes de guerra e dizer que o que ele fez foi combater o terrorismo” (SAID, 2003, p. 152), escreve o autor em 2002, durante a segunda Intifada.2 2. SAID, Edward. Cultura e política. Boitempo Editorial: São Paulo, 2003.


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É aqui que entra em cena o cinema como ferramenta de luta, instrumento frequentemente evocado por grupos militantes como estratégia de disputa das narrativas e também das sensibilidades. Embora através de formas distintas, tanto They do not exist quando The roof operam a partir de uma chave que visa intervir sobre o imaginário dominante, introduzindo testemunhos dissonantes que desestabilizam os modos hegemônicos (aqueles construídos pelos “vencedores”) de se perceber uma realidade. They do not exist adota um tom assertivo, manifestamente engajado nos discursos revolucionários de seu tempo, alinhando-se aos postulados do Terceiro Cinema. No início, o filme dá ênfase à presença de crianças e mulheres no assentamento. A seleção de imagens parece querer confrontar explicitamente a frase de Golda Meir que dá título ao documentário. A inscrição das vidas reinventadas no campo de refugiados não só responde à sentença negacionista como também atua para causar-lhe uma torção: ao denunciar o ataque aéreo israelense que destruiu três quartos do campo, o documentário atribui ao próprio Estado hebreu a responsabilidade de querer fazer desaparecer aqueles que ele nega existir. A ideia de exílio, presente na condição dos refugiados que aparecem no curta, também se manifesta no longa de Aljafari, apontando para o contraditório quadro de pessoas exiladas em sua própria terra, uma terra alijada. Os longos e cirurgicamente orquestrados travellings, as composições rigorosas das paisagens e corpos acentuam a persistência da nakba como um processo recalcitrante, constantemente reposto naquelas vidas. Cultivando, quem sabe, a ideia de um telhado inacabado como condição de incessante devir aberto a soluções fora da escala de possíveis que aparecem hoje no horizonte dos povos e territórios envolvidos no conflito.


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A classe roceira: o cinema e a gênese do MST no Paraná rafael urban1

Corria o ano de 1985 e a cineasta paranaense Berenice Mendes tinha recebido uma quantia que ela estima hoje ser de R$ 20 mil pelos direitos de exibição nos cinemas de seu curta O foguete Zé Carneiro (1983), uma atualização do clássico Viagem à lua (Georges Méliès, 1902) protagonizado por duas crianças de classe média. Mendes recebeu o valor em dinheiro devido à Lei do Curta – em vigor naqueles anos, quando filmes curtos brasileiros antecediam à projeção comercial de longas-metragens –, o que também lhe valeu latas de 35mm, as quais trocou por 16mm para dobrar o tempo de película disponível para seu trabalho seguinte. Foi nesse contexto que ela se deparou pela primeira vez com as imagens dos agricultores sem terra no sudoeste do Paraná, tema de seu média-metragem documental A classe roceira (29’, 1985). “Começaram a aparecer na imprensa fotografias de famílias inteiras, com crianças, morando em lonas pretas às margens das estradas. Muitas pessoas: com frio, chuva. E, na história do Paraná, a questão da terra é central”,2 explica a diretora.3 Quando Berenice Mendes decide usar os recursos materiais do prêmio e parte para filmar sete acampamentos no sudoeste paranaense – durante a Semana da Pátria 1. Cineasta e professor de documentário na EICTV, em Cuba. É mestrando em Cinema e Artes do Vídeo na Unespar, em que pesquisa a produção de documentários engajados no Paraná entre 1974-1988. 2. O debate sobre a ocupação do território paranaense já havia aparecido nos documentários Comunidades Rurbanas (1982) e Londrina (1984), em que Berenice Mendes trata do norte do estado. 3. Em entrevista realizada por videoconferência em 02 de outubro de 2020. É interessante que o discurso de Berenice Mendes assemelha-se ao de Tetê Moraes ao narrar a motivação para filmar Terra para Rose (1987): “Saiu


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de 1985, como informa a narradora –, acredita que o cinema teria função efetiva no embate pela reforma agrária,4 ao somar-se de fora para dentro nessa luta: “O filme teria que funcionar como um antídoto à obsolescência daquele movimento. O sistema termina sempre por assimilar tudo, por integrar toda possível diversidade ou contestação racional” (MENDES, 1987, p. 19). Parto da premissa da realizadora para analisar como a estrutura de um trecho específico do filme engaja no cinema a energia do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), conhecido então como Movimento dos Agricultores Sem Terra.

Frames, respectivamente, de A classe roceira e Terra para Rose

A classe roceira acompanha o cotidiano e o trabalho dos acampamentos, em narrativa permeada por quatro canções, apresentadas como meio de união e transmissão da narrativa do movimento. Ainda que mais curto, ele dialoga, na abordagem, com outro filme da época, o longa Terra para Rose (1987), dirigido por Tetê Moraes e filmado no Rio Grande do Sul.5 As narrações que conduzem as narrativas são de duas atrizes conhecidas: no caso de Terra para Rose, é de Lucélia Santos; no de A classe roceira, de Bete Mendes. Em ambos estão presentes os testemunhos de mulheres enquanto trabalham, o hábito do chimarrão, as marchas pela terra, o embate com policiais militares, os discursos torpes de latifundiários, as tomadas gerais dos acampamentos atravessados por faixas pedindo pela reforma agrária, e as entoações, também coincidentes, de A classe roceira – considerada como o primeiro hino do MST (BOGO, 2011, p. 115). Feita poucos dias depois do golpe de 1964 e proibida pela ditadura em 1967 (CALDART, 1987, p. 73), a canção que dá título ao filme de Mendes é a alcunha popular de A grande esperança, de Goiá e Francisco Lázaro, cuja primeira estrofe é a seguinte: na imprensa, né? Fotos daquele acampamento; aqueles barracos de lona. Que era uma imagem completamente nova – isso nunca tinha acontecido” (MORAES, 2020). 4. Em abril de 1985, o presidente José Sarney havia decretado a criação do Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário – MIRA (BRASIL, 1985); em outubro, um mês depois das filmagens de A classe roceira, (BRASIL, 1985b), outro decreto Aprova o Plano Nacional de Reforma Agrária – PNRA. 5. Terra para Rose parte dos desdobramentos da ocupação da Fazenda Annoni, em 29 de outubro de 1985 (MEDEIROS, 2018).


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“A classe roceira e a classe operária/ Ansiosas esperam a reforma agrária/ Sabendo que ela dará solução/ Para a situação que está precária”. Terra para Rose, como especificidade, tem personagens que vão reaparecer em diferentes momentos da narrativa, uma diferença decorrente da própria natureza das filmagens – realizadas no transcorrer dos meses e em diferentes contextos, em oposição aos sete dias de rodagem de A classe roceira. É em longa sequência com outra música, entretanto, que veremos o que entendo ser a principal colaboração de A classe roceira ao constituir, no cinema, a força da gênese do MST no Paraná. Somos levados à sequência em questão pelo depoimento da costureira Alzira, que a antecipa. Enquanto trabalha em uma máquina de costura – e fala da capacidade de reaproveitar roupas devido à situação precária –, ela está circundada por um grupo de pessoas que fazem crochê. Alzira conclui sua participação já em off, com a frase que reforça o trabalho comunitário – “nós temos uma família unida aqui”; na tela, a imagem de uma mulher e de um homem tricotando lado a lado, em uma revisão de expectativa de gênero, a qual o movimento defende. Corta-se, então, para um garoto que, com seus sete anos, vestindo blusa de crochê adequada ao clima frio da região, se prepara para cantar à capela e para a câmera as três estrofes de No colo da fome, uma paródia sem autoria identificada de No colo da noite, da dupla Milionário & José Rico (BOGO, 2020, p. 40). Há uma certa melancolia na maneira com que ele, tão jovem, evoca a música que carrega o peso histórico brasileiro enfrentado pelo movimento.


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Tou cansado de tanto esperar a reforma agrária Saí à procura de terra no mundo sem fim Tão depressa eu me deparei com o latifundiário Vi que a terra existe para poucos, menos para mim. Os patrões que eu tive na vida só me maltrataram Promessas, bonitas promessas, fizeram em vão Só miséria, dor e tristeza comigo ficaram E da safra que eu já fiz, agora, é só recordação. Caminho em rumo direto pra favela eu sigo Não tenho conforto de nada pra levar comigo A miséria é minha companheira, escurece os caminho [refrão 2x] No colo da fome, adormeço, morrendo aos pouquinho.

Enquanto ele canta, sua imagem é substituída por uma sequência de cenas com crianças: cruzando o quadro com carrinhos de mão feitos de madeira, escorregando em um barranco, pulando corda, jogando bola de gude.

Aqui, a montagem reforça a dimensão coletiva do movimento, operando uma passagem do indivíduo para o grupo: corta-se da sequência musical na voz de um único garoto (já acompanhado das imagens de outras crianças) para um grupo de


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cinquenta pessoas, puxado por dois homens ao violão, em uma ribanceira, que iniciam, enquanto cantam a primeira estrofe de No colo da fome, uma lenta descida em direção à câmera, a qual recua à medida que o grupo marcha. Ao fundo, hasteada a bandeira brasileira, que tomará o centro do quadro na última cena do filme. A cantoria segue em off; em campo, uma sequência de retratos, agora com gente de todas idades: cerca de trinta adultos encaram a câmera posicionados embaixo de uma trave de campo de futebol de terra batida; um grupo misto de crianças e jovens também nos olha. Na repetição do refrão, uma panorâmica revela as roupas secando nas cercas usadas como varal junto à imensidão de barracos a perder de vista. Entre as moradias, muita gente caminhando, pequeninos na perspectiva ampliada. “No colo da fome, adormeço, morrendo aos pouquinho” cantam; o acampamento, porém, está cheio de vida.

Em um corte brutal, A classe roceira vai nos transportar da potência do coletivo – que resiste e sobrevive à fome – ao mundo do coronel da sociedade patriarcal e herança escravocrata. Em primeiro plano está um homem branco, o fazendeiro Kit Abdala, da Sociedade Rural do Sudoeste do Paraná. Em segundo plano está um homem negro, funcionário, domando um cavalo preto; ao fundo, um sem fim de cercas da propriedade. É a organização de uma mise-en-scène contundente proposta pela diretora e da qual o ruralista, “muito vaidoso”, ficou confortável em participar (MENDES, 2020). A torpeza do opositor, na construção do documentário, dá ainda mais sentido ao discurso de justiça social do movimento. O texto de Abdala é o do achincalhamento do MST: se diz contrário à reforma agrária estimulada por “profissionais de invasão de terra que querem invadir por invadir e vender os seus títulos” e por “líderes que recebem dinheiro do exterior”. Trata-se de uma sequência de fake news do empresariado da época – o que faz uma ponte com a criminalização dos movimentos sociais no Brasil do presente. A posição do filme será reiterada na cena seguinte, filmada do ponto de vista do passageiro de um veículo, o qual é parado por um grupo de agricultores sem terra às margens da rodovia, quando um deles se dirige à câmera: Bom dia companheiro. Aqui nós temos um folheto, um alerta, um relato do nosso movimento, um movimento pacífico. Esperamos que por intermédio desse movimento e desse panfleto


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nós sejamos enxergados pelos governantes e que a nossa reforma agrária se constitua a mais ampla possível para a solução dos sem terras que estão aqui precisando de um pedacinho de chão.

Berenice Mendes, ao buscar enfrentar com o cinema a hipotética obsolescência do MST, não previa uma vida tão longa e próspera do movimento. Tampouco que participaria de Uma luta de todos (24’, 2000), produzido coletivamente quando ela foi convocada com a produtora Lu Rufalco a dar uma oficina de audiovisual ao MST durante o Festival Internacional de Londrina (FILO). Ou ainda que, 16 anos depois de filmar A classe roceira, realizaria Sonho concreto (20’, 2001), sobre uma violenta investida por parte da polícia do Governo Jaime Lerner6 que levou à morte do agricultor Antônio Tavares Pereira. Mais tarde, em 2007, o MST fundaria o seu braço de produção audiovisual (LIMA, 2014, p. 152), conhecido hoje como Brigada de Audiovisual Eduardo Coutinho. Em A classe roceira, no texto do poeta Jaques Brand lido por Bete Mendes, repete-se três vezes um mantra que segue à espera de resposta: “A sociedade urbana um dia vai querer saber de onde vem a comida que ela come”.

Referências BOGO, Ademar. Linguagem em prosa e verso: uma mediação para a formação da consciência. 2011. 148 f. Monografia – Licenciatura em Letras Vernáculas, Universidade do Estado da Bahia, 2011. BOGO, Tainan Cristina de Araujo. Canções da terra: a produção musical do MST como instrumento de luta social. 2020. 123 f. Dissertação – Programa de Pós-graduação em Estado e Sociedade, Universidade Federal do Sul da Bahia, 2020. BRASIL. Decreto no 91.214, de 30 de Abril de 1985. Cria o Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário - MIRAD, dispõe sobre sua estrutura, e dá outras providências. 1985. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1980-1987/decreto-91214-30-abril-1985-441369-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 29 set. 2020. BRASIL. Decreto No 91.766, de 10 de Outubro de 1985. Aprova o Plano Nacional de Reforma Agrária - PNRA, e dá outras providências. 1985b. Disponível em: https://www2. camara.leg.br/legin/fed/decret/1980-1987/decreto-91766-10-outubro-1985-441738-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 29 set. 2020. LIMA, Rafaella Pereira de. Cultura, movimentos sociais e lutas sociais: a experiência da produção de vídeo popular pela Brigada de Audiovisual da Via Campesina. 2014. 192 f. Dissertação – Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Mestrado em Serviço Social, Universidade Federal de Juiz de Fora, 2014.

6. Jaime Lerner governou o Paraná por dois mandatos, entre 1995 e 2002.


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MEDEIROS, Catiana de. O legado de Roseli Nunes, um símbolo da luta pela terra no Brasil. 31 mar. 2018. Disponível em: https://mst.org.br/2018/03/31/o-legado-de-roseli-nunes-um-simbolo-da-luta-pela-terra-no-brasil/. Acesso em: 5 out. 2020. MENDES, Berenice. Berenice Mendes: vitória em Fortaleza. Depoimento. Nicolau, v. I, n. 3, p. 18-19, set. 1987. MENDES, Berenice. Entrevista realizada por Rafael Urban por videoconferência. 2 out. 2020. MORAES, Tetê. Entrevista realizada por Cláudia Mesquita e Gabriel Araújo no contexto da LONA – Mostra Cinemas e Territórios. 11 jun. 2020. Disponível em: https://www. youtube.com/watch?v=HHbO6AqTLmc. Acesso em: 11 jun. 2020.


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O canto é a verdade dos lugares >>> Nũhũ yãgmũ yõg hãm: Essa terra é nossa! (Isael Maxakali, Sueli Maxakali, Carolina Canguçu e Roberto Romero, 2020) césar guimarães1

Andando lado a lado com um grupo de pajés e cantores Tikmũ’ũn (Maxakali), um filme se faz ao percorrer o território onde os antigos – na companhia dos yãmĩyxop (os povos-espírito) – viviam em casas de madeira e folhas de palmeira, e caçavam na vastidão das matas que se estendiam por todo o Vale do Mucuri, fazendo fronteira com a Bahia e o Espírito Santo. É a voz de Isael que comenta as primeiras imagens de Nũhũ yãgmũ yõg hãm: Essa terra é nossa! – os desenhos do príncipe e naturalista prussiano Maximiliano de Wied-Neuwied, que percorreu a região do Mucuri na segunda década do século XIX. “Antigamente, há muito tempo, os brancos não existiam aqui nestas terras”. (A trilha sonora traz risos de crianças, pios de pássaros e passos entre folhas). Invasores e expropriadores – “bravos como as abelhas e as formigas” – os brancos fizeram das imagens um modo de contar a sua história e apagar aquela dos povos que há muito habitavam o mundo que eles “conquistaram” e saquearam. Diante das cenas de um filme de 1930 que mostra os habitantes de Teófilo Otoni em praça pública, algumas autoridades ou membros da elite local, bem como a extração de madeira e a atividade das serrarias, a montagem sobrepõe o comentário de Isael: “A mata era grande, dentro dela havia árvores enormes. Mas os brancos pegaram elas, descascaram e venderam para outros brancos fazerem tábuas para construírem suas casas. Mas as árvores são encantadas. Tinham espíritos dentro delas. Hoje, não existe mais floresta aqui. (...) As árvores compridas acabaram, mas os cantos delas ainda existem”. Quando surge, de muito alto – captada por um drone – a imagem da terra grande (esverdeada e desmatada), compreendemos que este filme se fará à procura do que ainda vive em torno daquilo que desapareceu, como nas palavras do canto, entoadas repetidamente: “saudades das árvores compridas/saudades das árvores compridas”. Os cantos, uma dia aprendidos com os yãmĩyxop, permitirão o reencontro com os 1. Professor Titular do Departamento de Comunicação Social da FAFICH-UFMG e pesquisador do CNPq.


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lugares onde eles surgiram, tempos atrás. A transmissão ainda se faz, contra todas as perdas e apagamentos. O filme, porém, não se contenta com isso. Com seus recursos expressivos próprios, ele se propõe a buscar e a criar os índices, gestos e testemunhos que assinalam, materialmente, a inscrição e a elaboração da história e da memória do povo Tikmũ’ũn. Ele compõe uma cartografia visual das moradas dos antigos e dos lugares de origem dos cantos, seguindo, dentre outras, as indicações de Manoel Kelé e Dona Delcida, mãe de Isael. Kelé nos conduz à caverna na qual os maxakali um dia se esconderam, perseguidos pelos soldados, e onde o xũnĩm (o morcego-espírito) encontrou abrigo quando o mato acabou. “Eu deitava aqui quando era pequeno”, diz Kelé. Enquanto ele segura nas mãos um morcego com as asas abertas, os pajés cantam para que os Tikmũ’ũn e os xũnĩm tenham o que comer e onde dormir. Em um admirável plano sequência, ao percorrer a estrada de chão margeada pelos pastos e bois, próxima à cidade de Batinga (denominada pelos Maxakali de “Tatu caro”, onde muitos parentes foram mortos), Dona Delcida sofre – e ignora – as zombarias de dois homens, ao lado de uma moto: “O que ela procura? Ela é cega, não?”, diz um deles. Nômade e vidente, ela vê o que os brancos nunca viram e jamais verão. Em outra passagem, quando o grupo dos Tikmũ’ũn chega à região da Pedra Branca, Isael pergunta: “Mãe, o que você viu aqui?”. O espaço atual, enquadrado, abre-se ao tempo de outrora, e ela conta o episódio da anta que teve o corpo partido ao meio, apanhada em pesada armadilha. Foi esse acontecimento que deu o nome ao lugar: “onde a anta se partiu”. O enquadramento não apanha o que Dona Delcida vê. Com um movimento do braço, ela aponta para o que não vemos e não conhecemos: “A terra ia até lá, onde tem um rio”. Ou então, ao indicar a Gameleira Branca onde as crianças balançavam no cipó, acima das águas: “É a nossa terra mesmo, onde nós morávamos, quando éramos pequenininhos”. A aldeia que existia ali desapareceu, mas a gameleira ainda está lá. Quem sabe, outras crianças virão se espalhar por essa terra (como escutaremos mais adiante).


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Essa caminhada feita em dois espaços, simultaneamente, pelo território atual – cercado e vigiado pelos fazendeiros e vaqueiros – e pelas terras grandes habitadas pelos antigos (em seu fora-de-campo absoluto), é atravessada por acontecimentos violentos, que são narrados e documentados. No quadro branco da escola da aldeia, são listados os nomes dos vinte e um maxakali assassinados, em lugares e condições diversas. Os criminosos – fazendeiros e capatazes – permanecem impunes. À direita, no alto, a data: 17 de maio de 2019. Findo o canto dedicado aos desaparecidos, os pajés olham para os nomes e pedem: “Olhem por nós. Estávamos falando de vocês. Nos ajudem para nossa terra voltar”.

Um segundo movimento realizado pelo filme consiste em ir até os locais dos crimes cometidos contra os Tikmũ’ũn e ali produzir uma nova cena, feita do registro de depoimentos e testemunhos. É o que acontece quando Pinheiro, diante do túmulo do irmão, Osmino, relembra como ele foi assassinado: “Ele estava deitado na cancela, veio o branco e matou”. O fazendeiro escondeu o corpo nas imediações. Quando ele foi encontrado, o pai de Osmino decidiu enterrá-lo ali. Depois – prossegue Pinheiro – a mulher de Osmino, Daldina, foi atropelada e seu filho, Rominho, também foi morto. Em Batinga, o pajé Vitorino descreve como seu irmão, Renato, foi assassinado por um grupo de brancos: ele estava dormindo na calçada, deram chutes e socos nele, e passaram a moto por cima. Na saída da cidade, na direção de Jeribá, ao relembrar a morte de Vicente Maxakali, atropelado por um caminhão e deixado morrer à míngua na beira da estrada, o filme faz um de seus gestos mais potentes. No muro arruinado de um padrão de energia elétrica, Isael escreve, na língua Tikmũ’ũn, com tinta vermelha e traços largos de pincel: “Essa terra é nossa”. Diante da marca dos ausentes, eles fazem seus pedidos: “Para as nossas crianças. Para a gente poder se espalhar de novo por essas terras onde os brancos nos mataram”. Mais do que um trabalho de luto e de denúncia, trata-se de


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destinar os desaparecidos ao futuro, de tê-los ainda consigo no tempo que virá (esta memória não guarda nada no passado; se ela conserva algo, é para lançá-lo ao devir). Visionários e andarilhos, os pajés e cantores avançam até onde a vista não alcança, à procura dos cantos que um dia deram nome e memória aos lugares, para reencontrá-los e endereça-los aos que virão. Eles percorrem os caminhos – mapeados por Dona Delcida – que os antigos traçaram, como Vitorino afirma: “Agora estamos caminhando por aqui para Tupã nos ver e fazer as nossas árvores, o nosso capim verdadeiro e os nossos yãmĩyxop voltarem”. Essa jornada foi um reencontro – agora descobrimos – quando um dos pajés, Israel, olha discretamente para a câmera e afirma: “Antes eu ouvia os cantos, mas agora eu vi”. Ao final do filme, reunidos no quadro, no lugar onde existiu a aldeia Gameleira Branca, os pajés e cantores lançam novamente seus votos e desejos: “Que os nossos yãmĩyxop possam reconquistar esta terra para nossas crianças morar aqui de novo”. Porém, o canto que encerra o filme, indexado ao nome do lugar (Katamak Xit), reenvia à violência e ao trauma que o fundou: ele fala do homem branco de roupa verde que matou uma vaca, vendeu a carne, comprou tecidos e uma espingarda, e “saiu atirando, saiu atirando” (como repetem os últimos versos).


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Sequizágua1 >>> sobre filme de Maurício Rezende roger koza2

Tradução: Gabriela Albuquerque

Sequizágua é um filme pequeno de coração imenso. Quem o dirigiu foi o estreante, Maurício Rezende, e quem o escreveu foi uma das figuras fundamentais do cinema independente brasileiro, Affonso Uchôa. O filme trata da economia de uma comunidade de camponeses que não consegue sobreviver de suas suas plantações devido à seca da região. Em uma didática e dialética passagem inicial, um homem leva em suas mãos dois galhos que o ajudam a detectar água subterrânea na superfície seca por onde caminha. Enquanto isso, sua voz enumera a vida silvestre que uma vez existiu nesse mesmo território. O som recupera a história, a imagem a contradiz no presente. O que foi que aconteceu? No início, o homem olhando à câmera denuncia a desgraça da região. Os interesses desonestos dos poderosos e de suas companhias alteraram a ordem do ecossistema. Em outros lugares pode ser a soja, mas nesse caso trata-se do eucalipto; a racionalidade instrumental pode atribuir à monocultura uma rápida oportunidade para lucrar, uma forma de acumulação da riqueza que nunca chegará aos moradores das terras de outrora, aqueles que ainda insistem em restituir um modo de vida do século passado. Com essa descrição Sequizágua podia ser um filme destinado à denúncia, cuja força política se estrutura no testemunho e na descrição direta de planos cinematográficos que provam o ecocídio. De certa maneira, o filme não abandona essa missão política, mas a sua poética aparece antes da denúncia e acima dos valores pragmáticos que almejam insistentemente viabilizar um drama “minúsculo”. O que acontece então em Sequizágua? No prólogo há um lindo plano que pode ser o resultado de uma poética. João, um dos antigos moradores que ainda comemora os velhos tempos, quando a quantidade de milho era tanta que servia para o próprio consumo, bem como para o escambo por outros produtos de subsistência, para em uma paisagem deserta. Sua barba branca à

1. Excerto extraído do original em espanhol sob o título "Mostra de Cinema de Tiradentes 2020 (02): La barba y la nube", gentilmente cedido pelo autor. Disponível em: <http://www.conlosojosabiertos.com/ mostra-cinema-tiradentes-2020-02-la-barba-la-nube/>. 2. Programador, curador e crítico, atua em festivais de cinema em diferentes países.


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esquerda do plano parece sintonizar com a única nuvem que existe no céu. A combinação é incrível. A relação entre a brancura de sua barba e a formação de vapor do mesmo tom cromático pode ser algo desejado, uma feliz coincidência do enquadramento, ou talvez uma aleatória amálgama que induz o pensamento sobre a relação entre a falta e a necessidade, entre aquilo que cresce e precisa de um estímulo meteorológico que nunca vai chegar. A reunião desses signos heterogêneos pode culminar em uma hipótese ainda mais questionável, mas não por isso menos bela, como se aí residisse a intuição do filme: ante a seca, os homens e as mulheres podem obstinar-se na espera e ao mesmo tempo acudir à ficção enquanto exercitam sua paciência. Esse é o caminho tomado por Rezende, caminho que ele empreende com seus personagens. Ainda assim, o cineasta é capaz de abrigar os costumes dos moradores, que veem na teologia herdada uma resposta às suas súplicas, moradores nos signos da sua própria ficção. No coração do filme, a ficção recolhe as ficções que constituem um esquema de interpretação do mundo da comunidade, o registro documental da imaginação reside na religião, que está longe de estar atrelada à literalidade do dogma. Nas duas paisagens onde se reza e se revivem alguns ritos pretéritos, se decantam loucas interpretações e algumas práticas extremamente lúdicas para os padrões da correção eclesiástica. Essa particularidade de um imaginário se entrelaça perfeitamente com a vontade de ficção que se impõe sem prepotência. Lentamente, Sequizágua avança sobre a evidência documental dos seus materiais e os organiza em uma zona limite, onde são reescritos com uma lógica própria da ficção que se nutre com experiências reconhecíveis para qualquer membro da comunidade retratada: os velhos e os adultos desejam persistir e retomar uma forma antiga de vida, os mais jovens hesitam entre ficar na região e ajudar a reconstruir um velho estilo de vida ou simplesmente migrar para os centros urbanos; já os menores aprendem, brincam e sobem nas árvores, observam seus irmãos maiores e escutam seus pais envelhecidos. A vida cotidiana é regida pela reiteração e pelos instantes de fuga. Recolher esses indícios e torná-los ficção é uma virtude de um bom cineasta. Assim, sobre circunstâncias inegáveis, Rezende adiciona detalhes que desarranjam a mera transcrição do que está dado em um contexto e em um tempo. E, com tão pouco, ele consegue. É preciso apenas uma criança e seu amigo irem buscar umas plantas medicinais para aliviar a enxaqueca da mãe deles e se perderem num bosque durante a missão, para que comece o imprescindível de um conto. Apenas com isso, por exemplo, é que se introduz o melhor dos suspenses, e é assim que acompanhamos a busca empreendida por Débora, preocupada com os irmãos desaparecidos. Ela, com certeza, é o centro da dignidade de todo o filme. Vê-la brincando de “amigo invísivel” com seus colegas de curso, ensinando matemática ao seu irmão, cuidando de sua mãe e seu pai, indo a uma festa ou apenas pensando é a glória do filme. No entanto, como é possível filmar o movimento do pensamento? Basta criar um plano e contra plano no qual Débora contempla a partida de moto de uma grande amiga à cidade, sustentar seu olhar em uma subjetiva sem tempo, onde a figura de sua amiga na moto se perde, como em um filme de Kiarostami; ou talvez introduzir o


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canto das cigarras como trilha sonora de um ecossistema que expulsa as suas criaturas. Logo, como filmar a dignidade? Basta escolher o momento exato de um relato, quando alguns homens que trabalham na terra param e descansam, e o cineasta, decidido em vê-los em sua rápida pausa, lhes dá a atenção merecida. É assim que quatro planos fixos irrompem o relato e esse substantivo tão repetido, a dignidade, isso que não sabemos muito bem o que significa, é patenteada pela graça da fotogenia. Como não ficar comovido ante o suor no braço esquerdo de um homem, essa matéria líquida que comumente é o fora de campo de todo trabalho físico e que podemos ver por apenas um segundo no último retrato dessa sequência? É nessa microscopia que reside o encanto de Sequizágua, um filme que muitos, apressadamente, evidenciando a mesquinhez de sua compreensão, julgarão como um filme menor.


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“Como suas palavras são lindas!” dedicado à memória do rezador Valdomiro Flores, indígena Ava do Coração da Terra - Ava Yvy Pyte paulo maya1

A aurora é apenas o início do dia; o crepúsculo é sua repetição. (Claude Lévi-Strauss)

Tonico Benites defendeu sua tese de doutorado em antropologia no Museu Nacional (PPGAS/UFRJ) em 2014, a primeira inteiramente dedicada à história do movimento indígena Aty Guasu dos Ava Kaiowa e Ava Guarani [Ava contemporâneos] e os diferentes processos de retomada e ocupação de terras tradicionais, seus tekoha, no estado do Mato Grosso do Sul nas últimas três décadas. Ele mesmo uma liderança kaiowá da Aty Guasu,Tonico Benites é responsável, juntamente com outros indígenas que na última década acessaram diferentes programas de pós-graduação no país, por toda uma re-escritura da história dos territórios indígenas, de norte a sul, de leste a oeste do país, muito diferente daquela narrada pelos não-indígenas. Essa nova escritura não está descolada, muito ao contrário, da ação política indígena de retomada e gestão territorial de suas terras tradicionais, sendo que boa parte dessas terras continuam sendo ocupadas ou judicializadas por não indígenas, marcadas portanto por expropriações e despejos, em suma, todo tipo de injustiça territorial e cobiça fundiária (BENITES, 2014). Se as universidades têm colaborado nesse movimento de escritura e retomada, como fica evidente pelo percurso acadêmico e político de Tonico Benites, podemos dizer que o audiovisual também tem tido um papel fundamental, como atestam os filmes realizados por jovens kaiowa da tekoha Guaiviry (MS) articulados ao programa de extensão universitário “Imagem, canto, palavra nos territórios Guarani e Kaiowa” coordenado pela professora Luciana Oliveira (PPGCOM/UFMG). Ava Marangatu (2016, 15 min.) e Ava Yvy Vera - A terra do povo do raio (2016, 52 min.) estrearam no forumdoc.bh.2016 tendo sido realizados a partir de oficinas de filmagem ministradas pelo programa de extensão mencionado anteriormente. Genito Gomes, John Nara Gomes, Valmir Gonçalves, Johnatan Gomes, Ediana Ximenez, Dulcídio 1. Antropólogo e professor associado da Faculdade de Educação (UFMG). Co-fundador e curador do forumdoc. bh, destacam-se as mostras: Melanésia (2008), Direto.doc (2010), Animal e a Câmera (2011), Queer e a Câmera (2016) e Mortos e a Câmera (2019).


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Gomes, Sarah Brites, Joilson Brites foram os jovens que participaram dessas oficinas e que assinam a realização e imagens. Yvy Pyte - Coração da Terra (Guaiviry, 2019, 7min.), filme/homenagem dedicado a memória do rezador/nhanderu Valdomiro Flores, é o terceiro filme realizado com o tekoha Guaiviry, território de retomada na BR-463 e MS-386, localizado nos municípios de Aral Moreira e Ponta Porã (MS) e, além de dirigido por Genito Gomes e John Nara Gomes, se difere dos dois primeiros tanto em sua forma quanto em seu conteúdo, apesar de todos serem marcados pela proeminência da fala dos anciões e antigos como guias da experiência cinematográfica nos tekoha, um encontro com as lindas palavras. Nos primeiros filmes, como atesta Genito Gomes em depoimento gravado durante o evento Mekukradjá – Círculo de Saberes: Língua, Terra e Território, em outubro de 2017 (SP), a intenção ali era experimentar, bem como aprender a filmar “várias partes” do tekoha Guaiviry guiados pela fala/memória de seu pai e outros rezadores Ava. Contribuindo assim na retomada da cultura e, ao mesmo tempo, comprometidos em registrar o modo de vida tradicional nos tekoha para que as próximas gerações possam acessar mas, também, para circular fora do território, do estado e do país a fim de que outros indígenas e não-indígenas possam conhecer como os Ava Guarani e Kaiowa vivem e lutam pela posse definitiva de seus territórios. Genito Gomes destaca, no filme Ava Yvy Vera - A terra do povo do raio, toda uma negociação necessária entre realizadores e rezadores para que fosse possível filmar os relâmpagos, trovões e, principalmente, os raios. Os rezadores tiveram que pedir permissão para filmar seus ancestrais sob risco, do contrário, dos equipamentos de filmagem serem queimados ou destruídos, demonstrando,assim, um arranjo ou negociação cosmopolítica que se inscreve no cerne desse cinema dedicado à retomada dos tekoha expropriados e devastados pela monocultura da soja. Em Ava Yvy Vera, comenta Ana Carvalho (2016), “a memória se faz presente na paisagem, nos corpos e na palavra”. Por seu turno, Yvy Pyte, é focado inteiramente na fala/palavra/Ñe’e do rezador/nhanderu Valdomiro Flores sobreposta, do início ao fim imagens gravadas de dentro de um automóvel em movimento num espaço que nunca tem fim, de diferentes pores de sol em territórios parcialmente identificáveis, destacando-se nas imagens um único corpo, o corpo solar celestial. Já na banda sonora… Experimentamos neste filme/homenagem uma espécie de “encontro com a palavra” a fim de retomarmos a ideia que orientou o curso de mestras e mestres em Saberes Tradicionais intitulado “Ojuhu Ñe’é/Mbopaje Ñe’e – Encontrar Palavra/Encantar a Palavra” ministrado em 2016 na UFMG por Valdomiro Flores (Ava Kaiowa). Copio da página Saberes Tradicionais na UFMG uma mini-bio que apresenta muito bem a figura homenageada em Yvy Pyte: Valdomiro Flores nasceu em Amambai-MS, filho de Quirina Vasquez e Antônio Flores, sobrinho do grande líder político e espiritual, Alberto Vasquez. É casado com Tereza Marília, com quem teve 10 filhos, cinco deles vivos e trabalhando junto com Valdomiro nos roçados do Guaiviry, território original onde viveram seus pais e os pais de sua esposa. Analfabeto segundo a escolarização formal, detém uma característica muito valorizada em sua maestria de rezador: ele o é


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por nascimento e não por um processo de formação e aprendizado vindos de outros rezadores. Manifestou, desde criança muito pequena, as habilidades para o diálogo com Ñanderu Guasu e as qualidades do mbareté (força espiritual) e aguyjé (busca da perfeição). Outra característica de extremo valor em sua prática xamânica é que possui um vasto repertório dos cantos de sociabilidade (cotyhu e guahu), domínio dos rituais de cantos longos (mburahei puku) para alçar os quinze patamares celestiais, especialmente realizados nas quintas-feiras de todas as semanas e o domínio do canto do batismo do milho branco (jerosy puku). Seus cantos de reza longa, entregues a ele diretamente por Ñanderu Guasu, se renovam anualmente, outra característica considerada de grande distinção entre os rezadores Kaiowa.

Valdomiro Flores esteve na UFMG em dois momentos como mestre convidado de cursos em Saberes Tradicionais, em 2014 e 2016, e veio a falecer em 2017 na tekoha Guaiviry. Pela sucinta descrição acima é possível entrevermos a grandiosidade das belas palavras desse nhanderu que o filme pretende eternizar. Neste pequeno ensaio, também em sua homenagem, pretendo destacar dois pontos: em primeiro lugar as lindas palavras transcritas e traduzidas para o português nas legendas do filme e, em segundo, a belíssima e sagaz diferenciação cosmopolítica presente nessas palavras entre Território e Terra Indígena que, por seu turno, nos trazem diretamente para a cena do mais importante debate político contemporâneo a respeito da legitimidade da Terras Indígenas no Brasil, a saber, o debate contrário à chamada “Tese do Marco Temporal”. O trabalho central de tradução dos discursos e diálogos da língua guarani para o português nos filmes do tekoha Guaiviry, bem como em outros filmes indígenas, merece destaque uma vez que, como já sugerimos, é justamente a fala, os diálogos, rezas, cantos, dentre outros, o aspecto destacado pelos realizadores e com o qual lidam com tanto cuidado e respeito. Em certo sentido, são “dirigidos” por elas. “As belas palavras”, nos ensinou Pierre Clastres (1974), é como os povos Guarani “ nomeiam as palavras que usam para se dirigir aos deuses. Linguagem bonita, grandes rezadores, agradável aos ouvidos do divino que se sentem merecedores”. É fundamental destacar a força suplementar ao encontrarmos, pela primeira vez, com essas palavras ditas diretamente da boca de Valdomiro captadas pelo nossos ouvidos mediada pela leitura das legendas no filme. Palavra outrora falada e agora transcrita que se alinha a outras palavras ditadas por outros mestres indígenas, como por exemplo, Davi Kopenawa e Ailton Krenak. Peço licença aos Ava do Coração da Terra, aos Ava da tekoha Guaiviry, aos realizadores e, em especial ao nhanderu Valdomiro Flores, para copiar e assim, compartilhar aqui, as lindas palavras transcritas na legenda do filme Yvy Pyte ditas pelo finado nhanderu: “Nós somos Ava puro de verdade. Nós somos do Coração da Terra (Yvy Pyte). Inambú é um pequeno pássaro que, como nós, vive no Coração da Terra. Nós somos chamados de Avás. Como uma criança que engatinha, nós não vamos para longe do Coração da Terra. E aí vieram os fazendeiros nos matando, no nosso Coração da Terra. Há muito tempo atrás começaram a surgir as grandes matas para nós buscarmos algo nelas.


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Eu me escondi no Paraguai. Por isso que entregaram a mim a terra dos dois pilares do mundo. Um fica aqui no Brasil e o outro lá no Paraguai, bem no meio daquela terra que veio da montanha que foi queimada. Não vai reto, dá voltas. Igual a uma água que caminha bem, mesmo quando faz curvas. Ela vai fazendo as curvas, mas sempre indo em frente. E então o rio Paraguai está no Coração da Terra. Todos os rios Pane Guasu, Panemi, Guarai, Guarairy e outros vem e desaguam no rio Paraguai. E o rio Paraguai cai no mar, naquele mar. Nós temos do lado de cá o rio Dourados, que era bem pequeno no tempo antigo. Temos também o rio Anambi, como o chamam hoje, mas o nome verdadeiro desse rio é Tupãrã. Temos agora também o que chama de rio Iguatemi, ele não era grande no tempo antigo. Ele vai desaguar no rio Paraná, que vai desaguar no meio do mar. Lá onde o grande mato está guardado. Nós somos mato e é por isso também que temos nome de mata, assim nos contaram para que soubéssemos. Nós somos do mato e vivemos naquele Coração da Terra. Nós não sabemos o que é dinheiro. Vamos a qualquer lugar, e de qualquer lugar voltamos. Vamos até onde não tem fim. Se você não se sente alegre, dá uma volta e volta. Diz-se que sempre voltamos para onde está o Coração da Terra, para onde estão os dois pilares da terra. No Paraguai e no Brasil. Mas nós, Ava verdadeiros, vivemos no Coração da Terra, vivemos aqui e não vamos longe. Coração da Terra. Aquele Coração da Terra onde vivem os Ava. Ava do Coração da Terra. Esse é meu modo de viver. Isso mesmo, até sentado, se não tiver ninguém me estorvando. Canto kotyhu na minha roça. Canto mesmo na minha roça. Para a roça crescer bem. Nós temos que cantar kotyhu. Nós cantamos só baixo na língua kotyhu. O kotyhu e o guahu, ficamos sentados para cantar o mburaheu puku. Esse canto que cantamos agora, é isso que ilumina o mundo para nós. Ava do Coração da Terra. Ava puro, Ava puro. Nós nos apegamos nossa palavra verdadeira para, então, nós Ava puro de verdade mesmo nos apegarmos. Nós não somos de outra nação, nós somos Ava de verdade, do Coração da Terra. Sim, este território, aqui é o Coração da Terra. Estamos lutando por este território. Este é o Coração da Terra mesmo. Nós lutamos não só por esse pedaço mas por todos os territórios do Coração da Terra”.

O atual presidente do STF, o ministro Luiz Fux, retirou de pauta o julgamento, previsto para o dia 28 de outubro, do recurso extraordinário (RE) que discutiria o direito originário dos povos indígenas às suas terras tradicionais previstas na Constituição de 1998 e, claro, o que for decidido irá impactar a vida de todos os povos indígenas no Brasil. O Recurso Extraordinário 1.017.365 que tramita no STF é um pedido de reintegração de posse a pedido da Fundação de Meio Ambiente do estado de Santa Catarina contra a FUNAI e indígenas Xokleng. A terra em disputa faz parte do território/tekoha Ibirama Laklãnõ que foi reduzida à Terra Indígena Ibirama Laklãno, não obstante, o recurso extraordinário reivindica a posse de parte da Terra Indígena já diminuta e invadida. Em 11 de abril de 2019 o STF reconheceu por unanimidade que o julgamento do presente recurso se trava de um caso de “Repercussão Geral”, ou seja, a necessidade de se tomar


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uma decisão por uma tese que irá julgar todos os processos em curso judicializados, bem como orientará a abertura de novos processos de demarcação. Ou seja, os direitos constitucionais indígenas no que diz respeito à demarcação de Terras Indígenas se encontram ameaçados mais uma vez frente à disputa interpretativa da carta magna, frente a interesses fundiários particulares que pode ser descrita pelo embate de duas teses: a do direito originário e a do marco temporal. A tese do direito originário expressa na Constituição de 1988 garante aos povos indígenas no Brasil o direito às terras tradicionalmente ocupadas. Já a tese do marco temporal defende uma outra interpretação, completamente equivocada, do direito constitucional, afirmando que os povos indígenas só teriam direito à demarcação de terras que porventura estivessem sobre sua posse no dia 05 de outubro de 1988, data da promulgação da nova Constituição ou ainda, caso, essas terras tradicionais já estivessem em disputa física e judicial. A tese do marco temporal limita sobremaneira a demarcação de Terras Indígenas na medida em que oblitera o direito de povos que foram movidos à força ou por pressão de seus territórios originários e tradicionais e que, por direito, devem ser retomados. As lindas palavras de Valdomiro Flores, como deve ter ficado claro, são a própria fundamentação e defesa guarani e kaiowá do direito originário expresso pela Constituição de 1988 alinhada à história de resistência dos povos indígenas. “Nós lutamos não só por esse pedaço mas por todos os territórios do Coração da Terra”, com essas palavras se encerra o filme/homenagem Yvy Pyte em defesa do direito ao território Coração da Terra, bem maior que as terras demarcadas e, porventura, as que serão retomadas. Não seria em vão se esses filmes chegassem e fossem analisados com cuidado pelo plenário do STF a fim de orientá-los na tomada de decisão contra a tese do marco temporal e em favor do direito originário de todos os tekoha.

