Ministério do Turismo, Prefeitura de Belo Horizonte e Filmes de Quintal Apresentam
forumdoc. bh. 25 anos
Festival do Filme Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte fórum de antropologia e cinema
18 nov a 02 dez 2021
Este festival é dedicado a Jaider Esbell, Karapiru Awa-Guajá e Rieli Franciscato.
Sumário | Table of contents 11
Apresentação Presentation
forumdoc.bh.2021 15
Retrospectiva Karrabing Film Collective Karrabing Film Collective Retrospective PAULO MAIA e ROBERTO ROMERO
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Mostra Desaparecimento e Reaparecimento dos Povos e das Imagens – 35 anos de VNA e 25 anos de forumdoc.bh Disappearance and Reappearance of People and Images – 35 years of VNA and 25 years of forumdoc.bh CLÁUDIA MESQUITA, JÚNIA TORRES, LUISA LANNA, RENATA OTTO e RUBEN CAIXETA DE QUEIROZ
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Mostra Comunidades de cuidado: fabulações, enfrentamentos e éticas de cura Communities of care: fabulations, confrontations and healing ethics ARTHUR MEDRADO, CARLA ITALIANO, CORA LIMA e MILENE MIGLIANO
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Sessões especiais Special screenings
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Fórum: Seminário, conferências, debates, entrevistas e lançamentos Forum: seminar, conferences, debates, interviews and release
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Ensaios e entrevista Essays and interview
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Karrabing: Um Ensaio em Palavras-chave TESS LEA e ELIZABETH A. POVINELLI
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O presente ancestral de ilusões oceânicas: conectado e diferenciado no liberalismo tóxico tardio ELIZABETH A. POVINELLI
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Pele e osso do cinema Karrabing JULIANA FAUSTO
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Sobreposições e rotas alternativas do espaço-tempo KÊNIA FREITAS
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O cinema como sonhar RENATO SZTUTMAN
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Registro-memória, vídeo-transe, acervo e devolutiva: uma entrevista com Vincent Carelli CLÁUDIA MESQUITA, JÚNIA TORRES, RENATA OTTO e RUBEN CAIXETA DE QUEIROZ
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O cinema e as barragens (anotações sobre a devolução das imagens) ANDRÉ BRASIL
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O sopro de Tiramantu: contato e xamanismo feminino no Igarapé Omerê CLARISSE ALVARENGA
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Vida de guerra, sonho de festa SPENSY PIMENTEL
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KARAPIRU - Awá-Guajá RENATA OTTO
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Algumas notas sobre a Cinemateca Brasileira - o fogo não é o fim PATRÍCIA MACHADO
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Contra o racismo, ocupar espaços CARLOS HENRIQUE DE LIMA
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Há sempre uma árvore que somos nós – considerações sobre saúde, território e doença a partir dos filmes Yãy tu nũnãhã payexop – encontro de pajés e Nhe’ẽ kuery jogueru teri – Nossos espíritos seguem chegando ANA CARVALHO e MARIA SILVANETE LERMEN
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Percursos de cuidado PRISCILA MIRAZ DE FREITAS GRECCO
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Do ritmo do outro aos muitos, um corpo para o cinema FÓRUM NICARÁGUA
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Sobre descanso MICAELA CYRINO
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Escrita que Sai da Tela: TRANSflexões Afetadas para lembrar daquilo que esqueci e para coroar nossas Senhoras das Travestis FREDDA AMORIM e DODI LEAL
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Relato de um filme-ação entre mulheres nas ruas de Belo Horizonte JOANNA LADEIRA e PAULA KIMO
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Aracá é partícula de tempo ABINIEL JOÃO NASCIMENTO
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Arte do forumdoc.bh.2021 – 25 anos! Aceita? e Amarra-ação, de Moisés Patrício GLAURA CARDOSO VALE
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Índices Index
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Créditos Credits
Primeiro esboço do cartaz da edição do forumdoc.bh.1997. Acervo: Paulo Maia.
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forumdoc.bh.25anos! O forumdoc.bh chega a 2021 completando 25 edições consecutivas, marco que sinaliza um legado de experiências. Inspirados pelo Bilan du film ethnographique em Paris, hoje Festival Jean Rouch, Junia Torres, Paulo Maia e Ruben Caixeta se perguntaram se seria possível realizar um festival de cinema etnográfico na cidade de Belo Horizonte.1 Logo, em 1997, acompanhados de Cláudia Mesquita, Renata Otto, Alice Lamounier e outras pessoas que se juntaram a esse grupo, colocaram em prática esse projeto (gestado nos corredores da FAFICH-UFMG). Ao longo dos anos, outros colaboradores foram se somando em torno do desejo de debater e assistir juntos produções até então pouco distribuídas por salas convencionais de cinema. O espaço que acolheu o festival desde o início foi o Cine Humberto Mauro,2 que fica na região central da cidade, e passou a ser um lugar definidor de encontro anual com imagens e povos singulares, com filmes disruptivos e instigantes (de quintal, por assim dizer), bem como com aqueles e aquelas que pensam e realizam o documentário no Brasil e no mundo. Não apenas como janela de exibição, desde a sua concepção, numa interface entre antropologia e cinema que é cada vez mais prolífica no universo das artes atualmente, o festival tem como um dos seus pilares um fórum de debates que traz, a cada edição, nomes3 fundamentais para discutir questões sensíveis a ambos os campos e, sobretudo, ao campo da etnografia, promovendo um encontro entre saberes e epistemologias dos povos tradicionais e acadêmicos. Sem desconsiderar o diálogo com produções históricas ou contemporâneas da ficção brasileira e internacional, o forumdoc.bh também fez circular ao longo desse período filmes em película dos acervos da Cinemateca Brasileira, do MAM Rio e Arquivo Nacional reforçando, aqui, um apelo à necessidade de preservação, conservação e garantia de circulação do patrimônio cultural audiovisual do país. Após este breve histórico, cientes de que existe muito mais a se contar sobre esse acontecimento anual, para esta edição comemorativa, a comissão organizadora apresenta uma programação mais concisa que nos anos anteriores ao ensaiar um formato híbrido, entre exibições e debates on-line e projeções presenciais, dessa vez sem as importantes mostras contemporâneas brasileira e internacional que marcaram sua trajetória (uma mudança específica deste ano). O foco se desloca para três eixos curatoriais temáticos que norteiam todas as demais atividades: a começar com a “Retrospectiva Karrabing Film Collective”, que exibe as principais obras desse 1.Gostaríamos de lembrar a importância da Mostra Internacional do Filme Etnográfico, realizado no Rio de Janeiro, de 1993 a 2013, sob coordenação de Patrícia Monte-Mór. 2. Não desconsiderando os demais espaços, como o Centro Cultural da UFMG, demais salas de cinema da cidade, atividades de extensão no Campus da UFMG ou em centros culturais municipais e comunidades parceiras. 3. Dentre as muitas parcerias históricas do festival, destacamos em particular os saudosos Aloysio Raulino, Andrea Tonacci e Eduardo Coutinho, para dizer apenas alguns nomes.
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coletivo, formado por integrantes indígenas do Território do Norte da Austrália junto à antropóloga estadunidense Elizabeth Povinelli (que conduzirá uma conferência on-line), marcadas por uma impressionante liberdade de experimentação na linguagem e nas abordagens das narrativas e dos tempos – dos sonhos, dos ancestrais. O segundo eixo é a “Mostra Desaparecimento e Reaparecimento dos Povos e das Imagens – 35 anos de Vídeo nas Aldeias e 25 anos de forumdoc.bh”, que retraça a trajetória inspiradora desse projeto que alia indigenismo, política indígena e produção audiovisual compartilhada, em uma programação que abriga ainda a vídeo-instalação “Inéditos inevitáveis numa experiência sensorial: fragmentos do Acervo Vídeo nas Aldeias” junto a outros filmes sobre povos isolados e de recente contato, afirmando seu posicionamento ao lado dos sobreviventes dos incessantes massacres que seguem assolando os povos indígenas no país. Por fim, a mostra “Comunidades de cuidado: fabulações, enfrentamentos e éticas de cura” se lança ao desafio de pensar a ideia de cura no cinema, principalmente brasileiro e realizado nos últimos anos, sob a égide de afirmações antirracistas, feministas e queer, convocando a rearticulação de práticas de cuidado por meio do cinema e, sobretudo, a constituição de comunidades sob bases outras. Assim, três linhas de força transversais se delineiam nessa estrutura geral: as reflexões urgentes sobre constituição de arquivos e resistência de acervos, bem como um diálogo franco do cinema com os espaços e formas das artes visuais. São quase dois anos de isolamento social por conta da pandemia de Covid-19, doença que levou mais de 600 mil vidas no Brasil, e a equipe do forumdoc.bh se solidariza com as famílias que perderam entes queridos e com os povos indígenas, que sofreram mais uma vez com o descaso histórico. Junto à tristeza que se abateu sobre o mundo, lutamos contra a violência sistemática e contínua negligência para com os povos indígenas e as populações negras, que junto a outros grupos necessitam de reparação histórica, assim como lutamos contra as tentativas de apagamento das corpas que escapam à representação normativa. Afirmamos nosso desejo de encontro que será possível virtual e, em parte, presencialmente. Que possamos mais uma vez nos encontrar junto às imagens visuais e sonoras e conversar à maneira daqueles e daquelas que vieram antes, aprender seus cantos, seus processos de cuidado, de refúgio, de preservação de sua memória e que possamos acolher aqueles e aquelas que estão por vir.
Equipe forumdoc.bh.2021
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Karrabing Film Collective Retrospective
Retrospectiva Karrabing Film Collective
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“No princípio, só existiam filmes karrabing” “In the beginning there were only Karrabing movies” forumdoc.bh.2021 PAULO MAIA e ROBERTO ROMERO
Um dos fantasmas da modernidade consiste em atribuir aos povos indígenas e outras populações racializadas o estatuto de pertencimento ao passado a partir de uma concepção linear e evolutiva de uma suposta temporalidade universal, que depende, por sua vez, de uma relação de emancipação do homem branco sobre a natureza, tendo em vista a apropriação de paisagens e territórios objetivando sua exploração e acumulação de capital. Outros povos, humanos e mais que humanos, foram, em favor dessa emancipação, quando não eliminados, despossuídos de suas terras e sobre-vivem, no liberalismo tardio (Povinelli, 2016), sob ocupação, intervenção, extrativismo e vigilância contínuas. O Território do Norte, na Austrália, é uma destas terras fissuradas pelos efeitos devastadores da ocupação colonial, pelos britânicos, desde 1869. Habitantes milenares daquela região, uma miríade de povos indígenas falantes de mais de uma centena de línguas tiveram o seu território progressivamente invadido e suas vidas intimamente reguladas pela burocracia estatal ali implantada. Ali, suas vidas antes permeadas pelo incessante fluxo dos seus corpos por “países” de fronteiras nada rígidas e caminhos tecidos pelas marcas de uma contínua “presença ancestral” foram submetidas a uma cartografia catastrófica, traçada com o firme objetivo de eliminar a sua diferença ou assimilá-la aos ditames do poder colonial. Campos de concentração, trabalhos forçados, deslocamentos compulsórios, encarceramento em massa, adoecimento e morte… tudo isso passou a fazer parte do cotidiano daqueles povos a partir da chegada dos primeiros invasores europeus. Mais de um século após a invasão, o estado australiano reconheceu, pela primeira vez, o direito dos povos aborígenes às suas terras ancestrais, através do Aboriginal Lands Rights (Northern Territory) Act (Ato de Direito às Terras Aborígenes), de 1976. O ato inaugura um novo “tempo de direitos” para os povos da região. Entretanto, na prática, ajudou a reificar aquela multiplicidade de povos e tradições enquanto unidades discretas, pequenos “estados-nações”, congelando fluxos milenares que desde o tempo dos sonhos caracterizaram a ocupação daquelas terras. É mais ou menos na esteira da promulgação do ato que a jovem estadunidense Elizabeth Povinelli, recém-graduada em filosofia, desembarca na região e conhece uma série de
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famílias interconectadas vivendo na comunidade de Belyuen, no Território do Norte. Surge das famílias a demanda para que ela se tornasse antropóloga e retornasse para a região, a fim de ajudá-los com suas demandas territoriais. Em 2007, entretanto, na esteira da promulgação de um novo ato, conhecido como The Intervention (A intervenção), centenas de moradores de Belyuen se revoltaram e abandonaram o assentamento, indo viver na região de Bulgul, na foz do rio Daly, mais próximo dos seus países ancestrais. Como uma resposta aos acontecimentos daquele ano, as famílias, junto de Povinelli, decidem criar o Karrabing Indigenous Corporation, de cujo o Karrabing Film Collective, apresentado nesta mostra, é um dos braços principais. Na língua Emmiyengal, a palavra Karrabing se refere ao período da maré baixa, quando as famílias da região se encontram para realizar uma série de atividades favorecidas pela estação seca. Como definiu um dos seus fundadores, Rex Edmonds: “Karrabing significa maré baixa. E quando chega, vem junto.”(LEA; POVINELLI, 2018) Não se trata, portanto, do nome de uma etnia, de um clã, de um “grupo de descendência”, muito menos de uma nação. Nas palavras de Povinelli: “Karrabing” foi proposto tanto por seu conteúdo semântico quanto por sua pragmática conceitual. [...] Karrabing se tornaria a estrutura por meio da qual um conjunto de práticas cinematográficas voltadas para a terra incorporaria uma resistência contínua aos esforços do estado para dividir e colocar os indígenas e suas terras uns contra os outros. Em outras palavras, fazer filmes não representaria apenas as opiniões dos membros de Karrabing sobre a condição irredutível de conectividade entre os diferentes países. Também é uma prática deste contra-discurso intergeracional. (POVINELLI, 2020)
A retrospectiva É com imenso prazer que, nos 25 anos do forumdoc.bh, apresentamos a primeira retrospectiva, no Brasil, dos filmes do Karrabing Film Collective produzidos entre os anos de 2014 e 2020. A mostra está organizada em três momentos, o primeiro focado na chamada Trilogia da intervenção. Trata-se de filmes feitos na esteira da vergonhosa Northern Territory National Emergency Response (Resposta de Emergência Nacional do Território do Norte), em 2007, e em boa medida contra ela. A lei do governo australiano inaugurou uma nova fase de intervenção e controle das vidas indígenas em todo o Norte da Austrália. As medidas incluíam a proibição de álcool e pornografia nas comunidades indígenas, o aumento do policiamento na região, a intervenção do exército em assuntos indígenas, além de políticas habitacionais que estabeleceram aluguéis baseados no mercado para habitações públicas. Todos estes temas atravessam os filmes da trilogia inaugural karrabing. Em When the Dogs Talked (Quando os cães falavam, 2014), o dilema entre manter as casas no conjunto habitacional do governo e recuperar o seu território sagrado é fruto de debate entre as gerações. O filme inaugura o estilo de “realismo improvisado” (improvised realism) que caracteriza toda a produção do coletivo. Inspirada no “teatro do oprimido”, de Augusto Boal, a técnica permite a permanente atualização
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da memória indígena a partir dos constantes deslocamentos pelo território ancestral que, como sublinha Kênia Freitas (2021), permite também o “acesso a uma tecnologia karrabing do tempo - o tempo em sua amplitude de versões e possibilidades simultâneas”. No segundo filme da trilogia, Windjarrameru, The Stealing C•nt$ (Windjarrameru, Os Ladrões Filhos da P*t@, 2015), o consumo de bebida alcoólica por um grupo de jovens é o mote inicial para uma série de eventos que, mais uma vez, se desdobram e se sobrepõem, reorientando as coordenadas do tempo-espaço. Por fim, em Wutharr, Saltwater Dreams (Wutharr, Sonhos de Água Salgada, 2016), já exibido na mostra “Mortos e a Câmera”, no forumdoc.bh.2019, o tempo novamente se fragmenta conforme a espectadora acompanha três versões co-possíveis de um mesmo evento: um barco quebrado durante uma visita à terra dos seus ancestrais. Note-se aqui uma importante revolução na filmografia karrabing: se nos dois primeiros filmes a câmera ainda se apoiava em tripés e a decupagem seguia um estilo mais convencional, aqui todo o registro passa a ser feito com uso de IPhones, o que só aprofunda uma certa estética da mobilidade e da sobreposição perseguida em todos os filmes que se sucedem. Num segundo momento, a mostra apresenta dois filmes que endereçam de forma mais direta os efeitos perversos do colonialismo de ocupação nas chamadas colônias de povoamento e retomam as próprias origens do Karrabing Film Collective, profundamente assentadas nas reivindicações territoriais daqueles povos. Em The Riot (A rebelião, 2017), Povinelli entrevista diversos membros da família karrabing, remontando às diferentes razões a respeito dos eventos de 2007, quando aquelas famílias abandonam a comunidade de Belyuen, após a explosão de conflitos internos, e retornam para a região mais próxima dos países dos seus ancestrais, na foz do rio Daly. O filme inicia com Povinelli indagando diretamente aos seus interlocutores a seguinte questão: “O que vocês acham que causou a rebelião (the riot)?” O que se segue é a alternância de depoimentos de pessoas que, apesar de estarem presentes no mesmo acontecimento, apresentam diferentes versões das “razões” que estariam na raiz dos conflitos parcialmente articuladas entre si. Organizadas já na montagem a partir de três grandes eixos temáticos: ciúme entre vizinhos e famílias confinados e amontoados em habitações públicas (jealousy), desespero (despair) e frustração diante das condições impostas por estes cercamentos e, finalmente, o estado de abandono (the state of disrepair) gerado, dentre outros, pela Lei de Direito às Terras do Território Norte (1976) apoiada em modelos antropológicos colonizadores que dividiu os territórios aborígenes em territórios e grupos clânicos radicalmente separados, bem como pela Intervenção em 2007, quando a intensidade e vigilância da polícia nos territórios e casas aborígenes foi redobrada pelo aparato estatal. Como afirma uma das fundadoras do coletivo, Linda Yarrowin, em franca oposição à perspectiva essencialista dos modelos antropológicos instrumentalizados por governos e estados, “Todos têm os seus próprios países e todos eles estão conectados.” Nas palavras de Rex Edmonds: “Os brancos querem nos enfraquecer, dizendo que dois ou três são os donos tradicionais (traditional owners), então, os outros indígenas da região vão discutir com os donos tradicionais e os brancos falam: ‘vamos deixá-los lutarem entre si’.” The Riot (2017) é um filme fenomenal por apresentar
