Catálogo forumdoc.bh.2018

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22 de novembro a 2 de dezembro • Belo Horizonte • Minas Gerais • Brasil



Este festival ĂŠ dedicado ao professor Pierre Sanchis, Marielle Franco e Mestre Moa


sumário

summary 11

Aquilombar-se sempre Antônio Bispo

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Sessão de abertura • Opening films

17 37 53

Ebó Ejé - Cinema Brasileiro e Afro-religiões Brazilian Cinema and Afro-brazilian Religions

Percursos de uma curadoria Ewerton Belico e Junia Torres

Mostra Contemporânea Brasileira • Brazilian Contemporary Showcase Das urgências Daniel Ribeiro, Layla Braz, Renata Otto e Tatiana Carvalho Costa

Mostra Contemporânea Internacional • International Contemporary Showcase Para reformular resistências • To redevelop resistances Carla Italiano, Luisa Lanna e Luís Fernando Moura

77

Sessões especiais/Lançamento • Special screenings/ Releases

83

Seminário • Seminar Ebó Ejé - Cinema Brasileiro e Afro-religiões e VII Colóquio Cinema, Estética e Política

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Ensaios e entrevistas • Essays and interviews Minha vocação é para a liberdade

Entrevista com Makota Valdina por Amaranta Cesar 97

Dez gritos sobre a campanha contra as religiões de matriz africana Marcio Goldman 104

Tradição, criatividade e resistência em territórios negros Marcio Goldman 106

Orí (1989)

Beatriz Nascimento 112


Abá (1992)

Raquel Gerber 112

Porque “Ylê Xoroquê”? Raquel Gerber 113

Brasil – o continente indecifrável de terras ocultas

José Sette 114

Cinema e descolonização Ismail Xavier 116

Viver e morrer, o último quilombo

sobre Egungun (1982), de Carlos Brajsblat

Orlando Senna 125

Atlântico Negro -na rota dos orixás Luis Nicolau Parés 130

Uma conversa sobre Santo Forte

Cláudia Mesquita Ruben Caixeta de Queiroz 137

No rastro do outro: o sagrado e o cinematográfico

César Guimarães 144

“Tempo é o vento, vento é tempo”: montagem cósmica em Abá André Brasil 149

Cinema e negritude: restituições de territórios e invenções de pertencimentos

sobre NoirBLUE: deslocamentos de uma dança, de Ana Pi, Nome de Batismo: Alice, de Tila Chitunda, Maré, de Amaranta Cesar, e Galinhas no Porto, de Caioz e Luís Henrique Leal

Tatiana Carvalho Costa Layla Braz 159

Bimi, Shü Ikaya

sobre filme de Isaka Huni Kuin, Siã Huni Kuin e Zezinho Yube

Daniel Ribeiro Duarte 165

Furna dos negros: o lar daqueles que historicamente resistem

sobre filme de Wladymir Lima

Leonardo Amaral 168

Uma existência que não consta nos autos

sobre Auto de Resistência (2018), de Natasha Neri e Lula Carvalho

Pablo Moreno Fernandes Viana 171


Olhar a rua, observar pessoas, inventar lugares

sobre Praça do peixe (2018), de Bernard Machado, Florence Defawes, Marina Sandim e Ralph Antunes

Maria Ines Dieuzeide 174

Inaudito: a água-viva de Lanny Gordin

sobre filme de Gregorio Gananian

Pedro Aspahan 176

Quando vaga-lumes entraram em cena

sobre Conte isso àqueles que dizem que fomos derrotados (2018), de Aiano Bemfica, Camila Bastos, Cristiano Araújo, Pedro Maia de Brito

Vinícius Andrade 179

Pela continuidade da escuta

sobre Bloqueio (2018), de Victoria Alvarez e Quentin Delaroche

Hannah Serrat 182

Do que não é espelho: a relação etnográfica em Terremoto Santo

sobre filme de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca

Roberto Romero 184

O múltiplo da fotografia

sobre Travessia (2017), de Safira Moreira, e Inconfissões (2017), de Ana Galizia

Glaura Cardoso Vale 188

Caminhar entre mundos

sobre Tekoha Ha’e Tetã (2018), de Alberto Alvares

Julia Bernstein 192

Corpos desviantes e fragmentados:

notas sobre Sair do armário, de Marina Pontes, CorpoStyleDanceMachine, de Ulisses Arthur, e Escape, de Vinicius Sassine, Mariana Paschoal, Julien Mérienne e Maria Chatz

Larissa Muniz Marcos Alves 195

Parquelândia: trabalho, lazer e melancolia

sobre filme de Cecilia da Fonte

Julia Fagioli 198

Esperas e transformações

sobre Espera (2018), de Cao Guimarães

Thiago Rodrigues Lima 200

Sobre um povo torturado que não sabe o que é tortura

ou algo a dizer sobre o filme Universo preto paralelo, de Rubens Passaro

Paula Kimo 202


O nome da câmera – uma crítica indígena à invenção do cinema (e da cultura)

sobre Deekeni – Os olhos de Wiyu, de Júlio David Rodrigues e José Cury

Renata Otto Diniz 206

Do sonho real à real conquista

sobre Parque oeste (2018), de Fabiana Assis

Rafael Barros 211

Chuva é cantoria na aldeia dos mortos

sobre filme de Renée Nader e João Salaviza

Ana Gabriela Morim de Lima Ian Packer 215

Temporada

sobre filme de André Novais Oliveira

Kênia Freitas 219

Diante dos meus olhos

sobre filme de André Félix

Jair Tadeu da Fonseca 221

Corpos sob o risco do real – Circuito forumdoc.ufmg

Ana Lívia Rodrigues João Ivo Larissa Muniz Lea Monteiro Luís Oliveira Marcos Alves Pedro Antuña 225

Arte forumdoc.bh.2018

Do silêncio à cura, por Dalton Paula 233

234 236

Índices • Index Créditos• Credits



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Aquilombar-se sempre

N

ós! Caminhando pelos penhascos... Atingimos o equilíbrio das planícies!!! Nós! Nadando contra as marés...

Atingimos as forças dos mares!!! Nós! Edificando nos lamaçais... Atingimos a firmeza dos lajeiros!!! Nós! Habitando nos rincões... Atingimos a proximidade das redondezas!!! Nós! Somos o começo o meio e o começo!!! Nós existiremos sempre!!! Sorrindo nas tristezas!!! Para comemorar a vinda das alegrias... Nós somos a gira, da gira, na gira!!! Nossa trajetória nos move!!! Nossa ancestralidade nos guia!!!

Antônio Bispo



opening films

sessĂŁo de abertura



Um painel sobre a cultura africana no mundo e a luta dos negros na construção de sua identidade: o papel dos quilombos, as raízes negras, a luta pelo poder. A panel on African culture in the world and the struggle of black people in the construction of their identity: the role of the quilombos, the black roots, the struggle for power.

Abá significa esperança de paz espiritual. Significa também encontro. A crença na luz e a chegada no estado de contemplação.

Abá means hope for spiritual peace. It also means meeting. A belief in light and an arrival to a state of contemplation.

CINE HUMBERTO MAURO, 22 NOV, 19h30

Brasil, 1989, cor, 91’ direção director Raquel Gerber fotografia cinematography Hermano Penna, Jorge Bodanzky, Pedro Farkas, Adrian Cooper, Chico Botelho, Cláudio Kahns, Jorge Bodanzky, Raquel Gerber, Waldemar Tomas som sound Francisco Carneiro, Lia Camargo, Walter Rogério montagem editing Renato Neiva Moreira produção production Angra Filmes Ltda., Fundação do Cinema Brasileiro contato contact irjgerber@sti.com.br

Brasil, 1992, cor, 4’ direção director Raquel Gerber, Cristina Amaral fotografia cinematography Raquel Gerber, Hermano Penna, Pedro Farkas montagem editing Cristina Amaral som sound Lia Camargo produção production Rosea Ferreira e Ignacio Gerber contato contact irjgerber@sti.com.br

CINE HUMBERTO MAURO, 22 NOV, 19h30

Sessão comentada por: Cristina Amaral, Raquel Gerber, Makota Valdina

Orí

Abá

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showcase Ebó Ejé: brazilian cinema and afro-brazilian religions

mostra Ebó Ejé: cinema brasileiro e afro-religiões



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Ebó Ejé: percursos de uma curadoria Ewerton Belico

em colaboração com Junia Torres

O que / lança pedras / de raio / contra a casa / do curioso / e congela / o olhar do / mentiroso. Leopardo, / marido de Oiá. / Leopardo, / filho de Iemanjá. / Xangô cozinha / o inhame / com o vento / que sai / de suas ventas Oriki de Xangô, Ricardo Aleixo

1. Era 201 1. À época, a Associação Filmes de Quintal, promotora do forumdoc. bh, realizava a pesquisa Mapeando o Axé, um inventário das comunidades tradicionais de terreiro em algumas regiões metropolitanas brasileiras.1 Sugeri ao coletivo que realizássemos uma mostra que contemplasse as representações das religiões de matrizes africanas/afro-religiões no cinema brasileiro. Essa ideia foi gestada e interrompida inúmeras vezes ao longo desses mais de sete anos, tanto pelas contingências da difícil sobrevivência de um festival que acontece em um centro periférico, afastado das tendências dominantes do mercado cinematográfico brasileiro, como pelos percalços da conservação cinematográfica em nosso país, em uma crise contínua que aflige todos os acervos, e mais especialmente a Cinemateca Brasileira. 2. A realização de mostras sobre o repertório cinematográfico brasileiro implica desde sempre no cruzamento e curto-circuito entre séries históricas diversas. Um passado desde sempre rasurado, votado ao esquecimento, atravessado pela nossa contínua paixão pela emergência do novo, que tudo destina do nascedouro diretamente à ruína. É como se o processo curatorial no Brasil fosse necessariamente imantado por categorias caras não às artes, mas ao 1. Sobre o projeto, ver <http://www.mapeandoaxe.org.br>.


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marketing cultural: a “atualização” e o “resgate”. Ainda assim, a recuperação paulatina de grandes filmes ignorados do passado, em mostras diversas pelos últimos 20 anos, aponta continuamente para obsolescência de nossa historiografia cinematográfica hegemônica,2 e engendrou filiações insuspeitas, em um processo de invenção a posteriori de precursores.3 Mas a obsolescência é também ativa, força motriz do esquecimento a produzir continuamente, das listas de melhores filmes dos grandes jornais aos livros da ABRACCINE, a ignorância e a indiferença. 3. A mostra Ebó Ejé inclui 23 filmes (um dos quais work-in-progress) de épocas e metragens variadas. Concentra seu foco sobretudo no cinema brasileiro moderno, com apenas um trabalho mais antigo (as dificuldades de acesso à produção de cinejornais e missões folclóricas dos anos 30-50 minou nossos esforços de uma abrangência temporal maior) e ainda, em número menor, trabalhos realizados no período recente. O processo curatorial se desenrolou a partir de uma pesquisa mais abrangente, que contemplava, de modo bastante privilegiado, a produção ficcional brasileira, o que não se reflete na programação final. Há duas questões aí a serem consideradas: o desejo de concentrar o foco na representação do espaço dos terreiros, presente em quase todos os filmes que serão exibidos,4 e ainda o desejo de que a mostra pudesse dialogar com 2. Dentre as várias iniciativas importantes no campo da programação, citaria: “Julio Bressane: Cinema inocente”, curada por Felipe Bragança, com a assessoria de Hernani Heffner, Carlos Roberto Souza e Bruno Safadi; as iniciativas lideradas por Paulo Sacramento, com a mostra “Cinema de Invenção” e o lançamento do box de DVDs da obra de Aloysio Raulino, em parceria com Otávio Savietto e Gustavo Raulino; a mostra “Cinema Marginal”, curada por Eugênio Puppo e Vera Haddad, com a assessoria de Juliano Tosi, Remier Lion e Jean-Claude Bernardet; a mostra “Ozualdo Candeias - 80 anos”, curada por Eugênio Puppo, com a assessoria de Arthur Autran e Jean-Claude Bernardet; a retrospectiva “Walter Hugo Khouri - meio século de cinema”, curada por Sérgio Martinelli, com a assessoria de Renato Pucci; a mostra “Cinédia 75 anos”, curada por Hernani Heffner; a mostra “Helena Solberg”, curada por Carla Italiano e Leonardo Amaral; a mostras “Documentário: Invenção de Formas/Pensamento crítico”, curada por Naara Fontinele durante do 19º Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte; ou ainda a mostra “Cinema Negro: Capítulos de uma história fragmentada”, curada por Heitor Augusto durante o 20º Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte (conhecemos o belo Merê graças a essa mostra. Sou muito grato a Heitor por isso), além de iniciativas diversas feitas por mostras e festivais como a Jornada Brasileira de Cinema Silencioso, o CineOP, a Mostra do Filme Livre, o Curta-Circuito e o forumdoc.bh. Os catálogos destas mostras e festivais são um importante documento de uma reconstrução possível da historiografia do cinema brasileiro. 3. Refiro-me aqui a “Kafka e seus precursores”, de J.-L. Borges. In: Outras Inquisições, São Paulo: Cia das Letras, 2005. 4. Há exceções importantes aí, com filmes ficcionais que buscaram reconstruir o espaço e a sociabilidade dos terreiros. Citaria, de modo privilegiado, Prova de Fogo, de Marco Altberg.


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várias das formas da experiência religiosa afro-brasileira, a dizer, Umbanda (Bahia de todos os exus, Ritos Populares: Umbanda no Brasil), Quimbanda (Exu Mangueira), Candomblé Ketu (Yaô, Orixá Ninú Ilê), Jeje (Merê, Nunes Ferreira – A Casa das Minas) e Bantu (Ylê Xoroquê, Dos tambores do Tombenci aos tambores do Dilazenze); Reinado (A Rainha Nzinga Chegou). Há ainda, é claro, inúmeras outras formas afro-religiosas brasileiras que não foram contempladas pela mostra (Jurema, Batuque, Bate-Folha, Catimbó e um vastíssimo etc.5), pois o desejo de abrangência não se confunde com uma pretensão impossível de totalização. De todo modo, essa mesma pretensão pluralística nos conduziu a uma ênfase no cinema documental, uma vez que a produção ficcional brasileira teve como referência maior, em suas articulações com as religiões de matrizes africanas, a umbanda. Em outra direção, é como se o cinema documentário fosse, simultaneamente, participante e testemunha direta do processo de dessincretização destas religiões, em que um “retorno deliberado à tradição significa o reaprendizado da língua, dos ritos e mitos que foram perdidos e deturpados na adversidade da diáspora".6 Incluímos três filmes de caráter mais estritamente ficcional em nossa programação (Barravento, Jubiabá, Rapsódia para um homem negro), testemunhas vivas que são do poder das cosmologias em questão em constituírem-se como figurações abrangentes das relações raciais – bem como das relações de poder e opressão no Brasil. 4. Em um olhar superficialmente linear, a mostra Ebó Ejé retrataria a história de uma interiorização do fazer e das formas e procedimentos cinematográficos. Transporta-se-ia de uma perspectiva exterior à vida dos terreiros a um olhar interior, superar-se-ia uma das partilhas fundantes do próprio cinema documentário, na qual o sujeito filmado cede seu corpo ao cineasta ocidental que atribui sentido e expressão linguística às práticas “nativas".7 Mas o cinema brasileiro é feito de ciclos interrompidos e fraturados, trajetórias que não se

5. Há filmes significativos que buscaram registrar essas manifestações religiosas e que não estão em nossa curadoria. Uma lacuna importante a ser registrada, a meu ver, diz respeito especialmente às religiões Afro-indígenas. Citaria aqui, sobretudo, Malunguinho, de Felipe Peres Calheiros, e Toré, de João Torres. 6. PRANDI, Reginaldo. “As religiões afro-brasileiras nas ciências sociais: uma conferência, uma bibliografia”, Revista Brasileira de Informação Bibliográfica nas Ciências Sociais, São Paulo, n. 63, 2007. p. 13. 7. Penso aqui especialmente nas reflexões de Jean-Claude Bernardet em Cineastas e Imagens do Povo. Em suma, por que não programamos “Viramundo”, de Geraldo Sarno? É evidente que nossa curadoria seleciona um campo, que diz respeito mais especialmente ao cinema que participa de uma virada antropológica que se situa sobretudo a partir dos anos 70. Com isso é possível por em questão alguns dos predicados internos dessa mesma virada.


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completam, esperanças malogradas. É dispensável dizer que muito do que foi feito nos últimos anos corre risco agora e que, sob uma perspectiva mais abstrata, o caráter empenhado8 do cinema brasileiro, vocacionado à busca da aproximação e construção de figuras do popular, engendra infinitas miragens projetivas da autenticidade do povo, e nos enreda continuamente nas fronteiras borradas do “falar sobre” e o “falar para”.9 Questão que se atualizou em “falar com” (desejo etnográfico) e no questionamento de “quem fala”?, reivindicado pelos que partilham dos mesmos universos de potência cosmo-ontológica mas igualmente de discriminação racial. 5. A maior parte do conjunto apresentado é composta de filmes em grande medida esquecidos, uma vez que é contínua e ativa a produção do esquecimento intrínseca à própria lógica do sistema cinematográfico brasileiro. Esquecimento esse que não pode ser dissociado do curto-circuito que faz sobrepor o desejo pelo popular à obsessão eternamente adiada por um cinema de feições industriais. Esse traço estrutural do cinema brasileiro, a busca pelo “popular”, implicou em uma tomada do negro, do indígena, do pobre, como metonímias do “popular” – ou ainda, do nacional-popular, uma vez que as ideias de nação e povo são correlatas. Os filmes apresentados são, ainda, sintomas de outro esquecimento estrutural: o da exclusão de homens e mulheres negros e negras dos espaços de direção no cinema brasileiro. Desse modo, a mostra Ebó Ejé apresenta, ainda que discretamente, um acontecimento inaudito: a aparição recente de filmes dirigidos por homens e mulheres negros e negras, alguns dos quais pertencentes a espaços de axé (Rapsódia para um homem negro, Merê, Dos tambores do Tombenci aos tambores do Dilazenze).10 Essa emergência, relevante politicamente e esteticamente por si, é um acontecimento cujas consequências ainda nos escapam, e para o qual podemos tentar estabelecer uma premissa 8. Faço aqui alusão ao conceito de “literatura empenhada”, formulado por Antônio Candido. Ver CANDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira (momentos decisivos). Belo Horizonte: Itatiaia, 1995. p. 26. 9. “Penso aqui nas reflexões do caráter projetivo da representação no cinema brasileiro que perpassam” Brasil em tempo de cinema, de Jean-Claude Bernardet. 10. Esse último filme foi realizado diretamente pela comunidade do terreiro Matamba Tombenci Neto. É possível afirmar claramente que na Mostra Ebó Ejé que há uma sub-representação do audiovisual produzido nos terreiros, registros que não necessariamente são “cinema” - e nem precisam ser. Qualquer busca rápida pelas redes sociais ou pelo youtube nos mostra vídeos em sua maioria curtos que foram realizados em contexto de terreiros, quase sempre em uma dinâmica próxima ao videoclipe. Nesse sentido, nossa mostra revela um traço etnocêntrico, ao continuar pensando o audiovisual como sinônimo do que costumeiramente chamamos - referimo-nos aqui a uma modalidade de experiência situada, em termos classistas e raciais - de “filme”, ou “cinema”, não abrangendo outras experiências de registro ou criação audiovisual.


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metodológica: tentar evitar um padrão da espectatorialidade das classes médias que vê nesses trabalhos um sentido unificado, que os vê como instrumentos de produção da autenticidade, e que buscará julgá-los por essa régua, que é exterior aos filmes.1 1 6. Mostra sintoma e testemunho, entre o dentro e o fora, entre a permissão e o veto (importa lembrar que alguns filmes relevantes ficaram de fora da mostra devido às dificuldades das relações dos mesmos com os espaços sagrados, objetos de interpretações e críticas ativas de suas lideranças e demais pensadores próximos). Síntese aberta a paradoxos: algo do traço que subsiste em meio a nossa história coberta de ruínas ainda se insinua em meio aos filmes da Mostra Ebó Ejé.

1 1. Penso aqui, novamente, nas reflexões de J-C Bernardet, em Brasil em tempo de cinema.



Yaô – iniciação de filho de santo Brasil, 1970, cor, 56’ direção director Maureen Bisilliat fotografia cinematography Jorge Silva montagem editing Nivaldo Santos contato contact maureenbisilliat@terra.com.br

Todo o processo de iniciação do yaô, o noviço que se tornará filho de santo do candomblé, os rituais de purificação, oferendas e sacrifícios, muitas vezes aparentemente violentos, mas que encerram em si toda uma devoção, a caracterização da fé de uma religião profundamente difundida no Brasil. The initiation process of the Yaô, the novice who will become a filho de santo (an initiate, “child of saint”) in Candomblé. A gaze into its purification rituals, offerings and sacrifices, often seemingly violent, but which contain all the devotion and the characterization of a faith deeply diffused in Brazil.

CINE HUMBERTO MAURO, 29 NOV, 17h

Tambor de mina, tambor de crioulo e carimbó

Brasil, 1938, p&b, 5’ direção director Luiz Saia fotografia cinematography Luiz Saia produção production Biblioteca Pública Municipal/Departamento de Cultura - SP contato contact acervohistorico@prefeitura.sp.gov.br

Realizado no noroeste e norte brasileiros, de fevereiro a julho de 1938, pela Missão de Pesquisas Folclóricas organizada por Mário de Andrade quando dirigia a Biblioteca Municipal de São Paulo. Destaque para as filmagens na Casa das Minas, em São Luís do Maranhão.

The film was produced in the Northwest and North of Brazil, from February to July 1938, by the Folklore Research Mission, organized by Mário de Andrade when he headed the Municipal Library of São Paulo. Highlight for the filming in Casa das Minas, in the city of São Luís do Maranhão.

CINE HUMBERTO MAURO, 23 NOV, 21h

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Um olhar particular para a religiosidade afro-brasileira, segundo o diretor: “nascida do sincretismo, da crença e dos ritos mágicos de origem africana, das raízes indígenas e das imagens e símbolos católicos”. O registro de um depoimento de Woodrow Wilson da Matta e Silva fundador da Tenda Umbandista Oriental, em Itacuruçá, na década de 40. A câmera penetra na mata, ronda o altar e se mistura aos adeptos, ela mesma possuída pelos ritmos e movimentos rituais.

O filme registra um ritual de quimbanda, realizado na favela da Rocinha, Rio de Janeiro. Na religião, as forças do bem e do mal encontram-se unidas na mesma entidade. O público acompanha, ainda, consultas com Exu Mangueira, que se materializa em um morador da comunidade.

CINE HUMBERTO MAURO, 30 NOV, 19h

CINE HUMBERTO MAURO, 02 DEZ, 19h

A singular look into Afro-Brazilian religiosity, which is according to the director “born from syncretism, from the beliefs and magic rites of African origin, from our indigenous roots and from Catholic images and symbols.” The film records a testimony by Woodrow Wilson da Matta e Silva, founder of the Tenda Umbandista Oriental, in the 1940s. The camera penetrates the forest, outlines the altar, and mingles with the devouts, itself possessed by the rhythms and movements of the ritual.

Brasil, 1977, cor, 28’ direção director Rogério Sganzerla fotografia cinematography Tony Vieira som sound José Sette de Barros montagem editing Denise Fontoura produção production Rogério Sganzerla, Tupan Realizações de Filmes e Vídeos Ltda. contato contact smercurioproducoes@gmail.com

Brasil, 1975, cor, 45’ direção director Jom Tob Azulay fotografia cinematography Jom Tob Azulay montagem editing Luís Carlos Saldanha som sound Gilberto Loureiro, Miguel Rio Branco, Mario da Silva, Fred Leite produção production Cinemateca do MAM, Alter Filmes contato contact jtazulay@gmail.com

The film records a Kimbanda ritual, held in the favela of Rocinha, in Rio de Janeiro. In this religion, the forces of good and evil are united under one entity. The film also follows consultations with Exu Mangueira, who materializes in a dweller of the community.

Ritos populares, umbanda no Brasil

Exu Mangueira

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“(...) a cidade de entidade Exú, peça central da mitologia do Candomblé”.

“Fui entregue por minha mãe, Dona Felicidade, à proteção do Vodum Badé, com suas contas azuis, na casa matriarcal das Minas, e, acolá, durante muito tempo, verifiquei a ritualística Jêje, motivo da minha obra, a primeira a realmente tratar dos resquícios da cultura de africanos naquela parte do Brasil”. (Nunes Pereira)

CINE HUMBERTO MAURO, 23 NOV, 21h

“I was delivered by my mother, Dona Felicidade, the protection of Vodum Badé, with his blue beads, in the matriarchal house of Minas, and, there, for a long time, I practiced the ritualistic Jêje, motive of my work, the first to really deal with the remnants of the African culture in that part of Brazil. “ (Nunes Pereira)

Brasil, 1978, cor, 30’ direção director Tuna Espinheira fotografia cinematography Antonio Luis montagem editing Jair Moura som sound Márcio Curi produção production Tuna Espinheira contato contact diretoria.dimas@gmail.com

Brasil, 1978, cor, 60’ Direção director José Sette fotografia cinematography Toni Nogueira, Jose Sette montagem editing José Sette produção production Jose Sette, DGT filmes, Estúdio Garimpo contato contact josesetteb@gmail.com

CINE HUMBERTO MAURO, 30 NOV, 17h

“(...) the city of the Exú entity, centerpiece for the mythology of Candomblé”.

Bahia de todos os Exus

Nunes Pereira – a casa das minas

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Ylê Xoroquê Brasil, 1981, cor, 34’ direção director Raquel Gerber fotografia cinematography Pedro Farkas, Hermano Penna, Raquel Gerber som sound Walter Rogério, Lia Camargo montagem editing Sérgio Marcelino contato contact irjgerber@sti.com.br

A iniciação de iaôs de Ossanha e Xangô em um terreiro de candomblé em São Paulo, nação bantu, Angola-Muchicongo: a confirmação das identidades dos iaôs com seus orixás, em uma relação com a natureza e a família. Recriada, a cultura africana é passada de uma geração à outra. The initiation of the Yaôs (novices) of Ossanha and Xangô in a Candomblé terreiro (consecrated religious space) of the Bantu nation, Angola-Muchicongo, in São Paulo. The film shows the confirmation of the identities of the Yaos with their Orixás, their relation with nature and the family. Re-created, African culture is passed on from one generation to the next.

CINE HUMBERTO MAURO, 24 NOV, 17h

Orixá Ninú Ilê

Brasil, 1978, cor, 24’ direção director Juana Elbein Santos fotografia cinematography Carlos Alberto Galdenzi, José de Almeida Mauro, Marcos Maciel montagem editing Carlos Blajsblat produção production SECNEB - Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil contato contact ana.vasconcellos@cultura.gov.br

Um estudo etnológico sobre a organização hierárquica e os conteúdos de um terreiro nagô. A concepção do ciclo vital expressa na simbologia dos orixás do Panteão da terra, Nanã e seus filhos Obaluaiê e Oxumaré, com os ensinamentos, vestimentas, utensílios, danças, músicas e cores expressos no Panteão.

An ethnological study on the hierarchical organization and the contents of a terreiro (consecrated religious space) in the Nagô tradition. A look into a conception of the life cycle expressed in the symbology of the Orixás of the Earth Pantheon: Nanã and her sons Obaluayê and Oxumaré, their teachings, vestments, utensils, dances, songs and colors.

CINE HUMBERTO MAURO, 29 NOV, 17h

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Na ilha de Itaparica, uma comunidade de descendentes Nagô recria há 200 anos os costumes e valores dos antepassados. Vive da pesca e da coleta em um espaço que está sendo ocupado pela indústria imobiliária e pelo turismo. Cultua os Egun, os ancestrais, que se materializam sob tiras de pano no grande festival anual de Baba Olukotun. Os homens de maior destaque são os Ojé, sacerdotes que detêm o segredo da sociedade Egungun, o poder de invocar os mortos e conduzi-los no mundo dos vivos. A idade avançada do chefe da comunidade ocasiona a disputa pela sucessão.

Numa aldeia de pescadores de xaréu permanecem cultos antigos, ligados ao candomblé. A chegada de Firmino, antigo morador que se mudou para Salvador altera o panorama pacato do local, polarizando tensões. Uma tempestade anuncia o “barravento”, o momento de violência. Os pescadores saem para o mar e a tragédia se anuncia. Naína aceita fazer o santo, para que possa se casar com Aruã.

CINE HUMBERTO MAURO, 02 DEZ, 15h30

CINE HUMBERTO MAURO, 27 NOV, 19h

On the island of Itaparica, a community of Nagô descendants has been recreating the customs and values of their ancestors for 200 years. They live from fishing and picking in a territory that is being taken by real estate and tourism. They worship the Egun, their ancestors, who materialize under strips of cloth at the great annual festival of Baba Olukotun. The most prominent men are the Ojé, priests who hold the secret of the Egungun society, the power to invoke the dead and to lead them into the world of the living. The advanced age of the head of the community causes a dispute for his succession.

Brasil, 1982, cor, 99’ direção director Carlos Brajsblat fotografia cinematography Edson Santos montagem editing Carlos Brajsblat som sound Walter Goulart, Valéria Mauro produção production Luiz Sarmento, Luiz Figueiredo, Sonia Branco contato contact curadoriacinemateca@mamrio.org.br

Brasil, 1961, p&b, 81’ direção director Glauber Rocha fotografia cinematography Tony Rabatony som sound Hélio Barrozo Netto montagem editing Nelson Pereira dos Santos produção production José Telles de Magalhães

In a fishermen village, old cults endure, linked to Candomblé. The arrival of Firmino, a former resident who moved to Salvador, alters the placid panorama of the place, polarizing tensions. A storm announces the “barravento”, the moment of violence. As the fishermen go out to sea, the tragedy is set. Naína accepts to initiate (“make the saint”) into Candomblé, so that she can marry Aruã.

Egungun

Barravento

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Um painel sobre a cultura africana no mundo e a luta dos negros na construção de sua identidade: o papel dos quilombos, as raízes negras, a luta pelo poder.

O amor de Antônio Balduíno por Lindinalva. Tudo começou quando ele, ainda criança, foi morar na casa do Comendador Ferreira, pai de Lindinalva. Expulso da casa dos protetores, Balduíno se faz famoso entre os homens da beira do cais, lutador imbatível e amante famoso. Torna-se o imperador das ruas da Bahia. Mas o gigante negro tinha o coração escravo de Lindinalva e a cabeça de Jubiabá, o pai-de-santo.

CINE HUMBERTO MAURO, 26 NOV, 20h30

The love of Antonio Balduíno for Lindinalva. It all began when he, as a child, lived in the house of commander Ferreira, Lindinalva’s father. Kicked out of that house, Balduíno becomes famous among the waterfront men, an unbeatable fighter and notorious lover. He becomes the emperor of the streets of Bahia. But the black giant’s heart belongs to Lindinalva, and his head, to Jubiaba, his pai-de-santo (spiritual leader, “father of saint”).

Brasil, 1989, cor, 91’ direção director Raquel Gerber fotografia cinematography Hermano Penna, Jorge Bodanzky, Pedro Farkas, Adrian Cooper, Chico Botelho, Cláudio Kahns, Jorge Bodanzky, Raquel Gerber, Waldemar Tomas som sound Francisco Carneiro, Lia Camargo, Walter Rogério montagem editing Renato Neiva Moreira produção production Angra Filmes Ltda., Fundação do Cinema Brasileiro contato contact irjgerber@sti.com.br

Brasil, 1987, cor, 100’ direção director Nelson Pereira dos Santos fotografia cinematography José Medeiros montagem editing Yvon Lemiere, Ynes Charoy, Catherine Gabrielidis, Sylvie Lhermemier, Alain Fresnot som sound Juarez Dagoberto, Jorge Saldanha produção production Tininho Fonseca, Roberto Petti, Chico Drumond, Schilke, Walter, José Oliosi contato contact reginafilmes@uol.com.br

CINE HUMBERTO MAURO, 22 NOV, 19h30

A panel on African culture in the world and the struggle of black people in the construction of their identity: the role of the quilombos, the black roots, the struggle for power.

Orí

Jubiabá

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CINE HUMBERTO MAURO, 22 NOV, 19h30

Abá means hope for spiritual peace. It also means meeting. A belief in light and an arrival to a state of contemplation.

CINE HUMBERTO MAURO, 27 NOV, 17h

This documentary records the ancestral Africanness present in terreiros (consecrated religious spaces). It deals with the sacred dances and Orixás rituals of the ancient kingdoms Yoruba from Ketu and Jeje from Abomey, as well as with the community of ‘Brazilians’ in Benin, where Brazilian traditions are still kept to this day.

O documentário registra a africanidade ancestral presente em terreiros, as danças sagradas e rituais de orixás nos antigos reinos iorubas de Ketu e jejes de Abomey, a comunidade dos ‘brasileiros’ em Benin, onde as tradições brasileiras são mantidas ainda hoje.

Brasil, 1998, cor, 54’ direção director Renato Barbieri, Victor Leonardi fotografia cinematography Carlos André Zalasik montagem editing Saulo Lamounier som sound Samuel Braga produção production Renato Barbieri, Albina C. Ayala, Milton Guran, Tião Carvalho, Paula Maria dos Santos contato contact renato@gayafilmes.com

Brasil, 1992, cor, 4’ direção director Raquel Gerber, Cristina Amaral fotografia cinematography Raquel Gerber, Hermano Penna, Pedro Farkas montagem editing Cristina Amaral som sound Lia Camargo produção production Rose Ferreira e Ignacio Gerber contato contact irjgerber@sti.com.br

Abá significa esperança de paz espiritual. Significa também encontro. A crença na luz e a chegada no estado de contemplação.

Atlântico Negro – na rota dos orixás

Abá

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Jovens da comunidade de terreiro Matamba Tombenci Neto em Ilhéus encenam suas origens, história, a formação do grupo Afro Cultural Dilazenze Malungo e sua luta por direitos.

Em outubro de 1997 uma equipe de cinema entra na favela Vila Parque da Cidade, situada na Gávea, zona sul do Rio. Os moradores assistem à missa celebrada pelo Papa no Aterro do Flamengo. Em dezembro, a equipe volta à favela para descobrir como seus moradores vivem a experiência religiosa. Católicos, umbandistas ou evangélicos, todos eles têm em comum a crença numa comunicação direta com o mundo sobrenatural através da intervenção, em seu cotidiano, de santos, orixás, guias, ou do Espírito Santo.

CINE HUMBERTO MAURO, 02 DEZ, 19h

In October 1997, a film crew enters the favela Vila Parque da Cidade, located in the Southern zone of Rio de Janeiro. Residents watch a Mass celebrated by the Pope in another region of the city. In December, the team returns to the favela to find out how residents experience religion. Catholics, umbandists or protestants share the belief in a direct communication with the supernatural world, which takes place through the intervention, in their daily lives, of saints, Orixás, or the Holy Spirit.

Brasil, 2007, cor, 31’ direção director Gilsonei Rodrigues (Mestre Ney) fotografia cinematography Ericsson Góes montagem editing Fábio Souza produção production Matamba Tombenci contato contact matambatombencineto@yahoo.com.br

Brasil, 1999, cor, 80’ direção director Eduardo Coutinho fotografia cinematography Luis Felipe Sá, Fabian Silbert Cristiana Grumbach montagem editing Jordana Berg som sound Valéria Ferro, Paulo Ricardo Nunes produção production Claudius Ceccon, Dinah Frotté, Elcimar de Oliveira contato contact cecip@cecip.org.br

CINE HUMBERTO MAURO, 26 NOV, 17h

The youth from Matamba Tombenci Neto, a Candomblé community in Ilhéus (BA), enact their origins, their history, the foundation of the afro cultural group Dilazenze Malungo and their struggle for rights.

Dos tambores do Tombenci aos tambores do Dilazenze

Santo forte

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Odé é um homem negro. Seu irmão, Luiz, foi espancado até a morte durante um conflito em uma ocupação em Belo Horizonte. O filme utiliza alegorias e simbolismos para contextualizar as relações políticas, raciais, de ancestralidade e urbanização no mais recente cenário social brasileiro.

O sacrifício e o êxtase em um terreiro em Pernambuco.

CINE HUMBERTO MAURO, 24 NOV, 17h

CINE HUMBERTO MAURO, 26 NOV, 17h

Odé is a black man. His brother, Luiz, was beaten to death during a conflict in an squatting in Belo Horizonte. The film employs allegories and symbolisms to contextualize political, racial, ancestral and urban relations in the Brazilian contemporary social scenario.

Brasil, 2015, cor, 25’ direção director Gabriel Martins fotografia cinematography Diogo Lisboa, Gabriel Martins montagem editing Gabriel Martins som sound Maurílio Martins, Raul Arthuso, Ariel Henrique produção production André Novais Oliveira, Gabriel Martins, Maurilio Martins, Thiago Macêdo Correia contato contact contato@filmesdeplastico.com.br

Brasil, 2008, cor, 45’ direção director Maoro Rocha Pitta fotografia cinematography Maoro Rocha Pitta montagem editing Maoro Rocha Pitta produção production Maoro Rocha Pitta contato contact maoropitta@gmail.com

Sacrifice and ecstasy in a terreiro in Pernambuco.

Rapsódia para um homem negro

Orixás – uma tradição viva

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Um filme de mulheres negras que parte da experiência da diretora Urânia Munzanzu para falar de protagonismo feminino na tradição Jeje Mahi, religiosidade feminina em pontes transatlânticas – do recôncavo da Bahia ao Benim/ África. O filme convida as matriarcas do culto de Vodun na Bahia para seu primeiro encontro com a Terra Mãe. Levando as herdeiras da ancestralidade que forjou no Brasil “outras Áfricas”, a diretora refaz o percurso das Rotas da escravidão trilhando caminhos de liberdade de volta à África.

Esta é a Casa das Minas. O dono da casa é Zomadônu. Como ele não tem corpo como a gente, eu estou aqui como chefa; mas quem manda na casa é ele. Deni Prata Jardim, última vodunsi da Casa das Minas do Maranhão.

CINE HUMBERTO MAURO, 23 NOV, 21h

CINE HUMBERTO MAURO, 26 NOV, 17h

A film made by black women that, through the experience of director Urânia Munzanzu, tells the story of female protagonism in the Jeje Mahi tradition, a female religion with transatlantic bridges: from Bahia’s concave to Benin, Africa. The filme invites the matriarchs from the Vodun cult in Bahia for their first encounter with Mother Earth. Along with the heiresses of the ancestral traditions that forget “other Africas” in Brazil, the director goes through the slavery route tracing paths of freedom back to Africa.

Bahia, 2017, cor, 17’ direção director Urânia Munzanzu montagem editing Andressa Santos, Diego Ribeiro som sound Dudoo Caribe, Daniel Frós produção production Juê Olivia contato contact munzanzu@gmail.com

Brasil, 2015, cor e p&b, 25’ direção director Larissa Figueiredo, Rafael Urban fotografia cinematography João Castelo Branco montagem editing Larissa Figueiredo som sound João Menna Barreto produção production Rafael Urban contato contact tuitam@tuitamfilmes.com, contato@tambormultiartes.com

“This is the “Casa das Minas”. The master of the house is Zomadônu. As he does not possess a body like we do, I am here as a chief; but he runs the house.” Deni Prata Jardim, last Vodunsi from the “Casa das Minas”, in Maranhão.

Merê

A última das minas

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Manzo Ngunzo Kaiango (Casa da Força de Kaiango) é um quilombo terreiro, território sagrado de umbanda e de candomblé angola, que fortalece sua comunidade apesar da cidade que avança de forma daninha contra o seu modo de vida e sua territorialidade. Pai Benedito, guia preto velho da sacerdotisa Mametu Muiandê, guia a resistência contra-diaspórica. O filme compõe o processo de registro dos Quilombos como patrimônio cultural imaterial de Belo Horizonte.

Antigos reinos banto com suas coroas, séquitos e guardas, seus cosmos singulares, (re)existem hoje nas terras das Minas Gerais. Três gerações de rainhas e uma travessia de volta, em visita aos domínios da mítica Nzinga, às terras dos reis do Congo, aos cantos de Angola, pelos descendentes da Rainha da Guarda de Moçambique Treze de Maio, Isabel Cassimira, personagem central dessa história.

CINE HUMBERTO MAURO, 25 NOV, 17h

CINE HUMBERTO MAURO, 26 NOV, 14h

Manzo Ngunzo Kaiango (House of the Kaiango Force) is a sacred territory of Umbanda and Angola Candomblé. It holds together its community despite the harmful advances of the city against their way of life and territoriality. Father Benedito, the Preto Velho who guides the priestess Mametu Muiande, leads their counter-diasporic resistance. The film is part of an endeavor to register Quilombos as intangible cultural heritage in the city of Belo Horizonte.

Brasil, 21’, cor, 2017 direção director Aléxia Melo, Bruno Vasconcelos fotografia cinematography Aléxia Melo som sound Leonardo Rosse montagem editing Bruno Vasconcelos produção production Fernanda de Oliveira/ CAMPO contato contact fernanddaoliveira@gmail.com

Brasil/Angola, 2018, cor, 73’ direção director Júnia Torres, Isabel Casimira Gasparino fotografia cinematography Bernard Machado, Júnia Torres montagem editing Carolina Canguçu, Luisa Lanna som sound Bruno Vasconcelos produção production Filmes de Quintal contato contact filmes@filmesdequintal.org.br

Ancient Bantu kingdoms with their crowns, retinues and guards, as well as their singular cosmos, (re)exist today in the lands of Minas Gerais. The film pictures three generations of queens and a trip back to the domains of mythical Nzinga, to the lands of the kings of Congo, to the songs of Angola, to the descendants of the Queen of the Treze de Maio Guard, Isabel Casimira, protagonist of this story.

Tem quilombo na cidade – Manzo Ngunzo Kaiango

A rainha Nzinga chegou (work in progress)

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Encontro com Iemanjá para além dos olhos Brasil, 2018, cor, 67’ direção director Ricardo de Moura fotografia cinematography Gabriel de Moura, Michelle Pessoa, Bernardo Vasconcelos, Ricardo de Moura, Isadora Fachardo, Bruno Vasconcelos montagem editing Bruno Vasconcelos som sound Leonardo Rosse, Daniel Quintela, Eduardo Rosse produção production Gabriel de Moura - Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente contato contact casapaijacobdooriente@gmail.com

“Encontro com Iemanjá: para além dos olhos” é uma iniciativa da Associação da Resistência Cultural Afro-Brasileira Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente, que mostra o tradicional Festejo de Iemanjá que acontece há mais de sessenta anos na Orla da Lagoa da Pampulha. A metodologia foi o auto-registro, realizado a partir do próprio povo de axé. Esse filme é um processo de encontro. Encontro com Iemanjá, com a ancestralidade, com outras casas, terreiros, com a linguagem audiovisual e suas potencialidades. “Encounter with Iemanjá: beyond the eyes” is an initiative of the AfroBrazilian Cultural Resistance Association Pai Jacob do Oriente House of Charity, which show the traditional Iemanjá celebration, held for over sixty years at the Pampulha Lagoon. The methodology was self-filming, carried out by the people of axé themselves. This film is a process of encounter. Encounter with Iemanjá, with ancestry, with other religious houses, terreiros, with the audiovisual language and its potentialities.

CINE HUMBERTO MAURO, 28 NOV, 17h

Alápini: a herança ancestral de mestre Didi Asipá

Brasil, 2017, digital, cor, 50’ direção director Emilio Le Roux, Hans Herold, Silvana Moura fotografia cinematography Hans Herold montagem editing Emilio Le Roux som sound Gustavo Peixinho, Gilberto Monte produção production Djane Moura Cruz contato contact silmoura9@gmail.com

A trajetória de Mestre Didi, Alápini (sacerdote do culto aos ancestrais iorubanos egunguns), é contada a partir das memórias dos filhos de santo do terreiro Ilê Asipá e membros da família. Os Asipá foram fundadores do reino de Ketu na África, seus descendentes chegaram ao Brasil escravizados e tiveram importante papel na construção do candomblé brasileiro. Além de sacerdote, Mestre Didi foi artista visual com reconhecimento internacional, escritor, dramaturgo e educador, pioneiro na aplicação de uma pedagogia afro-brasileira.

The trajectory of Master Didi, Alápini: priest of the cult of the Yoruba ancestors egunguns, is told from the memories of the children of santo of the terreiro Ilê Asipá and members of the family. The Asipá were founders of the kingdom of Ketu in Africa, their descendants arrived in Brazil enslaved and played an important role in the construction of Brazilian candomblé. In addition to being a priest, Master Didi was an internationally known visual artist, writer, playwright and educator, pioneer in the application of an Afro-Brazilian pedagogy.

CINE HUMBERTO MAURO, 27 NOV, 17h

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brazilian contemporary showcase

mostra contemporânea brasileira



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Das urgências Daniel Ribeiro Layla Braz Renata Otto Tatiana Carvalho Costa

N

este ano, recebemos 287 filmes de todos os Estados brasileiros. Na grande maioria dessa produção, talvez pela própria ideia do documentário, como instrumento de visibilidade de lutas históricas e urgentes, uma narrativa semelhante nos foi contada: povos subalternizados, excluídos, massacrados, lutando pela sobrevivência de suas formas de vida. Afirmando, contra a lógica avassaladora do capital e dos poderes humanos, sua cultura e maneira de ver o mundo. Nos melhores filmes, a visão retumbante do fracasso dessas lutas, mas também formas elaboradas de manter-se e sobreviver à marcha incessante dos poderes sobre o humano. “Porque um vencido vivo é sinal visual em demasia”1 – afirmam estes documentários que reiteram o direito destes povos à existência, dentro das suas próprias maneiras de contar. A história que vivemos e recebemos é uma sucessão de tragédias, uma catástrofe em que os povos originários, os escravizados e os desviantes da norma social são continuamente destruídos. O poder dos impérios coloniais ainda nos assombra. O Brasil não é uma exceção cordial. Walter Benjamin2 nos alerta: a tradição dos oprimidos ensina que o estado de exceção em que vivemos é a regra. Entre os filmes recebidos por esta seleção, vimos uma diversidade imensa de tentativas de narrar nossa história a contrapelo. Mas como decidir quais os longas e curtas mais qualificados a permanecerem e serem dados à vista do espectador se, a cada visionamento, uma agenda política fundamental se impunha? Como retirar filmes em que víamos personagens apaixonantes encenarem para as câmeras as suas formas de vida negra, índia, cabocla, LGBTIQ+, semiescrava, ocupa ou simplesmente trabalhadora? O momento histórico nos pede que sejamos afirmativos. Tudo isto acontece na linguagem, diante de nós, e não podemos nos furtar ao olhar empático a toda esta movimentação. Trabalhadoras e trabalhadores do cinema, sejam integrantes das minorias políticas ou não, estão sob ameaça, mas continuam

1. LLANSOL, Maria Gabriela. A restante vida. Porto: Edições Afrontamento,1982. 2. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In.: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. (p. 222-234)


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se dedicando a revelar toda a complexidade (e muitas vezes a obscenidade) do massacre cotidiano a que povos subalternos são submetidos e também da beleza e da inventividade destes condenados da terra – conterrâneos, patrícios ou mais geralmente terranos. Ao mesmo tempo, nos pareceu claro que a urgência não poderia ser a chave exclusiva para a compreensão deste conjunto imenso de filmes, até porque a grande maioria nos coloca face ao âmago desta pulsação destruidora. Sendo a linguagem cinematográfica o meio onde ela pulsa e o lugar da colocação desta urgência, tivemos muitas vezes que reconhecer que, embora o calor do momento seja o lugar ideal para captar a contínua derrota histórica, há também filmes que nos impõem uma pausa no ímpeto de tudo mostrar imediatamente, nos lembrando da necessidade de que estas lutas sejam mostradas por um olhar mais demorado, atento e reflexivo. Filmes que nos oferecem a contemplação se mostraram potentes em justamente atentar para a necessidade de sensibilizar nossos corpos espectadores a outros tempos e possibilidades. Diante da urgência, talvez o importante seja também nos posicionarmos com um olhar paciente, vulnerável aos devires que afetam a linguagem e nos retiram da normalidade discursiva. Formou-se, então, um conjunto de filmes cujas estratégias se destacaram entre os outros, refletindo sobre a própria imagem que criam e provocando o espectador a deslocar o olhar, procurando um reposicionamento e uma atitude interrogativa diante do que é mostrado. São estes os filmes que nos causaram as maiores dúvidas sobre como construir uma seleção digna da produção que chegou até nós. Se o critério da pulsação política foi o primeiro que nos saltou aos olhos, este segundo, de uma postura reflexiva, crítica e cinematograficamente arriscada diante do mundo filmado foi aquele que nos conduziu até um recorte final. Sabendo da incompletude do nosso gesto, oferecemos ao espectador do forumdoc.bh.2018 este conjunto de filmes inquietos e ensaísticos que representam, se não a integralidade das lutas, a forma como elas agitaram o nosso debate.3

3. Na seção Ensaios deste catálogo, da página 157 a 210, um conjunto de textos inéditos escritos por autoras e autores convidados busca prolongar esse debate em torno dos atravessamentos que os filmes da Mostra Contemporânea Brasileira nos propuseram.


Bimi, Shu Ikaya Acre, 2018, digital, cor, 52’ direção director Isaka Huni Kuin, Siã Huni Kuin, Zezinho Yube fotografia cinematography Ernesto de Carvalho montagem editing Tiago Campos som sound Tiago Campos produção production Sérgio de Carvalho contato contact saciconteudo@gmail.com

Bimi, Shu Ikaya é um telefilme que mergulha na trajetória de vida de Bimi, Mestra Artesã que se tornou liderança política de sua Aldeia Segredo do Artesão/Tarauacá-Acre, atividade essencialmente masculina, obtendo o reconhecimento de sua Terra Indígena. O filme dá voz e visibilidade aos anseios e desejos das mulheres indígenas, permitindo um novo olhar e debate sobre a feminilidade indígena e suas formas de protagonismo. Bimi, Shu Ikaya is a TV movie that takes a deep dive into the life trajectory of Bimi, Master Craftswoman who became a political leader for her Aldeia Segredo do Artesão/Tarauacá-Acre, an activity essentially assigned to men, and obtained the acknowledgement of their Native Land. The movie gives voice and visibility to the agonies and desires of indigenous women, conceiving a new gaze and debate about indigenous femininity and their ways of protagonism.

CINE HUMBERTO MAURO, 25 NOV, 15h

Auto de resistência Act of resistance

Rio de Janeiro, 2018, digital, cor, 104’ direção director Natasha Neri, Lula Carvalho fotografia cinematography Lula Carvalho Asc (ABC), Pedro Von Krüger montagem editing Marília Moraes (EDT) som sound Pedro Sá Earp, Marcelo Noronha/ Altyr Pereira, Daniel Martins, Heron Alencar, Luiz Murillo, Uerlem Queiroz/ Denilson Campos produção production Bruno Arthur/ Lia Gandelman, Joana Nin contato contact lia.gandelman@gmail.com

Homicídios praticados pela polícia contra civis, no Rio de Janeiro, em casos conhecidos como “autos de resistência”. O filme acompanha a trajetória de personagens que lidam com essas mortes em seus cotidianos, mostrando o tratamento dado pelo Estado a esses casos, desde o momento em que um indivíduo é morto, passando pela investigação da polícia, até as fases de arquivamento ou julgamento por um tribunal do júri.

Civils are murdered by cops in the city of Rio de Janeiro, in episodes known as “acts of resistance”. The movie follows the trajectory of characters that deal with these deaths in their daily lives. It shows how they are treated by the State in this kind of situation, from the moment an individual is killed to the conclusion of the process in court, including police investigation.

CINE HUMBERTO MAURO, 24 NOV, 19h

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Conte isso àqueles que dizem que fomos derrotados.

Maio de 2018. A 5 meses da eleição presidencial brasileira, o país está mergulhado em uma crise política e econômica. Nesta atmosfera de tensão social, caminhoneiros decidem fazer uma greve em busca de melhores condições de trabalho. Em meio às reivindicações da classe de trabalhadores, surgem cada vez mais vozes pedindo uma intervenção militar.

CINE HUMBERTO MAURO, 01 DEZ, 16h30

AUDITÓRIO CARANGOLA - FAFICH (UFMG), 27 NOV, 12h

May 2018. Five months before Brazilian presidential election, the country is plunged into a political and economical crisis. In this atmosphere of social tension, truck drivers decide to strike over better work conditions. Amid the demands of their working class, there are more and more voices claiming for military intervention.

Minas Gerais, 2018, digital, cor, 23’ direção director Aiano Bemfica, Camila Bastos, Cristiano Araújo, Pedro Maia de Brito fotografia cinematography Rick Mello, Aiano Bemfica montagem editing Bersa Mendes, Pedro Maia de Brito som sound Nicolau Domingues (edição e mixagem de som) produção production Aiano Bemfica, Pedro Maia de Brito contato contact maiaapedro@gmail.com

Pernambuco, 2018, digital, cor, 75’ direção director Victoria Alvares, Quentin Delaroche fotografia cinematography Quentin Delaroche montagem editing Quentin Delaroche som sound Victoria Alvares produção production Thais Vidal, Dora Amorim, Victoria Alvares, Quentin Delaroche contato contact quentindelaroche@gmail.com

CINE HUMBERTO MAURO, 01 DEZ, 19h

Tell this to those who say that we were defeated.

Conte isso àqueles que dizem que fomos derrotados Tell this to those who say we’ve been defeated

Bloqueio Block

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Os cantos (acchudi e ädeemi) são tecnologias imprescindíveis ao bem viver ye’kwana, pois são modos de agir sobre o(s) mundo(s), os seres e as coisas. Sem eles, não há vida. Dilemas associados à transferência deste conhecimento guardado pelos sábios (inchonkomo) e sábias (no’sankomo). Expõe os riscos do registro audiovisual e os cuidados necessários para neutralizá-los.

“Ando por mistério, vivo por mistério [...] Nosso corpo é uma máquina, ou cuida ou sabe como é né?”. Entre memórias da boate e relatos de resistências cotidianas; Tikal, importante personalidade LGBTI do Recôncavo da Bahia, dança e afronta as normas.

CINE HUMBERTO MAURO, 30 NOV, 15h

AUDITÓRIO BAESSE - FAFICH (UFMG), 22 NOV, 12h CINE HUMBERTO MAURO, 27 NOV, 21h

The chants (acchudi e ädeemi) are indispensable technologies to the ye’kwana well being, for they are ways of action upon the world(s), beings and things. Without them, there is no life. Dilemmas associated with the passage of this knowledge, kept by the wise men (inchonkomo) and wise women (no’sankomo). Risks of audiovisual record and the necessary concerns to neutralize them.

Roraima, 2018, digital, cor, 77’ direção director Júlio David Rodrigues, José Cury fotografia cinematography Aline Edaaseweeni Rodrigues, Cleyd Gonçalo Rodrigues, Jairo David Rodrigues, José Cury, Júlio David Rodrigues, Jurandir D. Wedunumaashi Magalhães, Nivaldo Edaamiya Velasques da Rocha, Robson Henrique Gimenes, Sandro Barrada da Silva, Viviane Cajusuanaima Rocha montagem editing Júlio David Rodrigues, José Cury som sound Eduardo Carvalho Ferreira, Jairo Rodrigues, José Cury, Júlio David Rodrigues, Jurandir D. Wedunumaashi Magalhães, Majoí Favero Gongora, Viviane Cajusuanaima Rocha produção production Majoí Favero Gangora contato contact guilhermejpc@gmail.com

Alagoas, 2017, digital, cor, 7’ direção director Ulisses Arthur fotografia cinematography Ulisses Arthur montagem editing Ulisses Arthur som sound Ulisses Arthur produção production Marvin Pereira contato contact ulisses.arthur@gmail.com

“I walk through mystery, I live by mystery [...] Our body is our machine, either you take care of it or you know how it goes, right?”. Among memories of nightclubs and accounts of daily resistance; Tikal, an important LGBTI personality from Recôncavo da Bahia, dances and defies the norms.

Deekeni – os olhos de Wiyu Deekeni – The eyes of Wiyu

CorpoStyleDanceMachine BodyStyleDanceMachine

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Depois de anos vivendo em barracos de lona e madeira, Gerson e Dominícia são os primeiros quilombolas a conquistar as casas de alvenaria a que têm direito, na mesma região que um dia abrigou o mítico Quilombo dos Palmares, em Alagoas. E tudo começou a partir de uma pequena caverna, conhecida hoje como a Furna dos Negros.

Lludy, brasileira, prostituta, travesti, perdeu o apartamento onde vivia em Barcelona e agora depende de um depósito para guardar sua infinidade de coisas. Em meio a uma busca constante por objetos, desde um vestido até um controle de televisão, ela revisita sua vida, suas mudanças, sua condição de imigrante, sua solidão. No Candomblé, legítima expressão brasileira de fé e identidade, alcança sentido espiritual.

CINE HUMBERTO MAURO, 30 NOV, 15h

CINE HUMBERTO MAURO, 25 NOV, 15h

After years living in cloth and wood shacks, Gerson and Dominícia are the first Quilombolas to obtain the masonry houses they are entitled to, in the same region where once existed the mythical Quilombo dos Palmares, in Alagoas. And everything began in a small cave known today as Cave of Blacks.

Alagoas, 2017, digital, cor, 29’ direção director Wladymir Lima fotografia cinematography Wladymir Lima montagem editing Wladymir Lima som sound Peixe Dias, Wladymir Lima produção production Fabiana de Paula contato contact wladymirlima@hotmail.com

Brasília, Brasil/ Barcelona, Espanha, 2017, digital, cor, 53’ direção director Vinicius Sassine, Mariana Paschoal, Julien Mérienne, Maria Chatzi fotografia cinematography Julien Mérienne, Maria Chatzi montagem editing Vinicius Sassine, Mariana Paschoal, Julien Mérienne, Maria Chatzi som sound Mariana Paschoal, Maria Chatzi, Vinicius Sassine, Julien Mérienne produção production Vinicius Sassine, Mariana Paschoal contato contact viniciussassine@yahoo.com.br

A Brazilian prostitute and transvestite, Lludy has lost the apartment where she lived in Barcelona. Now, she depends on a depot to store her countless possessions. Amid the constant search for objects, from a dress to a TV remote control, she revisits her life, her changes, her immigrant condition, her loneliness. In Candomblé, a legitimate Brazilian expression of faith and identity, she finds spiritual meaning.

Furna dos negros Cave of blacks

Escape

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Com/por Lanny Gordin: presença-frequência: o guitarrista é um dos personagens fundamentais na transformação da música brasileira a partir da década de 60: eletrizou Gal Costa, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Jards Macalé, entre outros. O filme nos revela o seu processo libertário de composição e pensamento atual: embarca em uma insólita odisseia pela China, local de nascimento, e Brasil, país onde vive: geografia atonal: desrazão: encontros inauditos.

B. é um pesquisador. Ele parte em viagem em busca do farol. Encontra a escuridão. Como tocar as histórias não escritas dos que vieram antes de nós?

CINE HUMBERTO MAURO, 29 NOV, 18h30

CINE HUMBERTO MAURO, 29 NOV, 21h

With/for Lanny Gordin: presence-frequency: the guitar player is one of the fundamental figures of the transformation of brazilian music in the 1960s: he electrified Gal Costa, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Jards Macalé, among others. The movie reveals his libertarian process of composing and thinking: embarking in an unusual odyssee to China, his home country, and Brazil, where he lives: atonal geography: unreason: meetings unheard of.

São Paulo, 2017, digital, cor, 88’ direção director Gregorio Gananian fotografia cinematography Toni Nogueira montagem editing Gregorio Gananian, Danielly O.M.M., Cesar Gananian som sound Guilherme Shinji produção production Gregorio Gananian, Danielly O.M.M., Sergio Gagliardi, Toni Nogueira, Wellington Darwin contato contact zaumprodutora@gmail.com

Recife, 2018, digital, cor, 20’ direção director Caioz, Luís Henrique Leal fotografia cinematography Luís Henrique Leal montagem editing Caioz som sound Daniel Moraes (Jack) produção production Bruno Firmino, Caioz, Luís Henrique Leal contato contact leal.luishenrique@gmail.com

B. is a researcher. He goes on a journey seeking for the lighthouse. He finds darkness. How to reach the unwritten stories of those who came before us?

Inaudito Unheard-of

Galinhas no porto Chickens in the port

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Em um quilombo de Cachoeira, na Bahia, a força ancestral do mangue e da maré regem os ciclos da vida: partir, ficar, morrer, viver, recomeçar.

Luiz Roberto Galizia foi uma figura importante para a cena teatral nas décadas de 1970 e 1980. Foi, também, um tio que não conheci. Este documentário procura um resgate do vivido, a partir do registro feito em fotografias e filmes Super 8 pelo tio Luiz e encontrado por mim 30 anos depois da sua morte.

CINE HUMBERTO MAURO, 30 NOV, 15h

Luiz Roberto Galizia was an important figure in the 1970s and 1980s theatrical scene. He was also an uncle of mine, who I haven’t met. This documentary tries to rescue his life from photography and Super 8 records made by him and found by me 30 years after his death.

Bahia, 2018, digital, cor, 22’ direção director Amaranta Cesar fotografia cinematography Danilo Scaldaferri montagem editing Danilo Scaldaferri som sound Marina Mapurunga produção production Elen Linth contato contact amaranta.cesar@gmail.com

Rio de Janeiro, 2017, digital, cor e p&b, 21’ direção director Ana Galizia montagem editing Luciano Carneiro, Felipe Fernandes som sound Guilherme Farkas produção production Ana Galizia, Guilherme Farkas contato contact farkas.gui@gmail.com

CINE HUMBERTO MAURO, 29 NOV, 18h30

In a quilombo of Cachoeira city, in Bahia, the ancestral force of mangrove and tide conduct the cycles of life: leaving, staying, dying, living, starting over.

Maré Mangrove

Inconfissões Unconfessions

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Em 1975, a declaração da independência de Angola iniciou uma longa Guerra Civil que matou e expulsou vários angolanos de suas terras. 40 anos depois, Alice, a única filha brasileira de uma família angolana que encontrou refúgio no Brasil, decide ir pela primeira vez à Angola , atrás das histórias que motivaram seus pais a lhe batizarem com esse nome.

No continente africano, Ana Pi se reconecta às suas origens através do gesto coreográfico, engajando-se num experimento espaço-temporal que une o movimento tradicional ao contemporâneo. Em uma dança de fertilidade e de cura, a pele negra sob o véu azul se integra ao espaço, reencenando formas e cores que evocam a ancestralidade, o pertencimento, a resistência e o sentimento de liberdade. (por Siomara Farias/FESTCURTASBH2018)

CINE HUMBERTO MAURO, 29 NOV, 18h30

AUDITÓRIO BAESSE - FAFICH (UFMG), 22 NOV, 12h CINE HUMBERTO MAURO, 29 NOV, 18h30

In 1975, the declaration of independence of Angola started a long civil war that killed and expelled many Angolans from their lands. 40 years later, Alice, the only Brazilian child in a family of Angolan refugees living in Brazil, decides to go to Angola for the first time, seeking for stories that motivated her parents to give her this name of baptism.

Pernambuco, 2017, digital, cor, 25’ direção director Tila Chitunda fotografia cinematography Tila Chitunda montagem editing Amandine Goisbault som sound Tila Chitunda produção production Tila Chitunda, Laura Lins contato contact tilovita@gmail.com

Minas Gerais, Brasil / França, 2018, digital, cor, 27’ direção director Ana Pi fotografia cinematography Ana Pi montagem editing Ana Pi produção production Ana Pi contato contact anazpi@gmail.com

In the African continent, Ana Pi reconnects with her origins through the choreographic gesture, engaging in a space-time experiment that combines traditional and contemporary movements. In this dance of fertility and healing, the black skin under the blue veil is integrated with space, reenacting new forms and colors that evoke ancestry, belonging, resistance and the sense of freedom. (by Siomara Farias/FESTCURTASBH2018)

Nome de batismo – Alice Name of baptism – Alice

NoirBLUE – deslocamentos de uma dança NoirBLUE – déplacements d’une danse

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Encantamento, cores, sons e movimentos. Essa é a imagem e a memória afetiva dos parques de diversões itinerantes montados em periferias e cidades do interior. À luz do dia, a fantasia dá lugar a uma dura realidade: pessoas vivendo em situações precárias, relações de trabalho abusivas e histórias de vida marginalizada.

Depois de ser vítima de uma violenta desocupação ocorrida no bairro Parque Oeste, em Goiânia, uma mulher reconstrói sua vida tendo como norte a luta por moradia.

CINE HUMBERTO MAURO, 01 DEZ, 19h

CINE HUMBERTO MAURO, 23 NOV, 17h

Enchantment, colors, sounds and movements. This is the image and the affective memory of the traveling theme parks set up on the outskirts and inner cities. In the day light, fantasy is replaced by a harsh reality: people living in precarious situations, abusive working relationships and stories of marginalized life.

Pernambuco, 2018, digital, cor, 73’ direção director Cecilia da Fonte fotografia cinematography Pedro Sotero montagem editing Eva Randolph som sound Phelipe Cabeça produção production Laura Lins contato contact dafontececilia@gmail.com

Goiás, 2018, digital, cor, 70’ direção director Fabiana Assis fotografia cinematography Leonardo Feliciano montagem editing Eduardo Consoni, Rodrigo T. Marque som sound Guile Martins/ Edson Secco, Julia Teles produção production Fabiana Assis contato contact fabiana@violetafilmes.com

After being victim of a violent process of evacuation in the Parque Oeste neighborhood, in Goiânia, a woman rebuilds her life guided by the fight for housing.

Parquelândia Parkland

Parque Oeste West Park

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“Eu penso todo o tempo que se tivesse nascido muda, ou se tivesse mantido um juramento de silêncio toda minha vida, teria sofrido igual, e igualmente morreria.” (por Audre Lorde)

Sexta-feira da Paixão é dia de comer peixe.

CINE HUMBERTO MAURO, 02 DEZ, 17h

CINE HUMBERTO MAURO, 30 NOV, 15h

“I think all the time that if I had been born mute, or if I had kept a vow of silence for my whole life, I’d have suffered just as much, and I’d have died also.” (por Audre Lorde)

Bahia / São Paulo, 2018, digital, cor, 3’ direção director Marina Pontes montagem editing Marina Pontes contato contact marinapontesss@hotmail.com

Minas Gerais, 2018, digital, p&b, 15’ direção director Bernard Machado, Florence Defawes, Marina Sandim, Ralph Antunes fotografia cinematography Bernard Machado, Florence Defawes montagem editing Ralph Antunes produção production Ralph Antunes contato contact ralphpavoes@gmail.com

Good Friday is a day to eat fish.

Sair do armário

Praça do peixe Fish Square

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Terremoto Santo é um documentário em estilo musical feito em colaboração com jovens cantores evangélicos da Zona da mata sul de Pernambuco, região historicamente marcada pela economia da cana-de-açúcar. Elemento central da liturgia da Assembleia de Deus, a música é tratada em Terremoto Santo como expressão de aspectos sociais, econômicos e estéticos de uma religião que não para de crescer no país.