Referências BENITES, Tonico. [tese de doutorado]. Rojeroky hina ha roike jevy tekohape (Rezando e lutando): o movimento histórico dos Aty Guasu dos Ava Kaiowa e dos Ava Guarani pela recuperação de seus tekoha. Rio de Janeiro: UFRJ/MN/PPGAS, 2014. CARVALHO, Ana. Ava Yvy Vera - a terra do povo do raio. In. Catálogo forumdoc.bh.2016. Filmes de Quintal: Belo Horizonte, 2016. CLASTRES, Pierre. Le Grand Parler. Mythes et Chants Sacrés des Indiens Guarani. Paris, Éditions du Seuil., 1974. GOMES, Genito. Depoimento gravado durante o evento Mekukradjá – Círculo de Saberes: Língua, Terra e Território, em outubro de 2017, em São Paulo (SP). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=v-QToZbViZw&t=1s>. NHANDERU Valdimiro Flores. In. Saberes Tradicionais UFMG. Disponível em: <https:// www.saberestradicionais.org/nhanderu-valdomiro-flores/ >.


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Por quê?! >>> Apiyemiyekî? (Ana Vaz, 2020) roberto romero1

No auge da Ditadura Militar brasileira, no início dos anos 1970, iniciava-se a abertura da BR-174, estrada que hoje liga Manaus (AM) a Boa Vista (RR). Àquela altura, a capital do estado de Roraima não era acessível senão pelo curso das águas do Rio Branco. A palavra de ordem do General Emílio Garrastazu Médici e dos oficiais do Exército aquartelados na presidência da república era “integrar para não entregar”, lema que inspirou a política genocida e ecocida do regime militar sobre a floresta amazônica e seus povos, baseada na construção das chamadas “obras faraônicas”, dentre as quais a rodovia Transamazônica (BR-230), as hidrelétricas de Tucuruí (PA) e Balbina (AM), além da própria BR-174 seriam alguns dos exemplos mais emblemáticos. Apresentada para o restante do país como uma “terra sem homens para homens sem terras”, a Amazônia era então prometida como um novo Eldorado, mais um dos passaportes para o progresso e o futuro, essas duas miragens modernistas que o Brasil parece condenado a perseguir sem cessar. Dois anos antes do início das obras, em 1968, os indígenas Kiña, mais conhecidos como Waimiri-Atroari, foram estimados em 3.000 pessoas vivendo na região de floresta que se estendia entre Manaus (AM) e Caracaraí (RR). Pouco mais de três anos depois, com o avanço das obras da BR-174 comandado pelo Exército brasileiro, contavam-se apenas 1.000 indígenas vivendo ali, sem que nenhuma epidemia grave tivesse sido registrada. Uma década depois, um censo realizado pelo pesquisador Stephen Baines contava apenas 332 sobreviventes, dos quais 216 eram crianças ou jovens abaixo dos 20 anos de idade.2 O que se passou ali naqueles anos para justificar tamanha baixa populacional foi um verdadeiro genocídio promovido pelo Estado brasileiro contra os indígenas Kiña, sem dúvida um dos capítulos mais abomináveis da nossa história tão rica em capítulos abomináveis. Porém, seja por um certo desinteresse da historiografia quanto aos crimes da Ditadura Militar perpetrados para além dos porões dos centros 1. Roberto Romero é etnólogo e documentarista. É doutorando em Antropologia Social pelo Museu Nacional (UFRJ) e membro do Núcleo de Antropologia Simétrica (NAnSi). Integra a Associação Filmes de Quintal e colabora com o forumdoc.bh desde 2009. Foi assistente de direção do longa "Yãmĩyhex: as mulheres-espírito" (2019) e co-dirigiu "Nũhũ yãg mũ yõg hãm: essa terra é nossa!" (2020). 2. 1º Relatório da Comissão Estadual da Verdade. “O genocídio Waimiri-Atroari”. Manaus, 2012. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/verdade/resistencia/a_pdf/r_cv_am_waimiri_atroari.pdf


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urbanos do país, seja por uma verdadeira operação de silenciamento das testemunhas indígenas e não-indígenas do massacre, os detalhes do que se passou ali só vieram à tona anos depois. Entre 1985 e 1986, o casal de indigenistas Egydio e Doroti Schwade foram viver entre os Kiña, onde iniciaram um projeto de alfabetização na Escola Indígena Yawará. Inspirado no método de Paulo Freire, o projeto estimulava a expressão dos alunos e alunas também através do desenho e das referências da sua própria realidade. Foi quando as lembranças do massacre começaram a ganhar o contorno dos traços e a memória dos traumas daqueles sobreviventes emergiu. Imagens de aviões, helicópteros, bombas lançadas do ar, soldados armados com facas, motosserras e metralhadoras aos poucos ganhavam forma nos desenhos dos indígenas. E com as lembranças, as perguntas se repetiam: “Por que kamña (civilizado) matou Kiña?”, “O que é que kamña jogou do avião e matou Kiña?” Kamña jogou kawuni (de cima, de avião), igual a pó que queimou garganta e Kiña morreu logo”. “Apiyemeyekî?” Por quê? Essa é a mesma pergunta que a cineasta Ana Vaz refaz no título do seu mais recente trabalho, o curta-metragem Apiyemiyekî? (2020). No filme, as imagens iniciais dos monumentos modernistas na Praça dos Três Poderes, em Brasília, são sobrepostas por algumas das imagens dos mais de 3000 desenhos Kiña, reunidos no acervo de Egydio e Doroti Schwade, na Casa de Cultura Urubuí, fundada pelo casal em 1992 e sediada no município de Presidente Figueiredo (AM), onde vivem atualmente. A rigidez da linha reta do asfalto da BR-174 que corta a floresta amazônica é sobreposta ao fluxo incessante das águas dos rios da região. O filme é todo articulado por esse jogo de sobreposições entre as imagens registradas em 16mm, algumas fotografias do casal, os desenhos dos próprios Kiña e os sons, que misturam depoimentos do indigenista, algumas conversas trocadas pela cineasta com uma parceira de pesquisa e produção, os sons da floresta e da rodovia, além da trilha sonora, assinada pelo compositor Guilherme Vaz, pai da diretora e artista cuja vida e obra também se conectam fortemente a Brasília e aos indígenas em Roraima, o que acrescenta ao filme uma camada biográfica que não deve ser ignorada. No curso destas fusões, os desenhos deixam a superfície do papel e ganham uma nova materialidade no cinema, sendo incorporados ao território, num movimento que devolve atualidade à história do massacre de quase cinco décadas. Tal atualidade, resultado de um trabalho intencional de fusão de temporalidades no curso do próprio filme, confronta o espectador com a realidade de um passado que nunca passou, de uma guerra que nunca acabou. Como afirmou recentemente Ailton Krenak: “nós estamos em guerra. O seu mundo e o meu mundo estão em guerra. Os nossos mundos estão todos em guerra. A falsificação ideológica que sugere que nós temos paz é pra gente continuar mantendo a coisa funcionando. Não tem paz em lugar nenhum. É guerra em todos os lugares e o tempo todo.” Ailton fala com a tranquilidade de um povo, os Krenak, que foi alvo de uma declaração oficial de guerra por D. João VI, poucos meses depois da transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808. O mesmo rei que, alguns anos depois, escrevia para os governadores das capitanias de Minas Gerais e Espírito Santo observando que “um dos melhores meios de se conseguir a pacificação e civilização destas e de outras bárbaras raças de índios,


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que tanto merece o meu cuidado, consiste em se fazerem transitáveis por muitas e diferentes estradas, os extensos bosques em que se acham abrigados, a fim de que por toda a parte hajam de encontrar os atrativos da civilização, sendo convidados com brandura ao reconhecimento e sujeição às minhas leis e castigados pesadamente os que cometerem hostilidades.”3 Ora, como não ouvir os ecos da perversa lição de D. João VI nas palavras do Coronel Arruda, comandante do 6º Batalhão de Engenharia de Combate (6º BEC), responsável pelas obras de construção da BR-174: a estrada é irreversível como é a integração da amazônia ao país. A estrada é importante e terá que ser construída, custe o que custar. Não vamos mudar o seu traçado, que seria oneroso para o Batalhão apenas para pacificarmos primeiro os índios. A transferência é viável e coerente nas condições em que os fatos se apresentam. Os índios continuarão matando, sejam trabalhadores do BEC, sejam da Funai. Por que não levá-los ao Parque Nacional do Xingu? Lá não existem cerca de 14 tribos vivendo pacificamente? Manaus-Caracaraí será construída custe o que custar. Não vamos parar os trabalhos apenas para que a Funai complete a atração dos índios.4

O “custo” foram pelo menos 2.000 vidas indígenas. As informações e o registro detalhado das atrocidades perpetradas pelas Forças Armadas brasileiras contra os Kiña durante as obras de abertura da rodovia encontram-se fartamente documentadas nas mais de noventa páginas do 1º Relatório da Comissão Estadual da Verdade do Amazonas, intitulado “O genocídio do povo Waimiri-Atroari” (Manaus, 2012). Nelas, somos apresentados aos relatos detalhados das táticas de terror praticadas pelos militares contra os povos da região, que incluíram o lançamento de napalm (o conjunto de líquidos inflamáveis usados pelo Exército dos EUA na Guerra do Vietnã) sobre aldeias inteiras. Os desenhos reunidos pelo casal Schwaden foram incluídos como provas dos crimes no relatório. Diante da reunião de novas provas e da gravidade das denúncias, o Ministério Público Federal no Amazonas protocolou uma ação civil pública contra o Estado brasileiro pelos crimes contra os Waimiri-Atroari. A abertura da BR-174 seria, entretanto, apenas um dos capítulos desta guerra genocida movida pelo Estado brasileiro contra estes povos. Nos anos que se seguiram, os Kiña seriam ainda atingidos pela implantação de uma mineradora no seu território, além da construção da usina hidrelétrica de Balbina, responsável pelo alagamento de 30 mil hectares de suas terras. A abertura da rodovia impulsionou ainda o desmatamento, a grilagem e o garimpo ilegal em toda a região. Em dezembro de 2015, durante uma visita oficial a Boa Vista, a então presidenta Dilma Rousseff anunciava, orgulhosa, um dos capítulos mais recentes dessa história: a concessão da licença prévia para a construção do Linhão de Tucuruí, linha de transmissão elétrica que pretende cortar 3. Carta Régia de 4 de Dezembro de 1816. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/carreg_sn/ anterioresa1824/cartaregia-39504-4-dezembro-1816-569824-publicacaooriginal-93021-pe.html>. 4. LIMA, Manoel (O Estado de São Paulo). Sugerida a mudança dos Atroaris. Atroaris: Segundo coronel, não podem ficar mais perto da estrada. São Paulo, 21 de janeiro de 1975.


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122km da Terra Indígena Waimiri-Atroari para interligar a capital de Roraima ao Sistema Interligado Nacional (SIN). O governo da presidenta, como se sabe, foi interrompido no ano seguinte. Os planos de construção do linhão, não. Em 26 de abril de 2017, o presidente Michel Temer assinou um decreto autorizando a continuidade das obras, assumida pela Eletrobras. Atualmente, a conclusão do linhão tornou-se uma das principais ambições do presidente Jair Bolsonaro, eleito com mais de 70% no estado de Roraima. Numa de suas falas para apoiadores na porta do Palácio do Planalto, em agosto de 2020, o mandatário afirmou: “Meu maior sonho é o Linhão do Tucuruí, mas o problema esbarra na comunidade indígena no meio do caminho. Se Deus quiser, venceremos este obstáculo brevemente”. No início deste ano, os Kiña voltaram às páginas dos jornais, depois que o deputado federal de Roraima, Jefferson Alves (PTB-RR), divulgou um vídeo em que aparece destruindo com uma motosserra as correntes utilizadas pelos indígenas para bloquear o acesso à BR durante a noite, uma medida garantida pela justiça para conter a mortandade de animais silvestres atropelados na estrada. “Se depender de mim, hoje, Roraima vai ficar livre dessa corrente que não vai atrasar e isolar meu estado pelo restante do Brasil. Presidente Bolsonaro, é por Roraima, pelo Brasil, e não a favor dessas ONGs que maltratam meu estado”, berrava o deputado na ocasião. Em certa altura do filme Apiyemiyekî?, a voz de uma mulher comenta: “é como se a ditadura não tivesse fim mesmo pra esses povos.” Diante deste histórico terrível de violências que se repetem ao longo do tempo, sem se preocupar com as fronteiras entre regime de exceção e estado de direito, não é difícil entender o porquê desta impressão. Com efeito, ela ecoa a voz de tantas outras lideranças indígenas, quilombolas, ribeirinhas e faveladas deste país. Como escreveu o ativista Julio Barroso para a Agência de Notícias da Favela: “Todas as práticas nefastas que as forças armadas usaram no regime foram herdadas e adotadas pelas polícias militares de todo o Brasil. Há 35 anos a população e a sociedade brasileira é testemunha dos incontáveis massacres do Estado brasileiro contra a parte mais desfavorecida da população.”5 Em 28 de novembro de 2013, o jovem negro Douglas Rodrigues, de 17 anos, foi alvejado e morto com um tiro no tórax por um policial militar durante uma operação na Vila Medeiros, Zona Norte de São Paulo. Suas últimas palavras foram: “por que o senhor atirou em mim?”. A pergunta ecoou durante os protestos que se seguiram à sua morte. Num vídeo que ganhou as redes sociais, artistas negros repetiam as últimas palavras do garoto: “Por que o senhor atirou em mim? Porque vocês atiram em nós?”. Impossível não remeter essas perguntas àquelas que os Kiña repetiam para o casal Schwaden: “Por que kamña (civilizado) matou Kiña?”,“Apiyemeyekî?” Por quê? O policial acusado pelo assassinato de Douglas foi absolvido pela Justiça Militar três anos depois. Uma primeira decisão favorável aos Kiña no julgamento da ação do MPF foi derrubada em seguida pelo Tribunal Regional Federal. O processo retornou à primeira instância onde aguarda novo julgamento. Apiyemiyekî? Por quê?!

5. A ditadura nunca acabou na periferia e nas favelas. Publicado em: 08/04/2019. Disponível em: https://www. anf.org.br/a-ditadura-nunca-acabou-na-periferia-e-nas-favelas/


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Pisada forte >>> Ingrõny, Pisada forte (Coletivo Beture de Cineastas Mebengokre - Kayapo, 2019) ana carvalho1 fábio costa menezes sophia pinheiro

“Sua mãe me deu batata”. O velho de cabelos longos começa a falar quando a câmera se aproxima. Em primeiro plano, ele amola o facão. No fundo do quadro estão bananeiras num terreno limpo, cercado de mata. Logo, ele diz que vai trabalhar na roça. “Já está começando a nascer”, fala apontando para os brotos. A amolação é abreviada pelo corte e ele então leva um cachimbo à boca: “Vou acender minha cabeça”. Fuma e começa a carpir. Vai narrando o que faz, comentando sobre as plantas, reclamando da falta de ajuda dos jovens. Sua atenção está quase toda direcionada para o chão: roçar, abrir caminho, deixar o chão limpo perto do pé de cacau, derrubar a bananeira, fazer brotar e crescer. Na cena, suas ações têm uma conotação de cotidiano e há uma intimidade aparente, mediada pela câmera, entre os sujeitos. À vontade na interação, o homem não apenas vai elaborando a si mesmo como personagem e o roçar como trabalho, mas também vai nos permitindo entrever uma relação sensível, de atenção em relação aos tempos da terra – como a brota, a limpa, a queimada – e aos vestígios inscritos nela – como o rastro de anta. Personagem e câmera deixarão a roça e seguirão pela trilha, até chegarem a uma pista de pouso. Um avião se aproxima, aterrissa e cruza o quadro. “Deixa ele voltar e vamos atrás”, diz o velho. Enquanto espera, ele se entretém com o canto dos papagaios no extracampo: “Estão cantando lá na cachoeira”. O avião ressurge e o homem apura-se a segui-lo, distanciando-se da câmera. A ligeireza de seu passo convida o filmador a apressar o dele, deixando o caminhar – a pisada – mais marcado no movimento da imagem. Sobre ela, surge a tela preta onde se lê Ingrõny – Pisada Forte. Nesta sequência de abertura do filme realizado pelo Coletivo Beture, dos Kayapó Mebêngôkre do sul do Pará, estão certas características que marcarão toda a projeção e, podemos dizer, de alguma forma se desdobram nos temas das conversas de seus 1. Ana Carvalho é artista, educadora e ativista. Trabalha junto a povos indígenas em processos de criação colaborativa nas áreas do audiovisual, artes visuais e publicações. Fábio Costa Menezes é cineasta e colaborador do Vídeo nas Aldeias desde 2010. Sophia Pinheiro é pensadora visual, cineasta, artista visual, professora e pesquisadora.


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personagens e no percurso narrativo que a montagem, pela sucessão e acumulação de situações, cria. Este é, em vários sentidos, um filme “pé no chão”. A expressão que o senso comum associaria ao realismo aqui se refere, num primeiro momento, à aderência à experiência do cotidiano, da vida ordinária em oposição a eventos extraordinários. Para o espectador acostumado a ver os Kayapó representados em seus grandes rituais, artesanatos, pinturas corporais ou jogos de grupo – e mesmo em situações de ativismo que se desdobram em imagens de alto poder simbólico – Pisada Forte apresenta um panorama, a princípio, menos épico: a rotina de dois velhos Kayapó, Soldado e Careca, este último sempre acompanhado por sua esposa, Pujté. É sempre partindo dessa superfície – ou chão – da experiência cotidiana, que o filme nos permite entrever aspectos e questões que transcendem o imediato das situações filmadas, seja a elaboração da relação – ambígua, complexa – com o mundo não indígena, ou a maneira própria pela qual os Mebêngôkre percebem e se relacionam com a terra que habitam, a mata, os animais. Outra dimensão deste “pé no chão” remete diretamente ao título do filme. Um título duplo, que traz tanto o nome que eles deram à nova aldeia, – Pykarãrãkre, o lugar da pisada forte, – nome “muito antigo e que ainda permanece”, dado justo pelo som que as pessoas fazem ao pisar o chão, quanto Ingrõny – broto novo –, de uma planta, da água que brota incessante da pedra, num movimento contínuo de morte, renascimento e continuidade da vida. Dentro do filme, a pisada forte – lugar, som, nome – é um elemento catalisador das narrativas da história recente do grupo, cujos personagens são a memória em corpo vivente: o primeiro contato, a aldeia velha, a epidemia de sarampo. Aqui, mais uma vez, o filme parte do “pé no chão” – tanto a superfície do registro, o aqui e agora da filmagem, quanto da manifestação acústico-geográfica – para dar a ver as memórias do passado, as ruínas ausentes, o presente da aldeia nova e as relações com o mundo não indígena: “nunca vai acabar, vai ser sempre assim”, diz Soldado depois de limpar a terra para a câmera também pisar o chão. A ação do som poderia reverberar por cada fragmento de substrato daquele solo, como a manutenção de presença da eternidade ali misturada em água, raízes, corpos enterrados e a conversa com a terra, o eco do contato do pé no chão. Ao lado do fogo, Careca diz a Pujté: “a gente podia pedir pro trator limpar o pátio da aldeia também e derrubar as casas. Acho que por isso o cacique está falando de dinheiro, com esse dinheiro podemos construir uma nova aldeia. E casas novas também. Nós vamos construir as casas”. O trator chega na aldeia, de balsa. Todos aguardam em terra. À magnitude da presença branca no trator, contrasta-se a exuberância do próprio território Kayapó e do Rio Xingu. Soldado fala com Careca: “Ele já pode começar a limpar a pista, mas tem que trabalhar bem direitinho! Acho muito bonito todo mundo vir ver o trator”. O trator, em Pisada Forte, é ao mesmo tempo objeto de fascínio e de apropriação. Símbolo por excelência da destruição, é apropriado, controlado e ressignificado por eles: derrubar as casas para que eles façam “brotar” (construir, segundo novos preceitos e exigências) novas casas, uma nova aldeia, um novo roçado. O Outro, seus objetos, valores e crenças, nunca estão impunes ao mundo Kayapó: o trator “amansado” para o bem da aldeia, o dinheiro assumido em seu valor de troca e não de acumulação, o


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culto evangélico na língua nativa, o hina-hina no qual convergem a tradição das danças e uma apropriação do imaginário pop. A viagem à cidade traz consigo uma aceleração provocada pelo deslocamento e pelas tensões dialéticas imbricadas nas situações filmadas, opondo os personagens ao exterior, a vida Kayapó ao mundo não indígena. Aqui, a simbologia do dinheiro é revirada ao avesso. Nele, tomado em sua dimensão icônica, não os números, mas os animais são as figuras de valor. Isso não anula a consciência do valor de cada nota, da negociação, mas configura uma espécie de recusa do paradigma usual de seu uso, devolve-nos a arbitrariedade de nosso (da cidade, dos não indígenas) próprio sistema de valores e trocas. “Gasta logo, meu amor”, apela Soldado para a mulher, como se dissesse: “Se é o que querem...”. As duas cabeças de onça que o velho emprega no pagamento das roupas são as mesmas que ele reconhece como “muito pouco” quando é pago pelo cacau que leva ao depósito. Muito para pagar, muito pouco para ser pago. Assim como as onças, da história contada por Soldado numa das caminhadas pela mata, as cabeças de onça (o dinheiro) tem sua própria cultura, é preciso saber manejar-se em relação a ela. Logo, voltaremos à terra indígena; mais uma vez, nossa atenção é levada ao chão. Soldado, Careca, Pujté fazem uma excursão à área da aldeia mãe, que hoje não existe mais. “Cemitério”, comenta Soltado enquanto limpa a trilha com o facão. Mais uma vez, a superfície e o presente são o ponto de partida, desta vez para a narrativa do contato, da vida na antiga aldeia – cuja planta Pujté traz intacta na memória – e da epidemia de sarampo que tantos dizimou naquele tempo. Nada disso – a aldeia, os corpos, o contato –vemos: “Antes do sarampo, vivíamos felizes”, diz Careca. “Era eu quem enterrava as pessoas”, diz Soldado. “Aqui era a minha casa”, diz Pujté. Resta-nos buscar o que resta deste invisível – o passado, o mundo que já foi – nas ruínas do solo, nos corpos e nas palavras dos personagens. A narrativa do surto de sarampo se atualiza de forma inevitável em nosso imaginário, recentemente atravessado pela pandemia da covid-19, este ensaio para o fim de nosso próprio mundo. Seria este um dado possível para a nossa compreensão da resiliência de povos que, como os Kayapó, experimentaram inúmeros fins de mundo (lembremos, aqui, da formulação de Viveiros de Castro)? “Nós somos os sobreviventes”, diz Careca, na frase que encerra o filme. Brotos novos, esses sobreviventes da aldeia mãe se espalharam em várias aldeias novas pelo Xingu: Rikaro, Pykarãrãkre, Krwuanhogo, Kokraimoro nova, Kawatire: inventaram mundos novos e, mais uma vez, suas formas de “nunca acabar”.


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Sonhar (n)as redes andré brasil1

1 Acabava de assistir, alarmado, a O dilema das redes (Jeff Orlowski, 2020), quando recebi do forumdoc.bh Topawa (2020), filme dirigido por Kamikia Kisedje e Simone Giovine, que chegou como um alento, uma brisa. Nada mais distante, nada em comum entre os dois documentários: o primeiro, um blockbuster da Netflix, cujos entrevistados, executivos e artífices das principais plataformas das chamadas “redes sociais” (na verdade, plataformas de “monetização”, como eles dizem), se mostram assustados com o monstro que ajudaram eles próprios a criar. O segundo, um curta-metragem concentrado em mostrar, em sua discreta e complexa trama, a feitura da rede de tucum (topawa) entre os Parakanã, na Terra Indígena de Apyterewa. Se no primeiro filme, entrevistados dizem querer ver seus filhos longe do que resultou do seu trabalho, o segundo se encerra com a imagem da mãe parakanã a embalar e amamentar o filho na rede que as mulheres tecem elas mesmas. 2 Duas incomensuráveis tecnologias, dois modos muito distintos de constituir redes sociais que me desculpo por não resistir em aproximar: em comparação com as redes ameríndias (firmemente tecidas, acolhedoras, ao mesmo tempo, abrigo e mirante para o céu, para a luz do sol que adentra pelas frestas a compor outras tramas sobre as tramas dos tecidos; antenas para os sonhos), hoje, o sinal mais pungente do fracasso, da falência civilizacional do Ocidente são as redes que construímos e nas quais nos enredamos. Celebrando-se como “abertas” e “democráticas”, as redes sociais na internet revelam-se asfixiantes (mais ainda durante a pandemia): nos aprisionam no domínio do trabalho e do consumo precarizados; nos impõem permanente vigília, sobressaltam nosso sono, fazendo dos sonhos a continuidade atormentada do estresse do dia. Constituem o cerne daquilo que Jonathan Crary (2016) caracterizou como capitalismo 24/7 (24 horas por sete dias na semana). Dormimos em sleep mode, ele nos diz, “em modo de consumo reduzido e de prontidão”, quando “nada está de fato ‘desligado’ e nunca há um estado real de repouso” (p. 22 e 23) 1. Professor do curso de Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG. Integrante do Grupo de Pesquisa Poéticas da Experiência e do comitê pedagógico da Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG.


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3 Não há como não nos lembrar, nesse ponto, da conhecida formulação de Davi Kopenawa (2015, p. 390). Os brancos, observa, dormem muito, mas só conseguem sonhar com eles mesmos. Dormem deitados em camas apoiadas no chão, onde se agitam com desconforto. Já as redes yanomami, estão suspensas pelas cordas, antenas por onde desce o sonho dos xapiri.2 Em meus sonhos, os espíritos amarravam as cordas de minha rede bem alto no céu. Era como se longas antenas de rádio fossem esticadas ao meu lado e funcionassem como caminhos para os xapiri e seus cantos chegarem até mim, assim como o caminho das palavras do telefone dos brancos. Eu ficava deitado, bem calmo, mas sentia minha rede crescendo e crescendo. Depois, era como se eu também estivesse ficando cada vez maior, junto com ela. Apesar de eu não passar de um menino, tinha a sensação de ficar imenso. (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 90)

4 Mais do que lugar de repouso e descanso, amparo para o sono, para além de sua inegável sofisticação estética, as redes ameríndias são “sociais” porque engendram uma miríade de relações, que se expandem no espaço – dos gestos, das palavras, dos cantos aos percursos pelos rios e igarapés, às trilhas pela mata que se abre como cosmos, constituído por uma multiplicidade de mundos e seus guardiões. E que se expandem no tempo – cada entrada na mata, cada gesto de coleta do tucum, cada nó que enlaça um e outro fio – atualizam, diferindo no presente, gestos, excursões e encontros passados. São assim também gestos de resistência, porque produzem o tecido, o casulo onde se aninha o futuro.

2. Quem nos relembra dessa passagem de Kopenawa é Wellington Cançado (Low), quando demonstra ser impossível sonhar “capitalisticamente”, em um debate on-line que dividiu com Aílton Krenak. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=qS7JidpuN2s>.


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5 Como dirá Naine Terena (2019, p. 56), a rede provoca a reflexão sobre a experiência social indígena: não cabe mais ver as redes como espaço de descanso e decoração. Necessita-se admirar sua representação e compreender que materialidade é a prova da resistência ameríndia. Que por trás da beleza e da forma existem focos de resistência. Que tecer ou criar a partir delas é arte, é ativismo. É atividade. É sobrevivência. É ser.3

6 Em sua conferência de abertura às atividades do semestre letivo na UFMG, em modo remoto, Ailton Krenak estabelece uma aguda distinção entre ciência e tecnologia, uma irmã gêmea da outra, tendo a primeira nascido um pouco antes da segunda. Nas nossas histórias de criação do mundo, os irmãos gêmeos têm uma pequena diferença de parto, e aquela pequena diferença, essa fração do tempo que separa o nascimento de um e de outro, é muito significativa. Um desses heróis observa o mundo, pensa o mundo, e o outro sai maquinando o mundo, geralmente provocando desastres. Eu já me referi a um fragmento de uma história muito grande e bonita do povo Maguta (que são os Tikuna do Rio Solimões), em que o irmãozinho apressado, mais novo, sobe no alto de uma palmeira e o irmão que nasceu um pouquinho antes dele, mais velho, está cá no chão e grita: ‘cuidado com o que você vai dizer aí em cima.’ Porque ele sobe no alto da palmeira e, toda vez que pronuncia alguma palavra, as coisas surgem; ele cria o mundo com a palavra (como é comum em muitas das nossas histórias). E lá de cima da palmeira, jaci, ele grita: ‘lá vêm os nossos inimigos, eles vão acabar com a gente!’

Ciência e tecnologia, continua Krenak, são quase simultâneas, mas não fazem a mesma coisa. Com a industrialização, a tecnologia disparou na frente da ciência e começou a governar o mundo. “A ciência tem uma voz sensível à complexidade dos povos e da própria ecologia do planeta. A ciência reclama um cuidado com a vida, que a tecnologia não ouve. A tecnologia tem pressa em antecipar a idéia de progresso e de futuro.”4 7 As redes ameríndias são tecnologias que não se dissociam dos saberes e das práticas sociais de onde nascem, não se apressam nem se adiantam a eles: tecem e embalam estes saberes (no sentido de produzir com eles um vai-e-vem), mantendo-os conectados 3. O texto de Naine Terena faz parte do belíssimo catálogo da exposição Vaivém, acontecida nas unidades do Centro Cultural Banco do Brasil, entre maio de 2019 e maio de 2020, sob curadoria de Raphael Fonseca. Como diz Fonseca, na apresentação ao catálogo, as redes permitem que “sigamos construindo idéias contraditórias de Brasis”. (2019, p. 6) 4. A conferência de Aílton Krenak – Tempos presentes: a negação da ciência – está disponível em: <https:// www.youtube.com/watch?v=9TOvKwQV-Ss>.


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aos ritmos do cotidiano e da natureza. Permitem, ao mesmo tempo, que o corpo viaje a longas distâncias, por meio da tecnologia do sonho. 8 As redes ameríndias amparam, acolhem, transformam, curam. Elas são também armadilhas, como nos ensinou Alfred Gell (2001), a partir da rede de caça Zande enrolada na galeria de uma exposição curada por Susan Vogel. A rede captura e embaralha nossos (pré)conceitos acerca do que seja arte ou artefato. Em um filme, ela se esquiva a ser capturada pelo quadro, conduzindo a câmera e o espectador em seus enredos: neles, o que se quer tomar como objeto de conhecimento, abrupta ou sutilmente, ascende à posição sujeito. Afinal, a rede tece os gestos que a tecem. O corpo deitado na rede “distorce o tecido” que molda sua matéria. (TERENA, 2019, p. 56) 9 Em Topawa, acompanhamos as mulheres parakanã, de diferentes gerações, em seu trabalho de tecer as redes de tucum (antes, saem em busca do broto da palmeira, em longas viagens pelos rios e igarapés, afluentes do Xingu). A câmera filma em direto e o documentário poderia se filiar à tradição do filme etnográfico, produzindo, contudo, sutis mas decisivos deslocamentos e inversões. O gesto permanece sendo o de enquadrar e, por meio do enquadramento, observar atentamente. O enquadramento, sabemos, é uma operação central do cinema, como tecnologia moderna, que lança sobre o mundo um saber especulativo, tendo como primado a visão. Por meio dele – sempre uma violência, em alguma medida –, faz-se avançar o visível sobre o invisível; conhecimento e domínio sobre um indivíduo, um povo, um conjunto de saberes. Inescapavelmente, contudo, o enquadramento produz relação e se produz em uma relação. Enquadra-se o mundo que, no entanto, age no interior do enquadramento para, quem sabe, transformá-lo por dentro. Topawa produz enquadramentos precisos, ciosos como os gestos de tecer que ele dá a ver. Aos poucos, o que é um quadro vai se abrindo e se mostrando um tecido de gestos, narrativas, cantos e percursos pelos rios e pelas matas. Como se do interior do quadro, uma rede fosse sendo tecida, em ato, transformando por dentro seus limites, suas bordas: fios se multiplicam e se expandem e o que seria uma técnica – aquela de fazer a rede com a fibra do tucum – distribui-se por linhas que constituem a vida das mulheres parakanã, em sua relação tão discreta quanto forte com uma multiplicidade de outras vidas. 10 Tecer redes de tucum é tecer redes entre redes. Redes que não se deixam filmar sem que nosso olhar seja por elas enredado, armadilhado: desfiar a fibra, fiar o fio de tucum; rememorar e desfiar o fio de história, enquanto se enrola a linha na perna; mas antes, viajar pelo rio, que serpenteia pela floresta, ele mesmo uma linha a se desfiar em afluentes e igarapés; o próprio barco, uma rede flutuante que abriga anciãs, jovens e crianças; o barco que voa, enquanto a voz narra, dando outra velocidade ao plano: “trabalhar com tucum não é rápido. Vamos muito longe para tirar ele do mato”.


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11 Que o filme se inicie pelo paciente fiar da planta, acompanhado do canto entoado por uma das mulheres, talvez seja para mostrar que, por entre esses eventos mínimos, descontínuos, o canto será fio de voz e memória ao qual outros se alinhavam. Fio que se canta no começo do filme, que desaparece, como a submergir na terra, até ser retomado, mais ao final, pela jovem, a pedido da anciã. 12 Antes de se tornar rede, as linhas são cordas, nas quais as mãos tocam o silêncio, enquanto a jovem canta.

13 Em Topawa, montar as imagens e as cenas (eventos curtos, incompletos, entrecortados) é menos estabelecer uma ordem, uma cronologia para uma prática – como se fosse possível organizá-la em uma sucessão de etapas – do que mostrar como essa prática é distribuída pelos gestos, pelas palavras e pelos cantos; como ela se distribui pelos espaços, do entorno da casa às excursões na mata; e pelos tempos, entrelaçando o presente ao passado, embalando o futuro com as linhas de outrora. 14 No filme, o percurso pela mata para colher o broto de tucum atualiza o encontro entre os Parakanã (autodenominados awaeté) e os brancos, no caso deste grupo, datando do início dos anos 1980. Com ele, chegaram as redes de algodão, junto aos facões, às espingardas, às doenças, à dependência dos remédios e da assistência médica. “Não sabemos como o branco chegou até nós. Nós estávamos longe”, diz a anciã. Depois do contato, se aprofundaram as invasões de madeireiros, garimpeiros, fazendeiros e colonos.


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Quando da demarcação da Terra Indígena Apyterewa, as grandes empresas exportadoras de mogno abriram suas estradas para agricultores e fazendeiros pecuaristas. Hoje, quando, na sinistra reunião ministerial, Ricardo Salles defende deixar “passar a boiada”, fazendo da pandemia, oportunidade (bem ao gosto dos necropolíticos e necroeconomistas ultraliberais), os Parakanã se vêem diante de uma série de “coincidências”. Como contam Carlos Fausto e Paulo Bull , a fala de Salles dá-se um mês depois da demissão do diretor de Proteção Ambiental do Ibama, órgão que encampara uma megaoperação de retirada de garimpeiros e madeireiros ilegais de terras indígenas no sul do Pará. Uma delas, a T.I Apiterewa. Um pouco antes, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, havia determinado uma tentativa de conciliação entre invasores da T.I. e os indígenas, no caso, os Parakanã, proposta injustificável, já que a terra está demarcada, homologada e registrada, não sendo assim objeto de “negociação”.5 Passados tantos anos, com suas terras rasgadas por garimpos, pastagens e estradas ilegais, os Parakanã procuram hoje garantir o usufruto de seu território, sem no entanto ter sequer o direito de percorrê-lo sem receio, em virtude da presença de invasores. A sucessão infindável de embaraços jurídicos que se arrasta desde a década de 1990 exigiria uma prestação jurisdicional eficaz e imediata visando à proteção dos Parakanã e de seu modo de vida tradicional, conforme garante a Constituição da República. (FAUSTO; BULL, 2020).

15 As redes sociais na internet vêm sendo, em alguma medida, ocupadas, “indigenizadas”, “aquilombadas”. Por elas, durante a pandemia, nos chegam as vozes e imagens de 5. Ver artigo de Carlos Fausto e Paulo Bull no jornal digital Nexo, em 26 de julho de 2020: Abrindo a porteira das terras indígenas para a boiada passar. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/ ensaio/2020/ Abrindo-a-porteira-das-terras-ind%C3%ADgenas-para-a-boiada-passar


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lideranças, artistas e pensadores indígenas, quilombolas, sujeitos e coletivos negros e negras. Com seus saberes, suas ciências, ocupam as chamadas lives e, mesmo sendo os mais afetados pelo desamparo e pelos ataques aos direitos pelo atual (des)governo, são os que mais oferecem alternativas de reinvenção e reencantamento da política. As redes me trouxeram, recentemente, imagens da escultura-instalação Entidades, que Jaider Esbell realizou durante o Cura – Circuito de Arte Urbana 2020.6 Imagens que me fizeram abandonar momentaneamente a exaustão da quarentena diante do computador e caminhar até o viaduto Santa Teresa para ver as jiboias – sua pele a abrigar todos os desenhos – se enlaçando, como fios vivos e encantados, aos arcos de concreto. As jiboias que, nas narrativas de muitos povos, foram as que ensinaram as mulheres a tecer. Pelas redes, pude ouvir também o trovão que atravessou a fala de Juliana Fausto, em um encontro de saberes com Wellington Cançado e Antônio Bispo dos Santos, o Nêgo Bispo, durante o 22º FestCurtasBH. Vindo de longe (ou de outrora), o trovão ecoou enquanto ela comentava Artes de viver em um mundo danificado7: Os colonizadores olharam direto pra frente, enquanto destruíam povos nativos e ecologias. O terreno construído por esse futuro está abarrotado de fantasmas. Os cavalos precisam de antolhos físicos, dispositivos que empobrecem sua percepção e os falcões são encapuzados, para que, privados temporariamente de um sentido pra eles fundamental, agora na mão de outrem, tornem-se dóceis. Para esta humanidade, que se reivindica mestra destes animais, entretanto, bastou o feitiço do futuro único pra que todo o planeta se transformasse em coisa.

Sobre esse surpreendente encontro – entre o trovão e as palavras – Nêgo Bispo comentou adiante: Quando os africanos foram trazidos para cá, através das outras coisas, se comunicaram com os indígenas. Através do vento, através das plantas, das pedras, através do cosmos, houve essa comunicação, e por isso a nossa existência e a nossa confluência. Eu fiquei muito feliz, Juliana, quando você falou ‘feitiço’, teve um grande trovão aí na sua casa. No momento que eu estou falando, é bem provável que vocês tenham ouvido o vento, porque aqui, de vez em quando, passa uma brisa. É dizer da gratidão de participar desse momento em que o trovão veio participar da nossa mesa.8

Eu mesmo vivi um desses momentos de beleza inesperada: mediando um encontro com Edgar Corrêa Kanaykõ promovido pelo forumdoc.bh, enquanto eu lia um trecho de sua dissertação de mestrado, o fotógrafo virou a câmera do celular para nos oferecer o 6. Ver o vídeo da instalação em: <https://www.youtube.com/watch?v=Doc3UXn70M4>. 7. TSING, Anna et al (orgs). Arts of living on a damaged planet: ghosts and monsters of the Anthropocene. Minneapolis: University of Minesota Press, 2017. 8. Debate Perceber as formas de outras vidas, perceber a vida de outras formas (mediado por Felipe Carnevalli, o debate fez parte da mostra A vida das coisas, no 22º Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=h7BisjY_WU4>.


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entardecer do cerrado, em sua aldeia, na Terra Indígena Xakriabá. Gesto simples, que nos lembrou do espaço vital – cósmico – que existe e insiste fora das redes digitais, mas que vez ou outra irrompe, lampeja em seu interior. 16 Imaginemos, por fim, como, de dentro de Topawa, nos olham e nos pensam os Parakanã: a rede ameríndia é também mirante, observatório, de onde os indígenas nos lançam seu olhar, nos indagam e se indagam onde queremos chegar com tudo isso.

Referências CRARY, Jonathan. 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Ubu Ed., 2016. GELL, Alfred. A rede de Vogel: armadilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas. In: Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRJ, 2001. KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. TERENA, Naine. A rede do tempo-espaço: entre resistências e permanências. In: Fonseca, Raphael. Vaivém (catálogo da exposição). São Paulo: Conceito, 2019.


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Um djéli entre nós >>> Entre nós, um segredo (Beatriz Seigner e Toumani Kouyaté, 2020) mafuane oliveira1 rafael galante

Histórias importam. Muitas histórias importam. Histórias têm sido usadas para expropriar e tornar maligno. Mas histórias podem também ser usadas para capacitar e humanizar. Histórias podem destruir a dignidade de um povo, mas histórias também podem reparar essa dignidade perdida. (Chimamanda Adichie, 2019)

No Brasil nas últimas duas décadas observamos um aumento do número de profissionais que se dedicam a arte de narrar histórias, com as mais diversas finalidades, do entretenimento ao auxílio de práticas pedagógicas, principalmente por parte de professores e arte-educadores. Por outro lado, testemunhamos também todas as lutas e conquistas do processo de democratização que, dentre outras importantes frentes de batalha, tem historicamente na mobilização cultural e política da população afro-brasileira o seu principal motor de transformação social e construção da cidadania. A partir da lei federal 10.639, de 2003, conquista histórica do movimento negro brasileiro que garantiu a obrigatoriedade do ensino de história da África e da cultura afro-brasileira, gradativamente a indústria cultural e o mercado editorial, assim como as próprias universidades, vem tendo que responder, ainda que lentamente, as demandas por uma nova produção cultural com representação social e reparação histórica para a população negra brasileira. É justamente nesse contexto histórico que chega ao Brasil (para ficar) um djéli, um tradicionalista da palavra oeste-africana, de nome Toumani Kouyaté. Nascido em Burkina Faso, país integrante do antigo território do importantíssimo império do Mali, Toumani é descendente dos Kouyaté, linhagem de historiadores e arautos públicos que desde a unificação do império por parte do herói Sundiata Keita, em 1235 d.C., exercem um papel central nos Estados e na organização social mandê (HAMPATÉ-BÂ, 1982). Hoje Toumani também é mais um dos tradicionalistas da palavra 1. Mafuane Oliveira é pesquisadora, arte-educadora, contadora de histórias idealizadora do projeto Chaveiroeiro companhia de Narração de Histórias, voltada a pesquisa e transcrição de narrativas tradicionais africanas e afro-luso-ameríndias. Rafael Galante é historiador africanista e etnomusicólogo, pesquisador da história social da música afro-brasileira e das diásporas musicais centro-africanas no mundo atlântico.