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de modo radical e sofisticado as condições de existência do próprio coletivo, criado em 2009 pelas famílias deslocadas pela rebelião, sempre ameaçadas pela cultura racista branca aliada às formas de controle, exploração e extração capitalista no liberalismo tardio. Vale transcrever aqui o texto de uma das cartelas textuais presentes no filme: “Karrabing também é um conceito e uma esperança de uma forma de relacionamento entre povos e suas terras: separada-separada, mas conectada. Já em Night Time Go (Tempo da noite vamos!, 2017), o coletivo revisita o arquivo colonial australiano em busca de registros dos deslocamentos forçados e da fuga dos campos de guerra para aborígenes criados durante a Segunda Guerra Mundial. No filme somos informados que nenhuma gravação, com exceção de poucas fotos, foi encontrada nos arquivos coloniais, a fim de esclarecer como tantos indígenas foram forçados a mudarem para campos de guerra e, diante da inexistência dessas imagens, restam os relatos de testemunhas oculares que passamos a escutar em off no decorrer do filme: “Eu era pequena quando isto aconteceu; o exército estava aqui. A guerra chegou aqui. E o exército retirou todos os povos daqui e nos levou para longe. Eu fui para Katherine [campo de guerra] em um trem.” Destaca-se a escolha do coletivo por re-encenar estes acontecimentos criando seu próprio arquivo do passado no presente, mirando o futuro. Assim, tanto o deslocamento forçado em trens, orgulho maior da civilização branca, quanto a fuga de Katherine quando atravessam mais de 300 km a pé, de volta à região costeira, são encenados e sobrepostos contra os materiais de arquivo, como aponta Kenia Freitas (2021), “Feitos da perspectiva do estado colonial australiano menos como documentos e mais como ficções perversas elaboradas pelo projeto imperialista eurocêntrico: de uma Austrália branca, civilizada, pacífica e benevolente com os seus habitantes originais desprotegidos.” Por fim, a mostra reúne três das produções mais recentes do coletivo, que retomam e aprofundam temas e abordagens forjadas ao longo das primeiras. Em The Jealous One (O ciumento, 2017), um homem indígena transita pelo excesso de burocracias para chegar até um funeral em seu país natal, enquanto uma briga eclode quando outro homem é consumido por ciúmes da esposa. As duas narrativas se cruzam num encontro final que reintroduz o tema mítico, por assim dizer, do “ciumento” aos dilemas atuais, vivido pelo grupo sob impacto da vigilância colonial. Vale recordar que a figura do “ciúmes” e do “ciumento” também é destacada entre as “razões” da rebelião no filme anterior. Em ambos os filmes, portanto, é uma força motriz mobilizada por diferentes agentes, humanos e além de humanos, que acabam por desvelar uma rede de relações contraditórias que são atualizadas pela própria trama do filme. Em certa altura de The Riot (2017), Povinelli questiona seus interlocutores como os diversos povos e Dreamings estão conectados uns aos outros e Rex Edmonds, a fim de se fazer compreendido, mobiliza justamente a história contada em The Jealous One (2017), que, segundo ele, através dos ancestrais Therrawin, Águia, Caranguejo e Lagarto da Língua Azul, entre outros, mostra “como nosso povo se junta e se relaciona” ao encontrarmos uns aos outros nos lugares onde estes animais ancestrais vivem e agem. Contudo, sem querer dar spoiler, a espectadora deve ficar atenta ao depoimento de Natasha Lewis (em off) no final de O ciumento, em resposta a outra questão pontual e certeira proposta por Povinelli: “Natasha, o que estamos
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fazendo aqui?” Em sua voz que se revela ser a de uma menina jovem do coletivo, Natasha inicia sua resposta com a seguinte afirmação: “Viemos aqui para queimar um carro velho para o nosso novo filme.” O que se segue é todo o desvelamento de um subtexto presente no filme, certamente, de difícil acesso para um espectador não familiarizado com essa paisagem repleta de Dreamings e regimes temporais e atemporais sobrepostos. Imperdível! Já Mermaids, or Aiden in the Wonderland (Sereias, ou Aiden no País das Maravilhas, 2018), se passa num presente-futuro distópico, onde uma grave contaminação provocada pelas atividades extrativistas praticadas em todo o território passa a envenenar somente os perragut (brancos). Ao modo dos filmes anteriores, este também se divide em quatro momentos: Dentro (Inside), Fora (Outside), Aiden no País das Maravilhas (Aiden in Wonderland) e O lugar da lama (The mud place). Logo nos primeiros minutos do filme, uma cartela anuncia: “Estrelando: as Sereias. Aqueles que as veem e aqueles que não”. A sequência inicial se passa dentro de um laboratório que conduz experimentos científicos em cobaias aborígenes. Em diálogo com a mãe, que convalesce num leito no corredor da instituição, o jovem Aiden, sequestrado ainda bebê para servir de cobaia aos experimentos, afirma: “Eles dizem que não está funcionando e que vão me levar de volta.” Nos corredores da instituição, uma mulher transporta uma pilha de papéis até o escritório de outra “mulher que se veste como homem” e que, num telefonema, se revela intrigada: “Deve ter alguma razão para a lama estar intoxicando a gente e não eles.” A “razão” procurada pela chefe dos experimentos denuncia, claro, sua real preocupação. Afinal, o problema é porque a intoxicação atinge agora só “a gente” e não “eles” – como “deveria ser”... Esta inversão, com efeito, é um dos principais motes do filme. Do lado de fora, o jovem Aiden reencontra seus parentes indígenas, que o acolhem e o conduzem por uma visita ao seu país ancestral, habitado por Dreamings como os das sereias, da vespa, do pelicano e do pássaro cockatoo. Ali, o jovem se vê confrontado com dois passados e futuros co-possíveis que cabe a ele alterar. Como assinalou Juliana Fausto: “Alianças com o presente ancestral mudam de modo imprevisto, para os colonizadores, nas histórias, o curso da História. A maré sempre retorna. Dreamings e Karrabing se ativando, iscas sendo lançadas, corpos-arquivo em processo. Longe de derrotado, o presente ancestral se ergue. Ao final de Mermaids, ouve-se: ‘Tentamos advertir os brancos. Eles não compreendem as consequências de se violar a lei negra.’” (FAUSTO, 2021). Pouco adiante, enquanto ainda sobem os créditos finais, ouve-se a voz de uma criança que ressoa como um enigma: “No princípio, só existiam filmes karrabing… as sereias… e a lama!” Se, como vimos, os primeiros três filmes karrabing são reconhecidos como uma Trilogia da intervenção, é bem possível afirmarmos que a “condição interventora” imposta aos territórios indígenas é um limite incessantemente desfeito pela filmografia karrabing. A Day in the Life (Um dia na vida, 2020), filme que encerra nossa retrospectiva, leva adiante, mobilizando estratégias fílmicas inéditas, outra reflexão sobre a dramática intervenção governamental sobre corpos e habitações. Dividido por cinco vinhetas que ironicamente comentam um dos modos de divisão e controle do tempo imposto pela perversa “sociedade envolvente” ao cotidiano
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indígena: Café da manhã (Breakfast), Lanche da manhã (Play Break), Almoço (Lunch Run), Lanche da tarde (Cocktail Hour), Jantar (Takeout Dinner) funcionam como blocos espaço-temporais atravessados por uma trilha sonora da qual se destacam os hip hop dreamings escritos e cantados pela juventude karrabing, que dialogam de forma direta ou transversal com o “realismo improvisado”, agora duplamente performado seja diante das câmeras ou para a banda sonora. “Siga para o mato. Mas para onde ele vai? / Tem algo engraçado aqui, alguém fazendo dinheiro aqui / Tem algo engraçado aqui, as pessoas realmente não dão a mínima” são alguns dos refrões repetidos alternadamente ao longo do filme, que questionam, tal como as imagens, as condições precárias de vida em casas superlotadas, nas quais mulheres são constantemente ameaçadas de perderem seus filhos para as agências controladoras estatais, de modo que estão o tempo todo planejando uma escapada, a fim de esconder os próprios filhos destes agentes. A escritora maori Matariki Williams, em excelente ensaio para a revista Art in America (2020), esclarece: “O medo da mãe é herdado, evidente em um refrão repetido ao longo do filme: ‘Vamos fazer o que nossos velhos fizeram, vamos esconder nossos filhos.’ Essa é uma das muitas referências que os Karrabing fazem às Gerações Roubadas (Stolen Generations), as milhares de crianças aborígenes e das ilhas do Estreito de Torres que foram removidas à força de suas famílias entre aproximadamente 1905 e 1970.” Vale ainda chamar atenção para a rápida performance de Povinelli neste filme, na posição de um garimpeiro (miner) expulsando indígenas de seus próprios territórios. A posição de “estrangeira” parece se manter em suas participações como atriz neste e em outros filmes, por exemplo Wutharr, Saltwater Dreams, juntamente com o respeitoso tratamento que recebe de suas amigas do coletivo, que, diante da câmera, não hesitam em chamá-la de irmã Beth. Povinelli também assina a edição, direção e fotografia, por vezes compartilhada, da maioria dos filmes do coletivo. Como dito anteriormente, ainda que a “condição interventora” imposta aos territórios indígenas seja um limite incessantemente desfeito pela filmografia karrabing, gostaríamos de destacar o que Matariki Williams (2020) identifica como o aspecto mais atraente do trabalho do coletivo: “A maneira como contam suas histórias, sem vergonha de suas próprias perspectivas. Eles têm o que eu chamaria de mana motuhake em sua abordagem, mana motuhake sendo a autodeterminação de seu futuro.” (grifo nosso)
A marca atemporal A saga karrabing e a luta incessante por suas vidas e terras junto dos ancestrais, sem dúvida, possui profundas conexões e ressonâncias com as experiências de cinema realizadas por indígenas no Brasil há mais de três décadas. Se há algum tempo já acompanhamos com grande entusiasmo os filmes do coletivo, o recente encontro entre a antropóloga Elizabeth A. Povinelli e o casal de cineastas Sueli e Isael Maxakali, durante a programação do Sheffield DocFest 2021, certamente abriu caminhos para a realização desta retrospectiva no ano em que celebramos
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vinte e cinco edições consecutivas deste festival. Em junho deste ano, quando o encontro aconteceu, o casal e sua comunidade de mais de cem famílias viviam numa terra provisória – a segunda para onde se mudaram em menos de um ano –, após a saída do grupo da reserva onde viveram a última década, uma área sem rio, muito montanhosa, sem espaço para que os grupos pudessem se espalhar e garantir a boa convivência. Na conversa, Povinelli aplaudia o casal que, no dia anterior, havia recebido o prêmio de melhor filme internacional por Nũhũ yãgmũ yõg hãm: essa terra é nossa! Ela contou que havia compartilhado o link do filme com os seus amigos karrabing e que todos vibraram ao assistir. Por fim, comentou: “Igualzinho! Os fez lembrar deles há não muito tempo atrás e hoje também de uma forma ‘mais legal’, você sabe...” Poucos meses depois, na madrugada do dia 28 de setembro de 2021 – Night Time Go! –, mais de cem famílias se mudaram novamente e retomaram uma terra da União, no município de Teófilo Otoni, na região de Itamunheque. Hoje, enquanto preparamos esta apresentação, os Tikmũ’ũn se preparam novamente para reconstruir suas vidas, suas casas e seu futuro num lugar que nomearam de Aldeia-Escola-Floresta, um espaço de fortalecimento dos cantos, histórias e rituais yãmĩyxop, de formação de jovens pajés, artistas e cineastas, de troca de saberes, reflorestamento e recuperação da Mata Atlântica. Ainda naquela conversa virtual, Isael Maxakali afirmava: “Nós precisamos da terra! Tem que devolver o nosso território pra nós! Porque todo o território está enfraquecendo, está doente, porque os brancos desmataram a mata, destruíram o rio. A terra está gritando, mas os brancos não ouvem. Nós precisamos fazer rituais em cima da terra! Nós queremos terra para nós sobrevivermos com as nossas famílias. Porque sem terra, não tem indígena.” Na sequência, Povinelli acrescentou uma bela reflexão sobre por que os Karrabing fazem filmes. Em primeiro lugar, como ela já disse em outras ocasiões, porque se divertem fazendo. Mas, em seguida, ela emendou: “Nós fazemos filmes para os ancestrais saberem que ainda nos importamos. Nós fazemos filmes para a terra!” Enquanto em 2007 os Karrabing e outros povos aborígenes do Território do Norte da Austrália sofriam com o “Ato de Intervenção”, no Brasil, começava a tramitar o Projeto de Lei 490 reforçando uma ofensiva contra os direitos constitucionais indígenas, a partir da famigerada tese do Marco temporal, como sabemos, outra “ficção perversa” da branquitude jurídica brasileira, em sua vertente ruralista. Segundo a tal “tese”, só deverão ser reconhecidas como terras indígenas aquelas que estavam ocupadas pelos indígenas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Na prática, a lei anistia todas as invasões de terras indígenas perpetradas até aquela data, grande parte delas, importante dizer, estimuladas e patrocinadas pelo próprio estado brasileiro, como aconteceu, por exemplo, com os Maxakali. O Marco temporal, portanto, é uma dessas tecnologias coloniais de controle do tempo cujo objetivo, no limite, é apagar a marca atemporal dos ancestrais indígenas sobre todo este território permanentemente invadido e saqueado. A decisão sobre a validade ou não da tese do Marco temporal caberá ao Supremo Tribunal Federal, onde o tema aguarda votação. Mas aqui também
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eles não compreendem as consequências de se violar a outra lei… Como avisam os xapiri yanomami, a partir das palavras do xamã Davi Kopenawa: Se nosso sopro de vida se apagar, a floresta vai ficar vazia e silenciosa. Nossos fantasmas então irão juntar-se a muitos outros que já vivem nas costas do céu. Então o céu, tão doente quanto nós, por causa da fumaça dos brancos vai começar a gemer e se rasgar. Todos os espíritos órfãos dos antigos xamãs vão cortá-lo a machadadas. [...] Então o céu vai ficar escuro para sempre. (KOPENAWA; ALBERT, 2015, pp. 493-4)
Posto isso, não seria a recusa dos Karrabing à “NTER” (Northern Territory National Emergency Response), também conhecida como A intervenção, bem como a recusa ao #PL490 [Não!], táticas correlatas na criação de contrafuturos, como sugere Kênia Freitas (2021), frente à corrosão diária de populações historicamente racializadas e subalternizadas pelo colonialismo contemporâneo, sendo este, portanto, um dos aspectos marcantes da filmografia indígena aqui e acolá? Tal recusa não estaria por sua vez intrinsecamente ligada à capacidade de sonhar(es), um cinema-dreamings? Afinal, como afirma Renato Sztutman (2021), “Um sonhar é a possibilidade de conceber a convivência de tempos diversos, que se entre-afetam. Nos filmes do coletivo Karrabing, o ancestral vive no presente, o futuro altera o passado.” *** A retrospectiva karrabing tem o prazer de apresentar, em primeira mão, as traduções de um texto seminal de Tess Lea e Elizabeth Povinelli, publicado na revista Visual Anthropology Review, em 2018, e de um recente ensaio de Povinelli para a revista e-flux de 2020, além de três ensaios, escritos especialmente para a presente mostra, por Kênia Freitas, por Juliana Fausto e por Renato Sztutman, disponíveis no nosso catálogo. A programação ainda conta com uma mesa redonda a fim de explorar a filmografia karrabing, além da masterclass “Ecologias, herdabilidade e o presente ancestral” com Elizabeth Povinelli, tudo on-line direto de nosso canal forumdoc no Youtube. Em 2008 realizamos no forumdoc.bh a Mostra melanésia, que apresentou um conjunto de filmes realizados na Papua-Nova Guiné por papuásios e estrangeiros. Naquela oportunidade tivemos a chance de convidar e receber, em Belo Horizonte, o cineasta papuásio Martin Maden, que esteve conosco por duas semanas em um encontro memorável com o público local. Com a Mostra melanésia tivemos a pior impressão a respeito dos colonizadores australianos, ainda que a maioria dos filmes da mostra tenham se concentrado no período pós-independência, a partir de 1975. O que mais nos chamou atenção nessa ocasião foi a inventividade do cinema papuásio, em especial a partir do trabalho e da presença de Martin Maden, de quem sentimos saudades. Com a retrospectiva de filmes karrabing, teremos a chance de complexificar nosso entendimento sobre a dinâmica colonial, em curso, no Território do Norte australiano, bem como de nos surpreender com a inventividade estética de seus filmes.