O curta documentário Tekoha Ha’e Tetã narra a vida do Wera Kuaray em busca de um novo caminho ao caminhar com o seu olhar atento de sabedoria guarani entre dois mundos.

CINE HUMBERTO MAURO, 27 NOV, 21h

CINE HUMBERTO MAURO, 29 NOV, 21h

Holy Tremor is a musical documentary made in collaboration with young evangelical singers from Zona da Mata, in Pernambuco’s south region, which is historically characterized by sugarcane economy. Music, the main element in the church’s liturgy, is elaborated as an expression of social, economical and aesthetic aspects of a religion that is growing in the country.

Pernambuco, 2017, digital, cor, 19’ direção director Bárbara Wagner, Benjamin de Burca fotografia cinematography Pedro Sotero montagem editing Eduardo Serrano som sound Guga Rocha produção production Bárbara Wagner, Benjamin de Burca contato contact babebau@gmail.com

Rio de Janeiro, 2018, digital, cor, 18’ direção director Alberto Alvares fotografia cinematography Alberto Alvares, Daiane Cunha montagem editing Alberto Alvares contato contact albertotuparay@yahoo.com.br

The short-documentary Tekoha Ha’e Tetã tells the quest of Wera Kuaray in search of a new path while he walks with a steady, wise and guarani gaze among two worlds.

Terremoto santo Holy tremor

Tekoa Ha’e Tetã

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Um paralelo traçado entre as violações de direitos humanos do passado escravocrata brasileiro e da ditadura militar por obras do século XIX e depoimentos dados à Comissão Nacional da Verdade. Quem são os heróis nacionais brasileiros?

Utilizando uma linguagem poética, Travessia parte da busca pela memória fotográfica das famílias negras e assume uma postura crítica e afirmativa diante da quase ausência e da estigmatização da representação do negro.

CINE HUMBERTO MAURO, 30 NOV, 15h

CINE HUMBERTO MAURO, 23 NOV, 17h

AUDITÓRIO BAESSE - FAFICH (UFMG), 22 NOV, 12h

A parallel between the violations of human rights of the brazilian slavery past and the military dictatorship drawn by XIX century paintings and testimonies given to the National Commission of the Truth. Who are the Brazilian national heroes?

São Paulo, 2017, digital, cor, 12’ direção director Rubens Passaro fotografia cinematography Rubens Passaro montagem editing Rubens Passaro produção production Rubens Passaro contato contact rpassarojr@gmail.com

Rio de Janeiro, 2017, Digital, cor e p&b, 5’ direção director Safira Moreira fotografia cinematography Caíque Mello montagem editing Safira Moreira som sound Safira Moreira produção production Safira Moreira contato contact safiramoreira1@gmail.com

Making use of a poetic language, Crossing focuses on the search for photographic memory of Black families, adopting a critical and affirmative attitude before the scarcity and stigmatization of Black people representations.

Universo preto paralelo Black parallel universe

Travessia Crossing

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CINE HUMBERTO MAURO, 02 DEZ, 17h

A film that has as its theme the waiting, recording it in its most varied manifestations. The waiting in a line, the mystical waits, the waiting of an actor to get into a scene, the harrowing wait for sleeping, the wait for the hormonal effects in a gender identity adequacy. The waiting time is mixed with the time of our own lives, at a time that we are unlearning how to wait.

Um filme que tem como tema a espera, registrando-a em suas mais variadas manifestações. A espera em uma fila, as esperas místicas, a espera de um ator para entrar em cena, a angustiante espera pelo sono, a espera pelos efeitos hormonais em uma adequação de identidade de gênero. O tempo da espera se confunde com o tempo da própria vida, em um tempo em que estamos desaprendendo a esperar.

Minas Gerais, 2018, digital, cor, 76’ direção director Cao Guimarães fotografia cinematography Beto Magalhães, Cao Guimarães, Danilo Cordeiro montagem editing Cao Guimarães, Ralph Antunes som sound Gustavo Fioravante produção production Aline X contato contact info@88artcinema.com

Espera Waiting

Theo Duarte é doutor em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA-USP e mestre em Comunicação pela UFF com pesquisas sobre as relações entre cinema experimental e artes visuais no cinema brasileiro e norte-americano. Foi programador do Cine Humberto Mauro [Belo Horizonte/2010-201 1h] e co-curador das mostras “Cinema Estrutural” [Caixa Cultural – RJ/2015] e “O Cinema de Jerzy Skolimowski” [CCBB – SP/2017], dentre outras.

Maria Ines Dieuzeide é pesquisadora de cinema e curadora. Doutora em Comunicação Social pela UFMG. Integra o grupo de pesquisa Poéticas da Experiência (UFMG) e trabalha na produção e edição da Revista Devires - Cinema e Humanidades. É uma das curadoras do Cineclube Sorpasso e colaboradora da revista Rocinante.

Ana Siqueira atua em curadoria, pesquisa, tradução e produção de cinema. Coordenadora de programação do 15º, 16º (co-coordenação), 19º e 20º FestcurtasBH (2013, 2014, 2017 e 2018), foi programadora do Cine Humberto Mauro e é curadora da mostra de cinema infantil do Festival SACI. Mestranda em Comunicação Social pela UFMG, onde também se graduou, e diplomada em Filosofia pela Universidade Paris 8. Foi diretora assistente do filme A Cidade Onde Envelheço, de Marília Rocha.

Observadores da Mostra Contemporânea Brasileira

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international contemporary showcase

mostra contemporânea internacional



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Para reformular resistências Carla Italiano Luisa Lanna Luís Fernando Moura

A

mostra Contemporânea Internacional inaugura nesta edição uma outra metodologia de seleção de filmes, ao responder às formas de circulação e exibição que vêm vigorando nos últimos anos ao redor do mundo. A mostra, composta por 12 títulos (mais restrita do que gostaríamos), é resultado não apenas da inscrição prévia de títulos que buscaram o festival, como nas últimas edições, mas de uma pesquisa compartilhada pelos três integrantes da comissão através das principais esferas de exibição cinematográficas. Com isso, buscamos ampliar o escopo da nossa programação estrangeira, possibilitando que obras cruciais, de cineastas estreantes ou notórios, chegassem à cidade. Certo caráter panorâmico atravessa esta programação, uma vez que ela é fruto do nosso desejo de abarcar contextos díspares, na busca por múltiplos caminhos para se pensar o cinema hoje – por mais que reconheçamos a impossibilidade de salvaguardar qualquer intenção de panorama da ilusão de um falso “todo”. Seria redutor, para não dizer impossível, englobar filmes tão distintos sob uma mesma linha norteadora, seja ela um guarda-chuva temático ou um único regime de enunciação. No entanto, a costura que talvez nos permitiu agrupá-los numa mesma mostra reside justamente nos seus gestos particulares de criação: o que cada um apresenta de singular em termos de invenção de formas, na lida com os sons e imagens que atravessam a relação com um “real” documentado, recontado, filmicamente inventado. Ainda assim, isso parece se relativizar frente ao atual contexto brasileiro, que começa a contaminar nossa leitura dos filmes em meio a um cotidiano de falsa normalidade. Num cenário que se faz desolador, com visível ataque ao Estado Democrático de Direito, por um conjunto de forças de extrema-direita que não conseguimos dimensionar, nos perguntamos como o cinema reage às ameaças constantes do fascismo em seus múltiplos sinais e disfarces. Disfarces como aquele inscrito no regime totalitário de visibilidade ao qual se opõem os materiais de Expo Lío 92, que recusa as belas imagens, vendáveis e consumíveis, para se debruçar sobre o lixo cultural do capitalismo tardio no contexto ibérico/latino. Ou os sinais de uma postura fascista na legitimação da violência do Estado-nação com sua demonstração de força, evidente na


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repressão à luta por eleições livres no Congo em Kinshasa Makambo. Está claro que o conflito que presenciamos no Brasil hoje não é sobre projetos de governo, mas sobre formas de vida.1 Assim, torna-se crucial identificar, especular, visionar modos de resistência e de luta possíveis que não passam (apenas) pelo embate direto, mas que podem se fazer presentes no gesto de re-plantar sementes a fim de salvá-las da extinção (em Wild Relatives), no conhecimento de caça ancestral que resiste às mudanças causadas pelo Antropoceno (Walrus Hunting), ou no cruising livre de amarras (formais, narrativas) da história de amor de Let the summer never come again. Frente a essa situação, resta-nos, talvez, menos acreditar que o cinema possa de fato alterar algo num dado contexto – e, menos ainda, a academia (como The Rare Event complexifica, ao acompanhar um seminário a portas fechadas sobre o “conceito” de resistência). O que podemos, talvez, seja justamente atentar para como os filmes possibilitam entrever essas formas de vida e resistência, marcadas por redes de afeto e solidariedade, a partir da invenção de linguagens que escapam a um desejo de totalização e de ordem.

Estas lutas já chegaram

A ameaça contra a democracia avança na República Democrática do Congo. Em 2015, o então presidente Joseph Kabila aprova uma emenda constitucional que o permite permanecer no poder por um terceiro mandato sem eleições. A negligência histórica da mídia estrangeira perante o contexto social-político nos países africanos omite a situação dos jovens congoleses que, desde 2010, arriscam suas vidas contra o autoritarismo e a violência praticada pelo exército de Kabila. Em terras brasileiras, onde a matriz africana é fundante, pouco sabemos sobre o ocorrido. Frente ao silêncio midiático internacional, Kinshasa Makambo lança o espectador na mira das balas e bombas de gás lacrimogêneo disparadas contra os manifestantes que pedem por eleições livres. Christian, um jovem ativista da oposição, Jean-Marie, recém liberado do cárcere, e Ben, de volta após um período em exílio forçado, se reúnem com a juventude anti-kabila em uma dupla tarefa: ocupar as ruas com seus corpos colocando-se de frente às armas do governo; e articular seus ideais em laboriosas reflexões para pensar estratégias que mudem o curso dos acontecimentos. Em meio a reuniões clandestinas, treinamentos anti-repressão, conflitos violentos e o pesar das mães e avós que temem pela vida de seus filhos, o diretor congolês Dieudo Hamadi e sua câmera colocam-se ombro a ombro junto aos três companheiros de luta. O registro direto dispensa contextualização. O imediatismo dos eventos que se desdobram frente à câmera, tanto nos momentos de enfrentamento quanto nas 1. Vladimir Safatle, Um dia, esta luta chegaria. SP: n-1, 2018. Disponível em: https://issuu. com/n-1publications/docs/cordel_um_dia_esta_luta_issuu


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questões que atravessam o cotidiano dos jovens, fazem de Kinshasa Makambo um precioso registro do momento histórico vivido pelos congoleses. Um filme sobre ser e aprender a ser resistência. Se Kinshasa Makambo escreve no aqui e no agora particularidades de uma história ocultada, Expo Lio’92 vai revirar o entulho cibernético para propor uma revisão ampla, anárquica e barulhenta da construção do mundo contemporâneo. A partir de paródias, trechos de reportagens, momentos marcantes da televisão e o mais variado cardápio de vídeos que circulam na internet, o filme compõe um verdadeiro vídeo-guerrilha decolonial e anticapitalista. A superficialidade da rede mundial de computadores é potencializada ao máximo à medida que nos deparamos com uma sucessão de vídeos com temas e estilos distintos, que vão desde a colonização das Américas encenada por sapos até entrevistas com líderes políticos como José Mujica, passando ainda por trechos de novelas, performances do patético mascote da Sevilla Expo’92, exposição espanhola de novas tecnologias, e imagens de barcos de imigrantes chegando às praias europeias. A montagem adere à lógica frívola do compartilhamento em redes e somos tomados por uma sensação de sufoco, afogados em um feed de notícias do facebook, atingidos por uma enxurrada de tweets em alta velocidade. Em meio a essa esquizofrenia, Expo Lio’92 constrói sua “contra-história”, escancarando a ferida colonial, a política neoliberal dos macroeventos, a construção social da violência e o capitalismo predatório. O curta El Laberinto tem como foco ruínas: de uma réplica da mansão da série estadunidense Dinastia, perdida na selva colombiana, símbolo do sonho americano de riqueza e status; de um projeto colonial embasado na exploração e dominação de povos; da ambição cega por poder expressa na decadência dos chefões do narcotráfico na Colômbia. O trabalho da artista Laura Huertas Millán permite vislumbrar memórias de tempos passados e presentes em materiais de texturas diversas – found footage, trechos da série televisiva, registro em 16mm e a voz over de um narrador nunca revelado –, imiscuindo experimentalismo etnográfico, testemunho documental e um apurado senso estético. O teor alucinatório do relato em primeira pessoa, que descreve uma experiência de quase morte, contamina o filme, elaborando uma densa atmosfera, sobretudo sonora, marcada pelas possibilidades de sobrevivência frente à violência incessante (simbólica e física) de diferentes matrizes. Em Gens du Lac (Gente do Lago), a ação memorialística da oralidade se conjuga à presentificação do território para reimaginar narrativas da resistência em contexto de conflito, em particular uma micronarrativa de transgressão que sucedeu-se nos bastidores da Segunda Guerra na Europa Central. Desta vez, Jean-Marie Straub parte da descoberta de um documento que veio atestar a atuação de dois pescadores – pai e filho – nas margens do lago Geneva, fronteira entre França e Suíça, em história que teve sua primeira re-elaboração romanesca


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no livro homônimo da autora Janine Massard, em 2013. A bordo de um barco que navega naquelas águas fluviais e mirado pela escuta do enquadramento fixo, o montador do filme, Christophe Clavert, faz leitura de trechos do romance, nos quais a vida e as empreitadas do pescador filho, que acolhia fugitivos do território francês durante a ocupação nazista, são objeto de relato e meditação histórica. Ao lado dos rebeldes, Paulus iniciava uma espécie de comunidade clandestina de apoio aos guerrilheiros e de proteção a dissidentes, tendo a pesca como atividade central, tanto de subsistência quanto de resistência, como num ecossistema simbólico feito nas ordens do possível e do efetivo, da inanição e do movimento, da grande e da pequena história popular, entre os frutos da terra e das águas, da humanidade e da política. Já em The Rare Event (O Raro Evento), a resistência adquire tônus de conceito expressamente investigado, sendo objeto da reunião inaugural de um fórum de ideias realizado em estúdio em Paris, e no qual adentram o estadunidense Ben Russell e o inglês Ben Rivers, cineastas e eventuais colaboradores. Estão ali presentes pensadores proeminentes da filosofia política e da arte contemporâneas, como Jean-Luc Nancy, Philippe Pareno, Boris Gruys, Etienne Balibar, Federico Campagna, Elizabeth Povinelli, entre outros. Enquanto expõem suas ideias, no que seria um aparente registro hiperdecupado do simpósio – virtuosamente espacializado pelo movimento de travellings e close ups em 16mm, além de deslumbrante mixagem de som 5.1 –, o rangido de persistentes passos no piso de madeira do salão revela, aos poucos, a presença inadvertida de uma hipnótica silhueta em chroma-key, que caminha naturalmente em meio ao debate de alta inflexão metafísica. “Resistência” (Resistance) é também o nome da nunca realizada exposição de Jean-François Lyotard e, assim como sugere o título de sua mostra anterior, “Os Imateriais” (Les Immateriaux), e também a ilustre conversa, o raro evento que constitui a natureza de um ato de resistência evocará uma promessa de singularidade que resiste além do tangível, radicalmente virtualizada. Em The Rare Event, aos poucos a especulação da palavra, nunca abandonada de vez pelo filme, será atravessada por um portal mágico instaurado pela silhueta humanoide, como se uma cratera tivesse sido aberta na aparência e no tempo da matéria, para sequestrar ou libertar nossa experiência em territórios cinemáticos construídos com as linhas abstratas do artista Peter Burr – também elas em transmutação contínua. Em Casa Roshell, resistir coincidirá com a fundação de um abrigo, que o cinema encontra e ao qual empresta suas formas. A chilena Camila José Donoso, que em 2016 exibiu no festival Naomi Campbell, adentra o clube na capital mexicana, homônimo ao filme, onde homens cis e travestis se encontram para conversar, beber, se amar e se transformar – e, lá dentro, sem nunca sair e num mesmo gesto fílmico, admira, escuta, faz monumento e reescreve. Roshell, 51 anos, e Liliana, 43, são as fabulosas anfitriãs da antológica boate gay. As


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frequentadoras e os frequentadores, como se por enquanto a salvo do tempo histórico, trocam confissões pessoais, fofocas, relatos e maravilhas entre si e com a câmera. O filme espera, assiste, enquadra e reenquadra, adaptando o confinamento sob luzes de festa a uma fábrica de visões que se alternam entre a veneração das divas e a observação distanciada, paciente, do cotidiano do estabelecimento, para transformar tanto o prosaico da vida quanto a elegância dos corpos montados, espetaculares, em série de visões debitárias de uma consciência formal contemporânea. Em Casa Roshell, o cinema de Camila cria um liame particular entre trabalho pictural de realizadora-autora e performance queer, depositando em passagens nostálgicas a crença de que ali há, atravessando tudo, vidas postas em perspectiva. Proteja seus amigos, demonstre e demonstre de novo as heterotopias onde poderemos ainda exercer liberdades. Seria uma utopia, não fosse incontornável – e, à sua maneira, precioso – as formas do mundo lá fora arranjarem um jeito de entrar, com as pessoas e com o cinema aos quais a Casa Roshell abriu suas portas. Será como num passo além que Let The Summer Never Come Again (Que o verão nunca mais volte) vem oferecer, ao seu modo secreto, visadas da resistência – alternativa do espírito – num jogo deslumbrante entre a perseverança e a dissidência das formas do cinema. Ao longo de mais de três horas, acompanhamos as desventuras de um rapaz que deixa o interior da Geórgia em direção à capital Tbilisi. Seu projeto é o de tornar-se dançarino e seu destino é se apaixonar por um soldado – no meio tempo, precisará sobreviver de brigas de rua, tornar-se michê. Mas este enredo ficcional, tão simples e pragmático como o de um épico romântico tardio, será um mapa de falsas pistas e derivas de regime. A primeira delas é pelo cinema como meio, dirigida às atrações do primeiro cinema, às suas mais remotas vistas. Fotografando com uma câmera de obsoleto celular Sony Ericcson, o diretor Alexandre Koberidze, estreante em longa, funda a narrativa como quem manuseia peças heteróclitas, como na imaginação de uma criança – de proto-encenações de suspense a esquetes de humor; de situações de quase-dramaturgia a digressões impressionistas pelo espaço público (diante do amor clandestino entre dois homens, será o único possível); da voz over de uma narradora, em terceira pessoa, como nos filmes mudos, ao abandono da palavra no cruising anônimo. Let The Summer Never Come Again atualizará o amor da história em amor à infância do meio, fundando um olho mítico que nunca poderá deixar de habitar, com a precariedade do lo-fi, a concretude da Tbilisi do presente – mas que, como numa sinfonia urbana artesanal, transbordará o desejo de reformular um mundo em uma visão. Aos interlúdios, que alteram o registro fotográfico para um 16:9 em alta definição – enquanto a figura de um projetor de cinema acompanha memórias de infância da Guerra Civil Georgiana, relatadas dessa vez por voz masculina –, caberá devolver o espírito à perspectiva histórica, sob o crivo de


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um fantasma comum, acordado numa cidade europeia de borda entre forças do Leste e do Oeste. Como indicado na cartela inicial, Walrus Hunting (Caça à Morsa) é um vídeo-treinamento. Sentado à beira da praia, nos pés rochosos de um penhasco, o cineasta Inuit Zacharias Kunuk conversa com um ancião de seu povo. O ancião o ensina com detalhes meticulosos todo o processo de caça às morsas, prática milenar da cultura dos povos indígenas no extremo norte canadense. Enquanto escutamos sua fala quase ininterrupta – afinal, caçar uma morsa aos moldes Inuit não é tarefa fácil e requer um precioso conhecimento ancestral – acompanhamos a caçada sendo realizada por Zacharias e vários companheiros. Cada processo é filmado com a mesma atenção didática da narração, estabelecendo uma relação substancial entre a palavra, a carne e pedagogia. Os ensinamentos compartilhados no filme se dirigem aos jovens caçadores Inuit: o vídeo faz parte de um grupo de registros intitulado “Treinamento Comunitário”, seção voltada para a comunidade dentro da série Hunting With My Ancestors,2 dirigida por Zacharias e disponibilizada no site do Isuma. Resistindo ao desastre das mudanças climáticas que transformaram seu território, os Inuit seguem caçando e treinando novas gerações. Já para os brancos, o “treinador” Inuit deixa o seu recado: “Morsas são deliciosas e sempre serão uma das bases da nossa alimentação. Nós seguiremos as caçando. Não atiramos nelas sem razão e nem matamos muitas. É perigoso caçar animais mais do que o necessário, sejam eles da terra ou do mar. Caçamos apenas o que precisamos e não muito mais do que isso. Nós não pegamos apenas as melhores partes e deixamos o resto. Isso dá medo”. Já Wild Relatives tem como ponto de partida o trânsito entre locais díspares: Svalbard, no Ártico norueguês; o campo de plantio no Vale Bekaa, no Líbano; e a cidade sitiada de Aleppo, na Síria. Esse diálogo improvável é tornado possível pela criação de uma reserva de sementes transnacional, conservada no Permafrost norueguês e replantada por refugiados sírios no Líbano, a fim de se preservar as modalidades de sementes selvagens em vias de extinção com a monocultura corporativa em escala industrial. Esse mote temático abre caminho para vários universos, e a ascendência palestina da estadunidense Jumana Manna (neste seu segundo longa) a permite transitar por diferentes grupos no país árabe. Pautado por uma simplicidade formal, o filme demonstra uma consciência do que pode efetivamente alcançar na sua busca por uma justa medida na relação com as pessoas, enquanto certas situações ganham uma diegese própria, elaborada junto ao filme. Com ares de ficção científica, Wild Relatives revela ainda um potente debate sobre o Antropoceno – a chamada nova era geológica, marcada pela intervenção das atividades humanas no funcionamento dos ecossistemas 2. Disponível em: http://www.isuma.tv/isuma.


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da Terra –, que é também uma reflexão acerca da tecnologia enquanto mediação para o mundo natural, atravessada pela lógica do capital, das diásporas e das guerras nas sociedades contemporâneas. Etnografia e cinema de gênero se encontram em Braguino. Cuidadosamente decupado e sem abrir mão do uso de trilha sonora, o média-metragem de Clément Cogitore acompanha a vida de duas famílias tradicionais que habitam as proximidades da floresta de Taiga, na Sibéria. A família Braguino e a família Kiline vivem há séculos na região sem quase nenhum contato com pessoas de fora. O único meio de se chegar até eles é de helicóptero, não há estradas que dão acesso ao local. Apesar de viverem sob os mesmos ideais antiautoritários, Braguinos e Klines não se comunicam e mantêm seus territórios separados por um rio onde é proibido cruzar de um lado para ou outro. No entanto, as crianças de ambas as famílias se encontram e brincam em um território neutro, numa ilha de areia no meio do rio. A tensão entre as famílias paira durante todo o filme e é intensificada pela trilha, pelas escolhas de plano e principalmente pela montagem. Braguino é uma aproximação íntima à esta comunidade siberiana e a formas de vida ali cultivadas. Minatomachi, oitavo longa do japonês Kasuhiro Soda, aposta no estilo de documentário observacional para revelar a capacidade de resiliência dos seus personagens, os últimos habitantes da vila de Ushimado, no arquipélago do Japão. Escassamente povoada, a cidade tem como únicos moradores os idosos que ali viveram durante toda sua vida, acompanhados dos muitos gatos que transitam por ruas quase vazias. Tendo o mar como força motriz e horizonte primeiro, acompanhamos o dia-a-dia na ilha em meio à pesca e a venda dos peixes, às conversas casuais em tom jocoso ou rememorativo, aos gestos cotidianos de corpos que não se deixam abater pelos sinais do tempo. Minatomachi celebra as relações forjadas em razão da própria filmagem, com atenção especial às pessoas que encontra e às formas de se estabelecer comunidade num microcosmo aparentemente descolado do mundo. Desprovido de um olhar melancólico (tantas vezes reproduzido em documentários do gênero), trata-se de um belo e atencioso filme sobre, basicamente, envelhecer, cuja força reside fortemente na presença e grandeza dos seus personagens em tela. Por fim, a expansão da percepção das leis que regem o espaço – e que talvez periguem aprisionar os arbítrios da matéria e da vida, ditando as normas de conduta e os limites da experiência – será também objeto de Fotbal Infinit (Futebol Infinito), mas de volta a um registro modesto, sóbrio e quase sempre humilde, baseado na crença de que a escuta e a observação podem ser o meio de uma pedagogia transcendental. Um amigo de infância do diretor romeno Corneliu Porumboiu lhe conta que seu irmão, Laurentiu, insatisfeito com as regras do futebol, resolveu desenvolver diretrizes inéditas para a prática do esporte. Numa jornada pessoal, doméstica, Porumboiu faz passagem da fábula


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ficcional de seus filmes anteriores à documental, mas com um mesmo interesse em desvendar o raciocínio pós-soviético que costura as fantasias do presente romeno. O diretor viaja à sua cidade natal, Vaslui, para ir ao encontro do conterrâneo e se familiarizar com a retórica do seu desejo, colhendo entrevistas num campo de futebol, num ginásio, no frio escritório onde trabalha assinando papéis, numa não menos fria sala onde, com o uso de uma lousa, Laurentiu lhe expõe as ideias que darão lastro ao futebol infinito: a troca do campo retangular por outro de aspecto octogonal, a implementação de quadrantes que separariam os jogadores em suas distintas funções estratégicas, uma outra distribuição de posições. Laurentiu era ele mesmo jogador, mas uma fratura na juventude lhe incapacitou para a prática. Em contrapartida e como se no anúncio de uma vocação, ele se incumbiu então de uma missão revolucionária. O futebol poderia ser melhor. Teria agora como utopia e destino a liberdade, fosse a liberdade da bola antes da dos corpos, fosse numa concessão fabular da teoria, da leiga física, do modus operandi da burocracia.


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To redevelop resistances Carla Italiano Luisa Lanna Luís Fernando Moura

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n this edition, the Contemporary International Showcase unfolds a different methodology of film selection by answering to the forms of circulation that has been applied these last few years around the world. Composed by 12 films (always less than we would wish), the showcase is a result not only of the previous submission of titles that have reached out to the festival, as it has occurred in the last editions, but also of a research through the main spheres of cinematographic exhibition, shared by the three members of the selection committee. Thereby, we seek to broaden the scope of our foreign programming, enabling crucial works to come to town, weather they are executed by notarial or beginner filmmakers. There is a certain panoramic character that crosses this programming, since it is the result of our desire to embrace disparate contexts in a search for multiple paths to think cinema today – as much as we recognize that it is impossible to save every intention of a panorama from the illusion that comprises a false notion of a “whole”. It would be reductive, not to say, impossible, to encompass such distinct films under the same guideline, weather it is a specific thematic scope or a single regime of enunciation. However, the bond that could allow us to group them in the same showcase resides precisely in the particularity of their creative gestures: what each of them presents as a singularity in terms of formal invention, dealing with images and sounds that cross the relationship with a documented, recounted and filmically invented “real”. Still, this seems to be relativized in the Brazilian current context, which begins to contaminate our perception of films in the midst of a routine of false normality. In the midst of this bleak scenario, we wonder how cinema reacts to constant threats, such as the one of fascism in its multiple signs and disguises. Disguises such as the once placed in the totalitarian regimen of contemporary visibility to which the materials of Expo Lío 92 are opposing by refusing the beautiful images, salable and consumable, to dwell on the cultural garbage of late capitalism in the Iberian/Latin colonial context. The signs of a fascist stance in legitimizing the violence of the nation-state in its demonstration of strength, evident in the repression of the struggle for free elections in Kinshasa Makambo. It is clear that the conflict we are witnessing in Brazil today is not


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about different proposals for government, but about different forms of life1. It becomes crucial to identify, speculate, envision possible means of resistance and struggle that do not go through (only) direct strikes, but can be present in a gesture of re-planting seeds in order to save them from extinction (Wild Relatives), in the knowledge of ancestral hunting that resists to the changes of the Anthropocene (Walrus hunting), or in the restraining free (formal, narratives) cruising of the love story in Let the summer never come again. Facing this situation, we may perhaps believe less that cinema can actually alter something in a given context – and even less, the academy (as The Rare Event complicates, by following a closed-door seminar on the “concept” of resistance). What we can, perhaps, is precisely to look at how films allow us to glimpse these forms of life, marked by networks of affection and solidarity, from the invention of languages that escape a desire for totalization and order.

These struggles have already arrived

A threat against democracy is rising in the Democratic Republic of Congo. In 2015, the then-President Joseph Kabila approves a constitutional amendment that allows him to remain in power for a third term without elections. The historical negligence of foreign media towards the social-political context in African countries omits the situation of young Congolese who, since 2010, risk their lives against the authoritarianism and the violence practiced by Kabila’s army. In Brazilian lands, where the African matrix is founding, ​​ we know little about what has happened. In face of international media silence, Kinshasa Makambo casts the viewer directly in the sights of bullets and tear-gas bombs fired at protesters that claim for free elections. Christian, a young opposition activist, Jean-Marie, recently released from prison, and Ben, back after a period of forced exile, get together with the anti-Kabila youth in a double task: to occupy the streets with their bodies, facing government’s weapons; and articulate their ideals in laborious reflections to think strategies that could change the course of events. Amid clandestine meetings, anti-repression training, violent conflicts and the grief of mothers and grandmothers who fear for their children’s lives, Congolese director Dieudo Hamadi and his camera stand shoulder to shoulder with the three comrades. Direct recording dismisses contextualization. The immediacy of the events unfolding in front of the camera, both in moments of confrontation and in matters that cross the daily life of young people, turns Kinshasa Makambo in a precious record of the historical moment lived by the Congolese. A film about resisting and learning to be resistance.

1. Vladimir Safatle, Um dia, esta luta chegaria. SP: n-1, 2018. Available in: https://issuu. com/n-1publications/docs/cordel_um_dia_esta_luta_issuu


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If Kinshasa Makambo writes in here and now particularities of a hidden history, Expo Lio’92 will turn cyber rubble to propose a broad, anarchic and noisy revision of contemporary world’s construction. From parodies, extracts from news reports, television’s striking moments and the most varied menu of videos circulating the internet, the film composes a true decolonial and anti-capitalist video-guerrilla. The superficiality of the World Wide Web is maximized as we come across a succession of videos with different themes and styles, ranging from the colonization of the Americas staged by frogs to interviews with political leaders such as José Mujica; as well as pieces of soap operas, performances by the pathetic mascot of the Sevilla Expo’92, a Spanish exhibition of new technologies, and images of immigrant boats arriving at European beaches. The montage adheres to a frivolous and logic of network sharing and we are taken by a feeling of suffocation, drowned in facebook news feed, hit by a flood of high-speed tweets. In the midst of this schizophrenia, Expo Lio’92 builds its “counter-history” by opening the colonial wound, the neo-liberal politics of macroevents, the social construction of violence and predatory capitalism. The short-film El Laberinto focuses on ruins: of a replica of the mansion in the North-American series Dynasty lost in the Colombian forest, a symbol of the American dream of wealth and status; of a colonial project based in the exploitation and domination of peoples; of the blind ambition for power expressed in the decay of the drug trafficking chiefs in Colombia. The work of Laura Huertas Millán allows us to get a glimpse of times past found in material of different textures – found footage, parts of the TV series, 16mm filming and the voice over of a never revealed narrator -, combining ethnographic experimentalism, documental testimonial and a refined aesthetic sense. The hallucinatory tone of the report in first person which describes an almost death experience befouls the film, elaborating a dense atmosphere, especially in sound, marked by the survival possibilities against the incessant violence (symbolic and physical) of different matrices. In Gens du Lac (People of the Lake), the oral memorialist action conjoined with the making present of the territory to reimagine narratives of the resistance in a conflict context, in particular, a micro-narrative of transgression which subsisted behind the scenes in World War II in Central Europe. This time, Jean-Marie Straub starts from the discovery of a document which attests the action of two fishermen – father and son – on the shores of Lake Geneva, on the frontier of France and Switzerland, in a history which had its first novel re-elaboration in a namesake by Janine Massard, in 2013. Onboard a boat that navigates through fluvial waters and aiming at the listening in the fixed framing, the film editor, Christophe Clavert, reads parts of the novel in which the life and endeavors of the son, who sheltered fugitives of the French territory during the Nazi occupation, are subject of historic account and mediation. Alongside


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with the rebels, Paulus started a kind of clandestine community of support for the guerrilla and and protection of the dissidents, having fishing as the main activity, both of subsistence and of resistance, as in a symbolic ecosystem made from what is possible and from affection, out of inanition and movement, from the great and small popular history, between the fruits of earth and water, of humanity and politics. In The Rare Event, the resistance acquires a tone of explicitly investigated concept, being the subject of the inaugural meeting of a forum of ideas held in a studio in Paris, and in which the American Ben Russel and the English Ben Rivers, filmmakers and collaborators, joined. There were prominent thinkers of philosophy and of contemporary arts, such as Jean-Luc Nancy, Philippe Pareno, Boris Gruys, Etienne Balibar, Federico Campagna, Elizabeth Povinelli, amog others. While they expose their ideas, in what could be an apparent extreme set-up of the symposium – virtuously spatialized by the movement of a travelling camera and close ups in 16mm, besides the mesmerizing sound mixing in 5.1 -, the creaking of persistent steps on the wooden floor reveals, little by little, the inadvertent presence of a hypnotic silhouette in chroma-key, which walks naturally in the midst of the debate of high metaphysical inflection. Resistance is also the name of the never made exhibition of Jean-François Lyotard and, as the name of his previous exhibition suggests, Les Immateriaux (The Imaterial), and also the distinguished conversation, the rare event which constitutes the nature of a resistance act will evoke a promise of singularity which resists beyond the tangible, radically virtualized. In The Rare Event, little by little the speculation of the word, never completely abandoned by the film, will be crossed by a magical portal inducted by the humanoid silhouette, as if a crater had been opened in the appearance and in time of matter, to kidnap or liberate our experience in cinematic territories built by the abstract lines of the artist Peter Burr – they also in continuous transmutation. In Roshell House, resistance coincides with the foundation of a shelter in which the cinema promotes an encounter and qualify its forms. Chilean filmmaker Camila José Donoso, who also directed Naomi Campbell (screened in forumdoc. bh.2016), joins the house in the Mexican capital, where men and transvestites meet to talk, drink, bond and transform themselves - and inside, without going out, keeping the same filmic gesture, she admires, listens, worships and rewrites. Roshell, 51, and Liliana, 43, are the fabulous hostesses of the anthological gay nightclub. The frequenters exchange personal confessions, gossips, reports and wonders with each other and the camera, as if they could be saved from the historical time. The film waits, assists, frames and reenacts, adapting confinement under party lights to a factory of visions that alternates between the veneration of the divas and the distant, patient view of the establishment’s daily life, to transform both the prosaic life and the elegance of the dressed up spectacular


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bodies in a series of images influenced by a contemporary formal consciousness. In Casa Roshell, Camila’s cinema unites the creation of a particular authorial work with queer performance, using nostalgic sequences to demonstrate the belief that there are lives put in perspective among all. Protect your friends, show and show again the heterotopias where we can still exercise freedom. It would be a utopia, not to say unconquerable - and, in its own way, precious - if the forms of the outside world could find a way in, along with the people and the cinema to which the Roshell House opens its doors. It will be like in a step beyond that Let The Summer Never Come Again comes to offer, in its secret mode, looks at the resistance – alternative of the spirit – in a dazzling game between perseverance and dissidence in the forms of cinema. Through more than three hours, we follow the misfortunes of a young man who leaves the countryside of Georgia toward the capital Tbilisi. His goal is to become a dancer and his destiny is to fall in love with a soldier – in the meantime, he will need to survive to street fights, he becomes a prostitute. But this fictional plot, as simple and pragmatic as a late romantic epic, will be a map of false clues and drifts. The first one is through cinema as a means, directed to the attractions of the first cinema, to its most remote looks. Shooting with an obsolete Sony Ericcson mobile phone camera, the director Alexandre Koberidze, a novice in feature films, builds the narrative as if dealing with heteroclite pieces, as in the imagination of a child – from proto-enactments of a thriller to sketches of humor; from situations of almost-dramatics to impressionist digressions in public space (facing the clandestine love between two men, it will be the only possibility); from the over voice of a narrator, in third person, such as in the silent movies, to the abandon of the word in the anonymous cruising. Let The Summer Never Come Again will update the love in history in the love to the infancy of the medium, founding a mythic eye that will forever inhabit, with the precariousness of lo-fi, the concreteness of present Tbilisi – but which, as in an artisanal urban symphony, will overflow the desire of reformulating the world in a vision. The interludes, which alternate the photos into a 16:9 in high definition – while the image of a cinema projector accompanies infancy memories of Georgian Civil War, this time narrated by a male voice -, will bring back the spirit to the historical perspective, under a common phantom, awaken in an European city in between forces of East and West. As indicated in the initial card, Walrus Hunting is a video-training. Sitting on the edge of the beach, on the rocky base of a cliff, the Inuit filmmaker Zacharias Kunuk talks to an elder man from his people. The elder teaches meticulously the whole process of walrus hunting, an ancient practice of indigenous culture in the far north of Canada. While we listen to his almost uninterrupted speech – after all, hunting a walrus in Inuit molds is not an easy task and requires precious ancestral knowledge – we follow the hunt being carried out by Zacharias and


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several companions. Each process of the hunt is filmed with the same didactic attention from the narration establishing a substantial relation between word, meat and pedagogy. The lessons shared in the film addresses the young Inuit hunters: the video is part of a group of recordings entitled “Community Training”, a community-oriented wing of the “Hunting With My Ancestors”2 series directed by Zacharias and available on the Isuma website. Resisting the disaster of climate change that has transformed their territory, the Inuit continue hunting and training the new generations. As for the white people, the Inuit “trainer” leaves his message: “Walruses are delicious and will always be one of the foudations of our diet. We’ll keep on hunting. We did not shoot them for no reason and we did not kill too many of them. It is dangerous to hunt animals more than the necessary, weather they are from land or sea. We hunt only what we need and not much more than that. We do not take just the best parts and leave the rest. That’s scary”. Wild Relatives has as its starting point the transit between disparate places: Svalbard, in the Norwegian Arctic; the Lebanese planting field in the Bekaa Valley; and the besieged city of Aleppo in Syria. This dialogue is made possible by the creation of a transnational seed stockpile stored in Norwegian Permafrost and replanted by Syrian refugees in Lebanon in order to preserve the wild seed modalities that are on the verge of extinction due to corporate monoculture at an industrial scale. This thematic motto opens a path to different universes, and the Palestinian ancestry of director Jumana Manna (in her second feature) allowed her to travel through different groups in the Arab countries. Punctuated by a formal simplicity, the film demonstrates an awareness of what it can actually achieve in the search for a fair measurement regarding the filmed people, while certain situations gain their own diegese, elaborated with the film. Referring to science fiction films, Wild Relatives also reveals a powerful debate towards Anthropocene – the so-called new geological age marked by the intervention of human activities in the functioning of Earth’s ecosystems – which is also a reflection on technology as mediation for the natural world, crossed by the logic of capital, diasporas and wars in contemporary societies. Ethnography and gender cinema meet in Braguino. Carefully made and not forgoing the use of soundtrack, this Clément Cogitore’s film accompanies the life of two traditional families which live by the Taiga forest, in Siberia. The Braguino family and the Kiline family live in the region for centuries with almost no contact with people from outside. The only way to get to them is by helicopter, there are no roads leading to the place. Although living under the same anti-authoritarian ideals, the Braguinos and the Kilines do not communicate and keep their territories separated by a river which crossing is not allowed. However, the children of both families meet in a neuter territory, in 2. Available in <http://www.isuma.tv/isuma>


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a sand island in the middle of the river. The tension between the families can be felt throughout the film and is intensified by the soundtrack, the choosing of plans and specially by the editing. Braguino is an intimate approximation to this Siberian community and the forms of lives cultivated there. Minatomachi, eightieth feature-film of Kasushiro Soda, bets on the documental film style to show the resilience capacity of its characters, the last inhabitants of the Ushimado village, in the Japanese archipelago. Scarcely populated, the city has as its only dwellers the elders who have lived there their whole lives, accompanied by the several cats which pass through almost empty streets. Having the sea as its moving force and first horizon, we follow the everyday in the island in the midst of fishing and selling fishes, the casual talking in a funny or remembrance tone, the common gestures of bodies that will not succumb to the signs of times. Minatomachi celebrates the relationships made due to the filming itself, with special attention to the people met and to the ways of stablishing a community in a micro cosmos apparently unattached to the world. Without the melancholic look (so often seen in documentary film genre), it is a beautiful and attentive film about, basically, getting old, which the strength resides strongly in the presence and greatness of its characters on screen. At last, the expansion of the perception of the laws which rule the universe – and which perhaps risk to imprison the arbitrations of matter and life, determining the behavioral norms and the limits of experience – will be the subject of Infinite Football, but going back to a modest register, sober and almost always humble, based on the belief that listening and observation can be a way of transcendental pedagogy. A childhood friend of the Romanian director Corneliu Porumboiu tells him that his brother, Laurentiu, unhappy with the rules of football, decides to develop new rules for the sport. In a personal journey, domestic, Porumboiu goes from the fictional fable of his previous films to the documental, but with the same interest in unfolding the post-soviet thinking which sews the fantasies of the Romanian together. The director travels to his home town, Vaslui, to meet with his fellow countryman and to familiarize with his desire’s rhetoric, making interviews in a football field, in a gym, in the cold office in which he works signing papers, in a not less cold room in which, using a board, Laurentiu exposes the ideas that support the infinite football: the substitution of the rectangular field to an octagonal field, the implementation of quadrants which would separate the players in their different strategic functions, another distribution of positions. Laurentiu was himself a player, but a fracture when he was young made him not suitable for playing. Conversely and as a sign of a vocation, he put himself in a revolutionary mission. Football could be better. It would have now as its utopia and destiny freedom, would it be the freedom of the ball before the bodies, would it be an imaginative concession of the theory, of the lay physics, of the bureaucracy’s modus operandi.



O Labirinto acompanha as memórias do seu narrador, que se envolveu com a espetacular ascensão e queda dos chefes do tráfico na Amazônia colombiana. Vagando tanto pela floresta como por uma mansão em ruínas – uma réplica do palacete da novela Dinastia –, o narrador logo se tornará protagonista de uma viagem alucinatória através de memórias e espaços.

Na floresta siberiana, longe da civilização, uma disputa opõe duas famílias, cujas casas são separadas por um rio. No meio do rio fica uma ilha, onde as crianças das duas famílias encontram-se à revelia dos adultos.

CINE HUMBERTO MAURO, 28 NOV, 19h

CINE HUMBERTO MAURO, 01 DEZ, 15h

El laberinto follows the memories of the film narrator who was involved in the spectacular rise and fall of drug lords in the Colombian Amazon. Wandering through the forest as well as a mansion in ruins, a replica of the villa from Dynasty, the narrator will soon become the protagonist of an hallucinatory journey through memory and spaces.

Colômbia, França, 2018, cor, 21’ Colombia, France, 2018, colour, 21’ direção director Laura Huertas Millán fotografia cinematography Laura Huertas Millán montagem editing Laura Huertas Millán som sound Laura Huertas Millán, Guillaume Couturier produção production Studio Arturo Lucia contato contact studioarturolucia@gmail.com

França, Finlândia, 2017, cor, 49’ France, Finland, 2017, colour, 49’ direção director Clement Cogitore fotografia cinematography Sylvain Verdet montagem editing Pauline Gaillard som sound Julien Ngo Trong produção production Cédric Bonin para Seppia, Making Movies Oy contato contact mgondre@indiesales.eu

In the Siberian forest, away from any civilization, a feud is opposing two families whose houses are separated by a river. In the middle of the river stands an island where the kids of the two families are meeting on their own.

El laberinto O labirinto

Braguino

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No outono passado, um grande amigo da minha infância, Florin, me falou que seu irmão, Laurentiu, havia inventado um novo esporte ao mudar as regras do futebol. Um mês depois fui para minha cidade natal, Vaslui, acompanhado de uma pequena equipe de filmagem, com o intuito de aprender mais sobre esse novo esporte...

Expo Lio’92 é um vídeo-guerrilha de desconstrução de mitos que convoca para o reconhecimento da América para além de Colombo, um mundo sem conquistadores, em que a cultura é a criação de um espaço de descobertas compartilhado, assim como a construção de uma identidade coletiva, grande o bastante para acolher todos nós ou, ao menos, todos aqueles que estejam propondo outros mundos…

CINE HUMBERTO MAURO, 01 DEZ, 15h

CINE HUMBERTO MAURO, 24 NOV, 21h

Last fall, a good childhood friend of mine, Florin, told me that his brother, Laurentiu, invented a new sport by changing the rules of the football game. One month later I went to my hometown, Vaslui, with a small film crew, to learn more about this new sport…

Romênia, 2018, cor, 70’ Romania, 2018, colour, 70’ direção director Corneliu Porumboiu fotografia cinematography Tudor Mircea montagem editing Roxana Szel som sound Osman Petrisor produção production Marcela Ursu, Ramona Grama contato contact intlfest@mk2.com

Espanha, 2017, cor, 63’ Spain, 2017, colour, 63’ direção director María Cañas fotografia cinematography María Cañas montagem editing Guille García som sound Guille García produção production Centro Andaluz de Arte Contemporáneo, Junta de Andalucía, Cajasol, Animalario TV Producciones contato contact soloparatustresojos@gmail.com

Expo Lio’92 is a myth-debunking guerrilla-video that calls for the recognition of Americas beyond Columbus, a world without conquerors where culture is the creation of a shared space of discovery and the construction of a collective identity big enough for all of us, at least all of those who are suggesting other worlds...

Fotbal infinit Futebol infinito

Expo Lio’92

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Casa Roshell México, Chile, 2017, cor, 71’ Mexico, Chile, 2017, colour, 71’ direção director Camila José Donoso fotografia cinematography Pablo Rojo montagem editing Camila José Donoso som sound Isolé Valadez produção production Juan Pablo Bastarrachea, Maximiliano Cruz, Sandra Gómez, Garbiñe Ortega contato contact cj.donoso@gmail.com

Um retrato de uma instituição muito incomum na capital mexicana, um lugar onde os homens aprendem a ser mulheres durante o dia, antes de sair à noite. Toda a espécie de fronteiras desfocada nesta pequena utopia: entre gay, heterossexual e bi, masculino e feminino, passado e presente, realidade e ficção. A portrait of a very unusual institution in the Mexican capital, a place where men learn how to be women during the day before going out at night. All kinds of borders are blurred in this little utopia: between gay, heterosexual and bi, masculine and feminine, past and present, reality and fiction.

AUDITÓRIO BAESSE - FAFICH (UFMG), 22 NOV, 12h

Kinshasa Makambo

República Democrática do Congo, França, Suíça, Alemanha, Noruega, 2018, cor, 75’ DRC, France, Switzerland, Germany, Norway, 2018, colour, 75’ direção director Dieudo Hamadi fotografia cinematography Dieudo Hamadi montagem editing Hélène Ballis som sound Dieudo Hamadi, Christian L.L. produção production Les Films De L’oeil Sauvage, Kiripifilms, Alva Film, Bärbel Mauch Film, Flimmer Film contato contact contact@andanafilms.com

Christian, Ben e Jean-Marie lutam por mudanças políticas no poder e eleições livres no seu país, a República Democrática do Congo. Mas o presidente em exercício recusa-se a renunciar. Como mudar o curso dos acontecimentos? Kinshasa Makambo nos faz mergulhar no combate desses três ativistas, um combate que nem os tiros, a prisão ou o exílio parecem capazes de interromper.

Christian, Ben and Jean-Marie are fighting for political change of power and free elections in their country, the Democratic Republic of the Congo. But the incumbent President refuses to relinquish power. How can the course of events be changed? Kinshasa Makambo immerses us in the combat these three activists are engaged in, a combat that neither bullets, nor prison, nor exile seem able to stop.

CINE HUMBERTO MAURO, 26 NOV, 19h

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Esquecida pela modernidade no pós-guerra japonês, Ushimado rapidamente envelhece e decai. Sua rica cultura tradicional e unida comunidade também estão a ponto de desaparecer. Fotografado em preto e branco, o mais recente documentário observacional de Kazuhiro Soda retrata poeticamente os dias crepusculares do vilarejo e do seu povo em uma onírica ilha marítima.

Rapaz georgiano vai à cidade grande para se tornar um dançarino. Ganha uns trocados em lutas de boxe e na prostituição. Se apaixona por um policial, que talvez tenha de partir com o exército. As regras de uma vida filmada são as regras do cinema, e este é na verdade um filme sobre a forma de narrar uma história, sobre cidade e espaço público, sobre a luz e o tempo, sobre a assombração da guerra, liberdade, inesperado humor – e também sobre amor.

CINE HUMBERTO MAURO, 30 NOV, 21h

CINE HUMBERTO MAURO, 30 NOV, 17h

Forsaken by the era of modernization of post-war Japan, Ushimado is rapidly aging and declining. Its rich, ancient culture and the tight-knit community are also on the verge of disappearing.Portrayed in black and white photography, this latest observational documentary by Kazuhiro Soda (“Campaign”, “Mental”, “Oyster Factory”) poetically depicts the twilight days of a village and its people by the dreamlike Inland Sea.

Japão, EUA, 2018, p&b, 122’ Japan, USA, 2018, b&w, 122’ direção director Kazuhiro Soda fotografia cinematography Kazuhiro Soda montagem editing Kazuhiro Soda som sound Kazuhiro Soda produção production Kiyoko Kashiwagi, Kazuhiro Soda contato contact info@laboratoryx.us

Alemanha, Geórgia, 2017, cor, 202’ Germany, Georgia, 2017, colour, 202’ direção director Alexandre Koberidze fotografia cinematography Alexandre Koberidze montagem editing Alexandre Koberidze som sound Giorgi Koberidze produção production Deutsche Film- und Fernsehakademie Berlin contato contact alexandre.koberidze@yahoo.com

A georgian boy leaves his village to go into the city to audition in a dance company. He then is involved in illegal activities such as boxing and sleeping with men for money. Unwillingly, he falls in love with a policeman, but suddenly his lover maybe will be summoned to join the army. The rules of a filmed life are the rules of cinema, and this is a film about ways of telling a story, about the city and public spaces, about light and time, about the haunting of war, freedom, unexpected humor – and also about love.

Minatomachi

Let the summer never come again Que o verão nunca mais volte

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Durante milhares de anos, esquimós da região Igloolik têm caçado morsas – animais inacreditavelmente grandes e por vezes perigosos – a fim de reservar e secar suas carnes para os longos invernos.

Filmado num ruidoso estúdio parisiense durante os três primeiros dias de um “fórum de ideias” com foco nas múltiplas possibilidades da ideia de “Resistência”, os cineastas Ben Rivers e Ben Russell, colaboradores usuais, produziram o que inicialmente parece ser um documento estruturalista de uma discussão filosófica.

CINE HUMBERTO MAURO, 25 NOV, 19h

Shot in a creaky Parisian recording studio at an inaugural three-day “forum of ideas” focusing on the manifold possibilities of “Resistance”, occasional collaborators Ben Rivers and Ben Russell have produced what initially appears to be a structuralist document of a philosophical discussion.

Canadá, 2018, cor, 32’ Canada, 2018, colour, 32’ direção director Zacharias Kunuk fotografia cinematography Jonathan Frantz montagem editing Carol Kunnuk produção production Zacharias Kunuk, Jonathan Frantz, Paul Irngaut, Allison Mcphee contato contact wandav@vtape.or

Suíça, França, Reino Unido, 2018, cor, 48’ Switzerland, France, UK, 2018, colour, 48’ direção director Ben Rivers, Ben Russell fotografia cinematography Ben Rivers, Ben Russell montagem editing Ben Rivers, Ben Russell som sound Philippe Ciompi produção production Luz Gyalui, Ben Rivers, Ben Russell contato contact distribution@lux.org.uk

CINE HUMBERTO MAURO, 23 NOV, 19h

Inuit of the Igloolik region have been hunting walrus, incredibly large and sometimes dangerous animals, for thousands of years – caching and fermenting their meat for the long winter ahead.

Walrus hunting Caça à morsa

The rare event O raro evento

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Um homem recorda sua juventude passada numa família de pescadores na costa vaudoise do lago Léman, as trocas clandestinas que ocorriam ao longo do lago durante a Segunda Guerra Mundial, assim como os reveses políticos que se seguiram imediatamente após o fim da guerra.

Espécies Selvagens tem como ponto de partida um evento que tem deflagrado interesse mundial: em 2012, um centro de pesquisa internacional de agricultura foi obrigado a se deslocar de Aleppo para o Líbano por causa da Revolução Síria transformada em guerra. Começou então um processo para replantar suas coleções do Cofre Mundial de Sementes da Noruega. Seguindo os passos dessa transação de sementes, uma série de encontros revela a intersecção entre vidas humanas e não-humanas nesses dois lugares distantes da terra.

CINE HUMBERTO MAURO, 23 NOV, 19h

Wild Relatives starts from an event that has sparked interest worldwide: in 2012 an international agricultural research center was forced to relocate from Aleppo to Lebanon due to the Syrian Revolution turned war, and began a process of re-planting their seed collection from a Norwegian Global Seed Vault backups. Following the path of this transaction of seeds, a series of encounters unfold a matrix of human and non-human lives between these two distant spots of the earth.

Suíça, 2018, cor, 18’ Switzerland, 2018, colour, 18’ direção director Jean-Marie Straub fotografia cinematography Renato Berta montagem editing Christophe Clavert som sound Jean-Pierre Duret produção production Barbara Ulrich contato contact straubhuillet@bluewin.ch

Alemanha, Líbano, Noruega, 2018, cor, 70’ Germany, Lebanon, Norway, 2018, colour, 70’ direção director Jumana Manna fotografia cinematography MarteVold montagem editing Katrin Ebersohn som sound Rawad Hobeika produção production Jumana Manna, Elisabeth Kleppe, Malek Hosni contato contact jumana.manna@gmail.com

CINE HUMBERTO MAURO, 28 NOV, 19h

A man remembers his youth passed in a family of fishermen on the Vaudoise coast of Lake Leman, the clandestine trades that occurred along the lake throughout World War II and the political troubles that follow the immediate post-War.

Gens du lac Gente do lago

Wild relatives Espécies selvagens

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special screenings • releases

sessões especiais • lançamento



Ihjãc é um jovem do povo Krahô, aldeia indígena localizada em Pedra Branca, no interior do Brasil. Depois de ser surpreendido pela visita do espírito de seu falecido pai, ele se sente na obrigação de organizar uma festa de fim de luto, comemoração tradicional da comunidade.

Nos fragmentos de uma noite sem fim, Robert e Teresa se encontram, se conhecem e se separam pela força da opressão e pela ameaça da morte e da desaparição que se insinua continuamente. Circundados por Djamba, Gu e Luísa, a noite sugere encontros, êxtase, memórias da catástrofe e promessa irrealizada de felicidade. As sombras do amor em uma cidade que desmorona.

CINE HUMBERTO MAURO, 02 DEZ, 21h

CINE HUMBERTO MAURO, 25 NOV, 20h

Sessão realizada em parceria com o projeto História Permanente do Cinema / Cine Humberto Mauro.

Ihjãc is a young man from the Krahô people, an indigenous village located in Pedra Branca, in the interior of Brazil. After being surprised by the visit of his late father’s spirit, he feels obliged to organize a festivity to mark the end of the mourning, a traditional celebration in the community.

Brasil, Portugal, 2018, cor, 1 14’ direção director João Salaviza, Renée Nader Messora fotografia cinematography Renée Nader Messora montagem editing João Salaviza, Renée Nader Messora, Edgar Feldman som sound Pablo Lamar produção production EntreFilmes, Karõ Filmes, Material Bruto contato contact karofilmes@karofilmes.pt

Brasil, 2018, cor, 80’ direção director Ewerton Belico, Samuel Marotta fotografia cinematography Leonardo Feliciano montagem editing Luís Pretti som sound Bruno Vasconcelos, Leonardo Rosse produção production 88 Art & Cinema contato contact 88filmes@gmail.com

In the fragments of a never-ending night, Robert and Teresa meet, acknowledge one another and come apart by force of the circumstances and the ongoing menace of death and disappearance. Surrounded by Djamba, Gu and Luisa, the night feels like encounter, ecstasy and memoir of disasters and unreached promise of happiness. The shadows of love in a city that is falling apart.

Chuva é cantoria na aldeia dos mortos The dead and the others

Baixo Centro Outer Edge

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Quarenta e cinco anos após a dissolução da banda Os Mamíferos, Marco Antonio Grijó, Afonso Abreu e Mario Ruy vivem um cotidiano simples. Em meio às luzes da cidade de Vitória, eles recordam suas glórias e fracassos e ajudam a recuperar um fragmento fundamental da música popular brasileira.

A vida das abelhas e a vida moderna, mel e falso mel: Joseph Beuys e Rudolf Steiner estão presentes entre a geometria e o fluxo, entre o amor e as imagens refletidas pela cidade de Londres.

CINE HUMBERTO MAURO, 02 DEZ, 21h

CINE HUMBERTO MAURO, 24 NOV, 15h

Forty five years after the dissolution of the band Os Mamíferos, Marco Antonio Grijó, Afonso Abreu and Mario Ruy live a simple daily life. Amidst the city lights of Vitória, they remember their glories and failures and help retrieve a crucial fragment of the Brazilian popular music.

Brasil, 2018, cor & pb, 81’ direção director André Félix fotografia cinematography William Sossai montagem editing Luiz Pretti som sound Hugo Reis produção production Serena, Clareia e Pique-Bandeira Filmes contato contact contato@piquebandeira.com.br

Brasil/Reino Unido, 2018, 7’ direção director Pedro Aspahan fotografia cinematography Pedro Aspahan montagem editing Pedro Aspahan som sound Joseph Jenner produção production Pandu Filmes e Martin Brady contato contact pedroaspahan@pandufilmes.com

The life of bees and the modern life, honey and mock honey, Joseph Beuys and Rudolf Steiner are present between the geometry and the flux, between love and the images reflected by the city of London.

Diante dos meus olhos Before my eyes

Da vida das abelhas From the life of bees

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Juliana está se mudando de Itaúna, no interior do estado, para a periferia de Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, para trabalhar no combate a endemias na região. Em seu novo trabalho ela conhece pessoas e vive situações pouco usuais que começam a mudar sua vida. Ao mesmo tempo, ela enfrenta as dificuldades no relacionamento com seu marido, que também está prestes a se mudar para a cidade grande.

Era um pequeno grupo de demolidores de mundo. Perdidos na multidão, mas ligados uns aos outros, viviam na solidão da clandestinidade, às voltas com suas contradições: amavam a vida humana, mas desprezavam a própria vida. Estavam prontos ao sacrifício. Niilismo, melancolia, traição, desespero: consciências trágicas em uma longa viagem ao fim da noite. Um conto de amor e de morte (Eros e Tanatos), em um mundo em que o estado-de-exceção veio a se tornar regra e os últimos dias da humanidade não terminam nunca.

CINE HUMBERTO MAURO, 28 NOV, 20h30

CINE HUMBERTO MAURO, 01 DEZ, 21h

Juliana is moving from Itaúna, in the states’ countryside, to the outskirts of Contagem, in the metropolitan region of Belo Horizonte, to work in the region’s endemic diseases combat. In her new job she meets people and lives unusual situations that begin to change her life. At the same time, she faces difficulties in the relationship with her husband, who is also on the verge of moving to the big city.

Brasil, 2018, cor, 1 13’ direção director André Novais Oliveira fotografia cinematography Wilssa Esser montagem editing Gabriel Martins som sound Tiago Bello, Marcos Lopes produção production André Novais Oliveira, Gabriel Martins, Maurilio Martins, Thiago Macêdo Correia contato contact contato@filmesdeplastico.com.br

Brasil, 2018, cor, 1 10’ direção director Tiago Mata Machado fotografia cinematography Fernando Lockett montagem editing Alice Furtado, Luiz Pretti som sound Bruno Vasconcelos, Gustavo Fioravante produção production 88 Art & Cinema contato contact 88filmes@gmail.com

It was a small group of world wreckers. Lost in the crowd but connected to each other, they lived in the solitude of clandestinity, immersed in their own contradictions: they loved human life, but despised life itself. They were ready for sacrifice. Nihilism, melancholy, betrayal, despair: tragic consciences in a long journey towards the end of the night. A tale of love and death (Eros and Thanatos), in a world in which the state of exception has become the rule and the last days of humanity never end.

Temporada Long way home

Os Sonâmbulos The Sleepwalkers

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CINE HUMBERTO MAURO, 26 NOV, 20h30

The book had its first edition in 1979 and its second edition in 1980. Translated for the first time in Portuguese, this book is about the Bolivian film experience and the films made by the Ukamau Group, having Jorge Sanjinés as its greatest exponent and the foundations for a social cinema, revolutionary, anti-imperialist, common and popular.

O livro teve sua primeira edição em 1979 e sua segunda edição em 1980, sendo traduzido agora pela primeira vez em português, esta publicação conta a experiência cinematográfica boliviana e sobre os filmes feitos pelo Grupo Ukamau, tendo Jorge Sanjinés como expoente maior e as bases para um cinema social, revolucionário, anti-imperialista, coletivo e popular.

Tradução de Sávio Leite e Lourenço Veloso. Goiânia: Editora MMarte, 2018. 252 p. ISBN: 97895 53021024.

Teoria e prática de um cinema junto ao povo

Jorge Sanjinés e Grupo Ukamau

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Ebó Ejé : cinema brasileiro e afro-religiões e VII Colóquio Cinema, Estética e Política

seminário seminar



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Seminário Ebó Ejé:

Cinema Brasileiro e Afro-religiões e VII Colóquio Cinema, Estética e Política Encontro 1 23 de novembro, 14h (sexta-feira)

com Cristina Amaral, Raquel Gerber, Tatiana Carvalho Costa, Tatetu Arabomi Mediação: Ewerton Belico Ver juntos: Ylê Xoroquê (Raquel Gerber, 1981, 34’)

Encontro 2 26 de novembro, 14h (segunda-feira)

com Makota Kidoiale, Makota Valdina Pinto, Pedrina de Lourdes Santos Mediação: Amaranta Cesar Ver juntos: Tem quilombo na cidade - Manzo Ngunzo Kaiango (Aléxia Melo, Bruno Vasconcelos, 2017, 21’)

Encontro 3 27 de novembro, 14h (terça-feira)

com Marcio Goldman, Marinho Rodrigues (Tata Luandenkossi) Mediação: Roberto Romero Ver juntos: Dos tambores do Tombenci aos tambores do Dilazenze (Mestre Ney, 2007, 31’) (trechos)

Encontro 4 28 de novembro, 9h (quarta-feira)

Arte contemporânea, performance e religiões afro-brasileiras com Hélio Menezes, Mariana de Matos, Ricardo Aleixo. Mediação: Janaína Barros

Encontro 5 28 de novembro, 14h (quarta-feira)

com César Guimarães, Mãe Efigênia (Mametu Muiandê), Pai Ricardo de Moura Mediação: Wagner Leite Viana Ver juntos: Pisada de Caboclo (realizado por Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente, 2018) (trechos)

Encontro 6 29 de novembro, 14h (quinta-feira)

Com Juê Olivia, Leda Maria Martins, Marcos Cardoso Mediação: Edgar Rodrigues Barbosa Neto Ver juntos: Merê (Urânia Munzanzu, 2017, 17’)


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Sessões comentadas

23 de novembro, 21h (sexta-feira)

Tambor de Mina, Tambor de Crioulo e Carimbó (Luiz Saia, 1938, 5’) A Última das Minas (Rafael Urban, Larissa Figueiredo, 2015, 25’) Nunes Pereira – a casa das Minas (José Sette, 1978, 60’) comentada por José Sette

24 de novembro, 17h (sábado)

Ylê Xoroquê (Raquel Gerber, 1981, 34’) Orixás - Uma tradição viva (Maoro Rocha Pitta, 2008, 45’) comentada por Raquel Gerber

25 de novembro, 17h (domingo)

A rainha Nzinga chegou (work in progress) (Júnia Torres, Isabel Casimira Gasparino, 2018, 73’) comentada por Isabel Casimira e Antônio Cassimiro

26 de novembro (segunda-feira) 17h Merê (Urânia Munzanzu, 2017, 17’)

Rapsódia para um homem negro (Gabriel Martins, 2015, 25’) Dos tambores do Tombenci aos tambores do Dilazenze (Mestre Ney, 2007, 31’) comentada por Marinho Rodrigues e Gabriel Martins

21h Jubiabá (Nelson Pereira dos Santos, 1987, 100’) comentada por Hernani Heffner

27 de novembro (terça-feira) 9h Yãmĩyhex no cinema (filme em processo)

com Sueli Maxakali, Yxa Py (Patrícia Ferreira – Guarani Mbya) mediação: Clarisse Alvarenga

1 1h O cinema Ye'kwana

com Julio Yek'wana, Viviane Yek'wana mediação: José Cury

19h Egungun (Carlos Brajsblat, 1982, 99’)

comentada por Nilsia Lourdes dos Santos (Iyalodè Ósún Ifé)


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28 de novembro, 19h (quarta-feira)

Encontro com Iemanjá: para além dos olhos (Pai Ricardo de Moura, 2018, 67’) apresentada pelo realizador

30 de novembro, 19h (sexta-feira)

Bahia de todos os Exus (Tuna Espinheira, 1978, 30’) Exu mangueira (Jom Tob Azulay, 1974, 40’) comentada por Jom Tob Azulay O VII Colóquio Cinema, Estética e Política é realizado pelo Grupo de Pesquisa Poéticas da Experiência (vinculado ao CNPq e ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFMG). Este ano, o Colóquio se realiza em parceria com o forumdoc.bh.2018.