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que, desde o século XX, partiram para a diáspora, para difundir, principalmente na Europa e nas Américas, a enorme e milenar herança artística e filosófica da civilização mandê. É a partir desse processo que Toumani relembra a si mesmo cada vez que explica ao ocidente a sua própria origem. Eu sou uma árvore de palavra. A palavra é toda sabedoria e todo segredo da família, levamos tudo para a grande árvore. A sabedoria de cada pessoa e cada família é uma folha, o djéli é uma árvore que vai guardar todas essas folhas, ele tem a raiz no mandê, no vestibular da palavra, mas os galhos vão a todo lugar no mundo. (TOUMANI KOUYATÉ, 2017).

O filme Entre nós, um segredo dirigido por Beatriz Seigner e pelo próprio Toumani Kouyaté não é, no entanto, sobre sua experiência no Brasil, mas sim sobre seu retorno ao país de origem, a partir de um chamado de seu avô, após muitos anos vivendo e tendo constituído família na diáspora. Seu avô que está prestes a morrer pede que telefonem para o seu neto, porque antes de partir ele deseja contar-lhe uma última história. Entre os dois, no entanto, há um oceano de distância, é necessário então que o neto faça uma travessia ao mesmo tempo física, histórica, atemporal, mergulhando no mar de memórias e tradições de seu povo para finalmente receber o maior desafio e responsabilidade de sua vida. Como mantenedor contemporâneo de séculos de saberes e histórias acumulados por meio das oralituras, herdados unicamente por consanguinidade, um dos principais desafios de Toumani é convencer os outros djélis Koyaté que sua filha nascida no Brasil e as demais crianças nascidas na diáspora também tenham garantido o seu direito a iniciação. Por isso mesmo o filme começa com uma dedicatória “para as nossas crianças nascidas na diáspora, que carregam em seus gestos a força de seus ancestrais”. Como documento de memória e de diáspora, entre o enunciado e o segredo, o filme converte-se assim também em uma espécie de antessala do próprio rito de iniciação, como o portal de Kamandjan, aberto pela espada dos heróis míticos e revolucionários da epopeia de Sundiata Keita. Entre nós, um segredo é justamente o revelar dessa luz que nos chama a herança ancestral da palavra como valor civilizatório africano e instrumento de organização política e social do povo negro em diáspora. Assim, esse documentário torna-se também mais um contributo importante para que a sociedade brasileira contemporânea, maior país da diáspora africana no mundo, possa finalmente incorporar e dignificar as práticas da oralidade como valores civilizatórios fundamentais, principalmente quando se tratam dos saberes e narrativas das oralituras afro-ameríndias, sem os quais simplesmente não existiriam as culturas brasileiras (MARTINS, 1997).

Referências ADICHIE, Chimamanda. O perigo de uma história única. 1ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.


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HAMPATÉ-BÂ, Amadou. A Tradição Viva. In ki-Zerbo, J (Ed.) História geral da África, Volume I: Metodologia e pré-históreia da África, Bra: ática. Unesco , 1982. HAMPATÉ-BÂ, Amadou. Amkoullel, o menino fula. 3ª edição. São Paulo: Palas Athena: Acervo África, 2013. KOUYATÉ, Toumani [54 anos]. [jul. 2017]. Entrevistadora: Mônica Pessoa. Saint-Nazaire, França, jul. 2017. In: PESSOA, Monica. “Existe um segredo entre nós”: a trajetória do djéli Toumani Kouyaté – História Oral – Revista da Associação Brasileira de História Oral. v. 22, n. 1 (2019). Disponível em: <http://revista.historiaoral.org.br/index.php?journal=rho&page=article&op=download&path%5B%5D=889&path%5B%5D=pdf> Acesso em 10/10/2020. MARTINS, Leda Maria. Afrografias da Memória. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997.


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Para sempre, desde sempre – e agora? >>> Aleluia, o canto infinito do Tincoã (Tenille Bezerra, 2020) bruno vasconcelos1

Se você está aqui, convém enquanto estamos juntos pôr no toca-discos, toca-fitas, rádio ou outro algo que sirva para se ouvir música, um disco dos Tincoãs. Em breve vai soar a voz de Mateus Aleluia, um dos integrantes desse poderoso trio formado em Cachoeira, Bahia, a partir do final dos anos 50, e que nos 70 imprimiu uma potente, singular e belíssima dicção afro ao cancioneiro brasileiro, incorporando e harmonizando temas do candomblé e da umbanda. Na tela, um trabalho cuidadoso de Tenille Bezerra e equipe em torno a Mateus. No contexto de um filme devotado à música, compreendemos que nos solicite um engajamento de escuta. Que nos peça ouvidos atentos, e mesmo que se o ouça como se ouve uma música, reconhecendo seus timbres, situando nosso corpo e percepção através do ritmo de seus acontecimentos, memorizando seus versos, e quiçás localizando-nos com eles – música e filme – inesperadamente alhures. Nessa hora, dispomos da nossa escuta e da do filme. E aqui é possível então discernir um outro tipo de escuta, bem específico, de tal maneira que o filme, por certas escolhas formais suas, demonstra escutar atentamente a forma do que diz Mateus, o modo como formula suas questões, o idioma existencial, por assim dizer, com que se expressa. E sentimos que por um esforço de criação, o filme se encontra a ponto de reverberar algo do próprio estilo de criação artística de Mateus. É assim que compreendemos que certas figuras do tempo e da memória, do trânsito e da intervenção mutuamente possíveis entre eras e lugares distantes, reconhecíveis nas falas e canções do artista, tenham reverberação em traços sensíveis, em escolhas formais deste, diríamos, amoroso filme. Não seremos convidados a um documentário que esquadrinhe a vida de seu biografado, e assim distribua pontos de referência, situe locais de origem, nomeie interlocutores privilegiados, em datas e locais precisos. A operação deste filme é distinta, trata-se de criar um mecanismo que permita uma outra movimentação – pôr em andamento

1. Desenhista de som, fotógrafo, montador, realizador. É mestre em Antropologia pela UFMG. Integra a Associação Filmes de Quintal.


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uma certa viagem entre as eras, permitir adentrar um modo de acesso co-presente e simultâneo entre diferentes momentos históricos, seres e lugares, e sublinhar que o processo que se acompanha e se experimenta está em curso. Digamos então, ao som do bolero, que trata-se de uma viagem ao infinito (no sentido do que não está terminado, tendo como partida, assim como destino, a Terra, aquela que está sempre por formar-se). É aí que Mateus se move. Não é mesmo um estado de consciência usual este que nos permita experimentar essas outras relações entre os espaços, e outras configurações da memória social. Laivos de transe, ao modo, quiçás, daquele praticado nas religiões afro-brasileiras. É, ademais, uma tarefa em geral descrita naquelas que se costuma chamar histórias míticas. Para dar conta dessa proposta de experimentação do tempo, um “desde sempre aqui” (um “para sempre, agora”, como apontava aquele outro ancestral negro, Itamar Assumpção, ao incorporar um outro, Ataulfo Alves), era preciso que o cinema existisse há séculos (e que os registros de imagem e som houvessem testemunhado as batalhas, as invasões, o horror. E na outra margem, também a beleza, alguma luz). Essa a tônica da sequência inicial do filme – na qual somos chamados a presenciar o primeiro tiro, ainda num dia enevoado do primeiro século da colônia, seguido de uma miríade de tiros e gritos, que interrompe brutalmente o canto indígena que ouvíamos há pouco na mata (em desenho de som elaborado), e pressiona pelo desalojo do ancestral autóctone, os donos da terra, vai nos lembrar sempre Mateus. Os índios, silenciados momentaneamente, seguirão retornando à batalha através dos caboclos nos pontos de umbanda cantados pelo artista. Esta é a Terra, este é o palco da História. Este é o local de onde parte o Tincoã, nas margens do rio Paraguaçu, a cidade de Cachoeira. Do outro lado, em outra das margens, a África. Mateus se encontra em Angola no início dos anos 80 – junto a Dadinho, integrante fundador dos Tincoãs – e ali vive quase 20 anos. Este encontro vai possibilitar toda sorte de descobertas a ele (“Cachoeira, foi de Luanda que entendi sua realidade”), e a seus anfitriões africanos – que reconhecem imediatamente seu recuperado parentesco com os visitantes, ao ouvirem em Luanda a canção “Deixa a gira girar” (“meu pai veio de Aruanda”). Brasil-Angola, Mateus realiza a travessia da Kalunga grande (“o oceano separou-me de mim”) ainda em vida. Essa é, em geral, experiência da alçada de ancestrais divinizados, aqueles a quem Mateus segue de perto, junto a tantos outros de seus semelhantes. Neste momento, nos terreiros do recôncavo baiano comenta-se entre o povo de santo “Mateus está em Angola. Todos ficamos felizes”. Sente-se sua presença, mesmo se não se o vê. – “Aquilo que é invisível é que é real, é que é concreto”, diz o Tincoã, subitamente ancião, de pé diante do terreiro marcado com os machados de dupla lâmina de Xangô. O filme aponta, com Mateus, o mistério dessa zona da experiência vaga mas intensamente atestada pelo não dito, pelo não visto. É assim ao ouvir histórias de maravilhas, relatadas na presença de Mateus por um amigo angolano do artista – Mateus não fala as línguas dos povos locais de Angola, o feiticeiro que ele tem por diante não fala português, ambos se imantam e conversam durante longo tempo. E agora?


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É em contrapartida à experiência desagregadora da escravização que se trama um certo contrabando de signos, visado por ambos, artista e filme. Estes distribuem toda uma sinalética, explícita ou apenas insinuada pelas sequências, que seja reconhecida pelos seus – vai aos materiais de arquivo, revisita imagens quase desaparecidas, retoma posturas corporais, multidões, labores extenuantes, danças celebrativas, gestos vitalistas de corpos negros, anônimos. Por outro lado, propicia aparições-relâmpago de outros personagens míticos, outros agentes de uma História mais geral, cujas falas e ações compõem o pano de fundo da trajetória de Mateus, e que não serão sinalizadas no filme com legendas, assim como tampouco os materiais de arquivos pelos quais o filme passa. Mas, um pouco ao modo de uma sua bela canção, é como se Mateus dissesse “eu sou Agostinho Neto, eu sou Angela Davis, eu sou Fidel Castro, eu sou Milton Santos, eu sou Zumbi, eu sou…”. Beatriz Nascimento diz, em cartela no início do filme, que é e será preciso “fazer elos em uma história fragmentada”. Oxalá seja possível reatar laços, vislumbrar uma nova humanidade (em oposição ao homem vil), relançar para diante imagens de emancipação – o imperativo, diz Mateus, do fazer poético de todo artista.


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À dança da dessemelhança >>> Cavalo (Rafhael Barbosa e Werner Salles, 2020) juliano gomes1

A energia política do longa alagoano Cavalo repousa, em primeiro lugar, na intensidade do seu comprometimento em não ser um só. Se na década passada, grande parte do cinema brasileiro de invenção buscava explorar a ideia de individualidade como sinônimo de singularidade, aqui temos um nítido exemplo de uma busca de outra natureza. Seria difícil uma sinopse que descrevesse bem o longa de estreia de Rafhael Barbosa e Werner Salles Bagetti. A estrutura do filme encruzilha trajetórias de sete artistas, com rituais religiosos, misturados a uma exploração material e geográfica de Maceió, em um desenho coral cuja força não pode ser sintetizada. O desafio que o filme propõe é o de como compor um corpo coletivo, heterogêneo e dinâmico, sem se tornar aleatório ou frouxamente caótico. A maturidade surpreendente de Cavalo passa pela recusa ao um, ao individual. Somente após quase meio século de neoliberalismo se começa a construir uma percepção coletiva dos danos da obsessão pelo unitário, pela unidade – que é afinal, uma tara por imaginários de escassez. O longa em questão faz algo raro na filmografia que estuda as matrizes religiosas afrobrasileiras: incorpora sua matéria no modo de se fazer e de se organizar do filme. Inclusive, teria dificuldade de dizer se ele é sobre alguma coisa. Cavalo é através. O mote do “cavalo de santo”, aquele que recebe o espírito, se torna figura conceitual que organiza o documentário. O acontecimento da incorporação é o emblema teológico-político da inviabilidade da individualidade como operador do entendimento. Assim, o tema do filme – se há um – é justamente o movimento, a dança, o princípio dinâmico. Daí, a força da escolha destes corpos que dançam como material de trabalho do filme. Eles dançam, mas tudo dança também. E assim, também o próprio filme. Se há um protagonista, provavelmente é a água. Mesmo quando corpos humanos ocupam o quadro, talvez seja a água – nossa secreta maioria interna – que esteja sendo filmada, novamente transmutada. De certa maneira, é essa a missão do filme, fazer falar o que estava mutado, o que está presente virtualmente e que precisa de estratégias de 1. Juliano Gomes é crítico, artista e professor. Publica crítica de cinema na Revista Cinética desde 2010, e desde 2020 faz atua como co-editor da revista. Publicou textos sobre música e teatro, além de dirigir curtas, e atuar como performer. Mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Site pessoal: <juliano-gomes.com>.


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acionamento para se manifestar. Não por acaso, a dança é parte essencial nos rituais das religiões que o filme materializa. Entretanto, é importante marcar que é a “mesma dança”: no rap, no mangue e na sala de ensaio. O que se anseia são os estados de alteração de si, onde se é outro, onde se é aquilo expressa. Quando dançamos é a dança que dança no corpo e não o contrário. Quando cantamos é a voz que canta no corpo e não o oposto. Cavalo se estrutura de maneira a receber o movimento, para fazer jus à inversão do sistema ocidental-cristão-moderno cuja obsessão é a autodeterminação deste homem, senhor de tudo. Aqui, o que trabalha é uma força despossessiva. Essa energia é a energia do movimentar-se, da expressão, dos estados dinâmicos. Neste sentido, estar “possuído” é o justo oposto de possuir algo, acumular ou ter posse – inclusive de si. Para que as entidades se ocupem do médium é necessária a mais complexa de todas as sensibilidades, saber receber, saber entregar-se, comprometer-se com a vulnerabilidade. Grande parte das organização dos rituais diz respeito ao acolhimento desta vulnerabilidade radical. A lágrima do homem que chora no colo de sua mãe no sofá no filme se transforma na água do mangue, no suor, e que vira chuva no segmento seguinte. A questão política que se coloca é como criar um sistema que não seja de represamentos. Cavalo é um filme cujo próximo movimento é sempre difícil de antecipar. Tanto que não tem exatamente sequências, mas sempre um novo plano, que experimenta e expressa, a cada corte, um radical desejo associativo. E essa é sua matéria principal. Durante o filme, não sabemos o nome de ninguém. Numa perspectiva “humanista liberal”, baseada na transparência e na escassez, esse seria um pecado. As religiões de matriz africana são mananciais de opacidade, baseadas em uma ética das metamorfoses, nas montagens heterogêneas. O efeito das variações que o filme opera trabalha justamente na multiplicação de tal energia. O ensaio se torna terreiro, o mangue, batalha de rap, uma chuva no espaço urbano se torna um banho de ervas e assim vai. “Cavalo” é justamente a ligação, a religação, a redescoberta do vínculo. O trabalho político da modernidade colonial é justamente a tarefa das separações, da separabilidade como descreve Denise Ferreira da Silva no ensaio “Sobre Diferença sem Separabilidade”.2 A última frase do texto diz: ... quando o social reflete O Mundo Emaranhado, a socialização não é mais nem causa nem efeito das relações envolvendo existentes separados, mas a condição incerta sob a qual tudo aquilo que existe é uma expressão singular de cada um e de todos os outros existentes efetivos ou virtuais do universo.

Cavalo é a manifestação singular do mundo emaranhado. Onde cada elemento, ao mesmo tempo, expressa um singularidade própria e um potencial de impropriedade. E justo aí repousa sua força. Um marco ético se sugere em oposição a uma moralidade humanista cristã ocidental. A orientação aqui está justamente nesta exploração de uma

2. SILVA, Denise Ferreira da. Oficina de imaginação política , 2016, p. 5. Disponível em <https://issuu.com / amilcarpacker/docs/denise_ferreira_da_silva_>.


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virtualidade comum e imprópria. Quando corta de um pé humano correndo para patas de cavalo fazendo o mesmo, não é exatamente uma metáfora, mas a demonstração empírica destas afinidades inerentes, que precisam da prática para se manifestar. O entristecimento generalizado causado pelo neoliberalismo algorítmico trabalha como prevenção à ativação desta energia virtual que é acima de tudo coletiva. Coletiva não só entre pessoas, mas entre nós mesmos, as coisas, e o que produzimos – o que é por natureza impróprio. Não sei dizer se o homem que vejo, numas das sequências iniciais, está “atuando para o filme” ou está “realmente incorporando”. Cavalo trabalha para que isso não seja uma pergunta. Porque um modelo baseado nas opacidades é um modelo que aceita a não transparência dos acontecimentos do mundo e tece assim, relações, descobre afinidades renovadas. A questão é o que chega de verdade, o que se recebe. O humanismo logocêntrico é apaixonado por verdade - mas mais do que pela verdade, ele é obcecado pelo que acha que só existe um: uma verdade, um cinema, uma intenção, um documento, uma unidade, uma autoria, uma agência, um senhor, um dono, e assim em diante. À semelhança de Orí (Raquel Gerber e Beatriz Nascimento, 1989) e Abolição (Zózimo Bulbul, 1988), Cavalo adota uma certa “estética da encruzilhada”, onde os segmentos vão se combinando de maneira ao mesmo tempo inesperada e fluída, filmes que parecem “andar de lado”, e não exatamente progredir, mas se fazerem numa composição em espiral. Segundo Leda Maria Martins a encruzilhada é um “lugar radial de centramento e descentramento, intersecções e desvios, texto e traduções, confluências e alterações, influências e divergências, fusões e rupturas, multiplicidade e convergência, unidade e pluralidade, origem e disseminação”.3 Esta frase poderia ser muito bem uma sinopse do longa alagoano. A passagem da autora descreve com precisão os processo que o filme adota em sua maneira composicional. Cavalo é ao mesmo tempo uma teogonia, um mito de criação do homem, uma sinfonia da cidade Maceió, um manifesto profano-religioso, um registro de processo e uma vídeodança. Seu coração é seu comprometimento com tal infidelidade. Uma ensaística muito particular – onde os modos da cena se ressaltam – aqui se expressa, na linhagem dos filmes dos anos 80 aqui já citados. Um filme-ensaio – literalmente –, um filme repetição,4 onde se gira mas nunca voltamos para o mesmo lugar. Portanto, cabe notar que é raro um longa de estreia fazer de uma certa incoerência a matéria de seu trunfo. Ao invés de coerente, o filme opta por ser corrente, por correr, fluir, para outra coisa, para outra, e assim em diante, como a água. Cavalo tem a coragem de assumir seu coração impuro e material, seu desejo singular que não é posse de ninguém, e nem nomes tem. Um giro antirracista na arte brasileira demandará um horizonte que Cavalo­, com ousadia, ajuda a desenhar: abandonar o humanismo, a propriedade, o moralismo liberal,

3. MARTINS, Leda Maria. Afrografias da Memória: O reinado do Rosário no Jatobá. São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997. p. 28 4. Em alguns idiomas, o que chamamos aqui de “ensaio” é chamado de “repetição”, como na língua francesa.


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a má consciência burguesa, a tara pela unidade como valor supremo. É necessário fazer da encruzilhada, método e modo de produção. Arriscar tudo, caminhar na lama incerta do inaudito, experimentar a facilidade técnica do cinema com transmutações, largar os reflexos simétricos e lembrar que toda reflexão é uma deformação, é dessemelhança ativa. Numa das sequências finais, umas personagens depois de dançar sob o reflexo movente das águas, grita e foge para o preto, para o fundo incerto, para a indeterminação. Moldar a mudança exige fuga constante. Cavalo é sinal do passado e lembrança do futuro, é uma constelação aberta, é o princípio dinâmico feito método. Somente pelo cultivo da prática, do descentramento aplicado, que o cinema e a sociedade poderão encontrar meios para desarmar a arapuca necroliberal. É isso afinal que cantam essas imagens, caso se possa dança-las.


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Fé e Fúria >>> sobre filme de Marcos Pimentel vagner gonçalves da silva1

Fé e Fúria, documentário de Marcos Pimentel (Brasil, 2019), inicia silenciosamente com a projeção da cartela de créditos sobre um fundo preto. Ouve-se então um diálogo entre “olheiros” dos traficantes monitorando o acesso aos morros do Rio de Janeiro. Até aí nenhuma novidade para quem acompanha os jornais ou filmes sobre a violência da guerra entre quadrilhas pelo controle do tráfico de drogas nas favelas. Mas, ao final, o locutor dispara: “Deus abençoe todo mundo aí, véio. Aquele que habita no esconderijo do altíssimo, à sombra do onipotente descansará. Direi do senhor, ele é o nosso Deus, tá ligado? Ou seja, nóis confia [sic] e ele faz o resto”. Essa mistura, a princípio contraditória, de atividades criminosas com a proteção do altíssimo, é reforçada visualmente no momento que a luz se faz e a câmera passeia pela arquitetura vernacular das comunidades dos morros. Na paisagem já conhecida de casinhas de lajes irmanadas, desponta uma novidade em forma de mensagens inscritas nas paredes e muros: “Jesus Cristo vive em minha casa”, “Um inimigo tem força, mas só Jesus tem poder”, “Deus é o dono do lugar”. E após tantas mensagens religiosas edificantes seguem-se cenas de terreiro e de depoimentos da mãe de santo e de sua filha agredida pelos evangélicos com pedradas na cabeça. Em menos de cinco minutos já se sabe, portanto, a que o título do documentário se refere: a fé posta a serviço da força e do poder do crime gerando um tipo de fúria específica que mistura metralhadora, versos bíblicos e extermínio religioso de quem professa uma crença diferente daquela dirigida ao “onipotente”. Fúria que se agrava pela ausência e ineficiência do Estado que impotente não consegue nem apaziguar a vida da população local, garantindo-lhe o elementar direito à vida, que dirá proteger o direito à fé ou à liberdade religiosa. O documentário está organizado em cinco partes separadas por uma cartela de título na qual o desenho de uma vela e uma metralhadora funcionam como potente ilustração do título geral. Na primeira, “Guerreiros”, a opção religiosa afro-brasileira é apresentada como importante mecanismo para a construção da autoestima e identidade positiva das populações negras que percebem a intolerância religiosa se ampliando como mais

1. Vagner Gonçalves da Silva é antropólogo e professor da Universidade de São Paulo dedicado ao conhecimento das culturas e religiosidades afro-brasileiras. Organizador do livro Intolerância religiosa.


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um dispositivo do racismo e da homofobia. De fato, nos depoimentos dos evangélicos a concepção da batalha espiritual do bem contra o mal se expressa numa linguagem bélica cujo léxico é composto por termos como “guerra”, “armadura”, “inimigos”, “exército” etc. Porém, contra o que se luta é um “moinho de vento” presente somente na cabeça dos tais “guerreiros de Jesus”. O desconhecimento do que acontece no âmbito dos terreiros, por exemplo, se expressa no depoimento ingênuo da jovem evangélica escandalizada com o que ouviu de um “ex-bruxo” arrependido descrevendo orgias satânicas às quais teria se submetido com o uso de sangue de animais e de um feto. No capítulo “Guerra” alguns casos concretos de práticas intolerantes são apresentados como o da evangélica funcionária de loja que humilha uma filha de santo, o do policial evangélico que persegue a mãe de santo com intimidações de toda espécie; o da professora evangélica que assedia a aluna de candomblé, o dos terreiros incendiados e destruídos. Cenas rituais nos terreiros mostram que estes têm como orientação a inclusão de várias referências a outras religiões, ao contrário dos cultos neopentecostais cuja tônica discursiva é o ataque a outras denominações classificando as religiosidade afro-brasileiras como “obra do diabo”. O pastor negro, ex-viciado e ex-presidiário, e etimólogo amador, dispara: “macumba” vem de “ma”, maldade, e “cumba”. Mas há também pastores negros que se eximem dessa postura denunciando o racismo e a ganância capitalista existentes em certas denominações como na Igreja Universal do Reino de Deus. Em “Gritos de Guerra” as igrejas neopentecostais assumem a evangelização como uma “guerra santa” levada a cabo por “gladiadores” ou pelos “exércitos de Cristo”. Nem as crianças escapam dessa linguagem bélica, presente inclusive nos nomes de igrejas como “Igreja Internacional Exército de Deus”, na qual Jesus chegou à patente de “general”, posto talvez até mais relevante do que o de ser “filho de Deus” e ter vindo à terra trazendo uma mensagem de paz e não violência. Mas não é só de “marcha, soldado, cabeça de papel” que se faz a evangelização. Outros passos entram em cena, como os “passinhos do abençoado” dançados por jovens negros, de terno e gravata, ao som do funk gospel. O capítulo “Armas”, o ponto alto do documentário, nos mostra o complexo processo de conversão dos traficantes iniciado com a evangelização nos presídios. Nessa ótica a batalha entre as quadrilhas parece equivaler a batalha espiritual do bem contra o mal, embora, nesse caso, cada facção se ache no lado do bem colocando a rival no lado do mal. E o onipotente parece jogar nos dois times. Isso porque não há, desse ponto de vista, contradição entre ser evangélico e ser traficante. O gerente da boca tem tatuado no braço o nome “Jesus Cristo” que também está cravejado nas pistolas. Por isso, o crescimento das igrejas evangélicas nas favelas acompanha o fechamento dos terreiros e a proibição de se exibir sinais de pertencimento ao candomblé ou umbanda, como roupas litúrgicas e fios de contas. Essa relação espúria entre pastores e traficantes é criticada como a nova peça da cadeia produtiva da lavagem de dinheiro ilícito e do crescimento da arrecadação do dízimo. Traficantes e pastores tornam-se assim os donos do pedaço, com o aval de Jesus. Ser de Deus e ter um revolver ou um aliado que o tenha parece não ser, portanto, uma contradição moral, religiosa ou política.


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“Outras armas” finaliza mostrando que a intolerância religiosa resulta de um conjunto de alianças que tem seu epicentro no racismo estrutural que historicamente relegou as populações negras para as margens da sociedade. A amplitude dessas alianças é, entretanto, um fato histórico recente pois vem alinhando uma diversidade de atores, como empresários do setor de comunicação, políticos evangélicos que fidelizam os votos das membresias, a direita conservadora que não tem mais vergonha de mostrar a cara e reivindicar pautas que afetam o direito à existência democrática das minorias e da diversidade. Aqui, ao contrário daquele ditado popular, religião e política se discutem. Enfim, Fé e Fúria tem entre suas inúmeras qualidades a de dar voz aos vários lados envolvidos na guerra, embora o próprio termo deva ser questionado já que os adeptos afro-brasileiros não querem guerrear, apenas reagem aos ataques, resistindo o quanto podem à tentativa de usurpação do espaço conquistado. Lembram, inclusive, que esse ataque não é “apenas mais um problema da favela”, mas diz respeito à sociedade e ao Estado brasileiros que perdem sua diversidade e se emburrecem quando admitem o ódio, o racismo e o extermínio, ainda mais quando praticados em “nome de Deus”. O documentário é uma importante contribuição contra esse emburrecimento que insiste em hierarquizar o mundo em termos de “uma coisa acima da outra”. Na vida tudo convive lado a lado e o respeito ao diferente é a melhor forma de elevação a que homens, espíritos e nações podem aspirar.


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Encontro e poesia Sob a sombra da palmeira e Poemas do Camboja >>> sobre filmes de Tomyo Costa Ito mariana souto1

Um díptico se forma a partir de Sob a sombra da palmeira e Poemas do Camboja (2020), de Tomyo Costa Ito. Um encontro de leitura de poesias ocorrido na cidade de Phnom Penh é o eixo que articula os dois filmes; a partir dessa situação, desdobram-se os dois curtas, cada um por seu caminho. Para além de nomear um evento literário, encontro e poesia são palavras-chave para as duas obras. Sob a sombra da palmeira começa com a leitura de Chheangly Yeng, que canta em khmer seu poema “de sete palavras por verso” para os colegas ouvintes. Um corte e estamos com o personagem em sua terra de origem, numa zona rural. Agora em inglês, ele conta um pouco da história de sua família e o trabalho árduo, desempenhado ao longo de quase uma década, de remoção de árvores para o plantio de arroz. Segundo o incentivo do governo, extrair a vegetação lhes daria o direito à terra de cultivo. E agora todas aquelas terras estão à venda (“para os ricos”), aguardando novas transformações. O rapaz partiu para estudar administração na capital, enquanto seu pai se ocupava incansavelmente do trabalho agrícola. Chheangly faz esse relato se dirigindo ao operador da câmera, o próprio realizador, que ocupa um antecampo afetivo do filme. A câmera vê e ouve com detida atenção o carismático personagem, de risada gostosa, em planos longos que acompanham o desenrolar dessa narrativa oral. Chheangly também carrega uma câmera e Tomyo logo o observa fazendo imagens da região. Dele, deriva para a paisagem que registra, como se interessado não apenas no que ele diz, mas no que lhe capta a atenção e, sobretudo, na forma como ele vê o mundo. As imagens dessa segunda câmera, operada pelo personagem em cena, são incorporadas pelo filme, em janela diferente. Se Tomyo é um visitante completamente estranho àquele lugar, Chheangly se relaciona de maneira 1. Professora do curso de audiovisual da Universidade de Brasília. Doutora pela UFMG com pós-doutorado pela ECA-USP. Autora de Infiltrados e invasores – uma perspectiva comparada sobre relações de classe no cinema brasileiro (Edufba, 2019).


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ambígua com o espaço: ele retorna ao ambiente de origem tendo sido modificado pela cidade grande, pelos estudos, pela distância. O ato de produzir imagens adquire conotações diferentes em cada caso: para o cineasta, é a observação do novo e do desconhecido, para o personagem-cinegrafista, um registro atravessado pelas memórias. Foi debaixo de uma enorme palmeira, que se ergue quase solitária na paisagem bastante horizontal, que Chheangly compartilhou uma última refeição com o pai. Ausência do pai, das árvores, das mangueiras, da plantação de lótus. A ampla profundidade de campo e o horizonte aberto denunciam, nas imagens, esses muitos vazios. Já nos momentos finais do filme, Chheangly dirige uma moto e carrega Tomyo na garupa. Em um movimento de câmera virtuoso, vamos do rosto do condutor visto pelo retrovisor novamente à paisagem que ele comenta – e que passa rápido por um olhar que avança pela estrada. “Terra limpa”, diz o personagem, enquanto se pode pensar em “terra devastada”. Poemas do Camboja é fruto do mesmo encontro de leitura de poesias, espaço em que cineasta e personagem de Sob a sombra da palmeira se conheceram, mas assume outra forma. Neste filme, nove poemas são lidos por autores cambojanos sobrepostos a imagens diversas, que dialogam mais ou menos diretamente com os textos em voz over. São imagens produzidas pelo realizador ao longo de sua estadia de um semestre naquele país,2 entre ruas, templos, mercados, praias. Diferente do filme anterior, a ênfase não recai sobre as pessoas – nenhum rosto é visto –, mas sobre os espaços e sua circulação. A câmera está sempre na mão e se alterna entre momentos mais contemplativos e plácidos e outros mais curiosos, em movimentos inquietos típicos de um olhar externo, que admira as novidades de uma cultura que pouco conhece. Configura-se, assim, uma combinação entre versos nativos, que comentam – e também fabulam – uma realidade habitual e imagens produzidas por um estrangeiro, cujo olhar desnaturaliza o corriqueiro e o ordinário, em alguns casos revelando o exótico (ao menos a um olhar ocidental). Desse encontro nascem os “vídeo-poemas”, uma ressignificação dos textos capaz de produzir novas leituras. As imagens, portanto, não se colocam na perspectiva de uma ilustração das palavras, mas adicionam sentidos, indicam outras ideias; as interpretações restam abertas. Os poemas, declamados em khmer, pautam a divisão do filme em fragmentos. São blocos precedidos de títulos como “Luz de boate”, “Tartaruga” e “A trabalhadora”. Em “Eles estão indo”, canteiros de obras, edifícios em construção e guindastes, filmados com certa instabilidade e desorientação, aludem a processos de reconfiguração urbana, verticalização, exploração do trabalho e expulsão populacional enquanto ouvimos uma melancólica voz feminina dizer: “Eles continuam a gritar ‘injustiça’ com suas próprias bocas. A voz é tão macia e tão baixa. A voz não chega ao centro da cidade. Não chega aos camponeses que são os verdadeiros donos da nação”. A difícil relação entre o rural e o urbano e a transformação da paisagem, tematizadas em Sob a sombra da palmeira, se revelam aqui também.

2. A estadia no Camboja foi parte de um doutorado-sanduíche para pesquisar o cinema de Rithy Panh. A Tomyo, agradeço pela conversa que elucidou aspectos contextuais do filme e trouxe elementos adicionais ao texto.


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No segmento “Brincadeira de criança”, não ouvimos poema; apenas vemos imagens de templos, corredores com tetos decorados, estátuas e ruínas ao som de vozes infantis distantes. Os créditos finais nos contam que a autoria é do próprio Tomyo Ito. Assim, o diretor não apenas agencia os poemas, como também participa deles (com uma poesia apenas visual), em proximidade com os colegas poetas. Se, de um lado, uma experiência radical de alteridade se coloca nos filmes, realizados por um brasileiro no Camboja, por outro as diferenças se manifestam num encontro fraterno – um diálogo que se coloca na chave da amizade, em Sob a sombra da palmeira, e da observação, em Poemas do Camboja.


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Aparições e desaparições em Pajeú >>> sobre filme de Pedro Diógenes tomyo costa ito1

Do córrego sem nome aparece, diante da mulher, uma criatura amedrontadora, feita de restos de raízes, de partes humanas e de animais, mas viva. A criatura se ergue e olha para Maristela que é afetada por este encontro. Seria um sonho? Um mal estar lhe toma e cria nela uma necessidade de saber do córrego; primeiro descobre seu nome: Pajeú. A aparição retorna. Dessa vez irrompe no corpo da mulher com a fusão de suas imagens: seus olhares, seus sintomas, e seus corpos se confundem. Seria um delírio? Yuri, seu amigo, lhe tira desse transe, dessa profunda conexão que quase lhe faz se perder. Mas ela toma para si esse clamor silencioso, esse grito contido. Esta aparição de caráter espectral é como uma “verdadeira imagem do passado que passa célere e furtiva”, e só é reconhecida por aqueles que se sentem visados por ela (BENJAMIN apud LÖWY, 2005, p. 62). O planejamento das ruas e avenidas do mapa da cidade de Fortaleza encobre o riacho, mas as fotografias do passado indicam seu antigo traçado: a presença das árvores demarca onde a terra e a água respiravam juntas. Debruçada sobre o mapa, Maristela o desmonta com a ajuda de um velho, traça sobre ele outras referências, que vão guiar o recolher dos restos do riacho Pajeú. Com um mapa remontado, ela percorre a cidade. No entanto, o asfalto e o concreto fazem o riacho quase desaparecer por completo. Sua busca se assemelha ao trabalho do arqueólogo que procura nas ruínas os rastros de uma antiga construção. Para a filósofa Jeanne Marie Gagnebin (2012, p. 27), o rastro só existe em sua fragilidade: “é rastro porque sempre ameaçado de ser apagado ou de não ser mais reconhecido como signo de algo que assinala”. O riacho, ameaçado pelo apagamento, ainda resiste pelas frestas dos bueiros, pelas fissuras do concreto onde suas águas circulam, pela revolta de suas correntes, na frágil condição de um não reconhecimento: é o córrego de mau cheiro, o depósito de lixo, o transtorno das enchentes.

1. Realizador, pesquisador e professor de cinema. Doutorando em Comunicação na UFMG com pesquisa sobre a elaboração do passado cambojano no cinema de Rithy Panh.


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A busca de Maristela passa por um dos marcos oficiais da cidade: a fortaleza que virou ponto turístico. Seu guia tem todas as respostas: aponta a importância de um curso de água doce para a estratégia militar, explica que o forte deu origem à cidade, perpetua a ideia dissimuladora de uma “colonização branda” portuguesa e um convívio pacífico com os povos indígenas. Maristela traça um tipo de historiografia crítica, identificada por Gagnebin (2012, p. 33) em Walter Benjamin, que procura por “rastros deixados pelos ausentes da história oficial”: os rastros das forças naturais, como o Pajeú, dominadas pelo progresso da grande cidade; e por “rastros de outras possibilidades de interpretação de uma imagem imutável dos acontecimentos”: este filme de ficção, tão próximo do documentário, abre-se para as memórias e as interpretações das pessoas que, visadas pelas aparições do riacho, marcam pontos apagados pela especulação imobiliária, veem em seus restos o descaso das políticas públicas e a dominação da natureza pelo homem. Em sua busca, Maristela encontra uma pesquisadora que traçou um caminho similar: reuniu mapas, fotografias, procurou os restos para reconstituir, por meio desses fragmentos, a história do desaparecimento do riacho. Ela, também, se sentiu visada por uma aparição amedrontadora do Pajeú: a água escura que tomou a piscina de seu colégio. Essa vontade de reconstituição atravessa a história pessoal das duas personagens, mas suas memórias (e seus esquecimentos) parecem carecer de uma dimensão para a qual o filme aponta: a forma de lutar de Sônia Guajajara – liderança indígena – reúne as forças do passado, daqueles que já se foram, contra o desaparecimento da “mãe natureza”: “É a força de nossos ancestrais que está nos guiando. É a força dos nossos antepassados que está mostrando o caminho. E o mundo precisa escutar. A terra está clamando por socorro, nós precisamos respeitar o direito das pessoas, mas principalmente respeitar os direitos da mãe terra.” A vida nas cidades provoca um apagamento das memórias, pois não nos sentimentos mais visados pelas histórias das coisas e daqueles que nos antecederam, talvez seja dessa força que elas e nós (como habitantes das cidades) carecemos. Sem conseguir lidar com as aparições do riacho, com as perdas de sua história pessoal, Maristela se angustia. A beleza melancólica do canto dos personagens no karaokê, espécie de descarregamento de energia de vida, parece ser a última linha de resistência de suas subjetividades em um mundo que quer dominar as forças da natureza às custas da pluralidade dos modos de existência (ergue suas cidades sobre florestas e rios; impõe um modo de vida). Ao não conformar sua potência de vida e seus afetos a esta ordem do mundo, Maristela escolhe se juntar ao riacho. Pedro Diógenes articula as figuras da aparição e desaparição: com a primeira aponta para campos de ação para lidar com o mal-estar da vida na cidade: o recolhimento dos restos, a marcação de novas referências no terreno, o encontro com as pessoas para reconstituir, em conjunto, as histórias do passado; e com a segunda aponta para o risco iminente de desaparição das forças naturais que ameaça a pluralidade dos modos de existência. O filme, como a criatura de Pajeú, é, em si, uma aparição que assombra aqueles que ainda se sentem visados pelo apelo da “mãe terra” (de seu passado e


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presente de destruição) e convoca a buscar as histórias (humanas e naturais) dos sem nome, dos desaparecidos, dos esquecidos.

Referências GAGNEBIN, Jeanne Marie. Apagar os rastros, recolher os restos. In: SEDLMAYER, Sabrina; GINZBURG, Jaime (Orgs). Walter Benjamin : Rastro, aura e história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012, p. 27-38. LÖWY, Michel. Walter Benjamin : aviso de incêndio : uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005.


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Entre nós e o mundo >>> sobre filme de Fabio Rodrigo andré novais oliveira1

É na calada da noite que se inicia a narrativa em Entre nós e o mundo, mostrando garotos fazendo um funk à capela. O ritmo quebrado das passagens de cada canção se liga aos planos não convencionais da noite. São rimas que falam de fé, persistência. Em um muro aparece uma pichação escrita: “Nada muda”. Uma rua “morrada” também é mostrada dando a estranheza boa do enquadramento. Um beco. Janelas emitindo luzes talvez de TVs ligadas. No mesmo momento que a personagem principal, Erika, deve estar dormindo se preparando para um novo dia. Já nos primeiros minutos de filme, depois que entendemos a dor da perda da personagem, compreendemos também a importância do surgimento de uma nova vida para Erika. Alicia chega, tem nome de cantora, um irmão de 17 anos e outro que, infelizmente, conhecerá por fotos, vídeos e histórias. Erika, a mãe é o retrato de uma mulher preta e trabalhadora. Entre nós e o mundo mostra, antes de tudo, a potência negra e periférica e sua luta de vida diária e contra o racismo e o genocídio da população preta. Tudo é colocado de uma forma muito respeitosa, com o entendimento da dor, das coisas belas da periferia e das pessoas que nela moram. As imagens de Entre nós e o mundo mostram um realizador que revela sua familiaridade com a periferia. Os planos, principalmente externos, tem suas particularidades e estilo e carregam uma força capaz de transmitir o que é viver naquele bairro, naquele lugar. Vila Ede, São Paulo. Periferia que poderia ser em vários lugares do Brasil, com seu povo que luta e que convive com desigualdades e a violência, incluindo a violência policial. Uma das principais características do cinema brasileiro periférico de hoje é seu olhar. Um olhar que, na maioria das vezes, vem agora de dentro, com profundidade e propriedade. Diferente de muitos favela movies de alguns anos atrás que possuíam uma mirada externa que tentava entender toda aquela complexidade que é a periferia, mas se esbarrava na visão do preconceito e só via as mazelas com um olhar superior e antropológico. O simples fato de movimentar a câmera para bairros de periferia e

1. Realizador de cinema e integrante da comissão de seleção e curadoria da Mostra Contemporânea Brasileira do forumdoc.bh.2020.