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Quiséramos contar com a presença do coletivo Karrabing nas sessões de cinema no Cine Humberto Mauro, mas diante das circunstâncias esperamos que, no futuro, quem sabe, possamos nos conectar para além das telas de nossos computadores, laptops e smartphones. Agradecemos nominalmente a Trevor Bianamu, Gavin Bianamu, Sheree Bianamu, Ricky Bianamu, Telish Bianamu, Danielle Bigfoot, Kelvin Bigfoot, Rex Edmunds, Linda Yarrowin, Chloe Gordon, Claudette Gordon, David Gordon, Michael “Miles” Gordon, Ryan Gordon, Claude Holtze, Ethan Jorrock, Marcus Jorrock, Melissa Jorrock, Patsy-Anne Jorrock, Peter Jorrock, Daryel Lane, Robyn Lane, Sharon Lane, Lorraine Lane, Tess Lea, Elizabeth Povinelli e outros parceiros do Karrabing Film Collective pela grande oportunidade de tê-los conosco nos 25 anos de forumdoc.bh.
Referências FAUSTO, Juliana. “Pele e osso do cinema Karrabing”. In: Catálogo forumdoc.bh.2021 - 25 anos. Belo Horizonte: Associação Filmes de Quintal, 2021. FREITAS, Kênia. “Sobreposições e rotas alternativas do espaço-rempo”. In: Catálogo forumdoc.bh.2021 - 25 anos. Belo Horizonte: Associação Filmes de Quintal, 2021. KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. LEA, Tess; POVINELLI, Elizabeth A. Karrabing: An Essay in Keywords. Visual Anthropology Review, v. 34, Issue 1, pp. 36–46, 2018. ISSN 1058-7187, online 1548-7458. POVINELLI, Elizabeth A. Geontologies: A Requiem to Late Liberalism. Durham, NC e Londres: Duke University Press, 2016. POVINELLI, Elizabeth A. “The Ancestral Present of Oceanic Illusions: Connected and Differentiated in Late Toxic Liberalism”. In: e-flux Journal, Issue 112, October 2020. Disponível em https://www.e-flux.com/journal/112/352823/the-ancestral-presentof-oceanic-illusions-connected-and-differentiated-in-late-toxic-liberalism/. Acesso em 13 out. 2021. SZTUTMAN, Renato. O cinema como sonhar. In: Catálogo forumdoc.bh.2021 - 25 anos. Belo Horizonte: Associação Filmes de Quintal, 2021. WILLIAMS, Matariki. Survival Stories. Art in America, pp. 50–53. May 2020. Disponível em https://www.artnews.com/art-in-america/features/karrabing-film-collective-dayin-the-life-1202686183/. Acesso em 8 out. 2021.
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“In the beginning, there were only Karrabing movies” forumdoc.bh.2021 PAULO MAIA and ROBERTO ROMERO Translation: Beatriz Filgueiras
One of the ghosts of modernity is attributing to Indigenous peoples and other racialized populations the status of belonging to the past. This is based on a linear and evolutionary concept of an alleged universal temporality, which relies, in turn, on the white man’s emancipation from nature as regards the appropriation of landscapes and territories for exploitation and accumulation of capital. On behalf of this emancipation, other human - and more than human - peoples were, if not eliminated, dispossessed of their lands and now survive, in late liberalism (POVINELLI, 2016), under continuous occupation, intervention, extraction and surveillance. The Northern Territory of Australia is one of these lands torn apart by the devastating effects of the colonial occupation by the British, since 1869. Ancient inhabitants of that region, a myriad of Indigenous peoples who speak more than a hundred languages had their territory progressively invaded and their lives closely regulated by the state bureaucracy that was established there. Their lives, previously pervaded by the constant flow of their bodies across “countries” with rather flexible boundaries and paths interwoven by the footprints of a continuous “ancestral presence”, were subjected to a catastrophic cartography drawn with the clear purpose of eliminating their difference or subduing them under the colonial rule. Concentration camps, forced labor, forced displacement, mass incarceration, disease and death… it all became part of the daily lives of these peoples after the arrival of the first European invaders. More than a century after the invasion, the Australian state recognized, for the first time, the right of Aboriginal peoples to their ancestral lands in the Aboriginal Land Rights (Northern Territory) Act of 1976. The act set forth a new “era of rights” for the peoples of the region. However, in practice, it facilitated the reification of a multiplicity of peoples and traditions as discrete units, small “nation-states”, halting the ancient flows that had characterized the occupation of those lands since the Dreaming times. Shortly after the enactment of the Act, the young American Elizabeth Povinelli, a recent graduate in Philosophy, arrived in the region and met a group of interconnected families living in the community of Belyuen, in the Northern Territory. The families insisted that she became an anthropologist and returned to the region to support them with their territorial claims. In 2007, however, after the
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enactment of a new Act, known as “The Intervention”, hundreds of Belyuen residents rebelled and abandoned the settlement, moving to the Bulgul region, at the mouth of the Daly River, closer to their own ancestral countries. As a response to the events of that year, together with Povinelli, the families decided to create the Karrabing Indigenous Corporation, from which the Karrabing Film Collective, featured in this exhibition, is one of the main offshoots. In Emmiyengal language, the word Karrabing refers to the low tide period, when the families of the region meet to carry out a series of activities favored by the dry season. As one of its founders, Rex Edmonds, defined: “Karrabing means tide out. And when it comes in, coming together.” (LEA, T.; POVINELLI, E., 2018) Therefore, it is not the name of an ethnic group, a clan, a “group of descent”, much less of a nation. In the words of Povinelli: “Karrabing” was proposed as much as for its semantic content as its conceptual pragmatics. [...] Karrabing would become the framework through which a set of land-oriented filmic practices would embody an ongoing resistance to the state’s effort to divide and pit indigenous people and their lands against each other. In other words, making films would not only represent the Karrabing members’ views about the irreducible condition of connectivity among the different countries. It would also practice this counter-discourse intergenerationally (POVINELLI, 2020).
The retrospective It is with great pleasure that, in the 25th edition of forumdoc.bh, we present the first retrospective, in Brazil, of the Karrabing Film Collective movies produced between 2014 and 2020. The exhibition is organized in three moments, the first of them focused on “The Intervention Trilogy”. These movies were made in the wake of the ignominious Northern Territory National Emergency Response, in 2007, largely as a way to counteract it. The Australian government law established a new phase of intervention and control of Indigenous peoples’ lives across the Northern Territory of Australia. Measures included the banning of alcohol and pornography in Indigenous communities, increased policing in the region, military intervention in Indigenous affairs, and housing policies that set market-based rents for public housing. All these themes are present in the movies that make up the inaugural karrabing trilogy. In When the Dogs Talked (2014), the dilemma between keeping the houses in the government’s housing estate and recovering their sacred territory is an object of debate among generations. The movie inaugurates the “improvised realism” that characterizes the collective’s production as a whole. Inspired by Augusto Boal’s “theatre of the oppressed”, the technique allows the continuous renewal of Indigenous memory in the constant movement across the ancestral territory, as Kênia Freitas (2021) points out, which also allows “access to a karrabing technology of time - time in its range of simultaneous versions and possibilities”. In the second movie of the trilogy, Windjarrameru, The Stealing C•nt$ (2015), the consumption of alcohol by a group of young people is the trigger for a series of events that, once again, unfold and overlap,
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reorienting time and space coordinates. Finally, in Wutharr, Saltwater Dreams (2016), included in “The Dead and the Camera” exhibition in forumdoc.bh.2019, time is once again fragmented as the viewers watch three co-possible versions of the same event: a boat breaks during a visit to the land of their ancestors. An important revolution in karrabing filmography can be noted here: if in the first two movies the camera was still on tripods and the shooting script followed a more conventional style, here the entire recording is made using IPhones, which only accentuates certain aesthetics of mobility and overlap pursued in all their subsequent films. In a second moment, the exhibition presents two movies that address more directly the perverse effects of settler colonialism and revisit the origins of the Karrabing Film Collective, deeply rooted in the territorial claims of these peoples. In The Riot (2017), Povinelli interviews several members of the karrabing family, recounting the different reasons for the events of 2007 when, after the outbreak of internal conflicts, those families left Belyuen community and moved back closer to the countries of their ancestors, at the mouth of the Daly River. The movie starts with Povinelli asking her interlocutors, plainspoken, the following question: “What do you think caused the riot?” What follows next is the alternation between testimonies of people who, despite witnessing the same event, present different versions of the “reasons” for the conflicts, that are partially interconnected. These versions were organized, in the film editing process, in three main thematic axes: jealousy among neighbors and families confined and overcrowded in public housing units; despair and frustration in the face of the conditions imposed by these restraints; and, finally, the state of disrepair generated, among other reasons, by the Northern Territory Land Rights Act (1976), grounded on colonizing anthropological models that divided Aboriginal territories into radically separate territories and clan groups, as well as by the Intervention, in 2007, when the state redoubled the intensity and surveillance of law enforcement in Aboriginal territories and homes. In frank opposition to the essentialist perspective of the anthropological models adopted by governments and states, one of the founders of the collective, Linda Yarrowin, affirms: “everybody has their own [country] and everybody is connected”. In the words of Rex Edmonds: “White people want to make us weak by saying that two or that three are the traditional owners, so the other Indigenous peoples in the area will argue with the traditional owners. And the white people say, ‘let them fight each other’”. The Riot (2017) is a phenomenal movie for showing, in a radical and sophisticated way, the living conditions of the collective themselves, founded in 2009 by the families displaced by the riot, who are continuously threatened by white racist culture coupled with forms of control, exploitation and capitalist extractive industries in late liberalism. It is worth quoting here one of the title cards displayed in the film: “Karrabing is also a concept and a hope for a form of relating to each other and their lands: separate-separate and connected”. In Night Time Go (2017), the collective revisits the Australian colonial archive in search of records of forced displacements to and escapes from the war camps for Aboriginals created during World War II. In the movie, we are informed that no records, except for a few photos, were found in the colonial archives that could elucidate how
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so many Indigenous people were forced to move to war camps. Given the inexistence of these images, what remains are the eyewitness accounts that we hear off-camera throughout the film: “I was young when that happened. The army was here. The war came here. And the army took all the people away from here. The army moved us away. I went to Katherine [war camp] on a train.” It is worth noting the collective’s choice to re-enact these events, creating their own archive of the past in the present, looking to the future. Thus, both the forced displacement in trains, a great pride of white civilization, and the escape from Katherine, when they crossed more than 300 km on foot back to the coastal region, are staged and superimposed against the archival footage, as Kênia Freitas (2021) points out, “that embodies the perspective of the Australian colonial state, taken not as official records but as perverse fictions elaborated by the Eurocentric imperialist project: of a white, civilized and peaceful Australia, benevolent to its native unprotected inhabitants.” Finally, the exhibition features three of the collective’s most recent productions, which take up and build on the themes and approaches forged in their first movies. In The Jealous One (2017), an Indigenous man deals with the excess of bureaucracy to get to a funeral in his native country, while a fight breaks out when another man is consumed by jealousy of his wife. The two narratives intersect in an ending that reintroduces the mythical theme of the “jealous one”, so to speak, in the current dilemmas experienced by the group under the impact of colonial surveillance. It is worth reminding that the “jealousy” and the “jealous one” figures are also highlighted among the “reasons” for the riot in the previous movie. Thus, in both films, jealousy is a driving force that is mobilized by different agents, humans and beyond humans, who end up unveiling a network of contradictory relationships that are informed by the movie’s own plot. At a certain point in The Riot, Povinelli asks her interlocutors how the different peoples and Dreamings are interconnected. In order to make himself understood, Rex Edmonds recounts precisely the same story told in The Jealous One. According to him, by means of the Therrawin, Eagle, Crab and Blue Tongue Lizard ancestors, among others, this story illustrates “how our people got together and got related” by meeting each other in the places where these ancestral animals live and act. However, no spoilers intended, the viewers should pay attention to Natasha Lewis’ testimony (off-camera) at the end of The Jealous One, in response to another specific and accurate question asked by Povinelli: “Natasha, what are we doing here?”. With a voice revealing to be that of a young girl from the collective, Natasha starts with the following statement: “We came here to burn an old car for our new movie”. What follows next is the disclosure of an underlying narrative in the movie, certainly a difficult one to grasp for someone who is not familiar with this landscape filled with Dreamings and overlapping timeless temporal regimes. A must-see! In turn, Mermaids, or Aiden in the Wonderland (2018) takes place in a dystopian present-future, when an alarming contamination caused by extractive activities throughout the territory starts to poison only the perragut (white people). Like the previous movies, this one is also divided in four moments: Inside, Outside, Aiden in Wonderland, and The Mud Place. Right at the beginning of the movie, a title card announces: “Starring: the Mermaids. Those who see them and those who don’t”. The
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initial sequence takes place inside a laboratory that conducts scientific experiments on Aboriginal subjects. In a dialogue with his mother, who is convalescing on a hospital bed in the corridor of the institution, young Aiden, kidnapped as a baby to serve as a subject in the experiments, says: “they say it’s not working. They’re going to take me back”. Along the corridors of the institution, a woman carries a pile of papers to the office of another “woman who dressed like a man” and who, in a phone call, sounds intrigued: “There has to be some reason why the land is poisoning us and not them”. The “reason” sought by the head of the experiments uncovers, of course, her real concern. After all, the problem is that the poisoning now only affects “us” and not “them” – as it “should be”… This inversion, in fact, is one of the main ideas of the movie. Outside, young Aiden reunites with his Indigenous relatives who welcome him and take him on a visit to his ancestral country, inhabited by dreamings like the mermaids, the blowfly, the pelican and the cockatoo bird. There, the young man is faced with two co-possible pasts and futures that are up to him to modify. As Juliana Fausto points out: “in these stories, alliances with the ancestral present change in an unexpected way, for the colonizers, the course of History. The tide always rises. Dreamings and Karrabing actuating one another, baits being thrown, archive-bodies in process. Far from defeated, the ancestral present rises. At the end of Mermaids, we hear: “We try to warn white people. They don’t understand the consequences of violating black law.” (FAUSTO, 2021). Shortly after, while end credits are still rolling up, a child’s voice can be heard sounding like an enigma: “In the beginning, there were only karrabing movies… the mermaids… and mud!”. If, as we have seen, the first three karrabing movies are known as “the intervention trilogy”, we might as well say that the “intervening condition” imposed on Indigenous territories is a boundary that karrabing filmography incessantly blurs. Adopting original filming strategies, the movie that closes our retrospective, A Day in the Life (2020), presents another reflection on the tragic state intervention on bodies and households. It is divided in five vignettes that constitute an ironic comment to one of the ways of dividing and controlling time and daily routines imposed on Indigenous lives by the perverse “compelling society”: Breakfast, Play Break, Lunch Run, Cocktail Hour and Takeout Dinner function as spatiotemporal chunks intersected by a soundtrack in which the dreamings hip hop music, written and sung by karrabing youth, stands out and dialogs directly or transversely with “improvised realism”, now twice performed either in front of the cameras or for the soundtrack. “Forward to the bush. But where’s he gonna go? / There’s something funny here, someone making money here / There’s something funny here, no one fucking cares” are some of the chorus lines repeated throughout the film questioning, along with the images, the precarious living conditions in overcrowded households, in which women live under the constant threat of losing their children to law enforcement agencies and plan to escape at any time in order to hide their kids from the agents. In an outstanding essay for Art in America magazine (2020), Maori writer Matariki Williams explains: “The mother’s fear is an inherited one, evident in a refrain repeated throughout the film: ‘We’re gonna do what our old people did, we’re gonna hide our kids.’ This is one of many references Karrabing filmmakers make to the Stolen Generations, the thousands of Aboriginal
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and Torres Strait Islander children who were forcibly removed from their families between roughly 1905 and the 1970s.” It is also worth noting Povinelli’s brief performance in the movie as a Miner, ousting Indigenous people from their own territories. Her role as an “outsider” seems to be maintained in this and other films, such as Wutharr, Saltwater Dreams, along with the respectful treatment she receives from her friends in the collective who, in front of the camera, do not hesitate to call her Sister Beth. Povinelli is also the editor, director and cinematographer, sometimes with other members of the crew, in most of the collective’s films. As already mentioned, even though the “intervening condition” imposed on Indigenous territories is a boundary that karrabing filmography incessantly blurs, we would like to highlight what Matariki Williams (2020) identifies as the most appealing aspect of the collective’s work: “the way they tell their stories, unashamedly from their own perspectives. They have what I would call mana motuhake in their approach, mana motuhake being self-determination of your future” (emphasis added).