ENDEREÇOS

Cine Humberto Mauro Avenida Afonso Pena, 1.537 | Centro FAFICH (UFMG) Av. Pres. Antônio Carlos, 6627 | Pampulha ENTRADA FRANCA


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Mini-currículos Seminário/Colóquio César Guimarães é professor da Universidade Federal de Minas Gerais, integrante do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da FAFICH-UFMG, coordenador do Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Integrante do Grupo de Pesquisa Poéticas da experiência, editor da revista Devires: Cinema e Humanidades. Cristina Amaral é montadora, responsável pela edição de filmes como “Alma Corsária”, “Dois córregos”, “Garotas do ABC”, “Bens Confiscados”, “Falsa Loura”, de Carlos Reichenbach; “Interprete mais, ganhe mais”, “Serras da Desordem”, “Já visto, jamais visto”, de Andrea Tonacci; “A voz e o vazio - a vez de Vassourinha”, de Carlos Adriano; “A Hora Mágica”, de Guilherme de Almeida Prado, dentre vários outros. Hélio Menezes é mestre e doutorando em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade de São Paulo. É pesquisador do Núcleo de Estudos dos Marcadores Sociais da Diferença (NUMAS/USP) e Etno-História (USP). Foi curador convidado da exposição Histórias Afro-atlânticas (MASP e ITO), e curador da mostra de performances Eu não sou uma mulher? (ITO). Júlio David Rodrigues é formado no curso de Gestão Territorial pelo Instituto ISIKIRAN (Boa Vista - RR) é atual presidente da Associação Wanasseduume Ye’kwana – SEDUUME. Produz imagens desde 2014 quando fez formação em cinema com José Cury pelo programa Saberes Indígenas nas Escolas Ye’kwana. Nesse tempo, realizou dois longas metragem para as escolas ye’kwana, um chamado “Kudiiyada Tödöödö” e o outro intitulado “Wanaadi e Kaaju”. Leda Maria Martins é rainha da Irmandade de Nossa Senhora do Jatobá é poeta e ensaista. Pós-Doutorado em Performance Studies, New York University,Tisch School of the Artes; Pós-Doutorado em Rito, Dramaturgia e Teatralidade, Universidade Federal Fluminense. Pós-Doutorado em Teorias da Performance, New York University, Tisch School of the Arts, 1999-2000. Professora associada da Universidade Federal de Minas Gerais. Diretora de Ação Cultural desta Universidade. Em 2017 foi homenageada com a criação do Prêmio Leda Maria Martins de Artes Cênicas Negras. Gabriel Martins é diretor, roteirista, diretor de fotografia e montador. Dirigiu “Mundo Incrível Remix”, “Rapsódia para um Homem Negro”, “Nada”, “Nó do diabo” (em co-direção com Ian Abé, Jhesus Tribuzi e Ramon Porto Mota), “Contagem”, “No Coração do Mundo”(ambos em co-direção com Maurílio Martins). Foi ainda roteirista de “Alemão” , de José Eduardo Belmonte; montador de “Temporada”, de André Novais, e diretor de fotografia de “A Cidade do Futuro”, de Cláudio Marques e Marília Hughes, dentre outros. Mariana de Matos é artista visual e poeta. Graduou-se em Artes Visuais na Escola Guignard (UEMG) sem ter tido professores negros e pesquisa a contribuição da poesia negra para a decolonialidade, no mestrado em Teoria Literária (UFPE) onde ainda não há professores negros. Atua com linguagens híbridas, se dedica à fusão entre os campos da imagem e da palavra.Articula trabalhos em pintura e costura, interferências em madeira, poesia expandida, arte relacional, instalações, intervenções poéticas urbanas, ações e fotografia. Desenvolve desde 2010 o projeto Poesia como Paisagem, procedimento poético urbano. Fundou a organização MUNA (mulheres negras nas artes).


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Marinho Rodrigues (Tata Luandenkossi) Tata Kambomdo do Terreiro de Matamba Tombenci Neto, Ilhéus, Bahia, filho carnal de Mameto Mukalê, mãe-de-santo do terreiro. É percussionista, cantor e compositor; membro da RENAFRO; presidente e fundador da Organização Gongombira de Cultura e Cidadania, organização não-governamental, sem fins lucrativos, que tem como objetivos a preservação, valorização e divulgação da cultura negra, bem como de luta contra o racismo e todas as formas de discriminação. Juê Olivia é autora de “As jóias de Oxum: as crianças na herança ancestral Afro-Brasileira”, pesquisa de mestrado desenvolvida a partir da experiência como produtora e pesquisadora do documentário Merê. Atualmente desenvolve o projeto de iniciação artística para adolescentes, o “Afropoéticas”, pelo Sesc-SP, onde é como educadora. Makota Kidoiale (Cássia Cristina da Silva) é filha carnal de Mãe Efigênia (Mametu Muiandê), fundadora do Quilombo Manzo Ngunzo Kaiango, comunidade tradicional de matriz africana de nação bantu localizada no bairro Santa Efigênia, Belo Horizonte. É presidente da Associação de Resistência Cultural do Manzo, certificada como Remanescente de Quilombo pela Fundação Palmares. Também é diretora de mobilização do Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira (CENARAB). Mestra no curso Formação Transversal em Saberes Tradicionais nesta Universidade. Makota Valdina Pinto (Nzo Onimboya) exerce a função religiosa de Makota no Terreiro Nzo Onimboyá, no Engenho Velho da Federação, Salvador, Bahia, bairro em que nasceu e cresceu e onde se registra a maior concentração de Terreiros de Candomblé no Brasil. Educadora, líder comunitária e religiosa brasileira, militante da liberdade religiosa, como porta-voz das religiões de matriz africana, bem como dos direitos das mulheres e da população negra. Professora aposentada da rede pública municipal de Salvador, foi membro do Conselho Estadual de Cultura da Bahia. No ano de 2005, foi proclamada “Mestra de Saberes” pela Prefeitura Municipal de Salvador. Mãe Efigênia (Mametu Muiandê) é a matriarca e liderança máxima da comunidade fundada por ela há cerca de quarenta anos, o Quilombo Manzo Ngunzo Kaiango, situado na zona leste de Belo Horizonte, e que constitui uma referência importante para o conhecimento da filosofia afro-brasileira. Sua raiz inicial foi jeje, razão pela qual possui notável conhecimento também nessa tradição e nos conhecimentos de rituais desta nação, mas seu processo contínuo de formação foi na nação angola. Mestra no curso Formação Transversal em Saberes Tradicionais na UFMG. Marcio Goldman é professor do Programa de Antropologia Social do Museu Nacional (UFRJ). Suas áreas de atuação incluem antropologia das religiões afro-brasileiras, antropologia política, antropologia da religião, teoria antropológica e antropologia simétrica. Pesquisa atualmente as cosmopolíticas das religiões de matriz africana no Brasil a partir de pesquisa de campo em terreiro de candomblé na cidade de Ilhéus, no sul da Bahia. Marcos Cardoso possui graduação em Filosofia (1987) e Mestrado em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (2001). Atualmente é Analista de Políticas Públicas da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. Foi professor do Curso de Especialização Estudos Africanos e Afro-Brasileiros da PUC Minas e do Programa UNI AFRO (Aperfeiçoamento e Especialização formação de Professores da Rede Publica de Ensino de Minas Gerais da Faculdade de Educação da UFMG. Foi membro do Conselho Curador da Fundação Cultural Palmares vinculada ao Ministério da Cultura e da Fundação Centro de Referencia da Cultura Negra. Pedrina de Lourdes Santos (Capitã Pedrina) é pesquisadora com grande conhecimento em cantos e oralidade em línguas africanas de matriz banto, em história e cultura afro-


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brasileiras, sobretudo, no que se refere às artes rituais do Reinado de Nossa Senhora do Rosário, e como pensadora negra sobre relações étnico-raciais. Capitã da Guarda de Moçambique de Nossa Senhora das Mercês de Oliveira e integrante da Casa de nação Angola. Foi curadora do Festival de Inverno da UFMG em 2013 e mestra no curso Formação Transversal em Saberes Tradicionais nesta Universidade. Raquel Gerber é diretora, produtora e ensaísta. Dirigiu “Ylê Xoroquê”, “Orí” e “Abá” (com Cristina Amaral), além de produzir “O Rei da Noite”, “Lúcio Flávio, o passageiro da agonia”, ambos dirigidos por Hector Babenco; “Os Muckers”, de Jorge Bodanzky e “Diamante Bruto”, de Orlando Senna. É autora de “Cinema e Sociedade”, “Cinema Brasileiro e Processo Político e Cultural” e “O Mito da Civilização Atlântica - Glauber Rocha e o Cinema Novo”. Foi colaboradora de periódicos como Argumento, Movimento, Opinião e Filme Cultura. Pai Ricardo de Moura coordena a Associação de Resistência Cultural Afro-brasileira Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente (CCPJO), que atua desde 1966 no complexo da Pedreira Prado Lopes, em Belo Horizonte. É Rei Congo da Guarda de São Jorge de Nossa Senhora do Rosário no bairro Concórdia. Com a Associação, Pai Ricardo desenvolve o ensino da cultura e história afrobrasileira a partir das referências rituais e litúrgicas da Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente. Ricardo de Moura atua na diretoria do CENARAB (Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira). No Conselho Municipal da Promoção da Igualdade Racial, é representante da Umbanda. Mestre professor da Formação Transversal em Saberes Tradicionais na UFMG. Ricardo Aleixo é poeta, artista visual e sonoro, cantor, compositor, performador, ensaísta e editor. Publicou, entre outros, os livros Pesado demais para a ventania (Todavia, 2018, finalista do Prêmio Oceanos). Antiboi (LIRA/Crisálida, 2017), Impossível como nunca ter tido um rosto (edição do autor, 2015), Modelos vivos (Ed. Crisálida, 2010 – um dos 10 finalistas dos prêmios Portugal Telecom e Jabuti 201 1) e Trívio (Ed. Scriptum, 2001). Tem participado de importantes exposições coletivas, como Poiesis < Poema entre pixel e programa > (RJ, 2007), Radiovisual – Em torno de 4’33” (Bienal do Mercosul, Porto Alegre, 2009) e Poética Expositiva (RJ, 201 1). Sueli Maxakali nasceu às margens do córrego Água Boa, onde cresceu cantando e dançando com os yãm yxop. Em 2007, criou com alguns parentes a Aldeia Verde, onde vive e trabalha. Com o projeto Imagem-corpo-verdade, iniciou seu trabalho como fotógrafa, reunido no livro Koxuk Xop: Imagem. Co-dirigiu com Isael Maxakali os lmes Quando os yãmiy vêm dançar conosco (201 1), Xopapoxnãg (2013), Kotkuphi (2013) e Yãmiy (2014). É também co-autora do livro Hitupmã’ax: curar (Literaterras, 2012) e pesquisadora do OEEI - FaE/UFMG. Professora convidada do programa de formaçã o transversal em saberes tradicionais – UFMG. Tatetu Arabomi (Marcos Adelino Ferreira) é sacerdote do Candomblé Angola/Congo. Dirigente da Comunidade Tradicional de Matriz Africana BAKISE BANTU KASANJE. Conselheiro do CONEPIR-MG: Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial. Membro do Grupo de Reflexão Ecumênica e Diálogo Inter Religioso-GREDIR. Tatiana Carvalho Costa é mestre em Comunicação Social pela UFMG. Fez direção e roteiro para a série “Gênero e Diversidade na Escola” e a direção de curtas metragens não ficcionais: “TransHomemTrans”, “Muito Prazer: Travestis e Transexuais de Juiz de Fora”, Memorial Travestis e Transexuais de BH”. Dirigiu os curtas “O Ciclone Lento e Sutil” (2001), “Oficina de Agosto” , “Pensamentos do Toti” e “Zezim”. Seu curta-metragem “Las cartas de la plaza de Santo Domingo” foi o projeto vencedor da seleção DOCSDF (México) em parceria com SAV/MinC (Brasil) em setembro de 2009 e recebeu Menção Especial do Júri na 4ª Edição deste festival. Atualmente, coordena os projetos de extensão


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universitária “Viver Ciências” e “Pretança” no Centro Universitário UNA. É integrante do movimento Segunda Preta. Viviane Cajusuanaima Rocha é mestranda no PPGAn/UFMG, é professora na escola Apolinário Gimenes da comunidade de Fuduuwaadunnha - Terra Indígena Yanomami (RR). Produz imagens desde 2013 quando fez formação em cinema com José Cury. Tem alguns filmes em processo de produção e participou da realização dos filmes “Kudiiyada Tödöödö”, “Wanaadi e Kaaju” e “Weinhä Woowanoomanä Jäkä Ekammajäätödö”. Yxa Pi (Patrícia Ferreira) é cineasta da etnia mbyá-guarani. Mora na Aldeia Ko’enju, em São Miguel das Missões (RS). Atua como professora desde 2006, e em 2007 co-fundou o Coletivo Mbyá-Guarani de Cinema.

Mediação Amaranta Cesar é professora de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Possui graduação em Comunicação, mestrado em Comunicação e Culturas Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (2002), doutorado em Cinema e Audiovisual pela Universidade de Paris III - Sorbonne-Nouvelle (2008) e Pós-doutorado na New York University. Foi curadora da Mostra 50 Anos de Cinema da África Francófona (2009). Idealizou e coordena o Cachoeiradoc - Festival de Documentários de Cachoeira (BA). Coordena o Grupo de Estudos e Práticas em Documentário. Tem apresentado trabalhos e publicado artigos com enfoque em cinema e diferença, documentário, cinema africano e da diáspora, cinema brasileiro, análise fílmica. Realizadora do filme Maré, exibido neste festival. Clarisse Alvarenga é formada em Comunicação Social (UFMG), com mestrado em Multimeios (Unicamp), doutorado em Comunicação Social (UFMG) e pós-doutorado em andamento no PPGAS do Museu Nacional (UFRJ). Seu trabalho envolve atenção ao cinema indigenista e ao cinema indígena brasileiros. É autora do livro Da cena do contato ao inacabamento da história (Edufba, 2017), e também realizadora, tendo dirigido os longas-metragens Ô, de casa! (2007) e Homem-peixe (2017). Atualmente, é professora adjunta na Faculdade de Educação da UFMG. Edgar Rodrigues Barbosa Neto é mestre em Antropologia Social pela UFRGS e Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional (UFRJ). Atualmente é Professor de Antropologia do Departamento de Ciências Aplicadas à Educação (DECAE) e do Curso de Formação Intercultural de Educadores Indígenas da UFMG e Pesquisador Associado ao Núcleo de Antropologia Simétrica do Museu Nacional. Suas pesquisas concentram-se nas áreas de Antropologia das Religiões de Matriz Africana, Estudos Afro-Brasileiros, Antropologias AfroIndígenas, Teoria Antropológica, Regimes de Conhecimento e Modos de Aprendizado. Ewerton Belico é curador, professor, roteirista e diretor. É um dos curadores do forumdoc.bh e foi curador do Festival Internacional de Curtas-Metragem de Belo Horizonte e do Fronteira - Festival Internacional de cinema documentário e experimental de Goiânia. Curador da Mostra CineTropicália, realizado no SESC/Palladium, em Belo Horizonte. Foi professor da Escola Livre de Cinema. Foi co-roteirista de Subybaya, dirigido por Leo Pyrata, lançado na XX Mostra de Cinema de Tiradentes, e co-roteirista e co-diretor do longa-metragem Baixo Centro, lançado na XXI Mostra de Cinema de Tiradentes, no qual foi vencedor do prêmio de melhor longa-metragem, concedido pelo júri da crítica. Janaína Barros Silva Viana é artista visual, pesquisadora e educadora. Pós-doutoranda pelo programa de pós-graduação da Escola de Ciência da Informação da UFMG. Doutorado pelo


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Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte pelo MAC-USP. Mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Unesp. Especialista em Linguagens Visuais pela Faculdade Santa Marcelina. Graduação em Educação Artística com Habilitação em Artes Plásticas pela Unesp. Possui publicações sobre o debate de autoria negra e gênero na arte brasileira contemporânea. José Cury é mestrando no PPGCOM/UFMG, atua como professor conteudista do programa Saberes Indígenas na Escola do Ministério da Educação Governo Federal, onde ministra oficinas de fotografia e montagem para filmes etnográficos juntamente com os povos das etnias Yanomami e Ye’kwana (RR), Guarani (RJ), Pataxó (MG) e Xakriabá (MG). Realizou em 2013 o curta metragem “Beiramar o rei do açaí”, e em 2016, dirigiu os filmes, “Uî Kãnã Pataxí” e o filme “Kudiiyada Tödöödö”. Roberto Romero é etnólogo, doutorando em Antropologia Social pelo Museu Nacional (UFRJ) e membro do Núcleo de Antropologia Simétrica (NanSi). Desenvolve pesquisa entre os Tikmũ’ũn (Maxakali). Wagner Leite Viana atualmente é professor adjunto na escola de Belas Artes da UFMG. Tem experiência na área de Arte e Educação, com ênfase em Práticas de Educação e processos artísticos e epistemologias, Educação para as relações étnico-raciais e Educação ambiental. Desenvolve os seguintes projetos de pesquisa: “Ascendência, Afrobrasilidades e Autorias: Prática poética e educativa” e “Poéticas da natureza inscritas nas disputas e nas negociações do retrato e do corpo afro indígena como paisagem articulada pela memória ambiental.”

Sessões comentadas Mostra Ebó Ejé Antônio Cassimiro Gasparino é capitão da Guarda de Moçambique e Congo Treze de Maio de Nossa Senhora do Rosário. Neto da fundadora desta Guarda aprendeu as performances rituais, cantos e instrumentos até vir a se tornar o Capitão deste reino. Tem atuado em projetos culturais relativos ao patrimônio imaterial e ministrado oficinas de formação em sua tradição. A Treze de Maio foi fundada em 1944, importante patrimônio de herança africana em Minas Gerais. Recebeu o Prêmio Cultura Viva/ MINC. Foi componente da equipe de realização do filme A Rainha Nzinga Chegou. Hernani Heffner é curador, crítico, professor e pesquisador de cinema. É conservadorchefe da Cinemateca do MAM/RJ, e foi pesquisador da Cia. Cinematográfica Cinédia. É professor de cinema da PUC/RJ, e foi professor de inúmeras universidades, tais como FGV/ RJ, UFF e FAP/PR. Escreveu inúmeros verbetes para a Enciclopédia do Cinema Brasileiro, além de artigos vários para revistas, catálogos e livros. Foi curador do Festival Cine-Música, além de curador da temática preservação do CineOP. Coordenou a restauração de inúmeras produções da Cinédia, como O Ébrio; Alô, Alô Carnaval e Bonequinha de Seda.= Jom Tob Azulay é diretor, produtor, diretor de fotografia, sonorista e produtor. Dirigiu Doces Bárbaros, Exu Mangueira, Corações a Mil , dentre outros. Foi Diretor de Fotografia de Muito Prazer , de David Neves; produtor de Um Homem e o Cinema, de Alberto Cavalcanti e Estorvo, de Ruy Guerra; sonorista de O Rei da Vela, dirigido por José Celso Martinez Corrêa e Noilton Nunes, dentre vários outros trabalhos técnicos. É um dos pioneiros da videoarte brasileira, tendo gravado performances de Anna Bella Geiger, Sônia Andrade, Letícia Parente, dentre outros. Foi diplomata, perseguido pela ditadura militar, reintegrado pela Comissão da Anistia.


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José Sette de Barros é diretor, roteirista, sonorista, diretor de fotografia e montador. Dirigiu, dentre outros filmes, “A Cidade da Bahia”, “Bandalheira Infernal”, “Um sorriso por favor - o mundo gráfico de Goeldi”, “Um Filme 100% Brazileiro”, “A Casa das Minas”, “O Homem da Lagoa Santa”, “Liberdade, ainda que tardia”, “Encantamento de Camargo Guarnieri”, “A janela do Caos”, “O Rei do Samba”, “Labirinto de Pedra”. Foi técnico e montador de som de filmes como “Samba da Criação do Mundo”, de Vera de Figueiredo; “Umbanda no Brasil, de Rogério Sganzerla. Foi ainda montador de filmes como “Sagrada Família, de Sylvio Lanna e “Um Homem público”, de Helvécio Ratton; e diretor de fotografia de “Cinema Inocente”, de Júlio Bressane, dentre vários outros. Isabel Casimira Gasparino é rainha do Congo da Guardas de Moçambique e Congo Treze de Maio de Nossa Senhora do Rosário e do Estado de Minas Gerais. Filha da Rainha Isabel Casimira das Dores Gasparino, herdou sua coroa. Junto de seus irmãos perpetua as festividades rituais iniciadas em 1944. É co-diretora do filme A Rainha Nzinga Chegou. Retrato Substantivo Feminino, Exposição e performance: FIDÉ – Festival International du Documentaire Étudiant (FR); Mestra GT Cantares Afro-brasileiros - 45º Festival de Inverno da UFMG. Coordena projeto com o Instituto Brasileiro de Museus: Documentação do acervo Guarda Treze de Maio e Centro Espírita São Sebastião. Nilsia Lourdes dos Santos (Iyalodè Ósún Ifé) à frente do Ilè Asé Asegún Itèsiwajú Aterossun, localizado em São José da Lapa (MG), foi iniciada há trinta e três anos nos conhecimentos, na vida e nos mistérios do ketu, cujos fundamentos remontam à rica e milenar cultura yorubá da África ocidental. Em agosto de 2018, recebeu o título de Iyalodè Ósún Ifé World Wide concedido por sua majestade Ooni de Ilè Ifé, Nigéria. Graduada em Serviço Social, atualmente encontra-se dedicada ao trabalho de tradução para o português do livro Yorùbá Theology And Tradition: The Man & The Society, de Sìkírú Salami.



essays and interviews

ensaios e entrevistas



ensaios mostra Ebó Ejé

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Minha vocação é para a liberdade Entrevista com Makota

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Valdina por Amaranta Cesar*

conversa que se segue aconteceu no dia 19 de outubro, quando a manhã ainda estava fria, aos pés de um abacateiro do Nzo Onimbya, terreiro fundado pela família Pinto, no Engenho Velho da Federação, bairro de maior concentração de terreiros de Candomblé de Salvador e do Brasil. A desfiar o mariô (mariwô), Valdina Pinto, Makota Zimewanga ou, como é mais conhecida, Makota Valdina (conjunção do nome de batismo com o cargo que exerce no Candomblé) estava ali, como de costume, trançando as atividades religiosas com a história e a política, num elo sofisticado que ela trama como ninguém. Makota Valdina dedicou seus 75 anos a perseguir, em todos os campos da vida comum, aquilo que, segundo ela, é a vocação de todo sujeito: a liberdade. E, assim, construiu uma reconhecida e notável trajetória como liderança religiosa do Candomblé Angola, militante negra e ativista ambiental. Mas é como "professora primária aposentada" que ela gosta de se definir. Suas lições, por sua vez, amplificam-se nas dimensões do cosmos, são para ler o mundo em seus complexos enlaces entre o visível e o invisível.

Dez dias depois de conversarmos, no momento em que finalizávamos a edição desta entrevista, nos chega a notícia, pelo grupo de whatsapp do Nzo Onimboya, de que a Casa de Oxumaré, um dos tradicionais terreiros de Candomblé do Engenho Velho da Federação, teve seu muro pichado com as palavras “Jesus é o caminho”. Diante da notícia, no grupo virtual, a comunidade do Nzo debate a necessidade de criação de uma Frente de Resistência da Religiosidade Africana para enfrentar os ataques que, supomos, serão intensificados a partir de agora. As lições de nossa mãe Zimewanga explicitam-se na urgência da violência que se institucionaliza e da luta contra o racismo religioso: nosso trabalho e cuidado espiritual não se separa de uma tarefa política, assim como no presente há sempre passado; de uma perspectiva histórica mas também cosmológica. Porque, como ela diz, “o Tempo é o vento”, aquilo que nos antecede e sem o qual não podemos respirar, viver. AC – Eu queria que a senhora começasse contando um pouco da história desse espaço, o Nzo Onimboyá: como foi que ele surgiu, o que

*Makota Valdina exerce a função religiosa de Makota no Terreiro Nzo Onimboyá, no Engenho Velho da Federação, Salvador, Bahia, bairro em que nasceu e cresceu e onde se registra a maior concentração de Terreiros de Candomblé no Brasil. Educadora, líder comunitária e religiosa brasileira, militante da liberdade religiosa, como porta-voz das religiões de matriz africana, bem como dos direitos das mulheres e da população negra. Professora aposentada da rede pública municipal de Salvador, foi membro do Conselho Estadual de Cultura da Bahia. No ano de 2005, foi proclamada “Mestra de Saberes” pela Prefeitura Municipal de Salvador. Amaranta Cesar é professora e pesquisadora de Cinema e Audiovisual da UFRB, doutora em Estudos Cinematográficos pela Universidade de Paris 3 - Sorbonne Nouvelle, idealizou e é curadora do CachoeiraDoc - Festival de Documentários de Cachoeira.


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ele significa na sua história, como é que ele atravessa as suas memórias? MV – O Nzo Onimboyá tem a ver com minha história familiar, porque esse espaço foi a primeira casa que meus pais construíram na década de 1940, precisamente 1940... Porque meu irmão mais velho nasceu em 1940, e a gente nasceu aqui, foi a primeira casa que eles construíram. Minha mãe era de Candomblé, minha mãe foi iniciada. E minha mãe teve que se iniciar e quem realmente deu caminho, chegou e falou que minha mãe precisava cuidar da vida espiritual dela no Candomblé, fazer o santo, que era assim que se falava antigamente, foi o Caboclo, o Caboclo Onimboyá, porque era o caboclo que minha mãe recebia. Então, o Nzo tem a ver com a família. Eu fui a primeira dos filhos a me iniciar, a entrar no Candomblé, já adulta, no Tanuri Junsara que é aqui mesmo no bairro. Depois, foi minha irmã caçula, Maria Angélica, Vulasese, que hoje é a mãe desse terreiro, porque ela que é a “rodante”, a Mona Nkisi – que recebe o Nkisi. E então meus sobrinhos, Paulo e Juninho, e meu irmão, mais conhecido como Queinho, foram iniciados, e aí depois de setes anos, minha Mãe de santo já não era mais viva, foi que a gente começou a cuidar, fazendo uma obrigação mais séria, porque sempre a gente botava uma coisinha e tudo... E a gente aí começou a utilizar o espaço, modificar o espaço, para criar uma estrutura, ainda que seja tudo pequeno, mas criar uma estrutura para iniciar pessoas. E assim é que o Nzo está aí, quer dizer, é um terreiro, uma casa de santo nova. Sim, nova porque a gente está tocando agora, mas as coisas que nós cultuamos, os santos, já vem desde que minha mãe fez santo no final de década de 1940 e início de 1950, então a coisa já vem de longe. E hoje é um espaço que é não só da família, tem pessoas que não são da família que se cuidam aqui, é um espaço de

cura, é um terreiro que a gente cultua os Nkisis, os Caboclos, mas também os Orixás, os Voduns, que a gente tem consciência que a gente não é puro, a gente tem influência de várias vertentes africanas, e sobretudo dos Caboclos. E leva o nome de Onimboyá porque ele é o mentor da nossa família. AC –Eu queria que a senhora contasse um pouco agora como foi exatamente a construção desse espaço, como foi que vocês conseguiram transformá-lo e como é a relação do culto aqui nesse bairro com a urbanidade. Porque se precisa muito da natureza e isso é um desafio no Engenho Velho que é um bairro densamente povoado, com muitas casas, com pouco espaço verde, eu queria que a senhora falasse um pouco sobre isso. MV – Quando eu era criança, se for olhar, a gente até tinha muito mais espaço, o quintal era muito mais amplo, mas você sabe como é... Todo mundo aqui tinha quintal, que hoje em dia a gente é privilegiado por ter um, pequeno, mas a gente tem quintal. E aí foram construindo casa... e avança na terra, e a gente até nisso perdeu um pouco. Mas, quando eu era criança, na década de 1940-50, era muito mato, muitas fontes d’água que existiam aqui no bairro. Então, naquela época, a gente tinha muito mais verde, eu lembro de muitas espécies de Mata Atlântica que a gente não precisava ir para a Avenida Paralela, para lugar nenhum buscar, aqui por perto mesmo a gente conseguia as folhas. Eu me lembro, era meninota, mas a gente ia para o mato, que a gente conhecia folha, naquela época. E minha mãe mandava pegar uns galhos de folhas de São Gonçalinho, de murici, de capianga pra sacudir a casa no Sábado de Aleluia, no final de ano. Eu me tenho essa lembrança. Então era isso, e a relação da gente com o mato era muito forte, a gente brincava nos quintais, a gente descendo


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aí tinha a roça do Costa, tinha era sapoti, cacau, cajá-umbu, cajá, maracujá... A gente se embrenhava por aí para catar fruto no mato, então na minha infância a relação da gente com o mato era muito forte, o mato era espaço de lazer, mas para a gente tinha também uma influência, a sabedoria, o conhecimento, a aprendizagem de se relacionar com o mato. Eu lembro muito da gente brincando aqui nesse quintal, que era muito diferente. Mas quando a gente resolveu mesmo utilizar o espaço para fazer o culto, a gente começou a fazer algumas interferências no quintal, que estava jogado, então a gente começou a mexer. Tinha que ampliar um pouco, então teve que cortar algumas bananeiras. Aí a gente já enfrentando essa dificuldade de encontrar as plantas, as folhas que a gente precisa, a gente começou a intervir, começou até a replantar algumas coisas, algumas folhas. Porque hoje em dia está muito difícil, estão desmatando muito aqui em Salvador, e a gente já não encontra mais as plantas que a gente encontrava naturalmente, que a gente precisa no culto, fica cada vez mais difícil. E a gente hoje tem que aproveitar todo espaço, planta num caco maior, planta no balde, para ter a folha dentro de casa, eu mesma tenho essa preocupação. Por outro lado, a gente também, agora, fica na preocupação de como cuidar desse mato que era mais denso, que tinha também os animais, os bichos. Aqui no Nzo, a gente tem essa preocupação: o que colocar no mato, como colocar no mato, porque o mato de hoje não é mais o mato de antes, então a gente já não tem mais os animais que a gente tinha antes, que consumia aquela oferenda, entendeu? Então, a gente tem muito essa preocupação, de não levar muitas vasilhas pro mato, a gente coloca as coisas na folha. As áreas estão ficando cada vez mais urbanizadas, e a gente não vai ficar largando coisa por aí, então a gente faz nossas oferendas aqui, bota no mato aquilo que tem que botar,

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mas preservando para não encher de vidro, de coisas. Quando a gente leva alguma bebida a gente derrama na terra, quando a gente vai para o mar do mesmo jeito. Então, aqui a gente tem essa preocupação, e quando a gente se encontra entre irmãos de santo, de fé, eu estou chamando sempre atenção para isso. Outra coisa também, quando a gente vai para o mato que precisa tirar a folha, eu sempre falo: vamos tirar a quantidade que a gente precisa, porque outros vão precisar também. Se tem um galho que tá ali florescendo, deixa aquele galho, vamos tirar de outro. Se impedir daquela semente cair, a gente vai ficar com cada vez menos folhas. São essas preocupações que a gente aqui tem, porque a gente precisa da natureza, e a gente tem que tomar conta da natureza.


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AC –A senhora pode falar um pouco mais da relação que esse Candomblé, que é cultuado e praticado aqui, tem com a natureza, especificamente? MV – Ah, tem muito, porque índio não vive sem terra e sem folha, e o africano tradicional também não... Porque tudo bem que a África hoje é como qualquer lugar do mundo, mas os tradicionais na África precisam também da terra e do mato, da mesma forma que o índio, e aqui a gente tem uma relação muito forte com os Caboclos, que são os ancestrais indígenas, justamente por causa do Caboclo Onimboyá. Então, a gente cultua as entidades africanas, mas o Caboclo é muito forte, sobretudo porque é o dono, é que dá nome ao nosso terreiro. Então, é muito forte a questão da natureza, é muito importante para a gente. A gente precisa, a gente não tem Candomblé de prateleira nem de gaveta, a gente tenta ter um espaço no nosso terreiro que eu digo “a gente não vai botar nunca cimento, aí tem que ser chão mesmo, deixa o chão aí para a planta que tiver que nascer, que a gente não plantar, nascer, um lugarzinho que a gente tiver que possa dar planta, plantar, tem que ter o chão”. Então a natureza é muito importante para o Candomblé, sim. Porque hoje em dia, eu até crítico muito, eu vejo muito na internet esses mega barracões, essas mega festas, com muita coisa, muito consumismo, e eu acho que isso não é muito o que eles querem, eles que eu estou falando são os Caboclos, os Nkisis, os Orixás. Eles querem coisas mais simples, que antigamente eram mais simples as coisas. No tempo que eu não era de Candomblé ainda, mas era, porque respirava Candomblé, vivenciava Candomblé, era diferente, as roupas eram de chita, chitão, tinha uma ou outra melhorzinha para determinadas entidades, Orixás, mas não era

o que a gente vê hoje. Eu hoje vejo uma verdadeira aberração. Eu vejo na internet os barracões de Candomblé parecem casas de show. E quando a gente está fazendo, cultuando um Nkisi, um Orixá, um Caboclo, tudo é mais simples, não precisa de brilho, não precisa de roupa, não precisa mesmo, é o mais simples possível. Então a gente é quem cria essas coisas, então eu acho que às vezes é muito consumismo, e a gente tem que valorizar mais o que é natureza. AC –A senhora podia falar então justamente dessa relação entre o Nkisi e a natureza na filosofia e na cosmologia Angola? MV – Natureza é Nkisi, Nkisi é natureza. Eu me confirmei em 1975, de todos os antigos que eu conheci, com quem eu convivi, eu não me lembro de nenhum contar lenda nenhuma de Nkisi, mas eu me lembro assim sempre de falar da importância das folhas, da água, dos fenômenos da natureza, da importância disso. No final da década de 1980 ou início de 1990, eu conheci um africano do Congo, que ele vivia nos Estados Unidos, e eu aprendi muita coisa com ele, e eu tive a oportunidade de ver que muito das coisas que a gente fazia, ainda que as pessoas não explicassem para a gente, tinha um fundamento, tinha uma anterioridade, tinha um pé lá na África. Ele era Fu-Kiau.2 Então quando eu tive acesso aos escritos, aos ensinamentos de Fu-Kiau, eu vi que a gente do Candomblé Angola, apesar de não ter lendas, não ter mitos, não ter essa coisa toda que tem na cultura Iorubá, dos Orixás, a gente tem a nossa própria cultura, nossas próprias culturas, porque quem formou e forjou o Candomblé Angola foram as culturas que linguísticamente são hoje classificadas como bantu. Até muita gente diz que candomblé é bantu,

2. Kimbwandende Kia Bunseki Fu-Kiau pesquisador da história e das culturas Kongo.


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não tem esse negócio de Candomblé bantu, é Candomblé Angola ou Congo Angola. Esse é o termo. Agora, tem influência dessas várias culturas bantu, porque não foi, como no Ketu, só uma cultura, a Iorubá: tem a cultura dos Bakongo, dos Luba, dos Lunda, dos Kioko, dos Nlele e tantos outros que são agrupados linguisticamente como bantu. Então, eu aprendi com Fu-Kiau algumas coisas sobre essa visão desses povos bantu, são culturas muito ligadas a provérbios, ao invés de lendas, tudo é muito explicado com provérbios, que servem para explicar a vida na comunidade, a visão de mundo, os fenômenos da natureza e por aí vai. E aí uma das máximas, de ditos que aprendi com Fu-Kiau, é quando ele nos ensina sobre o que é que o povo bantu, aliás, não, os bantu, porque bantu é povo... Bantu é plural de muntu, muntu é ser humano, pessoa, bantu são pessoas, seres humanos... Quando ele, pra explicar o que é a terra, o que é esse planeta Terra, que é a casa comum de todos os seres humanos, diz que a terra é “Futu dya nkisi dya kanga kalunga mu diambo dya moyo”.. Futu é como um sachê, um pacote, a terra é um pacote de essências curativas. Então, na verdade, o que a gente cultua que é o Nkisi é isso, não é um rei, uma rainha, uma coisa... Nkisi é isso, uma coisa que está no mundo para todo mundo, ainda que não acredite, não saiba, não cultue... Essa química que está aí nesse planeta, no ar, na terra, em tudo que está aí, que foi selado, que foi codificado, que foi amarrado, foi enlaçado por Kalunga (Kalunga é o mesmo que Nzambi, o mesmo que Deus, o mesmo que Olorum), selado com intenção de vida, Mudiambo Dyamoio, para a vida. Então, tudo que está nesse pacote foi colocado por Kalunga, por Nzambi, por Deus, Jeová, Javé, Alah, não importa o nome que queira dar, para dar vida na Terra e ao ser humano. Então, todo ser humano, branco, preto, gordo, magro, rico e pobre, que conheça e que não conheça, depende disso. Porque todo

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mundo precisa de água, todo mundo precisa de ar, precisa da química do remédio, do alimento que está na terra. Vai para o laboratório, mas o laboratório tem que tirar a matéria que taí, que foi e é colocada o tempo todo por Nzambi. Você vê que a gente está assim, ‘‘ah, foi o pássaro que trouxe”, sim, mas o pássaro trouxe de onde? Às vezes nasce uma planta que você não plantou, ninguém plantou, está ali, entendeu? Então é isso, então Nkisi é isso. E o Nkisi vem de um verbo, tem um verbo que chama kinsa, que quer dizer cuidar, curar, tomar conta, tomar cuidado. Então Nkisi é isso, é essa essência, essa energia, que está aí para tomar conta da gente, para cuidar da gente; é essa essência que está na natureza. Então, se é isso, a gente precisa do nkisi e a gente precisa cuidar da natureza. Então, cada vez que a gente deixa poluir fontes de água, cada vez que a gente contribui para que as águas no mundo sejam poluídas, a gente está fazendo com que a gente fique sem Nkisi. Quando a gente fala “ah, porque Oxum, porque Dandalunda é a deusa do amor”... Não, Dandalunda é água, é a força da água, é a força vital da água. Isso é Dandalunda. E isso é Oxum, Aziri, porque a gente pode dar nomes diferentes, mas água é água. Você pode na outra língua ter outro nome, mas é isso que é Oxum, isso que é Dandalunda, isso que é Aziri... Como o ar, quem é que vive sem ar? Todo mundo precisa do vento, de Tempo, do ar, todo mundo precisa. AC –Talvez fosse bom se a senhora pudesse falar agora, justamente, uma vez que a natureza é tão fundamental… MV – e é fundamental mesmo... AC –... de como a senhora se tornou uma ativista, uma ativista ambiental, mas também uma ativista política num sentido amplo.


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MV – A década de 1970 foi muito importante para a gente, aqui no Brasil, aqui na Bahia, de um retomar… Porque o negro, desde quando foi trazido para aqui, o negro na condição de escravo, ele nunca parou. Mas a década de 1970 foi muito importante, porque a gente reorganizou formas de lutar contra o racismo, contra a discriminação. E aí eu me tornei ativista. E naquela época, justamente, eu acho que foi um chamado deles. Eu acho que eles me chamaram para, através da minha crença, através do Candomblé, eu fazer meu ativismo negro, meu ativismo enquanto ser humano. E aí eu comecei a primeiro reivindicar o direito que os angoleiros tinham, da mesma forma que o povo do Ketu, que foi muito pesquisado, muito estudado, e graças a Deus nós não fomos... Graças, porque, se não, também muita coisa tinha sido distorcida, tinha sido estereotipada como a cultura Iorubá foi. Eu comecei a falar dos angoleiros, do Angola, não a falar em fundamentos, como muitos pesquisadores, antropólogos, etnólogos fazem, mas mostrando que a gente tinha uma visão de mundo, e também reivindicando ser sujeito dessa fala, porque a gente era objeto de pesquisa. Hoje, graças a Deus, a coisa tem mudado, mas até aquela época estudavam muito sobre a gente e achavam que a gente não tinha que falar porque era de dentro, quem tinha de falar era quem vinha de fora. Ninguém pode falar melhor de mim do que eu própria, entendeu? E aí comecei a fazer meu ativismo negro, daí veio o ativismo politico... E aí comecei essa coisa de meio-ambiente por defender o Parque São Bartolomeu, um espaço importante pra nós – não sei agora, porque tudo está mudado também. Mas comecei a lutar como ambientalista. Sou ambientalista, qualquer um que é de Candomblé tem de ser, porque a gente precisa. Ah negócio de ecologia, não sei o quê. Isso a gente já era, índio já era, negro já era. Ficam inventando um bocado de nome pra

coisa que a gente sempre fez, porque é da nossa essência. A gente precisa fazer. Qual é o índio que não é ambientalista, qual é o índio que não está ligado à ecologia? Se ele precisa, se o jeito de ele viver, de ele morar, de ele ser é mato, é natureza? Entende? Quem bota o nome são os caras da Universidade, mas, naturalmente, todo índio, todo negro é ambientalista, é ecologista, e sabe de ecologia. E sabe mesmo, mais do que, às vezes, quem inventou o nome. Porque é parte da vida da gente. Então, eu me tornei essas coisas, hoje em dia me chamam de não sei o quê, não sei o quê... historiadora, não sei o quê. Não sou coisa nenhuma. Eu sou uma professora primária aposentada. Eu me formei em 62 como professora primária. Essa é a minha formação. Fiz vestibular um dia, entrei na Universidade Federal da Bahia, e saí. E minha universidade é a vida. A vida tem me ensinado, entendeu? E... político, porque... quem é que não é? Todo ser humano tem de ser político, se ele está vivendo no mundo, se ele é consciente, ele tem de fazer política. Necessariamente, não política partidária, mas tem que fazer política. Qual é o ser humano que está articulado, que está vivendo, que está consciente, que não é político? Tem que ser, tem que fazer política. Quando eu luto contra racismo, quando eu luto por direitos humanos, quando eu luto contra a falta de respeito, a intolerância, quando eu luto por isso tudo, eu estou fazendo política. É porque eu quero viver num mundo em que eu tenha deveres, mas em que eu tenha meus direitos garantidos, enquanto ser humano, enquanto cidadão. E eu acredito que os Orixás querem isso pra gente. Porque nenhum ser humano foi posto no mundo para ser escravo, para ser oprimido, para ser submisso. Minha vocação é a vocação para a liberdade, eu tenho que ter liberdade. Liberdade de pensar, liberdade de agir, liberdade de falar. E, hoje em dia, eu fico muito triste,


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porque na década de 70, a gente, negro, tinha às vezes muito mais disposição para lutar, para falar, para dizer essas coisas do que hoje. Hoje eu vejo muita gente que diz estar livre, mas está alienado, muito negro hoje alienado. Porque pra mim a pior escravidão é a escravidão da mente. Você pode estar todo amarrado, todo cheio de grilhão, lá vendo o sol nascer quadrado, mas se você tem liberdade no seu pensar você é livre, você não é escravo. E você pode estar andando cheio de coisa, com liberdade, mas se você é escravo do que os outros pensam, isso é a pior escravidão para mim. E eu não tenho vocação pra isso, e eu não ensino essa vocação para ninguém. Eu ensino vocação para se libertar. Você tem direito de pensar, dizer o que você acha, o que você pensa, o que você quer e ser diferente do que querem que você seja, porque a gente vive numa sociedade racista, numa sociedade babaca, elitista, que não vale nada, que sempre nos sugou, sempre roubou. AC –Como que a senhora vê a relação do cinema, das imagens, com o sagrado, com as religiões de matrizes africanas? MV – Eu acho o seguinte: tem um ou outro ligado a cinema que é diferente, mas ainda fica muito aquela coisa de estereotipar, aquela coisa dos efeitos. E aí muita gente faz essa coisa de filmar Orixá e mostrar festa. Não é por aí. Eu acho que, eu sempre fui contra o que sempre fizeram com a nossa religião, de mostrar o exótico. Não ajudou em nada, porque a gente continuou por nossa própria conta. Não ajudou. Então, o que ajuda agora é ver o que aflige o povo de santo. O que atinge o povo de santo? Vai fazer cinema pra falar sobre isso. Porque nos atinge o que faziam antes: impedir que a gente faça o nosso culto, impedir que a gente tenha a nossa crença do jeito que a gente acredita. Vai fazer cinema sobre isso, fazer filme sobre isso. Por que tem sempre que botar

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Orixá, dança de Orixá? Não! Vá defender, vá falar do meio-ambiente e mostrar nossa posição, a importância disso para a gente. Vá ver a questão de como a gente vive, como é a dificuldade para a gente fazer as coisas, porque a gente precisa das coisas materiais. Qual é a coisa que a gente faz no Candomblé que não precisa de ir numa loja, não é só na feira, vai na loja, vai no mercado. A gente dá dinheiro pra todo mundo, ajuda a economia de todo mundo, não é? Precisa fazer mercado, de tudo você precisa numa casa de Candomblé. Deixa dinheiro lá para os donos de supermercado, deixa dinheiro nas lojas, deixa dinheiro na feira. A feira com um bando, um monte de safados de evangélicos que são contra a gente. Entretanto, tem uma loja lá na feira ganhando dinheiro da gente. Aí a gente é diabo, mas o dinheiro da gente não é diabo. Tem que ver isso, né? Tem que ver isso. Essas coisas têm que falar, por que não faz um filme, mostrando essas coisas? Quantos evangélicos nos atacam, dizem que a gente é demônio, satanás, diabo, mas o nosso dinheiro eles pegam, porque estão todos com loja lá na feira? A bíblia está lá aberta com o dinheiro de Candomblé. Como se explica isso? E aí? Então, tem que tirar o foco daquela coisa da magia, e mostrar essa realidade, porque isso tem a ver com a gente. Isso é Candomblé, falar disso é estar falando de Candomblé. Então, ao invés de querer a imagem, bota essas realidades, faz filme sobre essas coisas, porque eu acho que vai ajudar muito mais a gente do que o que vêm se fazendo, que é botar o Santo dançando, botar não sei o quê... não! Chega, já era isso, muito pobre. Vai falar de natureza, vai mostrar como estão derrubando árvores, como o poder público, ao invés de plantar árvores, está derrubando árvores. Fala sobre isso que nos ajuda.

Transcrição: Carla Italiano e Frederico Sabino


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Dez gritos sobre a campanha contra as religiões de matriz africana* Marcio Goldman**

8 de abril de 2015 1. A atual campanha contra as religiões de matriz africana é mais um capítulo de um racismo secular que sempre investiu contra essas religiões de todas as formas concebíveis. 2. A “novidade” da atual campanha é que ela se dá a partir de um agenciamento entre uma semiótica reacionária (os evangélicos - em geral de todas as cores) e uma semiótica moderna (os ecologistas – em geral brancos). 3. A primeira semiótica é mais honesta. Supõe que as religiões de matriz africana estão erradas porque acreditam e cultuam seres maléficos que, erroneamente, consideram benéficos. O que significa que, neste caso, a única coisa pela qual se pode lutar, é que os evangélicos assumam - ou sejam obrigados a assumir - a mesma posição das pessoas das religiões de matriz africana, que, aliás, é a da constituição brasileira: as crenças e práticas religiosas não têm nada a ver com verdades universais e todos têm o direito de adotar religiões que terceiros podem considerar equivocadas. 4. A segunda semiótica – verde e branca – é mais insidiosa, como costuma acontecer com

os “modernos”. Por trás da conversa sobre direitos dos animais subjaz, evidentemente, a “certeza” de que as práticas sacrificiais das religiões de matriz africana são “falsas”. Não no sentido reacionário de que se dirigem a seres com os quais não deveríamos ter relações, mas no sentido moderno de que se dirigem a coisa nenhuma. Seriam frutos da ilusão, não do erro. 5. A intolerância da semiótica reacionária e a tolerância da semiótica moderna são, pois, os dois lados da mesma moeda. Os reacionários, que sabem estar envolvidos em um conflito de verdades, não podem admitir práticas que consideram erradas. Os modernos admitem, tranquila e condescendentemente, práticas que consideram ilusórias. Mas isso só até o momento em que imaginam que essas práticas entrem em conflito com suas próprias verdades, que eles, claro, apresentam como universais. Nesse momento, querem acabar com tais práticas e o fazem com uma violência que poderia enrubescer qualquer reacionário. 6. O problema é que as práticas sacrificiais das religiões de matriz africana são técnicas de manutenção do equilíbrio do cosmos, o que inclui, principalmente, o equilíbrio das pessoas.

*Originalmente publicado em: <https://www.facebook.com/marcio.goldman.5/posts/1658713457689929>. **PPGAS – Museu Nacional – UFRJ/CNPq/CAPES/FAPERJ.


ensaios mostra Ebó Ejé

Por isso são quase sempre utilizadas para cuidar dos males advindos dos desequilíbrios a que a existência nos expõe. 7. É por isso também que não há e não pode haver nenhuma “crueldade” com os animais destinados ao sacrifício, uma vez que isso agravaria o desequilíbrio que se pretende combater. Todos aqueles que possuem um mínimo de informação sobre essas religiões sabem que os sacrifícios têm que ser rápidos e indolores e que se o animal demonstrar resistência ao processo deve ser poupado sob pena de desastres ontológicos e humanos. 8. Como também sabem todos aqueles que possuem um mínimo de informação sobre essas religiões, a maior parte dos animais sacrificados é preparada para refeições comunais que não apenas alimentam o espírito dos comensais (promovendo seu equilíbrio), como alimentam seus corpos e promovem uma socialidade cuja qualidade deveria ser invejada por todos. 9. Nesse sentido, o máximo que o Estado poderia exigir dessas religiões - a saber, que tratem os animais mais ou menos como os laboratórios que produzem vacinas devem fazê-lo - já é cumprido por elas como que por definição. Bem ao contrário, o modo como lidam com os animais poderia, isso sim, servir de modelo não só para nossos laboratórios como principalmente para a barbárie de nossa indústria alimentícia. 10. É compreensível que a semiótica reacionária não esteja interessada nessa indústria alimentícia. Mas quando a semiótica verde e branca moderna prefere o alvo, frágil e fácil, das religiões de matriz africana em lugar daquele, poderoso e difícil, dessa indústria alimentícia, a única conclusão a que podemos chegar é que se trata

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de preconceito e racismo. Como costuma acontecer com excessiva frequência no caso brasileiro, esse preconceito e esse racismo não se autonomeiam e funcionam sem mencionar cores e raças, sempre substituídas por pseudo-universais, como, neste caso, os louváveis ideais de respeito aos direitos dos animais e à natureza.


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Tradição, criatividade e resistência em territórios negros* Marcio Goldman**

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oa noite a todos e a todas. Eu gostaria de começar agradecendo imensamente o convite feito a mim para dar esta palestra (conferência é muito solene!) de abertura do I Encontro da Tradição Angola-Congo em Ilhéus, organizado pela Associação Beneficente e Cultural Matamba Tombenci Neto. Agradeço, em especial, a presidente de honra da Associação, Dona Ilza Rodrigues, Mameto Mukalê, grande mãe-de-santo deste terreiro. E também ao presidente e vice-presidente da Associação, Gilvan Rodrigues e Marinho Rodrigues; assim como ao presidente do Dilazenze, Ney Rodrigues. Por meio deles agradeço também a todos os membros da família Rodrigues e do Terreiro de Matamba Tombenci Neto, bem como a todos os presentes. É uma grande honra para mim estar aqui hoje. Mas, além da honra, devo confessar que também estou um pouco nervoso, mais nervoso talvez do que em todas as ocasiões em que falei em muitos lugares e mesmo em outros países. Fiquei me perguntando a razão de tanto nervosismo e a única conclusão a que consegui chegar é que hoje, aqui, há algo de diferente. Porque, em geral, os antropólogos – essa minha profissão –

fazem suas pesquisas para poder contar a outras pessoas aquilo que aprendem com pessoas que sabem mais do que eles. Meu problema aqui, hoje, é que devo falar também para as pessoas que, há mais de 20 anos, vêm me ensinando o pouco que sei não apenas sobre o candomblé, mas também sobre a consciência e a resistência negras, e que, portanto, sabem mais do que eu sobre aquilo de que devo falar. Assim, o que eu vou tentar fazer – e já vou pedindo desculpas se não conseguir fazer isso direito (e também se falar demais e chatear vocês) – é tentar levantar algumas questões a partir do que aprendi aqui ao longo desses anos, acrescentando algumas coisas que aprendi em outros lugares, coisas que aprendi lendo, claro, mas também conversando e vivendo com as pessoas (e é isso basicamente o que um antropólogo tenta fazer para ganhar a vida). Eu queria, então, abrir minha fala citando uma frase de uma outra grande mãe-de-santo, Olga do Alaketo. Ao começar uma apresentação em um encontro realizado em Salvador há 30 anos, ela dizia que não estava ali apenas para agradar as pessoas porque – ela disse – “a gente não faz nada para agradar, a gente diz uma coisa

*Palestra apresentada no I Encontro da Tradição Angola-Congo em Ilhéus, promovido pela Associação Beneficente e Cultural Matamba Tombenci Neto, Organização Gongombira de Cultura e Cidadania e Grupo Cultural Dilazenze, no dia 17/1 1/2006, no Terreiro de Matamba Tombenci Neto. **PPGAS – Museu Nacional – UFRJ/CNPq/CAPES/FAPERJ.


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para se conversar, para se estudar”. É o que vou tentar fazer. Como muitos de vocês sabem, e ao contrário de Dona Ilza, eu passei quase a minha vida inteira “alisando os bancos da faculdade”. E ainda passo. Mas tento também “aprender na escola da vida” e se ainda não “me formei na faculdade do tempo” já começo a entrar em uma turma mais avançada. Começo, então, lembrando que esses encontros (e este é o terceiro, se não me engano: os outros foram mais internos ao terreiro) foram pensados primeiro por Marinho e depois pelos outros membros do terreiro, como uma ocasião para se pensar, para se conversar e para se estudar a religião do candomblé. Mas, como muitos de vocês sabem melhor do que eu, não existe, na verdade, religião do candomblé, assim, no geral. O que existe, primeiro, são as nações do candomblé, a nação ketu, a nação jeje, a nação angola, para só falar das maiores – e sabemos que é principalmente sobre a nação angola, ou angola-congo, que estamos aqui hoje para pensar, conversar e estudar um pouco. Mas, mais do que isso ainda, como muitos de vocês também sabem melhor do que eu, não existe nem mesmo nação, assim, no geral: existem os axés, as raízes de onde provêm os diferentes terreiros. Assim, o que existe mesmo, nós sabemos, é a realidade concreta e vivida dos terreiros. Para mim, isso é uma das coisas que faz a beleza do candomblé. Porque o candomblé não é uma dessas religiões em que pessoas que o adepto não conhece, que ele nunca viu, decidem o que ele deve fazer e como ele deve fazer. Os terreiros, também sabemos, são comunidades onde as pessoas se conhecem, onde elas às vezes discutem, até brigam um pouco, mas, acima de tudo, onde elas convivem umas com as outras, onde elas aprendem a gostar e a respeitar umas às outras. Ao mesmo tempo, nós sabemos que nos terreiros de candomblé, também sabemos, existe

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e tem que existir toda uma hierarquia, que deve ser respeitada; existem as pessoas que sabem mais e as que sabem menos; as mais velhas na religião e as mais novas. Mas o interessante e o importante é que as pessoas se conhecem, e que aquelas que estão momentaneamente – porque no candomblé isso muda com o tempo – na posição de iniciantes sempre podem falar com as mais antigas, podem perguntar coisas a elas, aprender e mesmo expor suas opiniões. Ora, é justamente esse espaço comunitário que nós podemos chamar de “território negro”. Essa ideia foi proposta por uma urbanista chamada Raquel Rolnik. Ela observou que o fato de que no Brasil não existem guetos negros propriamente ditos não significa necessariamente a ausência de territórios negros específicos; e que se, por um lado, esses territórios são em geral marcados por uma certa marginalização e pela discriminação, por outro, eles também são espaços de criação, são espaços de criatividade. Assim, um território negro é um espaço ativo, ele tem sua autonomia e ele não deve ser confundido com um simples território segregado ou marginalizado. Além disso, é claro que falar em territórios negros não quer dizer que estamos imaginando que só haja pessoas negras neles, mas sim que neles impera um modo de vida e modos de convivência marcados pela experiência da negritude. Porque esses territórios são espaços vividos, são obras coletivas construídas por grupos de pessoas. Assim, quando falamos em territórios negros, não estamos contando apenas histórias de exclusão e de marginalização, mas também histórias de construção de identidades e de vidas em comum. Ora, como bem podemos imaginar, esses processos de criação de territórios devem ter existido desde o começo, desde quando pessoas arrancadas de sua terra natal pela escravização


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foram transportadas à força para um outro país, onde tiveram que se reapropriar do espaço e de suas vidas. Assim, a questão é como é possível produzir uma experiência de vida a partir de uma ameaça de morte. É como no jazz, nas palavras do pensador francês Félix Guattari: O jazz nasceu a partir de uma catástrofe, a escravização das populações negras. Depois, houve uma conjunção de ritmos, de linhas melódicas, com o imaginário religioso do cristianismo, das etnias africanas, com um novo tipo de instrumentação, com um novo tipo de socialização no próprio seio da escravidão e, em seguida, com encontros com as músicas brancas; houve, então, uma espécie de recomposição dos territórios subjetivos, nos quais não só se afirmou uma subjetividade de resistência por parte dos negros, mas que, além do mais, abriu linhas criativas para toda a música pois os maiores músicos ocidentais, foram extremamente influenciados por esse ritmo e por esta música de jazz. Temos aí, portanto, o exemplo de uma catástrofe que, numa inversão quase total, enriqueceu até os universos da música mais elaborados. Assim, os espaços que acabaram cabendo aos negros na história das cidades brasileiras foram investidos por uma criatividade que estruturou e sustentou a comunidade mesmo nas situações mais negativas – e é esse investimento que faz dos espaços, territórios existenciais. Agora sobre o candomblé: eu acredito que o candomblé foi um desses espaços que foram trabalhados, ou melhor que o candomblé foi uma das forças que ajudaram a moldar esses espaços de vida, foi uma das matrizes desses territórios negros. Como vimos, o candomblé combina o

respeito pela hierarquia com o sentimento de comunidade. E eu acredito também que essa combinação de hierarquia e comunidade tem a ver com as origens do candomblé. E sobre esse ponto eu queria fazer algumas observações. Primeiro, lembrando que quando os portugueses chegaram ao Brasil, havia aqui – ao contrário do que ainda se ensina em alguns lugares – mais de 10 milhões de índios (hoje devem ser uns 400 mil e já foram apenas 200 mil). Logo depois, houve a escravidão africana, que a seu modo foi também uma espécie de genocídio. É importante lembrar que houve reações em todos os grupos indígenas, lutando contra os colonizadores ou fugindo para regiões mais remotas. E é importante lembrar também que a escravidão indígena durou até quase 1800, mas que era difícil escravizar gente que conhecia a terra, que vivia em comunidades, que podia fugir para o interior. Donde a escravização dos africanos e a dura repressão sobre eles. De 1550 até 1850 (300 anos!) é provável que cerca de 10 milhões de africanos tenham sido embarcados à força para as Américas, na maior migração transoceânica da história da humanidade até a época (maior do que a migração dos europeus para as Américas ocorrida até o século XIX). Capturados nas mais diversas situações, os escravos africanos provinham do sul da África (de Angola, Moçambique, Congo, África do Sul) ou do noroeste africano (os atuais Guiné, Benin, Nigéria). Mas é importante lembrar que já nessas diferentes regiões africanas havia muitas relações e muitas misturas. Com a diáspora, essas relações e misturas se acentuaram porque os portugueses colocavam juntas pessoas de povos diferentes, a fim de dificultar sua comunicação e, logo, sua organização para a resistência. Além disso, era preciso se adaptar ao novo mundo. Povos que falam línguas da família bantu, do sul da África (Angola, Moçambique, Congo, África


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do Sul) foram os primeiros a serem escravizados. As religiões desses povos são as religiões dos inquices (espíritos ligados à terra natal) e dos antepassados, dos ancestrais (ligados às famílias e às linhagens). Ora, a diáspora separou os escravos de sua terra natal e os distanciou de seus territórios; a escravidão separava os filhos de suas mães e de seus pais e tornava difícil o culto dos antepassados. Além disso, os escravos bantu estavam dispersos pelas zonas rurais do país, com dificuldades para se reunirem para a celebração de sua religião. Assim, os escravos bantu tiveram que descobrir a nova terra para a qual tinham sido trazidos à força; tiveram que descobrir onde estavam os inquices e como preservar os antepassados; tiveram até que encontrar outros inquices e outros antepassados, como o caboclo, o dono da terra – marca registrada, vamos dizer assim, do candomblé angola-congo. Para isso, foram às vezes ajudados pelos índios, mas, sobretudo, tiveram que ajudar uns aos outros, cada um ensinando o que sabia de sua religião para os vizinhos que, em troca, faziam o mesmo. Porque, como vimos, muitas vezes os escravos que estavam juntos vinham de lugares diferentes, de tribos diferentes (os portugueses praticavam essa mistura para dificultar a comunicação, a aliança, a resistência). Mais tarde, já por volta de 1850, os nagô e os jeje começaram a chegar com mais intensidade (e isso por causa de guerras na África). Como eles foram concentrados nas regiões açucareiras próximas a grandes cidades como Salvador e Recife, os jeje-nagô conseguiram elaborar um modelo de culto que se mostrou muito resistente. E é por isso mesmo que eu acho que esse modelo foi adaptado pelos angola-congo, que já estavam aqui e que começavam a ser levados do campo para as cidades, para seu próprio uso. (É a isso, assim como à absorção dos caboclos

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dos índios e dos santos dos católicos que alguns chamam “milonga”). Porque é claro que o principal problema de todo os candomblés, de todas as nações, de todos os terreiros, de cada pessoa, sempre foi como resistir. Como resistir a um sistema que discrimina, que oprime e que não apenas pode aniquilar pessoas, grupos e tradições, como também – e isso pode ser ainda mais perigoso porque é mais disfarçado – pode capturar essas pessoas, esses grupos e essas tradições, fazendo com que suas religiões e suas vidas apareçam como simples curiosidade ou folclore. Porque a gente sabe que, apesar de algumas aparências, não existe, no Brasil, essa “democracia racial” de que alguns ainda insistem em falar. A gente sabe que o racismo no Brasil costuma ser meio disfarçado, sem se manifestar claramente, e que por isso ele é, às vezes, mais difícil de combater. Contra um racismo assim sutil, a resistência também tem que ser sutil e cheia de jogo de cintura. E se observarmos bem, ela é mesmo! Ela é sutil e cheia de jogo de cintura porque sabe usar criativamente a tradição! Este é o ponto! Porque a tradição não é uma simples repetição passiva, ela é, acima de tudo, uma necessidade vital, uma força de resistência. Se aceitarmos isso, acho que temos que aceitar também que para resistir também precisamos de outra coisa, precisamos de muita, de muitíssima criatividade. Se isso for verdade, podemos entender, então, a tradição e a criatividade não como duas coisas opostas, mas como dois aliados, como nossos principais aliados quando queremos, quando precisamos resistir. Porque como todo mundo sabe, ninguém resiste a partir do nada, para resistir é preciso ter armas; mas todo mundo sabe também que ninguém resiste se ficar imóvel, se não se mexer, se não inventar novas armas. A sabedoria consiste, justamente, em saber combinar, dosar e equilibrar essas


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armas, a tradição e a criatividade. Para falar a linguagem da música, que é tão importante aqui, ninguém improvisa em cima de nada, ninguém improvisa se não souber tocar bem o seu instrumento, se não souber cantar; mas ninguém sobrevive, ninguém cria, se, com aquilo que tem, com aquilo de que dispõe, não souber também improvisar. Porque resistir não é simplesmente reagir, se defender: resistir também é jogar para a frente! Assim, eu acho que dá para imaginar como essas coisas aconteceram no caso do candomblé. Como vimos, a escravização privou os africanos de muitas coisas que eles usavam em sua vida e em suas práticas religiosas. Mas é claro que a religião permanecia na cabeça e na alma das pessoas. Assim, foi preciso adaptar-se às novas condições de vida e para isso eu acho que muitas estratégias foram utilizadas. A primeira, a mais óbvia, foi acionar as alternativas já presentes nas diferentes religiões africanas, alternativas mais adaptadas às novas condições: exemplo do orixá por descendência e por divinação. Outras estratégias foram a descoberta dos equivalentes brasileiros das coisas africanas, o uso dos saberes dos índios e até a adaptação das crenças dos portugueses – o que, como sabemos, também serviu como proteção contra as perseguições. Porque o candomblé e os “costumes africanos” foram proibidos em 1905, e só em 1938 as casas de candomblé puderam voltar a realizar cerimônias públicas, mas tinham que pedir autorização à polícia. Essa licença só deixou de ser obrigatória em 1976! Ao mesmo tempo, foi justamente a partir da década de 1970 que assistimos o que o escritor Antonio Risério chamou de processo de “reafricanização” do carnaval baiano. Mas essa reafricanização não foi só do carnaval, mas de várias coisas, e até mesmo das religiões. Ora, muita gente acha que essa reafricanização não tem nada a ver, que ela é uma volta

a um passado já morto e que, por isso, ela é impossível ou inútil. Mas eu acho que nós temos que entender que “reafricanização” tem a ver mais com resistência e com criatividade do que com volta ao passado e com simples saudosismo: não se trata de repetição, de regressão, mas de reforço, de reafirmação, de resistência. A África não é simplesmente uma coisa para ser copiada: ela é um horizonte de referência (como Grécia e Roma no Renascimento europeu). Outras pessoas se acham no direito de julgar o que é mais ou menos autêntico e condenar o que seria menos. Mas, como dizia Dom Filó, do movimento black-soul do Rio da década de 1970, “por que o negro da zona norte deve aceitar que o branco da zona sul venha lhe dizer o que é autêntico e próprio ao negro brasileiro? Nós, negros brasileiros, nunca nos interessamos em fixar o que é autêntico e próprio ao branco brasileiro” (história de Charlie Parker e a gravação com orquestra de cordas). É que o prefixo “re” (de reafricanização) não quer dizer só “movimento para trás”, “repetição”, “restauração” “retorno”… Quer dizer também “intensificar”, “recomeçar”, “reavivar”, “refrescar”, “reforçar”, “reunir”, “recusar” e, sobretudo, “resistir”. Enfim, para ir terminando e não chatear mais vocês, eu queria dizer que evitei, a muito custo, a tentação de transformar esta apresentação em uma espécie de sessão nostalgia, onde eu ficaria apenas recordando coisas que aconteceram ao longo dos mais de 25 anos que conheço o Tombenci. Mas agora, no fim, vou me dar esse prazer, lembrando que eu e Tânia fomos trazidos aqui pela primeira vez, nos idos de 1983, pelo grande Mário Gusmão, a quem aproveito para prestar minhas homenagens. Porque era Mário quem dizia, já na época da criação do Ilê Aiyê, que a reafricanização “nada têm de nostalgia das florestas africanas”, e que “uma postura racista é


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querer nos imobilizar no que dizem ser as formas puras de nossa cultura”. Assim, o que eu queria dizer é que aquilo que muitas vezes se condena como “nostalgia” pode ser resistência, e o que muitas vezes se condena como “modernização” pode ser criatividade. A grande força do candomblé e a grande força das maiores casas de candomblé – e nós estamos em uma – sempre foi saber dosar a tradição e a criatividade, usando-as como armas de resistência. Muito obrigado.