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não necessariamente uma favela já é uma mudança no olhar que pode mostrar uma gama de complexidades ainda não discutidas no cinema brasileiro. Em um filme como o de Fábio Rodrigo vemos agora mais que uma horizontalidade, uma proximidade nada afetada e muito sincera. Sinceridade em querer contar histórias daquele lugar e de um jeito muito particular e pessoal. Propriedade talvez seja a palavra que define o que a gente vê na tela em Entre nós e o mundo. Uma propriedade que entende cada esquina, cada poste, cada fio elétrico com sapatos dependurados por cadarços. Tanto o início quanto o final do curta parecem carregar algo que vai além de contar a história da personagem principal e de tudo o que ela passou. Parece querer dizer sobre fabulação, sobre pessoas dali, sobre música e como ela se dá bem com todos os elementos da periferia. O realizador se coloca novamente no filme como em seu curta de estreia Lúcida e mantém contato com sua prima, Erika. Primeiro através das mensagens de voz, por fotos e pessoalmente. Nisso o tempo passa em uma profunda fluidez, fazendo com que as dores da personagem se distancie tentando aliviar o passado não tão distante e o surgimento do bebê com nome de cantora famosa. Essa fluidez parece devedora de uma sabedoria também sobre o tempo, uma calma que o filme precisa pra contar tudo aquilo e que é totalmente diferente de um ritmo arrastado. A montagem tem cadência, como música boa. Em um momento do filme vemos fotos dos personagens em outras épocas. Tal recurso, usado de maneira muito bonita em curtas recentes do cinema negro brasileiro como Travessia, de Safira Moreira, e Fartura, de Yasmin Thayná, apresentam uma história tão bonita e singela que se ligam em um passado que nos esforçamos para que não se apague. Em Entre nós e o mundo, assim como nos curtas citados, as fotos estão intrincadas de forma extremamente orgânica com a própria história e narrativa. Na sequência final, a imagem do bebê no berço olhando para o teto seguido de uma montagem de crianças e adolescentes andando pelo bairro parece nos querer dizer da continuação das coisas, algo bem diferente de conformidade pela situação dos personagens. A vida segue. Theylor já não está ali e o outro filho de Erika continuará andando pelas ruas da cidade, as mesmas ruas onde passam também policiais.


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Um filme ao rés do chão >>> Território Suape (Cecília da Fonte, Laércio Portela e Marcelo Pedroso, 2020) victor guimarães1

Território Suape (Cecília da Fonte, Laércio Portela e Marcelo Pedroso, 2020) começa com imagens aéreas e planos gerais da paisagem transformada do complexo industrial e portuário de Suape, em Pernambuco. A escala é ampla, o olho rastreia o território. Em seguida, somos apresentados à primeira personagem do filme, que sai de casa para trabalhar. Mas a primeira informação que aparece na tela é seu logradouro: Vila Nova Claudete. Este será um filme, à primeira vista, sobre o espaço que abriga as vidas. Tudo se passa, no entanto, nessa passagem entre a visão do drone que percorre o território e essa outra maneira de encarar, à altura dos olhos, quem o habita. Ao fim e ao cabo, Território Suape será um filme ao rés do chão. Na tentativa de dar conta das relações entre o espaço e as vidas nesse território, a montagem fará um contínuo pêndulo entre duas experiências inconciliáveis: de um lado, os condomínios bem arejados e cheios de verde, gramados bem cuidados e piscinas reluzentes de azul, que floresceram com a industrialização da região e o beneplácito dos governos pilotados pelas empreiteiras; do outro, as casas postadas uma ao lado da outra, impessoais e áridas, construídas para depositar as pessoas removidas de suas existências rurais para a construção do porto. Ainda que os espaços percorridos pelo filme sejam mais que dois – há os condomínios de luxo e há as vilas onde moram Binha e Edilene, mas também o bairro periférico São Francisco, onde trabalham o professor Gleydson e o rapper Ogro, a Cohab do estudante Zé Henrique ou o pequeno sítio de Josefa –, o corte que leva do espaço burguês aos espaços populares materializa a cisão: de um lado a respiração, o verde, a segurança; do outro um arremedo de vida, o concreto onipresente e as estatísticas da morte diária. A oscilação do pêndulo também encontra as contradições que não se podem ver a olho nu. Do teatro incendiado, abandonado pelo poder público, onde o mato cresce enquanto Zé Henrique rememora o descaso dos governos, o corte nos leva até o cinema exclusivo e confortável com poltronas de couro. Do parquinho abandonado e cheio de mato da vila, outro corte nos conduz até a grama bem cortada dos jardins do condomínio. Os empreiteiros se orgulham em dizer que não há muros para separar o território burguês dos bairros do entorno, e é por isso que o filme tem de caminhar

1. Crítico de cinema, programador e professor. Co-editor da Revista Cinética e colunista do portal Con Los Ojos Abiertos. Diretor artístico do FENDA – Festival Experimental de Artes Fílmicas.


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a pé e se colocar à escuta: do alto, não se pode ver as cercas invisíveis. O parque do condomínio também é público – é essa a palavra usada pelos empreiteiros –, mas é preciso entender porque não se vê um morador das comunidades vizinhas nas gangorras bem cuidadas pela prefeitura. Se as propagandas dos empreendimentos projetam um espaço democrático, com atores negros e crianças felizes, é preciso escutar Gleydson para entender que a função do bairro São Francisco no novo desenho urbano é fornecer faxineiras e aviõezinhos para sustentar o conforto dos condomínios. Sem alarde, a montagem vai articulando os dois lados desse apartheid sofisticado, pouco estridente, incorporado ao cotidiano das cidades como se fosse natural. Uma das virtudes de Território Suape é justamente a de permitir que esse espaço segregado ganhe corpo nas vozes de seus personagens, tanto os do lado de lá quanto os do lado de cá. O empreiteiro Luís Henrique define assim o motivo do novo bairro ser tão seguro: “A comunidade vizinha é o nosso principal portal de segurança. Eles zelam pelo bairro. Porque eles sabem que eles trabalham aqui, os filhos deles irão trabalhar aqui. Aqui foi uma oportunidade de eles crescerem, se desenvolverem e estarem integrados a um bairro com padrão urbanístico e que é muito inclusivo”. Ao invés de confrontar, na cena, a fala do empreiteiro – que parece reconhecer no desastre da segregação um estado de coisas natural, desejável e perpétuo – o filme prefere nos levar até um espaço comunitário no bairro São Francisco em que as paredes foram tomadas pelos nomes dos adolescentes assassinados. Mas ao contrário de tantos filmes na tradição do documentário brasileiro, Território Suape não toma seus personagens como meras vítimas do desastre, e sim como intérpretes da realidade que os circunda. A forma predominante de suas falas não é a queixa ou o relato de vida, mas a análise consciente das contradições do espaço. Se em boa parte do documentário brasileiro os pobres só são convocados para falar de si – cabendo aos “especialistas” a capacidade de análise –, aqui o território é escrutinado pela lucidez de Ogro, Edilene, Gleydson, Zé Henrique. São elas e eles que desvendam os mecanismos de sustentação dessa experiência cindida e que, à sua maneira, inventam uma maneira de estranhar esse espaço. Se o filme começava com as imagens aéreas e impessoais, vai terminar com as fotografias de cada um dos personagens e com o relato de seus sonhos para o futuro. Seria possível fazer um inventário dos momentos em que o cinema brasileiro recente deu a ver personagens solitários boiando na água do mar, ou da piscina, ou do lago. Invariavelmente, essas cenas são movidas por um impulso de introspecção, como se o ato de flutuar sozinho encarnasse um recuo diante do excesso de convívio e impelisse cada personagem para o interior de si mesmo. Nas sequências finais de Território Suape, o movimento é exatamente o oposto: no riacho visitado pela família de Josefa, as mulheres saltam na água para flutuar juntas, numa algazarra prazerosa que afirma um desejo de experimentar o espaço livremente, na delícia do banho, nas risadas partilhadas. No plano final, quando o pescador rema até o meio do lago, seu intuito não é o de se deixar levar pela água calma, mas de penetrá-la com um salto mortal. Como no deslize de Ogro com seu skate que atravessa o território, é preciso desfazer à força as fronteiras, desnaturalizar o espaço, violentar sua placidez assassina. Eis uma utopia comum aos personagens e ao filme.


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Imagem de luta na luta pela imagem >>> Entre nós talvez estejam multidões (Aiano Bemfica e Pedro Maia de Brito, 2020) bruna piantino1 priscila musa

À noite um grupo de pessoas ocupa o meio da Rua Comandante Che Guevara e o centro da imagem. Assistimos à distância, mas podemos ouvir os sons que se sobrepõem: crianças, palmas, sussurros, cigarras, latidos de cachorro, assovios. Em meio à polifonia, também presente em todo filme, se destaca a voz de Poliana Souza, ela narra a conquista recente: o código de endereçamento postal, CEP. Parece algo simples, mas para chegar até ele foi preciso construir com as próprias mãos: a rua, o sistema de distribuição de água, de distribuição de energia elétrica e esgotamento sanitário, a creche, o bar, o salão, o palco, a própria casa. Para “existir enquanto endereço”, como afirmou Poliana, foi preciso construir um pedaço de cidade que para muitas pessoas já é um dado. Foi preciso construir também um modo de estar e permanecer em coletivo, com pessoas muitas vezes desconhecidas, foi preciso negociar, foi preciso conviver com os conflitos de múltiplas origens, foi preciso construir redes de apoio, foi preciso ocupar não apenas a cidade mas também a imagem e foi preciso criar imagens e fazê-las alcançar outros pedaços de cidade. Assim Poliana anuncia: o CEP chegou com o reconhecimento “à nossa ocupação, que um dia foi despejada, hoje é o bairro Eliana Silva”. Com ele, aparece a necessidade de dar mais um passo, agora é preciso fazer com que o correio entre na ocupação e chegue até cada uma das casas. A estratégia traçada por outra moradora, Juliana, é enviar várias cartas para o seu próprio endereço. Assim, o ato quase obsoleto de enviar cartas se transforma, ganha uma dimensão de luta. Nesta cena inicial sentimos o anúncio de duas cartas, uma escrita pelos próprios moradores endereçada à ocupação, convidando-intimando o correio a entrar, e a outra é a escritura fílmica feita do encontro de muitas mãos e endereçada a alcançar outros correspondentes-espectadores.

1. Bruna Piantino é formada em Comunicação Social. Escritora, fotógrafa e documentarista. Priscila Musa é arquiteta, Urbanista e Fotógrafa. Pesquisa sobre a produção de imagens dos Movimentos Sociais de Belo Horizonte.


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Nas cenas que se seguem, chegamos às casas, à beira do palco, ao quintal, ao bar, à creche e ficamos muito próximas, alcançamos a intimidade cotidiana do bairro e de suas moradoras. A câmera está quase sempre parada, o movimento quem estabelece são as pessoas com seus corpos e com suas vozes, com os espaços por elas construídos, com o ir e vir que convoca quem filma e quem assiste para dentro da imagem: “você fraga?” – disse um dos moradores. Há uma sobreposição entrecruzada dos planos fixos: as imagens das casas – a vista da ocupação, as conversas conduzidas pelas narrativas pessoais, os encontros coletivos das lideranças do MLB (Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas) e as apresentações musicais e de dança no palco localizado no meio da Rua Comandante Che Guevara no lado oposto da primeira cena. Nesta direção onde a câmera aparentemente observa o movimento articulado e conduzido pelo que acontece fora dela, o real atravessa, há a configuração de um espaço compartilhado que aponta para além dos horizontes determinados, aparece a multidão de mundos e as singularidades que conformam o bairro e as experiências, os conflitos, o dissenso. Somos convidadas a habitar paradoxalmente essas imagens para podermos ver de perto e de dentro. O filme não apenas potencializa a visibilidade das pessoas e da ocupação, ele participa, constitui, integra e convoca um outro modo de ver a política, a vida, o cinema militante. São muitas as formas de organização que reexistem em uma ocupação urbana de luta pela moradia, que enfrentam as desigualdades racializadas de renda, de acesso aos direitos básicos e buscam melhores condições de vida, formas que existem, resistem, individual e coletivamente. Com o filme, vemos que a luta não se dissocia da vida cotidiana, não se dissocia da imagem e do imaginário. É para “existir enquanto endereço”, mas é também para existir enquanto negra/o, enquanto mulher, enquanto LGBTQI+, enquanto cantora, enquanto DJ, enquanto ocupação, enquanto coletivo, entre outras. As linhas divisórias, as estruturas historicamente localizadas e desiguais são tensionadas e confrontadas nos múltiplos universos onde cada existência se realiza. Um dos entrevistados nos conta que devido ao trabalho árduo da construção civil, trabalho esse que se estende nas obras da ocupação, precisou trocar duas válvulas cardíacas. Um coração que oscila muito e mesmo com essa instabilidade, ele afirma: “o pisar é firme, eu não flutuo”. Um novo caveirão espreita o bairro-ocupação. As filmagens acontecem na temporalidade que marca o conturbado processo eleitoral que culminou na eleição de Jair Bolsonaro para presidente. Um retrocesso em muitos campos fundamentais para a manutenção das vidas no país. A realidade oscila, é quando o filme sai dos planos fixos e acompanha a contra-campanha dentro da ocupação. Os conflitos aparecem, ninguém flutua no quadro, as vozes são firmes. “Entre ele dizer e fazer tem uma multidão de pessoas dispostas a lutar e resistir”, afirma Poliana. E que multidão é essa? As sobrevivências que se desdobram em cada narrativa contada com o filme-ocupação e nos levam a conectar a muitas outras. Os modos de vida que permanecem apesar dos genocídios, epistemicídios, ecocídios, urbanicídios. A histórica e persistente luta pela terra no país, nas cidade e além delas, no presente e muito além dele. A força que emergiu na resistência ao despejo. A força do nome Eliana Silva, uma militante e


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liderança da primeira ocupação do MLB em Belo Horizonte, a Vila Corumbiara, que por sua vez relembra e homenageia a luta sem terra em Rondônia. Com a Ocupação Eliana Silva, oito ocupações em seu entorno direto e tantas outras em toda a Região Metropolitana e em todo o país. Em cada quilombo, em cada aldeia, em cada cidade, a cada nova ocupação onde há renovação e não morte, onde há continuidade e não fim. Nas pessoas que emergem dessas experiências, como nos conta Leonardo Péricles ao relembrar sua trajetória de militância e a importância da luta para que “as pessoas tenham o direito de mudar as suas vidas”. “Eliana Silva, mais uma ocupação não tem medo do caveirão!”, um canto que surgiu durante a luta contra o despejo e que ecoa várias vezes durante o filme. Quando o desencantamento parece surgir mais uma vez com força, ali já se alinhava um outro possível, um novo partido UP – Unidade Popular, novos atores políticos, as pessoas que vão aos pouco transformando as próprias vidas, o pisam firme frente a tantas oscilações. No filme somos posicionadas politicamente dentro de uma situação histórica. Como disse Marcelo Lopes de Souza, os movimentos urbanos “com o Estado, apesar do Estado, contra o Estado” (2010, p. 6). O Estado, esse conformado pela administração pública, mas também um certo estado das coisas. Como Nêgo Bispo disse em um áudio que chegou através de Rafael Barros: “Não vamos mudar o mundo porque ele não existe. Existem mundos” (2020). Aiano Bemfica e Pedro Maia de Brito consolidam a trilogia bienal da luta social, após o imersivo Na missão com Kadu, o premiado Conte Isso Àqueles que Dizem que Fomos Derrotados, e o imprescindível Entre nós talvez estejam multidões. No cinema, o coração oscila, mas firma o pé na política dessas imagens endereçadas ao futuro.

Referências SOUZA, Marcelo Lopes. Com o Estado, apesar do Estado, contra o Estado: os movimentos urbanos e suas práticas espaciais, entre a luta institucional e a ação direta. Revista Cidades, São Paulo, Volume 7, Número 11, 2010.


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Fúria: imagens do Brasil a contrapelo >>> Cadê Edson? (Dácia Ibiapina, 2019) joão paulo campos1

A arte rompe com os processos políticos reacionários, ruptura metafórica mas anuncia caminhos. (Glauber Rocha)

Dácia Ibiapina trabalha com equipes formadas majoritariamente por ex-alunos na difícil tarefa de realizar documentários em franca aliança com movimentos sociais e pessoas excluídas das benesses da modernidade no Brasil. Seus filmes perseguem o rastro da pólvora. A autora constrói sua poética a partir da integração de dois gestos fundamentais que, na fatura de seus filmes, se imbricam numa dança incendiária: cine-olho e cine-punho ou observação e montagem dialética. Trata-se de um cinema junto ao povo e contra a opressão capitalista que nos lembra o projeto de Jorge Sanjinés com o grupo Ukamau e as experiências do Grupo Cine Liberación de Fernando Solanas, Octavio Getino e Gerardo Vallejo. Sua obra procura expor contradições visando contribuir para a compreensão de conflitos sociais do agora. Tal gesto retoma o legado dos novos cinemas latino americanos no contexto de terra arrasada – e esperanças renovadas? – do mundo contemporâneo. Cadê Edson? (2019) começa com o voo de um helicóptero da polícia rasgando a fantasmagoria de pacificidade e ordem do Plano Piloto. Estamos sitiados numa ação das forças especiais da Polícia Militar para desocupar o hotel Torre Palace, primeiro prédio do setor hoteleiro de Brasília cujo abandono por anos a fio incentivou sua ocupação pelo MRP (Movimento de Resistência Popular), liderado por Edson Francisco da Silva. Início disruptivo em que a montagem confronta dialeticamente a ação violenta da polícia contra os militantes com primeiros planos das performances animadas de manifestantes conservadores vestidos de verde e amarelo. Através dessa operação o

1. Crítico e pesquisador de cinema. Doutorando em Antropologia Social na Universidade de São Paulo (PPGAS-USP). Pesquisador do Núcleo de Antropologia, Performance e Drama (NAPEDRA-USP). Editor da Zagaia em Revista.


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filme constrói discursivamente a imagem da colaboração de patriotas conservadores para a permanente violência policial contra os despossuídos. Este preâmbulo anuncia a poética do confronto que organiza o filme ao mesmo tempo que energiza seu público para a complexa construção porvir. A orientação dialética já estava presente – com resultados muito distintos nas faturas de cada obra – no primeiro filme de Ibiapina, o curta-metragem em super-8 O pagode de Amarante (1984), e atravessa seus outros dois longas-metragens, Entorno da beleza (2012) e Ressurgentes: um filme de ação direta (2014). A cena de abertura funciona também como ponto originário do engajamento que anima Cadê Edson, filme que parte da indignação da cineasta em relação ao poder da grande mídia de construir a imagem pública de uma pessoa com o objetivo de naturalizar ações brutais da polícia contra os pobres – daqueles que, nas palavras de Edson, “tem sangue de preto, de índio, de periferia”. O espanto da autora surgiu da cobertura jornalística da desocupação do Torre Palace e subsequente prisão de Edson, sua companheira e integrantes do MRP. O filme articula fragmentos deste material jornalístico para confrontá-lo com uma imagem do movimento liderado por Edson na contramão de sua figuração monstruosa. O que perseguimos durante o período da projeção é uma genealogia de Edson e do movimento de luta por moradia no Distrito Federal produzida a partir da remontagem de uma miríade de materiais arquivísticos: desde os arquivos da polícia e de jornais televisivos até entrevistas realizadas por Ibiapina e sua equipe com militantes do MTST e MRP em diferentes períodos, passando também por filmagens do cotidiano da atuação dos movimentos sociais: ocupações noturnas de terrenos e prédios abandonados, monólogos de lideranças, momentos de lazer em ocupações, abertura de arquivos diante de testemunhas. Uma das cenas mais interessantes da obra se assemelha a um fragmento de filme de ação: trata-se da inscrição no documentário das imagens de drone filmadas pelas forças especiais da Polícia Militar para registrar a invasão do Torre Palace por helicópteros. A cena é marcada pela tensão violentíssima do que se desenrola na imagem e pelo ritmo produzido na relação entre imagem e som. O material do arquivo policial entra numa alquimia insuspeitada com as pancadas cortantes do berimbau elétrico de Africadeus (Naná Vasconcelos, 1973). Se apropriando das imagens do inimigo, Ibiapina reinveste o vídeo épico-policial de uma tensão agonizante ao mesmo tempo que expõe o absurdo da operação e seu aparato imagético e narrativo. Cadê Edson? produz uma câmara de dissonâncias em que imagens do Brasil de diferentes arquivos são confrontadas na montagem, o que possibilita que a história de Edson e da luta do MRP seja escovada a contrapelo de sua apresentação pela mídia corporativa e a polícia. A montagem emaranha a trajetória de Edson no MTST e MRP a uma perspectiva agonística de sua prisão e vestígios de eventos políticos-chave dos anos em que a obra foi realizada (2012-2017): o golpe de 2016 que expulsou Dilma Rousseff da presidência do Brasil, a negação de habeas corpus do ex-presidente Lula que se desdobrou em seu encarceramento e a eleição e posse de Jair Messias Bolsonaro. Apesar da derrota política reiterada pela ascensão do presidente de extrema direita, o filme de Dácia Ibiapina não recua.


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Ao confrontar imagens de arquivos de perspectivas conflitantes, Cadê Edson? experimenta a imaginação combativa de seu principal interlocutor. O resultado concreto é uma construção fílmica do ponto de vista da fúria popular articulada, pela montagem, a uma ideia de continuidade do movimento de luta por justiça social. A obra se encerra num gesto de abertura e recomeço da luta: assistimos ao processo de uma nova ocupação. “Bora! Bora! Agora é a hora da nossa conquista!”, diz a militante que parece coordenar a ação. Dácia Ibiapina, cineasta do movimento permanente.


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O silêncio de um bamba >>> Belos Carnavais (Thiago B. Mendonça, 2020) daniel ribeiro duarte1

Belos Carnavais é um filme de amor ao universo das escolas de samba que não mostra nenhuma imagem de desfile e nem mesmo dos bastidores de sua preparação. Mesmo negando ao espectador a visão documental do espetáculo e de sua construção, o filme de Thiago B. Mendonça consegue apreender, singularmente, parte da dinâmica interna das escolas que o filme aborda ao tratar de uma política de formação de alianças e rivalidades entre elas, mas sem esquecer os corações partidos. Sendo um esforço ficcional empreendido juntamente a um grupo de atores não profissionais, o filme consegue extravasar o campo da narração e arranhar uma certa superfície desta realidade justamente porque se constrói a partir de um momento em que esta rivalidade é provisioriamente abolida: a morte de um sambista. O filme conta o funeral de um sambista da Velha Guarda da Vai-Vai, tradicional escola de São Paulo sediada no Bixiga, mas seu início é em outro bairro, a Barra Funda, desde onde acompanhamos um integrante de outra escola, a Camisa Verde e Branca. Trata-se de um "irmão" do falecido sambista, que se levanta da cama e se veste com a melhor roupa em verde e branco – demarcando as suas diferenças – para prestar homenagem àquele de quem parece ter se distanciado pela rivalidade entre escolas, mas também por algo que o filme deixa apenas sugerido pela troca de olhares. Talvez uma das grandes artes do cinema seja a troca de olhares, por onde se vê as conexões se estabelecerem entre os corpos, mas também por onde se infiltra um imenso campo invisível, de afetos, histórias e sensações. Com a predominância de planos fixos que se alongam o suficiente para deixar cada gesto se desenvolver e completar, o filme não se reduz ao roteiro ficcional exterior à comunidade, mas recebe dos olhares, gestos e cantos dos sambistas uma parte fulcral daquilo que faz a história acontecer. Belos Carnavais, um filme de samba que bebe muito daquilo que emerge em silêncio, trabalha muitas vezes com as ínfimas indicações que os olhares dão para compor a sua teia. No silêncio do velório, na tensão inicial com que é recebido o sambista da escola rival, podemos observar não apenas a tristeza e a consternação, mas também a

1. Pesquisador, curador e realizador de cinema. Integra o coletivo Filmes de Quintal. Doutor em Cinema pela Universidade Nova de Lisboa.


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troca de olhares que ocultam as histórias de muitos (e belos) carnavais. Quando morre um sambista o que morre, na mais superficial das hipóteses, são muitas histórias de noites bem passadas, de sambas bem compostos e bem executados. O velho sambista é um bamba, expressão que se popularizou, mas da qual nos esquecemos a origem na língua quimbundo: um mbamba é um mestre, um exímio. E este conhecedor do mundo dos sambas porta não apenas a força mítica de ter dançado e cantado durante muitos carnavais, mas é um especialista em fazer a comunidade dialogar a partir do ambiente do samba. O bamba é um museu vivo da história do samba, simplesmente por ter sediado, em seu próprio coração, a disputa entre o amor e o suor que permeia a construção de cada desfile de carnaval. Por ter essa experiência, e o conhecimento de como extrair da dificuldade a joia da alegria ele vai se tornando aquele cuja presença torna gloriosos os momentos. O bamba pode ser dotado de um espírito desviante e brincalhão que, presente em todas as festas, se dedica com igual (ou desigual) interesse à administração da alegria, pelo dom e a graça dos laços coletivos. Nesse ponto ele não é apenas um conciliador, pois há um certo nível de ruptura nesses encontros: disputas amorosas (como o próprio filme sugere), facas riscando o chão, desentendimentos entre compositores, e os álcoois e tragos embalando o terreno escarpado das relações. Aqui também podemos evocar um outro sentido da palavra bamba, que é o que não está completamente firme, o que desliza instável ou caminha na corda bamba. Mas o sambista não se resume, não sendo nem um nem o outro: ele é aquele mestre que se equilibra entre a vadiagem e a precisão dessa ourivesaria das relações humanas, para que chegue um dia em que a escola de samba desfile e escreva a avenida mais uma de suas páginas imortais. Ao se concentrar no episódio da morte de um sambista, Belos Carnavais consegue extrair do ritual fúnebre um conjunto de gestos que nos dizem algo sobre o mundo do samba. Lembremo-nos que as escolas de samba são organizações que vêm do povo negro da periferia, que as criou no Rio de Janeiro na década de 30 como estratégia para evitar a violência estatal quando saía para o Carnaval. É uma forma de aquilombamento, que utiliza a força de sua criação para abrir caminho nas ruas da cidade. Sob a defesa da institucionalidade, as escolas de samba permitiram que se cozinhasse uma amálgama cultural que reuniu uma série de traços e manifestações culturais afro-brasileiras.2 No silêncio do funeral de um bamba, Belos Carnavais encontra as vestimentas do Candomblé, as bandeiras que nos remetem tanto às procissões quanto às guardas de Congo e Moçambique, e um conjunto de gestos ritualizados de respeito às tradições entre as escolas, que evidencia um cruzamento entre o sagrado e o profano, o religioso e o festivo. Cada escola que chega para se juntar à homenagem deixa a

2. “As agremiações pioneiras se formaram de um amálgama de diversas referências: a herança festiva dos cortejos processionais, a tradição carnavalesca de ranchos, blocos e cordões e os sons das macumbas, dos batuques e dos sambas cariocas.” SIMAS, Luiz Antônio. A origem das escolas de samba. Disponível em: https:// www.itaucultural.org.br/ocupacao/cartola/palacio-do-samba/?content_link=2


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sua bandeira junto das outras e os seus membros vão, um a um, beijar a bandeira da Vai-Vai e fazê-la tocar a sua testa. O filme surge desta circulação entre o sagrado e a vida ordinária que necessita do silêncio para emergir, mas a partir de certo ponto da narrativa pode-se também ouvir os instrumentos tocarem para que surjam emotivas letras de sambas tradicionais. A cachaça também está presente, suspendendo os copos e a tensão para fazer crer que haverá outras relações entre os presentes que ultrapassam a formalidade do momento. Belos Carnavais é um filme de narrativa simples – e rigor formal nos planos e na fotografia – que consegue homenagear este universo de uma forma emotiva, mas sem descuidar de seus rituais e códigos internos. O filme faz um mapeamento desta ritualidade das escolas – que expressa um lado coletivo – mas também encontra em cada gesto a profundidade dos bambas, estas figuras míticas das escolas que “não têm placa de bronze nem ficam na história”, como diz o samba executado no cortejo do cemitério, mas podem viver tranquilos em suas comunidades pois sabem que, como em toda a escola que se preze, alguém há de chorar quando morrerem.


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Cabeçabol e Cinema Myky >>> Ãjãí, o jogo de cabeça (Myky e Manoki, 2019) bernard belisário1

Do filete da seiva colante que sangra pelo sulco longilíneo talhado ao redor do tronco duro e retorcido da seringueira do cerrado, conheceremos o Ãjãí (cabeçabol), o jogo de bola tradicional do povo Myky, que envolve toda a aldeia em uma série de preparativos para a recepção dos seus convidados Manoki. Os homens tratam de esticar, aquecendo, soprando e recobrindo o delgado balão até formar a bola do jogo. As mulheres tratam de torcer, fiar e tramar as redes de algodão que preparam para a chegada dos convidados, e também a fibra de tucum que será posta a prêmio no jogo. Uma delas lembra em cena que, antigamente, as mulheres Myky só conheciam aquela fibra; foi o pássaro Nambuzinho que as presenteou com o algodão, com que passaram a fiar suas redes. O encontro com os Manoki mobiliza coletivamente os Myky para trabalhar na realização da festa. A montagem do filme vai justamente intercalar esses e outros processos trabalhados ora por mulheres e meninas, ora por homens e meninos na aldeia, nas matas e arredores da terra indígena. A corda narrativa do filme é torcida com estes dois fios alternados, de modo a estabelecer uma divisão e uma simultaneidade dos processos. Nas cenas filmadas na aldeia, entretanto, a separação sugerida pela montagem paralela se embaraça pela presença de ambos os espaços nas bordas e no fundo do campo. A vontade de receber os Manoki para festejar, trocar prêmios e jogar o cabeçabol parece torcer um terceiro fio nessa corda narrativa. O jovem líder Typju Myky traça uma linha própria, um fio de intensidade singular na mise-en-scène documentária do filme, refletida na sua autoria mesma – partilhada entre André Lopes e Typju. A intensidade com que o jovem Myky se lança ao filme e ao trabalho de liderar a organização do

1. Pesquisador e professor de cinema e audiovisual na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Graduou-se em Rádio/TV e em Jornalismo, e pós-graduou-se em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atuou como diretor, roteirista, finalizador e montador de filmes, videoarte e programas de televisão. Colaborador do Vídeo nas Aldeias desde 2011, ministrou oficinas de realização cinematográfica junto a comunidades indígenas no Brasil e no Paraguai. Pesquisador participante da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (Socine). Vice-líder do grupo de pesquisa Poéticas Ameríndias (CNPq/UFSB). Colaborador internacional dos Laboratórios de História Indígena da Universidad Nacional Autónoma de México. Integrante do Conselho Gestor da Agência de Iniciativas Cidadãs (AIC).


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jogo e do time da sua aldeia cintila em sua passagem ao intérprete, que se desdobra, desfaz a si mesmo na aventura documentária. O sujeito filmado é levado a alucinar com o humano na máquina filmadora. Eu sei bem que é uma máquina, um joguete, um condensado de tecnologia, e que assim ela é meu outro (meu inimigo?). No entanto, não posso deixar de acreditar que se encontre ou se encontrará com o humano, o amigo no fora-de-campo temporal aberto pelo registro que ela fez de mim. Uma interlocução ligeiramente delirante constitui a máquina filmadora como parceira. (COMOLLI, 2012, p. 424; tradução nossa)

Diferente das cenas em que a câmera filma com certa intimidade entre homens ou entre mulheres, o antecampo aparece nas cenas filmadas com Typju atravessado por sutis e irônicas provocações associadas justamente à separação dos espaços e dos trabalhos entre mulheres e homens. No filme, o antecampo é constantemente convocado à cena por meio de comentários provocativos e jocosos entre aqueles e aquelas que filmam e as pessoas filmadas. “Eu que poderia estar filmando vocês agora! Vocês novas têm que aprender a ralar mandioca!” – provocam as mulheres mais velhas. Aliás, as brincadeiras e provocações alegram inúmeras das relações em cena. Antes de finalmente receber os convidados em sua aldeia, são os Myky que viajam à terra dos Manoki para participar do torneio de futebol e do bailão. A festa dos Manoki está mergulhada na música ouvida nas cidades do interior do estado (MT) de tal maneira que o depoimento emocionado do cacique aparece irremediavelmente marcado pelo desencontro cifrado na cena, entre seu espaço sonoro e o campo visual. Obstáculo. Typju explica sua ausência na viagem. O desencontro Manoki só terá realmente seu sentido no filme com o silêncio de Typju após assistir à gravação do cacique Manoki. O espectador pode encontrar novamente o fio delicado da escuta atenta àqueles que preparam e imaginam desejosos a festa, o jogo e o encontro. A alegria com que os anciãos Manoki reencontram os jovens Myky estabelece a medida da sua presença no filme. A partida de cabeçabol exige uma enorme resistência física dos jogadores, que sofrem mas se divertem, segundo um deles. O campo sonoro também está investido na partida pela marcação (catimbada) dos pontos. Não saberemos se os Manoki premiaram os Myky com munição para os caçadores, ou se a única pólvora que colocaram a prêmio foram fósforos... Na manhã do último dia, os jovens Myky despertam em suas novas e coloridas redes, do sono revigorante dos vencedores. Missão cumprida, Typju anuncia timidamente vitorioso, para a câmera, que deixará sua função no Ãjãí. O velho Manoki ainda faz uma fala de despedida em português para antes de subir no micro-ônibus e seguir com o time de Cravari na caçamba do caminhão para sua terra. O prólogo, gravado um ano depois na sala de edição, encerra o filme como um golpe de esperança. Typju revê as imagens da festa e com elas a sua decisão: seguirá com sua função no Ãjãí, auxiliado pelo seu parceiro. Ainda que não saibamos como, ou mesmo se isso foi possível, o anúncio decidido de Typju ressoa como uma inexplicável


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esperança de que possamos rever cada um daqueles que compartilharam conosco a alegria que transborda daquele encontro.

Referência COMOLLI, Jean-Louis. Corps et cadre: cinéma, éthique, politique (2004-2010). Paris: Verdier, 2012.


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Corpos de mulheres guerreiras e suas falasimagens em Nhemongueta Kunhã Mbaraete >>> Sobre filme de Michele Kaiowá, Graciela Guarani, Patrícia Ferreira Pará Yxapy e Sophia Pinheiro clarisse alvarenga1

Na língua Guarani, como explica Sandra Benites (2020), Nhemongueta é uma palavra usada para nomear um “encontro de conversa”. Por meio dessa conversa, que transcorre nas aldeias, busca-se caminhos que são percebidos pelos interlocutores ao longo da troca de palavras. Nesse sentido, há um cuidado com a forma como se faz o uso da linguagem, sendo a escolha das palavras e a escolha do modo como se dirige as palavras ao outro essenciais para garantir que não ocorra desequilíbrios entre os envolvidos e para que os caminhos se abram, impedindo que as doenças cheguem até os corpos. Nhemongueta é, portanto, uma troca de palavras que protege os corpos, impedindo o adoecimento. A expressão Kunhã Mbaraete é a designação que identifica “mulheres guerreiras”. Ou seja, Nhemongueta Kunhã Mbaraete é conversa entre mulheres guerreiras. No contexto de adoecimento coletivo, identificado na pandemia da Covid-19, as conversas se tornam ainda mais importantes, pois impedem que as doenças avancem sobre as mulheres na solidão do isolamento, produzindo o que Sandra Benites chama de “piração” ao experimentar o isolamento social na cidade e, portanto, agravado pelo isolamento da aldeia e dos parentes. [...] nós Guarani sempre estamos em nhomongueta, encontro de conversa, para que não se chegue a explodir. Hoje eu entendo o que é doença para muitos djurua [não-indígenas]. Mba’e hasy, mba’asy, coisa que dói ou doença, aparece no corpo quando já está no último estágio. (BENITES, 2020, p.1) 1. Professora adjunta da Faculdade de Educação da UFMG, onde atua como docente no Curso de Formação Intercultural para Educadores Indígenas (FIEI) e como coordenadora do Laboratório de Práticas Audiovisuais (Lapa). É autora do livro Da cena do contato ao inacabamento da história (Edufba, 2017) e realizadora dos longas-metragens Ô, de casa! (2007) e Homem-peixe (2017).


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Nhemongueta Kunhã Mbaraete foi exatamente o nome que as cineastas Guarani Michele Kaiowá, Graciela Guarani, Patrícia Ferreira Pará Yxapy e a artista visual Sophia Pinheiro escolheram para um conjunto de cartas audiovisuais trocadas entre elas durante os primeiros meses de isolamento. A despeito de viverem no Brasil em lugares muito distantes uns dos outros e de estarem em isolamento, elas criaram, com a troca de cartas, um outro espaço aberto em que os territórios onde vivem são aproximados em função da proximidade que a fala de uma com a outra sugere. Michele Kaiowá vive no Centro-Oeste do Brasil, na Aldeia Panambizinho em Dourados (MS). Graciela Guarani nasceu na Aldeia Jaguapiru próxima da aldeia de Michele, mas vive atualmente no sertão de Itaparica, no Nordeste, no interior de Pernambuco, numa cidade próxima ao território Pankararu. Patrícia vive no extremo Sul do país, próximo à fronteira com a Argentina, na Aldeia Koenju, em São Miguel das Missões. Sophia estava em um sítio onde vive sua mãe em Goiás quando das gravações, apesar de viver em São Paulo. Os corpos das cineastas são parte desses territórios, seus saberes estão relacionados à terra em função da sua ligação com Nhandesy (terra), diferentemente do que acontece aos homens cujo vínculo é com Nhanderú (céu). A maneira como elas se relacionam com o território se dá por uma percepção que envolve todos os sentidos que compõem seus corpos. O que elas trocam umas com as outras – e conosco – não são apenas observações visuais do território. São percepções em que todos os sentidos reunidos em seus corpos estão acionados. A maneira como cada uma delas percebe seu território e suas transformações são decisivas para compreender como elas se relacionam com aquilo que está fora das aldeias. Nesse sentido, é do ponto de vista de mulheres guerreiras situadas em seus territórios e ligadas à terra que elas pensam o momento atual numa relação com a história e também com suas vidas. Desses lugares foram realizadas quatro séries de cartas, compostas por quatro cartas cada uma delas, totalizando 16 trabalhos, sendo que a correspondência é disposta seguindo sempre a mesma ordem entre as remetentes, variando o seu endereçamento. O forumdoc.bh incluiu em sua programação a sequência Conversas n. 2. Não apenas esta mas as demais conversas são constituídas por imagens realizadas por celular nas quais muitas vezes elas próprias se colocam em cena, com a colaboração de parentes. A narração em voz over sobre as imagens é um recurso importante porque sublinha a fala, a escolha das palavras permite que elas tragam para as cartas suas sabedorias e, finalmente, torna esse trabalho de fato uma conversação de cada uma consigo mesma e com as demais por meio da imagem que ocupa o lugar da fala. Em Nhemonguetá Kunhã Mbaraete escutamos e vemos falas tornadas imagens ou falas-imagens. No endereçamento entre elas, que é explicitado em cada vídeo-carta como se elas estivessem de fato escrevendo uma carta uma para a outra, percebe-se o tom de cuidado, que faz com que a fala seja usada para enunciar e, ao mesmo tempo, para a escuta e a interação. Certamente, o modo como a linguagem é usada no endereçamento e também no acolhimento e escuta faz com que se crie um espaço para a circulação de uma narrativa livre marcada pelo afeto que surge dos corpos e se materializa em falas-imagens.


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Nesse encontro, o que interessa não são apenas as elaborações intelectuais das participantes sobre seus territórios ou sobre a pandemia da Covid-19. Em diversos momentos elas manifestam aflições decorrentes da pandemia que vão desde a preocupação com a chegada de alimentos nas aldeias, a impossibilidade de venda de artefatos, a necessidade de uso de máscaras, a epidemia e o contágio como um fato histórico e atual. Mas o que está em jogo são corpos inteiros que falam, como se os corpos nascessem do território e as palavras nascessem dos corpos e se transformassem em falas-imagens. Isso só é possível porque os corpos de mulheres guerreiras são corpos vivos, despertos aos sentidos e à tatilidade da terra, dos alimentos, do fogo, das águas, das plantas, do barro e também da tinta, do desenho, da câmera de celular que elas usam para promover essa conversa. Além das falas surgirem dos corpos, vale notar que cada um desses corpos estão sempre abertos em conexão com o fora, sejam as figuras da ancestralidade, os filhos, os maridos, os parentes, os amigos. E, para completar, o próprio ato de realizar as gravações é também uma forma de conectá-las ao fora ou de conectá-las umas às outras. “O corpo é a relação com o outro e é fundamental para a construção da sabedoria”, explica Sandra (2018). A primeira carta de Conversas n. 2 é realizada por Michele. Ela está totalmente voltada para o aprendizado da feitura da tinta de urucum, ensinada por sua avó. Ela cata o urucum, separa suas sementes da casca, faz a fogueira e acompanha a avó durante um extenso período, ajudando-a no preparo da tinta, que permanece no fogo. Assim, ela consegue aprender como se faz a tinta vermelha que será usada para pintar seu rosto. Ela conta que quando sente o cheiro de urucum dá vontade de estar no meio da reza. “Ainda bem que ela me ensinou. Ainda bem que eu aprendi com ela. Ela é filha caçula de Nhanderú do pai Chiquito. A única sobrevivente”. Na narrativa de Michele, em suas falas-imagens, o território, o urucum, o ritual da reza, a avó e o seu próprio corpo estão sendo produzidos e reafirmados nessas relações. Após Michele é a vez de Graciela: “Eu não sou um corpo desconexo no mundo. Meu corpo tem história, marcas, sentimentos, pensamentos e poderes que muitas vezes até eu desconheço”. Essa conexão entre o corpo dela e os corpos e os objetos que a circundam está sempre presente em cena como se ela tocasse os objetos e como se os objetos a afetassem: as louças, as roupas para lavar, os alimentos que cozinha, os desenhos da filha, a presença do companheiro. E, em seguida, na próxima carta, Patrícia coloca-se a filmar as formigas que comprometeram as plantações na roça. Ela pede a Nhanderú que dê sabedoria para que ela possa replantar e não desistir da plantação. Na medida em que tenta compreender o que aconteceu com a plantação, ela diz que se acelerarmos as coisas não teremos tempo para refletir sobre o que estamos fazendo e indica que mais importante do que pensar sobre a Covid-19 é refletir sobre como estamos vivendo. Ao mostrar uma casa de barro sendo construída, ela fala: A delicadeza de usar as mãos para manusear o barro e botar nessa casa e a todos e tudo ao nosso redor, temos que ter essa delicadeza a cada instante. Temos que dar passo com delicadeza, dar passo com reflexão. Todos os dias temos que refletir nossos atos. E praticar


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que tenhamos a paciência e sabedoria de ficar, de ter de tocar a terra úmida como a gente costuma colocar nessas casinhas e fixando nas paredes como na nossa vida. E que sejamos fortes, resistentes e resilientes como o barro que está nessa casinha.