The timeless imprint The karrabing saga and their incessant struggle alongside their ancestors for their lives and lands have, undoubtedly, deep connections and resonance with the filmmaking experiences carried out by Indigenous people in Brazil for more than three decades. We have been following the collective’s movies for some time now with great enthusiasm, but the recent meeting between the anthropologist Elizabeth A. Povinelli and the couple of filmmakers Sueli and Isael Maxakali, as part of the Sheffield DocFest 2021 program, definitely contributed to having this retrospective in the year that we celebrate the 25th anniversary of the festival. Last June, when the meeting took place, the couple and their community of more than one hundred families were living on provisional land - the second they moved to in less than a year - after the group left the reserve where they had been living for the past decade, a very mountainous area with no rivers and no room for groups to spread out and ensure harmonious coexistence. During the conversation, Povinelli commended the couple who had just received, the day before, the award for best international movie for Nũhũ yãgmũ yõg hãm: this land is ours!. She said that she had shared the movie’s link with her karrabing friends and that everyone was thrilled to watch it. Finally, she remarked: “Same same! Reminded them of not that long ago and of today, in a ‘nicer’ form, you know...” A few months later, at the dawn of September 28th, 2021 - Night Time Go! -, more than a hundred families moved once again and reclaimed a land belonging to the Brazilian state in the city of Teófilo Otoni, region of Itamunheque. Today, as we write these words, the Tikmu’un are once again getting ready to rebuild their lives, their homes and their future in a place they called Village-School-Forest, a place to value yãmiyxop chants, stories and rituals, to teach young shamans, artists and filmmakers, to exchange knowledge and sponsor the reforestation and recovery of the Atlantic Forest. In that same virtual conversation, Isael Maxakali stated: “We need land! We
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need to have our land back to us! Because the whole territory is weakening, it is sick. White people are destroying the forest, destroying the river. The land is screaming, but white people don’t listen. We need to have our rituals on the land! We want land to survive with our families. Because without land, there are no indigenous people.” Then, Povinelli added a beautiful reflection on why the Karrabing make movies. First, as she has said on other occasions, because they have fun doing it. But then she amended: “We make films in order to get the ancestors to understand that everyone still cares. (...) We make films for the land!” In 2007, while the Karrabing and other Aboriginal peoples of the Northern Territory of Australia suffered with the “Intervention Act”, in Brazil, Bill 490 was introduced in the Congress, boosting an offensive against Indigenous constitutional rights based on the infamous “time frame” argument, as we know, another “perverse fiction” of Brazilian legal whiteness in the defense of agrarian interests. According to this “thesis”, only the lands inhabited by Indigenous peoples on October 5th, 1988, the day Brazilian Constitution was enacted, should be recognized as Indigenous lands. In practice, the law grants amnesty to all the invasions of Indigenous lands perpetrated up to that date, most of them, it is important to say, stimulated and sponsored by the Brazilian state itself, as in the case of the Maxakali. The “time frame” is, thus, a colonial technology to control time with the ultimate purpose of erasing the timeless imprint of Indigenous ancestors across this continuously invaded and plundered territory. The decision on the validity or not of the “time frame” thesis will be under the Federal Supreme Court responsibility, where the issue is still to be voted. But here, too, they do not understand the consequences of violating the other law… As the Yanomami xapiri warn, in the words of shaman Davi Kopenawa: If the breath of life of all of our people dies out, the forest will become empty and silent. Our ghosts will then go to join all those who live on the sky’s back, already in very large numbers. The sky, which is as sick from the white people’s fumes as we are, will start moaning and begin to break apart. All the orphan spirits of the last shamans will chop it up with their axes. [...] Then the sky will remain dark for all time. (KOPENAWA; ALBERT, 2013, pp. 406)
Thus, wouldn’t the Karrabing opposition to the Northern Territory Emergency Response, also known as “The Intervention”, and the opposition to the #PL490 [No!] be interrelated tactics in the creation of counterfutures, as Kênia Freitas (2021) suggests, in the face of the quotidian corrosion of historically racialized and subordinated populations under contemporary colonialism, as the prominent feature of Indigenous filmography, here and there? Would this opposition, in turn, be intrinsically connected to the ability to dream(ing), to a dreamings-cinema? After all, as Renato Sztutman (2021) states, “dreaming is the possibility of conceiving the coexistence of different times, which affect one another. In the Karrabing collective’s movies, the ancestral lives in the present, the future alters the past”. ***
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The Karrabing Retrospective is pleased to present, firsthand, the Portuguese translations of a seminal article by Tess Lea and Elizabeth Povinelli, published in Visual Anthropology Review (2018), and of a recent essay by Povinelli for e-flux magazine (2020); in addition to three original essays, especially written for this exhibition by Kênia Freitas, Juliana Fausto and Renato Sztutman, available in our catalogue. The program also features a roundtable discussion to explore karrabing filmography and the masterclass “Ecologies, inheritability and the ancestral present”, with Elizabeth Povinelli, both of which will be held online at the forumdoc.bh channel on YouTube. In 2008, we held the Melanesia Exhibition at forumdoc.bh, which featured a series of movies made in Papua New Guinea, by Papuans and foreigners. On that occasion, we had the opportunity to invite and welcome, in Belo Horizonte, Papuan filmmaker Martin Maden, who stayed with us for two weeks in a memorable encounter with the local audience. With the Melanesia Exhibition, we had the worst impression of Australian colonizers, even though most of the movies focused on the post-independence period, that is, from 1975 onwards. But what caught our attention the most was the inventiveness of Papuan cinema, in particular, the work and presence of Martin Maden, whom we dearly miss. The Karrabing Film Retrospective is an opportunity to deepen our understanding of the colonial dynamics taking place in the Northern Territory of Australia, as well as to amaze ourselves with the aesthetic creativity of their movies. We wish the Karrabing collective could be present with us in the movie sessions at Cine Humberto Mauro but, given the circumstances, we hope that, in the future, we will be able to connect beyond the screens of our computers, laptops and smartphones. We would like to thank Trevor Bianamu, Gavin Bianamu, Sheree Bianamu, Ricky Bianamu, Telish Bianamu, Danielle Bigfoot, Kelvin Bigfoot, Rex Edmunds, Linda Yarrowin, Chloe Gordon, Claudette Gordon, David Gordon, Michael “Miles” Gordon, Ryan Gordon, Claude Holtze, Ethan Jorrock, Marcus Jorrock, Melissa Jorrock, Patsy-Anne Jorrock, Peter Jorrock, Daryel Lane, Robyn Lane, Sharon Lane, Lorraine Lane, Tess Lea, Elizabeth Povinelli and all the Karrabing Film Collective partners for the great opportunity of having you with us on the 25th anniversary of forumdoc.bh.
References FAUSTO, Juliana. Pele e osso do cinema Karrabing. In: Catálogo forumdoc.bh.2021 - 25 anos. Belo Horizonte: Associação Filmes de Quintal, 2021. FREITAS, Kênia. Sobreposições e Rotas Alternativas do Espaço-Tempo. In: Catálogo forumdoc.bh.2021 - 25 anos. Belo Horizonte: Associação Filmes de Quintal, 2021. LEA, Tess.; POVINELLI, Elizabeth A. Karrabing: An Essay in Keywords. Visual Anthropology Review, Vol. 34, Issue 1, pp. 36–46, ISSN 1058-7187, online 1548-7458, 2018. POVINELLI, Elizabeth A. Geontologies: A Requiem to Late Liberalism. Durham, NC; London: Duke University Press, 2016.
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POVINELLI, Elizabeth A. The Ancestral Present of Oceanic Illusions: Connected and Differentiated in Late Toxic Liberalism. IN. e-flux Journal. Issue 112, October, 2020. Available at: https://www.e-flux.com/journal/112/352823/the-ancestral-present-of-oceanic-illusions-connected-and-differentiated-in-late-toxic-liberalism/ Accessed October 13th, 2021. SZTUTMAN, Renato. O cinema como sonhar. In: Catálogo forumdoc.bh.2021 - 25 anos. Belo Horizonte: Associação Filmes de Quintal, 2021. WILLIAMS, Matariki. Survival Stories. In: Art in America, pp. 50–53. May, 2020. Available at: https://www.artnews.com/art-in-america/features/karrabing-film-collective-day-in-the-life-1202686183/ Accessed October 8th, 2021. KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. The Falling Sky: words of a Yanomami Shaman. Translated by Nicholas Elliot and Alison Dundy. Cambridge, Massachusetts; London: The Belknap Press of Harvard University Press, 2013, pp. 406.
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WHEN THE DOGS TALKED QUANDO OS CÃES FALAVAM Austrália, 2014, digital, cor, 33’ direção director • Elizabeth A. Povinelli fotografia cinematography • Ian Jones, Tim Woodsi montagem editing • David Barker som sound • Leandros Ntounis produção production • Liza Johnson, Tess Lea contato contact • karrabingkarrakul@gmail.com Enquanto um grupo de adultos indígenas discute sobre a escolha entre manter seu conjunto habitacional do governo ou salvar seu território sagrado, seus filhos lutam para decidir como os lugares ancestrais (Dreaming) fazem sentido em suas vidas contemporâneas. Quando os Cães Falavam mistura documentário e ficção para produzir um drama reflexivo, porém bemhumorado sobre os obstáculos diários da pobreza estrutural e racializada e sobre a dissonância de formas narrativas culturais e sociais. As a group of Indigenous adults argue about whether to save their government housing or their sacred landscape, their children struggle to decide how the ancestral Dreaming makes sense in their contemporary lives. When the Dogs Talked mixes documentary and fiction to produce a thoughtful yet humorous drama about the everyday obstacles of structural and racialized poverty and the dissonance of cultural narratives and social forms.
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WINDJARRAMERU, THE STEALING C*NT$ WINDJARRAMERU, OS LADRÕES FILHOS DA P*UT@ Austrália, 2015, digital, cor, 36’ direção director • Elizabeth A. Povinelli fotografia cinematography • Ian Jones montagem editing • David Barker, Elizabeth A. Povinelli som sound • Leandros Ntounis produção production • The Karrabing Indigenous Corporation contato contact • karrabingkarrakul@gmail.com É um grande dia. Quatro jovens indígenas se deparam com dois fardos de cerveja, enquanto outro homem por perto parece não estar fazendo nada além de relaxar, escutando R&B em seu telefone. Então tudo começa a ir de mal a pior. Combinando narrativas indígenas com preocupações modernas sobre degradação ambiental e abuso de substâncias, Windjarrameru conta a história de um grupo de jovens se escondendo em um pântano quimicamente contaminado após serem falsamente acusados de roubar algumas cervejas, ao passo que, ao redor deles, mineiros poluem suas terras. It’s a great day. Four young Indigenous men happen upon two cartons of beer, while another seems to be doing nothing more than kicking back nearby, listening to R&B on his phone. Then everything starts going from bad to worse. Blending Indigenous storytelling with modern worries over environmental degradation and substance abuse, Windjarrameru tells a story about a group of young Indigenous men hiding in a chemically contaminated swamp after being falsely accused of stealing some beer, while all around them miners pollute their land.
RETROSPECTIVA KARRABING FILM COLLECTIVE
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WUTHARR, SALTWATER DREAMS WUTHARR, SONHOS DE ÁGUA SALGADA Austrália, 2016, digital, cor, 28’ direção director • Elizabeth A. Povinelli fotografia cinematography • Natasha Bigfoot Lewis, Sheree Bianamu, Cameron Bianamu, Elizabeth A. Povinelli montagem editing • Elizabeth A. Povinelli som sound • Chloe Gordon produção production • The Karrabing Indigenous Corporation contato contact • karrabingkarrakul@gmail.com Através de uma série de flashbacks cada vez mais surreais, uma família indígena discute o que pode ter causado o problema no motor de seu barco que os deixou encalhados no mato. Enquanto especulam os papéis que os ancestrais, o Estado regulador e a fé cristã exercem sobre o incidente, Wutharr, Sonhos de Água Salgada explora as múltiplas demandas e os incontornáveis vórtices da vida indígena contemporânea. Across a series of flashbacks, an extended Indigenous family argues about what caused their boat’s motor to break down and leave them stranded out in the bush. As they consider the roles played in the incident by the ancestral presence, the regulatory state and the Christian faith, Wutharr, Saltwater Dreams explores the multiple demands and inescapable vortexes of contemporary indigenous life.
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THE RIOT A REBELIÃO Austrália, 2017, digital, cor, 21’ direção director • Karrabing Film Collective fotografia cinematography • Elizabeth A. Povinelli montagem editing • Elizabeth A. Povinelli produção production • Karrabing Indigenous Corporation contato contact • karrabingkarrakul@gmail.com Membros do Karrabing refletem sobre o significado e propósito do Coletivo. Karrabing Film Collective é uma ideia sobre como um grupo de membros familiares, cujas terras se estendem pela região costeira a sudoeste de Darwin, podem manter-se uns aos outros e suas terras fortes. Karrabing members reflect on the meaning and purpose of the Collective. The Karrabing Film Collective is an idea about how a group of family members, whose lands stretch across the coastal region south-west of Darwin, can keep each other and their lands strong.
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NGUPELNGAMARRUNU. NIGHT TIME GO NGUPELNGAMARRUNU. TEMPO DA NOITE VAMOS Austrália, 2017, digital, cor, 32’ direção director • Elizabeth A. Povinelli fotografia cinematography • Elizabeth A. Povinelli, Natasha Bigfoot Lewis montagem editing • Elizabeth A. Povinelli som sound • Leandros Ntounis produção production • The Karrabing Indigenous Corporation contato contact • karrabingkarrakul@gmail.com Em 1943, os ancestrais dos Karrabing escaparam do campo de detenção de guerra de Delissaville. Eles eram mantidos lá devido ao medo que o governo australiano tinha de que se tornassem espiões para os japoneses. Essa história não existe em nenhum lugar dos registros oficiais e pela primeira vez a jornada de volta dos Karrabing à península Cox é contada em uma sobreposição de documentário, ficção, sofrimento e celebração. In 1943, Karrabing ancestors escaped from Delissaville war internment camp, kept there due to the Australian government’s fear they might become spies for the Japanese. This story exists nowhere in official records and for the first time their journey back to Cox peninsula is recounted, superimposing documentary, fiction, hardship and celebration.
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THE JEALOUS ONE O CIUMENTO Austrália, 2017, digital, cor, 29’ direção director • Elizabeth A. Povinelli fotografia cinematography • Elizabeth A. Povinelli, Natasha Bigfoot Lewis montagem editing • Elizabeth A. Povinelli som sound • Chloe Gordon produção production • The Karrabing Indigenous Corporation contato contact • karrabingkarrakul@gmail.com Enquanto um homem indígena transita por um excesso de burocracias para chegar até um funeral em seu país natal, uma briga estoura quando outro homem é consumido por ciúmes da esposa. As duas histórias se cruzam em um encontro final, dramático e explosivo. O Ciumento é baseado em uma história tradicional que conecta as terras tradicionais dos Karrabing, mas que pergunta quem é o ciumento contemporâneo: a terra, o homem, ou o estado colonizador? As an Indigenous man weaves through bureaucratic red tape to get to a mortuary service in his traditional country a fight breaks out as another man is consumed with jealousy over his wife. The two stories meet in a dramatic and explosive final encounter. The Jealous One is based on a traditional story that connects the traditional lands of the Karrabing, but it asks who is the contemporary jealous one, the land, the men, or the settler state?
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MERMAIDS, OR AIDEN IN WONDERLAND SEREIAS, OU AIDEN NO PAÍS DAS MARAVILHAS Austrália, 2018, digital, cor, 26’ direção director • Elizabeth A. Povinelli fotografia cinematography • Katrina Lewis, Cameron Bianamu, Elizabeth A. Povinelli montagem editing • Elizabeth A. Povinelli som sound • Leandros Ntounis produção production • Karrabing Indigenous Corporation contato contact • karrabingkarrakul@gmail.com Em um futuro não tão distante, em um território terrestre e marítimo envenenado pelo capitalismo, europeus não podem mais viver por muito tempo ao ar livre, algo que os povos indígenas parecem ser capazes. Um jovem indígena, Aiden, levado quando era apenas um bebê para se tornar parte de um experimento médico a fim de salvar a raça branca, é devolvido ao mundo de sua família. Enquanto viaja com seu pai e irmão através do território, ele confronta duas possibilidades de futuro e passado. In the not so distant future, Europeans can no longer survive for long periods outdoors in a land and seascape poisoned by capitalism, but Indigenous people seem able to. A young Indigenous man, Aiden, taken away when he was just a baby to be a part of a medical experiment to save the white race, is released into the world of his family. As he travels with his father and brother across the landscape he confronts two possible futures and pasts.