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Orí (1989)*

Abá (1992)*

Beatriz Nascimento**

Raquel Gerber

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rí é um filme que participou da vida e da organização do movimento negro da década de 70. É fruto do encontro de duas pesquisas: cinematográfica (Raquel Gerber) e histórica (Beatriz Nascimento). Iniciando em 1977, centralizado em São Paulo, documenta outros estados e alguns países africanos, fixando variadas manifestações da afroamericanidade que brotaram naquele período. Mas Ôrí também é um épico, que ao revelar o herói civilizador Zumbi, organizador do Quilombo dos Palmares e sua democracia, reentroniza-o no presente como organizador da consciência negra e por isso vale-se do texto poético. Como tal, passeia por múltiplas formas de rituais iniciáticos: os encontros universitários, congressos nacionais e internacionais, as Escolas de Samba, as religiões afro-brasileiras, as sessões de soul music, trazendo os anseios e os ritmos negros como continuadores da História dos povos africanos da Diáspora. Não é por menos que Ôrí, que em Iorubá significa “cabeça”, ao realçar o papel dos bantus na sociedade brasileira ao mesmo tempo projeta a contribuição cosmogônica nagô dos orixás. Por fragmentos que correspondem a processos iniciáticos, se quer um filme reflexivo sobre as atuais condições do planeta: as relações do homem com o outro e consigo mesmo, com a nação e a natureza.

omo todos os povos mais antigos do mundo, os africanos trouxeram para o Brasil o conhecimento da energia vital. Na religião do “Candomblé” os movimentos exprimem conexões com forças naturais como a água, o fogo, a terra, o vento. É, portanto, uma união da essência, da energia e do espírito, três grandes suportes da vida. Se nisso há um mistério, é preciso tocá-lo, desvelá-lo, e conhecer os efeitos da comunicação do Universo com o homem. O homem é um microcosmo que se integra com o céu. O céu tem três tesouros – o sol, a lua e as estrelas, que não envelhecem. O homem tem condições de integração com a energia cósmica. O transe místico no “Candomblé” significa ausência de qualquer preocupação externa. O êxtase místico é uma mediatização com as energias que curam. A África nos traz caminhos para o estudo da ciência da vida e da natureza da alma humana. Abá significa esperança de paz espiritual. Significa também encontro. A crença na “luz” e a chegada ao estado da contemplação.

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*Texto originalmente publicado como release de divulgação para o lançamento de Orí (1989), dirigido por Raquel Gerber. **Beatriz Nascimento (1942-1995) foi historiadora, professora, roteirista, poeta e ativista.

*Texto originalmente publicado como release de divulgação para o lançamento de Abá (1992), dirigido por Raquel Gerber.


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Porque “Ylê Xoroquê”?* Raquel Gerber

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lê Xoroquê é uma proposta de vivência e rompimento com os clichês impostos à experiência existencial do homem na nossa sociedade. Nossa história pode ser resumida pela destruição gradativa da identidade e da natureza – hoje ameaçada pelo homem. O desconhecimento do caudal e valores da cultura negra como fator presente e atuante e não somente como raiz, reforça nossa fragmentação e nos distancia de nós mesmos. Aqui vivemos o confronto de várias civilizações. O filme propõe viver, sentir e pensar as relações entre a pessoa e a cultura e as determinantes culturais da formação da personalidade e identidade da criança numa família tradicional negra. Por outro lado, na concepção de mundo africano o homem tem relações profundas com as forças da natureza que são simbolizadas pelos próprios “Orixás” (deuses) cuja morada original são as matas. E isto indica uma relação mais densa com o mundo instintual que a civilização ocidental perde a cada momento. No caso do homem negro, o filme aborda um fato cultural que é: a confirmação da identidade da pessoa com seu “Orixá” (seu deus que é igual a ela mesma) através da “iniciação”, onde se confirmam ligações com o mundo dos mitos e de seus ancestrais, através do candomblé – a religião dos “Orixás”. Mas Ylê Xoroquê não é somente um discurso sobre o candomblé como

religião, mas como uma das formas da existência e resistência negra no Brasil em busca de seu sentido de humanidade. As filmagens foram realizadas durante 1980/ 1981 em um terreiro de origem Bantu, da nação Angola Muchicongo, onde se preservam algumas das tradições mais antigas de Angola em plena cidade de São Paulo – maior núcleo urbano-industrial do país, e alta expressão do desenvolvimento da civilização ocidental na América. Mas as línguas faladas no filme Ylê Xoroquê, que não conhecemos, traduzem outro processo civilizatório, e a comunhão de Angola com os fundamentos das nações Keto e Gege. Perguntaríamos se o Candomblé no Brasil supera as diferenças entre diversas etnias. Como está o homem negro na sociedade brasileira de hoje? Dentro de outra concepção do mundo, na civilização africana, no filme Ylê Xoroquê é preciso deixar-se envolver por imagens, sons, cores, corporalidade, ritmo, panos, outro espaço, outro tempo, da cor branco total – energia total de Oxalá ao negro total que é matéria pura, para encontrar-se com Ogum Xoroquê, Orixá guerreiro, defensor, Xangô, símbolo de realeza e justiça, Ossanha, rei das matas e Oxum das águas doces, cujo significado é a própria maternidade realizando-se - A Criação e o Nascimento.

São Paulo – Brasil, 05 de Novembro de 1981

*Texto originalmente publicado como release de divulgação para o lançamento de Ylê Xoroquê (1981), dirigido por Raquel Gerber.


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Brasil – o continente indecifrável de terras ocultas* José Sette**

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onheci o escritor, etnógrafo e antropólogo, Nunes Pereira, em 1975, logo após terminar as filmagens do meu primeiro filme “Bandalheira Infernal”. Fui até a sua casa que ficava no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Ele estava com 83 anos (nasceu em 1892). Cheguei até ele durante uma pesquisa que eu fazia sobre os índios Maués. Fiquei amigo fraternal deste sábio mestiço, nestes seus últimos dez anos de vida. Ele frequentava a minha casa no Alto da Boa Vista e eu a sua. Conversávamos sempre sobre o Brasil e sua gente. O índio, o negro e o branco: “as três raças tristes”, como ele gostava de dizer. Nunes Pereira tinha uma cultura geral extraordinária e via nele o intelectual experimentado que eu estava precisando para escrever um roteiro sobre o Brasil profundo que ele gostava de chamar de “do continente indecifrável de terras ocultas”. Seria um filme sobre as origens do homem brasileiro. Ele adorava essa ideia, principalmente pelo tempero mágico que eu insistia em colocar nesta sopa antropológica. Com uma didática irrepreensível, ele me falava, lembro-me bem, com muita intimidade, do francês Roger Bastide e do Claude Lévi-Strauss, enquanto me passava, com graça e traquejo, os

seus vastos conhecimentos sobre nossa terra. Nunes possuía, na sua lúdica memória, as mais fantásticas histórias sobre seu amigo o alemão Curt Nimuendajú, naturalista que todos ecologistas de hoje em dia deveriam conhecer. Tinha um humor sarcástico e contava-me, as gargalhadas, quando o confundiam com o músico Nelson Cavaquinho (eram realmente muito parecidos). Tudo que ele sabia e me interessava vinha sempre em doses homeopáticas, como se ele quisesse com isso prolongar os nossos encontros. Um dia, depois de me ter presenteado os dois volumes, com uma bela dedicatória, o seu livro “Moronguetá - Um Decameron Indígena”, conjunto monumental de lendas indígenas, prefaciado pelo grande poeta Thiago de Mello, de repente, com grande alegria, retirou um livro que estava escondido na sua vasta biblioteca com o título de “A Casa das Minas” e me disse: “Leia, Sette, aqui está o começo da história oculta do Brasil! Aqui eu nasci, aqui eu cresci, vamos começar por aqui”. Li o livro e, em 1976, rodamos a primeira parte do filme, guiado pelo velho morubixaba, em um Terreiro Mina Jeje de Dona Zuleide Amorim, no Rio de Janeiro. Só quando fomos exibir o filme na posse de Nunes Pereira na Academia

*Texto publicado como release de divulgação para o relançamento do filme Nunes Pereira – A Casa das Minas (1978), dirigido por José Sette. **José Sette é cineasta, roteirista, montador, diretor de fotografia e produtor cinematográfico nascido na cidade de Ponte Nova (MG) em 1948.


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Maranhense de Letras, é que rodamos a segunda parte, agora na Casa das Minas da Rua São Pantaleão em São Luís. De volta ao Rio terminamos a edição do documentário em duas partes e fizemos uma primeira e única exibição em 1978 no MAM (Museu de Arte Moderna) do Rio com a presença de Nunes Pereira, Dona Zuleide e de toda equipe do filme, e foi quando seu ilustre amigo o mineiro José Aparecido de Oliveira fez, com sua brilhante oratória, um belo discurso de apresentação e de defesa do grande antropólogo maranhense. Em 1985, pouco tempo após ele ser homenageado na produção do meu filme sobre o poeta modernista francês Blaise Cendrars “Um Filme 100% Brazileiro”, ele veio a falecer. Tendo passado mais de meio século de sua vida nonagenária trabalhando, viajando e escrevendo as lendas que ouvia dos índios, com os quais conviveu grande parte de sua vida, quando eu o conheci ainda movimentava, com nobreza e inteligência, suas atividades de pesquisador etnológico, viajando nas matas amazônicas, no Estado do Maranhão e por todo Brasil. Em sua longa vida aproximou-se e cultivou a amizade dos grandes vultos da ciência e da literatura em nosso país e no exterior. Nunes Pereira, amigo de grandes poetas e de artistas que quando o viam, com sua cabeleira branca cobrindo a máscara do velho morubixaba, se perguntavam: por que ele teria saído de seus habituais cuidados para com o homem tribal amazônico e com a ecologia da hileia para tratar dos remanescentes culturais dos Daomeanos na Atenas Brasileira? A resposta vinha da alma de menino ainda, memória de muito antes de ser o grande etnógrafo indianista em que se transformou. – “É que fui entregue por minha mãe, D. Felicidade, à proteção do Vodum Badé, com suas contas azuis, na casa matriarcal das Minas, e, acolá, durante muito tempo, verifiquei a ritualística Jêje, motivo da minha obra, a primeira

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a realmente tratar dos resquícios da cultura de africanos naquela parte do Brasil”. O tempo passa, já faz muitos anos que tudo isso aconteceu. Sinto-me hoje no dever de reviver a figura deste maranhense notável que foi o meu amigo Nunes Pereira, restaurando e reeditando os dois filmes sobre o livro “A Casa das Minas” que é uma inestimável contribuição ao estudo das sobrevivências do culto dos vodus, do panteão Daomeano, no estado do Maranhão. (Editora Petrópolis, Vozes, 1979). Assim, revivendo essas histórias de gratas lembranças e de profunda amizade, foi que ressurgiu o filme “Nunes Pereira – A Casa das Minas” que terminei hoje a sua segunda e definitiva reedição. Por sua importância cultural espero poder exibi-lo, o mais breve possível, em todo território nacional. Assim, conto com o apoio dos amigos, dos produtores, distribuidores e exibidores, para que possamos juntos homenagear e dignificar a memória desse grande brasileiro.


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Cinema e descolonização* Ismail Xavier**

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a abertura do Seminário, dia 12 [de Janeiro de 1981], a convite do SECNEB, Jean-Claude Bernardet fez uma apresentação inicial de algumas questões a serem debatidas durante os encontros. Basicamente, trabalhou a distinção entre “discurso sobre” – entendido como um discurso que, de fora, alguém faz sobre uma determinada comunidade ou grupo social – e “discurso de” – entendido como uma fala que emana do próprio grupo focalizado e, portanto, expressa sua forma de encarar a própria experiência, sua visão de si mesmo e dos outros. Diante da tendência dominante de se ver no Brasil um discurso sobre as classes dominadas e “minorias” elaborado por alguém que, não pertencendo ou não estabelecendo um diálogo profundo com o grupo tomado como tema, fala em seu nome e apresenta a seu modo as questões que julga essenciais, considerou benvinda a recente evolução de trabalhos que procuram caminhar em sentido contrário. Se diferentes grupos de cineastas e pesquisadores, em especial os que têm discutido a questão do negro no Brasil, manifestam hoje esta necessidade, que envolve método e ideologia, de se mover

dentro de um espaço onde se toma possível e indispensável o discurso das comunidades, e não apenas o discurso sobre elas, os trabalhos do SECNEB e o próprio seminário ofereciam a oportunidade de discutir esse problema central. Nesta apresentação, Jean-Claude definiu bem a preocupação dos organizadores do encontro e antecipou o elemento básico que se mostrou subjacente às diferentes discussões que envolveram os participantes ao longo dos três dias. Seja frente às dificuldades específicas encontradas pelo SECNEB no seu trabalho cinematográfico, seja frente à presença do negro em determinados filmes brasileiros, um dos pólos fundamentais do debate foi a diferença de entendimento havida quanto à presença ou não de uma ideologia de “recalcamento da cultura negra” no profissional de cinema ou nos filmes. Na primeira sessão do seminário, Marco Aurélio Luz fez uma recapitulação histórica das diferentes formas pelas quais a cultura produzida pelo branco construiu uma imagem do negro que, passo a passo, se mostrou correlata aos interesses da dominação que marca a trajetória do negro no Brasil desde a implantação do sistema

*Ismail Xavier é teórico brasileiro e professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. **Texto originalmente publicado na revista Filme Cultura, n. 40, ano XV, ago/out 1982, p. 23-28. Nota da edição original: Este texto foi escrito a partir de uma transcrição de fitas pessimamente gravadas durante o seminário promovido pela SECNEB (Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil) em janeiro de 1981. A competência da transcrição não impediu a existência de muitas lacunas e boa parte do que pude dizer resulta da combinação entre o registro e minha memória dos debates e comunicações. Muitas pessoas que participaram do evento talvez estranhem a não referência determinadas intervenções. Em algum casos, isto resulta do dado técnico, em outros, é responsabilidade minha como narrador do acontecido.


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colonial até hoje. Ora criando fantasias para tornar legítima a escravidão, ora elaborando uma teoria científica para justificar a subalternização do negro como “cidadão da república”, o discurso dominante cumpre uma função ideológica fundamental no esquema da dominação, alimentando a permanência de uma mentalidade colonial que se infiltra em diferentes tipos de produção cultural e artística, aparecendo às vezes onde menos se espera. Se a fala de Marco Aurélio deu ênfase à crítica ao racismo positivista de Nina Rodrigues e à desvalorização nuançada do negro no luso-tropicalismo de Gilberto Freyre, seu objetivo maior foi evocar certos aspectos marcantes da história do cinema no Brasil para salientar como nesse cinema se manifestou e ainda se manifesta a “ideologia de recalcamento da cultura negra”. Se a referência à chanchada e a momentos anteriores deste cinema não causou polêmica, a inscrição do Cinema Novo no universo de linguagem que, frente à questão do negro, ainda não se libertou da herança colonial e seus estereótipos, abriu espaço para discordâncias que se estenderam por todo seminário. O ponto de tensão não foi tanto a formulação de um diagnóstico geral da produção dos anos sessenta e sua inclinação populista, lugar de exacerbação do “discurso sobre” o povo, lugar de uma pedagogia de “desalienação” que já trazia pronto o esquema geral da história e queria definir a priori, em nome do povo, qual era o perfil exato de uma consciência lúcida, transformadora. Havia convergência neste ponto. A discussão se instalou no momento de apontar filmes brasileiros determinados como portadores dos antigos estereótipos do negro afinados à mentalidade colonialista. No primeiro dia, Deus e o diabo na terra do sol (1964) de Glauber Rocha, concentrou as polêmicas, dada a presença do ator Lídio Silva no papel de Sebastião, o líder messiânico. Marco Aurélio viu na presença do ator negro um sintoma

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dos preconceitos que estava apontando, uma vez que este desempenha um papel que, segundo a sua análise, é de um homem degenerado pelo fanatismo. Na discussão que envolveu Juana Elbein, José Carlos Avellar e eu como figuras empenhadas, a tendência nossa (dos críticos de cinema) foi solicitar uma análise mais ampla do filme e suas relações internas, seu estilo, para melhor situar a questão – eu insisti no fato que Sebastião não é personagem que representa a cultura negra dentro do filme, mas líder de um movimento religioso camponês inscrito na esfera do cristianismo, e seus atos devem ser analisados como representação que o filme dá a esse movimento, não da origem cultural e étnica do ator. Juana Elbein levantou uma questão que permite extrair do nosso debate um tema mais amplo de reflexão: um detalhe de uma obra, independentemente de suas relações com o conjunto, pode deflagrar certas reações e revelar certas noções recalcadas que têm forte incidência no nível das emoções de quem faz ou de quem assiste a um filme. A observação dela me fez lembrar uma conversa com Jean-Claude onde o assunto era outro, mas curiosamente tínhamos chegado à mesma questão: ele me perguntou até que ponto o tipo de análise a que estamos habituados não tem o efeito de recalcar elementos que, estando à margem ou no detalhe sem presença essencial nas relações do conjunto, tem bastante relevância na recepção, tem impacto forte no espectador. Na verdade, apesar de partirmos do princípio de que o essencial é saber respeitar a coerência interna da obra – e para isso é necessária a análise – é inegável que uma leitura de sintomas isolados traz também sua contribuição. Deixo aqui esta sugestão para debates metodológicos. Quanto a Deus e o diabo, nossa tônica no seminário foi a convivência na discordância, tremendamente salutar. No terceiro dia, quando fiz a “defesa” de Deus e o diabo através de uma leitura cerrada do


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filme, suas contradições internas e a lógica das suas profecias, tive a convicção de que todos saímos ganhando daquela reiterada confrontação de perspectivas de análise. Marco Aurélio deu outros exemplos de estereótipos encontrados em filmes como Bye Bye Brasil (1979, de Carlos Diegues), e Tenda dos Milagres (1977, de Nelson Pereira dos Santos), ficando a polêmica em torno de Xica da Silva (1976, de Carlos Diegues) reservada para o segundo dia. E a consideração mais detalhada do “caso Barravento” para o terceiro. Outros aspectos da comunicação de Marco Aurélio Luz deram ensejo à concentração da conversa em tomo dos problemas encontrados pelo SECNEB em sua própria atividade cinematográfica. Um primeiro deles surgiu de sua crítica aos cientistas do início do século, que encararam a arte africana como manifestação de uma incapacidade congênita da cultura negra em chegar a uma representação “correta” da realidade exterior. Para eles, as “distorções” da arte africana seriam expressão de uma mentalidade “primitiva e doente”. Esta interpretação já largamente contestada pelo próprio desenvolvimento da arte na Europa e nas Américas neste século, ao ser evocada no seminário como exemplo de etnocentrismo já superado pela pesquisa antropológica, mas não ausente da sociedade, forneceu a ponte para considerações sobre a tensão entre a linguagem do cinema dominante e a cultura africana. Jean-Claude observou que se poderia perguntar à SECNEB o porquê do seu empenho justamente na esfera do cinema. De um lado, frente a alternativas que dariam maior ênfase à forma de expressão já inseridas nos códigos da cultura africana, sem as tensões com um meio de expressão fortemente marcado pela representação naturalista em sua versão mais industrializada. De outro, frente à experiência de cineastas como Andrea

Tonacci que já demonstrou o quanto a ruptura com o “discurso sobre” e o diálogo mais profundo com comunidades específicas, se dá com muito maior eficiência a partir do uso do videotape e não do cinema. O trabalho de Tonacci com os índios evoluiu nesta direção, do cinema ao vídeo e a tendência da pesquisa antropológica e de comportamento é a utilização do vídeo, mais ágil no registro e imediato na reprodução (Jean-Claude salientou bastante a lentidão própria à tecnologia do cinema). As considerações de Juana Elbein em resposta a Jean-Claude começaram com a descrição do setor de documentação do SECNEB, voltado para a construção da memória da comunidade a partir da gravação da fala dos que conservam a “memória oral” do passado – o uso do vídeo está previsto quando houver recursos. Em seguida, reconhecendo que houve uma postura tática da divulgação do SECNEB na escolha do cinema como veículo, Juana lembrou os obstáculos, não só de ordem econômica enfrentados pelo grupo: no seu contato com os meios eletrônicos de comunicação e com a chamada grande imprensa, a SECNEB enfrentou distorções e caricaturas muito próprias aos mecanismos gerais da indústria de transformação, cujo efeito básico é mascarar exatamente aquilo que para a Sociedade é questão nuclear; na realização de filmes, há que se enfrentar as dificuldades criadas pelo “contexto ideológico em que está envolvida a linguagem cinematográfica”. No primeiro dia, Juana equacionou rapidamente algo que desenvolveu em sua faia ao final do seminário: há duas ordens de questões. A primeira é o arsenal de códigos culturais (tomados como verdades técnicas) que o profissional de cinema traz consigo – é, no momento, impossível contar apenas com os membros das comunidades negras para realização de filmes e o trabalho envolve profissionais com


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distintas experiências. A segunda é a pesquisa de linguagem necessária para operar o que Juana denominou “reformulação simbólica” ou também “recodificação simbólica”, processo de encontrar os procedimentos especificamente cinematográficos capazes de traduzir o sistema simbólico da comunidade, capazes de fazer do cinema um lugar onde a comunidade vê expressos os seus valores e sua “visão do mundo” e vê retrabalhada a sua tradição e identidade em novos termos, de modo a contribuir para que ela se processe dinamicamente no presente e não apenas celebre uma memória congelada, estática e separada da experiência atual. Juana sublinhou: “é nosso firme propósito que a comunidade se instrumente. Depois, se ela vai querer fazer cinema ou não, é problema da comunidade”. Por ora, é necessário o diálogo com os profissionais e, se há sempre nas propostas de cinema independente a possibilidade de uma tensão entre a experiência do técnico e a linguagem buscada pelo cineasta, no caso do SECNEB esta tensão se alia a outra mais ampla que envolve a familiarização do profissional com a comunidade, a superação do estranhamento mútuo, a necessidade de uma inserção pessoal mais decisiva de quem faz o filme no universo da comunidade, implicando um processo de entrega a que nem todo o mundo está disposto ou em condições de assumir. Na hora da filmagem, há detalhes de comportamento e compreensão que são decisivos e tudo complica porque certos estranhamentos são inconscientes. No que diz respeito à questão da linguagem frente ao contexto ideológico onde se insere a produção cinematográfica, José Carlos Avellar lembrou a necessidade de se evitar um certo “achatamento”, que tenderia a opor o cinema de pesquisadores da cultura negra – espaço privilegiado da descolonização – ao restante do cinema brasileiro tomado como um bloco – lugar

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da sobrevivência de heranças coloniais neste particular. O cinema dominante, aquele que está aí no mercado e cujos códigos e “magia” estão já assimilados pelo brasileiro que vai ao cinema e assiste à TV, é o cinema americano industrial e seus similares. Observou que o cinema brasileiro, notadamente a partir do Cinema Novo, não pode ser visto como um bloco; há experiências diversificadas e as propostas alternativas são muitas, todas elas procurando combater o efeito colonizador do esquema dominante. Efeito colonizador que atinge indistintamente diferentes camadas da sociedade brasileira e exige, no momento, uma análise mais detida para que se possa discutir melhor onde e como se manifestam nos filmes os “condicionamentos colonizadores”. Avellar retomou os termos da discussão sobre filmes específicos e apontou o quanto as próprias diferenças de posicionamento presentes ao seminário estavam ligadas ao fato de que não estava claro o percurso de leitura que permitia diagnosticar a existência de preconceitos em certos filmes brasileiros, que estariam sendo lidos com os instrumentos equivocados (ou com os olhos de quem está marcado pela experiência diante do cinema americano). Novamente retomou a questão das fronteiras do termo “colonização” e, em decorrência, descolonização. Diante de solicitações em nome de nuances e complexidades (dos quais fui também porta-voz em alguns momentos), Juana foi bem clara, sintetizando a questão decisiva para a SECNEB: “nosso universo de trabalho é a cultura negra e o negro; esse universo representa um segmento da população que, do nosso ponto de vista, tem de ser completamente revisto a nível do cinema nacional; haverá outros que colocarão o mesmo para o segmento do índio, para a mulher, para o homossexual, todas essas tipicidades que a representação cinematográfica focaliza traduzindo uma posição ideológica e uma


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intervenção no contexto histórico dado. Então a leitura que a gente está tratando de fazer é uma leitura ideológica e política deste ponto de vista específico”. No segundo dia, a conversa em torno de Xica da Silva refletiu as diferenças de acento, a maior ou menor sensibilidade dos debatedores ao apelo por uma revisão total, expresso nas palavras de Juana. Beatriz Nascimento deu início à conversa fazendo um histórico da polêmica que a envolveu após o seu artigo A senzala vista da casa-grande, publicado no jornal Opinião, quando do lançamento do filme de Carlos Diegues. Para ela, o cineasta foi infeliz ao se comprometer com um esquema onde o negro se transforma em produto vendável num filme que acaba reproduzindo uma ideologia racista, uma visão estereotipada da mulher negra. Observou que, nos últimos anos se criou um “novo mercado do negro”, havendo uma multiplicação de financiamentos a “produção sobre” o negro, tanto nas artes quanto na área acadêmica. Isto acontece exatamente quando se organizam instituições que visam afirmar a “produção do” negro, a cultura afro-brasileira no conjunto da cultura nacional. Xica da Silva foi “um desmentido aos nossos projetos de formação cultural”. E foi vivido como experiência traumática por alguns setores. “Vejam bem que Xica da Silva surge num momento em que toda uma faixa etária de jovens negros se preocupa em protestar contra a discriminação racial através do som e das danças do Black Soul nas grandes cidades do Brasil. Sua nova identidade é a dos Muhammad Ali, dos James Brown, dos Malcom X e de outros líderes que lutaram para pôr fim à crise racial americana. Vivenciamos como essa produção cinematográfica que surge a partir de Xica da Silva atua como um banho de água fria numa população potencialmente produtiva; enquanto esses jovens e não jovens buscam sua identidade racial positiva, é feita uma obra de

arte que volta a figurar uma escrava que aceita a aliança com o poder colonial pensando somente na ascensão de classe, ou seja, figura a individualização daquele que “conhece o lugar”, daquele que “suja na entrada ou na saída”. A discussão foi longa. Ressaltarei apenas alguns pontos que permitem colocar questões mais gerais. Houve por exemplo o mesmo tipo de polarização havida frente a Deus e o diabo, desta vez mobilizando mais Avellar e Juana. De um lado, a análise detalhada do filme e suas relações internas era vista como sustentação para a defesa: o filme traria dentro de si todas as críticas endereçadas à personagem Xica da Silva. Ele não seria a exaltação dela, mas a sua crítica. De outro, a referência às fantasias do branco face à mulher negra eram caracterizadas por Juana como ofensa à forma do feminino na cultura negra; a mulher-objeto que encarna uma disponibilidade sem lei para o erótico é uma projeção do branco, que anula os valores básicos relacionados com a mulher na comunidade negra onde o corpo é um elemento ritualístico, uma “partícula dos poderes universais; para a pessoa que tem um orixá, é uma partícula desse orixá ... O que dá tanta força, digamos, à cultura africana é que cada ser humano é uma partícula profundamente ligada a conceitos e poderes, forças universais”. Jean-Claude lembrou que o tratamento dado por Juana ao filme de Carlos Diegues era igual ao que usualmente se aplica à pornochanchada. E entre Xica da Silva e a pornochanchada que focaliza a mulata como objeto sexual há uma grande diferença. O filme de Diegues se propõe como liberador, como inversão de valores frente aos preconceitos contidos no chavão: consciente do cliché, se põe como paródia. Numa sugestão paralela à de Avellar, Jean-Claude afirma que a análise ideológica do filme passa por mediações que a tomam mais complexa.


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A intervenção de Muniz Sodré retomou a questão em outro nível de modo a englobar os vários aspectos levantados: a intenção de liberar está, no filme, comprometida com uma ideia falsa de subversão, de mudança. A simples inversão de uma estrutura dada – no caso, uma estrutura de preconceitos e discriminações – não altera em nada o código, não existe uma mudança efetiva. É uma alternativa a partir do mesmo lance cultural que sustenta a ordem, é uma inversão de sinal que aceita os termos da equação. Nestes termos, Carlos Diegues representa uma determinada consciência possível do intelectual progressista que, dando continuidade a uma visão carnavalista da História e do país inaugurada por Oswald de Andrade e a Antropofagia, é capaz de celebrar rituais “de inversão”, abalos temporários da ordem que se renova, mas não consegue ver acertadamente a posição da cultura do negro. Os próprios instrumentos da sua crítica à sociedade o impedem de perceber a sua própria “boa consciência paternalista”. “Eu acho que a coisa teria de ser encaminhada mais para uma revisão dos padrões teóricos que informam a possibilidade de pensar que os intelectuais de esquerda transam. Um grande ‘grilo’ seu é não poder ver o imediatamente político na cultura negra, ou nos fatos negros, ou nos fatos indígenas, ou em qualquer fato. Ele não vê o político se traduzir imediatamente a partir das possibilidades que tem de entender o que é política”. Essas observações, quanto às limitações fundamentais desta subversão pela inversão que mantém os dados do problema dentro das regras do jogo, foram retomadas por Jean-Claude. Este concluiu que, nestes termos, o problema de Xica da Silva estaria no fato de que a intenção de liberar se fez dentro do quadro de referências do intelectual que tende a projetar em suas personagens questões que pertencem ao seu próprio universo.

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“Nem todos os brasileiros tem olhos iguais”. Esta frase de Avellar gerou considerações as mais diversas, começando por sua própria observação de que “é um pouco utópico a gente admitir que a responsabilidade do realizador com o filme possa ser medida de imediato por uma reação particular de um grupo de pessoas que veem aquele filme”. Se, de um lado, esta formulação chamou a atenção para a diversidade de experiências gerada pela obra, a discussão sobre o espectador brasileiro levou à caracterização do mercado exibidor e os condicionamentos de natureza colonizadora por ele criados. Condicionamentos que embaralham a relação do público brasileiro com o cinema brasileiro. Posta a questão do mercado, colocou-se a tese de que Xica da Silva traz em sua própria textura de imagem e som a marca das soluções de compromisso, onde se procura reconciliar a postura crítica e os parâmetros do espetáculo vigente e, assume-se o risco de ver entrar pela porta dos fundos os estereótipos e as discriminações expulsos pela frente. Na busca do diálogo com o público, há o envolvimento inevitável numa batalha que tem várias frentes de luta. Se o seminário discutiu mais as questões de ideologia e linguagem, não foi esquecido que, usando a fórmula de Marco Aurélio Luz, “cinema e descolonização” é também descolonizar o mercado, que não foi construído por nós. No terceiro dia, a primeira parte do seminário foi dedicada à minha leitura de Deus e o diabo – capítulo de trabalho que estava em andamento na ocasião (janeiro de 1981). Sintetizando os problemas do “cinema de autor” e as exigências da militância pedagógica de efeitos conscientizadores imediatos, o filme de Glauber nos dá um rico exemplo de como a obra de arte não é um duplo da ideologia, não reflete apenas intenções, mas é síntese do processo de produção, com todos os problemas. Uma


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vez pronta, apresenta tensões entre a busca de uma determinada coerência e as múltiplas contradições internas que cabe à análise elucidar. No caso de Deus e o diabo, para resumir aqui, procurei caracterizar os movimentos internos de um filme que oscila entre a visão “de fora” da experiência do camponês, submetendo-a à crítica de quem possui uma formação erudita, e a visão “de dentro” desta mesma experiência, uma vez que a recapitulação de um trajeto histórico procura se afinar aos parâmetros da tradição oral do sertão, a qual expressa uma determinada forma de consciência. No filme, a tensão entre o “expressar uma consciência” e “explicá-la de fora” está presente o tempo todo. Há dois movimentos que marcam a convivência de perspectivas, uma apoiada na outra. Há um certo diálogo dentro do filme, diálogo num sentido bem determinado. Ou seja, não é que existam diferentes perspectivas simultaneamente – o fundamental é que elas afirmam, perante a mesma questão, coisas opostas. De um lado, temos a crítica à alienação religiosa própria à pedagogia da época; de outro, é o próprio sistema simbólico submetido à crítica que acaba por organizar o andamento de tudo dentro do filme. A lógica de sua profecia – “o sertão vai virá mar” – não está apoiada exclusivamente em metáforas que apontam para o modelo da luta de classes: a profecia se constrói enquanto termo final de uma teologia que tem fundo metafísico, que se sustenta nos estratagemas do destino apontados pelo cego cantador e por Antônio das Mortes. Discutida esta questão da “lógica da profecia” – o “plano da história” que traz a certeza do sertão virar mar –, voltamos ao detalhe de Lídio Silva, ator negro, e enveredamos por considerações sobre o impacto da cena do sacrifício da criança em um público marcado por um contexto ideológico de barbarização do negro. Juana procurou outros exemplos para explicitar

melhor sua leitura dos sintomas do recalque da cultura negra em alguns detalhes ou cenas de filmes. Lembrou cenas de Iaô, documentário de Geraldo Sarno – as imagens da camarinha escolhidas pelo cineasta não seriam casuais: “a vida de uma noviça 24 horas na camarinha tem muitos momentos; tem momentos de lucidez, de semiconsciência, etc.... o filme recorta as 24 horas e a imagem que escolhe transmitir para a plateia é de uma Iaô ‘babada’, com a câmera chegando bem perto...”. Apesar da indubitável boa-fé de Geraldo Sarno, “há uma distância entre a intenção consciente de quem realiza e a introjeção de toda uma história de cinco séculos de colonialismo que afeta a percepção. Eu tenho o maior respeito por Geraldo, sinto que não quis mostrar que a Iaô é isto, mas é o que passa para a plateia”. A questão de filmar ou não dentro da camarinha – “quando o cinema entra na camarinha, ele já está violentando o grupo porque é contra todas as normas” (Juana) – nos levou de Iaô a Barravento, pois o filme de Glauber Rocha traz também este dado de violentação ao que foi explicado como inerente à própria condição do espaço sagrado. “Quando eu saí do filme eu falei que não precisava filmar na camarinha, que não podia filmar na camarinha; isto era um ponto sensacionalista. Barravento tem camarinha filmada, mas com os meninos, com os garotos de cabeça raspada como se fossem garotas” (Luiz Paulino). Luiz Paulino dos Santos, autor do projeto original de Barravento, prestou o seu depoimento, colocando a sua experiência na história deste filme controverso que, como todos sabemos inclusive a partir do que o próprio Glauber já declarou, foi assumido por este a meio-caminho quando já em fase de filmagem. No primeiro dia do seminário, Paulino já havia antecipado alguns dados, falando de sua origem – “eu tenho um avô preto... e o que me levou mais à temática foi uma questão de


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amor mesmo e reconhecimento, apesar de que eu tenho também uma questão índia em mim; um massacre de índios que eu vi quando era menino me traumatizou a tal ponto que eu fugi um pouco da coisa; e aí, estudando daqui e dali, eu fui levado mais à questão afro”. Quanto ao breque na realização do filme, Paulino já fizera uma observação: “o candomblé na realidade era visto como uma coisa meio estranha, uma coisa que se podia aguentar assim até certo ponto... mas ali naquele filme havia verdade demais, principalmente porque tinha se voltado para uma outra perspectiva... a progressista não me interessava nunca...”. O progresso, a seu ver, implica a eliminação daquelas comunidades como a de Buraquinho, focalizada no filme, verdadeiros redutos de uma cultura autêntica que desapareceram. “Houve exigências, disseram que eu não poderia ser lírico, nem poeta, que eu devia ter uma visão crítica... exigiam a visão crítica e me deram a ‘liberdade’ de ser político”. No seu depoimento no terceiro dia, Paulino lembrou que a concepção original do filme nunca foi levada em conta – não interessou à crítica, de direita ou de esquerda, considerar o nascedouro do filme em sua posição mais em defesa da cultura negra, mais coerente com o próprio candomblé e preocupado com a repressão a este, e não com os imperativos do progresso. A política do projeto original era de compromisso com a afirmação do negro, dos princípios de uma cultura, dos seus ancestrais. “A história de Barravento é a busca da liberação. Aquela rede é uma desgraça daquela gente; vem do progresso... entre este e os orixás, quer dizer, as forças da natureza – isto seja bem explicado – eu fiquei com as forças da natureza...”. Paulino, no depoimento, reiterou a sua crítica ao falso progresso cultural e social promovido pela burguesia e as multinacionais. Para ele, o filme que resultou é coerente com o ponto de vista do realizador

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(Glauber), por quem ele nunca deixou de ter “admiração, carinho e amor... simplesmente existiu um fato que nos levou a um atrito, quando houve uma infantilidade da minha parte e da dele, que a gente não soube contornar, porque houve elementos estranhos que vieram provocar isto”. Na Bahia, “a gente fazia um cinema humilde; carregava o tripé nas costas e descia a ladeira da Conceição ou a ladeira da Montanha para ir à rampa do mercado, quando estive filmando Um dia na rampa. O negativo era coisa de amealhar o dinheiro de cada um... tínhamos na Bahia uma câmera que sobrara da campanha de um prefeito que queria ser governador”. No meio do processo eleitoral, alguém comprou uma Arriflex e não tinha como usá-la “com esta máquina foi feita muita coisa de cinema na Bahia”. “Quando eu conheci o Glauber, eu o conheci dentro de um movimento integralista, chamado CEPA – Centro de Estudos de Pensamento e Ação – fizemos amizade; conversa de parceiros de noites a fio.” Quanto ao CEPA, concluíram que aquilo não dava – “isso não é simpático ao cinema, não é simpático à arte”. Paulino comentou que o curioso era que as paredes todas do CEPA eram pintadas “pelo Raimundo de Oliveira, que era pessoa ingênua, de uma pureza incrível, e nem estava sabendo que aquilo ali era integralismo”. A coisa não dava pé e “partimos para outra, trabalhando em outro sentido”. Aqui, o depoimento evoca os contatos com o Rio, a atividade intensa de Glauber nas articulações que deram origem ao Cinema Novo; o incentivo de Walter da Silveira aos jovens cineastas baianos, o contato com Nelson Pereira dos Santos. O histórico chega a Barravento, a descoberta de Lídio Silva, as conversas com o pessoal do candomblé, a preparação do filme – elementos evocados rapidamente por Paulino. A avaliação do significado deste episódio para a sua carreira como cineasta fez com que


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ele retomasse as dificuldades com que deu continuidade ao seu trabalho, comentasse a experiência de Crueldade Mortal (1977), sua participação como diretor de um episódio do longa-metragem que está sendo produzido pelo Sindicato dos Artistas e Técnicos do Rio de Janeiro e o seu atual projeto apresentado a Embrafilme e aprovado dentro do Programa de Desenvolvimento de Projetos, roteiro que leva adiante a sua preocupação com a temática do negro. Na recapitulação, não poupou referências negativas à crítica, num diálogo franco comigo e com Jean-Claude (Avellar não estava presente). Finalmente, contrapôs o usual silêncio da crítica frente ao caso Barravento a uma conversa que teve com Paulo Emílio já na década de setenta. “Paulo Emílio esteve me procurando porque ele queria saber mais sobre Barravento no aspecto religioso... conversamos e evidentemente chegou um momento em que falei: ‘pois é, Paulo Emílio, esta parte aqui, que se passa onde está o Hotel Meridien, eu filmei, assim como outras...’. Então, o Paulo Emílio ficou perplexo na cadeira, e eu senti que os dois olhos dele tomaram todo o espaço, toda a figura dele, não como se fosse um detalhe, mas como se fosse uma super-impressão, tal a perplexidade de saber que no filme tinha cenas que eu havia filmado. Eu, por uma questão de educação, disse que o Nelson Pereira (que foi o montador do filme), para dar tempo ao filme, teve de colocar estas cenas. Agora, o Paulo Emílio sabia, por um depoimento do Glauber dado a Raquel Gerber, que o Glauber havia dito que meu original era uma história mexicana com prostitutas e gigolôs. Isto está no livro da [editora] Paz e Terra prefaciado pelo Paulo Emílio. Ora, como uma estória mexicana com prostitutas e gigolôs, a que Glauber se referiu em tom pejorativo, estava inserida no filme que ele estava assinando? Daí toda a perplexidade do Paulo Emílio, que me deu um abraço assim de

reconhecimento íntimo. Foi uma conversa muito sincera, eu digo mesmo quase sagrada, que me deu estímulo. Eu estava a ponto de sucumbir. Não fora a conversa com o Paulo Emílio e eu teria sucumbido”. Ao final, Paulino esclareceu que tem intenção de publicar o roteiro original de Barravento. “Eu peguei isto porque o pessoal do cineclube Barravento estimulou um pouco... achavam que eu tinha mágoa e não ia ao cineclube... barravento é uma palavra muito bonita; o próprio Guimarães Rosa me perguntou pelo título do filme, ‘foi você quem deu?’... E eu falei ‘foi’. Ele falou: ‘mas é uma coisa muito bonita’... Agora, barravento não é título apenas porque é uma palavra bonita, é pelo que significa; é um termo revolucionário, é a mudança, é a transição”. O seminário se encerrou com longa conversa, infelizmente não gravada, onde Juana comentou em maiores detalhes os problemas da prática da SECNEB na lida com o cinema, fazendo considerações sobre o cinema antropológico em geral. Reiterou os problemas de comunicação e compreensão mútua que aparecem no momento em que a equipe de profissionais – hoje necessária – estabelece contato com as comunidades, bem como as dificuldades por ela encontradas para pensar um cinema que incorpore a si os códigos da cultura negra. Na discussão com as pessoas que tinham visto os filmes nos dias anteriores, ficou patente o consenso de que o trabalho tinha evoluído muito na direção desejada, mas ela mesma sublinhou as limitações do que até então havia sido feito no sentido de produzir um cinema que não fale sobre a codificação do mundo elaborada pela cultura negra, mas seja esta própria codificação em ato, expressa em termos de imagem e som.


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Viver e morrer, o último quilombo* sobre Egungun (1982), de Carlos Brajsblat

Orlando Senna**

A

luz atlântica brilha na água verde e na praia incendeia a ilha de Itaparica, os coqueiros, a aldeia de pescadores há pouco descoberta pelos turistas. O alagbá Antônio Daniel de Paula, 108 anos de idade, sorri e pousa os olhos no mar, enxuga uma lágrima de velhice e volta a falar para a câmara e para os que se escondem atrás dela: “pra quem não sabe é nada, nada, nada. Do nada Deus fez o mundo”. Refere-se ao culto dos oguns, dos espíritos dos mortos, segundo práticas herdadas da cultura nagô e replantadas no universo simbólico afro-brasileiro. É o tema de Egungun, documentário longo realizado por Carlos Brajsblat e Juana Elbein dos Santos com assessoria direta de Deoscóredes Maximiliano dos Santos, Mestre Didi, escultor, escritor e sacerdote. É o terceiro de uma série de filmes projetada pela Secneb – Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil, cujo sentido é uma revisão dos conceitos (históricos, religiosos, filosóficos, sociológicos) sobre a presença e a importância do elemento africano na composição da sociedade brasileira – principalmente como este elemento se comporta na química política das etnias, de que maneira preserva e projeta suas instituições no espaço multicultural e muitas vezes hostil do país, de que maneira os exercícios míticos e rituais se manifestam como afirmação social.

Estes conceitos, como se sabe, foram pré-concebidos, nasceram da desinformação e da estratégia de imposição dos valores europeus. E se alimentam no etnocentrismo do poder brasileiro. A dificuldade em perceber as implicações reais do candomblé, dos orixás, a função psicossocial dos terreiros – devido à branca e espessa cortina de fumaça lançada pelos detentores da difusão cultural – não significa que estas relações tenham perdido sua força ou seu caráter de afirmação social. O contrário é, naturalmente, mais verdadeiro: o patrimônio cultural africano e seus mecanismos interferentes tornaram-se mais dinâmicos à medida em que se viam ameaçados – de maneira empolgante e espetacular como as escolas de samba do Rio de Janeiro e o aumento progressivo de afoxés e blocos negros em Salvador da Bahia; de maneira persuasiva, penetrando fundo no tecido psicossocial através do desdobramento e assimilação dos orixás nos cultos sincréticos brasileiros, umbanda, batuque, macumba, jarê; de maneira densa, sutil, primal e misteriosa, mantendo no decorrer dos séculos mitos – estrutura de identidade cultural – cuja origem se perde nos milênios da África. O culto aos eguns inscreve-se nesta última categoria. O egun, espírito de alguém que viveu e morreu, é uma manifestação intimamente ligada à vivência humana, à história e à estrutura da

*Texto originalmente publicado na revista Filme Cultura, ano XVI, n. 41/42, p. 68-70, Embrafilme, maio 1983. **Orlando Senna é cineasta, roteirista e escritor baiano.


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sociedade. Portanto, um conceito diverso do orixá, manifestação cuja simbiose se faz com a natureza, com a criação do tempo, do mundo, do homem. Orixás e eguns não se manifestam juntos, no mesmo espaço sagrado, sendo cultuados em terreiros diferentes, com liturgias próprias. Com os orixás o homem aprende e joga com as relações cósmicas, com as poderosas energias do universo. Com os eguns o homem aprende e joga com as relações sociais, grupais, familiares. Mas como os orixás, os eguns são percebidos à direita (os masculinos, Baba-egun) e à esquerda (os femininos, lyá-agbá) e também neste aspecto os cultos são separados. As mulheres ancestrais se manifestam em coletividade, suas materializações representam o poder feminino como um todo, todas as mulheres que passaram sobre a terra se expressam como a Grande Mãe, segundo os ritos da sociedade secreta feminina Geledê (tema do filme anterior produzido pela Secneb, lyá-mi agbá). Os homens ancestrais se manifestam individualmente, são reconhecidos e chamados pelos seus nomes, invocados segundo os ritos da sociedade secreta masculina Egungun.

Iniciados

Ambos os filmes e mais o primeiro da série, Orixá ninu ilê, originam-se do livro de Juana Elbein dos Santos, O nagô e a morte, onde também está (um dos capítulos) o argumento de Samba da criação do mundo de Vera Figueiredo. Responsável pela direção de Orixá ninu ilê (79) e de lyá-mi agbá (80), Juana promove a formação de uma equipe iniciática de cinema para a realização dos filmes produzidos pela Secneb, no intuito de reduzir os ruídos culturais na abordagem e interpretação dos temas. E reduzi-los a um mínimo possível como meta ideal, chegar a um grupo de artistas e técnicos altamente familiarizados com o complexo cultural afro-brasileiro e pessoalmente integrados em seus princípios existenciais.

A radicalização desta experiência, inédita no Brasil, resultaria (resultará) no surgimento de uma equipe de criação de dentro, formada por gente dos terreiros. A câmara na mão e no olho da Yaô, a moviola manipulada pelo babalaô, o que transa o mistério. Outras experiências neste rumo – o caminho desconhecido do cinema – foram tentadas e interrompidas: por Sol Worth e John Adair com os índios navajos (Through Navajo Eyes), por exemplo. E por mim mesmo, envolvido em algo semelhante com os garimpeiros da Bahia. São tentativas de romper o conceito imperialista de “tecnologia reservada”, aplicada ao cinema como autodefesa dos detentores dos meios de produção. Os povos do hemisfério Norte sabem fazer cinema, porque podem; os povos do hemisfério Sul não sabem fazer cinema porque não podem, não são industrializados. Considerando que alguns países meridionais são semiindustrializados e que o fascínio do cinema nos faz superar deficiências e desafios, a “tecnologia reservada” dos europeus e norte-americanos é uma meia verdade – a China, por exemplo, desmontou uma câmara Arriflex, copiou pacientemente cada uma das peças em tornos rudimentares e montou várias câmaras, ponto de partida de seu cinema documental. Esta meia verdade, o fator indústria, é o meio obstáculo para o crescimento de uma expressão audiovisual dos países pobres, dos povos e grupos nacionais e raciais discriminados na distribuição do poder e da riqueza humanos. Outro empecilho não há: a vocação cinematográfica é universal, a audimagem em movimento é uma conquista do homem, o filme é um meio de expressão a que todos têm direito. Nenhum impedimento ou retração cultural separa a África do cinema – sendo prova bastante o cinema popular que se faz hoje em Moçambique, vento renovador na linguagem e no destino dos filmes. Nenhuma restrição de caráter religioso afasta as


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novas técnicas de comunicação de milenar cultura nagô, dinâmica por excelência. Juana Elbein dos Santos persegue a ideia de uma equipe iniciática centrada no assobá Mestre Didi e o trabalho está avançando lentamente de filme a filme. Talvez a equipe ideal esteja ainda distante, mas nenhuma experiência conhecida por mim chegou tão longe nesta direção, impressão confirmada por Egungun, onde a participação de integrantes do culto na filmagem, na montagem e na concepção geral foi decisiva. O diretor Carlos Brajsblat, participando do projeto Secneb há quatro anos, convivendo com os cultores dos eguns em várias ocasiões, minuciosamente assessorado por Mestre Didi e por Juana, etnóloga que estuda e vivencia há quinze anos o assunto, colocase como um intermediário capacitado, como uma ponte entre a matéria bruta, virgem, desconhecida das sociedades secretas afro-brasileiras (linguagem arcaica) e a técnica som/imagem/ ação do cinema e TV (linguagem eletrônica). Esta ponte, altamente sofisticada, é pênsil, como me parece que sempre deve ser, lançada ao espaço rente às águas plácidas ou revoltas da inspiração pessoal, constantemente molhada por elas, pelos impulsos da demiurgia artística, outro mistério.

O que não se vê

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O resultado mais imediato da interação da equipe com o tema e a locação, a comunidade Omô Ilê Agboulá de Ponta de Areia, Itaparica, é que o filme não idealiza esta comunidade, não tenta denunciá-la ou protegê-la: veicula sua história, suas relações, alegrias e crises segundo uma perspectiva interna, da própria comunidade que, por ser específica, não se posiciona como berlinda de comparações e análise exterior. O filme tenta expressar-se no ritmo comunitário, diluir sua sintaxe na linguagem da aldeia de pescadores que estão deixando de ser pescadores em virtude das mudanças sociais e econômicas que ocorrem em Itaparica. Os autores do filme se esforçam por ver com os olhos da comunidade, operação compensada pela aura de verdade que perpassa de sequência a sequência, enfatizando a sutil e inquebrável ligação entre os símbolos e as coisas mais importantes da vida, do dia-a-dia; um jeito de ver/ouvir que mantém intacto o enigma da aldeia e do filme, o segredo egungun. Pelo resultado em si e pelas possibilidades futuras desta interação – um cinema comunitário – Egungun produz momento de pura emoção. A luminosidade dos dias de Ponta de Areia contrasta fundo com a escuridão pré-elétrica das noites, quando os espíritos dos antepassados se materializam com voz rouca ou aguda e os vivos se purificam para receber e distribuir o poder que emana deles. Durante o dia, na festa anual do Omô Ilê Agboulá, as mulheres pegam água em latas e potes, os homens pescam, cuidam da lavoura de frutas ou dão serviço nas companhias imobiliárias, em algum momento todos se banham no mar esmeralda e os garotos brincam de ojés correndo com suas varinhas à guisa deixam, chicoteando o chão. A noite os verdadeiros ojés, os iniciados na sociedade secreta Egungun, utilizam os verdadeiros ixans, longas varas mágicas, para trazer os espíritos do mundo


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dos mortos (orun), mantê-los separados dos vivos enquanto estiverem neste mundo (aiyé) e reintroduzi-los de volta ao além – o ixan separa o mundo dos vivos do mundo dos mortos, um egun não pode se aproximar de pessoa viva, não pode ser tocado. É o instrumento do ajé, sacerdote detentor do segredo da sociedade masculina – e também de grande sabedoria e senso de equilíbrio, em razão mesmo do extraordinário caráter de sua missão, canal aberto entre os vivos e os mortos. São pessoas especiais que passam por longo noviciado e ritos de iniciação, guardando para sempre o mistério que envolve a sociedade egungun. Os ojés falam para a câmera: “o sonho de todo menino é chegar a ser ojé” / “vi coisas maravilhosas que só um ojé pode ver” / “no dia de minha iniciação senti que não vou morrer, os iniciados no mistério não morrem, vão para o lugar do renascimento”. O lugar do renascimento! Talvez aqui esteja a chave de tudo, da claridade atlântica que antecede e sucede o breu noturno na aldeia e no filme, do tema da morte em pleno viço da paisagem tropical, da alegria que veste o enigma: os eguns materializam-se cobertos com tiras de pano coloridas, contas, espelhos, sementes, a câmera aproxima da forma humana, do lugar onde deve estar o rosto, close – há uma rede e depois dela uma sombra, impossível gravar o que está sob as tiras. Os vivos recebem bênçãos e conselhos, os eguns tratam de preservar e dinamizar a estrutura social da comunidade, a continuidade física e espiritual, ética e prática do grupo. Os ojés se movimentam com suas varas: “cada qual no seu cada qual”. Surgem espíritos desconhecidos e sem forma humana, panos de uma só cor esticados em triângulo – espíritos recentes, com os ritos de formação a meio caminho. Mortos e vivos defrontam-se na noite tropical, o ixan constrói uma parede invisível entre o conhecido e o oculto. O segredo: “o que estão vendo são

tiras de pano, embaixo das tiras ninguém sabe o que tem, a morte ninguém sabe o que é”.

Enredo

O enigma soa nos cantos em nagô, no silêncio risonho e nas frases dos ojés, da morte só as roupas são visíveis. Na simbologia nagô (cultura da África Ocidental expandida para a América) a morte tem caráter masculino, em algumas lendas é um incansável guerreiro que devolve à terra o pó dos corpos humanos para que outros corpos possam nascer. Sendo a morte o único canal que possibilita a continuidade da vida humana, através da constante renovação de corpos, é também, em consequência, o único veículo da expansão da espécie. Assim, os eguns se relacionam, luminosamente, com a perenidade da existência humana, com a mais exaltada alegria da vida. Morrer é renascer, ideia comum a todas as culturas. O incomum, o singular, é a forma de contato de cada cultura com este enigma; a elaboração fisiológica, filosófica, psicológica de cada uma delas sobre esta questão (a única da existência, disse Sartre). Os eguns disseminam a energia vital, axé, e jamais desaparecerão do Brasil: “para que não existam mais eguns têm de matar-nos a todos”, diz um iniciado. E outro, reparando nos loteamentos industriais que avançam sobre a aldeia de gente negra e ensolarada, na turista de biquíni, no policial que passa correndo: “o último quilombo é Ponta de Areia”. A vida como ela é e que o filme documental capta como se obedecesse a um roteiro de ficção – a equipe permaneceu cerca de dois meses filmando e sentindo que um acirrado debate, embora em surdina, movimentava o círculo dos ojés por causa da avançada idade do alagbá Antonio Daniel de Paula (“pra quem não sabe é nada, nada, nada. Do nada Deus fez o mundo”); durante a filmagem o centenário chefe do culto e da comunidade morre, são realizados


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os ritos fúnebres daquele que em breve será um egun e explode o conflito: mais de um pretendente, por se acharem investidos de direitos, à função de alagbá. A sucessão transforma-se em grave problema no Omô Ilé Agboulá devido à sua composição. Sendo um culto familiar em sua origem, cada grupo sanguíneo tinha seus ojés, seus espaços sagrados e seus eguns, os antepassados, e a sucessão na chefia se fazia segundo práticas tradicionais, geralmente o mais velho ou o filho primogênito do alagbá o sucedia. Na Bahia, por muitas razões, famílias diversas passaram a realizar juntas os ritos – e depois estas comunidades se juntaram a outras, resultando atualmente em apenas um terreiro egungun na Bahia, possivelmente no Brasil, o de Ponta de Areia. Ali estão aglutinados vários grupos e famílias, vários terreiros, e portanto os critérios familiares de sucessão não mais funcionam. É uma situação de clímax, enfrentamentos pessoais, a roda da capoeira à vera que se abre no meio do povo, o avanço desautorizado sobre objetos e atividades rituais, quebra da tradição. Este cisma ultrapassa as fronteiras de Itaparica e é comentado (isto não está no filme) por uma revista de circulação nacional e uma rede de televisão que informam ao público, respectivamente, que se trata de disputa eleitoral corrupta e escandalosa e que o culto dos eguns é bruxaria vulgar, superstição, armadilha para incautos – o que nos devolve ao tema do etnocentrismo e da falta de respeito. O filme prossegue, os últimos minutos. A dificuldade da sucessão é o assunto da comunidade, cala fundo também nas mulheres – que não podem se iniciar na sociedade dos ojés mas participam das cerimônias abertas e das festas anuais e recebem oxé dos eguns; por alguma razão muito profunda a feminina Oiá é chamada Rainha do Egungun, sociedade secreta de machos. Os ojés se reúnem, conversam, a evolução da crise exige toda a sabedoria, paciência, poder de observação

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e de síntese, todo o senso de equilíbrio de que são capazes, justamente as qualidades que os levaram ao privilégio do sacerdócio (“um homem despersonalizado não pode ser ojé”). Os conflitos humanos são outro mistério, a força motriz deles. Mas nem por isso a comunidade afro-brasileira de Ponta de Areia, extensão da última casa de culto Egungun, se entrega ao desespero – os anciãos são consultados, não é a primeira vez que problemas oriundos da pluralidade familiar e grupal da comunidade vêm à tona. Os eguns participam do esforço comum muito mais por atitudes do que por palavras, um deles se encolhe sobre um banco de madeira, expressa sua tristeza pelo que está acontecendo. E pouco a pouco, conversando e pensando, os ojés encontram uma solução. E o filme se apresenta ritualizado em si mesmo, evoluindo no contentamento do povo que brinca e trabalha sob o sol/cinema, captando e redistribuindo axé; na dor do desaparecimento físico do alagbá; no conflito que eclode ante o trono vago e na reintegração da comunidade e do terreiro, alcançada quando os ojés encontram uma saída para o impasse... Reticências porque, se um fotograma vale mais que mil palavras, o que pensar de um filme que pode abrir as comportas da imagem/ação, da fantasia, da fome de saber o que vem depois das últimas galáxias, o que está sob os panos coloridos das entidades que se materializam em Itaparica? Filmes, pensamentos, palavras, imortalidade escondem, cada qual no seu cada qual, caudal, o mesmo indevassável mistério: quanto mais se cava mais fundo é, quanto mais se tira mais se tem.


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Atlântico Negro – na rota dos orixás* Luis Nicolau Parés**

E

m 17 de novembro de 1998, uma terça-feira, foi apresentado no ICBA de Salvador o filme Atlântico Negro - Na rota dos orixás, dirigido por Renato Barbieri e Victor Leonardi. A estreia do filme na Bahia fez parte dos eventos organizados pelo movimento negro em torno do Dia da Consciência Negra. Estavam presentes nesse evento pessoas do MNU, do Ilê Aiyê e outras organizações do ativismo negro baiano. Depois da mostra, que suscitou o entusiasmo geral da audiência, falaram o diretor Renato Barbieri e a ialorixá Mãe Stella, que deu apoio ao projeto. O documentário, como sugere o título, trata das relações históricas e culturais que existem entre o Brasil e a África, com especial atenção para aspectos da religião dos orixás. O trabalho já merece reconhecimento por ser um dos poucos até agora produzidos na área do audiovisual tratando da questão afro-brasileira na sua dimensão transatlântica. Ele conta com a participação, através de entrevistas, de eminentes e significativos especialistas do tema – antropólogos, historiadores e líderes religiosos –, o que lhe confere um interesse intrínseco. Executado em formato de documentário televisivo, possui uma boa qualidade técnica e demonstra o profissionalismo e domínio da

linguagem cinematográfica do diretor e da equipe de produção. Uma boa fotografia, de grande plasticidade, junto com uma montagem rápida conferem ao produto um ritmo fluido comparável, às vezes, com a estética contemporânea do videoclipe. Esses fatores fazem do filme um produto de alto potencial comunicativo que deve facilitar a sua ampla divulgação. A noção de um Atlântico Negro, expressão surgida a partir do livro de Paul Gilroy, The Black Atlantic: double consciousness and modernity, sobre a diáspora da comunidade caribenha no Reino Unido, tem recentemente ganho grande aceitação nos meios intelectuais afro-americanos.1 Pelo seu caráter abrangente, resulta num paradigma conceitual que permite reformular muitas das dicotomias surgidas em torno da dualidade entre a África e suas diásporas transatlânticas. A noção de um Atlântico Negro, como uma área cultural única e interligada, coloca a cultura dos afrodescendentes nas Américas e na Europa em pé de igualdade com a cultura africana de origem, e lhes confere um status de autonomia que se opõe àquela visão nostálgica de uma África idealizada como terra-mãe, como origem perdida. A noção de um Atlântico Negro é, antes que tudo, uma reivindicação da diáspora,

*Artigo originalmente publicado na revista Afro-Ásia, n. 21-22, 1998-1999, páginas 367-375. **Luis Nicolau Parés é professor associado no Departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia. Suas principais áreas de pesquisa incluem a história e a antropologia das religiões afro-brasileiras e africanas e suas conexões atlânticas. 1. Paul Gilioy. The Black Atlantic: double consciousness and modernity, Cambridge, Harvard University Press, 1993.


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uma nova proposta de relacionamento com a sua história. O conceito, elaborado inicialmente por intelectuais de fala inglesa, não reivindica necessariamente a descontinuidade da diáspora com o seu passado africano, como defenderia o modelo interpretativo “creolizante”, mas, ao contrário, pressupõe, sobretudo, a existência de uma rede de comunicação intensa entre as comunidades da diáspora e a África, aliás, entre elas próprias também. O Atlântico Negro não vê mais um só movimento histórico de leste a oeste, da África para as Américas, mas aponta também para o sentido inverso, para as aportações da diáspora na África e para o contínuo fluxo e refluxo que sempre existiu entre as duas costas. O mar, até recentemente visto como fronteira excludente e divisor de culturas, associado ao corte traumático do tráfico, é visto agora, na época da globalização, como laço de união e, implicitamente talvez, como o novo âmbito territorial de um potencial internacionalismo negro que, além das fronteiras dos países, é capaz de comunicar e articular uma diversidade de grupos da diáspora negra em um diálogo frutífero, na procura de uma consciência comunitária. É nessa ordem ideológica que se situa o filme de Barbieri e Leonardi. Não é por acaso que o documentário inicia o seu percurso com a apresentação de um caso contemporâneo dessa comunicação transatlântica estabelecida entre dois líderes religiosos, um do Maranhão e o outro do Benin. Vai ser a história desse intercâmbio, primeiro de mensagens gravadas em vídeo e depois de presentes rituais entre os dois líderes religiosos, o leitmotiv que vai pontuar e demarcar o discurso substantivo do filme. Na primeira cena, cronologicamente a última que foi gravada, Pai Euclides, babalorixá da Casa Fanti Ashanti, em São Luís, lê uma mensagem de agradecimento em língua africana enviada ao seu amigo, o vodunon Avimanjenon, chefe do Templo de Avimanje, em

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Uidá. Essa abertura emblemática vai introduzir toda uma série de sequências onde, através da voz de um narrador, comentários dos entrevistados e imagens da vida, rituais e festas ora do Benin, ora do Brasil, se faz uma apresentação, ou melhor, representação da história e vínculos culturais entre os dois países. Os conteúdos apresentados no documentário são variados, mas orbitam em torno de três grandes temas: a religião dos orixás, o tráfico de escravos e a comunidade dos Agudá (descendentes dos escravos africanos retornados à África). A primeira parte apresenta, de uma forma genérica, a natureza do culto dos voduns e orixás. Uma explicação mais demorada, dada por vários líderes religiosos, é dedicada a Exu, a entidade intermediária entre homens e divindades, tantas vezes associada erroneamente ao diabo cristão. Através desse exemplo, o espectador reconhece a similitude conceitual existente entre a religião africana e a brasileira. Cabe notar que as imagens de diversas atividades rituais que dão suporte ao discurso oral são bastante desconexas e estão montadas num ritmo rápido, que em algum momento leva a certa confusão. Quando se fala, por exemplo, do culto dos orixás e voduns, mostram-se imagens dos egunguns, culto de origem iorubá dos ancestrais, que não é considerado propriamente culto de orixás; quando se fala de Exu, mostram-se imagens de um Heviosso, vodun do trovão. Essas imprecisões podem passar despercebidas aos olhos do não-especialista, e poderiam ser consideradas licenças criativas a serviço da narrativa verbal, mas, na verdade, são esses detalhes que põem em questão a fidelidade etnográfica do documentário e que podem suscitar críticas dos participantes da religião. Depois dessa parte, através dos comentários de Alberto da Costa e Silva, historiador e ex-embaixador brasileiro na Nigéria, que atuou como consultor de assuntos africanos no documentário,


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e do historiador beninense Emmanuei Karl, há informações sobre o tráfico de escravos e o funcionamento do sistema escravocrata na Costa dos Escravos nos séculos XVIII e XIX. Antes de serem embarcados para as Américas, os escravos de Uidá eram obrigados a dar várias voltas em torno de uma árvore, conhecida como l’arbre de l’oublie (a árvore do esquecimento), onde, supostamente, os escravos deviam esquecer o seu passado, o que efetivamente nunca aconteceu, já que, apesar de todas as dificuldades, conseguiram preservar e reconstituir parte da sua cultura, especialmente a sua religião. Passa-se depois a introduzir a figura do baiano Felix de Souza, o Chachá, provavelmente o maior traficante de escravos de toda a história que, morador em Uidá e com a colaboração do rei daomeano Guêzo, estabeleceu, no início do século XIX, um grande império comercial, deixando importante descendência nessa cidade. Milton Guran, fotógrafo e antropólogo que trabalhou no documentário como consultor na parte do Benin, comenta sobre essa polêmica figura histórica. Salta-se de novo para o Brasil, numa sequência um tanto confusa, onde alternam-se imagens de Salvador e de São Luís. Imagens de grupos seculares, como o bloco Ilê Aiyê, são justapostas a festas religiosas de Tambor de Mina, no Maranhão, o que, implicitamente, leva o espectador leigo a pensar erroneamente que, sendo música e dança, trata-se tudo da mesma coisa. Passa-se logo a apresentar, brevemente, algumas das casas mais famosas do candomblé baiano, como o Gantois e o Axé Opô Afonjá. Mãe Stella, ialorixá do último terreiro, comenta a genealogia das ialorixás daquela casa. De novo salta-se a São Luís, à Casa das Minas, onde a atual zeladora, Dona Dem Prata Jardim, fala da fundadora desse terreiro, a africana Maria Jesuína que, segundo a hipótese de Pierre Verger, seria a mesma Na Agotime, rainha daomeana, mãe do rei Guêzo,

vendida como escrava pelo rei Adandonzan. Sabe-se que Guêzo enviou várias embaixadas à América à procura de sua mãe, e essa estória é confirmada por testemunhas no Benin. Depois dessa parte sobre a escravidão e os seus vínculos com a religião, o narrador do documentário protesta contra as representações da África que não mostram o lado cotidiano da vida dos seus habitantes e, como alternativa a essa tendência, passa-se a mostrar a festa de recebimento dada à equipe do filme pela comunidade Agudá em Uidá. Apesar de a espontaneidade dessa cena ser enganosa, já que é óbvia a consciência dos participantes de estarem sendo filmados, ela serve para explicitar no filme a presença da equipe de realização, um ponto de reflexividade que ajuda a relativizar a usual invisibilidade dos autores. A cena serve também para introduzir os Agudá, a comunidade formada pelos descendentes dos traficantes brasileiros e os libertos africanos que voltaram à África no século XIX. Milton Guran, professor da UnB que escreveu uma tese sobre o assunto, e a Agudá Madame Amégan, entre outros informantes, comentam sobre esse segmento da sociedade beninense e sobre a sua função como intermediários entre a população autóctone e a administração francesa durante a época colonial. Complementa-se essa parte com comentários sobre a influência brasileira na arquitetura de Porto Novo, onde a mesquita construída pelos Agudá islamizados reproduz os padrões estéticos das igrejas católicas brasileiras. Esse fato serve de ponte para voltar à Bahia e comentar a presença dos Malês em Salvador e sua participação na revolta de 1835. O historiador João Reis explica que foi a partir desses acontecimentos que muitos escravos e libertos africanos foram deportados para a África. Sem aparente conexão com a narrativa, a não ser o nome, nessa parte mostram-se imagens do bloco Malê de Balê.