Sophia está em Goiás para onde foi para atravessar o isolamento ao lado da mãe. Ela começa sua carta cozinhando um prato com folhas de taioba. Mostra espigas de milho que foram trazidas por sua mãe da roça onde passou a infância em Itapuranga. Desfolhando a espiga de milho passa às fotografias de família. Manuseando as fotografias, como se estivesse revisitando a história da família com as mãos, ela, em seguida, irá até uma cachoeira tomar um banho encerrando esse conjunto de cartas com uma imagem de água corrente da mesma maneira como Michele havia começado a primeira carta ao gravar um rio na aldeia Panambizinho. Se a política se apropria das pandemias para produzir um controle sobre a vida e regular os corpos, para distinguir aqueles que devem viver daqueles que devem morrer, percebemos também neste mesmo momento estratégias de aliança entre os corpos que os faz resistir coletivamente. Se o corpo vivo é o objeto central de toda política, como nos lembra Paul B. Preciado (2020), fazendo referência aos estudos sobre a biopolítica de Michel Foucault, os corpos de mulheres guerreiras podem se revoltar, se insurgir e as estratégias de solidariedade que estabelecem entre si, como vemos em Nhemongueta Kunhã Mbaraete, são marcadas pelas conversas e repletas de falas-imagens. Se a imagem tem sido usada como arma pelos povos indígenas no Brasil é preciso observar que trata-se de uma arma usada com um sentido não de eliminar a vida, mas de defender os corpos do adoecimento e da morte, uma arma que liga os corpos das mulheres e que permite aos espectadores, por meio da experiência do vínculo com esses mesmos corpos e suas falas-imagens, encontrarem um caminho para a afirmação da vida em sua plena diversidade.

Referências BENITES, Sandra. Piração. In: Corpos que falam. Disponível em: <https://corposquefalam.weebly.com/escritas/piracao-sandra-benites-ppgasmnufrj>. Último acesso em 20 de outubro de 2020. BENITES, Sandra. Viver na língua Guarani Nhandewa (mulher falando). Dissertação de Mestrado em Antropologia Social. Museu Nacional, UFRJ, 2018. PRECIADO, Paul B. Aprendendo do vírus. São Paulo: N-1, Coleção Pandemia Crítica, 2020.


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Nunca real, sempre verdadeiro >>> Sem título # 6: o inquietanto (Carlos Adriano, 2019-2020) eduardo de jesus1

São múltiplas as entradas para nos aproximarmos de Sem título # 6: o inquietanto (2019-2020) de Carlos Adriano. As sofisticadas e complexas operações fílmicas que se materializam na montagem em sobreposições, aproximações, recortes e passagens entre sons, imagens e textos na telas são profícuas de sentidos e múltiplas ao nos conduzirem a territórios oscilantes entre o sensível e o inteligível. Começamos pelo subtítulo “apontamentos para uma autocinebiografia (em regresso)” presente aqui, como nos cinco filmes anteriores da série. Enigmático e provocativo, esse subtítulo sugere as escritas de si, traços autobiográficos que sutilmente pontuam as obras, às vezes com imagens fugazes que podem piscar na tela ou em fotografias ao final dos filmes. No entanto, a expressão subverte a linguagem e já de início, Adriano nos captura, ao sugerir entre parênteses uma radical operação espaço-temporal: (em regresso). Qual o ponto final e o de partida? Como esse gesto autobiográfico se constitui no tempo, em torno da própria vida? De agora para trás ou ao contrário? Segue infinitamente o fluxo intempestivo do tempo presente e os vestígios da memória? Essa escolha de nomear um trajeto de forma inconclusa, sugerindo uma certa desordem cronológica, tramada pela força radical do tempo presente talvez sinalize tanto as próprias operações fílmicas que Adriano coloca na série quanto nos jogos entre eu e outro. O gesto autobiográfico parece sugerir desdobramentos incessantes de uma forma subjetiva aberta ao mundo, que vibra e se deixa atravessar pelos tempos, espaços e imagens trazidos pelos fragmentos de filmes habilmente montados por Adriano compondo as obras da série. Nestas operações explodem os sentidos manejados por cada um dos filmes num permanente jogo entre eu e outro, entre um e muitos. Uma vida pautada pelo cinema e por suas imagens. O cinema como uma certa forma do arquivo – vivo e pulsante – do mundo, que Carlos Adriano recorre para montar (em regresso) sua autocinebiografia.

1. Professor do Departamento de Comunicação Social da UFMG.


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Mestre da montagem e das construções de sentido fluidas, ambíguas e conflituosas, Adriano recorre desta vez a filmes tão díspares quanto singulares em suas imagens e formas narrativas como Página da loucura (Kuruta Ippeji,2 Teinosuki Kinugasa, 1947) e Ilha do medo (Shutter Island, Martin Scorcesse, 2010), entre outros, que nos conduzem pelos labirintos dos cárceres da loucura, das grades que separam o mundo dos sujeitos em crise, assim como a solidão e os amores perdidos nas oscilações entre delírio e realidade. Em uma sinuosa montagem mesclando três tempos, nos sinalizando já de entrada aspectos de uma vida atravessada pela loucura e pelas complexidades trazidas pela reclusão, somos conduzidos por Antonin Artaud, que abre o filme com registros que colocam em diálogo três tempos distintos de sua vida. São imagens do filme Électrochoc (1946) que mostram o poeta e dramaturgo já envelhecido pelos sucessivos tratamentos psiquiátricos e internações, as impactantes cenas de Artaud em A Paixão de Joana d’Arc (Carl Theodor Dreyer, 1928) associadas ao áudio da transmissão radiofônica de Pour en finir avec le jugement de dieu (Para terminar com o julgamento de Deus, 1947). Um intenso jogo entre vida e imagem montado para que esses diferentes tempos dialoguem e se atravessem nos permitindo perceber a loucura e sua intensidade, as vezes criadora, entre telas escuras, fotogramas integrais (quase impossíveis, mostrando a banda de áudio nas laterais da imagem), imagens com as cores alteradas e negativos. A introdução é potente e impactante, abrindo caminho para o duplo, a crueldade e o “acaso bestial da animalidade inconsciente do homem” aspectos que, de alguma forma, caracterizam a loucura nos trânsitos entre delírio e realidade, ilusão e verdade, fortemente enfatizados pelos filmes que Adriano recorre nos radicais apontamentos que constrói. Tomando a expressiva música de Max Richter (“On the nature of daylight”, 2004) presente na trilha sonora de Ilha do medo, Adriano nos faz percorrer de distintas maneiras os corredores dos hospitais psiquiátricos em montagens expressivas que se por um lado retratam as tensões do cárcere, da loucura, do abandono e do encontro, de outro as próprias imagens sugerem grades, como nos fotogramas mesclados entre positivo e negativo. Estamos presos, atados às imagens. O cinema como um cárcere, mas que paradoxalmente também pode libertar, já que logo mais adiante vemos o farol (elemento central na narrativa de Ilha do medo) ao lado da contagem regressiva típica do cinema. O cinema como farol que pode nos guiar nas tormentas do mar aberto na escuridão da noite, enfatizado também pelas muitas imagens e sons de água que pontuam o filme. O que é real e o que fantasiamos em todas as passagens da loucura e de seus espaços de confinamentos? Nós mesmos ou um duplo, o qual, estranhamente, não reconhecemos? Nessa alucinante deriva de imagens, Adriano recorre ao poema “Tempo” de Robert Walser, em composição concretista ocupando a tela e ampliando os sentidos, em uma sequência comovente e primorosa. A repetição da palavra na tela, tal qual nas imagens que a radical montagem do filme nos brinda, enfatiza a recorrência das longas vidas

2. Excepcional filme japonês, mudo e experimental com uma narrativa instigante e radical em torno de um hospital psiquiátrico. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7aubUkD_2k4


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fora do convívio, em reclusão, pelos considerados loucos, como o próprio Walser que passou grande parte de sua vida internado em instituições psiquiátricas, até ser encontrado morto em meio a uma paisagem gelada no natal de 1956, como um dos personagens de seu romance Os irmãos Tanner (1907). O nome do filme – O inquietanto – também nos oferece mais uma vez uma multiplicidade. De um lado o complexo conceito de Freud (Das Unheimliche) traduzido primeiramente por “a inquietante estranheza” e em traduções mais recentes ganha novos contornos mais precisos e não menos complexos, com O Infamiliar.3 Como afirma Freud, “o infamiliar é de certa forma, um tipo de familiar” (2019, p. 49). Aquilo que apesar de familiar, nos é estranho, apesar de também nos integrar. Como se familiar e infamiliar estivessem contidos um no outro, um preso ao outro, como o filme de Adriano a todo tempo parece nos sugerir. De outro lado, “o inquietanto” sugere na fusão das palavras inquietante e tanto, quantidades, excessos e multiplicidades daquilo que estranhamente nos inquieta, como sugere o texto de Freud. Mas também podemos pensar em outra fusão desta vez entre inquietante e enquanto, sugerindo com isso passagens temporais e inconstâncias entre real e delirante ao longo do tempo, de alguma forma, traço típico de todos nós.

3. Estamos nos referindo aqui a O infamiliar (Editora Autêntica, 2019) volume que traz o ensaio de Freud, em nova tradução de Ernani Chaves e Pedro Heliodoro Tavares, seguido do conto de “O homem de areia” de E.T.A. Hoffmann traduzido por Romero Freitas e que Freud se serve para construir a noção.


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QuilomboCinema: ficções, fabulações, fissuras >>> De um lado do Atlântico (Milena Manfredini, 2020), Fartura (Yasmin Thayná, 2020), Nascente (Safira Moreira, 2020), Pattaki (Everlane Moraes, 2019) e República (Grace Passô, 2020) tatiana carvalho costa1

Cinema Negro Brasileiro Contemporâneo agencia testemunhos e articulações da identidade negra, sua memória e territorialidades, na contemporaneidade. Na última década, vimos crescer significativamente a presença de realizadores e, principalmente, realizadoras negras. Em festivais e outros eventos de cinema – presenciais e agora virtuais – esse conjunto vigoroso e heterogênero se encontra, junto a críticos, programadores e pesquisadores também negros, e estabelece um rico processo de diálogo e fortalecimento. Aquilombamento é uma possível chave para a compreensão de processos agregadores e contra-coloniais que configuram um conjunto de ações empreendidas por pessoas negras nas artes e, mais especificamente, no Cinema. Para Maria Beatriz Nascimento (2018) quilombo é um “instrumento ideológico”, “símbolo de resistência” que, no campo do ativismo e das práticas artísticas, “fornece material para a ficção participativa”. De acordo com a autora, quilombo é uma “possibilidade nos dias da destruição” – destruição esta que, para os povos negros diaspóricos, é consequência de uma outra ideia, a de progresso da modernidade, como bem nos aponta a filósofa Denise Ferreira da Silva (2017). A modernidade nos inventa como uma “ficção útil”, como afirma Achille Mbembe. Segundo o autor, “negro e raça têm sinônimos no imaginário das sociedades europeias”. O autor argumenta que “raça não existe enquanto fato natural, físico, antropológico ou genético” e que portanto ela não passaria de “uma construção fantasmática ou uma projeção ideológica” (MBEMBE, 2018, p. 28; grifo nosso). O “negro”, naturalizado como uma essência e aprisionado no “calabouço das aparências” seria, portanto, uma invenção. Essa “ficção útil” serve sobretudo a uma outra ficção, ou “autoficção”, que

1. Tatiana Carvalho Costa é doutoranda junto ao PPGCOM/UFMG. Professora no Centro Universitário Una. Colabora em eventos de cinema como curadora, programadora e júri.


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sustenta por oposição a ideia da universalidade de uma identidade – a do sujeito branco eurocentrado – que toma para si o lugar de um “mesmo do mundo” em oposição a um “outro” que não o espelha. A “ficção participativa” de Maria Beatriz Nascimento nomeia ações no campo das artes, notadamente em torno do que o Teatro Experimental do Negro (TEN) empreendeu a partir de 1944. Para a autora, as atividades do TEN reforçam uma “nacionalidade brasileira por meio do filão da resistência popular às formas de opressão” (2018, p. 290) e de afirmação do “negro” como possibilidade de humanidade no imaginário coletivo. O TEN e a ideia de quilombismo desenvolvida pelo seu fundador, Abdias do Nascimento, formam um programa político que articula ética e estética2 em oposição ao que ele chamava de “patologia da brancura”, num enfrentamento à mítica “democracia racial” (2019, p. 92). O quilombo, para Abdias, “não significa escravo fugido. Quilombo quer dizer reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão existencial” (NASCIMENTO, 2019, p. 289). Parto aqui da hipótese de que Cinema Negro Brasileiro Contemporâneo, na contemporaneidade e realizado por e com corpos-ficção, articula possibilidades de existências com e na imagem. Um QuilomboCinema que agrega direta ou indiretamente realizadores, pesquisadores, críticos, curadores e produtores que colocam na gira um conjunto de obras e de pensamento sobre elas e que tensionam a própria noção de Cinema Brasileiro Contemporâneo. A ideia de corpo-ficção me parece, por ora, central para a compreensão da dimensão inventada de uma outridade – reiterada historicamente pelo Cinema Brasileiro – e, ao mesmo tempo, da potência de invenção de si que constitui os sujeitos subalternos – especificamente, aqui, negros num contexto particular de um país que ainda não se conciliou com seu passado colonial e escravagista. Tomo a ideia de ficção como uma potência que articula fabulação, invenção e restituição para a problematização e reinvenção da identidade negra com e no Cinema. Ao falar do problema contemporâneo das literaturas nacionais, Edouard Glissant afirma que elas “devem aliar o mito à sua desmitificação, e a inocência primeira à inteligência adquirida”. Com isso, é “necessário que [as obras] assumam de uma só vez, o combate, o militantismo, o enraizamento, a lucidez, a desconfiança de si mesmo, o absoluto do amor, a forma da paisagem, o nu das cidades, as ultrapassagens e as fixações” (GLISSANT, 2019). Essa multiplicidade de abordagens que o caribenho apontava no início dos anos 19803 segue fundamental para este nosso QuilomboCinema e é expressa no conjunto vigoroso e diverso de filmes produzidos por realizadoras negras na programação desta edição do forumdoc.bh.2020. Everlane Moraes constrói um oriqui cinematográfico, fabulando uma Cuba com seres encantados, desdobramentos de Iemanjá – a mãe dos filhos-peixe – que os hipnotiza e que revela, por meio seus comportamentos quase obsessivos, as contradições e a complexidade da vida na ilha. Segundo Antônio Risério (2020), oriqui nomeia um canto,

2. A discussão do autor se restringe à noção de representação. Compreendo aqui que esta noção é restritiva para o que o Cinema Negro Brasileiro Contemporâneo tem proposto, mas ela serve de ponto de partida e superação. 3. O texto original, Le discours antillais, foi publicado em 1981.


De um lado do Atlântico (Milena Manfredini, 2020)

Fartura (Yasmin ThaynĂĄ, 2020)

Nascente (Safira Moreira, 2020)


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um poema, uma narrativa ideogramática que pode ser uma “saudação-em-nome”, de “linguagem hiperbólica”, especialmente quando se referem a orixás (mas podem se referir a “qualquer coisa sob o sol”, ainda segundo o autor). Em Pattaki, ganância, contenção, sedução e fé se materializam na performance de quatro figurações que existem no fronteiriço território simbólico entre terra e mar, vivos e mortos, numa recusa à adesão a parâmetros coloniais ou simplificações narrativas restritas a representações e decodificações de uma cosmogonia afro-cuban, jogando o filme ao oceano-imaginário da diáspora negro-atlântica. Em De um lado do Atlântico, Lélia Gonzales anuncia: “Rio de Janeiro vai virar Palmares”. As ruínas do Cais do Valongo – evidências da chegada e da comercialização de negros escravizados na antiga capital – misturam-se a imagens contemporâneas de corpos negros em rituais, que são friccionados às estátuas de inspiração helênica que compõem a paisagem moderna da cidade do Rio de Janeiro. Imagens do início do século XX disponíveis em arquivos britânicos reiteram o imaginário colonial em cujas fissuras o filme opera. “Quilombo é: homens que procuram conscientemente organizar uma sociedade para si onde ele possa viver de acordo com o seu passado histórico africano brasileiro, seu costume, a sua sua forma de ser” – nos fala Maria Beatriz Nascimento em voice over. A partir do oceano que nos trouxe até aqui e que permanece a nos guardar, a diretora Milena Manfredini nos conecta com a reiteração da violência e da potência herdadas e que latejam na manifestação “Vidas Negras Importam”, nos lembrando do tempo espiralar que conforma nossa existência e nossa resistência. Dos espaços da cidade para os corpos em ambientes domésticos, festivos, aquilombados. Fartura monta uma multivocalidade em primeira pessoa, reiterando experiências compartilhadas a partir de imagens de famílias negras, segundo a diretora Yasmin Thayná, em voice over no filme, “que puderam se registrar”. “Ver a vida dos outros nestas imagens é como estar diante das fotos que meu pai fez da nossa família”, acrescenta. Imagens de um sempre-tempo de festa, de alegria em volta de tudo o que se consegue colocar à mesa. A comida farta como elemento agregador; fartura como partilha. O pesquisador Muniz Sodré, uma das primeiras pessoas do plural do filme, associa fartura compartilhada à tradição, em sua transtemporalidade: “no sentido da tradição de onde eu venho, de onde muitas de nós viemos, o tempo tem outros sentidos [...]: o tempo como divindade, que é um deus a quem se celebram rituais, etc. etc., mas também é uma forma de viver que permite a gente estar aqui e encontrar ao mesmo tempo quem não está. Nessas tradições, o tempo é sempre circular, não é presente, passado e futuro, ele é vivido em forma de ritual, e é um ritual que é comunitário”. O tempo da fartura é o tempo do aquilombamento. No nosso hoje-agora menos farto, Nascente congrega mulheres que coabitam um mesmo ambiente doméstico-fílmico. Juntas, elas articulam um conjunto de signos que reiteram a presença negra nos planos – fílmico, físico, espiritual –, uma cosmogonia manifesta nas forças que habitam a casa e seus corpos. A diretora Safira Moreira, e sua câmera na mão, percorre os ambientes com essas mulheres para nos dizer que cuidar da casa é também cuidar dessas forças. A câmera-Safira dança junto, movimentando-se no espaço e no tempo que coexistem com e entre aqueles corpos – o


Pattaki (Everlane Moraes, 2019)

República (Grace Passô, 2020)

tempo do visível, o tempo do invisível, o tempo evocado, o tempo impresso nos rostos das quatro gerações presentes ali. Filmado e lançado em meio à pandemia, o filme entrelaça camadas de tempo para nos apontar, no espelho, o que nos trouxe até aqui e o que vai nos levar adiante. Ao contar4 sobre o que gera República – essa vertigem / mise en abyme em que somos mergulhadas – Grace Passô diz de um “sentimento de tempo” e de uma “exaustão histórica” que há “desde que existe este nome Brasil”. A densidade deste tempo-agora pandêmico exacerba, segundo a realizadora, “uma sensação radical de falta de pertencimento”. O filme, para ela – e para nós, em certa medida –, é um refrão a repetir a densidade atemporal da exaustão e do não-pertencimento negro diaspórico.

4. Entrevista dada a mim e a ao crítico Juliano Gomes para a série “Diálogos APAN” em 28 de junho de 2020. Disponível em: <https://www.facebook.com/watch/live/?v=711857952983117&ref=watch_ permalink>.


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No filme, a atriz Grace se desdobra em duas pessoas: uma primeira, que performa a ficção de um mundo sonhado, e a segunda, que encarna o atravessamento de uma realidade transtemporal.“O teu Brasil acabou e o meu nunca existiu. Nunca existiu. Nunca existiu. Nunca!”, é o grito que nos atravessa, no final do filme, vindo da mulher segunda e dirigido à primeira; as duas, a mesma. Para além da ideia de espelho, o que Grace nos apresenta é a figuração de um duplo, esse dispositivo de autoproteção psíquica num desdobramento subjetivo. W.E.B. Dubois (apud GILROY, 2012) denomina “dupla consciência” dos sujeitos negros diaspóricos o reconhecimento da autoimagem que viria do esforço da identificação com uma perspectiva de negrura que se coloca, necessariamente, em permanente diálogo e/ou conflito com a imagem externa feita pelo fictício sujeito universal. Na articulação que a diretora faz das personagens – uma mulher e seu duplo – ela cria uma alegoria de sua/nossa vivência nesta sociedade atravessada por severos traumas de centralidade racial sobrepostos ao contemporâneo trauma da pandemia. O apartamento, com seu dentro e seu fora, é o espaço social dos limites para o seu/nosso corpo negro. A mulher de dentro é uma mulher negra. A mulher de fora também. A de dentro é o duplo. A de fora é contundência de um sujeito aparentemente desterritorializado a apontar para a fragilidade a própria noção de territorialidade, de pertencimento. A evidência da nossa ficção que aponta para a necessidade de nossa (re)invenção.

Referências GLISSANT, Edouard. Le Même et le Divers. In.: Le discours antillais. Paris: Seuils, 1981. p. 190-201. Tradução: Normélia Parise. Disponível em: <http://www.ufrgs .br/cdrom/ glissant/glissant.pdf>. Acesso em 29 de janeiro de 2019. GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo/Rio de Janeiro: Editora 34/ Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2012. NASCIMENTO, Abdias. O Quilombismo: documentos de uma militância Pan-Africanista. São Paulo: Perspectiva, 2019. NASCIMENTO, Maria Beatriz. Beatriz Nascimento quilombola e intelectual: possibilidades nos dias da destruição. Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018. MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. São Paulo: N -1 edições, 2018. RISÉRIO, Antônio. De oriquis. Revista Afro-Ásia. Salvador: nº 15, Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia, 1992. Disponível em: <https://portalseer. ufba.br/index.php/afroasia/article/download/20833/13434>. Acesso em: 3 mar. 2020.


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A moda periférica: beleza e diversidade no cinema de Emílio Domingos julia fagioli1

Favela é moda (Emílio Domingos, 2019) começa com as orientações aos candidatos de um concurso de modelos. A plateia é avisada de que nem todas as candidatas serão escolhidas, pois é preciso atender a certos parâmetros ditados pelo mercado da moda. Ainda assim, é importante aplaudir todas com a mesma intensidade. Nas cenas seguintes vemos garotas e garotos desfilando, sendo avaliados e recebendo conselhos sobre sua postura. Contudo, não podemos nos enganar: ali, o fundamental é o que a moda não dita. Após o anúncio dos resultados conhecemos a primeira personagem do filme, Raquel Félix, relatando que não acreditava em si mesma no dia da seleção, pois ouviu tantas vezes em sua vida que era feia, que ela mesma passou a acreditar nisso. É nesse sentido, então, em que há uma subversão: a moda deixa de ser o lugar dos padrões estéticos de beleza já estabelecidos e, num gesto de resistência, passa a ser um lugar que acolhe a diversidade e a história de jovens da periferia. Domingos toma como ponto de partida a seleção de modelos para a Jacaré Moda para adentrar o universo daqueles jovens. A agência, fundada por Julio César da Silva Lima na comunidade do Jacarezinho no Rio de Janeiro, é especializada no agenciamento de modelos que tenham origem nas periferias da cidade. A moda se torna, então, não um lugar de regras, mas justamente o oposto, ou seja, um lugar de afirmação da beleza que é negra, de periferia e sem gênero pré-determinado. Emerge a aparente contradição entre o discurso de Julio César – que equaciona moda e resistência – e a administração de uma empresa que precisa atender àquilo que o mercado exige, equilibrando-se entre dois mundos. Emílio Domingos, no entanto, não explora esse conflito, ao contrário, parece buscar uma distância justa, sem se aproximar demais das pessoas filmadas dos sujeitos filmados ou criar um confronto de ideias na montagem. Favela é moda é o terceiro filme da trilogia corpo, composto também por Batalha do passinho (2012) e Deixa na régua (2016). Ao analisar o segundo filme, Júnia Torres

1. Pesquisadora, professora e curadora. Mestra e doutora pela UFMG. Atualmente é bolsista PNPD da Capes e realiza pesquisa de pós-doutorado na UFJF


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(2016) afirma que Domingos realiza um “cinema de aliado” ao se colocar num lugar de cumplicidade em relação àqueles que filma. Tatiana Carvalho Costa e Layla Braz (2018) vão adiante ao tratarem da representação e da representatividade da negritude no cinema e outros campos artísticos, ao proporem um cinema com e um cinema por como urgências na defesa do cinema feito por pessoas negras assim como o dos gestos aliados. Como esclarece em entrevista ao site C7nema, Emílio Domingos não é “uma pessoa de periferia”, porém, em seus filmes exerce uma cumplicidade longamente trabalhada em uma convivência que se dá durante o processo de realização: Como narrador, a minha periferia é a dos meus personagens, das pessoas que filmo, das pessoas às quais vou ao encontro e com as quais convivo ao longo do processo dos filmes. Processos que demoram anos, às vezes. O “Favela é Moda”, meu filme mais recente, é o resultado de uma relação de cinco anos. Não quero ver a periferia como algo exótico e me nego a folclorizar a periferia. O que me interessa é como essas pessoas vivem e criam estratégias e mecanismos para viver, como elas enfrentam os problemas da nossa sociedade e criam mecanismos para isso.2

A ausência de uma visão estigmatizada está nas palavras dos jovens modelos, quando descrevem a maneira como estão vestidos, quando compartilham suas dores, quando assumem e afirmam sua beleza – ainda que a indústria da moda nem sempre a reconheça –, quando dançam e se divertem – ainda que a felicidade pareça algo distante. Trata-se de uma abertura para que esses jovens falem das suas experiências sem intermediários, sem a visão estereotipada que geralmente lhes é atribuída. O ápice se dá durante uma aula de expressão corporal, num exercício “para quem for escudo quebrar e quem for esconderijo sair”. Após alguns exercícios de aquecimento os alunos recitam textos de autoria própria ou de terceiros. Eles falam da dor das situações de racismo pelas quais já passaram, do medo que sentem, do sonho de mudar as vidas dos pais que batalharam para que os filhos pudessem estudar. Muitos se emocionam ao dizer de algo tão íntimo, como Vitória, ao recitar um poema de autoria própria: “É da escuridão que eu tento entender o x da questão. A cor desse x é preta, é de carne vermelha. E cada vez que eu me aprofundo mais nas letras dessa carta, eu entendo o quão eu nasci para ser descartada...”. Ela pausa e diz que não consegue finalizar, que é algo muito pessoal e prefere não continuar. Em uma interrupção nos planos da aula, Domingos nos permite conhecer melhor Vitória, quando em entrevista ela diz que a sociedade geralmente exige que as mulheres negras sejam muito fortes, mas ela – e muitas outras meninas – são sensíveis. No retorno à sala de aula, o professor diz que aquele é o espaço para se abrir e ser abraçado – um espaço que diz respeito não somente à agência, mas ao coletivo de pessoas. Ao longo de todo esse trecho a

2. Entrevista concedida ao site C7nema. Disponível em: https://c7nema.net/entrevistas/item/86506-favela-e-moda-e-tambem-cinema-de-inclusao-emilio-domingos-e-a-estetica-da-periferia.html.


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câmera participa da aula sem interferir, mas acolhendo os testemunhos e buscando perceber os olhares, as expressões e as reações dos colegas em volta. Ao fim do filme, finalmente vemos o produto do trabalho da Jacaré Moda: uma explosão de beleza e diversidade em um telão, na comunidade, seguida de uma festa, cujo som é comandado por Vitória, em que todos dançam e se divertem. Em seguida, no plano final, uma modelo desfila pela rua da comunidade, em meio às pessoas que por ali passam. É Raquel Félix, a garota que outrora foi convencida de que era feia, porque tinha cabelos cacheados e lábios grossos, agora desfila com autoconfiança e olha diretamente para a câmera, nos observando, nos convocando a admirar sua beleza.

Referências COSTA, Tatiana Carvalho; BRAZ, Layla. Cinema e negritude: restituições de territórios e invenções de pertencimentos. In: . Catálogo Forumdoc.bh.2018. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2018. TORRES, Júnia. Cabelo Mágico. In: . Catálogo Forumdoc.bh.2016. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2016.


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Makota Valdina: o filme >>> sobre filme de César Guimarães e Pedro Aspahan américa cesar1 amaranta cesar

Makota Valdina, filme de César Guimarães e Pedro Aspahan (2019), compõe um retrato da professora Valdina Oliveira Pinto, conhecida como Makota Valdina, liderança religiosa do Nzo Onimboya, terreiro de candomblé de Salvador. Filmado no contexto de sua participação na Formação Transversal em Saberes Tradicionais da Universidade Federal de Minas Gerais, o filme se realiza em dois tempos. Primeiro, em novembro de 2018, acompanha Makota Valdina durante suas aulas no curso Artes e ofícios dos Saberes Tradicionais: Políticas da terra. Depois, o filme retorna ao espaço das primeiras filmagens, em abril de 2019, durante o curso Saberes Tradicionais – Cosmociências: Chamando o mato de volta, pouco tempo depois de sua inesperada morte. Decidimos escrever este texto em co-autoria porque vivemos juntas o luto pela morte precoce e repentina dessa que foi presença fundamental e fundante em nossas vidas, na tentativa de, juntas, dar sentido à falta imensa que ela nos faz diariamente e à certeza de que ela se foi cedo demais, quando suas lições se apresentam cada vez mais necessárias, complexas e profundas. Esta leitura do filme por quem conviveu por muito tempo com Makota Valdina, tem paradoxalmente uma dificuldade inicial e um apelo que a compensa: se, por um lado, é impossível conter as lágrimas e a emoção de sabê-la tão próxima e tão viva, quando já não está entre nós; por outro, traz o consolo de novamente sentir sua voz, seus gestos, um reconhecimento que é presença/ausência. Por Makota Valdina, o cinema se nos apresenta, desse modo, na sua mais fundamental atuação – agir no/através do tempo. Mas não se trata, com o cinema, de enganar a morte. Talvez seja mais apropriado falar de “contornar”, ou seja, das circunvoluções entre morte e vida, como na acepção da tradição Bakongo da qual Makota Valdina foi grande pesquisadora. O conceito de “contornar” criado entre os Bakongo, segundo ela, está relacionado ao símbolo espiral, a kodia, e “nele está contido o respeito à hierarquia, 1. América Cesar é professora titular aposentada da Universidade Federal da Bahia. Doutora em Linguística aplicada na área da educação bilíngue de minorias. Atuação na educação escolar indígena, educação ambiental, estudos das relações etnicorraciais e políticas linguísticas. Amaranta Cesar é professora e pesquisadora de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia onde coordena o Grupo de Estudos e Práticas em Documentário e o CachoeiraDoc - Festival de Documentários de Cachoeira (2010-2020).


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a sabedoria política e a arte do diálogo” (PINTO, 2013, p. 152). Em tal forma, dada pelo contorno, está também contida a concepção do mundo Bakongo a partir do movimento do Sol. Quando surge na Terra, a cada dia, o Sol vem do mundo dos ancestrais e nasce para dar nova vida aos seres humanos (PINTO, 2013). Makota Valdina esteve entre nós, como Sol, a atar elos entre as duas montanhas opostas e espelhadas nas bases que compõem o mundo: de um lado, vivos e seres visíveis; de outro; ancestrais, invisíveis. No primeiro momento do filme, que compõe majoritariamente seu tempo-espaço, César Guimarães e Pedro Aspahan acompanham Makota Valdina pela estação ecológica da UFMG, fazendo-lhe companhia na sua inspeção pelas plantas sagradas e provocando-a a ministrar uma aula ao ar livre (uma aula arejada em tantos sentidos). Eles criam, desse modo, uma situação de escuta em que Makota pode mover-se pelo mato, e pela cena, como mestra. Guimarães e Aspahan honram, assim, através da mise-en-scène compartilhada e da montagem discreta, a acepção primeira – e constantemente posta à prova – do documentário: produzem um precioso documento, como uma oferta à memória da imensa contribuição de Makota Valdina para uma epistemologia ainda não totalmente revelada. Ao sentir a sua voz, podemos, com o filme, mais uma vez, admirar a sua verve que resulta de uma pedagogia única, de uma ciência ainda por existir, amalgamada pelo interesse da pesquisadora com trânsitos e bibliografias diversas com a profunda vivência dos fundamentos de uma milenar experiência de saber/poder, para a qual não há dicotomias entre cultura/natureza; ciência, política e espiritualidade. Há imenso prazer em constatar no filme a singular retórica de Makota Valdina. É no jogo de entonações e ritmos que a sua voz modula as linhas de força do seu discurso, manejando pausas, tons, palavras, silêncios, cantigas, encantos. Na sua fala, encontra-se uma sintaxe própria, apreendida na conversa com os invisíveis, com a força que brota das raízes, do chão. Uma fala como um futum de n’kisi, para curar, para proteger, para nos livrar do sofrimento, da dor, do mau feitiço... Zimewanga, sua djina. É interessante, então, pensar no título do filme: Makota Valdina. Este título reafirma um complexo e sofisticado trânsito intercultural; uma identidade que ela terminou adquirindo durante sua longa militância dedicada à luta contra o racismo, a desigualdade econômica e a injustiça social, que ultrapassou os muros do seu terreiro e lugar; mas, ao tempo, sem sonegar o engajamento fulcral com o candomblé em suas implicações religiosa, espiritual, humanitária e política. E é nessa complexa configuração identitária movida pelos caminhos da sua vida, que ela ria do Makota Valdina. Um re-arranjo que ela fazia questão de pontuar: “Que jeito! É assim que a vida é...” Porque, a rigor, ou deveria ser chamada, pela linguagem dos iniciados no candomblé, de Makota Zimewanga; ou de Valdina Oliveira Pinto, como assinava o seu nome. E nesse diálogo intenso entre mundos, sintaxes e saberes, nem a djina nem o nome de cartório, mas alterada a ordem do discurso estabilizado: Makota Valdina, como consta na parede da escola municipal do bairro onde passou toda a vida, o Engenho Velho da Federação, renomeada recentemente em sua homenagem. No terreiro, era Makota Zimewanga, aquela que quebra o mau feitiço, sábia, que ensina a enfrentar o sofrimento e a dor. Fora do terreiro, foi a rigorosa professora e militante, que se indignava


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quando via gravações de manifestações de n’kisis, orixás e caboclos porque saiam da ordem do sagrado. Em muitas ocasiões em que foi convocada a participar de eventos acadêmicos ou cinematográficos, a exemplo das edições do forumdoc.bh de 2018 e do CachoeiraDoc de 2017, Makota Valdina defendeu enfaticamente o respeito a um limite, de natureza ontológica, ética e política, para as imagens/sons do cinema sobre expressões do candomblé. Para ela, não se pode querer fixar nas linguagens conhecidas o mistério do invisível. Nesse ponto, Makota Valdina, o filme, revela o quanto é difícil atender à sua lição, compreender a profundeza do que nos disse. Em sua sequência final, nos é oferecida uma homenagem-ritual aos pés da pindaíba, ou quebra-feitiço, a planta sagrada que deu nome religioso a Valdina, e que ela encontra com grande entusiasmo durante as primeiras filmagens – encontro que se constitui um momento de imensa beleza. O filme retorna, assim, ao lugar que sintetiza sua travessia de mestra, mas o faz permitindo que manifestações do espaço sagrado – toques e incorporações de caboclos – irrompam na cena de cinema. Por este trânsito, esta última sequência se revelou um tanto perturbadora. E aqui não se trata de cobrar a obediência irrefletida a um postulado prescritivo. Acima de tudo, as filmagens póstumas de um ritual sagrado mantidas na montagem final do retrato de Makota Valdina apontam para a complexidade dos princípios defendidos por ela ao longo da vida. Makota Valdina, o filme, é parte e resultado de uma importante iniciativa de diálogo, dentro da universidade e em busca de sua descolonização, com aqueles que estão a produzir conhecimentos fora de seus muros. Ao mesmo tempo, o filme é revelador da envergadura do trabalho de escuta que ainda é necessário para a transformação da universidade e também do cinema. Talvez nesse caminho nos seja valioso o sentido profundo da hierarquia, valor radical do candomblé: apurar os ouvidos para entender o que nos dizem os mais velhos, portadores da experiência.

Referência PINTO, Valdina. Meu caminhar, meu viver. Salvador: Sepromi, 2013.


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Makota Valdina e o mundo invisível césar guimarães1 pedro aspahan

Filmamos com a mestra Makota Valdina durante sua estadia em Belo Horizonte para participar do curso Políticas da Terra, no final de 2018, poucos meses antes de sua passagem a um outro plano espiritual. 2 Ela passeia com seus trajes africanos pela mata da Estação Ecológica da UFMG, em busca de uma planta especial, que posteriormente descobrimos se tratar da pindaíba. Enquanto ela admira a mata, ainda diante da sua imagem, escutamos seu belíssimo canto em kimbundo e kikongo arcaico, em homenagem ao caboclo Nzo Onimboya, que dá nome ao seu terreiro de candomblé (de nação Angola), em Salvador. O canto termina enquanto a vemos deixar o plano da mata. A luz do sol se intensifica, produzindo uma variação meteorológica, como que para nos lembrar que o nosso tempo é compartilhado com o tempo dos astros e dos outros seres, estourando o verde da imagem. Ela lê um poema de sua autoria, no qual reflete sobre sua iniciação e comenta: No fundo, no fundo, a força vem é de baixo, pois embaixo está toda a nossa ancestralidade. A gente vive nesse mundo, que a gente vê, que a gente toca, mas o mundo invisível é como que esse mundo imerso, que a gente não vê, que está embaixo da terra. Nosso mundo ancestral dos nossos antepassados e de toda a ancestralidade porque, o que são os n’kisis, o que são todos os elementos da natureza que chegaram antes da gente? Então, é a nossa ancestralidade.

Essa sutil operação de montagem presente na sequência inicial, a princípio muito simples, sugere sentidos complexos. Primeiro, ao apresentar a imagem da Makota diante da mata junto com o canto do caboclo, patrono de seu terreiro, fazemos reverberar o seu pensamento, pois, para a mestra, o “espaço mato” é algo vital tanto para o mundo

1. César Guimarães é professor Titular do Departamento de Comunicação Social da FAFICH-UFMG e pesquisador do CNPq. Pedro Aspahan é doutor em Comunicação Social pela UFMG, com estágio doutoral na King’s College London. Desenvolve pesquisa de pós-doutorado na UFMG por meio do qual coordena o trabalho audiovisual do Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG. No campo do cinema atua principalmente como diretor, técnico de som e montador, especializando-se no campo do documentário. 2. O retrato que gravamos com ela está disponível em: https://youtu.be/FAc4CJr4qtM, acesso em 21/10/2020. Mais informações em www.saberestradicionais.org


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material quanto para o mundo dos n’kisis. O espaço mato é lugar de aprendizagem, de convivência, de cura e de contato com as entidades, pois, como ela explica, o que são os n’kisis senão a própria mata? As plantas não estão ali numa relação metafórica com os espíritos, elas são os próprios espíritos, a sua expressão terrena, e por isso, elas podem curar. O canto do caboclo Nzo Onimboya, patrono de seu terreiro, reforça também essa missão de cura que Makota Valdina recebeu de seu n’kisi. É por isso que ela busca na mata mineira, como vemos mais adiante no filme, a planta que parece estar extinta em Salvador: A pindaíba é uma folha muito importante e que a gente usa muito. A gente usa pra sacudimento, a gente usa pra banho, (...), mas ela, na linguagem do povo de santo e dos erveiros, ela é conhecida como quebra feitiço ou tira feitiço, e eu acho que essa folha é um pouco como o meu nome, a minha dijina. Meu nome no candomblé é Zimewanga, que vem de zima-wanga. Zima é apagar, tirar. Wanga é o sofrimento, magia e alguns chamam também de feitiço. Então, ela é de quebrar o feitiço, de tirar o feitiço, ela tem a ver com a minha dijina, com o meu nome. Quando a gente tira o feitiço, a magia, o mal feitiço, tira o sofrimento.

Ao associarmos a imagem de Makota Valdina diante da mata (como que perscrutando as plantas) ao canto do caboclo Nzo Onimboya, buscamos reverberar, sob a forma fílmica, algo do pensamento da mestra e de sua relação com a natureza, com os n’kisis, com a cura e com a ancestralidade. A sequência também funciona como um preâmbulo de um forte acontecimento que pudemos testemunhar, pois ela de fato encontra a pindaíba no meio da mata e a saúda com alegria. A busca pela pindaíba é como uma busca pelo sentido da própria existência, pelo sentido do nome que lhe foi concedido por ocasião de sua feitura no santo (sua dijina) e pela materialização de seu n’kisi e de sua missão terrena. Podemos dizer que houve ali um verdadeiro encontro de Makota Valdina com a planta, com a natureza, ou mesmo, com o n’kisi e com a ancestralidade, e tivemos a sorte de testemunhar e registrar esse acontecimento. Um segundo desdobramento dessa experiência ocorreu após o seu falecimento. Valdina havia proposto uma disciplina ao Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG que se intitularia “Chamando o mato de volta”. A ideia da disciplina era realizar uma vivência na mata da Estação Ecológica, permitindo aos alunos interagir com as plantas, identificar espécies, aprender com elas os sentidos, os usos e a cosmologia a elas associados, bem como criar um viveiro público de mudas que seria partilhado com as comunidades de terreiro de Belo Horizonte. Ela não pode retornar à cidade para oferecer o curso, mas vieram seus sobrinhos Alice Pinto e Junior Pakapym, que participaram da abertura da disciplina conduzida pela mestra Pedrina de Lourdes Santos (Oliveira, MG) e pelo mestre Pai Ricardo de Moura (Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente, Belo Horizonte, MG). Na abertura do semestre, apresentamos o retrato que havíamos feito com Makota Valdina. A partir da experiência do vídeo, Pai Ricardo e Pedrina sugeriram que iniciássemos o curso com uma aula aberta, na qual faríamos uma homenagem à Makota, aproveitando a presença de seus sobrinhos, e levando uma oferenda ao pé da pindaíba,



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planta que seria não só a ancestral espiritual de Valdina, como a própria presença de sua energia de cura no plano terreno. Eles levaram os atabaques para a Estação Ecológica, fizeram uma oferenda com frutas, canjica e mel, e deram início aos trabalhos. Em seguida, entramos na mata, em direção à pindaíba. Alice e Juninho, junto com Pai Ricardo e Pedrina, colocam a oferenda aos pés da pindaíba num momento de muita emoção, como numa espécie de reencontro com Makota Valdina. Os tambores seguem tocando e embalando os cantos. Eis que, de repente, junto com o canto martelado de um pássaro, os caboclos começam a chegar. Um a um, eles tomam os corpos de alguns membros do grupo, se aproximam de nós e nos cumprimentam. Aquilo que – aos nossos olhos – parecia uma homenagem à Makota Valdina era já um trabalho, um ritual, a própria macumba que se instalava e nos colocava em conexão direta com o mundo espiritual, envolvendo especialmente os sobrinhos que enfrentavam ainda o luto pela perda de sua tia e mãe de santo. Ngolo, Gunzo, “a força que vem do alto e ressurge da terra”: era isso que experimentávamos naquele ritual. Em um segundo momento, recuperamos o registro do ritual e o incluímos no filme. Sentimos então a necessidade de voltar à mata mais uma vez para compartilhar com o espectador essa presença espiritual que o espaço mato evocava em nós. Pai Ricardo dizia: “você olha para mata, e a mata te olha”. Entrar na mata é entrar em relação com a mata. Os planos do espaço mato oferecem assim, de modo sensível, a presença invisível dos caboclos num fora de campo cosmológico que passa a habitar o interior da imagem, um mundo invisível, ancestral, que está embaixo da terra. Ntondele N’zambi uá Kuatesa! Makota Valdina!