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DAY IN THE LIFE UM DIA NA VIDA Austrália, 2020, digital, cor, 32’ direção director • Elizabeth A. Povinelli fotografia cinematography • Lorraine Lane, Katrina Lewis, Elizabeth A. Povinelli, Kieran Sing, Linda Yarrowin montagem editing • Elizabeth A. Povinelli som sound • Randall Bigfoot, Chloe Gordon, Claudette Gordon, Lorraine Lane, Kieran Sing produção production • Karrabing Film Collective contato contact • karrabingkarrakul@gmail.com Um Dia na Vida explora os obstáculos cotidianos que as famílias indígenas enfrentam ao longo de um dia comum. No decorrer de cinco capítulos – Café da manhã, Recreação, Pausa para o Almoço, Hora do coquetel, e Jantar – e de uma paisagem sonora (audioscape) dirigida por seus membros mais jovens, o filme é um panorama visual e sônico que dramatiza e satiriza as formas de governança do colonizador e do capitalismo extrativista que os membros do Karrabing encontram ao longo de um único dia. Day in the Life explores the ordinary obstacles Indigenous families face as they move through an ordinary day. Across five chapters – Breakfast, Playtime, Lunch Break, Cocktail Hour, and Dinner Time – and an audioscape directed by its younger members, Day in the Life is a visual and sonic landscape that dramatises and satirises the settler forms of governance and extractive capitalism that Karrabing members encounter over the course of a day.
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Disappearance and Reappearance of People and Images (35 years of VNA and 25 years of forumdoc.bh)
Mostra | Showcase Desaparecimento e Reaparecimento dos Povos e das Imagens (35 anos de VNA e 25 anos de forumdoc.bh)
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Desaparecimento e reaparecimento dos povos e das imagens (35 anos de Vídeo nas Aldeias e 25 anos de forumdoc.bh) CLÁUDIA MESQUITA, RENATA OTTO, RUBEN CAIXETA DE QUEIROZ1
1987 (35 anos atrás) – Vamos estabelecer por convenção que esta é a data de criação do projeto Vídeo nas Aldeias (VNA). É quando se divulga o filme A festa da moça, que descreve a cerimônia para celebrar o fim da reclusão de menarca de uma jovem nambiquara. Pouco antes disso, em 1985, o indigenista da Funai Marcelo Santos denunciava um massacre de índios em Rondônia. Ninguém queria ver ou acreditar no genocídio indígena, e Marcelo convida Vincent para registrar os vestígios, meio de lutar contra o esquecimento e de provar o massacre na esfera judicial. Os índios sobreviventes, de um modo geral, eram invisíveis para a sociedade brasileira, interessada em negar sua realidade em benefício da liberação de terras para o agronegócio. Vincent, então, começa a filmar, mais como indigenista, menos como cineasta: o que se buscava era uma aliança com os indígenas por meio do audiovisual – forma, por um lado, de fortalecer seu modo de vida (devolvendo e tornando as imagens acessíveis aos povos filmados); e, por outro, de tornar visível para o lado de cá (o mundo “civilizado”) tanto a força e a vitalidade do mundo indígena quanto a brutalidade da civilização colonial. Somente duas décadas depois, os registros fílmicos a partir do encontro com os sobreviventes daquele massacre, e com outros indígenas isolados naquela região de Rondônia e invisíveis até então (os Akuntsu, os Kanoê e o índio do buraco), foram montados: é quando nasce o magistral Corumbiara (2009). Trata-se de um filme em primeira pessoa, no qual Vincent Carelli retoma e narra em retrospecto sua trajetória de cineasta-indigenista (não de antropólogo ou acadêmico, como gosta de frisar em suas entrevistas), a começar pela experiência junto aos Nambiquara. A abertura do filme Corumbiara (2009) é justamente uma citação do filme A festa da moça (1987), a partir da sequência que registra uma dança e um efusivo canto, a que a montagem soma o comentário em voz over:
1. Com a colaboração de Júnia Torres, que integra conosco a curadoria, composta também por Luisa Lanna.
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Meu nome é Vincent, sou indigenista, e comecei a fazer documentários em 1986. Nesse ano eu estava justamente realizando a primeira experiência do Vídeo nas Aldeias, que naquela época consistia em filmar os índios e mostrar imediatamente. Esse jogo de espelhos ia gerando um entusiasmo e, com a possibilidade de se ver na telinha, os Nambiquara começam a delirar, a gente com eles. E, de repente, sob a liderança do capitão Pedro Mamaindé, eles furaram o lábio de 30 jovens, numa cerimônia que eles tinham abandonado há 20 anos. Dessa experiência marcante nasceu A festa da moça, que foi o meu primeiro documentário no norte do Mato Grosso.
E prossegue, introduzindo o tema do filme Corumbiara: Foi então que o Marcelo Santos, indigenista da Funai, me pediu para registrar os vestígios de um massacre de índios isolados na gleba Corumbiara, no sul de Rondônia. Eu estava começando e, para mim, a possibilidade de dar ao vídeo uma função de militância mesmo era o que importava...
1997 (10 anos de Vídeo nas Aldeias) – Nascia o forumdoc.bh (Festival do filme documentário e etnográfico de Belo Horizonte) com a presença de corpo e alma do cineasta-indigenista Vincent Carelli e da etnóloga Dominique Gallois. Durante as sessões fílmicas comentadas e os debates, os dois nos apresentavam o método do projeto VNA, a perspectiva colaborativa, a proposta do cinema como instrumento para reflexão dos povos indígenas sobre sua própria cultura e identidade (e sobre aquelas de outros povos indígenas), sobre as transformações no seu modo de vida frente ao contato com o mundo moderno, as ameaças vindas de fora (sobretudo no plano da perda territorial) e as estratégias de enfrentamento à violência da colonização. Nesta primeira edição do forumdoc.bh, exibimos a maior parte dos títulos da primeira fase do VNA, voltada prioritariamente para o registro, a devolutiva e o intercâmbio das imagens entre povos indígenas: A festa da moça (1987); Pemp (1988); Vídeo nas aldeias (1989); O espírito da TV (1990); A arca do Zo’é (1993); Eu já fui seu irmão (1993); Antropofagia visual (1995); Yãkwa: o banquete dos espíritos (1995); Jane Moraita (1995); Moraingaiva: o desenho das coisas (1997). De lá para cá, cada vez que saía um filme novo do VNA, o forumdoc.bh o incluía em sua programação. Em 24 edições, foram sessões emocionantes, em que as singularidades de povos tantas vezes invisibilizados apareceram nas imagens projetadas nas telas do Cine Humberto Mauro e do Campus Pampulha/UFMG, sessões seguidas de vivos debates, com realizadores indígenas, com Vincent Carelli e colaboradores... A história do forumdoc.bh está inteiramente atravessada e marcada pelo percurso do VNA. Toda essa fabulosa e incontornável experiência de cinema com os povos indígenas no país já foi matéria de artigos, teses e ensaios (muitos deles, inclusive, escritos para os catálogos do festival). Citemos uma passagem de um texto quase inaugural no qual Carelli e Gallois (1995, p. 67) explicitam os objetivos do projeto:
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Construir, através da mídia audiovisual, informações para o público leigo ou para o círculo restrito dos especialistas, representa certamente uma experiência valiosa para a reflexão antropológica. Mais interessante ainda é construí-las com e para os sujeitos da pesquisa: as comunidades indígenas. Retorno, feed-back, antropologia interativa ou compartilhada, como pregava Jean Rouch, são princípios muitas vezes declarados, mas raras vezes concretizados. O que as comunidades estudadas, fotografadas e filmadas esperam da interação que estabelecem com antropólogos não são, apenas, as fotos, os filmes editados ou as teses prontas. Entretanto, é essa forma mecânica de retorno que a maior parte dos etnólogos concebe e pratica. O projeto de vídeo do CTI [Centro de Trabalho Indigenista] se propõe inverter e enriquecer essa relação. Ao invés de simplesmente se apropriar da imagem desses povos para fins de pesquisa ou difusão em larga escala, esse projeto tem por objetivo promover a apropriação e manipulação de sua imagem pelos próprios índios. Essa experiência, essencial para as comunidades que a vivenciam, representa também um campo de pesquisa revelador dos processos de construção de identidades, de transformação e transmissão de conhecimentos, de formas novas de auto-representação. Ao longo dos últimos anos, acumulamos um arquivo de imagens representativo de uma dezena de povos indígenas. Esse arquivo, que contém valiosos fragmentos da memória desses povos, destina-se às comunidades indígenas. Guardar esse acervo em São Paulo apenas para garantir a imagem diferenciada desses povos no futuro seria simples “arquivismo”: já temos, nas bibliotecas e nos museus, milhares de testemunhos de seu passado que, porém, permanecem-lhes inacessíveis. A preservação de imagens significativas para a memória dos povos indígenas só ganha sentido quando colocada à disposição desses povos, para que eles, enquanto sujeitos de seu futuro, as utilizem no processo de revisão de suas identidades. A manutenção das culturas e o futuro diferenciado desses povos dependem muito mais de sua criatividade nos processos de reconstrução, adaptações e seleções de sua memória do que da continuidade de um passado retratado em imagens de arquivo.
Em 35 anos de existência e resistência, muita coisa se transformou e foi somada ao projeto VNA, muitas experiências particulares de cinema, próprias a cada povo, foram agregadas ao seu acervo. Além disso, cabe destacar aqui este importante acontecimento: a multiplicação de coletivos de cinema indígena, muitos deles criados de forma autônoma, outros derivados da experiência do VNA e de suas oficinas de formação. A diversidade desta nova e pulsante produção (e forma de comunicação audiovisual) indígena desafia qualquer recorte curatorial. São incontáveis e singulares usos e apropriações das imagens, que exprimem a diversidade dos modos de vida, das experiências cosmológicas e históricas desses povos.
2021 (25 anos de forumdoc.bh, 35 anos de Vídeo nas Aldeias) – Nada mais coerente – e, ao mesmo tempo, urgente – do que celebrar os 25 anos do forumdoc.bh com uma homenagem ao VNA e ao cinema indígena. Em momento de perigo, sob o governo
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genocida e destruidor de Jair Bolsonaro (particularmente nocivo e letal para os povos indígenas), propomos fazê-lo refletindo sobre o tema do desaparecimento e do reaparecimento dos povos e das imagens – por meio da constituição, da conservação e da devolução dos acervos e dos registros audiovisuais durante as quase quatro décadas dessa incisiva ação cinematográfica (chamemos, na falta de melhor termo, de “cinema expandido”) no coração do Brasil e da sua população originária. Em contexto tão adverso, nos inquieta e nos move a indagação de Didi-Huberman: “Como fazer para que os povos se exponham a si próprios e não ao seu desaparecimento? Para que os povos apareçam e tomem figura?” (2012, p.11). O forumdoc.bh inclui então em sua programação uma forma de acesso inaugural a imagens desse vasto Acervo, por meio de uma videoinstalação pensada por Vincent Carelli, que estará presencialmente entre nós, para dois momentos de encontro, durante o período do festival. São seis sequências inéditas, com imagens de alguns dos povos com quem Vincent filmou durante o período inicial do projeto VNA – Kaiowá, Krahô, Gavião, Xavante, Yanomami, Akuntsu, Kanoê e Wajãpi –, não montadas na íntegra nos filmes já finalizados. Elas serão compartilhadas para instigar o debate – primeiramente, em torno do acervo extremamente relevante do VNA (milhares de horas de cerca de 62 povos indígenas), e da potência política de que os agenciamentos de memórias e imagens podem se fazer portadores; mas também para se pensar a relação entre o filme finalizado (e divulgado para os indígenas e não-indígenas) e aqueles registros que, por uma ou várias razões, não foram incorporados numa obra final. Desde Godard, pelo menos, em Histórias do cinema (histórias no plural), de 1988, sabemos que não só o que foi montado e exibido deve ser levado em consideração quando se quer pensar o cinema, no tempo: arte do cortar, esconder, esfumaçar, enquadrar, desenquadrar, sublinhar ou focar... Partes consideráveis das cópias ou dos filmes originais, depois de exibidos, foram ou são queimados (por razões mercadológicas ou pela natureza perecível da matéria fílmica, tão mais frágil quando mal conservada). As partes que sobrevivem são guardadas em acervos ou museus. Tempos depois, se bem cuidados, tais acervos podem ser revisitados, novos filmes podem ser montados ou remontados a partir dos fragmentos conservados. Com quais recursos, por quem, onde armazenar as imagens? Pergunta que se torna mais candente se levarmos em conta que, no Brasil, o poder público tem abandonado a memória audiovisual, negligenciando a guarda de filmes e documentos, como vimos com os recentes incêndios do Museu Nacional (RJ) e da Cinemateca Brasileira (SP) (ver texto de Patrícia Machado neste catálogo). E, no caso do Acervo VNA, além da premência de se garantir as condições objetivas para conservação de todo o material armazenado, outra questão decisiva se coloca: como devolver as imagens para os mais interessados e que deveriam deter, em última instância, o direito sobre elas, quais sejam, os próprios povos e comunidades indígenas? A devolutiva está na origem do VNA e o atravessa: o projeto teria começado, como insiste Vincent Carelli, não para “fazer filmes”, mas para produzir, devolver e tornar as imagens acessíveis aos povos indígenas. Nos “jogos de espelhos” que provocou desde a sua criação, o projeto estimulou, como disse certa vez Amaranta
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César, “a atuação política das imagens” em inúmeros “processos de resistência e de sobrevivência cultural” em comunidades indígenas2 (ver texto de André Brasil neste catálogo). A começar pelo caso pioneiro e paradigmático dos Nambiquara, passando pelos intercâmbios entre povos via imagem (registrados em filmes como A arca dos Zo´é e Eu já fui seu irmão), e pelas tantas oficinas de formação de realizadores, nas quais o feedback do material filmado é parte constitutiva do método, promovendo debates que envolvem, muitas vezes, toda a coletividade. Nesses processos, não basta copiar o conjunto de registros num HD e “devolvê-lo” ao povo concernente. A devolução exige uma mediação entre os coordenadores do projeto e guardiões das imagens (do ponto de vista tecnológico e político) e as comunidades que irão receber os fragmentos, cópias ou até os originais deste material. Como pode ser lido na entrevista de Vincent Carelli publicada neste catálogo, muitos indígenas não querem que o acervo original seja desmontado, ao contrário: querem que ele seja melhor disponibilizado (conservado, catalogado, transposto em digital quando for o caso...) de forma a ser “devolvido” na medida, dimensão e da forma como for demandada pela comunidade em questão. Se, historicamente, o VNA produziu imagens prioritariamente a serviço da luta política e da memória dos povos indígenas, o que fazer com aquilo “que não virou filme”? Trata-se sim de uma questão técnica, de conservação (mais ainda na contemporaneidade, quando há uma multiplicação quase infinita das gravações, a partir do digital), mas também de uma questão política da maior relevância – em especial para o caso indígena. Tomemos como exemplo paradigmático o cinema xavante sob a batuta de Divino Tserewahu: no processo de filmagem há um diálogo intenso entre o cineasta indígena e os velhos (xamãs e lideranças políticas) sobre o que filmar e o que não filmar, sobre o que montar e o que não montar. Mais do que isso, há uma discussão muito intensa sobre o que montar e mostrar para o próprio povo e o que mostrar para os brancos ou os não-indígenas.3 Estes não devem ver tudo – seja porque certas imagens guardam segredos, seja porque os brancos não compreenderiam (e veriam com preconceito e distorção) o que aparece na cena filmada, por fazer parte de um universo (linguístico, cosmológico) intransponível ao espectador externo. No processo de preparação do festival, os organizadores da mostra Desaparecimento e reaparecimento dos povos e das imagens discutimos, com Vincent Carelli, a pertinência e a eficácia de exibir as sequências “brutas”, previstas inicialmente para a videoinstalação, também na programação on-line do festival. Embora reconhecendo a importância da divulgação do material (não montado), exatamente com a finalidade de dar a conhecer a um público maior a relevância e a grandeza do acervo VNA, alguns entre nós se mostravam reticentes – pois a ampla divulgação não apenas não alcançaria a experiência sensorial da instalação, como poderia provocar uma “leitura” equivocada (e preconceituosa) acerca do mundo indígena, por não dispor 2. Sobreviver com as imagens: cinema, resistência e retomadas. Palestra realizada no Programa de PósGraduação em Comunicação Social da UFMG (2015). 3. Em geral, os indígenas gostam mesmo é de ver o material bruto na íntegra, sem montagem, mas há partes do filmado que não podem ser vistas por segmentos do próprio povo.