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De volta ao Benin, as imagens dão conta da presença dos Agudá no Benin através de uma breve entrevista com o responsável pelo vodun pessoal de Felix de Souza, de um discurso do atual Chuchá VIII (líder da comunidade dos Agudá e herdeiro do título honorífico de Felix de Souza), e da celebração, em Porto Novo, da Festa do Bonfim e do desfile da Bourian (réplica Agudá das festas do bumba-meu-boi). A ênfase dada à representação dos Agudá é, talvez, um dos aspectos mais notáveis do documentário, já que, em consonância com a ideologia do Atlântico Negro, aponta para as repercussões da diáspora brasileira na África e apresenta um tema pouco conhecido do público brasileiro. Porém essa ênfase no lado africano, tanto na questão da escravidão como no tema dos Agudá, minimiza importantes aspectos históricos do lado brasileiro, como, por exemplo, o processo de adaptação e resistência dos afrodescendentes no Brasil, e a iniciativa de alguns desses afro-brasileiros, como Martiniano Eliseu do Bonfim, na dinâmica de comunicação transatlântica e a sua contribuição na configuração do candomblé contemporâneo. Depois da parte dos Agudá, seguem, a modo de interlúdio, imagens do mar que nos levam de volta à Bahia, nessa ocasião à tradicional festa de lemanjá, no bairro do Rio Vermelho, onde vemos os presentes às águas. Após esse ir e vir entre as duas costas do Atlântico, em que o espectador foi informado de variados aspectos históricos e culturais, segue uma parte, talvez a mais original do ponto de vista de um documentário, em que se mostra o intercâmbio de mensagens audiovisuais entre líderes religiosos do Benin e do Brasil. Esse evento funciona, na narrativa do filme, como evidência e confirmação de que o diálogo entre as duas bandas do mar (mesmo

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que gerenciado pela equipe do filme) segue vivo. Pai Euclides e a mãe pequena do terreiro cantam uma cantiga em fon em São Luís. Intercalam-se imagens do Avimanjenon e do Adjahô Houmassé frente ao monitor de vídeo vendo essa mensagem, o primeiro no seu templo de Uidá, o segundo na sua residência em Abomey. Significativamente, o Avimanjenon diz que entendeu a cantiga, e o velho Adjahô também a reconhece e começa a cantá-la, o que confere a esse belo momento um alto tom emotivo. Segundo comentários do diretor Barbieri, quando chegou ao Benin e descobriu que a cantiga era reconhecida por várias pessoas foi que se deu conta da importância do material gravado em São Luís. Foi esse fato que o levou a concentrar seus esforços no Benin e não na Nigéria, como estava planejado inicialmente, e, depois, a dar especial relevância a essa parte na estrutura do filme, o que também não figurava no roteiro original. O Avimanjenon responde com outra mensagem audiovisual que inclui uma outra cantiga, e com um presente, um bastão cerimonial que a equipe do filme leva ao Maranhão. Pai Euclides recebe o presente de forma ritual, com várias filhas da casa vestidas para a ocasião de Tobossi (a moda do Jeje maranhense), jogando o obi e lavando o bastão com uma mistura de folhas maceradas. Esse emblemático intercâmbio é considerado pelo narrador como um exemplo do “respeito e admiração mútua que o Brasil e a África mantêm entre si”. Certo, mas é aí que a linguagem cinematográfica, com sua inevitável construção e recorte da realidade, joga a favor da intencionalidade ideológica do filme. O documentário não fala, por exemplo, que foi Pai Euclides quem pediu o bastão cerimonial, e que foi a equipe do filme que teve que pagar o presente, e assim por diante.2 A cena de recepção do bastão cerimonial foi

2. O documentário também não explica a natureza da relação preexistente entre Pai Euclides e o Avimanjenon,


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obviamente representada para ser filmada e não parece responder a nenhuma tradição ritual da casa, o que, de novo, evidencia a capacidade que tem a produção de um documentário para alterar ou gerar novas realidades. Essa capacidade intrínseca e manipuladora do filme não deve ser necessariamente negativa, já que, às vezes, pode levar a gerar situações capazes de revelar informações que não seriam acessíveis de outro modo. Esse é o caso do chamado cinema participativo, do qual Jean Rouch é um dos mais claros expoentes. No entanto, do ponto de vista etnográfico e a serviço do rigor científico, é preciso que o documentário seja explícito quanto às suas estratégias de construção no processo de representação, já que, por trás das imagens montadas, existe sempre outra história que não é contada. O filme termina com o leitmotiv de que “o mar, em vez de separar, uniu povos e culturas diferentes”, e com vários dos entrevistados enunciando frases conclusivas. Aparece a antropóloga Juanita Elbein dos Santos reivindicando a necessidade de superar a memória traumática da escravidão e de considerar os aspectos positivos do legado da ancestralidade. O antropólogo Júlio Braga salienta que na época da globalização só vão se salvar aqueles que puderem conservar a sua identidade. Talvez o comentário mais emotivo seja o do Adjahô que, em bela metáfora, resume a história das relações entre África e América como a de duas crianças que foram separadas e que nunca mais se viram, mas que, um dia, a ocasião foi dada a seus descendentes para se encontrarem. “Esse reencontro seria alguma coisa de inexplicável. Sua alegria será inestimável e nós nem poderíamos qualificá-la. É alguma coisa extraordinária”.

Como já foi dito, o documentário quer ser um produto de divulgação dirigido a um público amplo mas, em função de sua temática e orientação ideológica, está especialmente dirigido à comunidade afro-brasileira. O filme já foi mostrado na TV GNT e vai ser distribuído nas escolas e outras redes institucionais, como festivais, congressos, terreiros, etc. Também uma versão francesa deve ser distribuída no Benin. Não foi, portanto, a intenção dos autores produzir um filme etnográfico ou científico para especialistas, mesmo que utilize material e conteúdos suscetíveis de serem analisados do ponto de vista antropológico, sociológico ou histórico. Porém o filme pretende uma certa seriedade na elaboração dos conteúdos que garanta a legitimidade do discurso. Prova disso é a participação, como entrevistados, de relevantes especialistas nessas áreas. A finalidade última do filme é, talvez, contribuir para a elaboração de uma identidade étnica dos afrodescendentes, reforçando e procurando gerar uma melhor compreensão de certos referentes histórico-culturais. Tendo sido o segmento social dos afrodescendentes tradicionalmente privado de uma história própria, essa iniciativa deve ser bem-vinda. O produto audiovisual resultante tem qualidades provadas para atingir o seu objetivo e deve receber o reconhecimento merecido. Para atingir o alvo primordial de alta comunicabilidade, o projeto recorre ao formato do documentário televisivo, com as vantagens e desvantagens que esse método de representação comporta. Como já foi dito, tecnicamente o filme está belamente executado, a qualidade e o colorido das imagens são ótimos, a montagem, na qual é raro um plano durar mais de cinco

mas posso dizer que se iniciou em 1995, quando, após uma viagem ao Benin, levei a Pai Euclides uma carta e uma fotografia do Avimanjenon, assim como um vídeo das festas celebradas no seu templo de Uidá. Esse primeiro contato foi seguido por uma troca de cartas escritas em francês e outras fotografias.


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segundos, tem bom ritmo e o encadeamento das sequências narrativas flui sem dificuldades. Formalmente, talvez, deva-se criticar a dependência excessiva da narração verbal, o que dá ao documentário um certo tom didático. A necessidade de explicar uma história complexa leva os autores a utilizarem o artifício convencional da narração oral, articulada nos comentários dos entrevistados e na voz do narrador, esta sempre onisciente e onipotente, imbuída de uma autoridade a priori inquestionável. Esse recurso relega o visual a mero suporte ilustrativo que, na sua fluida plasticidade, só serve para hipnotizar a atenção do espectador, sem deixar as imagens se mostrarem por si sós. O visual não é utilizado como recurso narrativo autónomo. Em geral, a rápida edição não dá tempo ao espectador para olhar, para ver e daí elaborar a sua própria interpretação. A combinação desses fatores faz de Atlântico Negro um texto que, utilizando as categorias de Umberto Eco, poderia ser catalogado de “fechado” (em oposição a um texto “aberto”), já que o espectador, submetido como está à tirania da palavra, não tem espaço para tirar as suas próprias conclusões.3 Ele fica certamente seduzido pelo fluir das imagens, mas é a voz que comanda e impõe as diretrizes interpretativas. O gênero do documentário distingue-se por enquadrar-se dentro do que Olivier de Sardan chama de “pacto realista”.4 O suposto “realismo”, convencionalmente atribuído às imagens de documentários, confere ao produto um grau de autoridade que permite legitimar certas realidades históricas e culturais de um modo que o gênero de ficção, por exemplo, raramente atinge. O espectador tende a acreditar na “verdade” das imagens documentais. No entanto,

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o documentário não deixa de ser um artefato construído que utiliza a mesma linguagem cinematográfica e artifícios do gênero da ficção. Portanto, é importante questionar os métodos de representação e construção utilizados para avaliar a fidelidade do texto audiovisual. O diretor de um documentário deve tomar uma infinidade de opções de realização e é no conjunto dessas escolhas (conscientes ou inconscientes) que reside o grau de fidelidade, autenticidade ou “realismo” do produto. Uma série de escolhas, como a utilização de planos longos, respeito ao som original das imagens, podem acrescentar o “índice de etnograficidade” de um documentário. No caso de Atlântico Negro, diríamos que o “índice de etnograficidade”, dadas as escolhas realizadas, não é muito alto. Dado o limite temporal do documentário, a multiplicidade de temas tratados impede uma apresentação detalhada, e é inevitável uma certa superficialidade na análise. Porém, o “índice militante”, isto é, a intencionalidade ideológica e política subjacentes à construção do texto audiovisual, a vontade de projetar uma mensagem de valorização da cultura do afrodescendente, parecem prioritárias e mais marcantes. A representação da religião está na base dessa construção de identidade. Mas essa representação não deixa de ser bastante fragmentada e descontextualizada, às vezes com enganosas justaposições que, do ponto de vista do rigor antropológico e também religioso, são questionáveis, como essa mania de pôr música tenebrosa quando se mostram os altares dos voduns, mostrar os egunguns da Nigéria quando se fala de voduns, passar das imagens do Ilê Aiyê a um tambor de Mina, etc. A religião, sendo o aspecto

3. Umberto Eco. The role of the reader. Bloomington, Indiana University Press, 1979. 4. Jean Pierre Olivier de Sardan, “Pacte ethnographique et film documentaire”, Xoana, Images et Sciences sociales, n. 2, 1994, p. 51-64.


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cultural destacado, recebe, ao menos visualmente, um tratamento mais bem impressionista, o que poderia ser considerado contraproducente, se o que se quer é um melhor conhecimento e valorização dessa realidade. Feitas essas ressalvas, vale salientar que Atlântico Negro apresenta enfoques novos, como a ênfase nos Agudá e mesmo o protagonismo dado ao Tambor de Mina do Maranhão frente ao hegemônico Candomblé baiano. A seleção, no documentário, de Pai Euclides como o principal representante religioso no Brasil, como já foi apontado, resultou da conveniência inesperada dos seus laços com o Avimanjenon e do fato de que a cantiga por ele cantada fosse conhecida no Benin. Esse protagonismo de um babalorixá maranhense poderia, até certo ponto, ser ressentido por alguns religiosos baianos, mas, na verdade, favorece a representação da religião afro-brasileira na sua heterogeneidade e riqueza. É evidente que um documentário de conteúdo tão amplo vai deixar sempre alguns insatisfeitos por não ter comentado ou mostrado este ou aquele outro aspecto. Porém, no seu conjunto, o trabalho é um esforço comprometido e sério que vai contribuir com eficácia para a divulgação de alguns dos assuntos mais relevantes da cultura afro-brasileira, e que, sem dúvida, tem um importante potencial educativo.


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Uma conversa sobre Santo Forte Cláudia Mesquita* Ruben Caixeta de Queiroz**

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anto Forte abriu o terceiro forumdoc.bh, em 1999. Estávamos na organização e fomos muito marcados por aquela sessão, com a presença de Eduardo Coutinho e o comentário de Pierre Sanchis. Com sua forma rigorosa e mínima, centrada nas narrativas dos personagens sobre suas experiências religiosas, o filme lançava outro olhar sobre a religiosidade popular no Brasil, revelando-nos a riqueza espiritual e imaginativa de 1 1 moradores de Vila Parque da Cidade, comunidade na zona sul do Rio de Janeiro, em fins do século XX. De lá para cá, reencontramos Santo Forte muitas vezes, e as indagações em torno do filme se renovaram. A conversa que se segue teve como ponto de partida o debate que estabelecemos através de dois artigos: “Inventar para sugerir – notas sobre Santo Forte” (Cláudia Mesquita. Revista Devires v. 5, n.2, 2008) e “Santo forte: uma perspectiva antropológica sobre a invenção do cinema e da religião” (Ruben Caixeta. Cinema em livro – Eduardo Coutinho. 7 Letras, 2017). Cláudia Mesquita (CM) – Santo Forte está inserido numa mostra mais ampla (Ebó Ejé – cinema

e religiões afro-brasileiras). Pelo que notei, muitos trabalhos se dedicam a uma casa, um terreiro, um ritual – mesmo que realizem, a partir desse recorte, um ensaio mais abrangente sobre aspectos daquela manifestação religiosa. Os filmados aparecem então como personagens de rituais ou de manifestações. Uma das coisas que argumento na tese1 é de que há em Santo Forte uma identificação total entre personagem e narrador. Os filmados são personagens de suas próprias histórias. Coutinho se recusa a filmar rituais, locais de culto, tudo é registrado no espaço da casa, concede-se muita autonomia para que os filmados narrem suas próprias vivências. Ao propor essa forma, acredito que o filme dê a ver uma faceta da experiência popular religiosa no Brasil menos conhecida, mais inédita, pelo menos no cinema: aquela de uma religiosidade doméstica, da apropriação de diferentes referências pelos praticantes, essa maneira muito livre de se relacionar com diversos repertórios religiosos que percebemos nas narrativas dos 1 1 personagens. Ao mesmo tempo, nota-se um claro protagonismo da umbanda nessa composição.

*Professora da UFMG, onde integra o grupo de pesquisa Poéticas da Experiência. Co-autora, com Consuelo Lins, do livro Filmar o real – sobre o documentário brasileiro contemporâneo, e organizadora, com Maria Campaña Ramia, de El otro cine de Eduardo Coutinho (Equador). **Antropólogo e professor da UFMG. Pesquisador do CNPq. Foi um dos fundadores do forumdoc.bh. Pesquisa junto aos povos indígenas das Guianas desde 1994. Trabalha nas áreas de etnologia, Amazônia, filmes documentários e etnográficos. 1. “Deus está no particular – representações da experiência religiosa no documentário brasileiro contemporâneo” (orientação: Ismail Xavier), defendida na ECA-USP em 2006.


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Será que Coutinho, ao escolher essa forma baseada quase exclusivamente no registro de atos de fala, de performances verbais, estaria revelando algo pouco apresentado no cinema brasileiro que se voltou para as manifestações religiosas afrodescendentes? O que você acha? Ruben Caixeta (RC) – Acho que sim. O filme é de 1999, foi lançado há quase 20 anos. Naquele momento, pensando retrospectivamente, Santo Forte representou uma grande novidade, do ponto de vista da linguagem inclusive. E acredito que Coutinho tinha consciência de que fazia uma coisa nova. O cinema da fala, baseado no encontro com o filmado e no diálogo, já existia, é claro, mesmo no trabalho de Coutinho, mas esse filme radicaliza essa proposta. Ele vai aprofundar o dispositivo do encontro, da escuta, da conversa, saindo inclusive do espaço público... em filmes sobre religião, em que comumente aparecia a igreja, o terreiro, o templo, esse movimento é novo. CM – Contrasta muito com Fé, de Ricardo Dias, lançado no mesmo ano: um filme todo voltado para o registro de manifestações coletivas, que por vezes envolvem centenas de pessoas, em amplos espaços... RC – Sim, acho que há mesmo uma crítica de Coutinho, um esforço para oferecer um contraponto à “religiosidade do brasileiro”, tal como ressaltada em um filme como Fé: sincrética, diversificada, pública... Muitos filmes sobre religião no Brasil acabam tendo como ponto de partida a crítica a uma forma religiosa, às religiões evangélicas, por exemplo. Mesmo o catolicismo era visto no cinema com desconfiança. Tem muito filme sobre o seu papel negativo na dominação, na manutenção do status quo, o sacerdote como alguém a serviço das classes dominantes... Inclusive nas ficções. Aquela visão

marxista: as massas sendo manipuladas pelos grandes sistemas, sejam midiáticos, sejam religiosos. Já na década de 80, há um olhar mais atentivo, sobretudo para as religiosidades afro. CM – Sim, antes até: Iaô (Geraldo Sarno), por exemplo, é de 1974. Nele já encontramos uma relação muito respeitosa, de proximidade e adesão ao que se dá no terreiro de Mãe Filhinha, destacando inclusive o que há de resistência política naquela experiência... A propósito disso, inclusive, tanto Jean-Claude Bernardet como Ismail Xavier vão identificar um movimento de “antropologização do discurso” no cinema brasileiro. No trabalho de Geraldo Sarno a gente percebe isso com nitidez: na passagem entre Viramundo (1964) e Iaô (1974). No primeiro ainda se nota uma postura bastante crítica, mesmo que haja diferenças no trato com a umbanda e com o pentecostalismo. Ainda assim, religião é tomada em bloco como lugar de alienação, de desembocadura da experiência difícil dos migrantes, da dificuldade para se inserirem na vida urbana etc. RC – Já Coutinho é outra postura. Não há, em Santo Forte, visão ou julgamento prévios. Ele vai revelar como as religiões são vividas pelas pessoas em sua experiência particular, sem colocá-las dentro de quadros e esquemas totalizantes, em blocos religiosos prévios... Não tenho o material bruto para verificar quais seriam os possíveis entrevistados (compilados pela pesquisa), mas Coutinho dizia claramente que não estava interessado em montar uma amostragem representativa, mas que escolhia cada personagem pela performance narrativa, pela capacidade de contar bem suas histórias. CM – Tanto que só tem uma evangélica declarada... num filme feito no Rio de Janeiro, cidade


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mais evangélica do Brasil, onde mais de uma igreja foram criadas por dia útil, segundo o famoso Censo Evangélico do ISER (Instituto de Estudos da Religião) de 1992. E o protagonismo no filme é claramente da umbanda. Não sei se é especular demais, mas parece haver uma relação entre essas escolhas fílmicas (“quero ter bons narradores”) e o fato de que a maioria dos 1 1 personagens não frequenta mais igrejas, espaços de culto, rituais públicos... Não que sejam “sem religião”, longe disso! A comunicação se dá em casa. Será que é só uma coincidência? Entre a escolha de bons narradores e aquilo que o filme acaba por revelar em termos de experiência? Já que Coutinho parece menos interessado “na religião” – nessa ou naquela manifestação, com suas características específicas – do que em como as pessoas atribuem sentido a suas vidas, como se explicam e se imaginam, valendo-se de um repertório espiritual. RC – Há uma escolha por fazer um filme no qual o que importa é não só como os personagens vivem a religião em suas vidas particulares, mas como transmitem essa experiência para Coutinho e para os espectadores – o diretor como mediador entre os filmados e nós. Nesse sentido, ele não quer romper totalmente com a reportagem... CM – Coisa que ele assumia, aliás: “meu sonho é fazer da reportagem uma das belas artes”. Radicalizar o uso da entrevista, a aposta na palavra falada. Com essa opção quase exclusiva, Coutinho revela aspectos que um filme voltado para o cotidiano, ou que se concentrasse na etnografia de uma casa, por exemplo, possivelmente não abarcaria. Por exemplo, a memória de experiências passadas. Ou a imaginação. E

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tem também o que você falou: o “construir-se” como personagem para o público potencial que a presença da equipe antecipa, construção que tem uma dimensão estética, como diria Ismail Xavier. Produzir uma imagem de si que, no caso das mulheres (Dona Thereza, Quinha), corresponde também à afirmação de valor moral e protagonismo no cotidiano: “criei sozinha filhos e netos, porque meu marido era uma praga” (Dona Thereza). RC – Tudo isso requer um tempo de escuta. É preciso retirar a pessoa do cotidiano e lhe dar o tempo de fabular... Coutinho cria com seu cinema um tempo para que o filmado possa se imaginar e imaginar como ele quer ser visto pelo espectador. É como se a pessoa se colocasse “dentro do filme”. Enquanto o cinema observacional busca exatamente o oposto: captar a pessoa antes do momento em que o filme se instaura. Na medida do possível, claro. Sobre a memória, há maneiras diversas de se trabalhar. Penso em documentários clássicos, como os de Rouch e Perrault. Coutinho se distingue por propor uma cena “interna”, mais controlada. Um cinema mais “interior”, tanto no sentido espacial como no da religiosidade, tal como ela é vivida e narrada pelos personagens. Santo Forte inova ao filmar a religião... algo que é muito difícil de fazer, aliás. No campo da antropologia hoje até o conceito de religião é questionado. Exatamente pela pretensão totalizante que carrega. Não há “uma religião”, há religiosidades que são muito diferentes e diferentemente vividas. CM – Vamos falar de nossa polêmica? (risos). O meu artigo sobre Santo Forte2 sugere, segundo a sua leitura, um reforço da velha dicotomia weberiana entre indivíduo e sociedade. Que

2. “Inventar para sugerir – notas sobre Santo Forte” (Revista Devires v. 5, n.2, jul/dez 2008)


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você identifica, sobretudo, numa citação de Reginaldo Prandi, que uso para fundamentar a ideia de “bricolagem”. As histórias das vivências religiosas são narradas em Santo Forte com o recurso a uma composição de muitas referências e práticas. Dona Thereza não incorpora mas vê a Vovó Cambina... A visagem do catolicismo popular aparece combinada com o repertório da umbanda, e com histórias de reencarnação típicas do espiritismo “linha branca” frequentado pelos patrões da personagem: “ Vivi uma vida na Antiguidade, estou pagando os pecados da rainha”. Enfim: um repertório narrativo “compósito”, e que eu tentava caracterizar com a noção de “bricolagem”, puxada do Reginaldo Prandi. Eu cito um trecho do autor em nota de rodapé: “A construção de sistemas de significação depende cada vez mais da vontade de grupos e indivíduos. No limite, cada indivíduo pode ter o seu particular modelo de religiosidade independente dos grandes sistemas religiosos totalizadores que marcaram até bem pouco a história da humanidade. (...) Os deuses tribais africanos adotados na metrópole não são mais os deuses da tribo. São deuses de uma civilização em que o sentido da religião e da magia passou a depender sobretudo do estilo de subjetividade que o homem, em grupo ou solitariamente, escolhe para si”.3 RC – Eu acho muito weberiano isso! (risos) CM – Mas veja só: no mesmo artigo, tento descrever o “dialogismo” do filme. A ideia de que, a partir de conversas com Coutinho, as pessoas

narram outras conversas que tiveram. Ou seja, as histórias são quase sempre narradas na forma de diálogos (“aí eu disse, aí ela disse”...). Essa relação conversante com o mundo se afasta da proposta de uma “individualização” radical da experiência que a citação de Prandi faz supor. Veja essa outra citação que trago no texto, de Michel de Certeau, que também fala em “bricolagem”. O trecho é sobre a “arte da conversa” (uma das artes do fazer, das práticas de apropriação e engenhosidade dos pobres, segundo o autor). Eu cito: “As retóricas da conversa ordinária são práticas transformadoras de situações de palavra, de produções verbais onde o entrelaçamento de posições locutoras instaura um tecido oral sem proprietários individuais, as criações de uma comunicação que não pertence a ninguém”.4 Bonito não é? Os narradores no filme incorporam diferentes posições nas histórias que narram, fazem diferentes papéis, constroem-se na interação com outros. Mas enfim: a partir da crítica à interpretação de que o filme manifestaria uma “individualização” da experiência religiosa, você escreve (em seu artigo5) que, diferente disso, Santo Forte fortaleceria outra concepção de pessoa e de sociedade. Nem sincretismo nem manipulação da religião segundo interesses individuais. Seria algo mais próximo da concepção de “pessoa compósita e dividual”. Eu te cito: “Uma pessoa ora pode ser católica, ora umbandista, tal qual para os Gimi ora pode ser masculina, ora feminina”. Você lembrava, a propósito, de Quinha, personagem de Santo Forte: “hoje eu acordei macho, um dia eu amanheço homem, outro dia mulher”. Você transpõe a discussão de gênero – tal como faz Marilyn

3. A realidade social da religiões no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1996. 4. A invenção do cotidiano 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. 5. “Santo forte: uma perspectiva antropológica sobre a invenção do cinema e da religião” (Ruben Caixeta. Cinema em livro – Eduardo Coutinho. Org. Eliska Altman e Tatiana Bacal. 7 Letras, 2017).


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Strathern para o povo Gimi6 – para a vivência da religiosidade pelos filmados em Vila Parque da Cidade. Poderia explicar? RC – A leitura do Prandi é muito weberiana, muito colada em nossa ontologia ocidental de oposição entre indivíduo e sociedade. Primeiro o indivíduo, depois a sociedade – ela seria um somatório dos indivíduos. E o ideal seria chegarmos ao momento em que a sociedade não fosse mais essa entidade onipresente e dominante – e o indivíduo não existisse a não ser para reiterá-la. A visão muito crítica à religião, presente em Marx ou em Weber, se deve a isso: ela é tomada como caso limite da sociedade organicamente constituída, os indivíduos seguindo aquilo que o dogma religioso lhes impõe. Mas há, sobretudo em Weber, a ideia de que a religião vai deixar aos poucos de ter essa dimensão totalizante e, mesmo que ela exista como entidade total, os indivíduos vão viver suas experiências religiosas de acordo com as particularidades de cada lugar, contexto etc. É a perspectiva otimista. O que ressalta para mim, em Santo Forte, é outra coisa: uma concepção de sociedade, ou da relação indivíduo sociedade, que se aproxima mais dos melanesianos do que dos ocidentais. As pessoas não têm problemas em viver, e em compor internamente, diferentes narrativas – o que tem a ver com a experiência religiosa efetivamente. Só que para a nossa sociedade isso não é bem visto, se pensarmos na ideologia, nos valores hegemônicos: temos que ser ou isso ou aquilo. Ou homem ou mulher. Ou umbandista ou evangélico. Se você mistura as coisas é porque ainda não compreendeu muito bem. Você está num limbo confuso, meio anárquico. O ideal é separar melhor, embora na prática isso não aconteça. A gente sabe que, nalgumas

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igrejas evangélicas, apesar do discurso de ódio, toda uma experiência e todo um repertório da umbanda estão presentes. Mas o discurso é: ser evangélico é tudo menos ser umbandista. Enquanto os personagens de Santo Forte nos aparecem muito mais como pessoas compósitas e dividuais, que vivem bem essa composição heteróclita de diferenças. CM – O que é “dividual”? RC – É um termo criado por Marilyn Strathern como alternativa conceitual ao “individual”. Da mesma forma como ela propõe “socialidade” no lugar de “sociedade”. O que existem são relações, sempre atualizadas a partir do momento em que duas pessoas interagem. Parece com a citação que você trouxe do Certeau. Enquanto para nós os indivíduos compõem o todo que é a sociedade. Aí tem toda uma discussão: o que vem antes, o indivíduo ou a sociedade? Mas Marilyn Strathern nos diz que essa questão não precisa ser colocada. Toda relação social é contextual. “Divíduo” é uma alternativa conceitual, mas que vem junto com a noção de “pessoa compósita”. O “indivíduo” são vários indivíduos. O todo (sociedade) não é feito de partes... Ou melhor, uma parte pode ser um todo. A propósito, tem dois conceitos importantes na obra de Roy Wagner: “convencionalização” e “diferenciação”. A ideia é a seguinte: nós vivemos sempre a partir de uma dada convenção, um conjunto de regras, normas, valores etc. A gente não inventa isso a cada momento. Ele está pensando na cultura como fenômeno simbólico: na linguagem, nas performances rituais... Quando você as atualiza na prática, faz uma torção na convenção. Qualquer atualização é uma invenção. Você não

6. STRATHERN, Marilyn. O gênero da dádiva: problemas com as mulheres e problemas com a sociedade na Melanésia. Campinas: Editora Unicamp, 2006.


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inventa do nada, mas a invenção é uma atualização e uma diferenciação. CM – Mal apropriando, então, Santo Forte seria um filme de “diferenciações” explícitas? RC – Acho que sim. Coutinho podia não ter isso na cabeça, nesses termos, mas o filme é possível porque essas pessoas são múltiplas, são compósitas. A pessoa compósita tem várias dentro dela. Em uma situação particular ela pode ser uma daquelas, mas isso não a define o tempo todo. Depende da relação em que você está colocado. CM – Ainda não falamos sobre os “vazios” e as imagens de entidades, planos em Santo Forte que fogem da ênfase quase exclusiva em atos de fala. Eu acho que, com as estatuetas, o filme marca a sugestão de que há um plano espiritual compartilhado pelos personagens. Isso apesar de ser um filme totalmente na contramão do dito “documentário sociológico”. Coutinho é da geração do cinema novo e dizia pretender fazer algo diferente do que marcou a concepção de sua geração sobre a religiosidade popular, como você já notou... Ele não queria voz narradora, sequências temáticas, nada que antecipasse para o espectador conclusões mais gerais sobre a religiosidade popular naquela localidade. A despeito disso, o que é paradoxal, Santo Forte não deixa de ser um filme interpretativo, que oferece um diagnóstico de certas tendências da experiência religiosa, tal como vividas naquele momento, naquele lugar. Mesmo com sua aposta radical nas cenas individuais: cada personagem é uma sequência no filme, um tempo, um espaço,

um universo à parte... Acredito que os planos das estatuetas ajudem nessa costura sutil entre os diferentes narradores: eles vão pontuando o protagonismo da umbanda nas narrativas, sugerindo um plano espiritual compartilhado. Já os vazios... Coutinho dizia que não gostaria de mostrar o que não se pode ver. E que, mesmo que ele filmasse alguém incorporando uma entidade num ritual, o mistério da comunicação religiosa não seria apreensível. Ele propunha trabalhar com “vazios” (planos fixos, filmados em espaços da casa dos personagens, sem presença humana) para que o espectador acionasse suas referências e imaginasse. E talvez os vazios acabem por participar da figuração da experiência religiosa, tal como o filme a retrata (a partir das narrativas dos personagens): no espaço da casa, no tempo do cotidiano, sem espaço especial de culto para que as relações e as trocas se deem. RC – Sim, em vez do altar, do espaço coletivo de culto, imagens de cômodos, de quartos: reduto do segredo, da intimidade, da crença talvez... Os planos funcionam também como transição, passagem entre partes, expediente recorrente em qualquer cinema. Para mim eles são um ponto forte. Num filme todo falado, provocam desconforto, funcionam como quebra de expectativa, como paragem para reflexão, questionamento do que o espectador está vendo. Eles cortam as palavras, atuam como “vazio” de linguagem também. Me lembro de uma passagem d’A invenção da cultura, de Roy Wagner, sobre o pintor flamengo Pieter Bruegel (1525-1569), o velho.7 Ele tem telas que reproduzem passagens da Bíblia. Mas essas passagens são retratadas em cenários flamengos,

7. “Os povoados bíblicos retratados em O recenseamento em Belém e O massacre dos inocentes, pinturas de Bruegel, são comunidades flamengas da época em todos os aspectos. Os eventos em si, a chegada de Maria e José a Belém para o censo e o intento dos soldados de Herodes de assassinar o menino Jesus, podem ser reconhecidos nos quadros: Maria veste um manto azul e está montada num burrico; José carrega uma serra de carpinteiro; um censo está sendo realizado; os soldados estão assediando o populacho e assim por diante. No entanto, a aldeia


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são adaptadas ao contexto do pintor. Roy Wagner recorre a esse exemplo para ilustrar a impossibilidade de se descrever ou narrar qualquer coisa apenas com elementos do contexto originário. Quando você conta uma história para alguém que não viveu o mesmo que você, há um esforço para que o ouvinte compreenda, e isso implica em mobilizar elementos da vida dele. Fico imaginando que os vazios sugerem algo da ordem do invisível. Como fazer isso com o cinema, essa linguagem baseada na visão, na imagem? As estatuetas da umbanda têm o sentido de evocar algo que não está lá: são mediadoras de uma divindade. Planos para retratar o que não está presente, mas que o espectador deve construir para si, assim como o crente de uma religião constrói uma religiosidade para si a partir do que é convencionado. CM – Será que Coutinho alcança com o filme também uma reflexão sobre a imagem? RC – Acho que é um filme que quebra, sobretudo, com a ideia de que a religião “domina” os indivíduos. Mas talvez sim: um filme que nos permite pensar o que é a imagem... Todo filme documentário, sendo ou não sobre religião, fala de algo que não está mais ali. Nesse ato de atualizar o que não está mais presente, algo se perde. É sempre um ato criativo, nos termos de Roy Wagner. Fico pensando se podemos pensar na crença ou na experiência religiosa como algo análogo à crença na imagem.

está coberta de neve em ambas as cenas, as pessoas se vestem como camponeses setentrionais, e os telhados altos e íngremes, as árvores podadas e a própria paisagem são típicas dos Países Baixos. Todos esses detalhes serviram para tornar familiares os eventos da Bíblia, torná-los críveis e reconhecíveis à sua audiência – e Bruegel, se pressionado, poderia ter “explicado” seus esforços nessas bases.” (In: WAGNER, Roy. A invenção da cultura. Cosac Naify, 2010, p. 44).


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No rastro do outro: o sagrado e o cinematográfico César Guimarães* Ele é um caboclo bruto lá do fundo do grotão oi tira a pemba, risca o ponto vem salvar seus irmão oi tira a pemba, risca o ponto vem salvar nossa nação (ponto de Umbanda cantado por Maria Luiza Marcelina, Zeladora do Centro Espírita Caboclo Pena Branca, em Ubá, MG)

N

o universo das religiões afro-brasileiras, as referências aos caboclos e pretos velhos são elaborações complexas da experiência histórica, dos modos de viver e de pensar dos povos indígenas e afrodescendentes. Essas experiências são marcadas tanto pela violência extrema que guiou o apagamento sistemático das formas de vida e dos saberes dos afro-brasileiros e dos ameríndios (como testemunham a escravidão e o genocídio indígena), quanto pela invenção de um potente imaginário político e poético que sustenta as lutas e os ideais de emancipação concebidos por esses povos. Em

uma das aulas dadas por Maria Luiza Marcelino no curso "Confluências quilombolas contra a colonização", ela se dirigiu aos professores e alunos então reunidos em torno das questões quilombolas e nos lançou as seguintes palavras: “vocês, que acabaram com nós, agora tem que nos ressuscitar”.1 Ficamos em silêncio, estupefatos. Em seguida, como que devolvendo aos brancos a língua que um dia eles extirparam dos negros, ela cantou este ponto: “Era um caboclo bruto/ lá do fundo do grotão/oi tira a pemba, risca o ponto/vem salvar nossa nação”. Para Maria Luiza, os caboclos e os pretos velhos não apenas nos interpelam para saldar uma dívida histórica com o seu povo: eles nos escolheram e nos atraíram para uma luta que busca ressuscitar a terra, devolvendo-lhe a fertilidade, e a nós também. O trabalho de cura promovido pelos pretos velhos e caboclos é, simultaneamente, um processo de cura das nossas relações sociais adoecidas, machucadas. Lembremos daquele quadro de Abdias do Nascimento, intitulado Okê Oxossi, no qual a bandeira brasileira, disposta na posição vertical, é cortada

*Professor Titular da FAFICH-UFMG, pesquisador do CNPq e editor da revista Devires – Cinema e Humanidades. 1. Implantado na UFMG em 2014, em parceria com o INCT de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa, coordenado pelo prof. José Jorge de Carvalho, da UnB, Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais busca introduzir, na universidade, o contato com outras lógicas cognitivas baseadas em conhecimentos não-escolares e não-eurocêntricos (gerados conforme outras modalidades de produção, transmissão e transformação). Para tanto, propõe-se um diálogo simétrico entre os saberes de matrizes indígenas, afrodescendentes e populares com a produção do conhecimento científico e artístico em diversas áreas de conhecimento deles decorrentes. (cf. www.saberestradicionais.org).


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e puxada para cima pela flecha de Oxossi (que nunca cai!) e tem seu lema positivista (Ordem e Progresso) substituído pela saudação iorubá Okê. A nação dos caboclos – a despeito das cores verde e amarela – não se identifica nem com a Pátria Mãe nem com o Estado brasileiro. A cada vez que um encantado ou um caboclo é invocado, é uma nação inteira que é chamada, e não apenas um indivíduo, como enfatizou o Cacique Babau (liderança tupinambá da Serra do Padeiro) em recente aula na UFMG.2 Centenas e centenas são os nomes dos caboclos e das caboclas: Tupinambá, Mata Bruta, Treme Terra, Ubirajara, Boca da Mata, Cobra Coral, Jurema, Jacira, Irani, Iracema, Ayrumã, Iaciara, Estrela do Mar e mais tantos e tantos outros... Os caboclos são o nome do múltiplo, inumeráveis. Na Umbanda – em contraste com o Candomblé – o autor de um canto transpõe “termos de um domínio da experiência, que seria o domínio secular, para o domínio espiritual, transformando imagens ou termos profanos em metáforas do sagrado” (CARVALHO, 2006, p. 272). Ao falar das entidades com os termos que se utiliza para falar dos homens, os pontos cantados operam uma transfiguração complexa de certos componentes da experiência histórica em meios para o contato com os pretos velhos e os caboclos. À maneira de poemas guiados pela fabulação, os pontos permitem que a experiência traumática do genocídio que atingiu os povos pretos e indígenas seja recontada sob outro prisma, como o faz Maria Luiza Marcelino. Ela se vê “nas mãos desses espíritos” que, por sua vez, nos fizeram de instrumentos para ressuscitar a terra. Para ela, quando os indígenas tiveram suas terras roubadas pelos brancos, “os caboclos ficaram flutuando, perdidos, entristecidos”, e

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foram os povos quilombolas que os acolheram. Tal como aqueles, estes também sabiam plantar, cuidar da terra, curar os doentes e tratar dos que sofriam. Trazer a vida de volta à terra, curando-a, é a tarefa para qual os caboclos nos convocam – ela afirma. Não por coincidência, na cerimônia de abertura do Programa de Formação dos Saberes Tradicionais da UFMG, em 17 de setembro deste ano, Dona Maria da Glória de Jesus, liderança tupinambá da Serra do Padeiro, abriu o evento cantando para o caboclo lavriano (que trabalhava nas lavras de ouro), em homenagem a Minas Gerais: “Caboclo, tu vem pra mina/Pra serra do Palmeiral/Eu venho pra terra de conde/Aldeia de Oxalá”. Como vemos em Tupinambá – o retorno da terra (2015), de Daniela Alarcon, em suas inúmeras batalhas contra fazendeiros, pistoleiros, Polícia Federal e até o Exército Brasileiro, os tupinambás sempre contaram com a ajuda e a sabedoria dos seus Encantados, que lhes dão continuamente forças para protegerem a terra (são eles os seus verdadeiros donos, junto com os ancestrais, como afirma Glicéria Jesus da Silva). Em um desses ataques, inclusive, seu Lírio, o pajé, recebeu o caboclo lavriano, que na ocasião lhe deu orientações para que seu povo resistisse aos ataques. Aconselhados pelos Encantados, durante muitas gerações os tupinambás aguardaram – estrategicamente recuados – para lançar uma luta mais determinada e potente contra seus inimigos a partir de 2000, como disse o Cacique Babau. Com o retorno da terra às mãos de seus verdadeiros donos, também retornaram os pássaros (curió, chororão, jacupemba) e muitos outros animais, que agora se avizinham das casas. Até mesmo os Encantados voltaram a percorrer

2. Embora os tupinambá – assim como outros povos indígenas – se sirvam do termo Caboclo em seus cantos (tal como na tradição religiosa afro-brasileira), para eles os encantados são espíritos vivos, e não espíritos de mortos.


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os matos à noite, em forma de luzes que vão de um lado a outro da serra, como diz Gildete de Oliveira Barbosa Santos, também no filme de Daniela Alarcon. Da locas de pedra escondidas no meio da serra aos riachos onde mora a Mãe D’água, os caboclos nunca deixaram de coexistir com os humanos. Enfrentando aquela “mó desumanizadora” que veio “moendo as gentes” e destruindo as culturas ameríndias e afrodescendentes (RIBEIRO, 2015, p. 89), uma rede de referências – que cruza e mistura componentes da experiência histórica, da cosmologia e da geografia humana – garantiu uma constelação de contatos entre esses povos que lhes permitiram manter uma memória coletiva na qual se forja tanto uma vinculação com a ancestralidade quanto uma poderosa imaginação política que lhes fornece instrumentos de luta e de resistência no presente. Essa episteme governada pelo múltiplo – como múltiplas são as figuras dos caboclos – dispõe de modos de sentir e de crer – firmados no canto e na dança –, que descortinam para nós novos modelos de conhecimento: os saberes de um mundo outro, que não abandonou os liames entre a terra e o céu, os homens, os animais, as entidades, a mata, os rios, os espíritos, as árvores, as divindades e as plantas. Quando o caboclo chega, quando sua nação se faz presente, sua aparição no ritual traz a tensa energia da corda de um arco retesado, como vemos em Espaço Sagrado (1975), o filme que resultou da primeira visita que o cineasta Geraldo Sarno fez ao terreiro de Dona Filhinha, o Ilê Axé Itaylê, em Cachoeira, no Recôncavo baiano. Com o intuito de “documentar o espaço sagrado de um candomblé típico do Recôncavo Baiano”, e reconhecendo seu caráter introdutório diante do tema (vivenciado muito recentemente), o filme é governado por uma estrutura dual: os espaços são descritos visualmente,

acompanhados pela explicação do narrador (em voz over), enquanto as ações ritualísticas nas quais se sobressai a dimensão sensível do evento filmado (danças, cantos, toques de atabaques, gestualidades) são filmadas com som direto, e o comentário explicativo é suspenso em certos momentos (sobretudo quando se acompanha o ritual realizado em uma das moradas de Iemanjá no rio Paraguaçu). Após o belo plano-sequência (em preto-e-branco) da abertura, com a câmera se movendo suavemente para a esquerda, dando a ver, pouco a pouco, as casas, as ruelas, as crianças que brincam e as pessoas na calçada, e em obediência à explicação do narrador que menciona as duas linhas que presidem os cultos ali realizados (a dos orixás iorubás e a dos caboclos), a montagem estabelece um contraste entre os diferentes espaços (físicos e simbólicos) do terreiro. Situada no interior do barracão onde são celebradas as festas públicas, a câmera mostra primeiro o espaço dedicado aos assentos dos orixás (e em especial, de Iemanjá) e, em seguida, o do caboclo Tumba Junsara. Em um movimento descendente (em conformidade com o orixá da terra), exibe-se o pé de cajá, dedicado a Obaluaê, e logo em seguida, o oiti, árvore do caboclo Tumba Junsara (dois planos, um do interior do terreiro e outro do exterior percorrem o tronco, que atravessa o telhado, e acompanham os galhos que sobem para o céu). Entre o espaço urbano e o mato, colocando-os em comunicação, encontra-se o juá, árvore de Exu. De maneira similar, coloca-se em paralelo duas cenas ritualísticas. Na primeira, Mãe Filhinha, a Ialorixá, dança em roda, acompanhada por algumas mulheres, ao som dos atabaques e do canto. Na segunda cena ela surge incorporada no caboclo Tumba Junsara, cuja aparição é regida por uma pequena operação de montagem. Mostra-se inicialmente uma coluna na qual lemos


a inscrição, pintada à mão: “Tumba Junsara. Rei dos astres”. Em seguida, um plano próximo exibe o desenho do caboclo, pintado na parede, atrás e acima dos atabaques: perna firmemente apoiada na rocha, seus braços ainda guardam o esforço de retesar a corda do arco, tendo lançado a flecha. Na verdade, jamais veremos o verdadeiro alvo dessa flecha, situado em um fora-de-campo que nunca será apanhado pelas bordas do quadro cinematográfico, por mais que elas avancem, como bem sabe aquele canto que diz: “Ele atirou/ Ele atirou, ninguém viu/Só seu Flecheiro é quem sabe/aonde a flecha caiu”. Numa decupagem simples, o desenho é recortado e mostra-se parte da rocha, duas serpentes (uma delas trespassada pela flecha) e o sol. O plano seguinte reúne o caboclo e seu arco, a flecha disparada, as duas serpentes, o sol e os enfeites que pedem do teto. Em seguida mostra-se o seu assentamento, a pedra no centro do peji. Só então surge

o caboclo: dedo imitando o gesto do arqueiro, olhos apertados para melhor mirar, destinados a nós, espectadores, mas donos de um olhar que nos atinge e vai além de nós. Se os filmes podem se avizinhar desse microcosmo que não cessa de manter diversas relações de troca com o cosmo, será à maneira de um limiar em que adentramos sem nunca saber se estamos na distância justa: perto ou longe demais, dentro ou fora. Um limiar não é algo que se ultrapassa, mas um espaço e um tempo que experimentamos – imersos em um não-saber – e cuja circularidade vem complicar a operação de enquadramento: o que escolhemos ver, o que deixamos de fora? Como recortar em bordas o que é de natureza circular? (Pergunta que Pai Ricardo de Moura, Zelador da Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente, no bairro Lagoinha, em Belo Horizonte, fazia sempre aos alunos e professores do curso “Catar Folhas: Saberes e Fazeres


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do Povo de Axé”, na UFMG). Como dividir em unidades descontínuas um tempo que dura e volta, em ciclos, em ondas, em repetições que instauram, a cada retorno, uma diferença? Pouco vemos, pouco sabemos. Sabemos por partes, vemos somente parcelas. E no entanto, temos o corpo inteiro, os olhos e os ouvidos envolvidos por um todo indivisível. Por ocasião da filmagem da festa de caboclo no terreiro de Mãe Efigênia (Mametu Muiandê), outra mestra que atuou no curso “Catar Folhas: Saberes e Fazeres do Povo de Axé”, presenciamos como o dispositivo do cinema é desafiado a compor a cena fílmica de outro modo, diante da aparição das entidades. Havíamos combinado com Makota Kidoiale (filha de Mãe Efigênia) de não filmar a incorporação, cientes dos muitos embaraços e decepções que esse tipo de registro já causou aos povos de terreiro. Estávamos na cozinha, filmando a preparação da comida quando, de súbito, as pessoas que ali trabalhavam “viraram no santo”. Imediatamente, os estudantes que filmavam desviaram o foco da câmera para o chão. Mais tarde, quando olhamos esse registro interrompido, notamos que, antes da incorporação dos que preparavam a comida, os tambores e cantos já soavam no fora-de-campo, pois o caboclo Ubirajara acabara de chegar na sua cabana, do outro lado do terreiro. Os ajudantes da cozinha tinham sido chamados pelo Ubirajara, algo que só nos demos conta depois, atrasados. Na verdade, durante os preparativos da festa, os assobios dos caboclos já cortavam a cena filmada, enquanto nossos olhos, mediados pelo olho ciclópico da câmera, nada percebiam. Se um dos pontos cantados da Umbanda diz “pisa caboclo, no rastro do outro”, no momento da filmagem esse outro, ser de fuga, nos escapava. Embora o cinema nunca possa abandonar o enquadramento e a composição da

cena, podemos sonhar com uma maneira dele suspender – provisoriamente – suas medidas, e se deixar afetar por um canto – que não precisa de olhos abertos –, como este: Invocação a Sultão das Matas (Wally Salomão) Eu tava na boca da mata Eu vi a campa bater Ajoelhei, botei meu ouvido no chão Dei um grito e um assobio Na chegada de Sultão Sultão das Matas É É É Sultão das Matas É É Á Sultão das Matas É É É Sultão das Matas É É Á (Ponto de Candomblé de Caboclo em louvor de Sultão das Matas que Bidute me ensinou desde a infância em Jequié e nos auges da solidão e desespero recorro sempre a cantar de cor.)

Referências CARVALHO, José Jorge de. A tradição musical iorubá no Brasil. Um cristal que se oculta e se revela. In: TUGNY, Rosângela Pereira de; QUEIROZ, Ruben Caixeta de. Músicas africanas e indígenas no Brasil (org). Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. Rio de Janeiro: Global, 2015.


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“Tempo é o vento, vento é tempo”: montagem cósmica em Abá* André Brasil**

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frase que intitula o texto é de Makota Valdina Pinto, liderança do terreiro Nzo Onimboya, em Salvador: antes, ela ressaltava que, para a cultura bantu, o tempo é profundo, anterior ao humano: tempo, portanto, ancestral.1 Há muito a aprender com a formulação de Makota Valdina: ela sugere uma espécie de ontologia (ou melhor, uma pragmática) das passagens e das transmutações. Trata-se, em outros termos, de abrir caminhos: como passar do tempo ao vento e do vento ao tempo? Ou ainda do tempo antes do humano ao tempo humano, ao tempo com o humano (a história)? Como passar do vento ao tempo de modo que um se torne o outro sem deixar de ser um e outro? Não seria esta uma operação de montagem, operação, portanto e em alguma medida, cinematográfica? ^^^^^

Abá (1992) é um filme de Raquel Gerber e Cristina Amaral que, em sua poética concisão,

faz encontrar a tradição do cinema experimental àquela do documentário (o cine-transe de Jean Rouch, a fenomenologia do rosto em Aloysio Raulino, Andrea Tonacci e van der Keuken, a montagem disruptiva de Godard ou, em outros termos, de Arthur Omar; os longos planos que não apenas contemplam mas “respiram” com a natureza, em James Benning). A lista poderia se alongar, mas nenhuma dessas referências – de resto, não reivindicadas explicitamente por Gerber e Amaral – dariam conta de expor a singularidade de Abá, algo que se refere, acreditamos, à internalização pelo filme de certos fundamentos das afrorreligiões às quais se dedica e das quais retira não apenas seu tema, mas, principalmente, seu modus operandi. São imagens do transe que abrem o filme. Mais precisamente, elas se seguem a dois breves planos: o primeiro, a cartela com o nome do filme, como se traçado a giz (ou à pemba, lembrando, quem sabe, o ponto riscado dos terreiros). O segundo, o plano fixo do céu, algumas nuvens, o canto do pássaro. O azul do céu nos leva, em

*Esse texto não seria possível sem o minucioso relato sobre Abá, que me foi enviado por Raquel Gerber, a quem agradeço enormemente. Muitas das idéias aqui esboçadas surgiram de conversas – entre uma carona e outra – com Ewerton Belico. Agradeço a ele também a oportunidade de escrever sobre esse belo filme. A Junia Torres, Edgar Barbosa Neto, Amaranta Cesar e César Guimarães, sou grato pela leitura generosa do artigo. **Professor do Departamento de Comunicação Social da UFMG, onde integra o Grupo de Pesquisa Poéticas da Experiência e a equipe de editores da Revista Devires – Cinema e Humanidades. Participa da Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG. 1. Entrevista disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=P0ziJx0KWRE>.


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corte sêco, ao vestido também azul da pequena Iemanjá em transe. Segue-se, em planos curtos, uma sequência de mulheres em transe (a ausência do canto ou do toque do tambor desampara os corpos que

parecem flutuar no espaço). Diferentemente de certa tradição documentária do cine-transe (da qual, novamente, Jean Rouch é figura central), Abá não prepara o espectador para o que virá: nenhuma narração, nenhum contexto, nenhum plano-sequência a nos permitir adentrar, pouco a pouco, a experiência do ritual. Não se trata de expor ou explicar o transe, nem de entrar “em fase” com ele por meio do plano-sequência, mas sim de mostrar como, de um a outro plano, uma força invisível atravessa os corpos: o corte interrompe a ação, mas deixa passar a energia de uma imagem a outra, de um gesto a outro. Um novo plano do céu azul parece ampliar o “escopo” das passagens operadas pelo filme. Afinal, em sua relação com os corpos em transe, a natureza não é objeto de contemplação, nem faz “contexto” para o evento. Pensemos talvez em um atravessamento (ou uma vibração): para retomar os termos de Makota Valdina, o vento atravessa o tempo como o sopro de ar atravessa o corpo que respira. O corpo torna-se vento, na medida em que passa a respirar (ou a vibrar) com ele. O vento venta por meio do corpo do tempo. Os corpos em transe ventam, ondulam, voam, cintilam, adensam e se rarefazem; abrigam, em si, os elementos da natureza em torno. Abrigar o vento em seu corpo é o que permite ao pássaro voar: a música – o som do agogô, o atabaque rápido – só aparecerá agora sob planos dos pássaros-pescadores (aqueles que se insinuaram na banda sonora das seqüências anteriores?) a sobrevoar o mar e as montanhas de Praia Grande, em São Paulo, onde se realiza a festa de Iemanjá. Se antes era o azul que matizava as imagens, agora elas ganham coloração verde e marrom, a lembrar que “existe a terra que é terra”, como dirá Beatriz Nascimento em Orí (1989), filme anterior de Raquel Gerber. Corta-se então para a água límpida sobre as pedras, como


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se, em um movimento circular tácito, o céu tenha se tornado mar, em um câmbio súbito entre o que está em cima e o que está embaixo (como nos ensinou Ricardo de Moura, Pai Ricardo, em uma das aulas que ministrou no Curso Catar Folhas, na UFMG).2 Permanece o som dos atabaques. Da superfície cintilante da água (matéria originária de onde orixás – ou inquices – femininos retiram sua força vital) somos apresentados, por meio de uma fusão, à estatueta africana, deusa da fertilidade deitada sobre a pedra. O zoom in da câmera sublinha a gravidez e a linha em zig-zag que define seu corpo. Se, como sugere o célebre filme de Alain Resnais e Chris Marker, as estátuas também morrem (quando entram na “botânica da morte” da “cultura”), em Abá, a estátua do Museu Etnográfico e Etnológico da USP ganha vida, ao se reinserir no regime sensível de trocas e circulações produzido pelo filme.

2. Trata-se da disciplina Catar Folhas: saberes e fazeres do povo de axé, parte do Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG. A disciplina foi ministrada a alunas e alunos de graduação por Mãe Efigênia Maria da Conceição (Mametu Muiandê, do Quilombo Manzo Ngunzo Kaiango), Pedrina Lourdes dos Santos (Capitã da Guarda de Massambique de Nossa Senhora das Mercês), Nylsia Lourdes dos Santos (Iyanifa Ifadara, de Ilè Asé Asegún Itèsiwajú Aterosún) e Pai Ricardo de Moura (Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente).


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Iemanjá dança, agora, no terreiro de Angola Muchicongo – Ylê Xoroquê. As mãos recebem a energia dos orixás (inquices), amparam ciosamente os corpos. Novamente, o transe não se prolonga no plano-sequência, mas parece passar

de um corpo a outro por meio da montagem em planos breves. Mais do que a sucessão dos eventos ou a integralidade da performance, os planos fazem tocar as mãos, os corpos (e o sagrado), em uma montagem por contato; montagem tátil, em que o que se toca é tangível e intangível. A performance com o fogo e, em um corte, a chama luminosa parece rebater e refletir sobre a superfície do oceano. Mais uma vez, cintila a imagem, as mãos erguidas acolhem a energia que vem dos corpos e que vem da natureza, a luz do sol (a mesma que emana de Orí) ilumina as folhas de uma ramagem e, aqui, com muita intensidade (a ponto de estourar a imagem), a montagem por contato faz transitar luzes e reflexos. É esse trânsito de energia – nada transcendente, muito concreto, o invisível a circular pela matéria visível da imagem – que nos conduz a África: o mar, Atlântico-mãe, lugar da dialética, como nos diz Beatriz do Nascimento na bela cena de abertura de Orí: dialética transatlântica entre África e América, origem e diáspora. Em Abá, o corte é uma espécie de portal, a nos abrir outro mundo (que, ao mesmo tempo, nos soa tão próximo e afim). Estamos no Senegal – a entrada da África ocidental – precisamente nos povoados de Joal e Fadiouth: mãe e filha lavam o cereal à beira mar; ao longe, uma mulher carrega o cesto na cabeça; a câmera se aproxima dos rostos das crianças e recebe os olhares em retorno; outra mulher, o peixe enorme sobre a cabeça. Ela olha para a câmera, estreita os olhos diante da luz forte. Novamente, o céu: o mesmo, outro céu. Uma fusão, e o plano se estria, com o ziz-zag da tapeçaria de miçangas. Como se a costura das imagens pela montagem se explicitasse nesse desenho que encerra o filme. ^^^^^


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Abá é um cadinho do cosmos. O filme retira sua força, antes, da fenomenologia dos corpos em transe. Depois, da montagem, que chamaremos “cósmica”. Há algo ali que nos desconcerta: como a sensação de continuidade

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se preserva em uma montagem predominantemente disruptiva? De fato, em Abá, o corte abrupto, disruptivo, não apenas expõe o caráter deliberadamente artificial e construído do filme, acusando costuras,


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interstícios e distâncias entre as imagens, mas nos sugere também uma continuidade subterrânea que essas distâncias guardam: entre o céu, os corpos em transe, o vôo do pássaro, a estatueta africana, as montanhas, o oceano, as mulheres senegalesas, a geometria em zig-zag das miçangas, marca-se a heterogeneidade da composição. Mas, nos interstícios do heterogêneo, algo passa, marcando assim uma espécie de continuum. Esse o gesto paradoxal da montagem cósmica: o corte disruptivo não resulta em descontinuidade e, por sua vez, a continuidade apreendida no conjunto, não resulta em um todo orgânico. A montagem cósmica permite revelar a continuidade do descontínuo e a descontinuidade do contínuo (que surge, desaparece, adormece, ressurge inesperadamente para se religar ao heterogêneo de onde provém e para onde retorna sem cessar). E o que flui? Como nos disse Raquel Gerber, Abá dedica-se a um tema que não pôde ser abordado frontalmente em Orí: trata-se da força vital que circula de um a outro elemento da natureza, atravessa os corpos e irrompe no transe – “linguagem da memória” (para Beatriz Nascimento). Ela é o que une os povos da África e da diáspora e se materializa, de modos singulares, nas formas artísticas africanas. Como dirá Kabengele Munanga (2009), essa circulação da força vital manifesta-se de diversas maneiras, mas caracteriza ontologicamente a África. Em suma, ao se construir por meio de uma montagem cósmica (que reúne elementos díspares para revelar uma inaudita continuidade entre eles; que revela o contínuo sem obliterar que ele é constituído de descontinuidades), o filme de Raquel Gerber e Cristina Amaral parece conferir assim uma forma cinematográfica – breve, provisória, dinâmica – para o axé (ase) ou gunzo.

^^^^^ Orí – o longa de Raquel Gerber – dedica-se a investigar a presença histórica dessa força vital que liga os povos africanos e diaspóricos: essa historicidade materializa-se nas falas e nas reuniões políticas dos movimentos negros; no reggae de Gilberto Gil e no samba-funk da Banda Black Rio; nos bailes e nos desfiles de carnaval, nas danças e nos gestos. “O homem negro não será liberto, enquanto ele não esquecer, no gesto, que não é mais um cativo”, nos diz Beatriz Nascimento, sobre as imagens do baile black). Por isso, cabe ao filme distender, expandir, sublinhar e relacionar, diacrônica e sincronicamente, eventos distantes, em um trabalho amplo de explicação (ainda que não haja ali qualquer propósito explicitamente didático). Abá, por sua vez, nos parece um filme estrutural: ele concentra, em sua concisão poética, aquilo que em Orí se estendia como historicidade: a força vital de uma África profunda. Vale-se da poesia – sua depuração formal – para evidenciar a origem: subterrânea, emergencial, eventual, violenta ou sutil, ela permanece pulsando no presente dos corpos. O tempo ancestral como o tempo de hoje, diria Makota Valdina. Se essa é uma relação dialética, é porque a origem não se encontra exclusivamente no passado, mas na relação do passado com suas re-existências no presente: dialética transatlântica entre a África (ou as Áfricas) e as diásporas na América. Dialética que tem no mar sua imagem extensiva (histórica e geopolítica) e, no transe, sua imagem intensiva (somática, gestual). Mas esta é, antes de tudo, uma dialética que faz atravessar o cosmos pela história e a história pelo cosmos. É que, ao abrigar o tráfico de escravos e a rota da colonização, o espaço cósmico transatlântico – o mar – é atravessado pelo trauma histórico. A opressão


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e a violência necropolítica3 da escravização (ainda tão presente) encontra antítese na resistência (também presente) dos quilombos e dos terreiros: não seria a força vital o resultado dessa dialética? Resultado ao mesmo tempo cósmico e histórico que, latente, subterrâneo, irrompe no presente dos corpos e dos coletivos. Essa dialética será também estruturante em Abá e é ela que nos leva às imagens documentais no Senegal, revelando uma África presente, tão distante (geograficamente) e tão próxima (histórica, religiosa e culturalmente). De um pólo a outro da dialética – da origem à diáspora, da África as Américas – a relação não é linear, homogênea, nem cronológica, mas feita de coexistências, adormecimentos e reemergências. ^^^^^ Abá é uma forma cosmopolítica, condensa em sua montagem – como uma pequena rocha marítima incrustada de pedaços de outras pedras, conchas, ferragens e minúsculos seres viventes – relações humanas e não-humanas. Antes de tudo, a proposição cosmopolítica, tal como formulada por Isabelle Stengers (2018), nos exige reconhecer que “não estamos sós no mundo”,4 nos atentar às agências não-humanas com as quais coexistimos (os animais, as plantas, os orixás e inquices, os encantados); as dimensões visível e invisível por onde transitam. Em seguida, nos diz Stengers, tudo está relacionado, mas, ao mesmo tempo e paradoxalmente, esse vinculo precisa ser criado, constantemente reiterado e cuidado. Trata-se de um vínculo frágil e parcial entre o não-humano e o humano, entre natureza e história, que deve ser criado e que demanda, portanto, o trabalho de montagem. A

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montagem compõe e cuida dos heterogêneos. Ao fazê-lo, produz “eventos cósmicos” (Stengers, 2018): toma-se a natureza não como objeto (de conhecimento, pela ciência; de contemplação, pela arte; ou de propriedade, pela economia), mas sim como parte constituinte de relações no interior das quais possui agência. Em situações cosmopolíticas, a natureza (tomada, ela também, como sujeito) altera, por dentro, outros sujeitos com os quais se relaciona: o que, em Abá, produz essas alterações é o vento – força vital – que vem da África: o próprio tempo, capaz de ligar uma imagem à outra. O oceano, o transe. ^^^^^ Se nenhuma das referências cinematográficas masculinas do cinema experimental ou do documentário são suficientes para dizer do gesto de Raquel Gerber e Cristina Amaral em Abá, é porque o filme sugere - ou mesmo reivindica uma dimensão feminina desta força vital. Algo que Orí antecipa, dando à hipótese a historicidade dos quilombos. Afinal, nos diz Beatriz Nascimento naquele filme, cabia às mulheres nos quilombos dispor os alimentos na floresta. Com isso, cumpriam sua obrigação com o sagrado e com a história: faziam a oferenda aos orixás e alimentavam os negros fugidos. Sustentavam o cosmos e a fuga; a ancestralidade (anterior ao humano) e a história (entre os homens). Há, nesse sentido, certa afinidade com Juana Elbein dos Santos (penso sobretudo em Iyá Mi Agbá – mito e metomorfose das mães nagô, 1981). As três – Elbein, Gerber e Amaral – compõem uma parte não suficientemente reconhecida da história do cinema brasileiro: em seu trabalho de direção ou montagem, elas religam o

3. MBEMBE, Achille. Necropolítica, 2018. 4. Trata-se do livro de Tobie Nathan, prefaciado por Stengers, Nous ne sommes pás seuls au monde: les enjeux de l’ethnopsychiatrie, 2001.


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cinema ao cosmos, fazendo transitar nas imagens uma força, obliquamente, feminina. Poder de expansão, diria Elbein, “capaz não apenas de assegurar a continuidade física, mas de plantar e semear os modos e valores do egbe” (comunidades-terreiro).5 Sabemos o quanto essa hipótese pode soar arriscada aqui, mas, ao internalizar, em sua forma mesma, relações cósmicas, o cinema não revindica, de certo modo, se reconhecer mulher?

Referências NATHAN, Tobie. Nous ne sommes pás seuls au monde: les enjeux de l’ethnopsychiatrie. Paris: Les Empêcheurs de Penser en Rond, 2001. MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018. MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. STENGERS, Isabelle. A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 69, abr. 2018.

5. ELBEIN, Juana e DOS SANTOS, Deoscoredes. A cultura nagô no Brasil, 1993, p.47.




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Cinema e negritude: restituições de territórios e invenções de pertencimentos sobre NoirBLUE: deslocamentos de uma dança, de Ana Pi, Nome de batismo: Alice, de Tila Chitunda, Maré, de Amaranta Cesar e Galinhas no Porto, de Caioz e Luís Henrique Leal

Tatiana Carvalho Costa*

em colaboração com Layla Braz**

É preciso a imagem para recuperar a identidade. Tem-se que tornar-se visível. Porque o rosto de um é o reflexo do outro. O corpo de um é o reflexo do outro. E em cada um o reflexo de todos os corpos. A invisibilidade está na raiz da perda da identidade. Beatriz Nascimento1

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Mostra Contemporânea Brasileira traz alguns dos mais provocativos curtasmetragens realizados por diretores e sobretudo diretoras negras na atualidade. E a potência desses filmes se manifesta nas diversas formas de invenção de lugares de resistência e de pertencimento à negritude na linguagem e a partir dela. Safira Moreira (Travessia, 2017), Tila Chitunda (Nome de Batismo: Alice, 2017) e Ana Pi (NoirBLUE:

deslocamentos de uma dança, 2018) constroem narrativas que reinventam percursos da memória coletiva e criam outras possibilidades de existência como “autorreferencial sujeito do dizer” nas imagens, reafirmando, com o Cinema, a negritude positivada defendida por Aimée Césaire: [A Negritude] é uma maneira de viver a história dentro da história, a história de uma comunidade cuja experiência parece, em verdade, singular, com suas deportações de populações, seus deslocamentos de homens de um continente a outro, suas lembranças distantes, seus restos de culturas assassinadas. [...] busca de nossa identidade, afirmação do nosso direito à diferença, aviso dado a todos do reconhecimento desse

*Professora e pesquisadora, coordena o projeto Pretança/UNA, participa da segundaPRETA e do grupo Cor, Raça e Gênero PPGCom/UFMG. Integra a comissão de seleção da Mostra Contemporânea Brasileira desta edição do forumdoc.bh. **Bacharel em Cinema e Audiovisual, produtora cultural e integrante da comissão de seleção da Mostra Contemporânea Brasileira desta edição do forumdoc.bh. 1. Orí. Direção de Raquel Gerber. São Paulo: Versátil, 2008. 1 DVD (91 min), som, cor.