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O ritual Iraxao, espírito do povo Inỹ koria yrywaxã tapirapé1

O ritual Iraxao é o espírito do povo Inỹ (karajá, Javaé e Ixibyòwa). Os porcões do mato são os principais alimentos. A festa Iraxao é para alegrar os Apyãwa (Tapirapé) juntamente com os espíritos, é a pacificação dos espíritos durante as festas, onde os espíritos cantam, dançam, pintam seus corpos e festejam. Por isso são oferecidas muitas comidas para os axyga (espíritos). Os espíritos chegam e misturam-se entre as pessoas. Os homens fazem os seus ornamentos dentro da Takãra. Confesso que os grupos Araxã e Wyraxiga trabalham juntos na confecção de seus ornamentos. O Iraxao ensaia dentro da Takãra. Os homens cantam três das suas músicas. Depois de ensaiar, saem da Takãra para dançar com a mulherada. Os seus alimentos são divididos para os dois grupos maiores dentro da Takãra, ou seja, para o grupo Araxã e para Wyraxiga. Dentro desses grupos maiores dos homens, há subgrupos que pertencem a esses dois grupos, como no grupo Wyraxiga há wyraxigio e wyraonoo. Assim como no grupo Araxã, há warakorã e tarawe. O Iraxao fica vigiando a sua alimentação e convivendo com seu dono. O espírito fica com fome, por isso, o dono e o povo sabem que é preciso respeitar a cultura espiritual dentro da visão cosmológica, como também o conhecimento vivo do povo Apyãwa que faz o elo com alimentação. A sua alimentação é respeitada, é muito sagrado. Tem uma conexão muito forte com espírito. O espírito Iraxao sempre acompanha os caçadores, ele cerca os porcões para os caçadores, deste modo ele contribui com sua alimentação. O espírito Iraxao pode causar tyeay (diarreia) e ma’eparaxokã (o alimento que faz mal para estômago), quando é desrespeitada a sua regra de dança. Porém, a medicina, que é chamada xyrõ, acalma o Iraxao. Para pacificar o espírito, o dono do Iraxao mastiga xyrõ e sopra na direção de Iraxao para que seja pacificado o espírito. As imagens dos espíritos são desenhadas pelos xamãs, na medida em que fazem contato com os espíritos. Todas as imagens quando desenhadas, são acompanhadas pelos espíritos, dialogando com quem está sendo convidado a participar de um ritual na aldeia, para que seja liberado o seu animal de estimação para o consumo no ritual e para que o povo seja protegido das doenças. Então, neste processo, todos os espíritos 1. Professor indígena e antropólogo (Mestre em antropologia social pelo PPGAS UFG).


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participam do ritual. Mesmo tendo sido convidado apenas um espírito vem todos, como os espíritos de peixes, de pássaros, dentre outros. Assim, eles nos protegem das doenças, da morte. Caso contrário, se as pessoas não acreditarem nos espíritos, eles mesmos podem causar doenças espirituais.

Iraxao koria yrywaxã tapirapé

Iraxao a’era Karaxã ‘yga. Taxao a’era emi’oete. Iraxao rarywa a’eramõ Apyãwa xeweyweyjnãwa xere’yga ne, xere’yga maarypãwa taryjpe, axekwe marakã pe, xemoonãwa pe. A’era wetepe temi’o i’oakaãp axyga we. Emanyt a’eramõ mĩ xaneparãp xerekawo. Akoma’ekwera mĩ aãpa ‘yro Takãripe, wyraxiga gy, araxã gy. Takãripe mĩ ika axa’yga, maãpyt mĩ ia’ygi amarakã axa’yga. Axa’ypawire xowe mĩ ipari iraporaãjta koxywera we. Temi’o a’eramõ mĩ amaxa’ak axaope Araxã, Wyraxiga ne Takãripe. Araxã, Wyraxiga a’eramõ mĩ wereka maãpyt wyrã, exanaj, Araxã, Warakorã, Tarawe. Emanyt Wyraxiga ranõ, Wyraxiga, Wyraxigio, Wyraonoo. Iraxao a’eramõ mĩ aixãk, awak ‘ota akawo wemi’o re, aka mĩ awaka axara re. Axyga ro’õ epe mĩ ity’ãt akawo, a’era imawiteãp Iraxao rarywa, emanyt a’era mĩ paxẽ ikome’o ĩIraxao rarywa. Iraxao remi’o a’eramõ imawiteãp. Axyga remi’o ramõ xemaryj’ygawe’yma. Aka ro’õ mĩ Iraxao ataãramõ akama’e agy rewiri, a’era ro’õ mĩ amawak akawo taxao, emanyt a’eramõ mĩ ipyro wemi’o re ataãramõ akama’e agy. Iraxao a’eramõ mĩ aãpa tyeay, ma’eparaxokã amawitee’ymamõ. Axewe mĩ xyrõ pe imaxyrõ. Ixãra a’eramõ mĩ aypyj xyrõ pe imaaryarypa. Paxẽ a’eramõ mĩ aã’yg irota axyga, wemiexãka. Axekwe ro’õ mĩ itori wa’yga mõ taryjpe, weymãwa ipiawaka tarywa we, axewe ro’õ mĩ xaneape’a ’ota ma’eajwa wi. Emanyt ro’õ mĩ itori axyga taryjpe wetepe, ipirã xãra, wyrawyrã xãra, mĩ ma’ema’e xãra. Emanyt a’eramõ mĩ xanerape’a ma’eajwa wi, manõ wi, amawitee’yma mõ xowe ro’õ mĩ iapa ma’eajwa.


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“Na lei do branco” >>> A flecha e a farda (Miguel Antunes Ramos, 2020) paula berbert1

À memória de Julieta Karajá.

A Guarda Rural Indígena (GRIN) foi um pelotão formado por mais de 90 jovens que viraram soldados com a finalidade de policiar suas próprias comunidades. Para exercer essa função eles foram preparados em Belo Horizonte, no Batalhão-Escola da Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG), onde aprenderam os fundamentos da ordem-unida, tiveram aulas de educação moral e cívica, patrulha, abordagem policial, armamento e tiro. Durante a cerimônia de formatura da Guarda, em fevereiro de 1970, os indígenas-soldados apresentaram os conhecimentos adquiridos no treinamento, marcharam, simularam golpes de defesa e ataque e, no momento mais emblemático dessa ocasião, conduziram um homem amarrado em um pau-de-arara. Trata-se do único registro público da famosa técnica de tortura utilizada durante a ditadura. A solenidade foi amplamente repercutida pela imprensa da época, que noticiou a formação do pelotão indígena como uma mostra da boa relação que o regime militar teria com os povos originários. Representantes do alto escalão do governo federal estiveram presentes no evento, além do então presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) e de centenas de pessoas que aplaudiam com entusiasmo o desfile da GRIN. As imagens dessa ocasião2 permaneceram esquecidas por décadas no acervo do Museu do Índio, até que foram localizadas durante as investigações da Comissão Nacional da Verdade. Esse é o ponto de partida do documentário A flecha e a farda, de Miguel Antunes Ramos, que busca investigar os sentidos daquelas imagens de indígenas-soldados a partir das memórias de ex-guardas, de familiares e anciãos dos povos Krahô e Xerente.

1. Paula Berbert é antropóloga e programadora cultural. No mestrado pesquisou junto aos Maxakali a história de sua relação com Estado, com ênfase nas memórias sobre a Guarda Rural Indígena e o Reformatório Krenak. Atualmente é doutoranda no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo, onde trabalha com o tema da arte indígena contemporânea. 2. As imagens da formatura da GRIN foram produzidas por Jesco von Puttkamer, cinegrafista que também documentou as atividades de diversas frentes de atração dos órgãos indigenistas, tornando-se especialmente reconhecido por seus registros das expedições realizadas pelos irmãos Villas Boas no Xingu.


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Os testemunhos apresentados no filme retratam a situação dramática em que esses povos se encontravam na época, quando seus territórios, localizados no atual estado do Tocantins, entraram na rota de expansão das fronteiras agrícolas. As velhas estratégias da guerra colonial se reproduziam ali: levas de posseiros apoderavam-se de suas terras, cercando-as por todos os lados com fazendas e rebanhos; os assassinatos, os espancamentos e as acusações de roubo contra os indígenas tornaram-se frequentes; o consumo de bebida alcóolica era cinicamente estimulado pelos invasores para desmantelar o bem-viver nas aldeias. Esse é o contexto evocado por aqueles que se recordam que o então capitão da PMMG, Manoel dos Santos Pinheiro, foi pessoalmente às suas comunidades para selecionar rapazes que se destacassem por sua coragem e senso de liderança, fazendo-lhes o convite ardiloso para se formar como guardas indígenas e defender eles mesmos as suas terras. Movidos por essa promessa os antigos recrutas krahô e xerente contam que viajaram até Belo Horizonte, onde se encontraram com os jovens alistados entre os povos Gavião do Pará, Karajá e Maxakali,3 compondo assim o primeiro e único pelotão da GRIN. O documentário nos dá a conhecer detalhes do treinamento que receberam, em que se destaca a menção recorrente dos ex-guardas xerente ao momento simbólico em que todos eles juraram a bandeira do Brasil, exprimindo publicamente o compromisso de lealdade que adquiriram com a pátria. Os familiares contam que quase não os reconheceram quando voltaram fardados para as aldeias, instruídos a não sorrir mais para os seus. Rapidamente ficou nítido a serviço de quem a GRIN deveria atuar, sempre chamada pelos comandos regionais da polícia militar para prender parentes acusados de roubar o gado dos posseiros. O enorme mal-estar causado pela repressão que os guardas deveriam exercer contra pessoas próximas é lembrado com muito pesar por Manoel Xerente. As circunstâncias da prisão de seu irmão nos mostram como a militarização das aldeias instituía uma ordem de vigilância e controle, que lhes era absolutamente estranha e que violentava suas formas tradicionais de relação: “Nós não estávamos respeitando o nosso clã, nós tínhamos que dar punição neles. Eles nos respeitavam, mas agora eu não respeitei mais. Agora eu estou na lei do branco.” – explica Manoel numa sequência particularmente reveladora do filme. Nesse período, os Postos Indígenas, sedes locais da Funai, passaram a contar com celas onde as pessoas presas pela GRIN ficavam detidas sem ter o que comer e beber, o que evidentemente provocava a consternação dos parentes. Quando suas faltas eram consideradas muito graves pela avaliação arbitrária dos chefes do órgão indigenista, os presos eram encaminhados extrajudicialmente para o recém-inaugurado Reformatório Krenak, uma prisão criada também pelo Capitão Pinheiro para reclusão de “indígenas infratores”. Lá eles seriam “recuperados” por meio de uma rotina rigorosa com intensas jornadas de trabalho compulsório. Se isso não fosse o suficiente para “reeduca-los”, o método hediondo da tortura era usado como “pedagogia de reforma”, o que no caso das mulheres indígenas combinava-se com violações sexuais. A passagem de Julieta

3. As memórias dos Maxakali sobre a Guarda Rural Indígena e o período da ditadura militar foram registradas no brilhante Grin (2016), filme de Isael Maxakali e Roney Freitas.


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Karajá pelo Reformatório é reconstruída pelo filme a partir de descrições de suas fichas prisionais, em que estão registrados os reiterados pedidos que ela fazia para retornar para sua aldeia, de onde dizia sentir muitas saudades. Julieta ficou presa durante seis meses, recebendo castigos físicos e sendo abusada frequentemente pelos policiais, inclusive pelo próprio Capitão Pinheiro, conforme apontam investigações do Ministério Público. Quando questionados, pela equipe do filme, sobre as razões que levaram ao declínio da GRIN, as respostas dadas pelos Krahô e Xerente foram bastante distintas e também desconcertantes. Institucionalmente a Guarda nunca foi desativada por nenhuma portaria da Funai ou da PMMG. Também nunca foram organizadas oitivas formais para inventariar as violações sofridas pelos ex-soldados, os ex-detentos do Reformatório Krenak, seus familiares e demais indígenas que testemunharam todo esse horror. O Capitão Pinheiro, mesmo depois de ter sido denunciado por crime genocídio, permanece impune desfrutando de sua robusta aposentadoria de militar reformado. Nos dias de hoje, em que o presidente da república elogia torturadores e a nostalgia da ditadura intimida a nossa frágil democracia, é cada vez mais improvável que medidas de reparação sejam tomadas a favor dos povos indígenas. Assim, muitas das violências deferidas contra eles naquela época continuam pulsando como feridas abertas, e este documentário, A flecha e a farda, põe à vista a profundidade dessas feridas.

Referências BERBERT, Paula. Para nós nunca acabou a ditadura: instantâneos etnográficos sobre a guerra do Estado brasileiro contra os Tikmũ’ũn_Maxakali. Dissertação de Mestrado em Antropologia. Belo Horizonte, UFMG: FAFICH, 2017. ______. Tempos de direitos, tempos de golpe: perspectivas tikmũ’ũn_maxakali sobre a história da ditadura. In: Campos – Revista de Antropologia da UFPR, Curitiba, 2020, v. 20, n. 2, p. 108 - 122. CANÊDO, Lipe (direção). Arara: um filme sobre um filme sobrevivente. Brasil (13 min), 2018, digital, color. MAXAKALI, Isael; FREITAS, Roney (direção). Grin. Brasil, 2016 (41 min), digital, color. Ministério Público Federal. 2015. Ação civil pública com pedido de antecipação de tutela, no 64483-95.2015.4.01.3800 de 10.12.15. Disponível em: <https://goo.gl/8qxWm4>. Último acesso: 15.10.20. ROMERO, Roberto. 2016. Quando os Tikmũ’ũn viraram soldados. In: Catálogo Fórumdoc.2016. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2016, p. 239 – 245. VALENTE, Rubens. Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.


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Gyuri: Uma arqueologia de emoções subterrâneas >>> sobre filme de Mariana Lacerda rogerio duarte do pateo1

Gyuri desapareceu em um campo de concentração. Foi morto pelos nazistas pouco depois do primeiro beijo. Sua imagem, guardada por Claudia em um minúsculo escapulário, repousa ao lado da foto de seu pai, que após uma dura reconciliação, também foi vítima da loucura genocida da Segunda Guerra Mundial. Essa emocionante história dá o tom do filme Gyuri, de Mariana Lacerda, uma obra tocante que explora a face mais íntima das relações humanas que estão no cerne de toda a obra de Claudia Andujar. Produzir uma narrativa pautada em histórias de vida é um desafio. A tentação cronológica e o foco nos “grandes feitos” podem levar a um retrato burocrático, uma espécie de referendo ao status de celebridade do retratado. Felizmente, esse não é o caso de Gyuri. O filme aborda a vida de Claudia de um modo intimista, criando uma dobra entre duas dimensões centrais na vida e na obra dessa grande artista. Por um lado, a solidão da infância. Uma espécie de vazio dolorido que atravessa, como um subtexto, as diferentes séries fotográficas produzidas por ela. Por outro, a chegada à floresta e o reencontro com amigos antigos. De forma sutil e cuidadosa, o filme retrata como as amizades de longa data e o cenário da floresta operam, na biografia de Claudia, como um antídoto às angústias de sua juventude. Para bom entendedor, o fio condutor da narrativa construída por Mariana Lacerda acerta na mosca ao desvelar os impulsos recônditos que iluminam o gênio inspirador das fotografias de Claudia Andujar. Uma entrevista realizada no apartamento da fotógrafa, em São Paulo, introduz o espectador às histórias de sua juventude. O húngaro, língua de sua infância, é o idioma principal dessa conversa. Sua dificuldade em expressar-se nessa língua, no entanto, desloca as memórias daquele período para um plano ainda mais profundo e distante. Como transparece na entrevista, a vida com seu pai foi marcada pela solidão. Deixada aos cuidados de empregados que lhe contavam histórias fantásticas, Claudia, ainda

1. Antropólogo, professor do Departamento de Antropologia e Arqueologia da UFMG e coordenador adjunto do Núcleo de Antropologia Visual (NAV-Fafich).


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muito jovem, dava sinais de um ímpeto expressionista. Já adulta, enxerga na pintura abstrata uma via para manifestar suas inquietações. A abstração fornecia uma via livre para a expressão de emoções e anseios, mas – como disse certa vez Pietro Maria Bardi – a conduzia a um resultado sem saída. Essa linguagem seria ultrapassada apenas com sua aproximação à fotografia, já em solo brasileiro. Com a fotografia, Claudia encontrou um caminho alternativo que lhe permitiu a exploração visual da existência humana sem cair nas armadilhas do realismo documental. Sua imersão no fotojornalismo foi beneficiada pela liberdade editorial que marcava as revistas ilustradas dos anos 1950 e 60. Life, Look, e no Brasil, Realidade (entre outras), serviram como catalizadoras para sua criatividade, levando-a a ultrapassar os pressupostos documentais dos anos 1930-40 e se apropriar do fotojornalismo como uma forma de expressão artística. Em sua primeira viagem à Amazônia, Claudia estava acompanhada de seu segundo marido, o fotógrafo norte americano George Love. Além de uma reportagem para a revista Realidade, o livro “Amazônia”, resultante dessa viagem, ilustra as aproximações e distanciamentos entre os trabalhos de ambos. George, defensor ferrenho da fotografia como forma de arte, mergulhou nas paisagens amazônicas para criar imagens abstratas que exploram as cores e texturas da selva. Já as imagens de Claudia são, em sua maioria, focadas nos Yanomami. A simbiose dos índios com a floresta, o humanismo escancarado de seus corpos nus e a vitalidade de seu misticismo xamânico foram a linha mestra para uma nova etapa na vida da artista. Uma espécie de refúgio capaz de dar vazão à sua busca interior. O golpe de 1964 destruiu as liberdades editoriais da imprensa. Afastada do jornalismo, Claudia pôde, enfim, mergulhar nas aldeias indígenas. É nesse ponto da história que a narrativa de Gyuri dá uma guinada. A solidão da infância e o vazio da perda de entes queridos, materializados no filme pelos minúsculos retratos guardados no escapulário, cedem lugar ao reencontro com os Yanomami e aqueles que a acolheram em uma relação de parceria, cuidado e afeto. O filme nos apresenta a chegada de Claudia ao posto do Demini. Fragilizada pela idade avançada e pelas dificuldades de locomoção, Claudia vence lentamente cada desafio da viagem e, conduzida em uma cadeira de rodas, chega ao Watoriki, a aldeia da Serra do Vento, cerca de quarenta anos após o início de sua amizade com os Yanomami. Dois personagens costuram a narrativa a partir desse ponto. Carlo Zacquini, irmão leigo da ordem Consolata e Davi Kopenawa, companheiros na luta pela defesa dos direitos dos Yanomami, personificam uma espécie de antídoto ao sentimento de tristeza e solidão de sua infância. O tempo é o da floresta. O ritmo é aquele ditado por corpos marcados pelas décadas de luta, temperado aqui e ali pelos olhares curiosos das crianças indígenas. As conversas entre os três, envoltas no cenário quase surrealista do Xapono do Demini, revelam laços antigos. Quem espera dessas conversas o delineamento de etapas importantes de uma história política intensa e agitada se vê surpreendido por relatos de intimidade; da chegada de fusca à missão do rio Catrimani à aventura europeia em busca de comidas estranhas. Como uma arqueologia de emoções subterrâneas, as lembranças evocadas nessas conversas não cumprem, no filme, o papel de indicadores da importância de Claudia para a luta pelos direitos


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dos índios. Pelo contrário. Entremeadas por imagens dessa visita extemporânea à Terra Indígena, os relatos do passado se fundem à fragilidade do corpo da artista e a momentos delicados de cuidado e respeito. O resultado dessa mistura é uma narrativa sensível e tocante que faz justiça à envergadura da vida e da obra de Claudia, dando vazão aos lampejos de humanidade perseguidos por ela desde as tardes solitárias em sua casa na Hungria.


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Arquivos em tempo real Conversa com Jean-Claude Bernardet e Rubens Rewald em torno de #eagoraoque por fabio rodrigues filho e glaura cardoso vale

Esta conversa se deu na tarde de 12 de outubro de 2020, via plataforma de videoconferência, com os realizadores de #eagoraoque (2020), Jean-Claude Bernardet e Rubens Rewald, que compõe a programação da 24ª edição do forumdoc.bh. Propusemos algumas questões em torno do filme para que a conversa fluísse na urgência de se debater um tema tão fundamental que envolve a nossa política do agora e sua relação com o passado recente – de lutas históricas que permitiram a construção da nossa jovem democracia, muitas delas ainda em disputa.

Glaura Cardoso Vale: A gente percebe no filme #eagoraoque a relação familiar que envolve três gerações de militantes de esquerda – o avô intelectual de base, de experiência sindical, interpretado por Jean-Claude Bernardet, o filho intelectual acadêmico, interpretado por Vladimir Safatle, e a neta que representa a juventude militante que está próxima às lutas do seu tempo, engajada nas pautas indenitárias, interpretada pela Valentina Safatle; e, ainda, no transcorrer do filme, a relação com lideranças comunitárias, como a personagem professora, cantora e dirigente de um banco comunitário com moeda própria, interpretada pela atriz e cantora Palomaris Mathias, a juventude na periferia que parece organizada em torno de um movimento autonomista (“nós por nós”), as pequenas contradições nas relações de classe representadas pela moça do café e pela diarista, com confrontos um pouco anedóticos. A pergunta para dar início a essa conversa é sobre a escolha do Safatle, já que seu personagem é uma figura central como representante de uma classe, professor universitário, intelectual público, e que parece muito distante da realidade ao se aproximar do fenômeno social e político, propondo soluções abstratas. Isso estaria ligado a impossibilidade de se pensar hoje num intelectual orgânico? Qual seria o motivador do filme? Jean-Claude Bernardet: Fiquei impressionadíssimo pela organização sociológica que você deu ao filme e a seus personagens. Da minha parte, não houve isso. Então, você cita a militância... a militância é o seguinte... tínhamos feito o contato com o Safatle que nos disse que a filha dele cantava. E aí começou a fazer uma campanha para a filha


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dele entrar no filme. Então, como ele toca piano e de fato ela é cantora, bolamos uma cena com os dois. Mas ele não achou que era suficiente e descobrimos esse material de celular em que ela faz um comício em cima de um carro de som e pensamos: “vamos em frente”. Portanto não houve esse nível de organização mental de previsões, de intencionalidade que supõe a sua fala. Quanto ao Safatle, por que o Safatle? Tem um certo caráter aleatório nessa história que era um ponto de partida. O Cristiano Burlan queria fazer um filme com o Safatle e comigo. O Safatle pianista, somente pianista. Vivíamos o pai e o filho no mesmo apartamento e o pai se irritava com o filho e, no final, ele matava o filho. Eu dizia para o Cristiano, “mas um é pianista, o outro se irrita com o que ele toca e o mata, isso não dá um longa, precisava fazer alguma coisa”. Eu disse “olha, eu vou escrever”. Como não tinha substância ficcional, eu não consegui escrever a partir dos dados do Burlan. Voltando à questão do Safatle eu lia [o roteiro] e disse ao Burlan que ia me interessar pelo aspecto militante dele, inclusive me interessa o aspecto da construção do intelectual que não é o intelectual que tem apenas uma área, um âmbito, mas tem vários. Ele circula em vários. Esse interesse pela construção do intelectual não especializado veio nos anos 1970. Eu morava no Rio, frequentava muito o Arthur Omar que era cineasta, que era fotógrafo, que escrevia, um pouco filósofo, ele tem uns textos mais abstratos e a gente interessava muito nesse sentido de não ficarmos especializados. Então, a ideia desse Safatle que é pianista e que é militante de fato tudo isso me interessou. Depois o Burlan por motivos pessoais saiu do projeto. Então trabalhamos o Rubens e eu, e a partir do que eu tinha escrito, o Rubens foi acrescentado. Não houve essa premeditação que a sua fala supôs. Rubens Rewald: Eu vou discordar e concordar com algumas coisas do Jean-Claude. A organização que você colocou é muito boa, muito interessante. A filha, assim como o Jean-Claude falou, ela entrou porque havia uma cena em que a gente já tinha estabelecido que era a cena do sarau. Seria uma cena na qual o personagem do intelectual iria começar um processo de incômodo com a sua classe, com seus pares. Isso porque o desenho do personagem era o de um intelectual de esquerda, midiático, que escrevesse em jornal, que aparecesse em programas de rádio e TV... e que dividiria o seu tempo entre uma atuação política da mídia e a sua criação artística. E ele participaria de saraus, muitos desses para a elite, para a classe média alta, a elite não só social como financeira. Isso fez com que ele se revoltasse um pouco e começasse um processo de afastamento dos seus pares e ida para as classes mais populares. Quando o Jean-Claude fala que escrevemos as cenas, é muito importante que se diga, a gente escreveu o princípio da cena, a sua premissa, mas a partir disso é que se vai criar os seus conflitos. Por isso é que a gente colocou nas cenas as pessoas que representam aquelas classes, para ver o quê que vai sair do jogo. E nessa cena do sarau, aí que o Safatle falou, “poxa, minha filha canta”, e a filha dele realmente é uma cantora lírica. Então, decidimos que no sarau não fosse apenas o Safatle no piano, mas que fosse ele no piano e a Valentina Safatle cantando. Mas a cena já existia. O filme foi se construindo um pouco assim. A partir dos elementos que ia suscitando, íamos pensando em novas cenas. Então, por exemplo, a partir do momento em que ele propôs que a filha participasse do filme, a gente achou


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interessante além dele ter a discussão com o pai, ter também com a filha – isso daria mais um nível de confrontação com o personagem. Daí foi sensacional, porque essa cena praticamente era assim, uma discussão política pai e filha. Jean-Claude: Discussão política e familiar também... Rubens: Exato. E daí a filha colocou todos os rancores, ressentimentos dela para fora, o que ela achava do pai. Essa cena é super real. É a Valentina Safatle falando o que acha do Vladimir Safatle. Muitas cenas foram mais ou menos criadas um pouco nesse espírito. Por exemplo, a partir do momento em que a gente tinha a questão do banco comunitário, durante o processo de construção do filme, essa cena iria finalizar e funcionaria como alguma luz, alguma possibilidade de ação comunitária, era essa um pouco a ideia. Daí o Vladimir Safatle falou: eu acho ruim terminar assim. A gente deu um espaço de opinião sobre o desenrolar do filme. Jean-Claude: No roteiro original não é assim... Rubens: Você tem razão, no roteiro original termina com o Catita [Valmir do Côco]. A cena do banco era a última da Palomaris e daí o Vladimir falou: “eu acho isso muito ruim, parece que nós estamos sugerindo que a única saída seria no campo de um banco. Você tem que criar uma inserção no sistema bancário capitalista como única saída de inserção política social”. Isso gerou uma discussão, daí veio a nossa ideia, então, vamos colocar essa discussão em cena. A ideia era que a discussão se desse num carro, entre ele a Palomaris. O Safatle iria ao caixa automático de um banco, entraria no carro e daí eles iriam começar uma discussão com certo sarcasmo. Mas no fim, devido a pandemia, a gente resolveu fazer numa plataforma e de forma remota, a gente gostou bastante desse resultado. Então, muitas cenas tinham isso, elas tinham uma ideia a priori, mas os materiais que elas suscitavam iam propondo novas cenas. Fabio Rodrigues Filho: Há uma sequência do filme de vocês, a que se passa no Teatro Oficina, em que Jean-Claude rememora e narra uma cena síntese – imagem do “espírito daquela época” (referindo-se a 1968) –, diz ele: “Quando eu assisti ao primeiro Roda Viva, eu estava sentado na primeira fileira, e no palco havia um fígado. E um ator bateu no fígado e respingou sangue na minha camisa. Eu estava com uma camisa branca...”. Bem, novamente na primeira fileira do mesmo teatro, agora é o personagem do Safatle que parece participar de uma cena síntese. Síntese menos da época do que do espírito do filme: vemos num plano longo, que beira o insuportável, Safatle sendo fortemente constrangido e interpelado por um jovem ator, onde a representação vacila pela experiência dos corpos e mesmo nossa (enquanto espectadores). É curioso, porque se a mancha de sangue no relato de Jean-Claude, em 68, é um resíduo imagético que marca a memória e configura a cena (espectador ele mesmo interpelado por um sangue, visível e sensível – materialização da quebra da quarta parede, também pela mancha na brancura), no caso de Safatle, seu “elegante” limpar da calça ao final da cena soa como uma questão


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em relação à síntese. Talvez a questão seja essa: quando a atriz/personagem Palomaris Mathias é perguntada de “como seria o teatro hoje?”, sem titubear ela responde: “O teatro de hoje seria um ringue”. Questão para o teatro, mas que poderia ser aplicada ao filme, não? Seria este filme um ringue, onde o personagem do Safatle ocupa o centro do tablado? Rubens: O personagem do Vladimir é um pouco o fio condutor. Nesse sentido, ele é um pouco protagonista. Apesar dos personagens terem vida própria, por exemplo, a relação da Palomaris com o banco comunitário não depende do Safatle, mas, de certo modo, tudo desemboca um pouco nele... que é um pouco aquela questão que o Jean-Claude está falando do intelectual. O que é o intelectual hoje, o que o intelectual pode fazer hoje. O Safatle é um pouco a metáfora de todos nós nesse momento atual, o quê que a gente pode fazer? Qual o nosso espaço de ação? Que procedimento a gente pode fazer para tentar ter um nível de intervenção? Então é como se toda a realidade tivesse confrontando o Safatle para: “e aí?”, “e agora?”, “o quê que você vai fazer em relação a isso?”, “qual a tua postura em relação a isso?”, “qual é a saída em relação a essa situação?”. A gente criou as condições para a situação se desenrolar por si só como o debate final no Capão Redondo. Não havia um roteiro do que seria falado por cada um. É um debate real. Mas é claro que, naquele contexto, a figura do Safatle é um pouco uma figura hostil, um pouco aquelas pessoas que representam um intelectual branco da Universidade. Não sei se hostil, mas não-orgânica àquele espaço. Já no Teatro Oficina foi interessante, não foi criado por nós. A gente foi lá como espectador assistir à peça e aquele personagem, aquele ator da peça, escolheu o Safatle pra fazer a sua performance. O que caiu muito bem pra gente. Mas para nós interessava exatamente isso. Aquele intelectual que de um certo modo é mostrado como uma pessoa cheia de certezas – “a esquerda traiu” –, quando ele está naqueles programas de TV, ele tem as opiniões dele, ele tem as questões dele, parece que é tudo um jogo muito claro do que é o certo, o que é errado. Mas quando chega o jogo social, ele não tem muitas ferramentas e muitas estratégias de como lidar com a situação. E de certo modo está no bojo das questões. “E agora o quê?” [#eagoraoque?]. O que nós podemos fazer em relação a todo esse circuito político que nos cerca e nos assola? Em nenhum momento a gente cita Bolsonaro, a extrema-direita, mas está aparente no filme e o que o intelectual hoje pode fazer, que estratégias ele pode ter, para tentar lidar com isso e para tentar talvez liberar alguma ação e resistência a isso. Jean-Claude: Quero falar um pouco do Teatro Oficina e fazer uma pequena modificação no que você disse. Foi pedido a alguém, ao José Celso [Martinez] ou ao diretor de palco, foi pedido que alguém, ator ou atriz, cuidasse do Safatle. Então, não sabíamos que seria esse ator com essa performance do “compre”. Mas interessante você ter citado o Oficina, e interessante o que você disse, porque de um ponto de vista da construção do filme, essa cena é um pequeno laboratório. A cena do Roda Viva no Teatro Oficina se passa hoje. E a cena do “compre”, a performance do compre, se passa hoje e com certeza se refere ao mundo de hoje. No entanto, é dito também que houve o Roda Viva no passado. Portanto, que presente é este que reedita o passado? Interessante isto... O filme não vai


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dizer que é interessante, mas também ele não vai dizer que não é interessante. Então, ele não se pronuncia, mas ele deixa uma área de discussão, como se ele plantasse alguns uns paus aí no meio do terreno e esses são os parâmetros, sabe, você vai ver um pau até outro que significa: “ah que maravilha! O Zé Celso lota esse teatro". Lota com dramaturgia de cinquenta anos atrás? É isto. Então, qual é a novidade? Por outro lado, nessa cena, da saída do teatro, cujo diálogo não estava escrito, a Palomaris disse isso, “um ringue”. Mas isso não quer dizer que o Roda Viva seja um ringue. Eu pergunto, como será o teatro do presente? Se eu saio do Roda Viva, depois de fazer o relato da cena há cinquenta anos atrás, se eu pergunto isso, é porque eu não considero esse teatro um teatro do momento presente. Entende? E ela responde, “um ringue”. É uma cena que eu acho que está construída de tal forma que ela fornece muitas pistas para sim, para não, para talvez. Acho que, não sei o que você pensa, mas de certa forma nessa cena está condensado a mecânica de pensamento, de sugestões que o filme propõe. O quê que você acha disso, Rubens? Nunca falamos disso. Rubens: Quando você fala que é um laboratório, tem até um dado: foi a primeira cena filmada, a primeira gravação foi no Teatro Oficina. O filme partiu da coisa do teatro. O filme partiu de outra ideia, mais gráfica, e foi se tornando mais político, porque era o momento. Isso foi Janeiro de 2019, Bolsonaro acabando de assumir, temos um personagem que é o Vladimir Safatle que era um dos escritores, um dos articulistas de resistência de uma certa esquerda. Então não adianta, foi natural que a gente quisesse fazer um filme político. Só que eu e o Jean-Claude, a gente não queria que fosse um filme que falasse da esquerda e daí, para falar de esquerda, tinha que falar do Lula. Então, a gente brincava que era um filme pós-Lula e pós-José Celso. Jean-Claude: Pós-eleições, pós-Lula e pós-José Celso. Rubens: Exatamente. E daí, não falando do Lula, também não queríamos que tivesse o nome do Bolsonaro. Não queríamos situar. Queríamos falar sobre isso, mas sem citar os nomes e tentando ir além disso. Não ficasse na coisa pró-Lula, contra-Lula, tentasse que esquerda pensasse novos léxicos, novos vocabulários. Se é que isso é possível neste momento no país. Jean-Claude: Aparentemente não. Agora essa esquerda, ela está limitada de fato no filme ao intelectual classe média. Que é um tema que me preocupa faz mais de cinquenta anos, porque já nos anos 1960, com Brasil em tempo de cinema e a revolta dos cineastas do Cinema Novo, abordava-se essa questão, não é? E chocou muito as pessoas, inclusive o Glauber. O Glauber quando ele faz o Câncer, faz uma voz off com a própria voz dele dizendo mais ou menos o que eu tinha dito: “as ilusões revolucionárias de uma classe média”. Que depois eu usei, houve essa questão sempre minha de me preocupar com que bicho é esse o intelectual de classe média de esquerda. Mas o que é bastante importante é a questão do Teatro Oficina como mecânica de discussão e de compreensão do filme. A ideia seria de um filme estimulante para pensar, provocante,


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mas sem resposta. Quer dizer, a resposta é a própria dinâmica do pensamento. O que eu espero consigamos movimentar. O pensamento como movimento, mas não o pensamento como conteúdo. Gostaria de complementar o que o Rubens disse “que não queríamos Lula, não queríamos Bolsonaro etc.”, não queríamos situar no tempo. É um ensaio, não tenho a menor dúvida de que é um ensaio. E é um ensaio sobre um tema. Não sobre pessoas. Nem mesmo, a rigor, sobre o Safatle. Não é um documentário sobre o Safatle. Glaura: Vou me adiantar numa questão aqui que é o trabalho da montagem. Essa questão que trouxemos no início, ela parece ficar clara no momento em que a gente vê o Safatle em frente a um auditório na USP, em que temos pessoas dependuradas nos parapeitos, numa área aberta do prédio e ele fala de forma eloquente, todo mundo vibra. Logo depois a Marilena Chauí, que é conhecidamente uma intelectual orgânica, ela pega o microfone, mal começa a falar e tem o corte. Essa cena da impossibilidade que mencionamos e que tem a ver com a “incomunicabilidade” que se dá na cena final com os jovens do Capão Redondo, parece parte desse dispositivo. No caso da Marilena Chauí isso se dá no corte cinematográfico, é uma decisão da montagem. Como se houvesse uma cisão entre esse passado das lutas de base em que os intelectuais estavam implicados diretamente e o tempo de hoje, em que parece haver um afastamento. Por exemplo, isso que o Fabio traz do ringue, a gente vê também na cena do coreto com o Valmir do Côco. No momento em que se cria aquele embate de classes, o Safatle sai do personagem e parece que o dispositivo se revela. O coreto é a materialização do ringue. O filme é permeado de sínteses do próprio filme, como metalinguagem. Não sei se vocês concordam. Mas é síntese não só da história e das questões nossas do presente, e desse papel do intelectual hoje, afastado das bases, como é também do próprio filme. Na cena do coreto é o único momento em que o dispositivo está dado. É o único momento em que a quarta parede desaparece. A gente vai para dentro do Teatro Oficina onde todo mundo está misturado. Lá é um grande corredor, então não tem essa quarta parede, no caso do cinema a gente tem a tela. Se vocês quiserem discorrer sobre isso. Jean-Claude: Me incomoda, Glaura, me incomoda muitíssimo, a palavra incomunicabilidade que você usou. A palavra incomunicabilidade, ela teve o seu momento áureo nos anos de 1950 e 60 e o papa da incomunicabilidade era o Antonioni. O filme não fala de incomunicabilidade, não tem incomunicabilidade em nenhum momento do filme, tem luta de classes. É isso que nós enfrentamos. Então, o Safatle se comunica, mas muito bem, quando ele está no meio dele. Os estudantes reagem muitíssimo favoravelmente a fala dele. E quando ele sai do público dele, ele não se comunica, mas não porque há incomunicabilidade e sim porque esses rapazes, de outra classe, não querem ouvir. Entende? Então não é incomunicabilidade. Na minha cabeça eu quis enfocar a luta de classe que é mascarada constantemente, inclusive por nós. Por nós mesmos. Inclusive eu acho que ele se diferencia do cinema brasileiro atual. Ele não é um filme paulistano. Eu detesto o cinema paulistano. #eagoraoque se destaca porque ele vai direto ao assunto. Eu acho que ele não tem máscara, pelo menos nós tentamos.