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de uma intervenção por meio da montagem (por exemplo, com o uso da legendagem ou do comentário over explicativos). As sequências do VNA apresentadas na instalação, denominada Inéditos inevitáveis numa experiência sensorial, guardam porções muito sensíveis da experiência humana e indígena, que talvez mereçam alguma preparação para imersão em seu mundo: da guerra (como é o caso da sequência yanomami) ou das experiências do transe xamânico (como é o caso da sequência dos Akuntsu-Kanoê). Uma questão importante se impôs em nossa conversa: como exibir em plataforma digital registros de um povo (caso da sequência dos Yanomami) que não foi diretamente consultado a respeito do uso e divulgação de suas imagens? Este ponto, como se vê, é crucial na discussão sobre a devolução do acervo audiovisual para os povos indígenas: a necessidade de haver sempre uma mediação e conexão entre os registros de um tempo passado e os seus usos no tempo presente e futuro, de modo a garantir autonomia e autodeterminação para as pessoas filmadas, as verdadeiras donas de suas imagens.4 Depois desta discussão política, ética e conceitual (em parte reportada na entrevista publicada neste catálogo), decidimos, junto com Vincent Carelli, fazer circular no ambiente virtual três das sequências “brutas” (minimamente editadas) previstas para a instalação, por não conterem cenas “perigosas”: as imagens dos Kaiowá, dos Krahô-Gavião e dos Xavante. Para aqueles que quiserem passar por uma intensa experiência sensorial, assistindo às outras três sequências – dos Yanomami, dos Akuntsu-Kanoê e dos Wajãpi (esta última excluída da programação virtual por uma questão institucional) –, será preciso visitar a instalação no Palácio das Artes, durante o festival. Conta-se que Darcy Ribeiro dizia que o “civilizado” não suporta a beleza, tanta, dos povos indígenas: o seu cuidado e tempo dedicados à ornamentação do corpo; à preparação de bebidas, festas, danças e cantos; à comunicação entabulada com os seres da natureza. Esta afirmação nos vem à cabeça quando vemos as sequências inéditas que Vincent Carelli selecionou para exibição no forumdoc.bh.2021: uma sessão de xamanismo com o uso de pó de angico entre os Akuntsu-Kanoê de Rondônia (sem saber o que iria acontecer, Vincent se sentou na beira da clareira e filmou durante duas horas consecutivas, sem sair do lugar, um acontecimento inigualável na história do cinema); uma cerimônia de dança e iniciação masculina/ feminina entre os Krahô no Tocantins, quando estes recebem a visita dos “parentes” Gavião (dando continuidade a um intercâmbio estimulado pelo Vídeo nas Aldeias); um cerimonial raro de iniciação e nominação de mulheres na aldeia Xavante de Sangradouro (Mato Grosso); a intensidade da vida cerimonial wajãpi, marcada pela 4. Na verdade, não há novidade nesta ética envolta na realização e circulação de imagens dos povos. Em 1954, ocorreu uma polêmica que fez tinta no meio antropológico e cinematográfico, em torno do filme Les maîtres fous, de Jean Rouch, sobre um culto religioso denominado Hauka. Quando o filme foi exibido para alguns africanos e pesquisadores franceses no Museu do Homem (Paris), a recepção foi, no geral, muito negativa, pois aquelas imagens de transe afrontavam a dignidade humana (aos olhos ocidentais), apresentando os nativos como selvagens. Um dos espectadores, Marcel Griaule, etnólogo e mestre de Jean Rouch, teria dito que aquelas imagens jamais poderiam ser vistas por não-iniciados; seria melhor destruí-las, pois eram muito perigosas. Mais tarde o filme foi tirado de circulação, e muitos anos se passaram até que sua recepção por africanos e ocidentais fosse aceita. Ver o artigo de Renato Sztutman (2005), “Imagens perigosas: a possessão e a gênese do cinema de Jean Rouch”.
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recuperação da grande preparação das máscaras e danças dos peixes Pacu-Açu, numa aldeia no Amapá; a iniciação dos jovens, chamada de Kunumi Pepy, numa estonteante performance de dança e canto, na aldeia Kaiowá de Panambizinho, perto de Dourados, no Mato Grosso do Sul; por fim, debaixo de uma tempestade de raios e trovoadas, na região do Alalaú, em Roraima, a caminhada na floresta de uma comunidade yanomami, quando uma guerra espreita. Cada uma das sequências é uma peça de descrição etnográfica insubstituível! Junto a isso, são todas esteticamente primorosas, na articulação entre a entrega e extrema habilidade do cinegrafista e o intrínseco bailar dos corpos indígenas nas suas festas-cerimônias, nos seus passos e cantos, nas suas artes em geral. Estas seis sequências, de uma hora aproximadamente cada uma, compõem a videoinstalação de 25 anos do forumdoc.bh, Inéditos inevitáveis numa experiência sensorial: uma efusiva composição de sons (de diferentes cantos e línguas: Jê, TupiGuarani, Yanomami) que demonstram a beleza, a diversidade e a complexidade das sociedades indígenas no país. Todas filmadas na década de 1990, elas remontam à primeira fase do VNA, redescobertas e revistas por Vincent no tempo presente, quando o material de arquivo do projeto começou a ser digitalizado. Parece que todo “um mundo”, aos olhos de quem vê tais sequências, tinha ficado de fora dos filmes montados. Tudo pede agora para ser visto e revisto, pelos estudiosos da etnologia, pelos indígenas e não-indígenas. Estas seis horas de material inédito são ofertadas ao público que visitar a instalação do forumdoc.bh.2021, na forma de sequências quase brutas, sem edição, na língua indígena e sem tradução, cada uma acrescida apenas de uma cartela, no início, que contextualiza brevemente o registro. É um material que nos engaja, antes de tudo, pela experiência sensorial, sem demandar mais explicações sobre seu conteúdo: a quem se submete à imersão nas imagens, é como se tudo, de repente, fizesse sentido, e o material passa de inédito a inevitável! À exceção do material Yanomami, as seis sequências da instalação guardam relações com filmes que foram editados, e que fazem parte da história de 35 anos do VNA (e, por extensão e afinidade, de 25 anos do forumdoc.bh). Alguns deles serão reexibidos em 2021, presencial ou virtualmente, para, entre outros aspectos, suscitar a reflexão sobre aquilo que foi montado e dado a ver, e aquilo que, por uma razão ou outra, foi cortado e sobrevive oculto nos acervos (até que possa ser revisitado por pesquisadores indígenas e não-indígenas): caso de Eu já fui seu irmão (1993), Pi´õnhitsi – mulheres xavante sem nome (2009), Corumbiara (2009) e Martírio (2016). Mesmo sem relação direta com as sequências da instalação, outros filmes compõem as sessões da mostra por serem exemplares da atuação política e performativa das imagens, em diferentes ocasiões, no âmbito do VNA. Caso de A festa da moça (1987) e A arca do Zo’é (1993), que marcam a história do projeto, expondo potentes processos de devolução, feedback, encontro e intercâmbio – via imagens – entre os povos filmados. Ou de Tava – a casa de pedra (2012), com os Mbya Guarani, exemplo de um tipo de cinema engajado que faz da participação e colaboração indígenas a essência de seu método; e, ainda, do relacionamento duradouro de colaboração com um povo indígena, no caso, os Enawenê-Nawê, registrado no tempo, entre Yãkwa: o banquete dos espíritos (1995) e Yaõkwa, imagem e memória (2020) – que
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inscreve a devolução das imagens aos Enawenê-Nawê, cerca de três décadas depois das primeiras gravações. Como já mencionamos, os registros audiovisuais que deram nascimento ao filme Corumbiara (2009) foram feitos a partir do esforço para denunciar um massacre e para tornar visíveis povos em situação de isolamento voluntário diante da sociedade nacional – por sua autonomia e sobrevivência (ver texto de Clarisse Alvarenga neste catálogo). Paradoxalmente, para sua proteção, os indigenistas e cineastas precisavam provar a existência dos isolados por meio de imagens ou de vestígios – é assim que se alcança a interdição de seu território (e a proteção de suas vidas pelo Estado brasileiro), consentida a conta-gotas a cada dois anos. Já no caso de Martírio (2016), como defende Spensy Pimentel (ver artigo neste catálogo), descortina-se um outro tipo de invisibilidade: a dos índios Guarani-Kaiowá acampados nas beiras das estradas, nos fundos das fazendas, em reduzidas faixas de terra em meio às grandes plantações de soja ou cana de açúcar do agronegócio, índios dos quais se retira o direito à terra por serem arremessados na conta de nem índios, por serem demasiado aparentes ou aculturados. A mostra Desaparecimento e reaparecimento dos povos e das imagens quer se somar ao gigantesco esforço do VNA – e marcadamente de Vincent Carelli, nessa aliança de uma vida inteira – para fazer circular, por meio das imagens e da formação de coletivos de cinema indígenas, um outro país possível: este que sobrevive e resiste, mesmo sendo apagado sistematicamente pela colonização. A mostra se completa com dois outros filmes, não produzidos pelo Vídeo nas Aldeias: Serras da desordem (2006), de Andrea Tonacci, e Piripkura (2017), de Renata Terra, Bruno Jorge e Mariana Oliva. Tendo assistido a esses filmes, digamos que o “civilizado” talvez não suporte ver, além da beleza do mundo indígena, a ausência de autoridade coercitiva, a liberdade e a alegria de viver na floresta (na dependência quase que só de um tição de fogo), sem tirar o metal debaixo da terra, sem luz elétrica, capazes de seguir o caminho pelas estrelas que brilham no céu ou se aquecendo com a luz do sol. O “civilizado” segue destruindo a floresta e, junto com ela, estes dois homens piripkura, sob constante ameaça, protegidos apenas por um velho indigenista – que, por circunstâncias inexplicáveis, vive para garantir a vida dos dois sobreviventes (de quantos massacres?). Talvez o mesmo homem branco não suporte ver tanta alegria e tamanha doçura, justamente em um homem, Karapiru (Serras da desordem), que viveu tanta violência contra si e seu povo: sua comunidade foi massacrada por invasores não-indígenas, ele foi obrigado a fugir, percorrendo cerca de dois mil quilômetros, vendo-se abrigado por uma comunidade de trabalhadores rurais, até ser resgatado e devolvido à sua comunidade indígena de origem por Sydney Possuelo, indigenista da Funai, muitos anos depois. Karapiru morreu este ano, 2021, vítima da Covid-19, na aldeia Tiracambu (no estado do Maranhão), junto ao seu povo, os Awá-Guajá (ver texto de Renata Otto neste catálogo). Agora Karapiru vive nas estrelas e no filme de Andrea Tonacci. O forumdoc.bh.2021 é dedicado a ele, ao indigenista Rieli Franciscato e a todos os indígenas vitimados pela violência da colonização ou pela omissão do Estado
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brasileiro. Àqueles que sobrevivem, que insistem em viver livremente, “isolados” como os Piripkura. Eles são, para nós, como vagalumes, cujo brilho intermitente nos guia nas trevas políticas de nosso tempo (atiçando-nos a crença de que um outro mundo é possível), inversamente aos “projetores ferozes” e às luzes cegantes do progresso capitalista, como escreveu Didi-Huberman (2011). Por meio dos debates que promove, esta mostra se propõe também como ocasião para reflexão e ação, politicamente situadas, contra o recrudescimento e a ampliação das políticas anti-indígenas. As alianças entre governo e mineradoras, corporações do agronegócio, o desmantelamento de políticas ambientais e indigenistas, e sobretudo o risco de aprovação da inconstitucional tese do Marco temporal, contra a qual se insurge bravamente o movimento indígena, serão objeto de nosso pensamento crítico, numa aliança, por meio das imagens, com indigenistas, lideranças indígenas, cineastas – para que somemos às ações de vigília contra a eliminação dos direitos fundamentais dos povos. Nos insurgimos também contra o desaparecimento das imagens, propondo como atividade de abertura do festival o debate em torno da grave situação dos arquivos no país. Enfim, depois de um forumdoc.bh inteiramente virtual, em função da pandemia, decidimos voltar em 2021 com parte da programação presencial. Ela gira em torno da videoinstalação dedicada a imagens do Acervo VNA. No contexto mortífero em que vivemos, os planos de Inéditos inevitáveis numa experiência sensorial são como aparelhos para fazer durar a vida. Que seja um retorno simbólico e político com o cinema, uma maneira de marcar nossos compromissos e alianças, com o VNA e com os povos indígenas, que não são figuras condenadas ao passado – ao contrário, estão anos luz à nossa frente, eis um projeto de futuro!
Referências CARELLI, Vincent, GALLOIS, Dominique. “Vídeo e diálogo cultural – experiência do projeto Vídeo nas Aldeias”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 1, n. 2, p. 61-72, jul-set 1995. DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. ____________. Peuples exposés, peuples figurants. Paris: Les Éditions de Minuit, 2012. SZTUTMAN, Renato. “Imagens perigosas: a possessão e a gênese do cinema de Jean Rouch”. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 13, n. 13, 2005.
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Instalação: “Inéditos inevitáveis numa experiência sensorial: fragmentos do Acervo Vídeo nas Aldeias” LOCAL: GALERIA MARI’STELLA TRISTÃO PERÍODO: 18 DE NOVEMBRO A 02 DE DEZEMBRO Autor do acervo audiviosual e fotográfico: Vincent Carelli, com participação de Altair Paixão CONCEPÇÃO E PROJETO EXPOGRÁFICO: ANDRÉ HAUCK COORDENAÇÃO DA INSTALAÇÃO: RENATA OTTO Híper-locais, os 6 trechos inéditos desta instalação já se tornam inevitáveis. Oferecidos por Vincent Carelli como amostra do acervo gerado durante 35 anos pelo projeto Vídeo nas Aldeias, estas sequências brutas aparecem como se estivessem esperando para se mostrarem. Melhor, para nos mostrarem, em contínuo, seu poder de síntese. Revelam coisas que já havíamos talvez pensado, nebulosamente, mas eis que na visada, vão tomando um teor inteiramente significativo. Os índios, se os vissem, entenderiam tudo! Nós seremos talvez capazes de ver a riqueza, a beleza, a destreza, o saber dos Outros desfilando ali: O garotinho yanomami brinca no igarapé, corpinho nu, perninha pra cima, cabeça pra baixo, molha as franjas do cabelo, corre sorrindo. O pai dele, sentado perto, absorto nos pensamentos, espera os outros na volta da mata para casa. Os adolescentes guarani kaiowá dançam com os mais velhos. A comunidade está reunida, é dia de festa! Os garotos estão sendo provados. Sabem que são os donos do futuro, alegremente arrogantes, exibem sua coragem de viver. Os homens xavante estão retirados, se preparando para um ritual. Se pintam de onça, desenham na pintura mais tradicional uns números: 1995, o ano em que foram flagrados. O velho Kohokrenhum Gavião vigia o ritual feito para ele pelos parentes Krahô, com sua elegância displicente, toma um café. Um grupo de homens wajãpi derruba uma árvore enorme, descascam o tronco, recortam a casca em tiras, martelam as tiras com um pau, com o golpe, elas se tornam maleáveis. Atolam essas franjas no barro preto. Elas serão usadas na confecção das máscaras do peixe pacu. A mulher kanoê, está ao lado do velho akuntsu. É a primeira vez que se juntam na frente dos brancos. Ninguém fala língua inteligível ao outro. No entanto, ela inala o pó que o velho akuntsu preparou. Então, ela começa a falar a língua dos pássaros. Vejam, vocês, o que sabem.
Vincent Carelli ‘SUPER-V’ (1995)
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Disappearance and Reappearance of People and Images (35 years of VNA and 25 years of forumdoc.bh) CLÁUDIA MESQUITA, RENATA OTTO, RUBEN CAIXETA DE QUEIROZ1 Translation: Caroline Ferreira
1987 (35 years ago) – Let us establish by convention that this is the creation date of the Vídeo nas Aldeias (VNA) project. That marks the release of A Festa da moça, which depicts the ritual to celebrate the end of seclusion following the first menstruation of a young Nambiquara girl. Shortly before that, in 1985, FUNAI (Brazilian National Indian Foundation) indigenist Marcelo Santos denounced a massacre of indigenous individuals in Rondônia. Nobody wanted to see or believe the indigenous genocide, so Marcelo invites Vicent to record the traces, a means of fighting against obliteration and proving the massacre in the courts. Those who survived, in general, were invisible to the Brazilian society, interested rather in denying their reality in favor of granting lands to agribusiness. Vicent, then, begins to film it more as an indigenist, less as a cinematographer. What was being sought was an alliance to the indigenous through audiovisual – as a way to strengthen their way of life (returning and making the images accessible to the peoples filmed) and also making visible to this side (the “civilized” world) both the strength and vitality of the indigenous world and the brutality of colonial civilization. Only two decades later, the filmic records resulted from the encounter with the survivors of that massacre and other isolated indigenous peoples in that region of Rondônia, who were invisible until then (Akuntsu and Kanoê peoples and the Man of the Hole), were assembled; that is when the masterful Corumbiara (2009) is born. It is a film in first-person, where Vincent Carelli takes up and recounts in retrospect his trajectory as an indigenist cinematographer (not as an anthropologist or scholar, as he likes to emphasize in his interviews), starting with his experience with the Nambiquara. The opening of Corumbiara (2009) is precisely a quotation from the film A festa da moça, from the sequence that registers a dance and an effusive song, 1. With the collaboration of Junia Torres, who is part of the curator team, along with Luisa Lanna.
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to which the editing adds a commenting in voice-over: My name is Vincent, I am an indigenist, and I started making documentaries in 1986. That year I was doing Vídeo nas Aldeias’ first experience, which at the time consisted of filming indigenous peoples and showing them immediately. This game of mirrors was generating enthusiasm, and having the possibility of seeing themselves on the small screen, the Nambiquara began to rave, and we began to rave with them. Suddenly, under the leadership of Captain Pedro Mamaindé, they pierced the lips of 30 young people in a ceremony they had abandoned 20 years before. From this remarkable experience was born A festa da moça, which was my first documentary in the north of Mato Grosso.
He moves on, introducing the theme of the Corumbiara film: It was then that Marcelo Santos, a FUNAI indigenist, asked me to register the vestiges of a massacre of isolated indigenous people in the Corumbiara land, in the south of Rondônia. I was just starting and, for me, the possibility of giving the video a militant function was what really mattered...