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direito e do respeito à nossa personalidade coletiva. (CÉSAIRE, 2010, p. 109-1 13) Ampliando a ideia de “personalidade coletiva” e diversa, junto delas, Rubens Passaro (Universo Preto Paralelo, 2017) conecta as imagens da memória da escravização aos discursos sobre torturas no período da Ditadura Militar no Brasil, nos chamando atenção para a atualidade do fascismo e das imposições de uma necropolítica, enquanto Ulisses Arthur (Corpo Style Dance Machine, 2017) faz um exercício de rememoração de uma história recente de LGBTs, também sobrepondo temporalidades, para dar a ver particularidades da identidade negra e queer. A exibição deste conjunto de filmes reverbera e amplifica uma crescente (ainda que insuficiente) presença de negras e negros no fazer do cinema brasileiro. Festivais, mostras e cineclubes ao longo deste ano se dedicaram mais ou menos intensamente a obras produzidas por esses (novos?) sujeitos, a reboque do que tem sido bravamente defendido há uma década pelo Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul e pelo CachoeiraDoc. Em Belo Horizonte, destacamos o FESTCURTASBH que, em sua 20ª edição e curadoria de Heitor Augusto,2 trouxe um apanhado amplo e diverso de obras realizadas por pessoas negras e promoveu um seminário que traçou o percurso da presença dessa filmografia na história do Cinema Brasileiro. Neste mesmo ano, o 50º Festival de Brasília recebeu o maior número de inscrições de filmes de negras e negros de sua história, um ano após a polêmica com Vazante (2017), e premiou o protagonismo negro atrás e à frente das câmeras.

Em outros campos artísticos, a discussão sobre a representação e a representatividade da negritude também se intensifica. Em Minas Gerais, testemunhamos movimentos de aquilombamento artístico com a SegundaPRETA e a proeminência negra no Festival Internacional de Teatro – FITBH 2018. E São Paulo sediou, no MASP e no Instituto Tomie Ohtake, uma das mais importantes exposições de artes visuais sobre o tema na América Latina, a Histórias Afro-Atlânticas.

Cinema por e cinema com

Compreendemos e agimos em função da urgência na defesa de um lugar para o cinema feito por pessoas negras. Mas entendemos também que, neste momento histórico em que despontam fascismos, é importante olharmos para os gestos aliados – ainda que saibamos que “o aliado não é uma categoria estável”.3 Em parte dos filmes selecionados, há apontamentos acerca dos modos de fazer cinema com pessoas negras. Tomamos emprestado o termo “cinema com” da ensaísta e curadora Carla Maia, em sua definição do “caráter relacional das obras” feitas com mulheres: parece crucial na elaboração de um pensamento em torno de um cinema com, e não sobre: apostar na indeterminação, investir na aliança entre estética e política enquanto possibilidade de reinvenção de um campo sensível do qual os “sem-parte” podem, finalmente, tomar parte, numa redistribuição dos lugares de quem fala e quem é ouvido. O cinema – sobretudo o documentário, supomos – pode favorecer a criação de cenas dissensuais, e ao

2. Cf. Cinema Negro: capítulos de uma história fragmentada. In: Catálogo do FESTCURTASBH. Ana Siqueira [et al.]. Belo Horizonte: Fundação Clóvis Salgado, 2018. p. 57-58. 3. Expressão repetida por Cíntia Guedes na performante A gente combinamos de não morrer, com Jota Mombaça no FITBH 2018.


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expor “situações de palavra”, permitir que a igualdade pressuposta entre os seres seja sempre colocada à prova, na medida em que confere visibilidade aos corpos e alcance às vozes daqueles/as que compõem a “parte que falta”. (MARTINS, 2018, p. 169 – grifos da autora) Em uma das sessões programadas para esta edição do forumdoc.bh2018, estão reunidas obras que trazem a potência da direção cinematográfica empreendida por pessoas negras – NoirBLUE: deslocamentos de uma dança (2018) e Nome de Batismo: Alice (2017) – e as possibilidades do diálogo deste cinema feito “com”, em gestos de escuta e co-criação executado por pessoas brancas – Maré (2018) e Galinhas no Porto (2018).

Apagamentos, reinvenções

“Não sei quando começamos a ter lembranças”. A primeira frase no voice over de Galinhas no Porto (2018), de Caioz e Luiz Henrique Leal, é acompanhada da imagem de uma paisagem com um mar ao fundo. A voz menciona as primeiras fotografias do século XIX e quem jamais pôde ser visto nelas. “Há galinhas no porto” era o código para a chegada de navios negreiros que desembarcavam ilegalmente na segunda metade do século XIX4 numa praia próxima à cidade de Recife. No final do século XX, a região virou um dos pontos turísticos mais desejados do país: Porto de Galinhas. Fomos empurrados para o porão, totalmente nus, os homens foram amontoados de um lado e as mulheres de outro, o porão era tão baixo que não podíamos nos levantar éramos obrigados a nos agachar ou sentar

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no chão, dia e noite eram iguais para nós o sono sendo negado devido ao confinamento dos nossos corpos. Ficamos desesperados com o sofrimento e a fadiga. (LARA, 1988, p. 272) O jovem Mahommah Gardo Baquaqua foi traficado para o Brasil nos anos 1840. Ao longo de sua vida, ele manteve diários que foram reunidos em uma publicação lançada no Brasil somente em 2017. O trecho acima é lido em um dos fragmentos de fala no filme. No espaço onde possivelmente Mahommah teria desembarcado, o presente do filme nos mostra uma sucessão de estátuas, brinquedos e souvenires em formas de galinhas. A câmera observa discretamente o homem negro que percorre a praia, a área de comércio e de ruínas onde ele delimita os possíveis espaços de confinamento de outros corpos negros em séculos anteriores. Ele se posta em meio a turistas em embarcações de visita às paisagens. Ao sobrepor digressões sobre a brutalidade da escravização de pessoas negras a esse movimento de um único corpo negro no presente daquele território desmemoriado, o filme restitui à paisagem a violência de seu passado. Um gesto de redenção? A câmera em Galinhas no Porto observa. Em Maré, de Amaranta Cesar, ela se torna cúmplice. Essa proximidade é potencializada pela construção de uma temporalidade que faz coexistirem a ação física dos corpos e uma camada do que age invisível sobre o espaço, sobre esses corpos e sobre o próprio tempo do e no filme. Somos apresentadas ao mangue e a uma oferenda a uma senhora-tempo, entidade que o habita. Seria ela a força que o atravessa? Na lida com as castanhas de dendê, uma mãe tenta convencer as filhas a irem para o colégio. “Elas

4. O tráfico de pessoas escravizadas, no Brasil, foi coibido em 1831 e proibido em 1850 pela Lei Euzébio de Queiróz.


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querem ir embora para Salvador”, pensa a mãe em voz alta. “Dizem que as escravidão já acabou. Quem disse que acabou? Continua aí. Não vê quem não quer”, afirma, a pilar as castanhas. Olhada de baixo para cima, a não-atriz e sua fala ganham a força das socadas no pilão. As irmãs Patrícia e Diguinha, uniformizadas, desviam-se do caminho e adentram o mangue. Entramos com elas. A mais velha ensina a mais nova sobre o trabalho e os humores do lugar: “então, você é a rainha do mangue”, ironiza Diguinha. Mas a mãe quer inventar uma nova vida para as filhas, diferente da vida que inventaram para ela. As meninas parecem divididas entre a vontade de ir e um chamamento para a permanência. E elas não voltam para casa. Da janela, a mãe observa a ausência, recolhendo duas maritacas para junto de seu peito. A noite cai, a maré sobe. As forças agem no tempo, naquele espaço, e o filme se abre para elas, a compartilhar conosco imaginários e crenças. “Adeus, camarada, adeus, adeus que eu já vou m’embora, pelas ondas do mar eu vim, pras ondas do mar eu vo’mbora”. Acompanhamos a cantoria e um progressivo acender de lamparinas nas casas e nas ruas. “Ô, Iemanjá, ekô, ekô, Oxum obá”. Amaranta César é hábil na construção poética da procissão-resgate encenada pelas mulheres na bela paisagem da comunidade quilombola do Vale do Iguape. Na noite, senhora-tempo-mangue espera, fazendo fogo em seu cachimbo. “Diguinha, Diguinha”, ouvimos, enquanto vemos a menina a caminhar ao lado dela na luz do dia. Cantos de lamento marcam o retorno das mulheres, sem Diguinha, na manhã. Acompanhamos as personagens de perto. A câmera, cúmplice das não-atrizes, apresenta uma coerência com um processo do que já chamamos aqui de um “cinema com” (MARTINS, 2015). A fábula encenada faz aparecer na tela o desejo que vem do conjunto de mulheres que inventam o filme.

De observadora e cúmplice, a câmera assume o olhar de mulheres negras que buscam as imagens de si no território da memória ancestral. Nome de Batismo: Alice (2017) e NoirBLUE, deslocamentos de uma dança (2018) lidam, em primeira pessoa, com uma ideia de retorno ao continente africano. Nos dois, as diretorasprotagonistas Tila Chitunda e Ana Pi lidam, cada uma à sua maneira, com o não-lugar da interseção diaspórica nos corpos. Tila enfrenta as reverberações de uma migração decorrente da guerra pela independência de Angola nos anos 1960. Ana Pi lida com a secular passagem de um povo pela Porta do Não-Retorno. A história de seu nome, Alice – dado em homenagem à sua avó –, é a razão encontrada por Tila para a ida a Angola. Nascida no Brasil e filha imigrantes, ela viaja com a mãe para a terra natal materna. Numa estrutura cronológica, o filme parte da decolagem para outro continente e nos leva, com a câmera-olho de Tila, pelo percurso às ruas, estradas, cidade e aldeia até a despedida para o retorno ao Brasil. “Nossas visitas chegaram, lhes esperamos por muito tempo”, cantam os parentes. Apesar da calorosa acolhida, no caminho para Bié, território Ovimbundo de onde vem sua família, Tila se frustra ao tentar reconhecer o desejado pertencimento: “me sinto estrangeira neste lugar”, ela diz em voice over enquanto aponta a câmera para a paisagem que passa pela janela do carro. “É frustrante estar aqui e não compreender o que dizem os mais velhos”, ela afirma voltando seu olhar para os parentes que conversam em umbundo, dialeto do “local de nossas origens”. A câmera reafirma a presença dela naquele território mas encarna o olhar estrangeiro que observa, com curiosidade, uma terra distante. Ao não conseguir se encontrar com a África imaginada, Tila se decepciona e nos apresenta o paradoxo da


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construção identitária diaspórica: qual é, afinal, nosso afro-pertencimento? Não podemos jamais ir para casa, voltar à cena primária enquanto momento esquecido de nossos começos e “autenticidade’, pois há sempre algo no meio [between]. Não podemos retornar a uma unidade passada, pois só podemos conhecer o passado, a memória, o inconsciente através de seus efeitos, isto é, quando este é trazido para dentro da linguagem e de lá embarcamos numa (interminável) viagem. Diante da “floresta de signos” (Baudelaire), nos encontramos sempre na encruzilhada, com nossas histórias e memórias (“relíquias secularizadas”, como Benjamim, o colecionador, as descreve) ao mesmo tempo em que esquadrinhamos a constelação cheia de tensão que se estende diante de nós, buscando a linguagem, o estilo, que vai dominar o movimento e dar-lhe forma. (CHAMBERS apud HALL, 2003, p. 26-27) Longe de verdade buscada por Tila Chitunda, Ana Pi encara performaticamente a ideia de pertencimento. NoirBLUE é o azul de tão preto. A expressão racista é apropriada e positivada pelo percurso de Ana com seu manto azul e sua dança em ruas, calçadas e ruínas de países da África Subsaariana de onde, séculos passados, partiram milhões de pessoas pela Porta do Não-Retorno rumo ao novo mundo. Para Dionne Brand (2002, p. 18-19),5 essa “Porta”, “real e metafórica”, tem status de “uma mítica” para pessoas negras descendentes de africanos escravizados e espalhadas pelas Américas. Essa mítica define a ambivalência

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de nossa existência e de nosso pertencimento que, para ela, está “alojado em uma metáfora” e que nos obriga a “ser um tipo de ficção”. Ainda segundo a autora, “viver na Diáspora Negra é, eu acho, viver como uma ficção – uma criação dos impérios e também uma autocriação. É como ser um ser vivendo dentro e fora de si mesmo”. Ana Pi olha, com a câmera, para os espaços em que reconhece ou constrói seu pertencimento. “E eu grite: acarajé! Me perguntaram: mas você fala iorubá?”, conta com sua voz doce e pausada. A temporalidade estabelecida por sua narração deixa escorrer, para o filme, as camadas dessa identidade-ficção. O suceder de espaços e a menção desordenada a eles monta um mosaicado território-memória. Ana também aponta a câmera para si e para a construção que faz de si nesse lugar. Ao filmar outros corpos que também performam para a câmera ela entra em quadro. “Signature” é a dança mas é também seu gesto no e com o filme. O artista goiano Dalton Paula, cuja série de pinturas A Cura compõe este catálogo, realizou dois retratos para a já mencionada exposição Histórias Afro-Atlânticas: João de Deus Nascimento e Zeferina. O retrato de João de Deus foi criado sem uma referência visual: imagens dessa figura histórica da resistência negra não existiam. Um dos curadores da exposição, Hélio Menezes, explica que parte da obra de Dalton é inspirada na estética dos ex-votos e “têm uma relação direta, portanto, com uma espécie de cura – os ex-votos têm essa função, de serem deixados nas laterais das igrejas, nos altares, pedindo a cura”. Em A Cura, Dalton traz corpos negros com referências a territórios de pertencimento, em ações de cura física e simbólica ou ainda de iniciação. Os olhos dos personagens estão

5. Trecho traduzido por Ana Maria Gonçalves e disponível em: <http://www.geledes.org.br/onde-andara-a-boa-e-velha-liberdade-por-ana-maria-goncalves/#gs.hSL7zQ8>. Acesso em 08/04/2017.


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fechados, numa possível introspecção e transcendência, num agenciamento de outras presenças para além do visível. João de Deus Nascimento e Zeferina têm os olhos abertos, numa altivez para o presente da ação. Dalton complexifica a relação com a espacialidade e a temporalidade das negruras, numa gama diversa e complementar de potências. Com uma heterogeneidade de auto-representações e de experiências com a negritude, as buscas e invenções nos filmes presentes na seleção aqui comentada parecem apontar para esses gestos – atentos e complexos – de estabelecer resistência e cura pelas imagens, ampliando as fissuras em um modo histórico de narrativas excludentes e de opressão. Referências CESAIRE, Aimé. Discurso sobre a Negritude. Belo Horizonte: Nandyala, 2010. BRAND, Dionne. A map to the door of no return: notes on belonging. Toronto: Vintage Canada, 2001. HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e Meditações Culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. LARA, Silvia Hunold. Biografia de Mahommah G. Baquaqua. Revista Brasileira de História, v.8, nº 16,. São Paulo, 1988. p. 269-284. MARTINS, Carla Ludmila Maia. Sob o risco do gênero: clausuras, rasuras e afetos de um cinema com mulheres. 2015. 285p. Tese (Doutorado em Comunicação Social) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015.


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Bimi, Shü Ikaya sobre filme de Isaka Huni Kuin, Siã Huni Kuin e Zezinho Yube

Daniel Ribeiro Duarte*

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o começarem o filme Bimi, Shü Ikaya (2018) com o plano aproximado da casca da Samaúma – uma das árvores sagradas mais respeitadas pelos povos amazônicos pela sua dimensão monumental (que pode chegar a 90 metros de altura) e seus amplos poderes medicinais – os realizadores Huni Kuin parecem colocar o filme, desde já, em ligação e compromisso com camadas temporais mais amplas do que as alcançadas por nós não-indígenas. A narrativa prossegue com a imagem dos pés de uma mulher que caminha no chão da floresta, entre as milhares de plantas que foram estudadas por uma tradição verdadeiramente enciclopédica no que diz respeito ao seu poder medicinal. Cercada pelos mais jovens, Bimi seleciona folhas, manuseia e corta. O filme vai seguir atento às mãos da pajé, que buscam a força da floresta para entregar aos corpos que ela pode curar. Estas mãos ganham uma importância fundamental no filme, pois muitas vezes são elas que conectam os planos entre si. A fala também é um agente mobilizador deste poder curativo: nesta primeira sequência, Bimi se dirige à Samaúma e diz que trouxe aquelas crianças até ela para que fossem curadas. “Eu dei seu nome para eles, eles são

seus irmãos. Eles vieram te visitar para se curar de todo o mal com seu poder”. Por mais que tentemos, é difícil que um plano de cinema feito por nawa (não-indígenas) atinja a forma como um realizador indígena – e particularmente os Huni Kuin – é capaz de mostrar uma planta ou árvore como quem filma um parente – um parente mais velho, é claro. Junto ao poder medicinal está o poder da sabedoria e da ancestralidade: se as plantas são as grandes mestras, e os mais velhos são os intermediários desta ciência. Bimi, pajé tardiamente revelada (até porque às mulheres não era dado entrar em contato com estes conhecimentos) mas hoje respeitada inclusive pelos homens, ocupa este lugar com a consciência de ser uma criança aos pés da Samaúma. Bimi pinga suco de Bawe nos olhos das meninas, para elas “terem boa memória no aprendizado dos Kene, os desenhos da nossa cultura”.1 Ela não foi criada para o xamanismo, mas para o artesanato, como todas as meninas a quem não era permitido beber a medicina sagrada do Nixi Pae, combinação da Ayahuasca com a folha do Mariri que ensina o saber sobre as plantas e a medicina. Embora seu pai a tenha proibido de tomar o cipó, dizendo que a mulher que usa

*Pesquisador, curador e realizador de cinema. Integra o coletivo Filmes de Quintal. Doutorando em Cinema pela Universidade Nova de Lisboa. 1. In: Manual das crianças Huni Kuĩ Yumebu há uĩtã hariri ikaĩti disponível em: <http://www.tecendosaberes. com/wc/uploads/2015/08/PgsManual_HuniKui_bx.pdf>.


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a planta fica com fraqueza, quando Bimi teve acesso a ele pela primeira vez (já tendo um neto) começou logo a cantar e curar. Os outros pajés souberam de seu trabalho e se interessaram, chamando-a para beber o Nixi Päe com eles e aceitando-a como pajé. O cinema indígena, desde que se expandiu para um grande número de aldeias e etnias, tomou muitas formas e respondeu a diversas finalidades destes povos. Entre as funções do cinema para os povos originários está a de preservar a tradição. O filme de Bimi, ao mostrá-la para eles próprios e para o mundo exterior, a legitima como pajé: “Eu não saio por aí falando que eu sou pajé, mas vocês resolveram fazer este filme! Isto é um reconhecimento e eu agradeço. Eu digo que estou apenas começando, e quem vai se formar são vocês”. Bimi se refere a uma construção do saber medicinal que se transmite e consolida através das gerações, diante da enormidade de conhecimento que há guardado pela floresta. A mulher xamã também refere-se à dificuldade na transmissão dos saberes Huni Kuin. De fato, na primeira metade do século XX, os Huni Kuin (e muitos outros povos amazônicos) foram escravizado para trabalhar nos seringais, desaldeados e muitos foram mortos por epidemia ou violência, rompendo a corrente de transmissão da sabedoria tradicional. Bimi, Shu Ikaya é um filme da tradição, que busca registrar a sabedoria dos mais velhos, e cuja personagem principal relança este conhecimento do passado como algo em permanente movimento, que deve ser sempre completado pelos mais novos que o recebem. Há um longo plano em que dois dos realizadores conversam sobre o filme. O cinema é visto como um instrumento para reconectar o povo Huni Kuin à sua espiritualidade, através da valorização do conhecimento tradicional. Falam das antigas cerimônias de Nixi Pae, quando os pajés bebiam quantidades enormes do chá para

cantarem e fazer suas curas. Para eles, filmar Bimi é um gesto fundamental para registrar um pouco deste conhecimento. Eles combinam de inscrever o projeto em editais, para fazer um filme mais estruturado, com mais pessoas trabalhando. O cinema é comparado à caça pelos jovens cineastas, já que é preciso astúcia para saber onde procurar dinheiro e apoios para a realização. A ajuda dos brancos (entre eles Tiago Campos e Ernesto de Carvalho, no som, fotografia e montagem) é vista como um precioso auxílio, por saberem como se mover no mundo do cinema e dos editais. O cinema é caça, mas também artesanato. O filme segue mostrando a pajé Bimi ensinando às crianças as atividades próprias ao mundo feminino. Elas colhem algodão, plantas e cozinham. O algodão é usado para redes e outros tecidos com padrões geométricos Kene, dos Huni Kuin. Foi realizando estas atividades que Bimi aprendeu a cultura dos ancestrais, e talvez seja esta sabedoria de entrançamentos e geometrias que a tenha enraizado no conhecimento, tornando-a pajé de forma tão imediata, assim que bebeu o Nixi Pae. Uma sequência forte do filme trata tanto da própria realização do projeto quanto da sobrevivência da cultura Huni Kuin. Um dos realizadores expõe a proposta que foi trazida por alguns: fazer uma festa com música dos brancos, dançar e depois fazer o ritual do Nixi Pae. Bimi pede a palavra e mostra a sua liderança: o projeto tem o seu nome, aquela maloca também, e desta maneira não poderia permitir que o projeto fosse pretexto para iniciar festas de outro tipo que não aquelas da tradição, pois “é nas festas que começam os problemas”. Diante do preparo do Nixi Pae, realizado inicialmente por homens, Bimi traz um grupo de mulheres, que se sentam próximas aos caldeirões no fogo para ouvir a xamã cantar uma melodia


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que atrai bons pensamentos. Para ela, o conhecimento não deve ser restrito a poucos, mas ser ensinado a quem quiser aprender. Na parte final do filme, vemos a festa do Nixi Pae. Na sombra larga e protetora da Samaúma, Bimi e outros pajés distribuem a medicina e depois passam por cada um dos presentes oferecendo a sua cura e o seu sopro, massageiam e cantam para afastar os maus espíritos. A beleza desta sequência é rara: o visível é intenso mas ainda assim intui-se que o mais importante daquilo que está sendo filmado não pode ser visto. Radicaliza-se aqui o gesto cinematográfico de dar a ver o invisível. Testemunhamos algo sem o alcançar inteiramente, sabendo da força com que atua sobre a vida deste povo. O filme tem ainda uma espécie de epílogo, em que Isaka e Siã, os mais jovens entre os três realizadores, são filmados conversando sobre o fazer cinema. Isaka diz que está muito satisfeito de ter feito o projeto sobre sua avó Bimi e se sente “um cineasta fazendo cinema”. Se por um lado o filme legitima a sua ancestral e os seus conhecimentos, através desta realização o jovem é incorporado aos fazeres da aldeia, quando se torna o veículo de uma tradição. Eles visualizam, com a ajuda dos jovens, a criação de uma produtora, com divisão do trabalho e aprofundamento na tarefa do registro. Siã concorda, mas relembra a interdependência entre o registro e a manutenção da tradição, sendo esta última o que dá força ao trabalho: “sem a cultura, não temos o que filmar”. Neste filme vemos um duplo movimento: ao mesmo tempo em que o cinema se incorpora à cultura, é legitimado como modo de ajudar na sua sobrevivência. Os cantos soam, as buzinas Huni Kuin tocam, as câmeras filmam e a tradição continua. O trabalho da mulher pajé forma gerações, como a fruta que tem o mesmo nome que ela: Bimi, aquela que dá flor e depois germina novamente.

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Furna dos negros: o lar daqueles que historicamente resistem sobre filme de Wladymir Lima

Leonardo Amaral*

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ste texto foi escrito nas vésperas do segundo turno da eleição para presidente do Brasil, em 2018, e forjado a partir de um sentimento ambíguo de angústia e otimismo, pois reside na força daqueles que já foram resistência a esperança de um futuro melhor, ainda que tardio. No Capítulo 3 de Um defeito de cor,1 Ana Maria Gonçalves cita um provérbio africano que diz: “Aquele que tenta sacudir o tronco de uma árvore sacode somente a si mesmo”. A rigidez do tronco de uma árvore é uma forma de resistência e suas raízes um modo de permanecer no mundo. Corta-se uma árvore, mas não se retira sua raiz, ela permanece e se distribui no solo, para que não se esqueça de que ali outrora existiu um ser forte e grandioso. Ao sacudir uma árvore, por um efeito de ação e reação explicado pela física, sentimos a força dessa troca em nosso corpo. A força que nos percorre e nos faz sacudir nos coloca nessa sintonia com a raiz, o passado, que implica diretamente no presente.

Em suas teses sobre a história, Walter Benjamin afirma que “articular historicamente o passado não significa conhecê-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo.”2 O filósofo nos ensina que é preciso escavar a terra, buscar aquilo que foi soterrado, para que se dê vazão à história daqueles que foram vencidos. Nos momentos de um perigo iminente, buscar no passado os modos de resistência. No início de Furna dos negros (2018), uma canção é cantada à capela: “Serra da barriga cadê nosso amigo/ Faz 300 anos que ele faleceu/ Nosso amigo é Zumbi dos Palmares/ Ele foi embora e nunca mais voltou/ Ele foi, deixou os quilombola/ Pra vencer a luta e ser vencedor”. Após sua execução na banda sonora do filme, Gerson Paulino dos Santos e Dominícia Maria dos Santos são acompanhados de costas pela câmera enquanto se embrenham por árvores de pequeno porte de galhos retorcidos e secos

*Curador das mostras: Retrospectiva Helena Solberg (CCBB, 2018), Mostra Escola Cidade Aberta (Caixa Cultural, 2017), Tempos de Kuchar (SESC, 2016). Membro de comissão de seleção dos festivais: Festival Internacional de Curtas de BH (2010-2013), forumdoc.bh (2015 e 2017), Semana dos Realizadores (2016), Lumiar (2018). Doutorando, mestre e graduado em Comunicação Social pela UFMG. Roteirista, diretor e montador de curtas e longas desde 2008. Ensaísta e crítico pela revista eletrônica Filmes Polvo (2007-2013). 1. GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro: Editora Record, 2013, p. 1 1 1. 2. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994, p. 224.


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enquanto, através da voz off, ele nos revela que seus povos ancestrais viveram na Serra da Barriga, onde se localizava o famoso quilombo de Zumbi dos Palmares, que significou um dos maiores atos de resistência negra de Alagoas e do Brasil. Agora, o local é constituído por um novo quilombo, onde as primeiras casas de alvenaria são construídas para abrigar os habitantes da região. Os povos, que antes viviam ali, habitavam uma espécie de furna cravada em meio a uma pedra. Lá residiam os descendentes de Palmares. Em uma sequência do filme, Gerson demonstra pela câmera operada pelo documentarista Wladymir Lima a maneira como seus antepassados dormiam naquele logradouro. O espaço é estreito e pouco afeito ao conforto. Ainda assim, Gerson se deita no meio das pedras, na pequena vala que ali se forma e diz que eles pegavam no sono e se ajeitavam daquele modo. Lá era o refúgio de muitos que conseguiam fugir dos donos de escravos. A situação agora é diferente. Dominícia tem orgulho da nova casa. Eles explicam como se dá a lida diária no roçado e como antigamente eram vítimas da exploração de patrões e também da precarização do trabalho. Gerson e Dominícia são os primeiros residentes do quilombo a terem sua casa de alvenaria. As outras residências ainda estão em processo de construção. Vicentina Maria da Conceição ainda mora em um dos barracos construídos com madeira e lona. Mas ela já pode avistar sua nova moradia em processo. Diz, com orgulho e felicidade, a respeito da nova casa e a oportunidade de se estabelecer em um lugar onde seus avós e bisavós antigamente residiram. Benjamin refuta um progresso da história para reafirmar uma história em ciclos e resgates do passado. Furna dos negros é permeado por canções que retomam o período da escravidão e do quilombo de Palmares como forma de resistência e lembrança de um tempo pretérito no qual se consolidou, através de muita luta,

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uma cultura africana e negra no Brasil, que muitas vezes é posta em perigo por movimentos reacionários e destrutivos. Gerson, filmado de dentro da caverna, relembra o período de luta de seus bisavós, avós e pais para que hoje ele e seus filhos possam ser donos daquela terra. Segundo ele: “a terra pertence primeiro a Deus, e segundo, a nós, que somos os vigias da terra”. Em seguida, já fora da gruta, Gerson indica com a mão os domínios territoriais dos quilombolas que vivem perto de uma plantação de aroeira e as terras onde ele e sua família residem. A câmera acompanha o movimento indicativo feito pelas mãos do ancião e através de um movimento panorâmico ressalta geograficamente a conquista de um lar ao longo de séculos. No documentário, um outro movimento de resgate se dá com a retomada da festa de Reisado, na qual as tradições passadas são trazidas para o presente. Enquanto se preparam com as vestes para o Reisado, Gerson explica, na voz off presente na banda sonora do filme, como aprendeu a dançar com seu sogro, pai de Dominícia. O relato funciona como uma espécie de trova, que traz aos iniciados (dentre os quais, o espectador) as informações históricas do tempo passado: “aí tomei conta do Reisado, eu mais ela, que é tradição daqui, pra não deixar ir de água abaixo.” O festejo tradicional é filmado por uma câmera bem próxima, que busca se deixar adentrar no rito, uma vez que isso é permitido a partir da intimidade que se estabelece com Gerson. Mais uma vez, um canto típico se espalha pela banda sonora e se constitui como uma história oral, que é preciso sempre ser cantada e recantada para que os novos não se esqueçam de seus antepassados, de suas raízes. Durante a filmagem do Reisado, surgem, no campo, várias crianças que acompanham e aprendem com os mais velhos uma tradição de luta para a sobrevivência de


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uma cultura. Furna de negros é, sobretudo, essa história oral, cantada por Gerson e Dominícia e presente também na fala de ambos, em seus modos de contar essa história. Assim, resgatam da terra, cravada na caverna onde outrora viveram seus ascendentes, uma história dos vencidos que é preciso sempre lembrar, nunca esquecer. Transformam a palavra cantada em um lar, onde se sentem confortáveis e em paz. Referências BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro: Editora Record, 2013.


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Uma existência que não consta nos autos sobre Auto de Resistência (2018), de Natasha Neri e Lula Carvalho

Pablo Moreno Fernandes Viana*

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aioria do povo brasileiro, segundo dados do IBGE (2017), os negros são também os que mais morrem, de acordo com o mapa da violência, com números crescentes entre 2002 e 2012: mortes de brancos caíram 32%; as de negros aumentaram 32% (GENOCÍDIO, 2015). Já se reconhece que a morte sistemática do povo negro no Brasil é um genocídio, política de extermínio de um povo. Parte significativa dessas mortes é ocasionada por policiais, treinados a adotar como um padrão suspeito pessoas periféricas, pobres e de pele preta. No entanto, ignoramos a realidade dessa estrutura tão consolidada e “a ideologizada democracia racial produz um discurso racista e legitimador da violência e da desigualdade racial diante das especificidades do capitalismo brasileiro” (ALMEIDA, 2018, p. 141). Parte dessa realidade é denunciada no documentário Auto de Resistência (2018), de Natasha Neri e Lula Carvalho. Os diretores acompanham a saga de mães e familiares, cujos entes queridos foram assassinados por policiais. Em todas as histórias, um fio condutor perpassa os acontecimentos: trata-se de homens, negros, moradores de favelas, mortos por policiais; as

mortes são registradas como resistência à ação da polícia do Rio de Janeiro, daí o termo que nomeia a obra. Os autos de resistência consistem no registro de ações policiais em que há civis mortos, quando os membros da corporação alegam ter agido em legítima defesa. Num cenário político em que candidatos discursam que “se fizer o enfrentamento com a polícia e atirar, a polícia atira. E atira pra matar” (RODRIGUES, 2018), uma obra como Auto de Resistência é necessária e urgente. Necessária porque comprova que o estado age para matar. Comprova, a partir de vídeos, imagens e testemunhos que, da parte das vítimas, não houve resistência, não houve ataque, sequer houve crime e, muito menos, legítima defesa. Urgente porque denuncia que, apesar da esperança relatada nos raros casos em que há provas que afirmam a excessiva violência policial, nem sempre é possível comprovar os exageros. Explicita que há recorrente adulteração de cenas de crimes. Escancara também a impotência da fala dos entes queridos despedaçados pela dor do luto contra a narrativa da polícia, do Estado e da Justiça, que não se esforçam para diminuir a trágica estatística, sem ao menos investigar a fundo os ocorridos.

*Professor do Mestrado em Comunicação Social e nos cursos de Cinema e Audiovisual e de Publicidade e

Propaganda da PUC Minas. Doutor em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, Mestre em Comunicação pela PUC Minas.


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“É morador! É morador!”. Wilton, Wesley, Cleiton, Carlos Eduardo e Roberto, jovens entre 16 e 26 anos, foram assassinados com 1 11  tiros pela polícia, em Costa Barros. O crime dos jovens foi estar em um carro à noite e cruzar com a Polícia. Os cinco rapazes foram tomados como traficantes, mais de uma centena de tiros foi disparada e a mãe de Wilton, que chegou à cena do crime enquanto o filho ainda vivia, foi impedida de se aproximar e testemunhou os policiais adulterando o local, colocando armas próximo aos jovens baleados. O filme mostra a reconstituição do crime, mostra falas dos advogados de defesa, da promotoria, acompanha o processo de investigação e a luta dos familiares para que os policiais responsáveis sejam submetidos a júri popular. O caso Alan e Chauan, na favela da Palmeirinha, também é emblemático por ter provas contundentes da violência policial. Três amigos conversam e brincam com a câmera de um celular. Um deles corre atrás do outro e dois policiais, que passavam pelo local numa viatura, abrem fogo contra os jovens Alan, 15 anos, e Chauan, 19 anos, que são baleados. Eles são socorridos, mas Alan não resiste. A Polícia informa que a ação ocorreu porque os jovens abriram fogo contra a viatura. No entanto, o carro estava equipado com câmera de segurança, que registra toda a operação. As imagens entram no filme como um exercício metalinguístico de cinema documental. Além disso, o celular utilizado pelos jovens para a brincadeira antes do tiroteio também registra o ataque. Com os registros audiovisuais como provas, os policiais são levados a júri popular e condenados diante das provas contundentes, apesar de haver tentativas de criminalizar Chauan, o sobrevivente ao atentado. Ainda que tenha havido condenação dos policiais, essa não é a realidade da maioria dos casos, inclusive dos demais casos relatados no documentário.

Os abusos são frequentes num contexto em que o alvo da violência tem cor e classe social, em lugares em que a polícia atira primeiro, para depois perguntar. Se a resposta à pergunta após os tiros surpreende, mexe-se um pouco daqui, um pouco de lá, cria-se um cenário, uma narrativa que torna a vítima em algoz. Se tudo isso não funciona, lança-se mão da burocracia para postergar e atrasar o processo. A dor das mães? Não importa. A dor de uma família destruída? Não interessa. Relativiza-se a vida ao afirmar que os direitos humanos só protegem bandido, num ato de desumanização e culpabilização daqueles cujo crime foi nascer preto e pobre. O resultado é a impunidade. Outro mérito de Auto de Resistência é a homenagem a Marielle Franco. A vereadora aparece em diversos momentos, ao lado das mães que buscam justiça por seus filhos, acompanhando sua batalha. O filme é dedicado a ela, que foi assassinada em 14 de março de 2018, com quatro tiros na cabeça, num crime cuja investigação se arrasta há mais de 200 dias, até o momento em que este texto é finalizado, sem denúncia aos atiradores e mandantes do assassinato, que sequer foram descobertos pela polícia. Auto de Resistência recebeu críticas por não inovar na forma. Também foi criticado por soar repetitivo nos discursos das mães que precisam contar, contar e contar de novo suas histórias ao poder público. Se incomoda por ser cansativo, cabe o exercício de empatia de se colocar no lugar das famílias destruídas e do volume assustador de autos de resistência nas favelas brasileiras. Se assistir aos relatos cansa, vale o exercício de se sensibilizar e buscar reencontrar a humanidade perdida. O esforço das mães e demais entes queridos pela memória dos seus não consta nos autos. É resistência para quem o direito de existir é luta cotidiana.


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Referências ALMEIDA, S. O que é racismo estrutural. Belo Horizonte: Letramento, 2018. GENOCÍDIO da juventude negra no Brasil, O. Geledés Instituto da Mulher Negra. São Paulo. 2015. Disponível em: <https://www.geledes.org. br/o-genocidio-da-juventude-negra-no-brasil/>. Acesso em out. 2018. RODRIGUES, Arthur. A partir de janeiro, polícia vai atirar para matar, afirma João Doria. Folha de São Paulo, Poder. São Paulo: Folha de São Paulo, 2 out. 2018. Disponível em: <https://www1.folha. uol.com.br/poder/2018/10/a-partir-de-janeiro-policia-vai-atirar-para-matar-afirma-joao-doria.shtml>. Acesso em out. 2018.

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Olhar a rua, observar pessoas, inventar lugares sobre Praça do peixe (2018), de Bernard Machado, Florence Defawes, Marina Sandim e Ralph Antunes

Maria Ines Dieuzeide*

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alvez o desafio a que Praça do peixe (2018) se dispõe seja o de, ao observar as pessoas que se aglomeram ali, acessar o modo como elas criam para si aquele espaço. O curta começa quase herdeiro do direto: câmera mais distante, no exercício do registro sem interferência, a olhar um grupo de pessoas que remexem sacos de lixo. Aos poucos os planos se aproximam, mas as vozes seguem inaudíveis, cobertas com o som forte dos veículos que passam por ali. Até que uma presença feminina irrompe o quadro, assumindo sua voz e seu protagonismo. Ela encara a câmera, explica procedimentos de que lança mão para atravessar a noite, dirige o fotógrafo: “filma ali o peixe!” – e ele obedece. Fora de campo, começa um funk, que funciona como uma deixa para que o filme saia do “direto” e assuma outros artifícios do cinema: o som abandona a diegese, o plano individualiza a personagem (ainda que nunca saibamos seu nome) e o funk parece tocar só pra ela, que domina a rua em toda sua extensão, atravessando-a com sua bicicleta. Pareceria, então, um documentário de personagem: em seguida conheceríamos essa

garota, algo de sua história. Mas não. A explosão anunciada por Mc Kevinho é abruptamente cortada, o plano não acompanha a bicicleta e somos levados a observar outros homens, compenetrados na tarefa de sobreviver. A dinâmica do filme (o desafio?) vai se revelando: a câmera se detém em algumas pessoas, nos revela pouco, mas deixa espaço para que o som adentre o universo de cada uma delas. Adentrar ou inventar? A partir dos gestos, da dedicação de cada um a cada coisa, os sons se descolam da matéria remexida filmada em preto e branco e parecem especular e recriar as percepções que aqueles homens e mulheres teriam sobre a fatia de espaço que lhes sobra – ou que é apropriada por eles. Praça do peixe nos envolve em uma cuidadosa elaboração sonora na tentativa de nos fazer conhecer ou compartilhar desses modos de ocupar a praça, de viver na rua. Assim, procedimento fílmico que é, ao som é permitida a recomposição do material captado, evidenciando ritmos e timbres que surgem durante essa noite, a partir de cada movimentação. Não se trata de ouvir as histórias dos personagens, mas de tentar captar e transformar,

*Pesquisadora de cinema e curadora. Doutora em Comunicação Social pela UFMG. Integra o grupo de pesquisa Poéticas da Experiência (UFMG) e trabalha na produção e edição da Revista Devires - Cinema e Humanidades. É uma das curadoras do Cineclube Sorpasso e colaboradora da revista Rocinante.


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na tela, as experiências vistas. Até que a pista sonora se descola do universo ruidoso que envolve os catadores de lixo e é completamente tomada por um samba quando o filme descobre o jogo de futebol. As pessoas filmadas, antes vistas sozinhas ou em pequenos grupos, agora são enquadradas num conjunto maior. Elas se espalham, disputam a pista com ônibus, demarcam seus campos e gols. De universos individualizados passamos a lidar com uma pequena comunidade à qual o curta oferece trilha musical, tentando captar os vínculos que se estabelecem ali ou talvez desviá-los em alguns centímetros, deslocando-os do frio, da noite que avança, das sobras. Mas então o corpo nu de uma mulher (que tem seu rosto desfocado digitalmente para não ser identificada) parece jogar o filme para o lugar da impossibilidade. Sua entrada em campo instaura o silêncio, interpõe distância e constrangimento. Sua nudez talvez só pretenda um passeio, mas esse corpo nos afronta, interrompe o futebol, perturba o correr da noite e talvez, de modo enviesado, reforça os laços da comunidade que se criava antes: diante desse corpo que parece habitar outra camada de experiência, que percebe o espaço em outra dimensão, a comunidade se agrega para rechaçar. O filme já não consegue outra entrada a não ser a observação distante e o silêncio total. A irrupção desta mulher sem rosto parece estilhaçar os universos que Praça do peixe se esmerava em construir, deixando clara a dificuldade de lidar com o espaço da alteridade. A câmera, então, assume a diferença, aceita a barreira que se interpõe entre quem filma e quem é filmado e expõe sua condição exógena: explicita o desconforto dos que são capturados pela lente, encara e é encarada, interpelada, burlada por eles. Depois do silêncio, o som direto: agora sim escutamos as vozes que tentam interagir com essa presença, mas nem sempre sabemos

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exatamente de onde elas vêm, já que a câmera não detém mais sua caminhada, não se deixa capturar. Ela segue, perscruta, atravessa. Depois deste longo plano que percorre a fila de gente que se prepara para dormir, a câmera se detém sobre um homem velho que leva um boné onde se lê “hungry”. O homem parece desconfortável com a câmera que o encara. Ele desvia os olhos, a câmera permanece; ele esboça um sorriso tímido, devolve e sustenta o olhar, volta a ficar sério. É só aí, depois de ver tanta gente à margem, que os letreiros vão nos informar que aquela multidão, proveniente de diferentes lugares, espera uma doação de peixes. Como lidar com a fome do outro? Como olhar para o outro? Praça do peixe parece se colocar esse desafio, mas não há uma única resposta para isso. Como habitar o universo criado por cada um? Diante das alteridades, como entender e dar a ver esses modos de ocupação, as relações tecidas, a experiência da margem? Neste curta, parece prevalecer o exercício de construir maneiras de, com o cinema, inventar, ocupar e compartilhar o espaço da rua.


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Inaudito: a água-viva de Lanny Gordin sobre filme de Gregorio Gananian

Pedro Aspahan*

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ogo no início, Inaudito (Gregorio Gananian, 2017), ao mesmo tempo homenagem e oferenda, apresenta o guitarrista tropicalista Lanny Gordin – aquele que encenou a própria morte diante da câmera de Sganzerla –, num jogo de luzes e silhuetas, como um teatro de sombras que permuta as posições do personagem na imagem. O longa inventa inauditos modos de arte-vida, no encontro com a loucura, com a arte contemporânea e com a experimentação musical. De um quadro a outro, Lanny atravessa mundos mas se mantém numa mesma espiral sonora que está sempre a retornar em ritornelos fragmentados e seriais, pois não apenas o Brasil e a China fazem parte de um só território imaginário-criativo-poético-musical, como de um mesmo universo sem fronteiras, do mesmo cosmos, de um mesmo tempo do ser agora. Sem começo, nem fim, sem passado, presente ou futuro, além da existência e da não existência, da eternidade, do infinito, do além do além, do todo e do nada, da vida e da morte: as palavras desse mestre zen dos ruídos eletrônicos se amplificam diante da mão erguida da estátua de um Buda gigante, a sugerir coragem. Poderíamos acrescentar: “a forma é o vazio, e o vazio é a forma. Tudo que tem forma é exatamente o vazio e tudo que é vazio é exatamente a forma”, como diz o

Sutra do Coração. O invisível prepara o visível. O multiartista José Roberto Aguilar performa o suprematismo de uma dança-pintura do branco sobre o branco e arranja a pauta vazia diante da qual o solo blue da guitarra distorcida, à la Jimmy Hendrix, pode se inserir, negando qualquer interpretação ou metáfora. “Som, sssssommm, só o som e o silêncio”, declama Jards Macalé. O som vem de outras esferas. É a construção de um novo estilo: o “free total”. A música pura. Um La Monte Young chino-brasileiro eletrificado. A loucura da música, dessa outra linguagem, expressa o seu mundo interior, como “duas jabuticabas que andam lado a lado, observando o linguajar das outras.” Frequências ondulantes, a energia penetra o corpo e o transforma em música. Tocar é calar a escuta das vozes internas e tornar-se música, fluir com a música, ver, pegar, comer o som: um corpo sem órgãos musical. O inconsciente como máquina-esquizo produtora de sonoridades infinitas. O filme se estrutura a partir de uma lógica serial e fragmentária, reunindo diferentes performances ou happenings artísticos, num diálogo fortemente marcado pela proximidade com as artes contemporâneas (pintura, dança, cinema, poesia, teatro), pelos encontros com outros músicos e pela improvisação. Um pontilismo

*Doutor em Comunicação Social pela UFMG, onde desenvolve pesquisa de pós-doutorado junto ao Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais. É também músico e realizador, dedicando-se às relações entre as formas musicais e cinematográficas.


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construído com liberdade, de forma rizomática e por livre associação. A forma do filme também improvisa, à sua própria maneira, em diálogo com o free total de Gordin, dando a ver a sua musicalidade fílmica. A passagem de um plano a outro pode se dar por um som, uma cor, um movimento, um território, um traço, um afeto, um gesto, uma textura, criando linhas de forças que se entrecruzam e se sobrepõem no tempo. A relação imagem e som é complexa e disjuntiva, como as duas jabuticabas que caminham lado a lado, mas sem se submeterem uma à outra, interessadas que estão no linguajar exterior, produzindo assim um amplo espaço de liberdade entre o que se vê e o que se escuta, seja na relação com a palavra, com o som, com o silêncio ou com a música. A imagem pode viajar no tempo e no espaço, produzindo poesia e não se submetendo ao imperativo da sincronia. A forma fílmica parece dialogar com os princípios de composição da música do século XX: a estética do serialismo com suas variações por espelhamento, a aleatoriedade e o jogo do I-Ching, a improvisação e o free jazz. Ela oscila entre o rigor do controle das séries e a improvisação: dois caminhos diferentes que podem nos conduzir para uma mesma sensação de aleatoriedade, mas sem perder de vista uma certa linha narrativa, pautada na vida de Lanny. Próximo ao início do filme, o guitarrista se apresenta, contando um pouco da sua história, a origem chinesa e russa dos seus pais e avós. Enquanto isso, vemos a imagem do personagem de ponta cabeça para que o seu reflexo na poça d’água pareça normal. A imagem transcende a normalidade, vai além, em busca de um estado superior. Antes, tínhamos visto o Tai Chi Chuan de trás pra frente. As operações de variação por espelhamento, próprias do serialismo musical, são aplicadas sobre a imagem.

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A figura da água ganha uma enorme centralidade na lógica, na estrutura e na sensibilidade do filme. Não apenas por sua imagem especular, mas também por suas ondas, que remetem à própria forma acústica do som. A água nos ajuda a ver o som, habilidade inata ao guitarrista Lanny Gordin. Ao longo do filme vemos poças d’água, cachoeiras, arrebentação das ondas do mar, ondinhas menores no alto mar, ideogramas chineses desenhados no chão com água, o vapor das nuvens, fumaça, um aquário. Lanny percorre algumas pontes sobre lagos, chega no limite de um pier sobre o oceano, atravessa uma porta com o mar ao fundo (toda porta tem duas faces). Mesmo as paredes branca ou vermelha, que parecem sólidas num primeiro momento, podem se tornar líquidas e fluidas com as tintas do pintor que invadem o quadro ou com as mãos que as penetram. A imagem pode parecer sólida, mas é muitas vezes líquida, fluida, sonora. A água também sugere a travessia entre mundos, do visível ao invisível sonoro, do material ao espiritual, do Brasil à China, de ponta cabeça, da normalidade à loucura. A navegação como processo criativo é um lançar-se em águas desconhecidas. O oceano se torna o espaço exterior e sem borda da criação, imagem historicamente associada à loucura, como aponta Foucault: Fechado no navio, de onde não se escapa, o louco é entregue ao rio de mil braços, ao mar de mil caminhos, a essa grande incerteza exterior a tudo. É um prisioneiro no meio da mais livre, da mais aberta das estradas: solidamente acorrentado à infinita encruzilhada. É o Passageiro por excelência, isto é, o prisioneiro da passagem. E a terra à qual aportará não é conhecida, assim como não se sabe, quando desembarca, de que


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terra vem. Sua única verdade e sua única pátria são essa extensão estéril entre duas terras que não lhe podem pertencer. (...) Uma coisa pelo menos é certa: a água e a loucura estarão ligadas por muito tempo nos sonhos do homem europeu. (FOUCAULT, 1978, p. 16-17) Em uma das imagens mais incríveis do filme, Lanny Gordin visita um aquário gigante na China e se depara com um enorme conjunto de águas-vivas que flutuam sobre o azul. Enquanto escutamos os efeitos de notas curtas de suas pedaleiras elétricas com a guitarra, ele diz que toca “música free” e está vendo as águas-vivas nadando. Elas são águas que são vivas e precisam ser libertadas no oceano. A sequência parece sintetizar um amplo conjunto de sentidos, desde a musicalidade da imagem, com as águas-vivas flutuando no azul da água, como as notas da guitarra repercutidas pelos efeitos da pedaleira, mas também, o desejo de libertar as águas no oceano, um desejo libertário que poderíamos associar também à relação com a loucura. Inaudito é um filme singular e muito especial em vários aspectos, não apenas por conseguir produzir uma biografia musical de um grande artista (talvez inaudito) da música brasileira, mas por fazer isso fora da rasa lógica comercial tão recorrente nesse novo gênero cinematográfico. Poucas vezes na história do cinema brasileiro, pudemos ver um filme tão comprometido eticamente com a loucura de seu personagem, tratando esse tema tabu, sem estigmas e metáforas superficiais, sem estetização ou exploração gratuita da imagem do outro. Muito pelo contrário, o filme se ancora na fina escuta desse sujeito, o que permite à forma fílmica tornar-se música, ir além, transcender a normalidade e encontrar um estado superior. A água viva também é fogo (em seu delírio de libertação) e queima. É respiração e

transparência. É assim que a água ganha vida e é libertada no oceano sem bordas da criação artística. O filme se torna ficção científica e nos transporta, na nau dos loucos, para um outro mundo, uma Pasárgada futurista, onde é possível falar com deus, e onde a frequência sonora é acelerada para se tornar luz divina por toda a eternidade. Um lugar sem lugar, onde o tempo foi abolido, sem início, sem fim. A água e a luz alimentam uma frondosa árvore, diante da qual ele pergunta: o que é a vida? Referências ELMOR, Carime. Entrevista: Gregorio Gananian fala sobre o filme Inaudito. Scream & Yell, 2018, disponível em: <http://screamyell.com. br/site/2018/06/08/entrevista-gregorio-gananian-fala-sobre-o-filme-inaudito/>. Acesso em 22/10/2018. FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1978.


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Quando vaga-lumes entraram em cena sobre Conte isso àqueles que dizem que fomos derrotados (2018), de Aiano Bemfica, Camila Bastos, Cristiano Araújo e Pedro Maia de Brito

Vinícius Andrade* De onde ninguém esperava, pareciam emergir novos sujeitos coletivos, que criavam seu próprio espaço e requeriam novas categorias para sua inteligibilidade Eder Sader, Quando novos personagens entraram em cena

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m oportuno enunciado parece brotar de dentro do jogo visual e cênico feito de corpos, silhuetas, pequenos gestos, penumbra, vozes, ruídos e luzes fugidias que compõem Conte isso àqueles que dizem que fomos derrotados: o de que, bem ali onde e quando os poderes instituídos (o Estado em parceria com grupos econômicos, a mídia corporativa e as forças policiais) menos esperam, a luta social acontece. Mais especificamente, enquanto muitos, distribuídos em matizes diversos do espectro político, acreditam que o estado de coisas posto em causa no Brasil nos últimos anos passa sem respostas contundentes, o enfrentamento está sendo travado e tem como protagonista um sujeito coletivo. Que esse enunciado possa ser recolhido a partir de elementos que, trazidos para a “frente” da imagem pelos realizadores, não expõem situações totalmente visíveis ao espectador, é

revelador do duplo caminho de engajamento oferecido pelo filme. Nota-se, assim, uma dimensão em que as ações que se desenrolam diante dos nossos olhos se embebem de teor simbólico, de expressividade plástica, de carga metafórica. Esta pode ser fruída nas luzes das casas que cintilam ao fundo das imagens, sugerindo-nos uma relação com a “cidade”, na cor do céu, que em uma das sequências adquire o tom de iminente alvorecer, conectando-nos ao imaginário da madrugada como momento propício à luta, ou ainda na intermitência das fontes luminosas, como lanternas, responsáveis por repartir o que se vê e o que não se vê, fazendo os ocupantes assemelharem-se a uma horda de seres brilhantes trabalhando sob a escuridão. Ao mesmo tempo, uma dimensão mais indicial das imagens nos dá evidências a respeito da singularidade das ações que estão em andamento no interior dos planos e sobre um possível contexto imediato que as envolve. Isso pode ser assinalado através de palavras ditas no transcorrer das situações, como as de orientação para as pessoas que descem do ônibus (“por aqui, pessoal!”), indicando que se trata de uma mobilização coletiva organizada com fim específico, nos símbolos ou dizeres que por vezes conseguimos distinguir na camisa das pessoas (“Morar

*Doutorando em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais, membro do grupo de pesquisa Poéticas da experiência.


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dignamente é um direito humano”), informando-nos que as ações visam a conquista de moradia, ou ainda nos gestos concretos de proteger o território, preparar comida, escavar a terra e montar barracas, bem como o de “hastear” a bandeira, que delimita o terreno com a marca histórica da luta em curso. Mas, a rigor e com efeito, em momento algum uma dessas dimensões (simbólica e indicial) se descola para operar sem a cumplicidade da outra. Pelo contrário, parecem mesmo endereçar-se mutuamente. Um momento exemplar dessa cumplicidade, em que parece chegar a um grau elevado de condensação, é a cena em que um homem segura uma foice, ora em pé, ora agachado, à espreita de alguma possível ameaça à ação conduzida pelo coletivo. Sua posição de alerta para um perigo real, a atenção cerrada, o corpo em prontidão, a foice nas mãos, a atmosfera que o cerca, são elementos que, simultaneamente, aportam sentidos práticos, ligados à ocupação situada do território, e significados simbólicos, relacionados a uma ideia mais ampla de luta e resistência política. Nessa conjugação me parece estar um dos aspectos mais estimulantes do trabalho desse grupo de realizadores militantes que têm se engajado ao lado do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) em Belo Horizonte. A virtude de fazer da imagem o campo de relação entre o atravessamento das forças que fazem vibrar a luta e uma experimentação interessada e comprometida acerca das formas de figurar tal luta, intrincando as tomadas de posição que estão na origem da fabricação das imagens ao seu domínio sensível. Um traço que evoca o argumento da pesquisadora Nicole Brenez (2006) – formulado em outro contexto, mas útil aqui – de que as “obras cruciais” são aquelas capazes de transgredir ou recusar as separações “ideologicamente determinadas”, criando “sua própria

legalidade onde precisamente nada as autorizaria” (BRENEZ, 2006, p. 38). Talvez essa singularidade, que a seu modo comparece em Conte isso, surja mesmo em razão das circunstâncias de produção vivenciadas pelos realizadores junto à luta do MLB, por meio das quais as imagens elaboradas inserem-se num trabalho mais amplo de comunicação desenvolvido a partir do interior do movimento (e que encontra analogias na nossa história sociocultural, como a prática do Vídeo Popular). Assim, o pensamento é levado a considerar a função estratégica das imagens e a fazê-las desdobrarem-se em diferentes formas de participação na luta (ativando mobilizações, servindo à segurança dos militantes, integrando peças jurídicas), com suas possíveis trilhas de circulação (reuniões, redes sociais, circuitos alternativos de exibição), processos que acabam por atravessar, incidir, fazer eco e deixar marca na forma dos filmes. Tal intersecção entre a produção de imagens e as exigências concretas de uma luta parece fazer justiça a uma característica fundamental apresentada por mulheres e homens que se lançam na luta por moradia digna nas cidades brasileiras. Esses militantes, trabalhadores organizados em movimentos para efetivar um direito que lhes concerne, sujeitos que estabelecem um projeto comum por meio do qual reelaboram suas identidades e expressam seus desejos de transformação social, aparecem como demonstração viva do que seja o entrecruzamento produtivo entre forças de sobrevivência e forças de mobilização coletiva, um entrelaçamento radical, decisivo, entre vida e luta. Em Conte isso àqueles que dizem que fomos derrotados, eles irrompem no silêncio da noite como quem surge das zonas de invisibilidade social para onde normalmente são expulsos e ascendem suas chamas como quem recusa o apagamento a que continuamente são


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submetidos. Se aqueles que se julgam triunfantes ou mesmo os que não enxergam as respostas a esses supostos vencedores dão por encerrada a batalha, vangloriando-se da vitória, Conte isso volta sua atenção para o que foi ignorado, para aqueles outros que, ao modo de vaga-lumes – “seres luminescentes, dançantes, erráticos, intocáveis e resistentes enquanto tais” (DIDI-HUBERMAN, 201 1, p. 23) – entram para redefinir a cena fílmica e política. Referências BRENEZ, Nicole. História das formas. Recine Revista do Festival Internacional de Cinema de arquivo. Ano 3, número 3. Arquivo Nacional, dezembro de 2006. DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobreviência dos Vaga-lumes. Belo Horizonte, Editora UFMG, 201 1. SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo (1970-1980). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

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Pela continuidade da escuta sobre Bloqueio (2018), de Victoria Alvarez e Quentin Delaroche

Hannah Serrat*

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loqueio (2018), de Victoria Alvarez e Quentin Delaroche, registra a greve dos caminhoneiros no país, em maio de 2018, às margens de Seropédica/RJ, e auxilia-nos a compreender, criticamente, algumas nuances da situação política brasileira. O filme, que se vale da urgência do registro, da montagem e da distribuição (realizada apenas alguns meses após as filmagens), encontra o espectador a partir de uma temporalidade espessa. O momento em que vivemos, enquanto vemos o filme na atualidade (apenas alguns meses após a greve e tomados pela perversa corrida eleitoral à presidência da República), modula as cenas, abre lacunas, agencia linhas de força. Ouvimos os gritos, os cantos e as orações dos manifestantes serem lançados do passado para o presente, do presente para o futuro. Vemos as imagens, aparentemente distantes de nós, habitarem nossas vizinhanças. Com precisão, Bloqueio retrata a complexidade de nossos tempos, entre desejos latentes de mudança e estados de paralisia. Em 2018, enquanto nos havemos com a impossibilidade do diálogo e o avanço da extrema direita, que clama pela intervenção militar ao som incessante do hino nacional, Bloqueio acolhe miragens, nas ilusões de um povo desejante, tomado pelo desespero; produz reflexos, de nós que nos projetamos, de uma maneira ou de outra,

nas negociações em cena; e multiplica janelas, que nos permitem ver, em ato, tanto a mobilização dos trabalhadores, quanto a produção e a reprodução de seus próprios registros, feitos pelas câmeras de seus celulares e compartilhadas incessantemente entre si. O filme de Delaroche e Alvarez assombra-nos e desafia-nos, enquanto prenúncio perturbador de uma crise democrática que vem se aprofundando, pelo menos desde as jornadas de junho de 2013, e que parece assumir, com clareza, ao mesmo tempo, formas inesperadas e absolutamente previsíveis. O primeiro plano do filme é do interior de um carro em movimento. Observamos a rodovia duplicada, assim como o acostamento da pista e o canteiro central que, aos poucos, vão sendo ocupados por pedestres, caminhões e pequenas placas improvisadas, escritas à mão. Em uma delas, lemos: “Intervenção militar”. No chão, grafada de giz, vemos a mesma inscrição. A câmera que filma através do para-brisa sobrepõe nossa perspectiva à do motorista e/ou dos cineastas – no antecampo, a equipe será composta apenas pelos dois realizadores que se dividem: Quentin Delaroche faz a câmera, Victoria Alvarez, o som direto. De antemão, não partilhamos um ponto de vista apenas, somos situados em relação ao lugar social de quem faz o filme e tem um carro de passeio para dirigir em uma rodovia pedagiada.

*Pesquisadora, crítica e realizadora de cinema. Mestre e doutoranda em Comunicação Social pela UFMG, integra o grupo de pesquisa Poéticas da Experiência. É crítica colaboradora das revistas Cinética e Rocinante.


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Não veremos os realizadores em cena, apenas ouviremos suas vozes em situações pontuais. Pouco interpelam e, menos ainda, são interpelados. Mesmo quando os personagens falam para a câmera, muitas vezes, é com o espectador que desejam falar. O plano inicial não apenas nos situa, portanto, em relação ao gesto do filme de ir ao encontro dos caminhoneiros, vindo de fora dali, mas nos aponta, brevemente, para esse lugar de quem olha, de quem filma. O gesto é simbólico. Estar na estrada, vendo o mundo passar pelo para-brisa, dentro de um carro (e não de um caminhão), muda tudo. Em grande medida, Bloqueio constitui-se a partir dessa perspectiva externa e observacional. É preciso ir ao encontro dos outros que lutam, registrar o mundo se mover com eles, cada vez mais, mas sem intervir. Ao longo do filme, a câmera anda em meio aos corpos filmados, aproxima-se dos rostos, por vezes quase toca um braço, um ombro, mas preserva o recuo. A frontalidade do registro que nos aproxima dos sujeitos é a mesma que pressupõe uma divisão intransponível entre os dois lados da câmera. Entre um e outro (ou, valendo-nos do gesto autocrítico que demandam nossos tempos, entre nós e eles), preserva-se o para-brisa. Se, como nos diz Amaranta Cesar,1 o cinema militante “participa das lutas” (e não apenas as representa ou as traduz), o que faz Bloqueio, em seu gesto observador? De início, o filme apresenta-nos os grevistas em sua singularidade de feições, falas e gestos. Mostra-nos homens e mulheres, caminhoneiros e caminhoneiras, de várias partes do país (ainda que não consigamos reconhecê-los por seus nomes). Cada um/a tem suas demandas e se engaja na luta como pode. Diante de um plano geral, de um corpo coletivo que canta e ora junto, uma pequena fala irrompe

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o discurso monolítico que parecia tomar lugar. O filme parece constantemente esperar por ela. Em momentos pontuais, os cineastas posicionam-se diante dos caminhoneiros (especificamente, questionando a demanda pela intervenção militar), mas não dão prosseguimento a seus argumentos. O desejo de escutar o que os trabalhadores têm a dizer parece levar o cinema a operar silêncios. Uma das poucas cenas que se abre, de fato, às diferenças de perspectivas, é quando um casal jovem se aproxima dos caminhoneiros, para entender suas demandas e questionar o desejo pelo retorno da ditadura militar. De antemão, eles são recebidos com certa hostilidade. Cuidadosamente, eles contam suas histórias, se avizinham, recusam qualquer vinculação partidária. Tentam criar um vínculo, demonstrar afinidades. A aparição dos dois, no interior do filme, é preciosa, assim como a possibilidade de diálogo que se estabelece a partir daí. Mas, ainda assim, eles só poderão apontar suas discordâncias, como faz a professora grávida, sem conseguir justificar, esclarecer ou confrontar pontos de vista. O retrato produzido por Bloqueio adensa-se, portanto: não se trata apenas de registrar o cotidiano e as demandas do movimento grevista, mas de colocar em cena distâncias, impossibilidades de diálogos, fraturas. No espelho produzido pelo filme, nós, que só podemos nos projetar no lugar ocupado pelos jovens militantes, precisamos nos haver com o fracasso de um projeto político que já não dá conta de alcançar os trabalhadores em suas demandas, em sua luta. Por fim, a questão que nos acompanha, se reporta a essa espectatorialidade que o filme parece acionar: afinal, o que se passa quando aqueles que o assistem são mobilizados por outras projeções e desejam, justamente, fazer calar as diferenças?

1. Em entrevista à Revista Continente. Disponível em: <https://www.revistacontinente.com.br/secoes/ entrevista/-uma-imagem-vibra-nos-sujeitos--libera-energia-de-luta->. Acesso em: 23/10/2018.


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Do que não é espelho: a relação etnográfica em Terremoto Santo sobre filme de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca

Roberto Romero*

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ilmado com jovens cantores gospel associados à gravadora Mata Sul, da zona da mata pernambucana, Terremoto Santo é, nas palavras dos diretores Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, um “documentário musical”. O curta-metragem, que tem circulado tanto como instalação em exposições de arte quanto nas telas dos festivais de cinema mundo afora, alterna uma série de cenas nas quais os cantores são convidados a executar os hinos gospel de sua autoria em ambientes geralmente externos e algo idílicos, como lagos, cachoeiras, o topo de um monte ou as águas cristalinas de um rio. Rigorosamente compostas e observadas à distância e à profundidade dos planos gerais e quase sempre fixos, as cenas remetem a fotografias. Tudo, do cenário, da luz aos figurinos, é feito de modo a acolher, nas imagens, a estética particular do universo evangélico neopentecostal, fenômeno religioso crescente em todo o país. O cuidado nas composições não é ocasional em se tratando de um trabalho com as mãos de Bárbara Wagner. Mais conhecida por sua obra como fotógrafa, Wagner fez do retrato uma marca pessoal, geralmente interessada em personagens que de algum modo representam o Brasil das últimas décadas, embalado pela ascensão econômica das classes C e D, pelos movimentos

culturais de periferia como o Brega e o Funk Ostentação ou o avanço do neopentecostalismo, já retratado na série de fotografias Crentes e Pregadores (2014) e mais recentemente neste Terremoto Santo. Mas a abordagem que distingue seu trabalho, ao contrário do que o recorte de classe dos “outros” retratados possa sugerir, é menos sociológica do que etnográfica, como gostaria de argumentar neste ensaio. Isso porque há uma preocupação que atravessa e orienta todos eles em retratar o “outro” o mais próximo possível da maneira como este “outro”, sejam banhistas de uma praia no subúrbio do Recife, MC’s da periferia de São Paulo ou jovens neopentecostais da Zona da Mata pernambucana, gostaria de se ver retratado. Em algumas das fotos, tal coincidência aproxima os retratos de um estilo quase “sob encomenda”; Terremoto Santo poderia, em outros circuitos (naqueles próprios à rede de cantores filmados, por exemplo) ser exibido como um videoclipe. Tudo se passa como se os realizadores evitassem mesmo sobrepor o seu olhar às formas de auto-representação dos próprios retratados. É na abertura ao olhar dos outros sobre si e na atenção aos elementos que permeiam o seu universo onde Wagner e de Burca posicionam os seus próprios olhares.

*Doutorando em Antropologia Social no Museu Nacional (UFRJ).