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Acho eu, [o filme] não diz meias palavras. A montagem é áspera, a montagem é dura. Não é uma montagem fluente intencionalmente. Esse nosso filme não tem entrelinhas. Pelo menos tentamos. Não sei se acertamos. Tentamos abordar aquele assunto, não todos os assuntos da sociedade, mas aquele assunto, não há meias palavras. O que eu gosto do filme é que ele é duro. Rubens: Em nenhum momento a gente se preocupou com essa questão da metalinguagem. Não era essa questão “explicitar o dispositivo”. A nossa questão era, a partir do momento em que nós tínhamos um roteiro aberto... Aí sim, as cenas como dispositivo... Os atores sabiam mais ou menos quais eram as questões e o que nos interessava era filmar o que saía daí... lógico que tinha uma direção... tinha um jogo, tinha uma conversa... mas os materiais interessantes que saíram da filmagem, a gente trabalhava na montagem. Na cena do Valmir do Côco, do Catita, com o Vladimir, que é interessante, a gente imaginava essa cena para finalizar o filme num dia de sol, mas caiu uma chuva torrencial e isso nos levou para o coreto, foi interessante. Hoje eu acho que foi uma dádiva. Tinha vezes que o Vladimir se calava. O Catita confrontava, confrontava, confrontava e o Vladimir se calava. E entre as filmagens o Vladimir falava coisas interessantes. Daí a gente falou para quem estava filmando: “pega o entre as filmagens para ver as minhas discussões com o Vladimir”. Não tinha uma pureza de quebra do contrato com o espectador. Para nós tudo que estava envolto às filmagens interessava. Independente se era Vladimir como personagem, Vladimir como Vladimir. Isso para nós não era importante. Se aparecêssemos, se o microfone aparecesse, se a outra câmera aparecesse. Contando que o material fílmico fosse interessante. Jean-Claude: Não houve nenhuma preocupação de metalinguagem ou revelar dispositivo. Acontece que o Rubens, dirigindo o Safatle, disse algo muito importante. Que o Safatle era contra a sua classe e não conseguia dizer. Não houve intenção de revelar dispositivo, mas de guardar essa fala do Rubens porque estava dentro da cena. Agora eu vou abordar a partir do Catita. Eu vi o filme que se chama Azougue Nazaré [Tiago Melo, 2018], não sei se na Paraíba ou Pernambuco, sei que adorei esse filme. Fiquei bastante marcado pelo Catita. Enquanto estávamos pensando o filme, de repente me veio isso, a imagem do Catita. Tive essa convicção de que o Catita deveria estar presente nesse filme e a questão era uma questão de corpo, porque esse filme fala também de corpo. E o Catita veio aqui para São Paulo por causa do corpo dele. Porque o corpo dele, que pesa cento e trinta quilos, com a pele negra, o jeito de abrir os braços, a expansão dele com o corpo branco do Safatle, todo amarrado, todo preso, entende? A luta de classes se transformava também pela luta de corpos. Então isso é uma coisa absolutamente fundamental. Fundamental, por exemplo, a maneira como a Carmem Silva fala na Ocupação 9 de Julho. E depois a Preta, um falar expansivo, a voz, o corpo fala e ela [Carmem Silva] desmaia no meio disso tudo. Há algo visceral. Enquanto o Safatle fala com o maior sucesso na universidade, ele é longilíneo. Como se não houvesse expansão do corpo dele. Então, a introdução do Catita veio muito disso, do Azougue. Em que de certa forma ele é mais expansivo no Azougue do que no Bacurau [Kleber


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Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019], mas o que eu estava procurando era isso, essa confrontação de corpos. Uma das coisas, acredito eu, que o Safatle não suportou lá no coreto é o corpo dele. Então, desde o início pensei na questão do corpo e das cores, das cores da pele. Fabio: Uma sequência do filme que para mim é extraordinária, eu acho um trecho fascinante, é quando Jean-Claude está numa espécie de cinema individual. Sozinho diante de uma projeção, ele se assiste numa palestra onde fala justamente de “longevidade” e de “reinvenção”. Neste momento, tanto o arquivo retomado e projetado é rebobinado, como também se atualiza o sentido da palavra pelo ato de fala desse que a repete já em outro momento. Duplo atualizar da “reinvenção”: no ato de fala e no ato de corpo. Como vemos, o gesto de corpo do personagem é conectado ao gesto revolucionário do próprio arquivo de maio de 68. Penso que nessa sequência, por exemplo, expõe-se uma política de articulação temporal que o filme executa ao longo de sua duração. No entanto, vou insistir um pouco mais que aos corpos não parece haver aliança possível. A roda de conversa que vemos ao final consumará isso. Especialmente a esse velho que o Jean-Claude encarna, as saídas para ele, exceto essa do gesto imagético, parece serem sempre saídas individuais (cortar-se, ir aprender a atirar sozinho etc.). Esse contraste me parece apontar que só haveria saída fora do cinema. Essa seria uma questão que eu colocaria de uma maneira mais aberta para vocês: a saída seria para fora do cinema? Ainda sobre a roda de conversa final, na montagem vocês produzem duas interrupções: primeiro, o personagem de Jean-Claude se cortando, e num segundo momento, o conflito de classe, ele e a sua empregada tomando café, até o limite do diálogo que é impossibilidade da imagem. Ele fala para a empregada “Vai...”, como quem diz: “Vai encarar?”. Essas duas interrupções me deixam em dúvida sobre o ponto de vista do filme. Entendo o diagnóstico do conflito de classes, mas são duas interrupções que parecem confirmar a impossibilidade de alianças dos corpos, muito diferente da aliança temporal que o filme executa muito bem. Rubens: Então, vou falar algumas coisas e provavelmente Jean-Claude vai falar outras, porque não existem respostas claras e respostas únicas para essas questões que você está levantando. Vou talvez mais colocar algumas premissas, algumas ideias que nortearam o projeto e que dialogam um pouco com isso, mas não são exatamente as respostas. De certo modo, a figura do Jean-Claude Bernardet e a figura do Vladimir Safatle, apesar de ter um começo em que elas entram muito em choque, o personagem do pai confrontando o filho e chamando ele para uma ação: “E aí, o que que você vai fazer? Vai continuar se escondendo através de jornal burguês e tal?”. A partir de um momento parece que cada um vai navegar nas suas águas próprias: o intelectual, o filho, tenta a sua aliança com as classes mais populares – que ele acredita ser possível – e que ele, de certo modo, vai tomar na cabeça um pouco (ou bastante). E o pai vai na sua busca pessoal um pouco sobre o que fazer também, porque para o pai tem uma questão não só de um impasse social, mas também de impasse existencial – de um certo fim da vida, de uma certa deterioração do corpo –, então tem algumas buscas


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aí do pai e que são buscas que apesar de serem pessoais, elas também remetem a uma certa ideia de ação, como a aula de tiro. A busca do pai pela aula de tiro dialoga muito com aquele movimento que você falou do pai indo jogar a bomba. Então, o pai não deixa de ser um pouco velho revolucionário e que ainda acredita numa certa ação armada como a solução dos problemas. Por outro lado também, tudo entra um pouco em choque, que tem uma certa ação contra o próprio corpo. E a gente achou que seria interessante colocar isso como um atrito com a cena final do Capão Redondo, do grande debate entre o Safatle e os jovens lá da periferia. A gente não queria um filme linear, didático: “isso significa isso”, “aquilo significa aquilo”. É um pouco como Jean-Claude falou no começo: existem pedaços de filme que a gente coloca em atrito um com outro, e que a gente quer que provoque reflexões, pensamentos, questões, até exasperação... “Caramba, mas o quê que...”. Então é um pouco o fim da trajetória do filho e o fim (dentro daquela ficção) da trajetória do pai... A gente achou que seria interessante colocar uma trajetória em atrito com outra e perceber que reflexões isso poderia levar para cada espectador. Eu acho que cada um pode construir os seus próprios questionamentos, suas próprias metáforas. E, na minha opinião, têm relações sim que se articulam, que nem você mesmo falou. Uma é até clara: você tem uma pessoa da classe média com uma pessoa de uma classe menos favorecida e tem tanto na cena de Jean-Claude com a diarista, como na do Safatle com os jovens da periferia, ambas têm atritos. Então um atrito alimenta o outro. Antes de passar a palavra para Jean-Claude, vou falar uma coisa com muito prazer, que você usou a palavra “extraordinária” para a cena do Jean-Claude assistindo aquelas imagens, porque eu tive que batalhar muito para mantê-la pois Jean-Claude queria tirar do filme. Ele falou: “Não, mas essa cena não tem mais a ver e tal...”, e eu defendo que essa cena é muito importante na economia geral do filme. Jean-Claude: Se não me engano você citou a aula de tiro como uma ação individual do personagem, mas para mim ela pode ser vista assim dentro de uma certa ficção, mas ela significa também que estamos vivendo numa sociedade do revólver. Então essa cena não pode ser vista sem pensar que o filme abre com tiros, que a retomada do Oficina é um tiro, e que portanto me parece que é muito difícil restringir a cena do tiro a um percurso individual do personagem. Acho que todos os elementos do filme têm essas várias abordagens possíveis. Inclusive a mutilação, o corte... O corte tem muito a ver com a Internacional. O personagem do pai não é mais capaz de cantar a Internacional. Ele desafina... ele está acabado, entende? E isso também é um filete, é o corte... você entende? Passou... Então, eu vejo tanto o corte quanto a Internacional desafinada... Quer dizer, está desafinada por um bom motivo. Eu sempre desafino... sou incapaz de cantar certo. Portanto, aí aproveitei e me soltei pra desafinar [riso do Rubens]. Mas estou dizendo isto no sentido de que as cenas, os diálogos etc., têm necessariamente diversas abordagens. Glaura: Só uma impressão que talvez vocês possam discorrer ou a gente passa para frente... Trata-se de um filme ao mesmo tempo muito musical, não é?


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Jean-Claude: Sim! Glaura: A música está muito presente, desde a gênese do filme quando vocês disseram que começou com essa história do Safatle tocar piano e que seu personagem seria um pianista. Embora o filme tenha sofrido modificações, como vocês nos relataram, não perdeu esse lastro da ideia original. E as músicas são o tempo inteiro. Ela vem à capela ou nas cenas com o piano... Aquele momento muito lindo em que a filha do Safatle canta, vocês criam uma reminiscência com a imagem de arquivo dela. As suas vestes são de quem acabou de sair da manifestação e já foi lá para acompanhar o pai; a construção da cena demonstra que não houve tempo de um preparo anterior, digamos, é a roupa da luta, o suor da rua, e daí temos a reminiscência com o arquivo, essa operação de montagem que é recorrente no filme... essa construção é muito interessante. Se vocês quiserem discorrer sobre isso... Rubens: E tem o rap final da Anarca, que a gente fez questão de terminar com ela como se fosse um sopro, uma respiração. Na verdade, lógico que pra gente essa questão musical foi naturalmente acontecendo, porque Vladimir era o personagem pianista, então isso ia estar... só que quando a gente chamou a Palomaris, a gente chamou uma atriz, mas não tínhamos noção de que ela era uma cantora também. Jean-Claude: É... não sabíamos. Rubens: Não sabíamos... Então ela também trouxe isso. E daí no meio do processo Vladimir quis trazer a filha que era uma cantora. E daí tem os rappers do Capão... então, isso foi naturalmente entrando no filme. Fabio: Penso que há uma inegável força nas imagens de arquivo retomadas pelo filme – seja as dos protestos, em ato, ou mesmo as das palestras/entrevistas do próprio Safatle. São imagens impregnadas de energia de luta que, enquanto brechas por onde o real atravessa o filme, produzem uma vibração e um redimensionamento muito importante da questão ali encenada, para não dizer contagioso... No entanto, se elas emitem uma grande energia, parecem, quando a narrativa prossegue, serem novamente emparedadas e a energia dispersada. Acho que essa é uma tônica do filme: a confrontação e a contradição assumem a boca de cena. No limite, isso parece nutrir um pacto com a realidade interessante: a realidade, a tirar pelos arquivos retomados, se mostra potencialmente mais revolucionária que o próprio filme. Afinal de contas, ou a revolução no filme é abstrata a tal ponto que as pequenas ações não se vertem em centelhas, ou “é nois por nois”, ou ainda mesmo a organização comunitária (o banco Sampaio) logo é desacreditada por esse protagonista. Poderiam comentar essa relação com os arquivos, em relação a esse comentário inicial – como eles interferem na modulação, expõem o real como mais potencialmente revolucionário e precipitam a própria bolha do filme –, e objetivamente, sobre a pesquisa e o uso deles. Penso que poucas vezes a pesquisa de arquivos se dá de modo linear, mas gostaria de escutar como foi o processo no #eagoraoque.


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Jean-Claude: Eu vou responder de uma maneira muito pessoal. Eu sou fascinado por arquivos. Eu, na minha vida, filmei muito pouco... Como diretor, muito pouco. Talvez alguns planos soltos. O filme que eu fiz São Paulo - Sinfonia e Cacofonia [1994] é inteiramente de arquivo. Havia dois filmes em produção naquele momento, um que foi feito pelo Aloysio Raulino que foi filmado em grande parte; quando com o João Batista de Andrade eu fiz A Eterna Esperança [1971] é material de arquivo. O Sobre Anos 60 [2000] eu fui obrigado a filmar umas coisas, umas obras que não achamos nos arquivos, mas é tudo... Bom, então estou absolutamente ligado a isso. Quando escrevi o livro sobre a Guerra Camponesa no Contestado eu fiz só com coisas que encontrei na imprensa. E a questão então, aí que é pessoal, é que eu só me vejo através dos outros. Eu me construo através dos outros. Isso para mim é absolutamente básico. Eu sozinho, indivíduo, não sou nada, sou um vazio... Entende? A minha própria subjetividade é construída através dos outros. De forma que esse filme é feito em conjunto, são dois diretores, mas claro que a minha sensibilidade voltada para o arquivo está atuando a tal ponto que é através do arquivo que eu sinto que o Safatle me constrói, entende? Quer dizer, o Safatle é a crítica de mim mesmo. Mais ou menos em todo filme que eu encontro um lado, mesmo feito em conjunto, aquele A Eterna Esperança com João Batista de Andrade... Eu só existo através do outro. Rubens: Bom, eu e Jean-Claude nos conhecemos há muito tempo. Eu fui aluno dele, depois fui orientando, depois fomos colegas, depois fomos coautores, é uma relação muito longa... Então temos muitas afinidades. E essa questão do arquivo também é uma fascinação. Os dois últimos filmes documentais que eu fiz, o Esperando Telê [2010] e o Intervenção [Intervenção – Amor não quer dizer Grande Coisa, 2017], eram só imagens de depoimentos do youtube, de pessoas de extrema-direita. De certo modo eu também acho que dá pra você construir uma visão muito interessante do contemporâneo através dessas [imagens]... Ainda mais hoje em dia com esse mundo que é o youtube. É um oceano difícil de encontrar as coisas pelo excesso. Então, desde o início do projeto para mim e para o Jean-Claude era claro que era um filme de fragmentos, que misturavam cenas construídas por nós, com cenas de arquivo, e que era um diálogo entre cenas que iria construir as questões, que iria fazer emergir a questões. A gente tinha uma pessoa que trabalhava junto conosco, nossa assistente de direção, a Emily [Hozokawa], que é muita boa nas buscas, então ela nos ajudou bastante. Mas há todo momento a gente acessava que em algum lugar havia alguma fala de alguém que pudesse dialogar de uma maneira interessante com as cenas que a gente ia construindo. Então as imagens de arquivo foram fundantes desde o início do processo. Glaura: Eu gostaria de fazer uma observação em relação aos arquivos. O surgimento quase no meio do filme da presença do Boulos cuja trajetória é curiosa, sobretudo em relação ao filme. Ele também é um uspiano, mas abandona essa trajetória do intelectual acadêmico e vai se misturar aos movimentos de base, que é a luta por moradia. Então, é bonita essa homenagem que está no coração do filme, está bem quase ao centro, junto a outra ativista, a Carmem, na cena em que ela, sob forte emoção, desmaia. Eu acho que


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vocês criaram também essa tensão entre isso que nos disseram em relação às cenas construídas para o filme e essa força das imagens vinda dos arquivos. Rubens: Essa imagem do Boulos é curiosa. Quem trouxe foi o nosso montador, o Gustavo Aranda, que é um Jornalista Livre. Ele também tem as suas próprias imagens de arquivo. Daí na montagem ele achou que depois da Carmen [Silva], essa sim era uma imagem que a gente tinha que incluir, ele achou que seria interessante. Então isso foi uma invenção que ele trouxe, a gente adorou. A gente gosta muito daquela mulher que fala: “eu tava lá!”. Entra em off uma mulher quando ele fala “porque aqui, há 9 anos”, uma mulher diz: “eu tava lá!”. E você sabe que teve um momento em que a gente – olha só que loucura, como são as coisas –, a gente estava em dúvida se mantinha ou não essa imagem porque o Boulos é candidato aqui a prefeito de São Paulo. A gente não queria que o filme soasse partidário ou fazendo uma elegia de um candidato da esquerda, mas depois a gente pensou que, como essa imagem a gente escolheu muito antes dele ser candidato e a candidatura passará, o filme continua. Jean-Claude: E também como a gente eliminava a identificação das pessoas, dos políticos, então tivemos essa dúvida. Rubens: Mas realmente, eu adoro também essa cena do Boulos. É um momento em que eu acho que é uma conexão forte porque vem numa sequência: vem a Carmen, com aquela fala forte e inflamada dela, que foi no dia da vitória do Bolsonaro, daí segue para o Boulous, daí volta pra Carmen que desmaia. Jean-Claude: Não é só no dia. Ela desmaia no momento em que alguém lhe diz: “ele ganhou”. Rubens: Exatamente. Jean-Claude: Daí imediatamente ela desmaia. Inclusive em algum momento eu até pensei: “a extrema-direita venceu”, que era um letreiro, se lembra disso? No momento em que ela desmaia, o montador tinha escrito em vermelho: “A extrema-direita venceu”. Isso foi eliminado, você não lembra disso? Rubens: Sim, sim.. eu me lembro. Jean-Claude: Então acabamos optando por uma não explicação, mas pela visceralidade do acontecimento. Você entende? A violência em si do acontecimento sem uma explicação. Rubens: Daí, desse desmaio dela, a Preta [Ferreira] pega o microfone: “Não, vamos continuar! Vamos continuar!”... E chama um grito de ordem, daí corta e vai para o sarau, que é o momento que se inicia um pouco uma sublevação do intelectual contra seus


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pares. Então, pra gente aquele é um momento muito importante do filme. E, musicalmente, a gente gosta muito como entra o sarau, a personagem cantando... Glaura: Só uma curiosidade ainda em relação a essa questão do arquivo. Nas cenas gravadas também há variação de câmera... Como é recorrente, isso joga também com a questão do arquivo no ato de gravar, sabe? Porque muda a imagem. Vocês gostariam de encerrar falando um pouco sobre isso? Rubens: Sim, acho que isso é interessante porque a gente sempre filmava com duas, às vezes com três câmeras, câmeras diferentes... E a gente optou em não fazer uma equalização [da cor da imagem]... porque isso é muito comum no processo de finalização do filme quando vai para masterizar a imagem, tenta-se igualar ao máximo para o espectador, para dar a ilusão da continuidade, para não dar aquele salto entre um corte e outro. Desde o início era uma coisa que eu e Jean-Claude não queríamos, a gente queria exatamente isso que você falou. Eu acho até bonito isso que você cunhou, é quase como se a gente tivesse criando arquivos em tempo real, porque é um pouco um documento do processo de filmagem, foi filmado com diferentes câmeras, cada câmera tem a sua cara, a sua forma de captação e são imagens diferentes num mesmo contexto. A gente não quis fazer um filme redondinho [Jean-Claude concorda], a gente quis fazer um filme que fosse fiel ao seu processo de filmagem. *** A entrevista se encerra num diálogo entre Jean-Claude Bernardet e Rubens Rewald compartilhando entre si algumas dúvidas mais pontuais sobre o filme. Nessa breve conversa que se seguiu, eles ressaltam que o filme foi fruto do empenho de todas e todos que participaram do processo, demarcam também que se trata de um longa-metragem de baixíssimo orçamento, feito com recursos advindo dos próprios salários, e finalmente comentam de um próximo projeto, ainda em estágio embrionário, mas que deverá seguir a atitude, já presente em #eagoraoque, de não abordar os assuntos nas entrelinhas.


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Marcar memórias: demarcar telas: recuperar terras: salvaguardar vidas >>> O índio cor de rosa contra a fera invisível: a peleja de Noel Nutels (Tiago Carvalho, 2020) e Yaõkwa - Imagem e memória (Vincent Carelli e Rita Carelli, 2020) renata otto1 ruben caixeta de queiroz

Num contexto tão generalizado de resistência à memória, como o brasileiro, é preciso ainda um grande esforço de montagem para tirar as imagens dos arquivos e colocá-las em circulação. (Anita Leandro)

Pensemos no instantâneo fotográfico: é o corte e a captura de uma coisa num determinado espaço ou lugar. E o plano cinematográfico, é o corte também de uma coisa na sua duração e num determinado espaço. Todo instantâneo fotográfico é o congelamento e suspensão de um momento vivo-vivido, todo plano cinematográfico, montado, é o apagamento daquele plano que o antecedeu e o anúncio daquele que virá. Tanto na captação da imagem quanto na montagem há um ato, inconsciente ou não, de preservar e, ao mesmo tempo, de projetar/prolongar no/para o porvir o momento do presente. O que o espectador vê ou percebe dessas imagens? De diferentes formas esta resposta poderia ser dada, mas fiquemos com o “rastro do real” de André Bazin ou os “riscos do real” de Jean-Louis Comolli. Imaginemos o cinema e a fotografia para pensar o “fato ou o registro histórico”, numa perspectiva mais ampla, apenas para dizer que aquilo que vemos hoje do passado é um rastro, um vestígio, a partir do presente, e vice-versa, o passado é “reenquadrado” a partir do presente. De forma semelhante, 1. Renata Otto é mestre em antropologia social pelo Museu Nacional/UFRJ e doutoranda pelo PPGAS da Universidade de Brasília. Foi técnica em antropologia da FUNAI entre 2009 e 2014, onde atuou nas coordenações de delimitação e demarcação de terras; e proteção aos índios isolados e recém contatados. Co-dirigiu com Isael Maxakali e Sueli Maxakali o filme Quando os Yãmiy vêm dançar conosco (2012). Ruben Caixeta de Queiroz é professor de antropologia da UFMG, pesquisa junto aos povos Karib desde 1994. Pesquisador 2 do CNPq.


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quando olhamos para um povo ou uma cultura diferente do nosso e da nossa, o que vemos lá é sempre algo que carregamos do que vemos aqui, ou é uma certa “imagem” de nós mesmos que projetamos no outro: daí, chegamos numa formulação do tipo, se toda “imagem é sempre uma imagem do outro” (Comolli), toda imagem é sempre uma imagem “distorcida”, “desfocada” (ainda que o aparelho técnico tivesse sido mobilizado para “focar” e “purificar”). História e Antropologia se encontram, nesta perspectiva (pelo menos naquela de inspiração à la Roy Wagner, Marilyn Strathern e Viveiros de Castro), numa proposta de “invenção do real”, ou “ficção persuasiva” ou “equivocação controlada”. Pensemos no recorte histórico, de onde partir para chegar no tempo presente, já que este sempre é parte de um passado? E olhando o passado, o que reconhecemos do tempo atual lá já em gestação ou evidência? São apenas algumas questões necessárias para começar a pensar esta relação entre memória e imagem. O passado sempre pode ser vivido como pesadelo (a ser evitado, e para isso deve ser explicitado e mostrado – fato que não foi feito de forma condizente, por exemplo, para a ditadura no Brasil de 1964 a 1986) ou como nostalgia, que é o desejo de voltar a um tempo, a um lugar ou a uma forma de existência que se deixou de ter. As imagens, miraculosamente, podem funcionar como mediação à volta ao passado, para medir o quanto dele nos apartamos, e, assim, vislumbrar para onde queremos ir ou estar! Não podemos voltar no passado na vida real (só na ficção), mas podemos ver as imagens do passado e nos situar no presente e no futuro que queremos. Ou seja, a utopia como antítese da nostalgia! Mas o que fazer do passado e das imagens quando vivemos plenamente tempos distópicos – sem a possibilidade de imaginar o futuro? Formulemos melhor, por meio de perguntas, o que nos faz pensar no cinema e alguns filmes em particular. Por que voltar no passado? Por que colocar fotografia e filmes de arquivo para remontagens e colocá-los novamente em circulação? Por que tirá-los das prateleiras empoeiradas dos acervos e arquivos de museus? O que têm a falar sobre o presente e o futuro? Ou a imagem pertence sempre ao passado? Enfim, por que devolver as imagens para as pessoas filmadas no passado e atiçá-las a pensar o tempo presente e o futuro? Haverá futuro com as imagens do passado? Qual? Haverá continuidade do mundo, com o cinema? As cinematografias (e imagens do passado feitas pelo cinema) poderão ser “restauradas” (em parte) ou serão depositadas e enlatadas nas prateleiras das cinematecas e museus (até mesmos de acervos particulares) até que tudo isso seja consumido por processos “naturais” de reações e metamorfoses do tipo físico-química-biológica (pensemos nos fungos, capazes de consumir até as supostas e equívocas ideias da eternidade das imagens numéricas) ou processos “sociais” movidos por algum mentecapto ou aspirante a fascista que decide “fechar” as cinematecas e os acervos de imagens (por puro delírio, de achar que aquilo é uma espécie de mofo comunista ou antinacionalista) ou deixá-los à míngua por falta de dotação “orçamentária” até que sejam literalmente consumidos pelo fogo? Tais questões nos guiam neste ensaio acerca de dois filmes que tratam de imagens de acervo e da sua devolução para o mundo de onde vieram. Num caso, para a sociedade brasileira de uma forma mais ampla; no outro, para uma comunidade indígena particular situada na Amazônia ocidental. No primeiro caso, estamos falando do filme


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O índio cor de rosa contra a fera invisível: a peleja de Noel Nutels (2019, 70 min), dirigido por Tiago Carvalho e montado por Claudio Tammela, que revisita e remonta o passado de um médico e indigenista em ação antes e durante a ditadura militar no Brasil; no segundo caso, falamos de Yaõkwa: Imagem e Memória (2019, 21 min), dirigido por Vincent Carelli e Rita Carelli, que “devolve” hoje ao povo Enawene-nawê as imagens deles tomadas nos início dos anos 1990.

O índio cor de rosa

O filme começa pelas fotografias e alguns extratos de filmes antigos em PB (de imagens da vida na infância, passando por cenas de navio e trem, do trabalho ladeado por índios e figuras emblemáticas do indigenismo brasileiro, como Orlando Villas-Bôas e Marechal Rondon), acompanhados da música “O trem do samba” de Armando Pittigliani e interpretada pelos “Reis do batuque”, da família de Noel Nutels: um judeu nascido na Ucrânia (ex-União Soviética) que veio, fugindo da guerra com sua mãe ainda criança, para encontrar o pai que teria partido primeiro em busca da “América do Sul” e que conseguira se instalar num pequeno povoado em Alagoas. Na juventude, Nutels foi estudar no Recife (PE), onde se formou médico e sanitarista.2 Esta sequência termina com uma foto do personagem, muito branco, sem camisa, apenas de short e charuto na boca, acotovelado por um grupo de índios (todos homens), provavelmente pintados de urucum, bastante fortes e esbeltos. Corte para duas cartelas de texto escrito, nas quais é apresentado: 1.

Entre as décadas de 1940 e 1970, o médico sanitarista Noel Nutels percorreu o interior do Brasil atendendo populações indígenas, sertanejas e ribeirinhas. Noel documentou muitas dessas expedições em filmes 16 mm.

2.

Em 1968, Noel foi convidado a falar sobre a questão indígena à CPI do índio. A gravação deste depoimento é o único registro que restou de sua voz.

Depois destas cartelas, vemos um avião da Força Área Brasileira (FAB) decolar (o mesmo avião usado por Nutels, provavelmente). Em primeiro plano sonoro, ouvimos o motor da aeronave, do alto, viajamos em direção ao interior do país, primeiro sobre 2. Segundo informação disponível no site (ver terceira referência, no final), foi em 1943 que a carreira do médicosanitarista tomou o rumo pelo qual seria conhecido. “Nutels ingressou na Fundação Brasil Central (FBC), criada pelo governo Getúlio Vargas para desbravar as regiões do Alto Xingu e Alto Araguaia, no movimento que ficou conhecido como “marcha para o oeste”. Por meio da Fundação, participou - junto ao Marechal Cândido Rondon e aos irmãos Cláudio, Leonardo e Orlando Villas-Bôas - da Expedição Roncador-Xingu. A partir dessa expedição se tornou um grande defensor da preservação do patrimônio físico e cultural das populações indígenas, que ele descrevia poeticamente como ‘criaturas da natureza em harmonia com o cenário; com o mato, com o rio, com as borboletas que ali voejam, com os pássaros pousados nas árvores, com o céu azul’. Baseado nessa experiência, Nutels idealizou e dirigiu, em 1956, dentro do Ministério da Saúde, o Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas (SUSA), que foi responsável por fazer levantamentos cadastrais, testes de tuberculose, vacinas, procedimentos odontológicos e programas de conscientização sobre saúde para as populações isoladas no interior do Brasil, inclusive na floresta amazônica. Entre 1963 e 1964, ele ainda acumulou a direção do Serviço de Proteção do Índio (precursor da atual Fundação Nacional do Índio - FUNAI)”.


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o cerrado e depois sobre a floresta amazônica. Ouvimos, pela primeira vez, a voz de Nutels, seu depoimento à CPI do Índio de 1968.3 Pausa para comentar o uso da paisagem sonora no filme, a voz do personagem. Este registro de áudio é que conduz a narrativa, é ele que guia a imagem e a montagem. Através do diretor, Tiago Carvalho, colhemos três informações (que o filme não oferece) importantes para o entendimento do processo de realização: a primeira é que este depoimento, cerca de duas horas de fala contínua e num só dia do ano de 1968, é a única fala de Nutels usada ao longo de todo o filme, com exceção de uma breve declamação que ele faz do poema “Trem de Alagoas” de Ascenso Ferreira; a segunda é que o depoimento foi picotado, e sua inserção no filme não obedece (exceto o seu início e final) a mesma ordem na qual ele foi pronunciado; por fim, a fala de Nutels foi o primeiro material com o qual a equipe de montagem se deparou para organizar o filme. Depois de ouvi-lo, as imagens foram sendo associadas ao discurso, dispostas de forma a construir a narrativa e a continuidade do filme – procedimento não inédito, mas raro nas obras montadas a partir de registros de arquivo. Por que e para quem Nutels filmava? Não era para fazer “cinema”, mas se era por curiosidade e vontade de “registrar” o mundo vivido e visto no qual se inseria (como numa fotografia de “nossa” trajetória), era fundamentalmente como ferramenta e instrumento para divulgar seu trabalho e convencer as “autoridades” públicas (num arco de aliança diverso, envolvendo os profissionais da saúde e o meio militar – ele precisava dos aviões da FAB para montar e fazer operar o Setor de Unidades Sanitárias Aéreas!) a financiar e apoiar o seu projeto. Mais do que isso, o filme era, para Nutels, uma arma que usava para denunciar o genocídio indígena, ou, da forma que gostava de nomear, um verdadeiro massacre em curso no país contra os povos indígenas, iniciado no período da invasão pelos europeus nas Américas. Como médico, ele estava numa posição de autoridade para fazer essa denúncia, pois, como o ouvimos falar no filme, desde o tempo dos jesuítas como Anchieta e Nóbrega, as pessoas doentes e infectadas de vírus fugiam do frio europeu e vinham buscar o calor do novo mundo como forma de tratamento. Aqui, as epidemias (como sarampo, varíola ou tuberculose) vindas do velho continente levaram a desgraça para os povos indígenas, matando milhões! Noel Nutels queria mostrar para os “donos do poder” essa realidade e o “interior” do país através das imagens. Voltaremos a esse ponto. Noel Nutels filmava em 16mm, sem registro de som! Então, como lidar com a montagem deste tipo de acervo fílmico hoje, nos parece uma decisão crucial! De posse do som, procurar as imagens! Onde elas estavam? Na Cinemateca Brasileira – mas aqui, o acesso foi tão dificultado, que logo a equipe deixou essa opção de fora! Na Casa de Oswaldo Cruz, um braço da Fundação Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro que

3. O contexto desta Comissão Parlamentar de Inquérito é muito importante para a melhor compreensão do filme O índio cor de rosa. Não podemos confundi-la com a Comissão de Inquérito Administrativo, criada no âmbito do Ministério do Interior, que funcionou no mesmo período e teve mais ou mesmo os mesmos objetivos (verificar o esbulho das terras indígenas) da CPI e que culminou com o famoso Relatório Figueiredo - reconhecido e tornado público somente em 2013. O depoimento de Nutels de que trata no filme se refere à primeira comissão, e não tem qualquer menção à segunda.


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abriga um importante acervo fílmico sobre a história da saúde pública e das ciências biomédicas no Brasil. E, diretamente com os familiares de Noel, em particular com sua filha Bertha Nutels. Escavando estes arquivos, a equipe pôde encontrar parte inédita e imprescindível do material filmado por Noel, em meio a uma outra quantidade já deteriorada e irrecuperável. Como juntar isso tudo com o registro sonoro, o depoimento do personagem na CPI de 1968? Evidentemente, foi experimentando na sala de montagem! Houve um momento no qual imagens novas, fora do acervo, foram produzidas: entrevistas longas com os parentes e amigos de Noel, por exemplo, com a própria filha, Bertha, o piloto de avião dos tempos de Noel (Paulo Mello Bastos, que faleceu em 2018), o filho de Orlando Villas-Bôas (Noel Villas-Bôas); entrevistas e registros de imagens com os índios Guarani-Kaiowá, na tekoha Nhanderu Marangatu, situada no município de Antônio João, Mato Grosso do Sul. Nada deste material, no entanto, foi usado n’O índio cor de rosa. A equipe do filme resolveu se concentrar somente nas imagens filmadas por Noel, com algumas inserções de trechos de filmes feitos por cinegrafistas da missão de Cândido Rondon, como Major Luiz Thomaz Reis e Heinz Forthmann, ou de Humberto Mauro, notadamente a ficção O descobrimento do Brasil de 1937. Estes trechos de outros filmes foram usados, do nosso ponto de vista, apenas para dar a ver ao espectador que cineastas contemporâneos de Nutels estavam simultaneamente registrando as sociedades indígenas no Brasil ou construindo uma imagem do Brasil, em particular sobre a invasão europeia no continente americano. Mais do que isso, tal “acervo” de filmes foi mobilizado para agregar significado ao discurso de Nutels em seu depoimento para a CPI. Há um trabalho que não foi citado explicitamente n’O índio cor de rosa, mas com o qual guarda uma relação umbilical: é o filme de Hermano Penna, Índios, memória de uma CPI, finalizado somente em 1998. Este registro documentou a Comissão Parlamentar de Inquérito, realizada pela Câmara dos Deputados em 1968, âmbito no qual Noel Nutels faz o depoimento, base primeira de realização d’O índio cor de rosa. Neste filme, as imagens montadas, na quase totalidade, foram aquelas captadas, sem som, pelo próprio Nutels. Para além do áudio – o fio condutor – do depoimento, a realização do filme quis usar de uma paisagem sonora para cobrir aquelas imagens mudas. Primeiro, conforme o próprio diretor nos diz, tinha sido cogitado reconstituir para cada imagem o campo sonoro que lhe seria correspondente. Isto pareceu aos realizadores uma tarefa ingrata, monumental e supérflua, na medida em que a montagem prosseguia. Até que optaram por usar predominantemente uma trilha sonora musical composta por autores da época que pudesse agregar uma experiência sensível às imagens do filme, por exemplo, por meio de extratos de músicas como “Alvorada” de Carlos Gomes, “Prelúdios” de Bach e Chopin, “Saudades do Brasil” de Jobim, além do concretismo de Guilherme Vaz.4 Desta forma, poderíamos alegar, justamente, que a paisagem musical d’O Índio cor de rosa é externa ao contexto indígena (ou que o filme não dá palavra ao indígena – fato 4. Este músico, compositor e maestro, crítico das influencias europeias na arte brasileira, fez pesquisas com os sertanejos no Centro-Oeste e as populações indígenas no Norte do país, além de ter introduzido a música concreta no cinema brasileiro em obras como Fome de amor (1968) de Nelson Pereira dos Santos, O anjo nasceu (1969) de Júlio Bressane.


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evitado, por exemplo, num filme sobre Noel Nutels, de 1975, de Altberg!). Além disso, as imagens de cada um dos povos que aparecem no filme podem oferecer ao espectador a impressão de uma miscelânea, sem a devida contextualização cultural e linguística, ou seja, contribuir com a criação de uma “imagem” genérica do índio (fato que, na verdade, aparece na fala do próprio Nutels, e de boa parte dos indigenistas da época). Talvez, antecipando esta crítica, os produtores d’O índio cor de rosa fossem buscar auxílio numa pesquisa antropológica de som e imagem, a cargo de Julia Franceschini, visando colar, por exemplo, sons e falas atuais dos povos Xavante ou Kuikuro quando referenciados nas imagens. Porém, evidentemente, essa “fala” atual não guarda qualquer conexão direta com as imagens antigas. Esta seria uma confissão dos realizadores de que, em última instância, o índice (bem escolhido) pudesse de fato nos levar de forma mais convincente ao real? De qualquer forma, o que temos a dizer sobre o uso do campo sonoro n’O índio cor de rosa é o seguinte: 1) achamos, de fato, que sua composição é extremamente rica, que cria uma continuidade narrativa e sensível imprescindível à fruição do filme; 2) o importante a seguir, a ouvir, e a refletir sobre, é exatamente o depoimento do personagem principal do filme. Ou seja, compor o filme com a “visão” de Nutels (sobre os índios, o Brasil, a saúde pública) por meio do seu pensamento e das imagens feitas por ele, é o maior desafio da montagem. Mais do que isso, não se contentar em somente colocar em circulação as imagens e as palavras tomadas e dadas pelo personagem, mas criar uma narrativa cinematográfica potente do ponto de vista estético e político. Vejamos dois exemplos. Há uma longa sequência que começa logo depois da fala de Nutels sobre o fato de que “a cobiça, a voracidade e ambição continuam matando índios” – ele relembra inclusive a passagem de Lévi-Strauss nos “Tristes Trópicos” sobre as roupas infestadas de vírus da varíola que foram distribuídas entre os índios para matá-los -, vemos imagens dos índios nadando num rio caudaloso (o rio Negro, noroeste amazônico), dos núcleos missionários salesianos, de uma roda de indígenas numa dança orquestrada por uma religiosa vestida de branco da cabeça aos pés, tudo seguido pelo comentário de Nutels sobre a morte cultural (induzida consciente e inconsciente) pela catequese cristã. Mas logo em seguida, vemos uma imagem dos índios no rio, remando, felizes e sorridentes, como se quisessem ou dissessem que estão saindo e fugindo da conversão religiosa, e regressando ao mundo da floresta e da aldeia. A seguir, vemos uma cena de uma linda cachoeira, um índio totalmente nu nadando no rio, uma mulher índia saindo do rio com um balde de água na cabeça e uma criança dependurada na cintura, uma segunda mulher carregando uma panela de barro na cabeça (contendo água, provavelmente) e em direção às casas de palha da aldeia no meio da floresta. Os índios e as índias voltam ao seu mundo e lugar (longe das missões e do mundo branco), de onde nunca deveriam ter saído.5 É o que pensamos, ou desejamos!

5. Numa conversa com o diretor, Tiago Carvalho, ele nos disse que a montagem do filme teve início exatamente a partir desta sequência!


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Numa segunda sequência, Nutels fala da criação do Parque do Xingu em 1961 (um projeto no qual esteve envolvido, junto com Darcy Ribeiro, Eduardo Galvão, os Irmão Villas-Bôas): Há uma solução, provisória, para manter os índios vivos, é a solução do Parque. Participei daquele grupo que criou o Parque do Xingu. Nós pensávamos em criar um Parque Nacional como um meio de levar ao índio aquelas leis que protegem os animais, porque a matança de índios no Brasil é um fenômeno que vem se processando desde a época do descobrimento. Direi, há quem diga que o Parque do Xingu é um jardim zoológico de gente. Não é verdade, mas se fosse, mesmo assim ainda valeria à pena. No Parque do Xingu, que é a primeira grande experiência no processo novo de defesa de populações indígenas, ninguém quer civilizar ninguém, ninguém quer impor a ninguém uma cultura, uma religião, coisa nenhuma! O que se quer é que o índio viva a sua vida, é que o índio viva, viva, fique vivo!

Que o índio viva, não para ser “civilizado”, mas para que possa “civilizar” o ocidental, o que ele vem tentando fazer desde que o europeu chegou no continente americano, e que nunca conseguiu, até hoje, diria Nutels noutro momento do filme. Numa palavra, ao contrário do que muitos maliciosamente dizem, a criação do Parque do Xingu e a demarcação de terras indígenas não foram pensadas (é isso que Nutels nos antecipa, e esclarece) para manter o índio fechado e sem transformação alguma, é para dar a ele o tempo de viver a sua vida do seu jeito, ter autonomia para decidir o seu futuro, e, ao mesmo tempo, protegê-lo contra a cobiça, a ganância e a destruição violenta e rápida da máquina colonizadora. Sim, valeu a pena, Nutels e amigos indigenistas, a criação do Parque do Xingu – hoje, olhando do alto, podemos ver os limites da terra indígena, no interior a floresta protegida junto com as pessoas indígenas, suas casas e o seu mundo, do lado de fora, só fazendas de gado e campos de soja. A franja de floresta é área indígena no Mato Grosso, o resto é uma grande pastagem ou campos abertos, onde só vivem o gado e a soja. Valeu sua peleja, Noel! Ela continua necessária! O índio cor de rosa contra a fera invisível: a peleja de Noel Nutels,6 o título do filme é um comentário sobre essa luta contra as epidemias que gracejavam (e ainda gracejam) com rapidez entre os povos indígenas, camponeses e ribeirinhos. Mas essa luta era também indissociável da denúncia de um poder econômico e político que levava, tal qual as doenças, a morte para essa gente! O filme é um convite a revisitarmos o período crucial da história do Brasil, da

6. À primeira vista, este título enigmático poderia ser creditado a uma citação da obra de Glauber Rocha: “O dragão da maldade contra o santo guerreiro”. Mas Tiago Carvalho disse que não estava com essa ideia na cabeça, e explica numa entrevista ao Portal da FIOCRUZ (ver segunda referência, no final): “O título O índio cor de rosa contra a fera invisível reúne duas referências: ‘Índio cor de rosa’ é o apelido carinhoso que amigos davam a Noel Nutels e foi o título do romance biográfico que o Orígenes Lessa escreveu. A ‘fera invisível’ vem do título de um folheto de cordel escrito por João José da Silva a pedido de Noel e que era cantado nas ações de combate à tuberculose realizadas pela equipe do SUSA (Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas) no Nordeste, ‘A fera invisível ou o caso de uma trapezista que sofria do pulmão’. É como vimos o Noel: lutador inesperado, misturado aos índios, brigando contra a fera da cobiça e do desrespeito à vida – a mesma que anda hoje à solta arreganhando os dentes para nós”.


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política indigenista e do massacre promovido contra os índios. Ele nos devolve essa consciência, nos faz mover, repensar, transformar o nosso jeito e “trato” com os povos indígenas. Nesse sentido, podemos dizer que O índio cor de rosa se insere nesse tipo de cinema destinado, por um lado, a recontar a história da colonização dos indígenas pelos brasileiros e ocidentais (bandeirantes, militares, missionários, funcionários do Estado, fazendeiros e ruralistas), tomando suas terras, confinando-os em pequenas áreas ou missões religiosas, e, por outro lado, a mobilizar forças para junto com os índios tentar suspender o fim do mundo, tentar construir uma sociedade que respeite seu modo de vida e de existência física e espiritual. Vejamos. Numa conversa conduzida por Amaranta César, André Brasil, Anita Leandro e Cláudia Mesquita, denominada “Nomear o genocídio”, sobre Martírio (2016), com Vincent Carelli. Os autores dizem que esse filme procura “narrar, explicar e intervir, negando-se a colocar o cinema adiante do combate que encampa, oferecendo-se, ao contrário, antes de tudo, como ferramenta para a luta dos índios”. Essa é a peleja de Martírio.7 Neste filme, há uma sequência, logo antes dos seus primeiros 30 minutos, na qual o então Procurador da República, em 1994, Aristides Junqueira, visita um território (Sete Cerros) retomado pelos Kaiowá no Mato Grosso do Sul. Ali, ele ouve atentamente o lamento dos indígenas! Uma senhora, mais velha, chora e fala: “Nós estamos pedindo para essas crianças que estão crescendo. Queremos pelo menos um pedacinho de terra. Sete Cerros sempre foi nosso. Tínhamos muitos animais, perdemos tudo. Tínhamos muitos cavalos, galinhas, cachorros, casas, casas de reza. Perdemos tudo por causa dos fazendeiros [...]”. Outra mulher mais jovem, também expressa sua tristeza: “Acabaram com nossa casa, nossa lavoura. Só nos salvamos porque atravessamos o rio, para o lado do Paraguai. Já chegaram tocando fogo nas casas. Nem que a gente coma uma, duas, trinta vacas deles, eles não pagam o nosso prejuízo. Eles cometeram grave erro contra nós. Se a terra não fosse nossa, não estaríamos chorando por ela”. Consternado, antes de ir embora, o Procurador responde: “Eu saio daqui com uma certeza, nesta redondeza aqui pelo menos, senão no Brasil inteiro, o preconceito nosso é muito grande. Eu saio daqui muito triste, mas com muita indignação também, sabe? Porque aqui, pelo que eu estou vendo, uma vaca nelore vale mais do que vinte crianças, do que cem homens. E isso me dá uma tristeza muito grande, sabe? E era preciso que os juízes viessem aqui, e sentissem isso também, vissem a realidade das coisas que julgam [...]. Demarcada a área está, não entendo porque os senhores não possam entrar. Deve ser por isso que falei: uma cabeça de gado vale mais que gente”. A montagem de Martírio visa criar no espectador um efeito semelhante àquele que visava Nutels com os seus filmes ou filmagens: sensibilizá-lo para o drama, o genocídio, o massacre em curso contra os povos indígenas. Nada mais coerente que a montagem 7. Fora o fato de que ambos trabalhem com materiais de arquivo, os filmes Martírio e O índio cor de rosa guardam muitas diferenças entre si, ainda que o tema do “genocídio” ou do “massacre histórico dos povos indígenas”, como gostava de dizer Nutels, possa novamente conectá-los. Há ainda uma associação do filme Martírio com o contexto de realização de obras sobre campos de concentração ou de extermínio ou prisões em ditaduras militares, como fazem Claude Lanzmann (para o contexto alemão), de Rith Panh (para o contexto cambojano) e Anita Leandro (para o contexto da ditadura militar no Brasil). Aliás, a própria Anita Leandro propõe essa associação nos seguintes trabalhos: Leandro et alli (2017: 247) e Leandro (2016).