1997 (ten years of Vídeo nas Aldeias) – The forumdoc.bh (Belo Horizonte’s Documentary and Ethnographic Film Festival) was born with the presence, heart and soul, of indigenist cinematographer Vincent Carelli and ethnologist Dominique Gallois. During the film sessions and debates, they both presented the method of the VNA project, the collaborative perspective, the proposal of cinema as a tool for indigenous people to reflect on their own culture and identity (and those of other indigenous people), and transformations in their way of life due to contact with the modern world threats from outside (especially in terms of territorial loss) and strategies for confronting the violence of colonization. In this first edition of forumdoc. bh, we screened most of the titles from the first VNA phase, which focused primarily on the record, return, and exchange of images between indigenous peoples: A festa da moça (1987); Vídeo nas aldeias (1989); O espírito da TV (1990); A arca do Zo’é (1993); Eu já fui seu irmão (1993); Antropofagia visual (1995); Yãkwa: o banquete dos espíritos (1995); Jane Moraita (1995); Moraingaiva: o desenho das coisas (1997). Since then, every time a new VNA film was released, forumdoc included it in its program. In 24 editions, there were exciting screenings, in which the singularities of people so often invisible appeared in the images projected on the screens of Cine Humberto Mauro and of the Campus Pampulha/UFMG; screenings followed by lively debates, hosting indigenous cinematographers, Vincent Carelli and collaborators... The history of forumdoc.bh is entirely crossed and marked by the VNA’s journey. All this fabulous and unavoidable experience of cinema with indigenous people in the country has already been the subject of articles, dissertations, and essays (many of them, even written for the Festival’s catalogs). Let us quote a passage from an
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almost inaugural text in which Gallois and Carelli (1995: 67) explain the objectives of the project: Building, through audiovisual media, information for the lay public or the restricted circle of specialists definitely represents a valuable experience for anthropological reflection. Even more interesting is to build it with and for the subjects of the research: the indigenous communities. Return, feedbacks, interactive or shared anthropology, as preached by Jean Rouch, are principles often declared, but rarely put into practice. What the communities studied, photographed, and filmed expect from the interaction they establish with anthropologists are not only the photos, the edited films, or the finished dissertations. However, it is this mechanical form of feedback that most ethnologists conceive and practice. CTI’s video project proposes to invert and enrich this relationship. Rather than simply appropriating the image of these peoples for research purposes or large-scale dissemination, this project aims to promote the appropriation and manipulation of their image by the Indians themselves. This experience, essential for the communities living it, also represents a field of research that reveals the processes of identity construction, of transformation and transmission of knowledge, of new forms of self-representation. Over the last few years, we have accumulated an archive of images representing a dozen indigenous peoples. This archive, which contains valuable fragments of the memory of these peoples, is intended for the indigenous communities. To keep this archive in São Paulo just to guarantee a unique image of these peoples in the future would be plain “archivism”; we already have, in libraries and museums, thousands of testimonies of their past that, however, remain inaccessible to them. The preservation of significant images for the memory of indigenous peoples only makes sense when they are made available to these peoples, so that they, as subjects of their future, can use them in the process of reviewing their identities. The maintenance of the cultures and a different future for these peoples depend much more on their creativity in the processes of reconstruction, adaptations, and selections of their memory than on the continuity of a past portrayed in archive images.
In 35 years of existence and resistance, many things have been transformed and added to the VNA project, many particular experiences of cinema, distinctive to each people, have been added to its collection. Besides, it is worth mentioning an important event: the multiplication of indigenous film collectives, many of them created autonomously, others derived from the VNA experience and its workshops! The diversity of this new and pulsating indigenous production (and form of audiovisual communication) defies any curatorial cut. There are countless and unique uses and appropriations of images, which express the diversity of ways of life, cosmological, and historical experiences of these peoples.
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2021 (25 years of forumdoc.bh, 35 years of VNA) – Nothing more coherent - and, at the same time, urgent - than to celebrate the 25th anniversary of forumdoc.bh paying tribute to the VNA and indigenous cinema. At a dangerous time, under the genocidal and destructive government of Jair Bolsonaro (particularly harmful and lethal for indigenous peoples), we propose to do so by reflecting on the theme of the disappearance and reappearance of peoples and images - through the constitution, conservation and return of the collections and audiovisual records throughout nearly four decades of this incisive cinematographic action (let us call it, for lack of a better term, “expanded cinema”) at the heart of Brazil and its original population. In such an adverse context, Didi-Huberman’s questioning worries and moves us: “How can we make the peoples expose themselves and not their disappearance? So that peoples appear and acquire a figure?” (2012, p.11). Thus, the forumdoc.bh includes in its program a form of inaugural access to images from this vast Collection, through a video installation designed by Vincent Carelli, who will be with us for two meetings during the Festival. There are six unreleased sequences, depicting images of some of the peoples with whom Vincent filmed during the initial period of the VNA project - Kaiowá, Krahô, Gavião, Xavante, Yanomami, Akuntsu, Kanoê, and Wajãpi - not edited in their entirety in the films already completed. They will be shared with the purpose of eliciting the debate. First, around the extremely relevant VNA collection (thousands of hours of nearly 62 indigenous peoples), and the political power that the agency of memories and images can carry. Second, to think about the relationship between the finalized film (shared with indigenous and non-indigenous people) and those records that, for one or several reasons, were not incorporated in a final work. Since Godard, at least, in Histoire(s) du Cinéma (“histories”, plural), from 1988, we know that not only what was edited and exhibited must be taken into consideration when one wants to think of cinema, in time: the art of cutting, hiding, smudging, framing, un-framing, underlining or focusing... Considerable parts of copies or original films, after being exhibited, were, or are, burned (for market reasons or due to the perishable nature of film material, so much more fragile when poorly preserved). Surviving parts are kept in collections or museums. Later, if well cared for, these collections can be revisited, and new films can be edited or re-assembled from the preserved fragments. With what resources, by whom, where to store the images? A question that becomes more incisive if we consider that, in Brazil, public authorities have abandoned audiovisual memory, neglecting the safekeeping of films and documents, as we have seen with the recent fires at the National Museum (RJ) and the Cinemateca Brasileira (SP) (see the article by Patrícia Machado in this catalog). Furthermore, in the case of the VNA Collection, besides the urgency of guaranteeing the objective conditions for the conservation of all the stored material, another decisive question arises: how to return the images to those most interested and who should ultimately hold the rights to them, namely, the indigenous peoples and communities themselves? The response lies in the origin of Vídeo nas Aldeias and runs through it: the project would have started, as Vincent Carelli insists, not to “make films”, but to produce,
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return, and make the images accessible to the indigenous peoples. In the “mirror games” that it has provoked since its creation, the project has stimulated, as Amaranta César once said, «the political action of images» in countless «processes of resistance and cultural survival» in indigenous communities2 (see the article by André Brasil in this catalog). Starting with the pioneering and paradigmatic case of the Nambiquara, through the exchanges between peoples via images (registered in films such as A arca dos Zo’é and Eu já fui seu irmão). Also, through the many workshops for training cinematographers, in which the feedback of the filmed material is a constitutive part of the method, promoting debates that often involve the entire community. In these processes, it is not enough to copy the set of records on a hard drive and “return” it to the people concerned. The return requires mediation between the coordinators of the project, who are also the guardians of the images (from a technological and political point of view), and the communities that will receive the fragments, copies, or even the originals of this material. As can be read in the interview with Vincent Carelli in this catalog, many indigenous people do not want the original collection to be dismantled. On the contrary, they want it to be made better available (preserved, cataloged, and transposed to digital format when necessary...) so that it can be “returned” to the extent, in the dimension and manner demanded by the community in question. If, historically, the VNA produced images primarily at the service of the political struggle and the memory of indigenous peoples, what should be done with what “did not become film”? It is indeed a technical issue of conservation (even more so in contemporary times, when there is an almost infinite multiplication of recordings, starting from digital), but also a political issue of the utmost relevance - especially for the indigenous case. Let us take as a paradigmatic example the Xavante cinema under the baton of Divino Tserewahu: in the filming process, there is an intense dialogue between the indigenous cinematographer and the elders (shamans and political leaders) about what to film and what not to film; what to edit and what not to edit. More than that, there is a very intense discussion about what to edit and show to his own people and what to show to whites or non-indigenous people3. They should not see everything either because certain images hold secrets, or because whites would not understand (and would see with prejudice and distortion) what appears in the filmed scene, because it is part of a (linguistic, cosmological) universe that is impassable to the external spectator. During the Festival preparation process, the organizers of the “Disappearance and Reappearance of the Peoples and Images” exhibition discussed with Vincent Carelli the pertinence and the effectiveness of showing the “raw” sequences, initially planned for the video installation, also in the Festival’s online program. While recognizing the importance of disclosing the (unedited) material, precisely wanting to make it 2. Sobreviver com as imagens: cinema, resistência e retomadas [Surviving with images: cinema, resistance and retaques]. Lecture held at the Graduate Program in Social Communication at UFMG (2015).
3 In general, the indigenous people really like to see the raw material in its entirety, without editing, but there are parts of the footage that cannot be seen by segments of the people themselves.
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known to a greater audience the relevance and greatness of the VNA collection, some of us were reticent. Because the wide divulgation not only would not reach the sensory experience of the installation but could also provoke a mistaken (and biased) “reading” of the indigenous world, for not having an intervention within the montage (for instance, with the use of subtitles or explanatory over commentary). The VNA sequences presented in the installation, called Inéditos inevitáveis numa experiência sensorial, keep very sensitive portions of the human and indigenous experience, which perhaps deserve some preparation for immersion in their world of war (as is the case of the Yanomami sequence) or of the experiences of the shamanic trance (as is the case of the Akuntsu-Kanoê sequence). An important question imposed itself in our conversation: in a digital platform, how to exhibit records of a people (case of the Yanomami sequence) not directly consulted about the use and disclosure of their images? This, therefore, is crucial in the discussion about returning the audiovisual collection to indigenous peoples: the need to always have mediation and connection between the records of a past time and their uses in the present and future time, as to guarantee autonomy and self-determination for the people filmed; the true owners of their images. 4 After this political, ethical, and conceptual discussion (partially reported in the interview published in this catalog), we decided, together with Vincent Carelli, to circulate in the virtual environment three of the “raw” (minimally edited) sequences planned for the installation, for not containing “dangerous” scenes: the images of the Kaiowá, Krahô-Gavião and Xavante peoples. For those who want an intense sensory experience, watching the other three sequences - of the Yanomami, the Akuntsu-Kanoê and the Wajãpi (the latter excluded from the virtual program for institutional reasons) - will have to visit the installation at the Palácio das Artes, during the Festival. Darcy Ribeiro is believed to have said that the “civilized” cannot stand the beauty, so much beauty, of indigenous people: their care and time devoted to the ornamentation of the body; to the preparation of drinks, feasts, dances and songs; to the communication engaged in with the beings of nature. This statement comes to mind when we see the unreleased sequences that Vincent Carelli has selected for exhibition at forumdoc.bh 2021. Among them, a shamanism session with the use of angico powder among the Akuntsu-Kanoê of Rondônia (without knowing what was going to happen, Vincent sat on the edge of the clearing and filmed for two consecutive hours, without leaving the place, an unparalleled event in the history of cinema). Or a dance and male/female initiation ceremony among the Krahô in Tocantins, when 4. In fact, there is nothing new about this ethic involved in the making and circulation of images of peoples. In 1954, a controversy had legs for a while in the anthropological and cinematographic milieu concerning the film “Les maîtres fous”, by Jean Rouch, about a religious cult called Hauka. When the film was shown to some Africans and French researchers at the Museum of Man (Paris), the reception was, on the whole, very negative, because those trance-like images defied human dignity (in Western eyes) by presenting the natives as savages. One of the spectators, Marcel Griaule, Jean Rouch’s ethnologist and master, reportedly said that those images could never be seen by the uninitiated; it would be better to destroy them, because they were too dangerous. The film was later taken out of circulation, and many years passed before its reception by Africans and Westerners was accepted. See Renato Sztutman’s (2005) article, Imagens perigosas: a possessão e a gênese do cinema de Jean Rouch [Dangerous Images: Possession and the Genesis of Jean Rouch’s Cinema].
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they are visited by their “relatives” Gavião (continuing an exchange stimulated by Vídeo nas Aldeias. In addition, a rare initiation and naming ceremony of women in the Xavante village of Sangradouro (Mato Grosso). The sequences also include the intensity of Wajãpi ceremonial life, marked by the recovery of the great Pacu-Açu fish mask and dance preparation, in a village in Amapá, and the initiation of young people, called “Kunumi Pepy”, in a stunning dance and singing performance, in the Kaiowá village of Panambizinho, near Dourados, in Mato Grosso do Sul. Finally, under a thunder and lightning storm, in the Alalaú region of Roraima, the walk in the forest of a Yanomami community, when a war is looming. Each of the sequences is an irreplaceable piece of ethnographic description! In addition, they are all aesthetically exquisite, in the articulation between the surrender and extreme skill of the cinematographer and the intrinsic dance of the indigenous bodies in their party-ceremonies, in their steps and songs, in their arts in general. These six sequences, of approximately one hour each, make up the video installation of the 25th anniversary of forumdoc.bh, Inéditos inevitáveis numa experiência sensorial: an effusive composition of sounds (from different songs and languages: Jê, Tupi-Guarani, Yanomami) that demonstrate the beauty, diversity and complexity of indigenous societies in the country. All filmed in the 1990s, they date back to the first phase of the VNA, rediscovered and reviewed by Vincent today, when the project’s archive material began to be digitized. It seems like a whole “world”, in the eyes of those who see these sequences, had been left out of the assembled films. Everything now begs to be seen and reviewed, by scholars of ethnology, by indigenous and non-indigenous people. These six hours of unreleased material are offered to the public visiting the forumdoc.bh.2021 installation, in the form of almost raw, unedited sequences, in the indigenous language and without translation, each one added only of a card, at the beginning, that briefly contextualizes the record. A material that engages us, above all, by sensory experience, without demanding further explanations about its content; to those who submit themselves to immersion in the images, it is as if everything suddenly made sense, and the material goes from unreleased to inevitable! With the exception of the Yanomami material, the six sequences of the installation relate to films that were edited, which are part of the 35-year history of the VNA (and, by extension and affinity, 25 years of forumdoc.bh). Some of them will be shown again in 2021, in person or virtually, aiming to, among other things, encourage reflection on what was edited and shown, and what, for one reason or another, was cut and survives hidden in the collections (until it can be revisited by indigenous and non-indigenous researchers). This is the case of Eu já fui seu irmão (1993), Pi´õnhitsi – mulheres xavante sem nome (2009), Corumbiara (2009) e Martírio (2016). Even if not directly related to the sequences in the installation, other films are part of the Festival because they are examples of the political and performative agency of images, on different occasions, in the context of the VNA. This is the case of A festa da moça (1987) and A arca do Zo’é (1993), which mark the history of the project, exposing powerful processes of return, feedback, encounter, and exchange - via images - between the peoples being filmed. Or of Tava – a casa de pedra (2012),
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with the Mbya Guarani, an example of engaged cinema that makes indigenous participation and collaboration the essence of its method; and, also, of the lasting collaborative relationship with an indigenous people, in this case, the Enawenê-Nawê, recorded in time, among Yãkwa: o banquete dos espíritos (1995) e Yaõkwa, imagem e memória - which inscribes the return of the images to the Enawenê-Nawê, more than two decades after the first recordings. As aforementioned, the audiovisual records that gave birth to the film Corumbiara (2009) were made from the effort to denounce a massacre and to make visible peoples in a situation of voluntary isolation before the national society - for their autonomy and survival (see the article by Clarisse Alvarenga in this catalog). Paradoxically, for their protection, the indigenous peoples and cinematographers needed to prove the existence of the isolated peoples using images or traces - this is how the interdiction of their territory (and the protection of their lives by the Brazilian State) is achieved, granted drop by drop every two years. In the case of Martírio (2016), as Spensy Pimentel argues (see an article in this catalog), another type of invisibility is unveiled: that of the Guarani-Kaiowá Indians camped by the side of the roads, at the back of the farms, in small strips of land amidst the agribusiness’ large soy or sugar cane plantations. Indians from whom the right to the land is withdrawn because they are cast as non-Indians, for they are too apparent or too acculturated. “Disappearance and Reappearance of the Peoples and Images” wants to add to the gigantic effort of the VNA - and especially of Vincent Carelli, in this alliance of a lifetime - to circulate, through images and the formation of indigenous film collectives, another possible country: one that survives and resists, even being systematically erased by colonization. Two other films, not produced by Vídeo nas Aldeias, complete the Festival: Serras da desordem (2006), by Andrea Tonacci, and Piripkura (2017), by Renata Terra, Bruno Jorge, and Mariana Oliva. Having watched these films, let us say that the “civilized” perhaps cannot bear to see, besides the beauty of the indigenous world, the absence of coercive authority, the freedom and joy of living in the forest (in almost single-minded dependence on a firebrand), without taking metal from under the ground, without electric light, able to follow the path by the stars shining in the sky or by warming themselves with the light of the sun. The “civilized” continue to destroy the forest, and along with it, these two Piripkura men, under constant threat, protected only by an old indigenist - who, for inexplicable circumstances, lives to guarantee the lives of the two survivors (of how many massacres?). Perhaps the same white man cannot bear to see such joy and such sweetness, precisely in a man, Karapiru (Serras da desordem), who has experienced so much violence against himself and his people; his community was massacred by non-indigenous invaders, he was forced to flee, traveling some two thousand kilometers, finding shelter in a community of rural workers until he was rescued and returned to his indigenous community of origin by Sydney Possuelo, a FUNAI indigenist, many years later. Karapiru died this year, 2021, a victim of Covid-19, in the village Tiracambu (in the state of Maranhão), with his people, the Awá-Guajá (see the article by Renata Otto in this catalog). Now Karapiru lives in the stars and in Andrea Tonacci’s film.