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Estamos aqui diante daquilo o que Jean-Louis Comolli, na esteira de Claudine de France, notabilizou como a “auto-mise-en-scène”, isto é, aquela convicção de que as pessoas filmadas possuem “uma mise-en-scène própria, autônoma, em virtude da qual (...) mostram de maneira mais ou menos ostensiva, ou dissimulam a outrem, seus atos e as coisas que as envolvem, ao longo de atividades corporais, materiais e rituais” (2008, p. 83). Mas se esta mise-en-scène própria é inerente a qualquer processo filmado, em Terremoto Santo ela orienta igualmente a própria mise-en-scène dos diretores. Trata-se daquele gesto raro, como também apontou Comolli, em que “a mise-en-scène mais decidida (aquela que supostamente vem do cineasta) cede lugar ao outro, favorece seu desenvolvimento, dá-lhe tempo e campo para se definir, se manifestar. Filmar torna-se assim, uma conjugação, uma relação na qual se trata de se entrelaçar ao outro – até na forma” (2008, p. 85). Assim, a rigidez da composição das cenas, além dos recursos evidentes à roteirização e à ficcionalização em Terremoto Santo não contrariam a sua força documental, uma vez que todo este esforço de composição é colocado a favor das pessoas filmadas e das suas próprias formas de representação. Essa “abertura ao outro”, pelo cinema, é o que também aproxima o curta daquilo o que entendemos como “filme etnográfico”, especialmente neste festival. O rótulo “etnográfico” costuma ser tão evitado por cineastas ou artistas visuais quanto o “sociológico” – a evitação deste último sendo talvez mais compreensível.1 No campo semântico da crítica cinematográfica convencional, o adjetivo costuma remeter quase sempre a uma negatividade associada a certa “caretice” formal (no que os chamados “antropólogos visuais”, no Brasil 2

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pelo menos, têm uma boa cota de responsabilidade). Mas em boa medida, creio, esta rejeição se explica por um próprio desconhecimento ou desqualificação daquilo o que se entende como “etnografia”. Frequentemente, o que define um filme enquanto “etnográfico” tem tão somente a ver com a coincidência entre os sujeitos filmados e os sujeitos tradicionalmente pesquisados pelos antropólogos, isto é, minorias étnicas, sociais, raciais ou sexuais. Outras vezes o adjetivo se limita a reconhecer, no filme, procedimentos estéticos que se tornaram, na história do cinema, representativos do “filme etnográfico”, a saber, a longa duração dos planos, a preferência pela câmera na mão, o recurso exclusivo ao som direto, além de certa rejeição por parte de quem filma por qualquer intervenção, direção ou controle sobre quem ou o que é filmado. Muito pouco, quase nunca, se aprofunda a discussão sobre as próprias condições de realização do filme, aquilo que o precede e também o permite e que podemos chamar de “relação etnográfica”. Qualquer etnógrafo ou etnógrafa sabe que um dos maiores desafios diante da tarefa que se incumbiu é falar daqueles com quem estuda para aqueles com quem estuda. Como reconhecia Marcio Goldman numa comunicação republicada neste catálogo, convidado justamente a falar para aqueles com quem pesquisa, no Terreiro Matamba Tombenci Neto, em Ilhéus: “em geral, os antropólogos (...) fazem suas pesquisas para poder contar a outras pessoas aquilo que aprendem com pessoas que sabem mais do que eles. Meu problema aqui, hoje, é que devo falar também para as pessoas que, há mais de 20 anos, vêm me ensinando o pouco que sei não apenas sobre o candomblé, mas também sobre a consciência e a resistência negras, e que, portanto,

1. Ver a esse respeito a contundente crítica de Jean-Claude Bernardet ao “modelo sociológico” no documentário brasileiro em Cineastas e Imagens do Povo. Brasiliense, São Paulo, 1985.


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sabem mais do que eu sobre aquilo de que devo falar”. Por muito tempo, é verdade, os etnógrafos foram protegidos ou se protegeram deste desafio, quer seja pela distância geográfica entre aqueles de quem falavam e aqueles (seus pares) para quem falavam, quer seja também por uma suposta e mais complicada “distância crítica” que aparentemente tornava os pesquisadores até mais preparados para falar dos primeiros do que eles próprios, devido a uma superioridade analítica qualquer ou à convicção de que os analistas teriam algum acesso privilegiado à cultura ou contexto alheios sendo capazes de ver ou entender aquilo que os próprios interlocutores (como que confinados nos limites da própria “visão de mundo”) seriam incapazes de perceber ou compreender por si sós: as tais “estruturas”, as “funções sociais” ou a “construção social” disso ou daquilo e por aí vai. Atualmente, no entanto, parece que o jogo virou (ou, pelo menos, está virando). Seja pela crítica a que a própria escritura etnográfica foi submetida a partir dos anos noventa, seja por uma maior proximidade e controle dos coletivos pesquisados sobre os frutos e desdobramentos das pesquisas e dos pesquisadores, o conforto da distância (geográfica, crítica, mas também teórica e política) diminuíram ou se viram tensionados como nunca até então. Por outro lado, os próprios antropólogos passaram a se interessar por coletivos nem tão distantes e nada minoritários como cientistas, advogados, economistas e políticos, por exemplo. Conhecido por um trabalho inovador nos estudos da ciência, Bruno Latour é um dos principais nomes associado à crítica desta certa “sociologia crítica”. Repudiando veementemente aquela tradição epistemológica que destinava ao pesquisador o posto de observador privilegiado de alguma “realidade social”, o autor destacou em seus

trabalhos a reflexividade inerente aos próprios atores pesquisados. Ao pesquisador caberia, assim, muito menos definir o “contexto social” ou a natureza das relações que o engendram do que seguir as próprias conexões estabelecidas pelos atores, entre os próprios atores. Nas palavras de Latour: “os atores estão sempre engajados na tarefa de mapear o ‘contexto social’ em que estão situados, oferecendo ao analista um corpus teórico completo sobre qual sociologia é mais adequada para aproximar-se deles” (2005, p. 32). Se faço, portanto, este breve excurso meta-etnográfico é porque o procedimento em jogo em Terremoto Santo me remete a tal conexão. Conexão reforçada por Bárbara Wagner em uma de suas entrevistas quando afirma que “o gesto político do filme é de falar sobre os evangélicos, com eles”. Mas se falar com é o próprio fundamento da “relação etnográfica”, falar para os próprios “etnografados” é, por assim dizer, o seu teste crucial. Isso não significa reivindicar, evidentemente, alguma transparência absoluta ou ausência ilusória de mediação entre estes “lugares de fala”. Trata-se, apenas, de reconhecer que quanto mais próximo um lugar do outro, um lugar com o outro, mais bem sucedido será o texto ou o filme etnográficos. E as consequências políticas de uma tal aproximação não são nada desprezíveis, pois estamos aqui no terreno da tradução e da diplomacia, tão urgente nos tempos que atravessamos. Em 1991, 9% da população brasileira se declarava evangélica. Em 2000, eram 15%. No censo de 2010, o número cresceu para 22%. Segundo algumas estimativas, os evangélicos poderão ser maioria no país em dez anos. De acordo com pesquisa do Ibope, nas eleições deste ano, o candidato Jair Bolsonaro obteve o seu melhor desempenho entre o eleitorado evangélico: 66% preferiu o capitão ao professor Fernando Haddad. Apesar de representar um


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verdadeiro fenômeno na sociedade brasileira dos últimos anos, a presença evangélica tem sido praticamente ignorada pelo documentário brasileiro contemporâneo. Em suas raras aparições, a montagem estilo “sociologia crítica” costuma forçar a mão na linha do deboche ou da caricatura. Mas a questão é mais ampla: as esquerdas e suas raízes iluministas (quando não católicas, como no Brasil) se afastaram há bastante tempo da religião como campo de disputas, preferindo fazer ouvidos moucos ao estrondo neopentecostal e abordar os fiéis pelo viés da “falsa consciência” sempre temperado por boas doses de classismo. No seu imaginário, sempre prevaleceu a imagem do evangélico fundamentalista, conservador, ignorante e manipulado por suas lideranças religiosas. É difícil saber até que ponto o estereótipo reforçado por uns alimentou a performance adotada pelos outros. Por onde tem passado, Terremoto Santo provoca reações controversas na crítica e no público. Em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, Ana Virginia Baloussier afirmou que o filme “bambeia entre respeito e deboche”, apesar de todos os evangélicos para quem ela enviou o filme terem elogiado: “achei até que fosse um diretor evangélico”, disse um pastor. Numa comentada exibição na Janela Internacional de Cinema do Recife, o filme foi recebido às gargalhadas e vaias de indignação. A reação é sintomática, sobretudo vinda de um público majoritariamente cinéfilo e de classe média alta universitária como o que circula em festivais. Ao evitar falar com os evangélicos, negando-se qualquer abertura à sua própria estética, o que se está negando é a própria diplomacia, a própria política. Mas é que Narciso não gosta...

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Referências BALOUSSIER, Anna Virginia. Curta com cantores evangélicos bambeia entre respeito e deboche. Folha de S. Paulo, 21/1 1/2017. Caderno Ilustrada. COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder: a inocência perdida – cinema, televisão, ficção, documentário. Editora da UFMG, Belo Horizonte, 2008. GOLDMAN, Marcio. Tradição, criativadade e resistência em territórios negros. Catálogo do forumdoc.bh.2018. LATOUR, Bruno. Reassembling the social: an introduction to actor-network theory. Oxford University Press, New York, 2005.


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O múltiplo da fotografia* sobre Travessia (2017), de Safira Moreira, e Inconfissões (2017), de Ana Galizia

Glaura Cardoso Vale**

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ravessia (Safira Moreira, 2017) e Inconfissões (Ana Galizia, 2017) são filmes com fotografias, mas não só. O primeiro parte da fotografia de uma mulher negra segurando uma criança branca. Começando por um recorte dos pés, passando por um detalhe do vestido, depois das mãos a segurar a criança, dos rostos que se tocam, até a imagem surgir completa. No verso da fotografia, sabemos a profissão: babá. O segundo é uma narrativa pessoal, a partir dos registros deixados pelo tio que a realizadora não conheceu. Travessia fala da ausência1 de registros fotográficos das famílias negras, como nos lembra Heitor Augusto e Kênia Freitas,2 e da urgência de reconfigurar esse álbum. Inconfissões nos revela que é justamente a presença do registro nos álbuns de uma família de classe média branca que permitirá reconstruir uma memória para o tio ausente. Ao colocar lado a lado esses dois

filmes, procuro perceber a utilização criteriosa do registro fotográfico neste cinema de mulheres: seja como reivindicação de uma imagem liberta das formas opressoras para recontar a história, seja para tornar visível a ausência de alguém que fez do registro fotográfico e fílmico a sua forma de vida. O poder de síntese de Travessia e a habilidade também de Inconfissões – ao lidar com uma heterogeneidade de materiais – nos permitem mergulhar em mundos muito distintos, mas que encontram no gesto de colocar a fotografia em cena a sua potência. E é sobre essa potência que pretendo discorrer, levando em conta todo um histórico de documentários que recorrem à iconografia para dar conta de narrar memórias e/ou denunciar atos bárbaros cometidos contra minorias que resistem – apesar da brutalidade alheia e de políticas autoritárias que teimam em

*Este ensaio faz parte de uma série de reflexões que tenho desenvolvido desde 2013, tentando compreender a solicitação da fotografia no cinema como dispositivo de rememoração. Quando Travessia (Safira Moreira, 2017) e Inconfissões (Ana Galizia, 2017) me chegaram, quis logo entender como se dá a dimensão desse gesto atualizado pelas realizadoras nesses dois curtas. **Pesquisadora e ensaísta. Integra a Associação Filmes de Quintal e colabora com o forumdoc.bh desde 2003. Doutora em Estudos Literários pela FALE/UFMG, com pós-doutorado em Comunicação Social pelo PPGCOM/ UFMG, tem se dedicado a editoração e oficinas de cinema e educação. 1. Conforme Heitor Augusto, Travessia “é um filme sobre a imagem ausente. Primeiro curta de Safira Moreira – baiana radicada no Rio –, o documentário está na dialética entre diagnosticar – as fotografias de pessoas negras no século 19 e começo do 20 remetem majoritariamente a trabalho e subserviência – e estancar a ferida, provendo curas – as fotografias posadas feitas pelo próprio curta”. In: Cinema Negro: capítulos de uma história fragmentada. Catálogo do FESTCURTASBH. Ana Siqueira [et al.]. Belo Horizonte: Fundação Clóvis Salgado, 2018. p. 57-58. 2. Cf. Catálogo do FESTCURTASBH. Ana Siqueira [et al.]. Belo Horizonte: Fundação Clóvis Salgado, 2018.


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excluí-las da vida em sociedade, como nos dá a ver Cabra Marcado para Morrer (1964/1984), de Eduardo Coutinho.3 Em Travessia, como já mencionado, a fotografia inicial, em preto e branco, nos é apresentada primeiramente em fragmentos até que seja colocada no centro do quadro. As demais fotografias, a maioria coloridas, serão manuseadas e mostradas de frente para a câmera por uma jovem mulher negra que as eleva à altura do rosto – o que nos faz imaginar um contracampo que confronta a primeira imagem, algo que atravessa transversalmente a fotografia intitulada “Tarcisinho e sua babá”, datada de 1963. As imagens coloridas são de cenas cotidianas: pessoas reunidas na sala de estar, crianças em uma festa de aniversário, uma criança num carro de brinquedo enquanto adultos se jogam no sofá, outra de duas mulheres sentadas e descontraídas ignorando a pose, ao passo que um menino de pé, com um balão azul na mão, mira o fotógrafo. Nas sequências de encerramento, o filme propõe a composição de quadros filmados, começando pela mesma jovem de perfil e de frente, depois um jovem casal, famílias negras em espaço público, reunidas num banco de praça ou num parque, como se reivindicasse no presente, a partir desses retratos, esse álbum que lhes fora negado no passado. Travessia pretende a liberdade, o direito à imagem, para todas essas pessoas que a câmera encontra e que remetem a outras tantas espalhadas pelo país, agora com seus álbuns de família. Inconfissões procura agenciar todo o material que se achava fragmentado sobre uma existência, buscando, no núcleo de uma família, falar daquele tio que partiu para o estrangeiro, que

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era artista, homossexual e que morreu de AIDS. Se em Travessia é preciso fragmentar, ampliar um detalhe, para que a voz que narra se faça inteira, em Inconfissões tudo que se achava fragmentado, lembranças guardadas e esquecidas, aquilo que resta da memória de um ente, precisa ser reunido, organizado, para que se construa um retrato possível, apesar da distância temporal, apesar da ausência. Ao olhar para filmes que procuram trabalhar com tais registros, estamos diante de alguns desafios: reconhecer a fotografia como traço, vestígio ambivalente, ao mesmo tempo ausência e presença; e, das poucas fotografias que restam, ultrapassar o seu valor documental, mas sem abandoná-lo, a fim de reconstruir um retrato potente para aqueles cujo registro fora negado de saída. Esse poder não está apenas na fotografia em cena, mas também no poder imagético da fala, que reinscreve essas imagens pela/na palavra. Não à toa, ambos os filmes trabalham a palavra – poema, depoimentos e cartas – em voice over. Como uma voz feminina, possivelmente da mãe da realizadora, constata em Travessia, ao dizer que o registro de que mais se recorda da avó, mãe Vira, e da mãe dela é o de um casamento, já que naquela época fotografia “era uma coisa muito cara”. Nas festas, aproveitava-se para realizar os registros. É nessa privação que sabemos a dimensão comunitária do gesto fotográfico. O que Travessia parece querer ressignificar é o lugar do retrato das pessoas negras nos seus próprios álbuns, na contramão de Babás (2010), de Consuelo Lins, que parte de uma fotografia do século XIX, retrato de Augusto Gomes Leal e a ama-de-leite Mônica,4 e ao final do filme, na tentativa de mostrar que esse processo histórico

3. Sobre esse assunto, trabalhei mais detidamente no livro A Mise-en-film da fotografia no documentário brasileiro e um ensaio avulso, publicado pela Filmes de Quintal Editora e Relicário Edições, em 2016. 4. Cartão-de-visita de João Ferreira Vilela. Recife, c. 1860. Acervo da Fundação Joaquim Nabuco de Pesquisas


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se perpetua, faz surgir um mosaico de fotografias desta cena reincidindo no presente. Já Travessia quer romper esse ciclo: ao partir da fotografia de uma mulher negra como babá, quer, como narrativa, se libertar deste lugar marcado pela subserviência e colocar em futuro esse aparecimento na vida cotidiana liberta.5 Das fotografias das babás negras com as crianças brancas para os retratos filmados de Travessia, ao implodir o aprisionamento proposto por imagens como a de abertura do filme, a realizadora se volta à multiplicidade dos corpos negros na tela, em suas múltiplas formas de representação. Realizado por uma diretora negra, Travessia quer outra história. Como o poema, de Conceição Evaristo, ecoa: na voz da bisavó, “lamentos”; na voz da avó, “obediência”; na voz da mãe, “revolta”; na sua voz, “versos perplexos, com rimas de sangue e fome”; e na voz da filha, que recorre a todas essas vozes, “se fará ouvir a ressonância, o eco da vida-liberdade”. Sobre as estratégias de Travessia, de ultrapassar a privação do fotográfico e multiplicar-se no cinematográfico, Kênia Freitas nos lembra que “as imagens são pensadas, em primeiro lugar, como ausências: a falta ou ínfima presença dos registros fotográficos familiares negros – o que, a princípio, situaria o filme mais nas relações de representações negras de [Stuart] Hall. Porém, o

segundo movimento do filme é o de transformar a ausência em criação na tela, posando para a câmera do filme o retrato de diversas famílias negras” (2018, p.163).6 Já sobre o trabalho com fotografias e fragmentos fílmicos em Inconfissões, a sinopse nos diz: “Luiz Roberto Galizia foi uma figura importante para a cena teatral nas décadas de 1970 e 1980. Foi, também, um tio que não conheci. Este documentário procura um resgate do vivido, a partir do registro feito em fotografias e filmes Super-8 pelo tio Luiz e encontrado por mim 30 anos depois da sua morte”. Inconfissões se depara com uma série de registros e só pode contar com esse material, bem como um laudo psiquiátrico, emitido quando Luiz tinha apenas 16 anos, cartas de amigos para ele e dele para a família. Se o laudo médico anuncia já na juventude uma insegurança em relação aos afetos, os registros nos mostram a possibilidade de se reinventar, de se relacionar com o mundo, se tocar – a si mesmo e aos seus parceiros –, também as paisagens e os cômodos do pequeno estúdio onde fora viver para estudar teatro e artes nos EUA. Estrangeiro e em busca de si, as fotografias e filmes em Super-8 de Luiz Galizia reconfiguram o universo afetivo pela/na imagem, acariciando corpos e sendo acariciado, exibindo nus numa

Sociais (Recife – PE). In: KOUTSOUKOS, Sandra Sofia Machado. Amas na fotografia brasileira da segunda metade do século XIX. Disponível em: < http://www.studium.iar.unicamp.br/africanidades/koutsoukos/2.html>. Acesso em 22/10/2018. 5. Basta um passeio pela seção intitulada “Retratos”, na Exposição Histórias afro-atlânticas (MASP, 2018), que reuniu um conjunto pictórico e escultórico do século XVI ao XXI, para perceber que a pintura, o desenho e a escultura trazem a presença altiva, elegante e respeitosa de mulheres e homens negros nesse gesto de retratar. Dalton Paula, cujo trabalho compõe a arte deste catálogo, por exemplo, recupera e atualiza, especialmente para essa exposição, o retrato de duas lideranças importantes: João de Deus Nascimento, líder abolicionista, e Zeferina, que se rebelou contra o sistema escravocrata e teve papel fundamental na criação, no século XIX, do Quilombo do Urubu. 6. Cf. FREITAS, Kênia. Cinema Negro Brasileiro: uma potência de expansão infinita. In: Catálogo do FESTCURTASBH. Ana Siqueira [et al.]. Belo Horizonte: Fundação Clóvis Salgado, 2018. p. 163.


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performance cotidiana, cenas também de atuação num palco que remontam a cabarés, com seus trajes da noite. Um conjunto dessas imagens que o filme encontra chama atenção por conter nelas encenação da tortura: um corpo nu estendido numa bancada de azulejos, com pés e mãos amarradas.7 Seria uma menção a atos violentos dos regimes autoritários da década de 1970 de que se tinha notícias ou seria a encenação de uma prática de fetichismo que mistura prazer e dor? De todo modo, as fotografias que surgem na sequência posterior a essa são de Luiz, nu e deitado nessa mesma bancada, com o corpo liberto, sem nenhum tipo de amarras, com o rosto virado de lado e uma flor no canto da orelha, ao que parece, batendo as cinzas de um cigarro. Podemos com isso inferir que, sobre esse corpo que se volta para si e para tudo que o rodeia, o filme nos permite adentrar o cotidiano de Luiz Galizia circunscrito, principalmente, na performance, expondo múltiplas camadas de compreensão desse material deixado pelo artista. É nessa multiplicidade de registro que Inconfissões encontra a possibilidade de redimensionar essas imagens, endereçando-as ao espectador. Assim, o espólio deixado pelo “tio Luiz” passa do particular ao público; transforma-se, na montagem, o que seria um imaginário pessoal, da sobrinha que não o conheceu, numa dimensão coletiva. Luiz Galizia morre em fevereiro de 1985, “quando ainda pouco se falava da AIDS no Brasil”, nos diz a realizadora. Como exercício de rememoração, a partir dos fragmentos que conseguiu colher, Inconfissões faz lembrar uma passagem de Maurice Blanchot quando menciona a experiência do tempo imaginário em Proust: “A metamorfose do tempo transforma primeiramente o presente em que ela parece ocorrer, atraindo-o

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para a profundeza indefinida onde o ‘presente’ recomeça o ‘passado’, mas onde o passado se abre ao futuro que ele repete, para que aquilo que vem volte sempre, e novamente, de novo” (2005, p. 23). Sobre essa experiência do “tempo imaginário”, podemos pensar a fotografia, tanto em relação a Travessia quanto Inconfissões, como “uma imagem errante, sempre ali, sempre ausente, fixa e convulsiva” – no sentido de revolucionária –, numa livre e inconsequente apropriação, uma vez que Blanchot se ocupa desse imaginário na escrita. Acredita-se que os filmes operam no limiar, entre o passado revisitado e o futuro que a montagem projeta para as imagens. Ambos fazem um uso particular da música, que dá ritmo a essas imagens. Travessia e Inconfissões são filmes em pleno processo de descoberta e de experimentação, são filmes que nos ensinam o poder inesgotável da fotografia – de se narrar a partir dos poucos registros que restam das histórias individuais e coletivas. Não há ausência que não se possa elaborar sobre/com ela. Referências BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005. FREITAS, Kênia. Cinema Negro Brasileiro: uma potência de expansão infinita. In: Catálogo do FESTCURTASBH. Ana Siqueira [et al.]. Belo Horizonte: Fundação Clóvis Salgado, 2018. KRAUSS, Rosalind. O fotográfico. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2012.

7. Agradeço a Matheus Pereira, por aprofundar a minha reflexão sobre essas fotografias que, em momento oportuno, poderá ser melhor desenvolvida, e ao Rogério Lopes, pela leitura generosa deste ensaio.


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Caminhar entre mundos sobre Tekoha Ha’e Tetã (2018), de Alberto Alvares

Julia Bernstein* O registro das memórias e narrativas, surge como um chamado, uma proposta de cinema urgente, a ser realizada por nós guaranis. Alberto Alvares

O

filme Tekoha Ha’e Tetã (Alberto Alvares, 2018) começa com uma linda cena de crianças de várias idades se deliciando na lama, tomando um banho de chuva. Ao ser filmada com a já marcante câmera baixa de Alberto, produz uma sensação de proximidade e uma singela atenção para os detalhes, por estar na mesma altura das crianças. A cena, embalada pelo ritmo do takwa py,1 desemboca no título. A escolha de manter o título em guarani não creio que seja à toa. Esse gesto simples e extremamente significativo, parece falar de uma impossibilidade de traduzir os sentidos do guarani para o português, afinal, se toda tradução é uma traição e é preciso escolher uma língua para ser fiel,2 a opção pelo guarani é política. Transitando de forma fluida entre ficção e documentário, o filme é livremente inspirado na trajetória do próprio diretor. O curumim

Wera Kuaray é um jovem que resolve sair de sua aldeia e, depois de muito andar, acaba se estabelecendo na cidade, onde busca manter seu Nhandereko, seu modo de vida guarani, junto a seus filhos. Teyllon, é a representação do pai quando jovem, mas é também seu filho. Interpela o pai detrás da câmera, porém aceita a brincadeira e encena para as lentes de Alberto. Não é apenas Alberto, mas também seu filho que está entre dois mundos, assim como o personagem que combina as características de Teyllon com elementos da vida do pai. As cenas articuladas no filme, foram captadas ao longo do tempo, em locais muito distintos, como a aldeia Ihowy, no Paraná, e a cidade de Tanguá, no estado do Rio de Janeiro. A diversidade de lugares e a demora na filmagem podem passar uma impressão de indecisão, quando é justamente o oposto; Alberto é um diretor que sabe o que busca. Em viagem ao Paraná para realização de um outro filme, viu a oportunidade de filmar com seu sobrinho Alcir (parecido com Teyllon) a cena da estrada, em que o personagem deixa a aldeia. Em três planos resolveu a cena. Eu, que estava com ele

Mestranda em Comunicação Social (UFMG). Trabalha, principalmente, com edição de documentários e formação em cinema, para jovens indígenas e não indígenas.

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1. Som do instrumento feito de bambu (ou taquara), o takwa. 2. Como afirma Viveiros de Castro, ao resgatar o pensamento de Walter Benjamin (citando Rudolf Pannwitz), toda tradução é uma traição e a boa tradução é aquela que opta por trair a língua de destino (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p. 5).


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na viagem, perguntei se não queria filmar mais um pouco, ao que afirmou que não era necessário. Impressionou-me na época a firmeza da resposta: afinal, o que ele ia fazer com essa cena? Perguntava-me, desconhecendo o restante do material filmado. Agora está claro. Alberto, a meu ver, parece trabalhar, cada vez mais, de forma precisa e madura, na construção de seus filmes e não apenas no roteiro. A montagem é um elemento que merece destaque. O título que interrompe e retoma a cena, ressignificando-a e reconduzindo a atenção do espectador. O corte da altura dos pés do personagem na chuva para uma posição de câmera semelhante em outro momento, dentro da casa de reza, produz não só um falso raccord, mas também uma potencial relação com os pés e com o caminhar do garoto. Os simpáticos jump cuts utilizados no plano médio de sua filha já no final do filme, a brincadeira entre diegético e não diegético, reforçada pelas escolhas de montagem na cena da trilha do coral de Ihowy; esses são apenas alguns dos exemplos que, para mim, ilustram momentos muito felizes nas escolhas de montagem do filme. Em seus filmes até aqui, um procedimento muito utilizado por Alberto é a narração, onde costuma não só apresentar seus personagens e aprendizados que obteve com eles, mas também falar de sua própria busca. Ao fazer um movimento autobiográfico, o filme marca uma diferença fundamental em relação a maior parte da cinematografia do diretor. Agora é o próprio roteiro que fala de seu caminhar e sua vida. Se antes o diretor filmava aldeias guarani para falar desse modo de vida, em Tekoha Ha’e Tetã (2018), sua família e sua trajetória são o foco da narrativa. Não à toa, essa reflexão cinematográfica ocorre no momento em que Alberto cursa a Formação Intercultural de Educadores Indígenas na UFMG. Creio que a experiência contribui não apenas

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para a formação do educador, mas também para a própria reflexão sobre a imagem e sua construção, pois, a monografia, assim como o filme, “tem como objetivo transformar minha memória em história, dando sentido as vozes que fazem parte de mim, e do meu Nhandereko” (ALVARES, 2018, p. 8) O caminhante Alberto parece transitar com grande desenvoltura entre mundos, utilizando as ferramentas do cinema para atender ao chamado de seu povo Guarani. Para encerrar, recorro a trechos da monografia escrita por Alberto Alvares, “Da Aldeia ao cinema: O encontro da imagem com a História”, orientada por Paulo Maia, que aprofundam meu comentário: Minha trajetória de vida começou na aldeia Porto Lindo, município de Japorã, MS, onde morei até completar 18 anos. Quando tinha mais ou menos 2 anos de idade, meus pais se separaram e minha mãe foi morar em outra aldeia. Eu e meus 5 irmãos passamos a viver com o nosso pai. Na maioria das vezes eu acompanhava o meu pai no roçado. Enquanto ele capinava, eu fazia armadilha de laço em volta do nosso roçado para pegar inhambu. Gostava de acompanhar os meus irmãos na aldeia, e na escola para comer merenda no horário de recreio. Até que em um desses dias, uma professora não indígena da Funai me pegou pelo braço e me fez entrar na sala de aula, e sem eu entender nada o que estava acontecendo naquele momento, comecei a estudar na escola da aldeia. (...) Convivi com a pedagogia do silêncio por muito tempo. Aprendi com os castigos que a escola era espaço de silêncio, e


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de sofrimento. Me sentia prisioneiro do estudo. Até hoje não consigo entender esse processo de escolarização que aprisiona o aluno numa grade de currículo, com objetivo de “preparar” para o futuro, e não para viver o presente. (...) Aos 14 anos parei de estudar, e comecei a cortar cana. Um trabalho duro, pesado, cada um trabalhando para tentar (sobre) viver. Um espaço de morte e violência,em contraste com a vida tranquila da aldeia. Meu pai queria que eu estudasse, mas eu queria ter dinheiro para mim. Trabalhei no canavial até completer 18 anos, e, em 2002, me mudei para aldeia Tekoa Porã (Boa Esperança), Espírito Santo. (...) Em 2014, prestei o vestibular na aldeia Sapukai que fica no município de Angra Dos Reis (RJ), para cursar a Formação Intercultural para Educadores Indígenas (FIEI), na habilitação em matemática, na Universidade Federal de Minas Gerais. O curso me deu uma oportunidade de circular o conhecimento Guarani dentro da UFMG com os meus vários documentários produzidos em diferente aldeias guarani nas regiões Sul e Sudeste do Brasil, para diálogar com os acadêmicos, pesquisadores e os professores, sobre o pensamento do filme Guarani no cinema. O Curso me ajudou a pensar sobre a imagem, a memória e as narrativas Guarani, para registrar a eterna memória do meu próprio povo, em todos os lugares onde há o povo Guarani.

Referências VIVEIROS de Castro, Eduardo (2004). Perspectival Anthropology and the Method of Controlled Equivocation. Tipití: Journal of the Society for the Anthropology of Lowland South America, v.2: Iss. 1, Article 1. Disponível em: <https://digitalcommons. trinity.edu/tipiti/vol2/iss1/1>. ALVARES, Alberto (2018). Da aldeia ao cinema: o encontro da imagem com a história. Monografia orientada por Paulo Maia Figueiredo, no Curso de Formação Intercultural de Educadores Indígenas da UFMG.


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Corpos desviantes e fragmentados: notas sobre Sair do armário, de Marina Pontes, CorpoStyleDanceMachine, de Ulisses Arthur, e Escape, de Vinicius Sassine, Mariana Paschoal, Julien Mérienne e Maria Chatz

Larissa Muniz* Marcos Alves** — Aí depois quando eu fui trabalhar lá em Salvador, exigiram que eu tinha que mudar, aí eu mudei. [...] — É, no restaurante lá o dono não gostava do meu jeito. "Por que não corta esse cabelo?" "Por que não muda esse estilo de ser?" CorpoStyleDanceMachine

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emos visto um crescimento assombroso de ataques de grupos de extrema-direita e/ou simpatizantes do neofascismo às minorias de nosso país. Indiferentes aos direitos humanos conquistados, que, sabemos, nem sempre respeitados. Por trás de muitos desses ataques, há um conservadorismo forte que busca disciplinar (ou assassinar) os corpos que não se adequam à norma predominante de nossa sociedade branca, machista, misógina, rascista, homofóbica etc., e se tornam corpos desviantes pelo simples fato de existirem e resistirem. Devemos, no entanto, lembrar que essas pessoas persistem em suas atividades cotidianas

e nas conturbadas relações sociais. Pensando nisso, se tornam especialmente importantes filmes como CorpoStyleDanceMachine (2017), de Ulisses Arthur, Escape (2017), de Vinicius Sassine, Mariana Paschoal, Julien Mérienne e Maria Chatzi, e Sair do armário (2018), de Marina Pontes. São obras preocupadas em expressar as estigmatizações sofridas por esses corpos à margem, as maneiras com as quais conseguem superar momentos dolorosos de suas sociabilizações, os alívios ao compartilharem suas aflições com outros (mesmo que esses outros, sendo próximos ou não, não os aceitem) e os constantes reencontros e afirmações de suas subjetividades, por meio de expressões fílmicas singulares. Se os três filmes se diferem em seus recursos cinematográficos, todos compõem um quadro simultaneamente afetivo, denunciante e autêntico, fabricado por meio da fragmentação narrativa e imagética. Essa escolha é fundamental devido à impossibilidade de abranger esses corpos em suas totalidades: apenas alguns aspectos podem ser manufaturados, tais como a sexualidade oprimida, a performance do corpo e o cotidiano de

*Estudante de Publicidade e Propaganda pela UFMG. Crítica de Cinema na Revista Rocinante e voluntária do forumdoc.ufmg.2018. **Estudante de Ciências Sociais pela UFMG, com formação complementar em Filosofia. Bolsista do forumdoc. ufmg.2018.


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idas e vindas. Nesse sentido, nenhum dos filmes tem a pretensão de generalizar uma experiência ou compor um diagnóstico de opressão. Eles decidem, em detrimento disso, expor trechos de imagens, transformando experiências isoladas em narrativas sensíveis. Sair do armário, com uma estrutura básica, é um soco no estômago. Mãe e filha discutem a sexualidade da última, que tenta entender porque a mãe não consegue aceitá-la. Não são necessárias atrizes, cenários ou mises-en-scènes para elaborar o trauma da rejeição pelo preconceito: um fundo preto com legendas que ocupam o centro da tela e acompanham um diálogo conflituoso é mais do que suficiente. A entonação de suas vozes, possivelmente documentais, são mais contundentes do que seria uma encenação da interação entre as personagens. A escrita que acompanha as falas é ainda mais eficiente: ela surge na tela e marca o tom da conversa com muita assertividade — é como se cravasse na imagem a materialidade da discussão, a qual, por seu caráter discriminatório, tem consequências trágicas para o mundo “real”. Assim, mesmo quando as legendas desaparecem da imagem, resta o fardo das “opiniões” da mãe, a qual expõe um preconceito incontornável: ela antes prefere sua filha sozinha (e heteronormativa) do que feliz. Já CorpoStyleDanceMachine utiliza da fragmentação imagética do corpo para compor um retrato carnavalesco e sutil. Num ambiente de boate noturna, com cores neon e fumaça de gelo seco, os enquadramentos que “mutilam” a figura de Tikal ganham uma dimensão de contra-cultura. É como se na confidência entre câmera e personagem Tikal se permitisse revelar, sob a promessa de sua voz ser escutada e fabricada na imagem de maneira que corresponda à estética de seu corpo. É por isso, talvez, que vejamos seu rosto inteiramente apenas ao final. Depois do pacto entre ele e a direção, Tikal encara a câmera de frente

e assume sua personagem peculiar: lantejoulas, boca, cabelo, unhas, sorrisos, brilhos… tudo isso, que antes foi capturado em pedaços, aparece num quadro só, abraçando sua figura dançante e confiante. Os escritos que acompanham o filme também servem de suporte para o retrato: não são apenas legendas, mas um recurso expressivo que migra para diferentes cantos do quadro, surgindo e desaparecendo rapidamente. As palavras de Tikal, assim como as vozes de Sair do armário, ganham uma atestação física, para além de sons soltos no ar, sendo cravadas na imagem do cinema. Nesse sentido, Tikal, para além de dispor de pedaços do corpo para compor um todo de sua imagem, também oferece uma versão de sua vida, com pequenas alegrias, resistências e opressões, elaborando um retrato rápido e revelador da trajetória de um corpo que transita — entre os desejos dos patrões, das pessoas, dos santos e, claro, de seus próprios. Escape, como os outros dois filmes, maneja muito bem a questão de que uma vida não pode ser capturada em alguns minutos de cinema. Para isso, a obra assume a distância com sua personagem, sem, no entanto, ficar impedida de buscar, por meio da filmagem, detalhes de sua trajetória e personalidade. A protagonista (Lludy) é apresentada sem grandes explicações. Objetos de mudanças a cercam e, se ela inicialmente não percebe a câmera, de repente fala diretamente com o extra-campo. O fazer documentário se revela, mas de maneira sutil, como um roteiro escrito enquanto filmado, em conjunto com a protagonista. Nessa aparente elaboração conjunta, é importante a escolha de montagem: a narrativa segue tempos diferentes, e até mesmo línguas diferentes (português e espanhol), para contar de forma não linear parte da história de Lludy — brasileira, prostituta e travesti. Não é clara a ordem das cenas nos diferentes ambientes, mas cada uma segue


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sua dinâmica própria: seja na exibição de seus objetos pessoais para a câmera, seja por meio de conversas corriqueiras sobre as mudanças de seu corpo, Lludy transita entre diferentes fases de sua vida, sem declarar qual situação é presente ou passada. Essa alternância entre cenários e Lludys (que também são fisicamente distintas, pela roupa e pelo cabelo) compõe um retrato complexo, pouco revelador no sentido de traçar a jornada da personagem, mas sincero em sua disposição íntima e despedaçada. Filmes potentes em si, capazes de articular alteridades e nos colocar, por meio de sua escolha estética, no âmago de uma realidade delicada. Os diretores não buscam fechar sentidos acerca das personagens, enaltecendo seus sofrimentos ou reduzindo suas experiências, mas procuram antes demonstrar a força de suas vivências. É como a fumaça que cede espaço para a figura de Tikal e resulta num rosto de 56 anos que encara a câmera sem nenhum pudor para, então, quebrar a dimensão fixa do enquadramento e se movimentar de acordo com sua pulsão. Essa cena final de CorpoStyleDanceMachine resume o vigor de um corpo que não pode e não quer ser controlado, o qual, instituído de uma subjetividade inapreensível por qualquer forma limitante, dança — ocupando o quadro com suas bordas e seus fragmentos, em toda sua complexidade imensurável.

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Parquelândia: trabalho, lazer e melancolia sobre filme de Cecilia da Fonte

Julia Fagioli*

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m parque de diversões itinerante, o Park Nossa Senhora da Conceição, se desloca pelo sertão do Piauí e de Pernambuco e o espectador é convidado a acompanhá-lo em seu percurso. Logo nas primeiras cenas um contraste: as imagens do trabalho, repetitivas e árduas; e as imagens das crianças se divertindo no parque. Ao intercalar os planos do trabalho e do lazer, alternam-se os ruídos das ferramentas contra o ferro, da lixa para o polimento, dos brinquedos sendo montados e desmontados, com os sons dos brinquedos funcionando e das pessoas se divertindo. A desmontagem após os dias de lazer no parque nos parece uma desconstrução da magia, criando uma passagem ao mundo do trabalho. Decorre certa melancolia, que atravessa o filme. Apesar de compreendermos que estamos no sertão nordestino, não sabemos ao certo a localidade, a equipe se desloca por estradas vazias. Há diversos momentos de silêncio e solidão, o tempo parece não passar. Após a montagem do parque há pouco a se fazer, a não ser aguardar até que se possa partir para a próxima cidade. Freud (201 1) caracteriza a melancolia como um desânimo profundo e doloroso, persistente como uma sombra que acompanha o indivíduo. Tal

aspecto pode ser percebido nos silêncios, nos olhares distantes dos personagens, mas, também, nos poucos depoimentos dos trabalhadores, dos quais não sabemos os nomes. Um deles começa sua fala refletindo que a vida é como um jogo, “tem vez que você ganha e tem vez que você perde, eu mesmo, até agora, tô perdendo”. Instantes depois diz estar ali porque, no lugar onde vivia antes, o cerco havia se fechado, não era mais possível continuar onde estava, com relações desgastadas por sua dependência de drogas, tal como descreve. Tais momentos, raros no filme, nos permitem conhecer um pouco melhor seus personagens. Há sempre, porém, certa distância, um isolamento dos indivíduos. Um outro personagem foi trabalhar no parque após passar mais de dez anos preso. Ele fala da experiência da prisão e da sensação da liberdade após tantos anos, diz que está feliz por estar ali, que a equipe do parque é, para ele, uma família. Todos eles abrem mão de algo, deixam uma vida para trás, por opção – para fugir de um passado –, ou, talvez, por necessidade, deixando o convívio com a família e as pessoas queridas, e até o nascimento de um filho. O único dos personagens que diz o seu nome, já nos momentos finais do filme, é Damião, que,

*Pesquisadora de Cinema. Doutora em Comunicação Social pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Mestra pela mesma instituição.


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ao ser indagado sobre o apelido recebido de uma colega – Neguinho –, diz que gostaria de ser chamado pelo seu nome. Deste modo, há uma sensação de deslocamento – no tempo, no espaço, no isolamento entre os indivíduos – que nos acompanha e intensifica a melancolia. O espectador não está situado em relação ao espaço e ao tempo, a equipe está afastada de uma vida anterior, não sabemos ao certo quem são aquelas pessoas, nem mesmo seus nomes. Tais aspectos se intensificam na segunda metade do filme, quando as imagens do parque em funcionamento se tornam mais escassas e dão lugar a um mergulho no cotidiano: desmontagem, montagem, estrada, o tempo ocioso, a espera e, novamente, a partida. Além do isolamento dos trabalhadores que estão sempre se deslocando de uma cidade à outra, outro fator importante tratado pelo filme é a precariedade das condições de trabalho e de vida durante esse período. Eles viajam na carroceria do caminhão e não utilizam nenhum equipamento de segurança, apenas luvas. Em algumas cenas do filme, os vemos até dormindo em brinquedos do parque. Um deles fala sobre o sofrimento de se trabalhar sem ter reconhecimento, outro afirma que ainda não conseguiu ganhar dinheiro trabalhando. Parquelândia nos coloca diante do paradoxo entre a dura realidade do trabalho e o encanto dos parques de diversão. O filme desconstrói essa magia para expor a situação dos trabalhadores, que no pleno funcionamento do parque são invisíveis. Há, porém, diante da melancolia que atravessa essa realidade, dois breves momentos de descontração, quando em um intervalo da viagem, os trabalhadores mergulham e se divertem em um lago na beira da estrada. Logo em seguida, aproveitam para lavar seus objetos pessoais. Após um corte, a água, que proporcionou um respiro daquele cotidiano, agora retorna, nos

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levando de volta ao universo do trabalho, quando uma pessoa, de quem vemos apenas os braços e as mãos, lava a placa com o nome do parque. O segundo momento se dá algumas cenas depois do primeiro. Após montados os brinquedos, todos jantam e, em seguida, assistindo a um vídeo no celular, ao qual o espectador não tem acesso, todos riem e se divertem. Passados esses pequenos instantes de descontração, nos encaminhamos para os minutos finais do filme, retornando ao parque vazio, após um dia de atividades, o silêncio e a melancolia ressurgem. A ambiguidade entre o trabalho e o lazer se intensifica em uma sequência de planos vertiginosos do parque funcionando com brinquedos e luzes girando. Logo após, na manhã seguinte, não há mais movimento, com os brinquedos parados, todos descansam e a ideia do deslocamento e do isolamento reaparecem e são reforçados nas imagens e sons da chuva que cai e nos leva aos créditos finais do filme. Referência FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. São Paulo: Cosac Naify, 201 1.


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Esperas e transformações sobre Espera (2018), de Cao Guimarães

Thiago Rodrigues Lima*

Alguém diz: “Aqui antigamente houve roseiras” – Então as horas Afastam-se estrangeiras, Como se o tempo fosse feito de demoras. Jardim, Sophia de Mello Breyner Andresen Até onde a vista alcança, reina aqui o instante. Um daqueles instantes terrenos que se pede que durem. Instante, Wislawa Szymborska

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o palco de uma sala escurecida, observamos os assentos vazios de um grande teatro e suas dependências, ao mesmo tempo em que um violinista afina seu instrumento, solitário. O cenário é soturno, oblíquo e esfumaçado, onde criaturas fantásticas se sentam em um banco ao lado de um telefone público ou mexem em seus celulares e tablets. Assim como diversos músicos, elas esperam para performar Norma, a ópera de Vincenzo Bellini. Outrora vazia, a sala se torna repleta de espectadores, cujos rostos se azulam pelas luzes de seus telefones. Eles também aguardam o início do espetáculo, alguns conversam entre si, e outros fazem selfies ou mexem em seus celulares. Se em um primeiro momento poderíamos pensar que Espera, de Cao Guimarães, se deteria sobre as novas formas de

esperar, notadamente aquelas mediadas pelos dispositivos eletrônicos, logo após os créditos iniciais essa impressão é desestabilizada, e as manifestações da espera adquirem no filme uma multiplicidade de texturas e dimensões. Com sua ampla variação de significados, a espera é tempo, mas também expectativa que nasce na suspensão de um “entre atos”, no isolamento interior e na dispersão. Nela, se flana por ideias e lembranças, por sonhos e conjecturas, por isso a espera é um ato privilegiado onde a invenção é gestada ou, como a certa altura a própria narração poética de Cao nos diz, “Enquanto espero, devaneio. A espera é a condição ideal para o devaneio. Um mundo que não espera, não delira, não sonha”. Quem espera, espera por algo, por alguém, por alguma coisa. Ela não é partida nem chegada, mas processo. Não é atoa que os registros de estradas povoem a obra de Cao Guimarães. Como estruturas que ligam regiões distantes umas das outras, são por excelência imagens de passagem, de travessia e de transição. Assim como as estradas, a espera é aquilo que se encontra no meio, no interstício de dois ou mais pontos. Ela é, desta maneira, o vir a ser, e Espera é um convite a uma viagem que transita pela experiência de revelação. Esperar o início da ópera. Esperar o sono em uma clínica especializada. Esperar os automóveis que atravessam uma estrada. Esperar a

*Mestre em Comunicação Social pela UFMG, realizador e curador.


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viagem de ônibus ou de navio. Esperar que a seiva das seringueiras escoem para os recipientes cuidadosamente colocados nas árvores. Esperar que a força do vento derrube os manequins de um precário comércio de beira de estrada. Esperar as manifestações do divino sob a forma de cantos e orações. Do mais corriqueiro e banal, até o encontro com um novo eu, o filme de Cao Guimarães deriva pelas nuances da espera com um registro prismático para encontrar um outro tempo que prescinde de finalidade, que se torna ele mesmo um universo autocontido. No entanto, o tempo aqui não é árido e tampouco possui uma rigidez glacial como a descrita por Song Hwee-Lim ao falar de um certo cinema contemporâneo que privilegia a lentidão. De outra maneira, o tempo de Espera possui uma dinâmica própria entre o ato de contemplar aqueles que esperam por algo e a linha narrativa sedimentada pela oscilação entre o desejo de revelar os filmes em Super 8 guardados na geladeira e o processo de transição de gênero de Gael Benitez. Aqui, o tempo da espera não é tomado como sinônimo ou mesmo correlacionado à monotonia, mas enquanto dormência que mobiliza uma força de transformação, seja aquela do processo químico que dá vida aos registros em Super 8 ou a que faz renascer a identidade de uma pessoa. Espera não lida apenas com o que fazemos enquanto esperamos, mas também com o que acontece em sua qualidade intersticial. Essa variação pode parecer pequena, mas não é. Não somos levados aos conteúdos das interações com os celulares, à performance da ópera, aos destinos daqueles que viajam, ao sono daquela que não consegue dormir, às imagens dos muitos rolos de Super 8 reveladas ou mesmo à nova vida de Gael, mas à poesia do processo que leva às mudanças, com suas curiosidades, cansaços, angústias e devaneios.

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Em Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa (1994, p. 85) escreveu que “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio na travessia”. Se há algo que salta aos olhos no filme de Cao Guimarães, é que em seu percurso poético sobre as esperas, algo de místico ou fantástico é encontrado na medida em que embaralha o ordinário e o extraordinário. Existe uma proporcionalidade que justapõe essas duas instâncias sob a égide de uma temporalidade em comum. Uma qualidade extraordinária é dada às janelas do navio ao se assemelharem a telas de cinema, e também ao vento que incidentalmente derruba os manequins com sua força. Por sua vez, o processo de revelação dos rolos de filmes Super 8 e de transição para uma nova identidade de gênero ganham contornos ordinários, embora não percam suas respectivas singularidades e potências. Já próximo de seu fim, a ópera de Vincenzo Bellini preenche o campo sonoro e Espera retorna a Gael, que se desenfaixa para revelar seu novo corpo, afirmando mais uma vez seu novo eu. Esperar é resistir, é reinvenção, é se abrir para as pequenas e grandes transformações que o tempo traz. Referências LIM, Song Hwee. Tsai Ming-Liang and a cinema of slowness. University of Hawaii Press, 2014. ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.


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Sobre um povo torturado que não sabe o que é tortura ou algo a dizer sobre o filme Universo preto paralelo, de Rubens Passaro

Paula Kimo*

Ele não é uma hashtag, ele é uma ameaça real. Rapper Edgar

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rechos de uma carta do engenheiro Teodoro Sampaio dirigida ao pintor Benedito Calixto, em 1892, dizem do processo de feitura de um quadro destinado à representar Domingos Jorge Velho, “o vencedor dos Palmares”. Contratado pelo governo de São Paulo, o pintor recebeu a missão de representar um dos maiores algozes da história do povo negro brasileiro e, para isso, contou com depoimentos, fontes históricas e cartas trocadas com historiadores da sua época. Domingos Jorge Velho, por sua vez, foi contratado pelo governo de Pernambuco para comandar, em 1694, a destruição do Quilombo dos Palmares, território quilombola que abrigava cerca de 30 mil negros e negras que buscavam no sertão refúgio à escravidão, onde resistiram por 30 anos em meio ao período escravagista brasileiro. Quase 200 anos separam os feitos de Domingos Jorge Velho e Benedito Calixto, mas, em comum, ambos contratados pelo Estado para pintar, cada um à sua técnica, um capítulo na História (com H maiúsculo) do Brasil.

O primeiro, lidera um exército de sertanejos e indígenas recrutados para derramar sangue no extermínio da maior área de resistência quilombola do país. O segundo, dispõe de depoimentos e fontes históricas para pintar, com tinta à óleo sobre tela, a imagem de alguém que não conhecia – um malfeitor, inimigo do povo, herói do Estado – criando uma obra que seria referência para os demais quadros encomendados pelo Museu do Ipiranga de São Paulo, isso em 1903. Por sobre a imagem do carrasco dos Palmares, Maria Rita Kehl, psicanalista e membra da Comissão Nacional da Verdade, em off, fala do mal radical, “aquele mal praticado por alguém que acredita e está convicto que o que ele faz é em nome do bem”, postura tomada por torturadores no período militar brasileiro que, em nome do regime, praticavam atrocidades com os corpos detidos de militantes que lutavam contra a ditadura. Na próxima cena, vemos a imagem de uma ilustração de Angelo Agostini, em 1886, para a Revista Ilustrada, um dos principais veículos de oposição ao regime monárquico e à escravidão no Brasil da época: um homem negro amarrado no tronco, com as mãos para o alto, rendido, sendo levado por outros dois negros, sob a supervisão

*Mestre em Comunicação Social pela UFMG com a pesquisa “Modulações das Imagens Insurgentes: a variação do antecampo nos atos de disputa política”. Curadora da seção “A cidade em movimento”, da Mostra CineBH. Cineasta, produtora cultural e ativista social. Integrante do coletivo Filme de Rua.


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de um capitão branco. Em off, escutamos trechos do depoimento de um torturador confesso: — Quantas pessoas o senhor matou? — Não lhe respondo. — O senhor se arrepende do que fez? — Não, vou lhe dizer porque, porque eu acho que cumpri o meu dever. Ao associar imagens que representam o período da oficial escravidão no Brasil, datada de 1530 a 1888, com depoimentos em off sobre a ditadura militar no país, corrente entre 1964 e 1985, o filme Universo Preto Paralelo nos faz pensar nas relações que transparecem entre o regime escravagista e o regime militar brasileiros. Indo além, nos faz pensar sobre o que resvala desses regimes nos tempos atuais. Sobrepondo tais materialidades, imagens da violência e humilhação sofridas pelos negros escravizados em território brasileiro, com relatos sobre os horrores da tortura no período ditatorial no país, o filme apresenta um paralelo entre dois tempos onde, em alguma medida, um alimenta o outro, levando o espectador à um lugar comum da barbárie produzida pelas forças autoritárias, sejam elas estatais ou capitais, em diferentes épocas. Os depoimentos dos torturadores traduzem a frieza de um regime totalitário ao lidar com o corpo vivo que contesta os mandos da época. As imagens de Angelo Agostini, Jean Baptiste Debret, dentre outros artistas, trazidas como representação do Brasil colônia, da monarquia de outrora, tornam visíveis o escárnio do corpo negro escravizado, a forma como era tratado como mercadoria, exposto em praça pública em eventos de punição e tortura. Desse lado, um passado que resiste ao esquecimento na luta dos povos negros em reconhecer a história de seus ancestrais, percebendo e combatendo, ainda hoje, traços e violências cometidas em nome

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do racismo estrutural no Brasil. Do outro, um passado recente que persiste em ser lembrado por amigos, familiares e militantes que lutam pela instituição de mecanismos – como a Comissão Nacional da Verdade – que possam trazer à tona os acontecimentos do período ditatorial, passado cada vez mais presente na ascensão da extrema direita e do conservadorismo que vivenciamos na atualidade. Em comum, corpos humanos que ultrapassam o limite estabelecido pelo poder vigente, ou que não se enquadram no princípio civilizatório da época – aquele que determina quem faz parte da comunidade, quem está autorizado a viver e gozar da vida em liberdade. Em comum, vidas pulsantes tratadas como matéria descartável, objeto de dor e sofrimento, sob deliberação de uma noção de “bem” que deturpa os princípios básicos de humanidade, ferindo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o único instrumento construído pelo ser humano que pode ser capaz de dizer a ele mesmo o que é ser. — Quantos o senhor torturou? — Difícil dizer a quantidade, foi uma quantidade razoável. — Homens e mulheres? — Não, mulher subversiva pra mim é homem. Eu não modifico o tratamento porque ela é mulher. Eu considerava ela um inimigo. O gesto do capitão do mato que chicoteia o corpo negro sob comando de um senhor branco, assim como a neutralidade do torturador que cumpre seu dever, passam pelo conceito de banalidade do mal, de Hannah Arendt, citado por Maria Rita Kehl no filme, onde – nas nossas palavras – o mal se torna banal quando aquele que o pratica é incapaz de fazer julgamentos morais, sendo movido pela necessidade de executar ordens, cumprir um dever, seguir uma


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diretriz traçada pelo poder que impera naquela circunstância. Para além disso, ao caracterizar os gestos de tortura revelados na Comissão da Verdade, Maria Rita Kehl diz de um “outro lado da banalidade do mal” e acrescenta o prazer de se produzir a dor, o poder em dominar um corpo sem reação. O gozo em torturar, matar, causar o mal em nome do bem. — Quando o senhor vai se desfazer de um corpo, naquela época não existia DNA... quais são as partes, que se acharem o corpo, podem determinar quem é a pessoa? Arcada dentária, digitais, só. — Mas arrancava a cabeça ou quebrava os dentes? — Quebrava os dentes. — Cortava as mãos? — Não, digital é daqui pra cima. — Cortava os dedos. — E aí, se desfazia do corpo. — Enterrava ou não enterrava? — Não. Nunca. Por outro lado, o paralelo alinhavado entre imagens, relatos e testemunhos de distintos tempos pode remeter à uma diferença basilar entre eles. O depoimento de Darci Miyaki, que acessamos na última cena do filme, demarca algo dessa diferença: “o malefício causado pela ditadura militar não foi somente em relação a nós, militantes, mas também ao povo”. Na ditadura militar os presos e torturados eram majoritariamente militantes, jovens, brancos, em uma proporção significativamente menor se comparado aos números (incalculáveis) e tempos (imensuráveis) da violência racial que teve início no tráfico de pessoas negras trazidas de África durante a colonização do Brasil. No regime escravagista, teoricamente extinto na Lei Áurea de 1888, o povo negro é alvo da tirania do

poderio branco, estando, ainda hoje, na mira. Foco de resistência, ou melhor, de sobrevivência. O rap “Intro U.P.P”, de Ba Kimbuta, do álbum “Universo Preto Paralelo” que, inclusive, dá nome ao filme, apresenta paisagens sonoras da violência praticada pelas UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) nas favelas cariocas. Sangue preto inocente despejado no morro, a luta das comunidades contra uma força do Estado que chega para “pacificar” com balas de borracha, spray de pimenta e munição pesada que perfura e mata os corpos que ali habitam. Uma barbárie que atravessa os tempos, cria estatísticas que alimentam o termo “genocídio da juventude negra” e também massacra os povos indígenas, invisibilizados também no filme, mas jamais esquecidos se quisermos falar de história (com h minúsculo) do Brasil. O filme faz uso de recursos de edição, como enquadramento e movimentação das imagens de arquivo, para compor as cenas que dão a ver o sofrimento do negro escravizado, relacionandoas com depoimentos e relatos da Comissão Nacional da Verdade. Ao que me parece, essa articulação de sons e imagens não pretende resumir as histórias de punição e tortura do povo que resiste em diferentes épocas da história do Brasil, tampouco equiparar as atrocidades correntes nesses distintos períodos. Mas, talvez, o caráter inventivo do filme esteja no gesto de percorrer diferentes significantes para a palavra tortura ao longo dos nossos tempos. Isso fica mais explícito quando chegamos, nos últimos minutos do curta-metragem, no pronunciamento de Jair Messias Bolsonaro durante a votação do impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, quando ele presta uma homenagem ao torturador de Dilma, Carlos Brilhante Ustra. Em meados de 2018, em plena corrida presidencial, parte da população brasileira desconhece a presença e o sentido da tortura na


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história de seu país. A forma como os discursos de ódio são propagados pelas redes sociais, resvalando nos embates partidários pelas ruas, impulsionados pela pseudo potência messiânica de Bolsonaro, aquela que ascende pelo que se tem de mais baixo na sociedade, que dirige os holofotes aos porões tirânicos de cada um e nos coloca diante de uma questão: por que o brasileiro não reconhece a dor daqueles que lutam pela própria vida, pela conquista de direitos, pela liberdade, pela democracia? Onde vamos parar diante dessa avalanche de ódio que não começou em 2016, no enaltecimento do Coronel Ustra, tampouco em 1964 quando tem início o período militar? Universo Preto Paralelo nos coloca diante da tortura e do sofrimento que o brasileiro vive desde sua constituição pelo sequestro dos povos de África. Em suas lacunas, nos faz pensar no extermínio dos povos indígenas desde que o primeiro homem branco aportou em terras tupiniquins. Nos remete à frágil juventude da democracia neste país, sinalizando que muito sangue há de escorrer e muitas vidas poderão ainda sucumbir perante a imposição de um bem que cega – e mata. Diante de um povo torturado que não sabe o que é tortura, quantos mais precisarão tombar para que a humanidade não perca o que ainda tem de humana? Talvez, quando a dor extrapolar o barraco da empregada doméstica e adentrar os muros dos condomínios, saibamos construir algum caminho. Afinal, a história só se legitima quando construída com H maiúsculo, do contrário, somos também fake news. Triste humanidade Brasil.

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O nome da câmera – uma crítica indígena à invenção do cinema (e da cultura) sobre Deekeni – Os olhos de Wiyu, de Júlio David Rodrigues e José Cury

Renata Otto Diniz*

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comunidade ye'kwana de Auaris (TIY RR), Fuduuwaadunnha, juntamente com alguns colaboradores não indígenas desenvolvem um projeto de salvaguarda dirigido a uma parte do imenso conjunto dos saberes tradicionais da sociedade indígena ye’kwana.1 A partir do Programa de Documentação (PRODOCUT), gerido pelo Museu do Índio/Funai em parceria com a Unesco, as lideranças indígenas passaram a seguir estratégias para reunirem os mais velhos

em torno da realização de rituais que se estruturam a partir dos cantos Acchudi e Ädeemi. A atenção à escrita e à gravação em áudio e vídeo dos cantos, e das próprias cerimônias rituais, é parte central do projeto, Aaseesewaadi, uma vez que tais meios de registro passaram a ser aceitos pelos mais velhos, e acatados pelas lideranças mais jovens, como instrumentos capazes de assegurar o domínio destes saberes tanto na contemporaneidade quanto para a posteridade.

*Mestre em antropologia social pelo Museu Nacional/UFRJ e doutoranda pelo PPGAS da Universidade de Brasília. Foi técnica em antropologia da FUNAI entre 2009 e 2014, onde atuou nas coordenações de delimitação e demarcação de terras; e proteção aos índios isolados e recém contatados. Co-dirigiu com Isael Maxakali e Sueli Maxakali, o filme Quando os Yãmiy Vêm Dançar Conosco (2012). Integra a comissão de seleção e curadoria da Mostra Contemporânea Brasileira do forumdoc.bh.2018. 1. As descrições históricas e etnográficas dizem que os Ye’kuana são vizinhos dos Piaroa (a oeste), dos Pemon e Macuxi (a leste) e dos Sanumá/Yanomami (ao sul). Também dão notícia de que seu deslocamento em direção aos grandes rios deveu-se, sobretudo, às relações com as frentes da expansão colonial, iniciadas, em meados do século XVIII, com os espanhóis, desde o Orinoco, seguidos pelos holandeses, desde o Essequibo, os quais, à época, penetraram e disputaram a região em busca do rio El Dorado (Guss, 1990); posteriormente, deveu-se à exploração da borracha e, já em meados do século XX, à intervenção das missões religiosas (Arvelo-Jimenez, 1974) e de projetos estatais, como o Calha Norte, por fim, à corrida do garimpo iniciada na década de 80 (Albert, 2000). Atualmente, os Ye’kuana têm experimentado alguns deslocamentos de suas aldeias, sobretudo nas imediações da fronteira venezuelano-brasileira, por causa de seus vizinhos Sanumá que avançam do sul para o norte da área (Ramos, 1980; Lauriolla,2004). A maioria da população ye’kuana, cerca de 8000 pessoas, vive em aldeias no lado venezuelano. Na Venezuela, os Ye’kuana têm suas aldeias dispersas no Estado Bolívar e no Território Federal Amazonas. A outra parte do povo, com cerca de 600 pessoas, vive no lado brasileiro, em três aldeias: duas delas localizadas no rio Auaris (ou Lebarejure) e a outra no rio Uraricoera (Lauriolla, 2004, p. 342). Esta região de fronteira faz parte da zona chamada Camsoïna. Ela é formada pelas cabeceiras do rio Orinoco (Pádamo, Cunucunuma, Cuntinamo, Ventuari, Paru, Caura) e do rio Uraricoera (Erebato, Merivari).


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O registro permitira a averiguação e correção de versões diversas, a reprodução fora do contexto ritual, o aperfeiçoamento da execução por neófitos, bem como o acesso das futuras gerações aos materiais gravados se, por (des) ventura, os cantos deixassem de ser parte da vida cerimonial do grupo. O filme Deekeni – Os olhos de Wiyu resulta desta atenção ao registro dos saberes guardados pelos Inchokomo, em geral, e dos cantos em particular. Resulta, portanto, da interação entre os jovens ye’kwana e seus mais velhos, assim como entre ye’kwana e não-índios, em torno das tecnologias de reprodutibilidade. Sendo assim, o filme é dirigido em dupla: Júlio David Rodriguez, professor ye’kwana e presidente da Associação Wanasseduume, e José Cury, cineasta e professor de audiovisual. Júlio foi escolhido pelos sábios ye’kwana para gravar em áudio e vídeo a parte dos saberes referente aos cantos Acchudi e Ädeemi. José Cury ministrou as oficinas sobre as técnicas de registro em audiovisual, montagem e finalização de filmes para jovens. Esta dupla de diretores já poderia antecipar toda a questão posta pelo filme e que passaremos a discutir a frente. Antes, gostaria de chamar atenção para o fato de que o filme aninha-se numa reflexão relativamente recente acerca da perspectiva indígena em relação aos seus próprios saberes. Poderia dizer que o filme trata daquilo que a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha chamou de cultura com aspas. Ainda mais porque trata-se de demonstrar a recusa ye’kwana de encarnar a mera posição de objeto de investigação (e tradução) para o interesse de um sujeito não-indígena. Assim como de demonstrar a particularidade ye’kwana na recusa de encarnar um exemplo da propalada ameaça de “degeneração” ou “perda” da cultura. Pois para os Ye’kwana, fica claro no filme, a batalha pela “cultura” provém

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do tempo primordial. Como ensinam os mitos do Watunna, desde o início, todo o cosmo e todos os ensinamentos foram criados a partir da disputa entre as forças originais do primeiro demiurgo, Wanadi, e as forças corruptivas de seu irmão gêmeo, Odosha. Sigamos uma versão da cosmogonia ye’kuana do Watunna, segundo a coletânea de Marc de Crivieux. Em resumo, conta-se que: No começo, havia Kahuña, o lugar empíreo. Havia os kahuhana, o povo sem noite, sem morte, sem fome, sem guerra, do lugar. A Terra estava junto de Kahuña, mas era desabitada. Wanadi, o ser supremo, brilhante como o sol, aquele que jamais deixava Kahuña, quis povoar a terra. Duplicou-se. Mandou seu duplo para lá. Chegando à Terra, Wanadi, aquele duplo que deixou Kahuña, pariu-se. Enterrou sua placenta e seu cordão umbilical. Um verme da terra corrompeu as carnes. Instantaneamente brotou Odosha. Wanadi fez umas pessoas para a Terra. Elas estavam pescando. Odosha sussurrou no ouvido delas: “matem os peixes”. Então, apareceu a morte. As pessoas da terra morriam. Wanadi voltou para Kahuña (o céu empíreo). Wanadi duplicou-se outra vez. Chegando à Terra, fez uma mulher, era sua mãe, Kumariawa. Ele a matou. Ele a enterrou. Para ele, a morte não passava de um truque. Ele soprou e cantou. Quando Kumariawa brotava novamente da terra, Odosha pediu à lagarta que derramasse sobre ela a urina dele. Odosha sussurrou no ouvido de Yarakaru, o macaco branco, “abra a chakara (cesto de xamanismo) de Wanadi”. A lagarta, que levava a urina de Odosha, derramou-a em Kumariawa, que brotava. Yarakaru abriu a chakara de Wanadi, que continha a noite. Kumariawa foi queimada com a urina, que lhe fora derramada. A noite, fugida da chakara de Wanadi, expandiu-se por toda a Terra. Tudo escureceu. Wanadi voltou para Kahuña. Wanadi duplicou-se. Aquele duplo chegou à Terra em trevas,


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as pessoas viviam como animais, elas não podiam ver. Wanadi fez novas pessoas para a Terra. Ele fez Shi, o sol, ele fez Nuna, a lua, ele fez Shiriche, as estrelas. Aquelas pessoas ocuparam o céu da Terra. O céu verdadeiro de Wanadi (Kahuña) não podia mais ser visto da Terra. As pessoas da Terra pediram novos corpos, elas não tinham nada. Wanadi fez tudo novamente. Ele fez casas para as pessoas. Quando Odosha viu a primeira casa de Wanadi, em Wana hidi, ele fez uma outra bem em frente. As pessoas que habitavam Wana hidi eram os Sottoi. As pessoas que habitavam a casa de Odosha eram os Odoshankomo. Wanadi sonhava com comida. Odosha sonhava com a fome. Wanadi sonhava com grandes colheitas. Odosha dizia, “não, eu sonhei primeiro, sonhei com a doença”. Wanadi não podia fazer mais nada. Ele partiu com os Sottoi. Ele encontrou a caverna de Wade, o avô de todas as preguiças. Wade era sábio. Ele recebeu Wanadi e os Sottoi. Odosha está procurando-o, procurando por aí... De acordo com o mito, a duplicação expressa o regime de diferenciação vigente no cosmos desde sua origem até os tempos atuais: um sistema que faz simultaneamente corresponder e opor os termos que relaciona. Dito de outra forma, a intenção da duplicação é sempre reproduzir perfeitamente, assim como a intenção de Wanadi é reproduzir perfeitamente o Céu na Terra, mas isto significa necessariamente produzir a Terra, e produzir a Terra é concebê-la como separada do Céu, o que, finalmente, significa que a Terra é diferente do Céu. Portanto, a duplicação, por um lado, é sempre um regime de espelhamento (ou multiplicação de semelhanças) pois tenta reproduzir perfeitamente, e, por outro, é um regime de diferenciação (ou multiplicação de diferenças), já que duplicar é produzir além do que já havia. A perfeição, apesar de ser a meta, jamais pode ser alcançada.