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d’O índio cor de rosa siga as inspirações do seu personagem. Há, nesta linha, duas sequências no filme que merecem ser comentadas ainda. A primeira delas é aquela na qual Nutels mostra na CPI as cenas colhidas entre os índios Pacaás Novos (Wari), em Rondônia. Para nós, é um dos momentos mais fortes e chocantes do filme. De um lado, se a fala de Nutels em outras sequências está distanciada de certa forma da imagem, aqui há uma sincronia bastante comovente, já que o próprio Nutels mostra na CPI as imagens daqueles índios, e as comenta em direto. Por outro lado, temos a impressão (lembrada pelo próprio comentário de Nutels) de estarmos num campo de concentração de Auschwitz (nas palavras de Nutels: “Isso lembra os aspectos impressionantes e dolorosos dos campos de concentração nazistas da Alemanha”) e não entre os índios no Brasil em 1963. A equipe do sanitarista tinha ido àquela região investigar uma suspeita de epidemia de tuberculose entre os indígenas. No entanto, ao chegar lá, ao realizar exames médicos, ao ver aqueles corpos esqueléticos se arrastando, uns dependurados nos outros, Nutels concluiu que o quê os dizimava era a fome. E esta estaria campeando entre eles desde a disputa do Brasil com a Bolívia – conflito resolvido no início do século XX, quando o Brasil anexou ao seu território a área do atual estado do Acre. Supõe-se que – mas o filme não explica e nem entra em detalhes –, despossuídos de seu território, aglomerados em torno de uma missão religiosa, os índios não tinham onde buscar alimentos ou para onde ir. Pelo menos, como índice da morte e do massacre (para além dos corpos decrépitos), Nutels foca, no final desta sequência, um índio magro debaixo de uma enorme cruz.8 A segunda sequência já aparece no final d’O índio cor de rosa, quando são mostradas as obras de construção e inauguração de Brasília, e ouvimos a fala de Nutels. Vale a pena acompanhá-la, quase na íntegra: Há um preceito constitucional [...], é um preceito que vem sendo conservado em todas as Constituições brasileiras, que preserva ao índio a propriedade da terra que ele habita. Embora pareça incrível, mas é este preceito constitucional que mata índios. Numa época em que a terra se valorizou extraordinariamente. Eu sou um grande admirador de Brasília, mas há um aspecto negativo. É que Brasília... valorizou muita terra que não tinha nenhum valor, despertou muito a cobiça de especuladores de terra. E como ninguém quer comprar terras onde se têm índios, a fórmula é matar índios. [...]. Nesta hora que estamos conversando aqui, alguém deve estar matando índio, é que vamos saber muito mais tarde, quando o índio já está morto. É a cobiça da terra, a cobiça do subsolo e a cobiça das riquezas naturais. E o remédio para isso? É evidentemente um vício de estrutura econômica. Enquanto nós não fizermos realmente uma reforma agrária, enquanto terra for objeto de mercadoria, de especulação, vai se matar

8. Esta mesma sequência da filmagem de Nutels é mostrada no filme Noel Nutels, de Marco Altberg (1975), de forma mais fragmentada e, por isso, menos chocante do que aquela do filme atual. De qualquer forma, no filme de Altberg, cobrindo tais imagens, há uma voz over que diz o seguinte: “Em 1962 e 1963 se teve notícias de verdadeiras chacinas a tribos inteiras. Um grupo de Cintas Largas foi totalmente dizimado. Em Rondônia, os Pacaás-Novos foram atacados por homens brancos interessados em suas terras. Os que restaram, vagaram famintos e expostos às doenças. Acumulavam-se esbulhos e negociatas de terras indígenas. Os governos estaduais doavam essas terras a companhias estrangeiras”.


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índio para vender terra. E não só índio, e se matará... também... o próprio camponês pobre perde suas terras. Eu sou um velho leitor de novela policial. Quem não leu novela policial que atire a primeira pedra. E nós que lemos novela policial temos sempre uma pergunta engatilhada: a quem interessa o crime? O crime não interessa ao homem que mata o índio. Se os senhores quiserem saber a quem interessa o crime vão ver quem é que detém as terras do índio. Quem é o dono da terra, atual? Então vejamos se os senhores têm força para resolver esse problema. Vejamos!

Aqui acaba o filme. Como acaba a CPI dos índios, um ou dois meses depois deste depoimento de Nutels. Isto foi no final de 1968, quando foi instituído o AI-5, e entramos nos anos de chumbo da ditadura. Deputados da CPI foram cassados, interrompeu-se o processo de investigação acerca do esbulho das terras indígenas e o massacre de sua população. Nada sobrou da comissão, talvez o filme de Hermano Penna (finalizado somente em 1998) e, agora, o depoimento de Nutels, remontado n’O índio cor de rosa. Porém, a peleja de Nutels não acabou, continua nas suas imagens e na sua voz, que povoam este último filme, com o poder de encantar e despertar o espectador para uma luta ao lado do mundo e do pensamento indígena, e de Nutels. Enfim, o filme nos dá o recado por meio de Nutels, traz a história narrada para o tempo presente. O espectador é convidado a se posicionar frente ao massacre dos povos indígenas ao longo da história do Brasil, sobre as epidemias que ceifaram milhões de vidas, enquanto os bandeirantes de ontem e os ruralistas de hoje – controlando e instrumentalizando o meio jurídico, o poder executivo e legislativo – cercam os índios, pilham e devastam seus recursos de sobrevivência. Os índios e os indigenistas resistem e obrigam um freio na ordem colonizadora. Um destes freios é o artigo 231 da Constituição Federal de 1988, que assegura ao índio o direito à ocupação das terras tradicionais e o usufruto exclusivo de seus recursos. Aqui está expresso de forma explícita o direito original (ou do indigenato), segundo o qual o direito dos índios sobre suas terras é imprescritível, que sua terra é inalienável (ou seja, exatamente, retira a terra indígena, como alertava Nutels, do mercado e da especulação imobiliária, como forma de evitar a cobiça e o massacre dos seus donos originais), e, por fim, que a terra indígena é indisponível (a terceiros) e só pode ser usufruída pelos indígenas que a habitam. Sem dúvida, esta conquista dos direitos indígenas na CF de 1988 está ameaçada pela elite ruralista/capitalista e pelos governos sucessivos. Hoje, esta ameaça que espreita o direito indígena é representada exatamente pela tentativa de consolidar, contra a lei do indigenato, a tese do marco temporal – que quer fazer crer que os índios só têm direito à terra se eles estivessem-na ocupando (ou demonstrassem ação judicial por sua ocupação) no ano de 1988! Ora, perguntemo-nos, e aqueles povos que foram expulsos de suas terras, fato demonstrado tanto pelas falas de Nutels, quanto pela CPI ainda em 1968, muito antes de 1988? Que a peleja de Nutels, maravilhosamente montada agora n’O Índio cor de rosa, mais que um filme (um filme junto com outros, como Martírio), possa nos sacudir e


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fazer entender que a “história dos índios” (e da sua resistência) não começa em 05 de outubro de 1988.

Yaõkwa Espíritos gulosos e a civilização sem espírito

O filme Yaõkwa: Imagem e Memória (2020) tem como matéria outros dois filmes: Yãkwá O Banquete dos Espíritos (1995), e Yaõkwá - Um Patrimônio Ameaçado (2009). Baseados ambos na realização do ritual Yaõkwá, entre os índios Enawenê- nawê. Os Enawenê-nawê falam uma língua da família Aruak e habitam atualmente as áreas da margem esquerda do rio Juruena, mais especificamente as áreas do seu afluente, o rio Iquiê, no Estado do Mato Grosso. Vivendo à beira dos rios, são pescadores, navegadores e agricultores de coivara. Quando contatados em 1974 pelos missionários jesuítas (que, com zelo extraordinário para o padrão dos “contatos”, souberam prevenir as doenças e conseguiram passar sem que tivesse havido morte alguma) se resumiam a 130 pessoas. Vinte dois anos mais tarde, em 1996, dobraram este número e chegaram a 260 pessoas. Em 2006 passaram a 435. Em 2014 passaram a 737 pessoas, segundo dados do Instituto Socioambiental (ISA). Pode-se dizer que a cada 14 anos, sua população duplica. Mas esta curva crescente exponencial se desenha ao custo de terem hoje dois terços das pessoas na idade infantil. Ainda em 1974, quando foram contatados, embora fossem tão poucos, não pareciam incompletos ou desintegrados, nem fadados a desaparecer. Ao contrário, demonstravam guardar, mesmo que entre tão poucos indivíduos, uma sabedoria ampla, profunda, diversa e uma extraordinária vitalidade. Foram filmados, a partir do final da década de 1980 até início da década seguinte, pelo projeto Vídeo nas Aldeias. Yãkwá: O Banquete dos Espíritos (1995) - que está disponível na plataforma Vídeo nas Aldeias ou no Vimeo (https://vimeo.com/ondemand/yakwaespiritos) - teve direção da antropóloga Virgínia Valadão, imagens de Vincent Carelli e pesquisa do indigenista Fausto Campoli. O filme se divide em quatro episódios, que são os pontos altos das etapas do mais longo ritual enawenê-nawê, chamado Yaõkwá, que dura sete meses do ano. A montagem se estrutura a partir de trechos das narrativas míticas cosmogônicas que contam como os Enawenê-nawê vieram a se tornar o que atualmente são. O primeiro episódio, “As flautas sagradas”, conta que “antigamente os Enawenê-nawê viviam dentro da pedra. Um dia, um raio atingiu aquela pedra e fez nela um buraquinho. Um passarinho saiu de seu interior. Na volta, ele passou espremido pelo buraquinho. Dentro da pedra ficou pensativo e calado. Vendo-o assim, o chefe Wadare perguntou: "o que houve meu tio, você está doente? Não, sobrinho. Eu saí por aquele buraco, comi peixe, vi as flores. É bonito lá fora". Wadare chamou o pica-pau de cabeça vermelha e disse: "aumente este buraco pra gente sair". O pica-pau foi batendo e abriu um buraco maior, do tamanho da porta de casa. As pessoas foram saindo da pedra, cada povo tomou um rumo. Wadare levou os Enawenê para o rio Papagaio. Lá, ele tocou uma flauta e os paus saíram debaixo d’água e vieram sozinhos. Eles se empilharam formando a casa das flautas. Vieram outros paus e formaram as casas da aldeia. A aldeia estava pronta quando Ayarioko falou: "esta casa é minha, Não é sua não, esta é a casa dos Yaõkwá". Então, Ayarioko tocou a flauta mágica e os paus não gostaram. Eles voltaram


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para dentro d’água. As casas se desmancharam. Ayarioko estragou tudo e acabou com a aldeia. Então, hoje os Enawenê devem trabalhar para construir as casas. O episódio “A vingança de Dataware”, que mostra a fase da construção das barragens usadas para pegar os peixes para consumo cerimonial e cotidiano, se inicia pela narrativa que conta como, antigamente, Dokuí, o filho de Dataware, o herói ancestral, pescava com sua rede mágica. Mas seu tio paterno, tendo estragado a rede, mandou o sobrinho pescar com flechas. Dokuí flechou, então, um peixe que, embora ferido, conseguiu escapar. Dokuí nadou atrás dele, mas no caminho foi furado no peito pelo peixe-agulha. O menino morreu. Seu pai então partiu à procura do filho, nadando pelo rio. Dataware encontra apenas o peixe Pitu lambendo os ossos do menino. Furioso, Dataware indaga quem poderia ter matado Dokuí. Pitu informa que fora o peixe-agulha. Dataware pisoteia Pitu e sai a procura dos devoradores do filho. Chegando às cabeceiras, Dataware amarra paus em cipós e faz uma barragem com armadilhas. Lança as armadilhas ao rio. Enquanto isso, os peixes se despojam dos restos de Dokuí. Então as veias se transformaram no cipó-timbó. A nuca virou o lodo das lagoas. A cintura virou a casca do ipê usado para fazer a armadilha de pesca. Ao final das chuvas, Dataware olhou a planta Ohã e viu que a flor indicava a piracema. Dataware subiu para as cabeceiras transformado em peixe Matrinchã. Lá, Dataware encontrou muitos peixes. Ele os chamou para irem comer frutas rio abaixo. Na verdade, Dataware guiava os peixes para a barragem. Os peixes foram caindo nas armadilhas. Quando Dataware viu que já estavam cheias, saltou para fora d’água e voltou a ser gente. Venham, dizia Dataware para os Enawenê-nawê, tirem as armadilhas, elas estão cheias de peixes! Os peixes pensaram que iriam se acabar nas armadilhas de Dataware. Então Matrinchã levou a água para o céu e os peixes subiram. No céu, os peixes procriaram bastante, mas depois resolveram voltar ao rio. O terceiro episódio, Harikare: o anfitrião dos espíritos, focaliza a fase em que os pescadores voltam das barragens para a aldeia com seus estoques de peixes moqueados e preparam a sua distribuição aos vorazes e insaciáveis espíritos Yakairiti. Os Enawenê, anfitriões, dançam para alegrar e agradar os espíritos Yakairiti. Alimentam-nos com bebidas, beijus, peixes moqueados e sal. “Os espíritos adoram sal”, dizem. “Os espíritos chuparam bastante sal e nos deixaram pegar peixes. É assim, há muito tempo. Nós não comemos os primeiros peixes da armadilha. Só depois que ela pegou muitos é que podemos comer, senão os espíritos mandam os peixes embora”. Este episódio é o único que não se inicia com uma narrativa mítica na sua forma estrutural, talvez porque os protagonistas sejam os espíritos e estes não estejam sujeitos à transformação, sempre foram como são e continuam a sê-lo. O último episódio, A menina Mandioca, mostra a derrubada e o plantio da roça de mandioca coletiva destinada ao consumo ritual. Ele se inicia com a história de como a mandioca era originalmente um corpo de uma garota, que foi com sua mãe até o roçado e se enterrou até o pescoço. A garota pediu que sua mãe mandasse seu pai, Dataware, pescar bastante peixe para ela. E pediu que viessem as flautas tocar em seu redor. Mas avisou à mãe que ela não olhasse quando as flautas soassem, caso o fizesse seria imediatamente morta. A mãe atendeu todos os pedidos da filha. A menina


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foi alimentada e de seu corpo brotaram as manivas da mandioca. A menina oferecia as raízes à sua mãe, que as arrancava com todo cuidado. Mas um dia a esposa de seu tio paterno, Ayarioko, roubou as raízes dela com violência. A menina gritou até que ficou em completo silêncio. Ela morreu. Desde então, a mandioca deve ser plantada nas roças. Estas narrativas que estruturam o filme são primorosamente demonstradas, sem paralelismos ilustrativos óbvios, mas, com riqueza de detalhes acerca da vida cerimonial e das principais atividades preparatórias, não estritamente cerimoniais, que envolvem o ritual Yaõkwá . Começando pelos corpos das pessoas, extremamente bem cuidados, como se pode ver pela uniformidade da aparência dos grupos de mulheres e homens adultos, e até crianças, desde os cortes de cabelo, passando pela pintura corporal, até os adornos: colares, pulseiras, tornozeleiras e braceletes de cordonetes de tucum ou de fios de algodão, saias para as mulheres e meninas, tudo tingido por urucum. Colares e brincos com pingentes de dentes, penas ou conchas. Vemos também nas imagens a cestaria variada, ao lado de muitos utensílios de cozinha em cerâmica, panelas, jarros, potes de muitos tamanhos. Há também muitas vasilhas de cuias e cabaças! As mulheres preparam beijus, bebidas fermentadas de mandioca, mas também pilam milho. A presença destes dois cultivos agrícolas básicos, neste caso, é complementar e não exclusiva. Há vários tipos de plantas não alimentares, necessárias aos adornos e aos instrumentos musicais. Podemos ver uma grande quantidade de técnicas: o domínio da fabricação e toque das flautas mais variadas, as longas cornetas e as curtas, furadas e inteiras, além das flautas de pan; a coleta do mel; a fabricação do sal, outro tipo de alimento suplementar mais “recreativo” que propriamente “alimentar”. Vemos também os homens na fabricação de embarcações, grandes canoas escavadas de troncos, remos; os homens navegando longas distâncias rio acima; as técnicas mais sofisticadas e variadas de pesca, inclusive a construção extraordinária das enormes barragens e armadilhas. Podemos ouvir os cantos e músicas, ver os benzimentos, compreender o conhecimento generalizado entre as pessoas sobre as narrativas míticas e sobre os heróis ancestrais. Por fim, vemos a composição impecável da aldeia com as casas dispostas em círculo. Essa exuberância é muito impressionante até para os espectadores mais familiarizados com os rituais ameríndios! Ou até mais ainda para eles. Assim, o ritual Yaõkwá é apresentado pelo próprio projeto Vídeo nas Aldeias por meio de superlativos: “Yaõkwá é o mais longo, complexo ritual indígena em prática no território brasileiro”. Não é exagero! Encontrar as razões para isto pode ser instrutivo para caracterizar o próprio projeto de devolução das imagens que baseia o presente filme, o Yaõkwá de 2020. Pois bem, se os Enawenê-nawê, filmados no final da década de 1980 e início de 1990 pelo VNA parecem extraordinariamente irreparáveis, imaginamos que isso pudesse se dever ao fato de terem sido “primitivos”, completamente intocados, “autênticos”! Engano “clássico” do nosso pensamento tradicional colonialista, este de opor o “autêntico” e o “inautêntico” como se correspondessem a estados “primitivos” ou “desenvolvidos” das civilizações, quando a história e argumentos célebres de antropólogos do século passado já teriam rechaçado sua pertinência – um aluno de Franz Boas, Edward Sapir, por exemplo, já tinha entabulado a ideia de que a oposição autêntico e inautêntico só se


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presta para averiguar a adesão individual dos membros de um grupo à sua tradição. O caso particular dos Enawenê-nawê exemplifica a refutação desta oposição dicotômica, tanto lógica, quanto historicamente. Pois o conhecimento cosmogônico dos Enawenê ensina que “seus ancestrais foram já "sobreviventes", uma vez que teriam sofrido uma série de catástrofes, provocadas pela ação dos espíritos subterrâneos, sob a forma de ataques de onças, monstros aquáticos, povos inimigos, epidemias etc., que quase os dizimou totalmente. Graças ao auxílio de um pica-pau, que fez um buraco na pedra abrindo uma passagem ao mundo exterior, estes povos de culturas imperfeitas e incompletas se espalharam pela superfície da terra e, guiados pelos espíritos celestes e subterrâneos de seus respectivos clãs, foram um por um se dirigindo a uma determinada aldeia. À proporção que chegavam, dirigiam-se à casa-dos-clãs, onde depositavam suas flautas em uma determinada posição. Uma vez reunidos, os remanescentes de cada uma dessas populações se envergonharam de algumas de suas idiossincrasias culturais e ensinaram uns aos outros os seus bons costumes. Enfim, uma vez reunidos, os Enawenê teriam promovido uma reconfiguração ao mirarem uma combinação de bom gosto de tradições distintas originárias. Do ponto de vista histórico, os Enawenê-nawê da década de 1970, sendo 130 indivíduos, não poderiam ter sempre estado naquela forma. Isso nos leva a conjecturar a probabilidade bastante admissível de que historicamente eles tenham sido, de fato, recompostos a partir de múltiplos empréstimos e acréscimos vindos de “sobreviventes” anteriores. Assim poder-se-ia afirmar que os Enawenê-nawê talvez sejam originalmente compósitos e primam por suas transformações. Vejamos, brevemente, como eles estão se transformando e se mostrando através de dois outros filmes. Yaõkwá: um patrimônio ameaçado foi finalizado em 2009. Neste filme vemos como os Enawenê estão diante de um desafio bastante tenebroso: enfrentar as mudanças climáticas e as vinte e duas usinas hidrelétricas no curso do rio Juruena. Estas alterações tornaram verdadeiramente escassa, não exatamente a sua própria população, mas aquela da qual depende sua dieta alimentar, e a dos espíritos Yakairiti, isto é, a população dos peixes. Caso não sejam alimentados, os espíritos Yakairiti podem não permitir que os Enawenê continuem vivos! O filme Yaõkwá: um patrimônio ameaçado e todo o processo de tombamento do ritual Yaõkwá, como patrimônio imaterial pelo IPHAN, figuram como mais uma tentativa de salvaguardar a população dos peixes e a dos Enawenê. Estes manifestam por meio do filme e do processo de tombamento que ambas as populações correm o risco de sucumbir pela ação predatória e insaciável, não mais dos espíritos Yakairiti, mas dos capitalistas nacionais e internacionais devoradores de floresta, construtores de barragens perenes e destruidores definitivos dos rios. Estes seres (sem espírito), precisam ser barrados. Não falamos muito aqui sobre este filme intermediário, pois o sentido dele ainda está para ser alcançado. Ao que tudo indica, ele será retomado para dar origem a outros filmes em torno de um objeto não ameaçador, mas promissor, do ponto de vista dos Enawenê. Mais do que retomar a narrativa da falência inédita das suas pescarias (pela falta absoluta dos peixes), antes tão abundantes, o que se pretende recuperar a partir do material gravado no contexto de realização do Yaõkwá: um patrimônio ameaçado


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é a diversidade das versões das narrativas míticas ensejadas a propósito de sua realização. Se pensarmos que elas já tinham sido esgotadas no filme anterior, estávamos outra vez enganados. Yaõkwá: Imagem e Memória (2020) que lançamos no forumdoc.bh.2020 é um metafilme que narra a digitalização e devolução aos Enawenê-nawê de seu acervo imagético. Aqui o espectador é levado a refletir sobre a autorepresentação e a “cultura”, mas sobretudo sobre a posse e autonomia dos povos indígenas frente aos registros de suas imagens - seu patrimônio cultural material e imaterial. Tal devolução trata-se não apenas dos filmes finalizados, como de todo o material filmado e fotografado ao longo dos quase 30 anos de trabalho do VNA junto aos Enawenê-nawê. Este terceiro Yaõkwá (2020) aborda principalmente as transformações evidentes quando as imagens são devolvidas aos seus donos. No pátio da aldeia, os Enawenê se veem na projeção da tela. Há muita gente em volta. Muitas crianças! Os espectadores se espremem em frente à projeção, tapam a boca de admiração! Às vezes ficam imóveis, olhos fixos na tela! Outros, gargalham! Se divertem! Os jovens se espantam diante das imagens de um passado que lhes parece muito distante. Nas “novas imagens”, feitas no mesmo período da devolução das antigas que também compõem o filme, os jovens aparecem dirigindo uma meia dúzia de camionetas, chegam invadindo o pátio e a cena ritual em profusão sonora, rodando no círculo de dança antes exclusivo aos pedestres. Talvez, especulemos, aos olhos dos jovens enawenê-nawê esta cena seja já “tradicional”, principalmente se levarmos em conta o fato de que há pouquíssimos velhos com disposição para assegurar a passagem mais vagarosa do tempo. O intervalo de 30 ou 20 anos passados para eles é “antigamente”. Antigamente, palavra empregada justamente nos mitos para situar o tempo imemorial! Como os jovens se admiram diante daquelas imagens: “antigamente, éramos assim?!” Observam que, nas imagens “antigas”, as pessoas não vestem roupas e os homens usam o adorno peniano, e gargalham! Notam como eram fortes! Os jovens veem, com seus próprios olhos, a abundância exuberante de peixes que outrora habitavam o rio! Os mais velhos gostam de ver outra vez seus cunhados e cunhadas falecidos. Algumas mulheres dizem que querem ver todo o material fílmico, todas as noites. Dois homens dizem que podem recuperar partes do canto que, agora, lhes faltava à memória. Os jovens encarregados dos novos equipamentos de vídeo (talvez uma nova função para o clã que deve propiciar a festa, organizar o vídeo-imagem-memória) sentem a diferença entre a visada deles e a dos velhos frente às imagens devolvidas. Um jovem com o computador no colo, diz surpreso: “os velhos querem ver tudo, absolutamente; eles não se cansam nunca!” Os jovens, talvez mais acostumados às imagens digitais de TVs e celulares, conhecem-nas rapidamente. Enfim, os jovens se dão conta de que, entre o mundo dos velhos (não tão velhos, e bem poucos) e o deles, há bastante diferença, muita história de transformação. Pensamos que esta trilogia do VNA pode ser usada como a mensagem dos mitos que propaga: dado que as engenharias ancestrais são inescapavelmente estragadas (seja pelo irmão do herói, ou por monstros canibais), há que se buscar formas de instituir e instruir novos mecanismos, compondo diferenças.


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*** Muitas vezes nas mesas e mostras promovidas pelo forumdoc.bh, nas quais Vincent Carelli tem sido um convidado tão importante quanto constante, ele é apresentado como um mestre, um guardião, um xamã9 para nós que espreitamos a construção de filmes documentários. Isso não é um exagero, pois, se já é grande a labuta para tratar das imagens cinematográficas no mundo ocidental, talvez seja monumental lidar com as imagens nos mundos indígenas – muitos e diversos entre si e entre os quais a imagem adquire conceito radicalmente diverso do conceito ocidental. Agora, pensemos na tarefa a que se colocou o Vídeo nas Aldeias: produzir imagens cinematográficas (videográficas e fotográficas) de mundos indígenas que possam circular entre eles e a sociedade ocidental. No filme O Índio cor de rosa, o personagem Noel Nutels aparece como um diplomata em busca de cura para enfermidades e violências contra as populações indígenas. Neste caso, também, ele nos parece mais com um pajé, operador de substâncias, objetos e relações que podem afastar doenças e até a morte. No filme Yaõkwá: imagem e memória, Vincent Carelli (e o projeto VNA, ali sintetizado no seu ideal de origem, “devolver as imagens para os índios”) nos parece como um diplomata da história: ao lidar com as imagens de transformação e resistência dos povos indígenas, ele certamente ajuda na revelação dos seus enigmas. Um guardião ou um “dono” das imagens,10 Vincent faz circular os conhecimentos e as memórias dos mundos indígenas com os quais ele se engajou ao longo de 30 anos, na expectativa de que possamos ser um pouco tocados (nós, os espectadores) e, assim, ser “pacificados” pelos índios. Mas, não menos importante, na intenção de que o conhecimento e a memória - cuja circulação propicia, por meio de toda esta parafernália das máquinas ocidentais, tais como câmeras e burocracia – possam servir não apenas à reprodução da “cultura” de vários coletivos indígenas, mas sobretudo à inovação da tradição de cada povo.

Referências CARMATTOS. As viagens de ontem e o genocídio de hoje. Disponível em: <https:// carmattos.com/2020/07/18/as-viagens-de-ontem-e-o-genocidio-de-hoje/>26/10/2020. MUZI, Daniela. Doc que resgata discurso de Noel Nutels contra massacre indígena é premiado em Biarritz e em Buenos Aires. Disponível em: <https://www.icict.fiocruz.

9. Xamã, ou demiurgo, do tipo herói civilizador-restaurador, aquele geralmente representando pelo irmão mais novo ou o filho, aquele que veio depois para desfazer ou transformar o que está posto e que às vezes é ocupado pelos brancos (no caso dos Enawenê, Ayarioko). 10. Lembramos que Alberto Alvares realizou Guardiões da Memória (2018), com rezadores sábios de aldeias Guarani que fazem circular o conhecimento e a memória nos tekoha, restaurando a narrativa das belas palavras.


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br/content/doc-que-resgata-discurso-de-noel-nutels-contra-massacre-indigena-e-premiado-em-biarritz-e-em>. CCMS. Noel Nutels: uma vida dedicada aos esquecidos. Disponível em: <http://www. ccms.saude. gov.br/noticias/noel-nutels-uma-vida-dedicada-aos-esquecidos>. Acessado em 26/10/2020. LEANDRO, Anita ; CESAR, Amaranta ; BRASIL, André ; MESQUITA, Cláudia. Nomear o genocídio: uma conversa sobre Martírio, com Vincent Carelli. Eco (UFRJ), v. 20, p. 232-257, 2017. LEANDRO, Anita. A história na primeira pessoa: em torno do método de Rithy Panh. E-Compós, v. 19, p. 1-15, 2016.


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fotomontagens por Ge Viana

anciãs kayapó Envolvi as anciãs Kayapó num grande manto encontrado em Manaus, a raríssima e sagrada Coccoloba, uma árvore com um único caule faz a sua fotossíntese durante 24hs junto da terra se nutrindo assim como as mulheres no preparo de um ritual e na vida dentro de uma comunidade. O pedido de proteção das matas e pra que caminhos e destinos estejam alinhados em equilíbrio, suas folhas são tão grandes que as anciãs poderiam se embrulhar e adormecer numa noite estrelada. Deusas são mulheres que se alimentam das folhas para curar a si e o mundo. Minha Avó pediu tarde dessas, umas folhas de laranja eu não quis ouvir e fui no pé de limão ela gritou de longe e disse: é do pé de laranja... voltei e tirei as folhas dizendo mãezinha não se faz chá é do pé de limão? Ela respondeu: esse chá é diferente, cada folha tem seu sabor, eu gosto do sabor da folha da laranja, aproveitei e tomei o chá com ela, aprendi! Fotografia por Simone Giovine, no detalhe Maria-Hô, a anciã do meio.

cocar de facas Colagem a partir da ilustração dos povos Miranha. Segundo Maria de Fátima Costa, o perverso Martius levou para Munique as coleções de peças vivas, vale dizer, plantas, animais e quatros índios: três Miranha e o jovem Juri, entretanto, apenas dois conseguiram chegar à Europa: uma mocinha que receberá o nome de Isabela Miranha na fotomontagem acima Conhecidos como anti-heróis viviam isolados no alto rio Japurá! A história é bem profunda sobre esse genocídio . Quando me peguei no olhar dela fiquei pensando na força de Isabel! dona antônia, caixeira do divino Antônia Cutuca, nossa DEUSA, não quero que o tempo apague as gerações de caixeiras do Divino, as sacerdotisas Recebo seu retrato na parede comida por cupim, são eternas pela grandeza da sua história, pelos anos batendo caixa na comissão de frente, quando não estão batendo e cantando durante o cortejo estão batendo e cantando nas arrumações do fazer doméstico e nas lavouras pro ganha pão . Dona cutuca, Monquinha, Pedrolina, vocês são raízes, sementes e ervas pra espalhar a cura pra terra. Jogo esse manto sagrado pra reluzir sua existência. Essa foto está no Livro: “No bater da minha caixa estou chamando as folioas” - Marise Barbosa.


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francelina envolta em panos Seu nome é Francelina. ESSA É A NOSSA DEUSA, sobrevivente de batalhas no território Craós, com muita sabedoria, só pede que os homens brancos nos deixem em paz! #brasilterraindígena, ouvi sua história e chorei junto dos seus pés, mais uns tantos outros amigos que gravavam uma série maranhense... Em seu rosto traços de uma grande luta e conquistas pois ela ainda se encontra viva em Tocantins. Consegui o contato da Creuza, sua neta e logo ela terá notícias nossa e enfim, retornarei à minha casa, seu canto nas noites de muita estrela... os panos envolvidos na carcunda carregam a experiência e esperança que nossos povos permanecerão vivos e saudáveis por gerações futuras!!! menino de alcântara O tempo açucarado, arquivos vivos no museu histórico de Alcântara: O tempo pode corroer muitas coisas, mas a pedra Goethita e seus minerais em ferro junto de nossas memórias ele será incapaz!! daniel, guerreiro craós Daniel, guerreiro Craós, ficava algumas noites para cozinhar, carinhoso e gentil. Tocantis, 2016, parente HAPYHI, sua família nos acolheu e as horas diante da grqande fogueira não tinham fim, os cantos debaixo daquelas estrelas pareciam nos alcançar, saudação, meu irmão. Achei essa foto sua e lhe reconheci. Esse é um singelo presente que tenho para te dar!


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lista de filmes

[list of films]

#eagoraoque A Classe Roceira A Flecha e a Farda A Morte Branca do Feiticeiro Negro A Narmada Diary [Diário de Narmada] Ãjãí: O Jogo de Cabeça dos Myky E Manoki Aleluia, O Canto Infinito do Tincoã Amador Amuhuelai-mi - Ya no te iras Apiyemiyekî? Apyãwa – Tapirapé Atrás da porta Audiência Pública (?) Belos Carnavais Braço armado das empreiteiras Cadê Edson? Cavalo Corpoterritório De Um Lado do Atlântico É rocha e rio, Negro Leo Eles sempre falam por nós Entre Nós e o Mundo Entre Nós Talvez Estejam Multidões Entre Nós, Um Segredo Everyday life in a Syrian Village [A vida em um vilarejo sírio] Fartura Favela é Moda Fé e Fúria Filme de Domingo Fim de Semana Guahu’i Guyra Kuera - Encanto dos pássaros Gyuri Ingrõny, Pisada Forte Joãosinho da Goméa - O Rei Do Candomblé Kanehsatake - 270 years of resistance [Kanehsatake - 270 anos de resistência] Loteamento Clandestino Makota Valdina Mineiros Morde & Assopra Mulheres no front Nakua Pewerewerekae Jawabelia Até o Fim do Mundo Narita: the Peasants of the Second Fortress [Narita: os camponeses da segunda fortaleza] Nascente Negras Vozes - Tempos De Alakan Nhemongueta Kunhã Mbaraete Not a penny on the rents [Nem um centavo a mais]

Nũhũ Yãgmũ Yõg Hãm: Essa Terra é Nossa! O Índio Cor de Rosa Contra a Fera Invisível: A Peleja de Noel Nutels O que Há em Ti Obatala Film Pajeú Pattaki Pirakuá - Os Guardiões do Rio Ápa Poemas do Camboja Pohã Re’yi - Família dos remédios Quando a Rua vira Casa República Rua São Bento, 405 Sem Título # 6: O Inquietanto Sequizágua Sob a Sombra da Palmeira Tentehar - Arquitetura do Sensível Território Suape The Roof [O Telhado] They do not exist [Eles não existem] Topawa Trindade Vida e Luta na Retomada Tei’ykue Xandoca Yaõkwa - Imagem e Memória Yvy Pyte - Coração da Terra (Guaiviry)


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lista de diretoras e diretores [list of directors]

Aiano Bemfica Alanis Obomsawin Amanda Dias Ana Vaz Anailson Flores Anand Patwardhan André Lopes ASCURI Beatriz Seigner Beibity Flores Berenice Mendes Beto Brant Carina Aparecida Carlos Adriano Carolina Canguçu Cecilia da Fonte César Guimarães Cinema Action Cledson Amarília Ricarte Coletivo Beture de Cineastas Mebengokre Cris Ventura Dácia Ibiapina Eduardo Coutinho Elisa Mendes Emílio Domingos Erminia Maricato Ernesto de Carvalho Everlane Morais Fabio Rodrigo Genito Gomes Gilmar Galache Grace Passô Graciela Guarani Isael Maxakali Janaina Oliveira ReFem, Rodrigo Dutra Jean-Claude Bernardet Jhon Malison Jhonathan Gomes Jhonlailson Gomes Almeida Johnn Nara Gomes Joilson Brites Jomalis Franco Gomes Juma Gitirana Tapuya Marruá Kamal Aljafari Kamikia Kisedje, Simone Giovine Laércio Portela Leon Sampaio Lincoln Péricles Luís Abramo Luís Henrique Leal Marcelo Pedroso

Marcos Pimentel Margarita Rodrigues Weweli-Lukana Maria Luisa Mallet Maria Lutterbach Mariana Lacerda Maurício Rezende Michele Kaiowá Miguel Antunes Ramos Milena Manfredini Movimento Ocupe Estelita Mustafa Abu Ali Omar Amiralay Paloma Rocha Patrícia Ferreira Pará Yxapy Paula Gaitán Paula Viana Pedro Aspahan Pedro Diógenes Pedro Maia de Brito Pedro Severien Rafhael Barbosa Renato Tapajós Rita Carelli Roberto Romero Rodrigo R. Meireles Rodrigo Ribeiro Rubens Rewald Safira Moreira Sebastian Wiedemann Shinsuke Ogawa Sophia Pinheiro Stanley Albano Sueli Maxakali Takumã Kuikuro Tenille Bezerra Tetê Moraes Thiago Mendonça Tiago Carvalho Tomyo Costa Ito Toumani Kouyaté Typju Myky Ugo Giorgetti Vincent Carelli Vladimir Seixas Wagner Gomes Werner Salles Yasmin Tayná


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forumdoc. bh.2020 24° forumdoc.bh - Festival do Filme Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte

organização geral produção filmes de quintal Andreza Vieira Carla Italiano Daniel Ribeiro Duarte Júnia Torres Layla Braz Luísa Lanna coordenação de programação Júnia Torres Carla Italiano mostra / seminário esta terra é a nossa terra curadoria Carla Italiano Ewerton Belico Milene Migliano idealização mostra Ewerton Belico organização seminário Milene Migliano Roberto Romero coordenação de produção seminário Milene Migliano mostra contemporânea brasileira programação André Novais Oliveira Daniel Ribeiro Duarte Júnia Torres Luísa Lanna produção Layla Braz

catálogo organização Carla Italiano Glaura Cardoso Vale Júnia Torres produção editorial e revisão técnica Glaura Cardoso Vale Julia Fagioli colaboração (revisão) Valéria de Paula Martins projeto gráfico & diagramação Ana C. Bahia arte / fotomontagens Ge Viana gestão e assessoria jurídica Diana Gebrim Sociedade Individual de Advogados Diversidade Gestão e Desenvolvimento de Projetos produção executiva Layla Braz colaboração Ana Carolina Antunes produção/administrativo Andreza Vieira assistente produção Cora Lima


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website Ana Cecília Souza & André Victor (design de interface/desenvolvimento) Gustavo Teodoro (Bango’s Company) vinheta Luísa Lanna / Batraquia redes sociais Letícia Marotta Milene Migliano Andreza Vieira criação material de divulgação Paula Gobetti cobertura foto/vídeo Arthur Medrado Bruno Vasconcelos coordenação de tradução e controle de cópias Luísa Lanna tradução / legendagem Batraquia / Partisane Daniel Ribeiro Duarte Ernesto de Carvalho Gabriela Albuquerque Henrique Goulart Isadora Barcelos Luís Fernando Moura Marcela Santos Pedro Veras Roberto Romero Victor Guimarães

autoração digital / projeção forumdoc.bh Hatari Filmes Julio Cruz Vitor Miranda assessoria de imprensa Ariane Lemos - !Mira acessibilidade Sem Rumo forumdoc.ufmg Cláudia Mesquita Paulo Maia Ruben Caixeta de Queiróz gerência de cinema Cine Humberto Mauro gerente Bruno Hilário produção Julio Cruz Mariah Soares Matheus Pereira Vitor Miranda administrativo Roseli Miranda Cine Humberto Mauro Mais Matheus Antunes

ISBN: 978-85-63837-20-2 (impresso) ISBN: 978-85-63837-21-9 (online)


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agradecimentos

[acknowledgements]

André Lopes, Ana Estrela, Affonso Uchoa, Luiza Serber, Nadja Marin, Rede CineFlecha, Gilmar Galache, ASCURI, Carol Pescatori, Eliel Benites, Jéssica Quandro, Solange Ferreira, Rafael Mendonça, Thiago B. Mendonça, Eduardo Escorel, Erminia Maricato, Cláudia Mesquita, Vinícius Andrade, Shinsuke Ogawa, Alex Napier, Marcelo Pedroso de Jesus, Rafael Urban, César Guimarães, Roger Koza, Paulo Maya, Roberto Romero, Ana Carvalho, Fábio Costa Menezes, Sophia Pinheiro, André Brasil, Mafuane Oliveira, Rafael Galante, Bruno Vasconcelos, Juliano Gomes, Vagner Gonçalves da Silva, Mariana Souto, Tomyo Costa Ito, André Novais Oliveira, Victor Guimarães, Bruna Piantino, Priscila Musa, João Paulo Campos, Bernard Belisário, Clarisse Alvarenga, Eduardo de Jesus, Tatiana Carvalho Costa, Julia Fagioli, América Cesar e Amaranta Cesar, Pedro Aspahan, Koria Yrywaxã Tapirapé, Rogerio Duarte do Pateo, Paula Berbert, Fabio Rodrigues Filho, Renata Otto e Ruben Caixeta de Queiroz, Ge Viana, Francisco Rocha, Marcelo Braga, Rafael Ciccarini, Carla Maia, Gabriela Moulin, Felipe Carnevalli De Brot, Wellington Cançado, Tande Campos, Analu Bambirra, Partisane Filmes, Victor Guimarães, Aaron Cutler, Cristina Amaral, DocLisboa, Marilu Mallet, Cineteca Nacional de Chile, Juan Pedro Astaburuaga, Khadijeh Habashneh, Anand Patwardhan, Omar Amiralay Association, Ismat Amiralai, National Film Board, Dominique Dussault, Athénée Français Cultural Center, Ikuko Takasaki, Japan Foundation, Sachiko Kishi, Platform Films, Chris Reeves, CECIP, Dinah Frotté, Tetê Moraes, Ugo Giorgetti, Renato Tapajós, Berenice Mendes, Eliane Parreiras, Joana Reis, Agostinho Neves, Fabrício Silva, Luciana Veloso, Claudiney Ferreira, Rogério Lopes, Matheus Pereira, Eduardo Viana Vargas, Roger Def, Sérgio Stockler, Bernard Machado, Pedro Aspahan, Raquel Junqueira, Rafa Barros, Isabel Casimira, Pedro Leal, Negro Léo, e a todxs xs realizadorxs, equipes e coletivos que compõem esta 24ª edição do forumdoc.bh.


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INCENTIVO Projeto Forumdoc.bh: XXIII Festival do Filme Documentário e Etnográfico, nº 0284/2019, aprovado no Edital Plurianual 18/19 - ano 2, oriundo da Política de Fomento à Cultura Municipal (Lei nº 11.010/2016).

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