Imagine o leitor o que significa o registro escrito e, depois, os mecanismos de captura e reprodução de imagens, a fotografia, o cinema, o vídeo num sistema cosmológico, sociológico (estético, político) tal como concebido pela tradição ye’kwana, em que a duplicação parece funcionar no centro. A duplicação – operação de toda forma de registro – é ela mesma uma chave da estética ye’kwana. Poderíamos dizer sem exagero que ela pode ser – como o gado é para os Nuer, a feitiçaria para os Azande, o devir-outro para os Araweté – um motivo incontornável de sua cultura. Diria mais, que esta cultura estima um mundo sem centro, ou cujo centro é altamente relativo, pois assim que se toca num ponto, no momento mesmo em que este ponto se coloca em cena, ali na posição de centro ou de ponto original do qual se parte, imediatamente, este ponto se duplica. Simultaneamente, este ponto engrandece porque se multiplica, e se enfraquece, porque se corrompe e se transforma um pouco. O duplo jamais é idêntico àquilo que duplica, nunca é perfeito. E pode mesmo ser um contrário. Que risco! Os cadernos, e todos os tipos de gravação não são justamente um instrumento deste tipo? Não passaram a ser o recurso de que dispõem hoje em dia os velhos sábios, Inchonkomo, para guardarem o conjunto de suas criações, de suas tradições, de sua cultura? Também não é verdade que, por meio da anotação nos cadernos, e dos registros em câmeras fotográficas ou filmadoras, os velhos seguem atualmente sustentando a existência de sua sabedoria? Mas também não é verdade que ao fazerem isto, perdem um tanto da sua própria maestria em perpetuar sua sabedoria? Não abandonam em certa medida o modo como faziam antes, “guardando tudo só na cabeça”? Mas também não é perfeitamente plausível afirmar que o princípio segundo o qual reproduzir é simultaneamente assegurar e


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corromper a existência da sabedoria dos ancestrais (ou a existência de qualquer ente do cosmo) e que isso é um princípio próprio da sabedoria ye’kwana? Sim, se levarmos em conta que na tradição ye’kwana todo processo de criação implica uma duplicação. Portanto, sobre esse “risco” que os jovens ye’kwana se colocam hoje – quando pensam sobre os cadernos, sobre o registro e preservação das festas, ou, de modo mais geral, quando pensam sobre o destino da sua cultura –, os velhos sábios ye’kwana já estão “cansados de conhecer”. O mais fascinante do filme é o modo extremamente delicado e dedicado (quase digo, “perfeitamente” elaborado) pelo qual o processo de seu registro vai demonstrando todos os demais processos de construção e transmissão da sabedoria. A reunião dos velhos sábios de várias aldeias, a troca de avaliações, a escrita, a operação dos gravadores, as orientações constantes sobre os mais variados modos de fazer as coisas: ajustes na feitura do beiju, na pintura corporal, na imitação da voz, na construção do orifício da flauta wana... Tudo isso culmina na primeira apoteose do filme. O primeiro discurso de Vicente de Castro, o mais velho Inchonkomo, diz: “Estamos vivendo aquilo que os Inchonkomo haviam alertado: que iríamos nos espalhar [nos pulverizar, nos multiplicar] e que acabaríamos. Eles sempre nos alertaram para isso. Os pajés vão sumir e os Achuudi irão acabar. O som da flauta wana vai desaparecer. Estamos no tempo do qual os Inchonkomo falavam. Nossa cultura está enfraquecendo desde a chegada do papel [do homem branco, mas também do outro que é representado por Odosha]. Os Inchonkomo falavam que o papel chegaria. Estamos no tempo de que falavam. O que acabamos de ver é o nosso modo de ser desde o princípio. Penso que, como nossa cultura está se acabando, no

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futuro, vocês vão querer ver como eram as festas antigamente”. A segunda apoteose (uma segunda versão não poderia deixar de aparecer) vem na exegese do primeiro discurso, na discussão entre os velhos sábios e os jovens cineastas, sobre o nome da câmera, o nome da filmagem, ou seja, sobre o conceito ye’kwana de filmagem. Os cineastas perguntam aos mais velhos: “Queremos saber, é perigoso para a pessoa ser filmada?”. Vicente de Castro responde: “Sim, pode matar. É coisa de não-indígena. Pode te fazer esquecer, te deixar cego. Assim falavam os antigos. A câmera é o olho de Wiyu. Por isso ela é assim, te mata, porque Odosha é outro tipo de gente. A câmera nasceu com Odosha”. Os jovens tornam a perguntar: “Queremos ainda saber sobre a câmera. Podemos nomeá-la de outra forma? Podemos usar uma palavra diferente de filmar? Como podemos chamá-la? Como podemos nomear a filmagem?”. Vicente de Castro responde: “Eu não sei como chamá-la. O que vocês acham? Antes não tinha nome. Na época do contato dizíamos película, uma palavra não-indígena. Por mim, vocês podem chamar de chu’tädö , imagem, cópia... Também damos este nome para outras coisas, como artefatos talhados em madeira. Aqueles artefatos não são verdadeiros, são apenas réplicas que fazemos... O filme que gravamos aqui sobre os pássaros, aquele filme era um chu’tädö , era uma dramatização. Podemos chamar assim. Filmagem é chu’tädö”. A discussão entretanto não termina, a pergunta volta-se para os filmadores, especialmente para o filmador não-indígena. Os sábios indagam: “Os Ye’kwana que falam português deveriam perguntar aos não-indígenas se existe orientação para eles antes de filmar. Deveriam perguntar se os não-indígenas foram advertidos sobre os riscos da gravação das imagens, se tomam medidas para se precaver e proteger


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aquilo que estão filmando. Deveríamos perguntar a você, José, você recebeu essa orientação?”. O filme termina com esta questão: quais são nossas precauções a respeito do perigo de corrupção e morte que envolvem a prática da gravação, da manipulação da imagens, da captura e transmissão das cópias? Estamos refletindo sobre os riscos que essa prática envolve? Durante todo o filme, aprendemos com os Inchonkomo que, ao menos do ponto de vista da sabedoria ye’kwana, toda operação de invenção esteve desde sempre acompanhada por um duplo, e que nada pode haver na terra cuja existência seja completamente “original”. Desde o Watunna, a criação esteve balançando sob o par de demiurgos. De um lado, Wanadi pretende criar perfeitamente, de outro, Odosha, seu irmão gêmeo, inevitavelmente cria corrompendo a criatura anteriormente inventada. O mundo se mantém nessa pendulação, a partir dessa relação de duplicação, de interação necessária e perigosa entre dois diferentes. Por isso os Ye’kwana estão atentos, sabem que correm o risco de se enganar. Duvidam, hesitam, tomam suas precauções. Bem antes da “era da reprodutibilidade técnica”, os Ye’kwana sustentam, aperfeiçoam e transmitem cultura, “inventam-na” ao mesmo tempo em que a “corrompem” um pouco. E nós? A diferença entre a nossa invenção da cultura e a deles, talvez esteja justamente no fato de que eles sempre se preocuparam em proteger-se da invenção, da cultura, sempre souberam dos seus riscos. Mas nós o que fazemos com a nossa? Nos precavemos? Nos resguardamos dos riscos da multiplicação das imagens que criamos? Estamos cientes dos riscos de nossos duplos, de nossas imagens, de nossas projeções? O filme nos indaga a todos.

Tomando o exemplo recente do processo eleitoral neste país, fica explícito que falhamos miseravelmente. Não temos controle algum.


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Do sonho real à real conquista sobre Parque Oeste (2018), de Fabiana Assis

Rafael Barros*

— Essa cova em que estás, com palmos medida, é a conta menor que tiraste em vida. — É de bom tamanho, nem largo nem fundo, é a parte que te cabe deste latifúndio. — Não é cova grande, é cova medida, é a terra que querias ver dividida. — É uma cova grande para teu pouco defunto, mas estarás mais ancho que estavas no mundo. Morte e Vida Severina,1 de João Cabral de Melo Neto

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ra princípio de 2005. O país vivia um momento econômico extraordinário após a celebrada eleição presidencial que levou para o Planalto Central, no ano de 2002, uma das maiores lideranças populares do país: o sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT). Não muito distante dali, a exatos 202 km de Brasília, na cidade de Goiânia, Marconi Perillo (PSDB) ocupava o cargo de governador do Estado de Goiás. Ao passo que assistíamos a implementação de uma nova agenda política em âmbito nacional, que objetivava a garantia de direitos sociais à população, sobretudo às parcelas mais pobres, e um processo de diálogo e construção junto aos movimentos sociais, em Goiás seguia em curso a política das elites conservadoras e agrárias do Estado. Foi nesse cenário de contraste político que no bairro Parque Oeste Industrial de Goiana, a Ocupação Sonho Real – apesar da garantia pública do governador Perillo de permanência das famílias e da desapropriação do terreno por elas ocupado, resultado do abandono de cerca de 50 anos sem o cumprimento da função social da propriedade e sem o devido pagamento de

*Antropólogo, mestre em Preservação do Patrimônio Cultural, produtor cultural e pesquisador do CER - Centro de Estudos da Religião Pierre Sanchis/FAFICH/UFMG, tendo sido assessor técnico do Ministério Publico de Minas Gerais. Atualmente é membro da Associação Filmes de Quintal e assessor parlamentar da Gabinetona das vereadoras Cida Falabella e Áurea Carolina. É congadeiro, folião e banhista da Praia da Estação! 1. MELO NETO, João Cabral de. Poesia completa e prosa. Antonio Carlos Secchin (Org.). 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 159-160. (Biblioteca luso-brasileira: série brasileira)


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impostos – foi violentamente despejada no dia 16 de fevereiro, após dez dias de tortura física e psicológica coletiva, com sucessivos ataques noturnos. Aproximadamente 14 mil pessoas foram retiradas, à força, de suas moradias em total desrespeito ao ordenamento jurídico. A Operação Militar produziu duas vítimas fatais confirmadas, Pedro e Wagner, outros 1 6 feridos à bala, um desses ficando paraplégico, Marcelo Henrique, e suspeita-se que o número de mortos e feridos seja ainda maior, principalmente em consequência de desaparecidos. Eronilde Nascimeno era uma das lideranças da ocupação. É ela que a câmera de Parque Oeste acompanha no exercício de reconstrução da vida e da permanente luta pelo direito à moradia. Após o grande crime cometido, as famílias se reorganizaram e seguiram firmes em seu propósito. Este filme-testemunho apresenta essa trajetória de superação e resistência, tornando-se instrumento de desvelamento não apenas da opressão, mas da máquina de invisibilização do poder popular e de sua potência transformadora da realidade social. Longe da cortina do espetáculo apresenta em suas miudezas as memórias vividas e como que, no cotidiano, totalmente devotado a construção coletiva, um cenário absolutamente adverso foi sendo recomposto e redesenhado, principalmente por mulheres que tomaram para si as rédeas de suas histórias. As lentes que acompanham Eronildes alcançam aquilo que os olhos presenciaram, mas revelam mais: aquilo que os olhares desenharam ainda antes de ser visto e o que ainda está por vir. Real Conquista, o bairro de agora, passa a ser o terreno fértil onde a experiência comunitária, ainda muito precária, move a fabulação de um mundo possível. Diante do atual quadro, onde tristes cenários se anunciam, onde essas cenas pretéritas, combativas e a serem combatidas, podem se

tornar uma constante, diante de um imperativo retrocesso, onde as lutas sociais, os ativismos e, fundamentalmente, os movimentos de retomada e de democratização da terra podem se tornar crimes de terrorismo, faz-se mais que necessário, não apenas sonhar, mas (re)existir diante dessas conquistas reais e seguir alimentando, fecundando esses terrenos áridos e sombrios.




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Chuva é cantoria na aldeia dos mortos sobre filme de Renée Nader e João Salaviza

Ana Gabriela Morim de Lima Ian Packer*

...quando alguém morre os mortos o levam consigo e vão cantando fazendo barulho [é a chuva chegando] ...o céu escurece eles se vão se divertindo fazendo barulho [é a chuva chegando] ... já levaram o morto consigo e lá se vão, as almas. o tempo fecha, elas se vão e ficam andando se vão cantando fazendo barulho [é a chuva chegando] Tradução de uma fala de Hacàc Krahô, sobre a chuva-cantoria dos mortos

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m Chuva é cantoria na aldeia dos mortos (2018) acontece um valioso entrecruzamento entre a imaginação dos índios Krahô e a dos diretores Renée Nader e João Salaviza, por meio do qual se produz uma estética visual e uma poética narrativa de outro modo improváveis caso esse encontro não tivesse sido dos mais profícuos. A beleza desse encontro inunda a tela e a transborda. Chuva... é resultado de uma experiência compartilhada, baseada em deslocamentos e em vivências transformadoras para todos os envolvidos. No encontro com Ihjãc, Kotô e o pequeno Tepto, Chuva... recria alguns dos vários encontros entre alteridades humanas e não-humanas que povoam o mundo krahô. Na primeira cena do filme, o jovem Ihjãc vagueia pela floresta ao encontro do carõ de seu pai, que lhe faz um pedido: Ihjãc e sua família não devem se esquecer de fazer o Pàrcahàc, festa de fim de luto, quando irão cantar e chorar a saudade pelo morto uma última vez e, assim, esquecer sua alma, permitindo que esta também se esqueça de seus parentes vivos e siga seu caminho para a aldeia dos mortos. A preparação da festa é, contudo, atravessada por outro encontro de Ihjãc, desta vez com o pahhi da gente-Arara. Presa de sua

Ana Gabriela Morim é pós-doutoranda em Antropologia Social na Universidade de São Paulo. Ian Packer é doutorando em Antropologia Social na UNICAMP. Ambos desenvolvem pesquisa entre os índios Krahô, habitantes do Tocantins.

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sedução, ele se vê em vias de virar wajaka, figura ambígua, capaz tanto de curar quanto de atacar por meio de feitiços. Buscando fazer com que a Arara o esqueça, Ihjãc vai então ao encontro de outro estranho mundo, aldeia de uma gente ainda mais perigosa: a cidade. Aqui, as ameaças, ao invés de se apaziguarem, se intensificam ainda mais: ao mesmo tempo ensurdecedora e ensurdecida, sedutora e monstruosamente povoada por cavalos, caminhões e mercadorias, a cidade urge, impaciente e acelerada pelo tempo dos relógios. E enquanto a Arara continua a se lembrar de Ihjãc e a desejá-lo para si, longe de seus parentes ele parece novamente se esquecer do pedido de seu pai. Chuva... se desenvolve, assim, entre espaços-tempo de diferentes mundos e sujeitos, relacionados por vetores de lembrança e esquecimento

que atravessam seu personagem e o engajam em múltiplos devires: “virar arara”, “virar pajé”, “virar branco”... Falamos de encontros e há, parece-nos, um código sensível fundamental que os permeia. Os Krahô pensam o mundo e conformam seu modo de vida diário e imemorial por meio de vários dualismos. Um deles se articula em torno dos elementos Fogo e Água e de suas ressonâncias cosmológicas, ecológicas, rituais e comportamentais: a seca e a chuva, o dia e a noite, o plantio e a colheita, a escassez e a abundância, a coragem e o medo, a alegria e a tristeza, a vida e a morte. Não por acaso, no filme de João e Renée – rodado em película e quase sempre durante o interstício fino entre luz e sombra que o amanhecer e o entardecer no Cerrado oferecem – estes elementos também abundam,


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sendo fundamentais para a textura de suas imagens e para a construção da trama. O filme se inicia no auge da seca, quando as queimadas atingem o Cerrado. O fogo, quando criminoso e descontrolado, tem enorme poder destrutivo, mas quando feito à moda indígena e controlado por seus saberes, também possui grande poder regenerador e criativo: possibilita a abertura das roças, a fertilização da terra e a recriação contínua do Cerrado. Temos assim a chama sobre a água como indício da presença sobrenatural do pai; os tiros com armas de fogo na placa da aldeia como indício da presença ameaçadora dos não indígenas; as crianças brincando de noite com labaredas como indício da presença dos mecarõ; a tocha que aparece a Ihjãc em sonho e que desencadeia seu desejo de retornar à aldeia para realizar a festa de seu pai; as chamas queimando as chapadas... Como as cachoeiras do Cerrado, o filme também abunda em água: o barulho da chuva chegando e anunciando a partida das almas dos mortos; a camisa encharcada de Ihjãc pela primeira chuva torrencial, como expressão de seu cansaço com a vida citadina; as crianças brincando de dia na chuva como manifestação da alegria dos vivos que prevalece com o fim do luto; a resiliência das plantas que fazem rebrotar a paisagem verde após a estiagem... Fogo e água também entram na composição de cenas fundamentais para a expressão da “psicologia” de Ihjãc e do aprofundamento de sua relação com as alteridades perigosas que passam a perturbá-lo. Retomamos, aqui, duas cenas principais para um breve comentário. Ao final da conversa sobre o misterioso choro de Tepto e sobre a necessidade de se buscar a ajuda de um wajaka, o barulho do crepitar das chamas da fogueira ganha intensidade sonora, como se queimassem Ihjãc por dentro. Com olhar imóvel, ele começa a suspeitar

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que alteridades estão tentando seduzir seu eu, o que se reflete no seu próprio filho, tendo em vista a consubstancialidade corpórea que, para o pensamento krahô, existe entre eles. Esta cena ecoará nos equívocos que marcam o (des)encontro de Ihjãc com o sistema de saúde na cidade. Ali, ele tenta explicar aos nãoindígenas que não se sente “quente por fora não, é quente por dentro”; entretanto, é visto como um “hipocondríaco”, cuja disfunção de ordem puramente psíquica o leva a nutrir certa obsessão pela doença e pela morte. Ihjãc sente, contudo, que seu mal-estar é provocado pela intencionalidade de um outro ser e que sua cura depende de um ajuste cosmopolítico de suas relações com estas alteridades, como o alertou o velho wajaka. Esta espécie de extroversão da subjetividade do personagem é, vale notar, uma genuína colaboração dos índios e dos atores Krahô à maneira como o filme anima seus personagens e conta sua história. Uma das características dos mitos ameríndios é que, quase sempre, há poucas descrições acerca da subjetividade de seus heróis, como se as relações “internas” que estes mantêm consigo mesmos pouco interessasse a seus narradores. Antes (ou mais) do que isso, nas narrativas indígenas a ênfase costuma recair nas relações “externas” destes com o mundo, estas sim descritas em grande detalhe e minúcia. As mudanças de posição do herói perante alteridades humanas e não-humanas costuma, assim, constituir o motor das narrativas e é justamente isso que Chuva... põe em cena. O sofrimento do jovem Ihjãc perante a morte de seu pai não é uma questão apenas subjetiva e pessoal que se resolveria num processo individual de superação do luto, mas sim um problema coletivo, que abrange suas relações com o espírito de seu pai, com parentes e não parentes, com animais e outras alteridades não-humanas. É uma questão objetiva, portanto, um problema


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dele com o mundo e que o implica num processo sobre o qual ele não tem muito controle e que ocorre, em grande medida, à sua revelia. Essa característica é sugerida com força pouco mais adiante, quando Ihjãc observa seu reflexo na água, cena que também nos parece evocar a mitologia, mas não a mitologia ameríndia, e sim a dos índios europeus, ou melhor, a mitologia de seus ancestrais greco-romanos: Narciso preso a seu reflexo, encantado por sua própria beleza. Acontece, contudo, que Ihjãc não está apaixonado por si mesmo, e sim observando com suspeita a distorcida imagem-de-si que a textura aquosa do lago lhe devolve, reverberando o grito de uma arara. Esta surge imediatamente na cena, atravessando o céu e irrompendo em sua imagem – novo indício eloquente de um Eu em vias de se transformar em Outro. Assim, trata-se, a bem dizer, de um anti-Narciso, de uma refração do célebre arquétipo europeu pelas sensíveis lentes de João e Renée, mas, como dissemos, nos termos propostos pelo pensamento krahô. A sobreposição sutil de imagens visuais e imagens sonoras que ocorre nestas duas cenas marca também várias outros momentos, exigindo do espectador que não apenas veja, mas ouça com atenção toda a trilha do filme – o que é uma justa homenagem ao lugar central que som e música têm na sociocosmologia krahô. Realizada a festa e encerrado o luto, Ihjãc submerge nas águas da cachoeira. Ressurge, então, a voz de seu pai, desta vez entoando um lindo canto. Não se trata, porém, de um fim – de Ihjãc ou do filme. Ihjãc desdobra sua existência para além da última cena – imagem deste mundo –, e, transformado em música, passamos a escutá-lo alhures, cantando com seu pai, na aldeia dos mortos.

Sob o sereno Sob o sereno caça Quati sou Sob o sereno Sob o sereno caça Quati sou Deitados próximos ao fogo Sem fazer barulho Escutem o forte canto dos antigos Fiquem tranquilos Eu estou aqui no lugar dos nossos falecidos pais com os belos cantos dos antigos e ainda que o Frio da noite me enfraqueça de pé permaneço Sobre a lenha Sobre a lenha Labareda sou Sobre a lenha Sobre a lenha Labareda sou (Tradução do canto de Pootyt Krahô, cena final)


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Temporada sobre filme de André Novais Oliveira

Kênia Freitas*

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primeira vez em que Juliana (Grace Passô) aparece em cena o seu olhar está voltado para baixo, ombros caídos e o cabelo liso escovado. Um corpo que se direciona para o chão, para uma presença que precisa se anular, desaparecer. Nesse momento, ela entrega os documentos necessários para o início do trabalho como agente de fiscalização sanitária (focada no combate à dengue). O emprego é novo, a cidade é nova e tudo é desconforto nessa configuração. A câmera de André Novais Oliveira enquadra a personagem obliquamente, de modo que Juliana evita não só o contato visual com a nova chefe e os colegas de trabalho, mas também qualquer contato mais direto com o espectador. Na última cena de Temporada (André Novais Oliveira, 2018), Juliana está sentada ao volante e tenta com sucesso fazer o carro com defeito pegar, enquanto os amigos empurram o veículo. Os cabelos agora crespos apontam para os lados e para cima. O enquadramento não é mais oblíquo, mas de perfil - o que possibilita observar o seu olhar e expressões faciais com proximidade. Os seus olhos conferem rapidamente as marchas, os pedais e o volante, mas concentram-se confiantes no horizonte: na estrada livre pela frente e no

movimento que se inicia nessa direção. Apesar das rápidas olhadas pelo retrovisor, conferindo os amigos que ficaram a distância, Juliana segue, sem retorno. Uma gargalhada aberta se insinua, pela traquinagem com os companheiros, e logo se fixa em um sorriso discreto que acompanha o olhar fixo para o horizonte. Entre as duas cenas, podemos vislumbrar na temporada que intitula o filme (e o preenche) um hiato de estados de espírito, de expressões corporais, enfim da presença de Juliana no mundo. Esse hiato é interligado pela matéria que compõe a narrativa do filme: a vida em suas formas mais singelas. A vida nos filmes de André Novais Oliveira é não apenas a sua matéria, o elemento mínimo que liga os planos e faz mover a história, mas uma aposta quase espiritual, transcendente, na sua potencialidade como cinema de narrativas mínimas e íntimas. Assim, são os fragmentos do cotidiano que transcorrem banalmente que nos guiam na transformação de Juliana, adaptando-se ao novo emprego, nova casa, novos amigos, ao término do casamento. Esse cotidiano vaza no filme como ações e gestos concretos: a transição capilar da protagonista negra é uma das marcas dessa

*Pós-doutoranda (CAPES/PNPD) do programa de pós-graduação em Comunicação da UNESP. Doutora em Comunicação e Cultura, pela UFRJ. Mestre em Multimeios, pela Unicamp. Formada em Comunicação Social/ Jornalismo, na UFES. Realizou a curadoria das mostras “Afrofuturismo: cinema e música em uma diáspora intergaláctica” (2015/Caixa Belas Artes/SP), “A Magia da Mulher Negra” (2017/Sesc Belenzinho/SP) e “Diretoras Negras no Cinema Brasileiro” (2017/Caixa Cultural/DF e RJ; 2018/Sesc Palladium/MG). Escreve críticas cinematográficas para o site Multiplot! e integra o Elviras - Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.


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materialidade de transformação do dia a dia. Mas também vaza como afetos imateriais, mas substanciais nas imagens: no posicionamento da câmera, nas distâncias e aproximações que negociam proximidade e liberdade à protagonista. Em uma ética spinozista, o cinema de André Novais Oliveira não separa corpo e espírito nestes encontros de amizades, amores, amabilidade entre desconhecidos - e do filme, e sobretudo de sua protagonista, com os espectadores. Assim, em Temporada esse paralelismo de corpo e espírito mostra-se sobretudo na relação de cumplicidade construída entre a direção de André Novais Oliveira e a atuação de Grace Passô, como Juliana. Essa cumplicidade pode ser entendida a partir de uma das últimas sequências do filme, na qual Juliana conta sobre um período da infância em que passou quase três anos sem falar. A mudez veio sem nenhum problema físico ou psicológico diagnosticável, e foi embora motivada pelo amor de Juliana por uma vizinha mais velha, que sempre acreditou na volta da fala da menina. No subtexto, a relação desde a infância de Juliana com um existir no mundo de temporalidade e reações próprias, fora de uma expectativa quantificável, mas certeira. Assim, na certeza e aposta de uma encenação de ritmo e modulações próprias, a câmera de Novais entrega-se à Passô, a sua temporalidade própria, aos gestos sutis e as transformações gradativas e permanentes da personagem. Em tempos de ódio, impaciência e ranço como grandes motivadores, a aposta na vida e nos encontros positivos, sem alardes, sem gatilhos, sem viradas, com cumplicidade e confiança no cinema como arte narrativa é um gesto político potente e necessário.


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Diante dos meus olhos sobre filme de André Félix

Jair Tadeu da Fonseca*

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filme de André Félix sobre a banda capixaba Os Mamíferos já começa a fazer jus ao seu título com a imagem de olhares postados para um suposto palco musical. Tal cena, no sentido amplo da expressão, como cena artístico-cultural, será a de Vitória, onde, nas décadas de 1960 e 1970 atuou, em diferentes formações, a banda, ou “conjunto”, como se dizia no Brasil daqueles tempos, com esse belo e irônico nome. Não por acaso, em uma conversa de botequim, um dos remanescentes do grupo cita em primeiro lugar The Animals, banda britânica que encarnaria o espírito, a “anima”, do rock’n’roll. O filme poderia fazer (e de certo modo faz) parte da onda de importantes documentários sobre a música popular no Brasil aos quais temos assistido com prazer e sede de aprender, mas é diferente por alguns motivos marcantes. Primeiramente, por não se voltar para músicos conhecidos e reconhecidos, em suas carreiras de sucesso. Pelo contrário, apresenta-nos a história de um grupo quase desconhecido, e pouco lembrado até em sua cidade de origem. Com isso, em vez de “chover no molhado” da redundância, que caracteriza mesmo muitos dos bons filmes do gênero, nos revela algo da grande, gigantesca, história invisível e subterrânea da música pop-popular, não só no Brasil. Para cada

artista famoso, quantos milhares e milhares foram ignorados ou pouco reconhecidos? E, no entanto, o primeiro não existiria sem os outros, pois todos fizeram parte de um esforço coletivo para a criação de uma cena cultural muito ampla, no caso o rock brasileiro, que vai muito além de alguns nomes exemplares. Uma das muitas qualidades de Diante dos meus olhos está justamente em valorizar, com a reunião fílmica d’Os Mamíferos (pois poucos deles são os que ainda estão juntos ou se encontram de fato no presente), as singularidades, as histórias particulares de algumas das figuras desse vasto quadro coletivo, tanto em seu alcance nacional e internacional quanto nos planos local (o da cidade de Vitória), e regional (o do Espírito Santo), que não por acaso são fundamentais para o filme. Outra de suas qualidades é a de mesclar às histórias de vidas e reflexões dos personagens as paisagens da cidade, sejam as das ruas sejam as naturais, sem que isso seja apenas uma referência óbvia de localização, mas algo que se liga a essas vidas e reflexões através da música, algo que nem sempre é devidamente valorizado em filmes sobre... música. É de se lamentar que haja tanto desprezo pela música em tantos documentários, que, por exemplo, cortam as canções pela metade, ou até antes. No caso em questão, acrescente-se que o material

*Professor-pesquisador da Universidade Federal de Santa Catarina e cancionista, ex-membro das bandas Sexo Explícito, Divergência Socialista e O Último Número.


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musical aí apresentado, trazido de arquivos que seriam praticamente inacessíveis de outro modo, é em grande parte inédito, pois a banda nunca gravou discos. Assim, um precioso acervo de qualidade do rock brasileiro pode ser preservado e divulgado. Entre as sequências em que vão e vêm depoimentos dos remanescentes do grupo, há muitos travellings de paisagens urbanas e naturais que servem ora como “respiros”, ou pillow shots, que suspendem a narrativa, principalmente no início, ora como clipes das canções, sem que haja relações óbvias entre o que diz a letra e o que se vê. Por exemplo, num travelling noturno pelas ruas de Vitória, ouve-se na letra de uma música que “ninguém escuta”, o que pode aludir num sentido mais amplo ao próprio raio de alcance de um trabalho artístico pouco reconhecido, mesmo localmente. Ou, numa outro clipe-sequência, ouvimos que “eu vou lhe contar o mundo, (...) mas daqui a duzentos anos, eu já morri”, e nisso ressoa a importância da memória de que trata o próprio filme. Aliás, é interessante que ao menos três das canções referidas tragam nomes femininos: o hard rock que fala de “Mônica, Verônica”, entre outras palavras proparoxítonas; “Corina”, suingada como um samba rock; e “Dita” (“Benedita”), embora haja poucas personagens femininas em Diante dos meus olhos. Mesmo que eventualmente descubramos quem é quem, talvez fosse útil colocar algum tipo de legenda que identifique pelo menos os protagonistas da história, mesmo os mais recorrentes. Todos estes, mais ou menos, participam da narração do filme e aí podemos salientar, por exemplo, Brijó, mais facilmente identificável até por sua constância no boteco de esquina, em locações muito bem filmadas, tanto de dentro, quanto nas mesas da calçada, ou, em planos gerais, do outro lado da rua. Em sua primeira participação no filme, ele surge em litígio com um

motorista que não respeita a faixa de pedestres em frente ao botequim (significativamente numa sequência após outra em que se narra uma briga no palco do Festival de Guarapari) e depois, já lá dentro, se apresenta como roqueiro aos demais habitués, antes de citar os Animals. Posteriormente, no mesmo local, mas para tomar café, Brijó afirma: “Viver de música aqui? Ninguém! Melhor viver de bar. Entre a música e o bar, eu prefiro o bar”. Quando se vê o boteco do outro lado da rua, às vezes de dia, às vezes ao escurecer, enquanto passa gente, o trânsito flui, aumenta ou diminui, é inevitável pensar que a vida passa, mas a música continua, na vida e no fluxo fílmico. Noutra sequência, num restaurante de praia, onde um dos remanescentes da banda tem um restaurante, cujo nome significativo é Amizade, dois parceiros postam-se frente a uma fogueira e um deles (Afonso Abreu) compara a história d’Os Mamíferos a um romance, para filosofar metaforicamente sobre o passar do tempo, os conflitos e a dispersão dos amigos, seu envelhecimento e a morte de alguns deles, enquanto temos a imagem escura e rubra das brasas ainda a arder na fogueira já quase extinta: “A gente se embrenhou no abstrato. Virou fantasma. Fantasma é bom, porque não bebe água, não gasta luz...”. Mas enquanto alguns dos ex-membros da banda aparentemente não se interessam mais por música, pelo menos como no passado, porque já buscaram outros caminhos, com o tempo, outros procuram reativar parcerias, gravar canções novas ou antigas, inclusive com músicos de outra geração, e continuar a criar algo, como vemos em determinadas sequências do filme. E entre os seus procedimentos o que talvez seja algo mais inusitado em Diante dos meus olhos é o que podemos chamar de pillow-sequência, próxima ao final, em que a interrupção do fluxo narrativo, num longo respiro, traz à cena uma montagem videográfica de clipes diversos do


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youtube, nos quais se salienta a manipulação da cor (verde) em imagens de água, chuva, e de interior de automóvel, mais alguns recortes como os de drones, e uma experimentação com discos de vinil, até que se volte às ruas de Vitória, antes dos créditos finais, onde ouvimos, noutra canção d’Os Mamíferos, que “no meio da paisagem (...) corta essa, que eu não sou miragem”. A respeito da cena cultural de Belo Horizonte, dos anos 50 a 60, o crítico e cineasta Maurício Gomes Leite escreveu sobre nossas “pequenas ambições culturais”, no sentido de que, mesmo em ambientes provincianos, nos quais os horizontes parecem restritos e mesquinhos, há um paradoxal espaço de grandeza, como o que foi aberto pelos Mamíferos musicais de Vitória, diante de nossos olhos e ouvidos.

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Corpos sob o risco do real – Circuito forumdoc.ufmg Ana Lívia Rodrigues João Ivo Larissa Muniz Lea Monteiro Luís Oliveira Marcos Alves Pedro Antuña*

V

ivemos o fim de um projeto popular de construção democrática superado por interesses privados. A narrativa que se estabelece nos nega o papel de agentes políticos, bem como nossos direitos e nosso futuro. Não se limitando a isso, procuram o emplacamento subjetivo e simbólico, e também material: organizam golpes, assassinam lideranças e promovem genocídios. Somos tomados por uma inquietação e uma impotência. Somos interrompidos, temos nossas subjetividades disciplinadas, e nossa prática podada. Nesse sentido a ascensão da direita e do conservadorismo é um golpe ao futuro. Em todo esse processo, como ficam os corpos que sempre estiveram à margem? Impossibilitados e roubados de seu futuro, constroem subjetividades e organizações em oposição ao

que se propõe implementar. Assim, o Circuito1 propõe o risco do real, o constante conflito em que as populações marginalizadas se encontram, em oposição à hegemonia, ao Estado e ao privado. Um conflito que perpassa seus corpos e que os põe sob ataque. É o corpo — político, subjetivo, humano — que ocupa esse lugar de iminência, de uma realidade que não atende (e nunca atendeu) às exigências dos sujeitos esquecidos que decidem reivindicar seus espaços. De corpos oprimidos se tornam corpos ameaçadores, que desafiam a ordem ao se colocar na imagem e, consequentemente, decidir sobre como são vistos e como percebem a si mesmos. Há ainda o outro risco do real, que atravessa e transforma o cinema, obrigando-o a enxergar esses corpos e deslocar a estrutura

*Idealizadores do Circuito forumdoc.ufmg 2018 - Corpos sob o risco do real, orientados por Cláudia Mesquita, Paulo Maya e Ruben Caixeta. 1. O Circuito forumdoc.ufmg é uma iniciativa de bolsistas do programa de extensão forumdoc que, desde 2015, constrói uma parceria com cineclubistas da universidade e moradores de ocupações e comunidades de Belo Horizonte e região metropolitana. O objetivo deste projeto é organizar mostras temáticas itinerantes que articulem tanto a comunidade acadêmica quanto o público fora da universidade, contribuindo para a formação audiovisual e cidadã de ambos – buscando sempre um diálogo e debate entre as o público, realizadores e especialistas.


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cinematográfica num gesto de alteridade. Esse movimento de ultrapassar o cinema por meio do próprio cinema, resultante de realidades urgentes que o cercam, permite que os corpos falem intensamente com suas experiências vividas, documentadas, encenadas ou reconstruídas. Corpos que protagonizam a imagem e a alteram em suas vivências reais do mundo. Nos propomos a tratar não apenas de corpos em cena, mas tratar em conjunto com aqueles com quem compartilhamos as imagens, para que surjam questões que nos afetem, nos mobilizem e nos transformem. Esse “ver junto” proposto pelo circuito permite que, em comunhão com as imagens e com esses corpos, vejamos possibilidades, saídas, transformações. Que sejamos incumbidos de carga para entendermos nossas subjetividades e o momento político, a fim de que vejamos uma possibilidade, encontremos uma saída e proponhamos uma transformação. É através do cinema que esse diálogo se constrói – através da orientação do outro e da reflexão conjunta pretendemos aprender: viver a impossibilidade e viver a resistência.

Curadoria

Todas essas questões nos invadiam ao pensar o Circuito forumdoc 2018. Surgindo a partir de uma inquietação com a atual circunstância brasileira, estagnada e apática, decidimos nos aproximar de filmes que abraçam os corpos — via de regra, à margem e subalternos — e estimulam suas possibilidades de fala. Esses corpos, profundamente ausentes na história do cinema como autores e construtores do próprio discurso, estão elaborando suas vivências e, com isso, afirmando seus direitos de existir. O cinema, nesse sentido, envolve o político: dar a ver presenças que historicamente foram faladas por e raramente com, e

em seu movimento atual, constroem narrativas por si mesmas. Nosso gesto curatorial caminhou nesse sentido, considerando os espaços urbanos que pretendíamos ocupar. De nada adianta pensar estruturas fílmicas, experimentações estéticas e elaborações de mise-en-scène se antes não pensarmos a possível potência dessas obras para os públicos do Circuito — normalmente, pessoas dos próprios espaços onde as sessões se deram (moradores da Ocupação Carolina Maria de Jesus, funcionárias e gestantes do Hospital Sofia Feldman, alunas do cursinho Transenem, etc.). É difícil determinar se uma obra é ou não adequada para determinadas audiências, se ela será aceita ou rejeitada, confrontada ou aplaudida. No entanto, é possível explorarmos os potenciais debates que podem surgir a partir desse cinema que, deslocado da caixa preta, seja em festivais, seja em salas comerciais, propõe outras experiências, bem diferentes da espectatorialidade em ambientes cinéfilos. Por isso, escolhemos uma série de filmes pouco semelhantes entre si, os quais, com suas propostas políticas, buscam alteridades e tensionam o cinema - alguns mais, outros menos. Nesse movimento, procuramos entender as imagens que nos cercam e por quais razões elas podem mobilizar ou repelir diferentes sujeitos que as experimentam. Procuramos, neste desvio dos espaços “tradicionais” dos filmes, expor as fraturas entre quem faz e quem vê, quem propõe a discussão e quem vive na pele suas implicações – ainda que a fronteira entre esses limites seja difusa e instável. São com esses corpos sob o risco do real que temos uma chance de reconfigurar os Cinemas, tornando-os mais abrangentes e mais sensíveis às imagens que tocam, machucam, sensibilizam e transformam.


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Sessão de abertura – Filmes de rua, A Gis e Calma

Na Ocupação Carolina Maria de Jesus, nos reunimos para pensar o cinema e suas possibilidades de acolher alteridades em uma estrutura que emana resistência — da entrada do prédio, controlada para garantir a segurança dos moradores, às diversas bandeiras que marcam a ocupação como um espaço de disputa política. Fomos recebidos por uma dúzia de crianças que brincavam animadas pelos corredores, com mochila nas costas e energia acumulada depois de um longo dia de aula, talvez. Mais tarde, as mesmas crianças aprendiam capoeira: os sons da música e da luta competiram com a trilha sonora dos filmes, compondo uma sessão expressivamente permeada pelo extra-campo da sala de projeção. Num espaço carregado de lutas e histórias, nada mais justo que uma exibição vulnerável às imprevisibilidades do real - cinema nenhum pode ganhar disso. Filmes de rua, A Gis e Calma iniciaram o circuito de sessões urbanas. Os filmes abrangeram diferentes realidades, por meio de estratégias formais bem distintas: no primeiro, uma câmera na mão inquieta e instável dá a ver, finalmente, a perspectiva de moradores de rua — o olhar é deles e não sobre eles; no segundo, um filme-homenagem ensaístico denuncia o preconceito assassino que extingue qualquer possibilidade de vida para o corpo desprezado de uma travesti; no terceiro, com linguagem experimental, a apatia domina o ambiente de uma ocupação e os sons externos que a invadem refletem a realidade dura de um espaço ameaçado. Cada filme ecoou de uma maneira particular, influenciada, em alguma medida, pelo ambiente de projeção. Quais filmes funcionam em quais espaços? É possível falar em “funcionamento” no cinema? Não temos respostas para essas questões mas, certamente, no contexto da Sessão de

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Abertura, foi possível perceber atmosferas bem distinguíveis. Calma, com seu prêmio de melhor curta-metragem pelo Júri da Crítica na Mostra Foco, que compõe a rica programação da Mostra Tiradentes em 2018, foi recebido de maneira dolorosa. O tempo se arrastou, as pessoas se inquietaram e, mesmo sendo um filme sobre ocupação numa ocupação, representou pouquíssimo aquela realidade. Sua composição artificial incomodou mais que tocou; suas possíveis significações flutuaram na sala e não pousaram em lugar algum; seus quadros controlados e sua montagem vagarosa repercutiram somente vazios. A Gis, por outro lado, foi potente em sua sensível construção: um filme-denúncia ou uma obra-homenagem, na qual sua personagem respira em cada quadro, como uma lembrança das opressões assassinas que a circundaram e de uma resistência manifestada tanto pelas consequências de sua morte quanto pela própria criação do filme. Foi, no entanto, Filmes de Rua que estreou o circuito de modo mais intenso, sendo um filme que carrega em sua produção e em sua forma uma realidade incompreensível para a maioria do público da sessão. Um soco na cara, no estômago e no olhar. Um pequeno pedaço de uma situação brasileira cruel e absurda: a realidade das ruas. Com alguns minutos de filme, os meninos que encenam e documentam seus cotidianos escancaram a hipocrisia e o peso moral que cerca a classe média brasileira. Afinal, as mesmas pessoas que aplaudem os meninos que exibiram seu filme em festivais de cinema, evitam, no dia-a-dia, moradores de rua como se fossem insetos indesejados. Outra questão significativa é como essas pessoas se reconheceram na tela e, durante a sessão, comentaram as aparições de amigos ou gravações de determinadas cenas, com risos, zoações e exclamações animadas. Novamente, houve um deslocamento:


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se em ambientes cinéfilos um sussurro é mal recebido e logo rechaçado, ali, na Carolina Maria de Jesus, ninguém tinha o direito — ou sequer queria — calar a voz dessas pessoas que, talvez pela primeira vez, se viam numa imagem.

Sessão Sofia Feldman – Lírios não nascem da lei

Na concepção dessa mostra, a oportunidade de construir uma sessão com a equipe do Hospital Sofia Feldman parecia apenas uma possibilidade distante e irreal. Levados pela urgência contra a precarização dessa instituição, conjuntamente com a possibilidade de diálogo com o próspero movimento articulado em sua defesa, saímos a procura de conexões, pessoas com quem poderíamos nos articular. O hospital, além de referência mundial em parto humanizado, é também acolhedor de mulheres em cárcere. A rigidez e frieza que se espera de uma instituição de saúde não se faz presente. Talvez pela própria negligência estatal, as servidoras criaram espaços de afetos e possibilidades, o que representava um contraste com a instituição de controle máximo do Estado, o cárcere. Quadrado de paredes imóveis, intactas, que nada deixam escapar. A certeza da ‘entrega’ — palavra que gera calafrios — e a impotência perante poderes outros que decidirão o futuro dos envolvidos. Choro, medo, tristeza, revolta, despedida. O risco da realidade do cárcere é ainda mais urgente em se tratando de maternidade. A ótica colonial e excludente em que se baseiam as leis e condutas de coerção arrasta quase sempre os mesmos corpos para esse espaço: jovens, negras, solteiras, de baixa renda e escolaridade (mais de 65% das mulheres em privação de liberdade se encontram nesse perfil, precisamente – dados do Infopen/2014). A vida não vista das mulheres em situação de aprisionamento é uma afronta ao direito destas e,

consequentemente, de seus filhos, que dispõem, na grande maioria das vezes, de ambientes inóspitos nos primeiros meses de vida, próximos da mãe, quando não se encontram em casos de recorrência a abrigos ou adoção. Lírios não nascem da lei veio como um soco no estômago. Acostumados a trazer aos nossos discursos lapsos confabulados de realidade — e a desigualdade que a define —, somos tomados de surpresa pela vivência de mulheres que, dentre outras opressões, têm seus partos e gestações mediante um sistema prisional que não as vê, que as negligencia. Negligência. Palavra que cerceia todas as pautas relacionadas a esse tema. Não somente do sistema, mas de sua família, das pessoas de seu convívio, do meio social. A mãe presa não é vista, não é lembrada. Na sala da sessão, os olhos vidrados de reconhecimento e empatia de pessoas que entendem no seu âmago todas as faces do ser mãe. Vez ou outra, gemidos agraciados e em coro, quando na tela aparece uma criança. Todas parecem esperar ansiosamente pelo seu momento do encontro, e posso fazer uma aposta de que, nas cenas em que se mostra detalhadamente o cotidiano do cárcere com uma criança, elas se imaginam neste outro lugar e seus corpos estremecem. Fabiana Leite e sua equipe tratam com muita delicadeza e sensibilidade as história de Dayane, Ana Carolina, Liliane e Marcela durante certo espaço de tempo. A diretora estava presente na sessão e, junto com a equipe do hospital, com gestantes que estavam em atendimento e convidadas referenciais no assunto, levantou-se um debate sobre toda a problemática que envolvia o filme: corpos diversamente oprimidos por serem femininos, em situação de cárcere, de baixa classe social e, sobretudo, corpos que geram corpos que via de regra serão, também, oprimidos. O debate foi muito afetivo em todas as falas, dispondo de relatos pessoais,


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lágrimas e bastante indignação perante as atrocidades exibidas. O mais simbólico, triste e representativo foi, sobretudo, sair da sala da sessão e ver uma mãe em privação de liberdade ser colocada dentro da ambulância, algemada, para voltar para sua cela, evidenciando tudo o que tínhamos acabado de ver.

Sessão II Feira do livro anarquista – 1917, a greve geral

Pela aproximação de alguns dos nossos membros com os organizadores da II Feira do Livro Anarquista em BH, fomos convidados a compor sua programação com uma sessão do Circuito forumdoc.ufmg. O filme escolhido foi 1917, a greve geral, de Carlos Pronzato, que participou da feira e após a sessão compôs a nossa conversa. A feira e a sessão aconteceram no Espaço Comum Luiz Estrela, espaço de luta e resistência. A sessão tinha sido marcada para 12:30, assim começamos a chegar entre 10:00 e 1 1:00 para montar um local para exibição dentro do casarão. Local muito iluminado e empoeirado para uma sessão de cinema. Entre tosses, alergias e a poeira subindo, junto dos organizadores da feira, aos poucos fomos criando um espaço de exibição. Ecos de marteladas eram escutados enquanto colocávamos a tela na parede e trabalhos em conjunto eram executados para conseguir tapar as janelas e buracos por onde chegava aquele sol de meio dia. Por fim conseguimos deixar tudo pronto ao horário da sessão: cadeiras enfileiradas, panos no chão para as pessoas se sentarem e a luz do sol filtrada ao máximo para não atrapalhar a sessão e incomodar os espectadores. A relevância do filme se deu tanto pelo ineditismo da sessão, quanto por seu tema: recuperar a história das trabalhadoras e trabalhadores que organizaram a primeira greve geral no

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Brasil. História essa que, como muitos capítulos das lutas populares, pouco conhecemos, seja pela inaptidão na construção de narrativas sobre essas lutas, ou pelo apagamento ativo dessas pela narrativa hegemônica. O longa de Carlos Pronzato entrevista diversos estudiosos e militantes anarquistas para tentar traçar um grande entendimento sobre o que foi a greve geral de 1917, pincelando seus principais temas. No debate em meio aquela poeira, muitos participaram contribuindo e trazendo vivências da resistência e da luta política que encaram no dia a dia, talvez pelo filme ter gerado um ânimo de ver anarquistas brasileiros retratando um pedaço importante de sua história naquele espaço e naquele evento em específico.

Sessão Transenem – Meu corpo é político e Estamos todos aqui

Com a ideia inicial de exibir Meu corpo é político e Estamos todos aqui, decidimos exibir e divulgar Lembro mais dos corvos. Mas, por coincidência, no dia da exibição, alunos e professores do Transenem nos pediram que passássemos Meu corpo é político e assim o fizemos. Ao fim, após sentirmos que precisávamos de um comparativo para incrementar o debate, acabamos exibindo também Estamos todos aqui. Com as espectadoras e espectadores reagindo aos estímulos dos filmes, a sessão do Transenem criou uma relação em que nós respondíamos ao fluxo de imagens que nos eram apresentadas. Os personagens ganhavam contornos que eram comentados, seja de forma cômica, crítica ou de admiração. O debate se deu, em sua maior parte, no que tange à representação LGBT no cinema, e abriu margem para se pensar o que significa o fazer cinematográfico contemporâneo e como se dá a representação do outro e a necessidade


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de filmes que sejam eles mesmos criados por autoras e autores LGBT. Meu corpo é político criou algumas controvérsias. Para uma parte das pessoas presentes, tratava-se de um filme muito didático, que representa apenas histórias de sucesso dentro da comunidade LGBT, algo que viria a servir a um público cisgênero e desinformado; para outras, uma quebra de estereótipos, não associando transexualidade e questões LGBT apenas a mazelas sociais. Estamos todos aqui foi entendido como mais potente e mais político por traçar uma série de intersecções entre gênero, raça e classe, apontando para populações à margem, tendo como protagonista uma travesti, negra e pobre em um constante embate contra o capitalismo pelo direito a moradia e a uma vida digna. Fomos provocados por termos escolhido exibir filmes sobre questões trans em um cursinho popular para pessoas trans. Essas questões já eram muito discutidas e muito presentes naquele contexto, o que fez com que houvesse um apelo para que exibíssemos, por exemplo, filmes sobre a questão indígena, para que houvesse uma conversa sobre realidades outras e sobre como operam as estruturas de poder com relação a outros grupos, expandindo assim o escopo de análise sobre as estruturas de poder sob as quais estamos submetidos.

Sessão Indígenas na Cidade – Ara Pyau e Fantasia de Índio

15 de Julho à noite, a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG já esvaziada, como é de costume acontecer às sextas. Ávelin Buniacá-Kambiwa, nossa convidada, parece realizada ao ver pouco mais de 10 pessoas na sessão. “Quando se trata da luta indígena, ainda mais na cidade, são poucos os interessados, ainda menos os que fortalecem”. Agradece a presença de todos, ao iniciar o debate.

À luz dos filmes Ara Pyau – A Primavera Guarani e Fantasia de Índio, procuramos estabelecer diálogos sobre a luta de indígenas em ambiente urbano. Ambos tangenciam duas cruciais questões levantadas por atores políticos indígenas da contemporaneidade: a luta pela terra e pela possibilidade da vivência tradicional. Considerando essas como necessariamente interdependentes, somos normalmente expostos a lutas indígenas em retomadas no campo, enquanto o debate propriamente urbano é comumente preterido. Em nossa concepção, a vivência tradicional na cidade é algo que se apresenta como dois significados quase opostos: a tradicionalidade, algo que inevitavelmente se refere ao passado, ao tempo intangível, a concepções hereditárias e ao campo. A cidade, o ambiente em que se produz o discurso hegemônico, que produz a regra sobre o tempo, o ambiente do futuro, da produção e da exclusão. Através dos filmes, percebemos que não poderíamos estar mais errados em manter essa aparente contradição. A luta dos Guarani no Pico do Jaraguá se dá enquanto uma luta por uma tradicionalidade urbana. A cena de um ato pela regulamentação da terra em plena Avenida Paulista é emblemática para entendermos isso. Estão presentes faixas com palavras de ordem e um microfone, usuais em manifestações de movimentos sociais, mas também realizam práticas culturais, jogos e rituais, a fim de apresentar sua identidade enquanto política, numa mise-en-scene urbana, moderna.

Sessão de encerramento

O sábado eclodiu na avenida Bias Fortes. As preparações, que começaram cedo, foram se embalando com o ritmo da cidade; o ambiente da Kasa Invisível, escolhido com precisão para a ocasião, aspira à luta e vive constantemente sob


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o risco do real, enquanto resistência anarquista e artística. O circuito em si é caracterizado por um trabalho dinâmico e imediato, cerceado por imprevisibilidades e necessitando de muito amor à causa para dar certo. Nessa sessão em específico caminhamos conjuntamente com o Coletivo REDE e o Coletivo Galla, além dos integrantes da Kasa Invisível, também constituídos de peças e cenários ativos e resistentes, que somaram forças e agregaram à sessão uma série de intervenções artísticas e, por que não, políticas. O filme tratava da luta de estudantes secundaristas e seu forte e impactante movimento contra um governo que prospera em cortes na educação. Conscientes da seriedade do problema e na defesa de seu direito à escolaridade, os estudantes tomaram posse da escola como uma forma de protesto e perduraram firmemente durante todo o trâmite das negociações políticas. É um filme importante porque retrata a forte articulação de sujeitos tão novos politicamente, cuja vontade de um ensino justo e de qualidade se canalizou para uma luta gigantesca que abarcou o país inteiro, resultando em muitos ganhos na educação e na promessa de retorno, caso estes não sejam efetivados. A vigília constante desses jovens é algo de se admirar e a ser reproduzido. A festa se consolida também como um espaço fortemente político: foi pensada para e por sujeitos que constroem e enfrentam cotidianamente a luta por sua existência, e que criaram ali uma possibilidade de representação e exclamação de sua subjetividade.

Sobre a proposta

O assistir juntos, portanto, nos oferece uma alternativa política, mas antes de tudo epistemológica. Através da experiência do filme podemos trocar experiências e caminhos possíveis. Não devemos, porém, considerar que existe paridade

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discursiva ou de experiências entre os diversos sujeitos que coabitam essas exibições, mas a potência delas se encontra justamente nas diferenças. Na possibilidade de afetação e escuta do cinema, a alteridade se evidencia: seu discurso se potencializa através da representação de sua subjetividade política presente nos filmes.



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Do silêncio à cura* Dalton Paula

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o universo de cores e dos mitos de Os Cavaleiros do Zodíaco surgiu meu desejo, meu encanto pela pintura. Aos quatorze anos, eu copiava esses desenhos de heróis usando papel-carbono e os coloria com lápis de cor. Hoje percebo que a qualidade estética desse desenho animado (uma mistura das mitologias grega e nórdica) foi minha porta de entrada para as artes. Pouco tempo depois ingressei na Escola de Artes Visuais em Goiânia e dei início aos meus estudos de pintura. Nas aulas, aos poucos foram surgindo os traços do que atualmente fundamenta o meu trabalho artístico: o corpo. O corpo negro, corpo silenciado pelo medo, pela insegurança, pela individualidade e pela efemeridade. As referências nas quais busco esse corpo – aliás, esses corpos negros – são os subúrbios, as congadas e os terreiros e ritos das religiões de matriz africana. São Benedito é Preto, Papai, Eu também sou Preto, Mamãe, Essa festa é de Preto, Papai, Oh! Virgem do Rosário!

Esse trecho de uma música cantada no terno de Congo 13 de Maio da Vila Mutirão, em Goiânia, confirma minha escolha por tais espacialidades negras, nas quais os mitos são revividos, ressignificados; onde pessoas comuns se tornam reis e rainhas de Congo e renovam sua fé na religiosidade afro-brasileira que agrega santos católicos e divindades africanas, que contempla o sagrado em música e dança, em corpo e movimento. Nas reflexões que proponho com meu trabalho, o corpo é o elemento central e é a partir desse corpo individual que busco atingir o coletivo. Uso o silêncio para comunicar, para despertar o que me incomoda, para repensar as imagens que aprisionam e abrir margens para reapresentar esses corpos negros em outras histórias, em outras estruturas, capazes de reconhecer o protagonismo de sujeitos que historicamente são silenciados. Essas narrativas ainda precisam ser ditas, escritas, contadas, representadas. Esse desafio me instiga a trabalhar e assumir (ou seria continuar?) essa missão iniciada em tempos remotos que não alcanço na memória, empreendida por aqueles e aquelas que vieram antes e abriram caminho... *Originalmente publicado em: <https://daltonpaula.com>.


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índice de diretores index by director Aiano Bemfica 40

Hans Herold 34

Ricardo de Moura 34

Alberto Alvares 48

Isabel Casimira Gasparino 33

Rogério Sganzerla 24

Alexandre Koberidze 72

Isaka Huni Kuin 39

Rubens Passaro 49

Aléxia Melo 33

Jean-Marie Straub 74

Safira Moreira 49

Amaranta Cesar 44

João Salaviza 77

Samuel Marotta 77

Ana Galizia 44

Jom Tob Azulay 24

Siã Huni Kuin 39

Ana Pi 45

José Cury 41

Silvana Moura 34

André Félix 78

José Sette 25

Tiago Mata Machado 79

André Novais Oliveira 79

Juana Elbein Santos 26

Tila Chitunda 45

Bárbara Wagner 48

Julien Mérienne 42

Tuna Espinheira 25

Ben Rivers 73

Júlio David Rodrigues 41

Ulisses Arthur 41

Ben Russell 73

Jumana Manna 74

Urânia Munzanzu 32

Benjamin de Burca 48

Júnia Torres 33

Victoria Alvares 40

Bernard Machado 47

Kazuhiro Soda 72

Vinicius Sassine 42

Bruno Vasconcelos 33

Larissa Figueiredo 32

Wladymir Lima 42

Caioz 43

Laura Huertas Millán 69

Zacharias Kunuk 73

Camila Bastos 40

Luís Henrique Leal 43

Zezinho Yube 39

Camila José Donoso 71

Luiz Saia 23

Cao Guimarães 50

Lula Carvalho 39

Carlos Brajsblat 27

Maoro Rocha Pitta 31

Cecilia da Fonte 46

María Cañas 70

Clement Cogitore 69

Maria Chatzi 42

Corneliu Porumboiu 70

Mariana Paschoal 42

Cristiano Araújo 40

Marina Pontes 47

Cristina Amaral 13, 29

Marina Sandim 47

Dieudo Hamadi 71

Maureen Bisilliat 23

Eduardo Coutinho 30

Natasha Neri 39

Emilio Le Roux 34

Nelson Pereira dos Santos 28

Ewerton Belico 77

Pedro Aspahan 78

Fabiana Assis 46

Pedro Maia de Brito 40

Florence Defawes 47

Quentin Delaroche 40

Gabriel Martins 31

Rafael Urban 32

Gilsonei Rodrigues

Ralph Antunes 47

(Mestre Ney) 30

Raquel Gerber 13, 26, 28, 29

Glauber Rocha 27

Renato Barbieri 29

Gregorio Gananian 43

Renée Nader Messora 77


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índice de filmes index by film A Última das Minas 32

Inaudito 43

Universo Preto Paralelo 49

Abá 13, 29

Inconfissões 44

Walrus Hunting 73

Alápini: a Herança Ancestral

Jubiabá 28

Wild Relatives 74

de Mestre Didi Asipá 34

Kinshcasa Makambo 71

Yaô - Iniciação de Filho

Atlântico Negro - na Rota

Let The Summer Never

de Santo 23

dos Orixás 29

Come Again 72

Ylê Xoroquê 26

Auto de Resistência 39

Maré 44

Bahia de Todos os Exus 25

Merê 32

Baixo Centro 77

Minatomachi 72

Barravento 27

Noirblue - Deslocamentos

Bimi, Shu Ikaya 39

de uma Dança 45

Bloqueio 40

Nome de Batismo - Alice 45

Braguino 69

Nunes Pereira - A Casa das

Casa Roshell 71

Minas 25

Chuva é Cantoria na Aldeia

Orí 13, 28

dos Mortos 77

Orixá Ninú Ilê 26

Conte Isso Àqueles que Dizem

Orixás - Uma Tradição Viva 31

que Fomos Derrotados 40

Os Sonâmbulos 79

CorpoStyleDanceMachine 41

Parque Oeste 46

Da Vida das Abelhas 78

Parquelândia 46

Deekeni - os Olhos de Wiyu 41

Praça do Peixe 47

Diante dos Meus Olhos 78

Rapsódia Para um

Dos Tambores do Tombenci

Homem Negro 31

aos Tambores do Dilazenze 30

Ritos Populares, Umbanda

Egungun 27

no Brasil 24

El Laberinto 69

Sair do Armário 47

Encontro com Iemanjá Para

Santo Forte 30

Além dos Olhos 34

Tambor de Mina, Tambor de

Escape 42

Crioulo e Carimbó 23

Espera 50

Tekoa Ha’e Tetã 48

Expo Lio’92 70

Tem Quilombo na Cidade -

Exu Mangueira 24

Manzo Ngunzo Kaiango 33

Fotbal Infinit 70

Temporada 79

Furna dos Negros 42

Terremoto Santo 48

Galinhas no Porto 43

The Rare Event 73

Gens Du Lac 74

Travessia 49


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organização | produção filmes de quintal

projeto gráfico & diagramação

Junia Torres Carla Italiano Layla Braz Luisa Lanna Andreza Vieira

Ana C. Bahia

mostra/seminário ebó ejé: cinema brasileiro e afro-religiões curadoria mostra Ewerton Belico organização seminário Junia Torres Roberto Romero Cida Reis mostra contemporânea brasileira

arte A cura: Dalton Paula fotografia Paulo Rezende Daniela Paoliello gestão e assessoria jurídica Diversidade Consultoria Piancó & Gebrim Assessoria Jurídica Diana Gebrim Costa produção executiva assessoria Pedro Leal

curadoria/seleção Daniel Ribeiro Duarte Layla Braz Renata Otto Tatiana Carvalho Costa

site

produção Layla Braz

tradução

mostra contemporânea internacional curadoria/seleção Carla Italiano Luisa Lanna Luís Fernando Moura produção Luisa Lanna catálogo produção editorial e organização Glaura Cardoso Vale Junia Torres Carla Italiano revisão Glaura Cardoso Vale Roberto Romero Valéria de Paula Martins

Gustavo Teodoro Mariana Nunes Caio Vaccaro

Ana Carolina Antunes Fernanda Regaldo Frederico Sabino Henrique Cosenza Julia Fagioli Luisa Lanna Luís Felipe Flores Oswaldo Teixeira Pedro Veras Roberto Romero Victor Guimarães logística Andreza Vieira Carla Italiano Jéssica Dionísio legendagem Gabriela Albuquerque Isadora Barcelos cabine de projeção Julio Cruz Marcela Santos


créditos forumdoc.bh.2018

programa de extensão forumdoc.ufmg Ruben Caixeta de Queiroz Cláudia Mesquita Paulo Maia bolsistas Ana Lívia Rodrigues Pinto Luís Oliveira Marcos Afonso Alves Rocha colaboração João Ivo Lea Pinho Larissa Muniz Pedro Antuña VII colóquio cinema, estética e política André Brasil César Guimarães Cláudia Mesquita Eduardo de Jesus Pedro Aspahan Roberta Veiga equipe de cobertura • colaboração Projeto Pretança - UNA Produtora Dígito Zero / Curso de Cinema e Audiovisual - UNA

agradecimentos Dalton Paula, Antônio Bispo, CTAv, CCSP, Cinemateca Brasileira, Cinemateca do MAM, Cultura Viva, Heitor Augusto, Janela Internacional de Cinema de Recife, Olhar de Cinema de Curitiba, Indie Lisboa, Tiago Cardoso Bernardo, Kana Filmes, Marcos Cardoso, Silvana Moura, Amaranta Cesar, Cida Reis, Wellington Cançado, Marcelo Vilarino, Rafael Barros, João Pontes, Juca Ferreira, Gabriel Portella, Gabriela Barbosa, Leonardo Lessa, Milene Migliano, Julia Bernstein, Helena Ignez, Pedro Rena, Regina Filmes, Adam George Fischler, Aaron Cutler, Rui Mendes, Maria Campaña, Rogério Brittes, Theo Duarte, Beth Formaggini, Olga Futemma, Henrique Borela, Juliana Antunes, Daniel Queiroz, Alessandra Brito, Marcos Martins, Clara Flaksman, Helena Assunção, Stela Maris da Costa, Fala Tambor, Bernardo RB, Fred Spada, Matheus Pereira, Fernanda Torres Campos, Joana Oliveira, Carla Maia, Milene Migliano, Bernard Machado, Paulo Maia, Arquivo Nacional, Leandro Hunstock, festa Quem Tem Swing, Jefferson Gomes Ciriaco, as autoras e autores que contribuíram generosamente com a escrita de ensaios para este catálogo e aos realizadores e realizadoras que inscreveram seus filmes para as Mostras Contemporâneas.

cine humberto mauro gerente Bruno Hilário coordenador Vitor Miranda produção Matheus Pereira Julio Cruz equipe técnica Frames Mercídio Allvinho Scarpelli suporte administrativo Roseli Miranda estagiária Josi Santos

ISBN: 978-85-63837-16-5 (impresso) ISBN: 978-85-63837-15-8 (eletrônico) Este catálogo foi composto com as fontes Aperçu e Tiempos Headline sobre Papel Pólen Soft 80g impressão: Imprensa Universitária da UFMG associação filmes de quintal Avenida Brasil | 75/sala 06 | Santa Efigênia CEP 30140-000 | Belo Horizonte-MG | Brasil filmes@filmesdequintal.org.br forumdoc.org.br

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PATROCÍNIO

APOIO

ppgcom ppggan

APOIO CULTURAL

- programa de pós-graduação em comunicação social/ufmg - programa de pós-graduação em antropologia social e arqueologia/ufmg

APOIO LOGÎSTICO

CO-REALIZAÇÃO

REALIZAÇÃO

INCENTIVO

Projeto executado por meio da Lei Estadual de Incentivo à Cultura de Minas Gerais. CA 0258/001/2017




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