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The forumdoc.bh 2021 is dedicated to him, to indigenist Rieli Franciscato, and all the indigenous people victimized by the violence of colonization or by the omission of the Brazilian State. To those who survive, who insist on living freely, “isolated” like the Piripkura. They are, for us, like fireflies, whose intermittent glow guides us in the political darkness of our time (stirring in us the belief that another world is possible), in contrast to the “fierce projectors” and the blinding lights of capitalist progress, as Didi-Huberman (2011) wrote. Through the debates it promotes, this Festival is also proposed as an occasion for reflection and action, politically situated, against the intensification and expansion of anti-indigenous policies. The alliances between the government and mining companies, agribusiness corporations, the dismantling of environmental and indigenous policies, and above all, the risk of passing the unconstitutional time frame thesis, against which the indigenous movement is bravely protesting, will be the object of our critical thinking. An alliance, through images, with indigenous people, indigenous leaders, and cinematographers - so that we may add to the actions of vigil against the elimination of the fundamental rights of the peoples. We also rise up against the disappearance of images, proposing as an opening activity of the Festival, a debate around the serious situation of the archives in the country. Finally, following a virtual forumdoc due to the pandemic, we decided to return in 2021 with part of the program in person. It revolves around the video installation dedicated to images from the VNA Collection. In the deadly context in which we live, the plans of Inéditos inevitáveis numa experiência sensorial are like devices to make life last. Let it be a symbolic and political return with cinema, a way to mark our commitments and alliances, with the VNA and with the indigenous peoples, who are not figures condemned to the past - on the contrary, they are light years ahead of us, this is a project for the future!
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Installation: “Inéditos inevitáveis numa experiência sensorial: fragmentos do Acervo Vídeo nas Aldeias” LOCATION: GALERIA MARI’STELLA TRISTÃO DATE: NOVEMBER 18TH TO DECEMBER 2ND Audiovisual and photography collection: Vincent Carelli, featuring Altair Paixão CONCEPT AND EXHIBIT DESIGN: ANDRÉ HAUCK INSTALLATION COORDINATION: RENATA OTTO Hyper-local, the six unpublished excerpts of this installation become unavoidable already. Offered by Vincent Carelli as a sample of the collection generated during 35 years by the Vídeo nas Aldeias project, these raw sequences appear as if they were waiting to be shown. Better, to show us, continuously, their power of synthesis. They reveal things of which we had perhaps already thought nebulously but which, upon viewing, take on an entirely significant tenor. The Indians, if they saw them, would understand everything! We might be able to see the richness, the beauty, the skill, the knowledge of the Others parading there: The little Yanomami boy plays in the stream, naked, tiny body, legs up, head down, dips his bangs in his hair, runs around smiling. His father, sitting nearby, absorbed in thought, waits for the others on their way home from the forest. The Guarani Kaiowá teenagers dance with the elders. The community is gathered; it is a party day! The boys are being tested. They know that they are the masters of the future, cheerfully arrogant, showing off their courage to live. The Xavante men are absent, preparing for a ritual. They paint themselves as jaguars and draw on the most traditional paint some numbers: 1995, the year they were caught. The old Kohokrenhum Hawkeye watches the ritual performed for him by his Krahô relatives, with his unassuming elegance, drinking a cup of coffee. A group of Wajãpi men cut down a giant tree, bark the trunk, cut the bark into strips, hammer the strips with a stick; from the blow, they become malleable. They bury these bangs in the black clay. They will be used to make the Pacu fish masks. The Kanoe woman stands next to the old Akuntsu man. It is the first time they come together in front of the whites. No one speaks a language intelligible to the other. However, she inhales the powder that the old Akuntsu has prepared. Then she begins to speak the language of the birds. See, you, what you know.
Vincent Carelli ‘SUPER-V’ (1995)
Vincent Carelli ‘SUPER-V’ (1995)
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ISOLADOS DE CORUMBIARA THE ISOLATED FROM CORUMBIARA Sessão Xamãnica (citada no filme Corumbiara) filmada em Hi-8 por Vincent Carelli, 1995, 58’ Shamanic Session (mentioned in the film Corumbiara) shot on Hi-8 by Vincent Carelli, 1995, 58’ contato contact • olinda@videonasaldeias.org.br Poucas semanas depois de estabelecermos o primeiro contato com os Kanoê, povo isolado da Gleba Corumbiara no Sul de Rondônia, Txinamanty e sua prima Omoró Kanoê conduziram um “contato-sequestro” das mulheres dos isolados Akuntsu. No dia seguinte, quando voltamos a aldeia, Konibu, o chefe Akuntsu, já tinha se apresentado e nos esperava amigavelmente. Txinamanty havia trazido sementes de angico – como presente - para conduzir uma sessão xamãnica. Sem saber o que iria acontecer, sentei na beira da clareira e filmei duas horas consecutivas sem sair do lugar. (Vincent Carelli) A few weeks after we had established our first contact with the Kanoê, an isolated people from Gleba Corumbiara, in southern Rondônia, Txinamanty and her cousin, Omoró Kanoê, performed a “contact-abduction” of women from the isolated people of Akuntsu. The next day, when we returned to the village, Konibu, chief of the Akuntsu, had already introduced himself and was kindly waiting for us. Txinamanty had brought angico seeds – as a gift – to carry out a shamanic session. Not knowing what was going to happen, I sat still on the side of the clearing and shot for two uninterrupted hours. (Vincent Carelli)
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INTERCÂMBIO KRAHÔ E GAVIÃO THE KRAHÔ AND GAVIÃO EXCHANGE Festa de iniciação do Kêtuwajê (inédito) filmada em Betacam por Vincent Carelli, 1995, 64’ Kêtuwajê initiation festivity (unreleased) shot on Betacam by Vincent Carelli, 1995, 64’ contato contact • olinda@videonasaldeias.org.br Em 1992, levamos o Krohokrenhum e a sua turma de jovens aos “parentes” Krahô, para participar de um dos poucos cerimoniais que o Krohokrenhum não havia aprendido em sua juventude. Esta viagem está citada no filme Adeus Capitão. Em 1993, os Krahô retornaram a visita aos Gavião, consolidando a ponte estabelecida entre as aldeias. Registrei este intercâmbio mais uma vez em 1995, pois os Krahô haviam se tornado uma referência cultural para os Gavião. (V.C.) In 1992, we took Krohokrenhum and his group of young people to the Krahô “relatives”, to take part in one of the few ceremonies that Krohokrenhum had not learned in his youth. This trip is mentioned in the film Goodbye, Captain (Adeus, Capitão, to be released). In 1993, the Krahô went to visit the Gavião in return, consolidating the bridge between the two villages. I documented this exchange once again in 1995, as the Krahô had become a cultural reference for the Gavião. (V.C.)
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XAVANTE DE SANGRADOURO THE XAVANTE FROM SANGRADOURO Nominação das Mulheres (cenas do filme Pi’õnhitsi, Mulheres Xavante sem nome) filmado em S-VHS por Vincent Carelli, 1995, 62’ Naming the Women (excerpts from the film Pi’õnhitsi, Unnamed Xavante Women) shot on S-VHS by Vincent Carelli, 1995, 62’ contato contact • olinda@videonasaldeias.org.br Divino Tserewahú era um dos alunos do coletivo de etnias que compunham a equipe do Programa de Índio, na TV Universidade da UFMT. Como o Divino era protagonista e cinegrafista do cerimonial, ele me chamou para ajudá-lo a fazer este registro deste importante e raro cerimonial de nominação de mulheres na aldeia Xavante de Sangradouro e filmá-lo em ação. (V.C.) Divino Tserewahú was a student from the collective of ethnicities that were part of the staff of the Indian Program, on TV Universidade channel, at UFMT (Federal University of Mato Grosso). As Divino was both a leading figure and the filmmaker at the ceremony, he asked me to help him document this important and rare ritual for the naming of women in the Xavante village, in Sangradouro, and film him in action. (V.C.)
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WAJÃPI
Festa do Pacu-Açu (inédito) filmado em S-VHS por Vincent Carelli, 1996, 64’ Pacu-Açu Festivity (unreleased) shot on S-VHS by Vincent Carelli, 1996, 64’ contato contact • olinda@videonasaldeias.org.br A vida cerimonial dos Wajãpi é intensa, marcada por grandes ciclos de rituais como a festa do milho, a festa do mel e as danças dos peixes. Estas danças são celebradas mais em momentos de crise, para agradar e aplacar Ianejar, herói criador, que sempre ameaça destruir a humanidade. A partir da experiência de representação das lendas Wajãpi para o filme Segredos da Mata, dirigida por Seremeté, os velhos Wajãpi se animaram em realizar a grande festa do Pacu Açu, parcialmente exibida neste segmento. (V.C.) The Wajãpi people have an intense ceremonial life, characterized by large cycles of rituals such as the corn festival, the honey festival and the fish dances. These dances are usually performed in times of crisis, to please and appease Ianejar, the creation hero, who always threatens to destroy humanity. After the experience of representing the Wajãpi myths for the film Jungle Secrets, directed by Seremeté, the Wajãpi elderly were excited to hold the great Pacu-Açu festivity, partially shown in this excerpt. (V.C.)
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YANOMAMI DA REGIÃO DO ALALAÚ (INÉDITO) THE YANOMAMI FROM THE ALALAÚ REGION (UNRELEASED) Ataque a Expedição de vacina filmado em Hi-8 e Betacam por Vincent Carelli, 1997, 60’ Attack on the Vaccine Expedition shot on Hi-8 and Betacam by Vincent Carelli, 1997, 60’ contato contact • olinda@videonasaldeias.org.br Ao acompanhar a equipe de saúde numa campanha de vacinação em área Yanomami da região do Alalaú, em Roraima, filmei o retorno dos vacinados - pela mata - à aldeia. A certa altura, fomos surpreendidos por uma tempestade de raios e trovoadas. Corremos até a aldeia, que encontramos em pé de guerra. Membros de um grupo inimigo teriam tentado flechar a caravana. Por alguns instantes, vivemos “os tempos da guerra”. (V.C.) Accompanying the healthcare team on a vaccination campaign in Yanomami lands in the Alalaú region, in Roraima, I documented the return of the vaccinated - through the forest - to the village. At some point, we were taken aback by lightning and thunderstorms. We ran to the village, which we found to be on a warpath. Members of an enemy group allegedly tried to attack the caravan with arrows. For a while, we experienced “the war times”. (V.C.)
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KAIOWA DE PANAMBIZINHO THE KAIOWA FROM PANAMBIZINHO
Festa do Kunumi Pepy filmado em Betacam por Altair Paixão e Vincent Carelli, 1999 (citada no filme Martírio, de 2016 e na série Índios no Brasil, de 2000), 46’ Kunumi Pepy festivity, shot on Betacam by Altair Paixão and Vincent Carelli, 1999 (mentioned in the film Martyrdom, 2016, and in the video series Indians in Brazil, 2000), 46’ contato contact • olinda@videonasaldeias.org.br Na aldeia Kaiowa de Panambizinho, perto de Dourados no Mato Grosso do Sul, ao filmarmos a série Índios no Brasil para a TV Escola, tivemos a sorte de registrar a iniciação dos jovens, o “Kunumi Pepy”. Este cerimonial, raramente celebrado nos dias de hoje, foi conduzido pelo rezador Lauro, contemporâneo do lendário Pai Chiquito. (V.C.) In the Kaiowa village in Panambizinho, near the city of Dourados, in Mato Grosso do Sul, while we were filming the video series Indians in Brazil for TV Escola channel, we were lucky to document the initiation of the young, the “Kunumi Pepy”. This ceremony, which is rarely celebrated nowadays, was led by prayer-maker Lauro, a contemporary of the legendary Father Chiquito. (V.C.)
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A FESTA DA MOÇA THE GIRL’S CELEBRATION Mato Grosso, 1987, cor, 18’ direção director • Vincent Carelli fotografia cinematography • Vincent Carelli montagem editing • Cleiton Capelossi, Antonio Jordão, Valdir Afonso produção production • Vídeo nas Aldeias contato contact • olinda@videonasaldeias.org.br O encontro dos índios Nambiquara com a sua própria imagem durante um ritual de iniciação feminino. Ao assistirem suas imagens na TV, eles se decepcionam e criticam o excesso de roupas. A festa seguinte é realizada e registrada com todo o rigor da tradição. Eufóricos com o resultado, eles resolvem retomar, diante da câmera, a furação de lábio e de nariz dos jovens, costume que haviam abandonado há mais de vinte anos. The encounter of the Nambikwara Indians with their own image during a female initiation ritual. When they watch their images on TV, they are disappointed and criticize the excess of clothing. The following party is held and recorded with all the rigor of tradition. Euphoric with the result, they decide to take up the lip-and nose-piercing of boys again in front of the camera, re-establishing a tradition abandoned for over 20 years.
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A ARCA DOS ZO’É MEETING ANCESTORS Amapá, 1993, cor, 22’ direção director • Vincent Carelli, Dominique Tilkin Gallois fotografia cinematography • Vincent Carelli montagem editing •Tutu Nunes som sound • Vincent Carelli produção production • Vídeo nas Aldeias contato contact • olinda@videonasaldeias.org.br Os índios Wajãpi, que conheceram os Zo’é através de imagens em vídeo, decidem ir ao encontro destes índios recém contactados no norte do Pará e documentá-los. Os Zo’é proporcionam aos visitantes o reencontro com o modo de vida e os conhecimentos dos seus ancestrais. Os Wajãpi, em troca, informam os Zo’é sobre os perigos do mundo branco que se aproxima, e que os isolados estão ansiosos por conhecer. The Wajãpi Indians, who got to know the Zo’é through video images, decide to meet these newly contacted Indians in northern Pará and document them. The Zo’é allow visitors to rediscover the way of life and knowledge of their ancestors. The Wajãpi, in turn, inform the Zo’é of the dangers of the approaching white world, which the isolated ones are eager to know.
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YÃKWÁ, O BANQUETE DOS ESPÍRITOS YÃKWÁ, THE BANQUET OF THE SPIRITS Mato Grosso, 1995, Cor, 54’ direção director • Virgínia Valadão fotografia cinematography • Altair Paixão e Vincent Carelli montagem editing • Tutu Nunes produção production • Fausto Campoli - Vídeo nas Aldeias contato contact • olinda@videonasaldeias.org.br Documentário sobre o ritual Yãkwá, dos índios Enawenê Nawê. Todo ano, ao longo de sete meses, os espíritos são reverenciados com alimentos, cantos e danças para assim, protegerem a comunidade. This is a documentary about the Yãkwa, the most important ritual of the Enauênê- Nauê Indians. For seven months every year, the spirits are venerated with offerings of food, song and dance so they will protect the community.
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EU JÁ FUI SEU IRMÃO WE GATHER AS A FAMILY Pará/Tocantins, 1993, cor, 32’ direção director • Vincent Carelli fotografia cinematography • Vincent Carelli montagem editing • Tutu Nunes som sound • Vincent Carelli produção production • Vídeo nas Aldeias contato contact • olinda@videonasaldeias.org.br Um documentário sobre o intercâmbio cultural entre os Parakatêje, do Pará e os Krahô do Tocantins, que embora falem a mesma língua, nunca haviam se encontrado antes. Kokrenum, líder dos Parakatêjê e preocupado com a descaracterização do seu povo, resolve ir conhecer uma aldeia Krahô que conserva muitas de suas tradições. Um ano depois, os Paraktêjê retribuem o convite. No final, os chefes selam um pacto de amizade entre os dois povos. This film documents a cultural exchange between the Parkatêjê (Gavião) of the Para state and their “relatives”, the Krahô of Tocantins. Kokrenum, chief of the Parkatêjê, organizes a visit to the Krahô, who speak their language and maintain their traditions.. The following year, the Parkatêjê return the invitation and the Krahô travel to kokren’s village. The two chiefs discuss cultural issues and seal a pact of friendship between their groups.
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PI’ÕNHITSI – MULHERES XAVANTE SEM NOME PI’ÕNHITSI, UNNAMED XAVANTE WOMEN Mato Grosso, 2009, cor, 56’ direção director • Divino Tserewahú, Tiago Campos Torres roteiro screenplay • Divino Tserewahú, Tiago Campos Torres, Vincent Carelli, Amandine Goisbault fotografia cinematography • Divino Tserewahú, Tiago Campos Torres montagem editing • Tiago Campos Torres produção production • Vídeo nas Aldeias contato contact • olinda@videonasaldeias.org.br Desde 2002, Divino Tserewahú tenta produzir um filme sobre o ritual de iniciação feminino, que já não se pratica em nenhuma outra aldeia Xavante, mas desde o começo das filmagens todas as tentativas foram interrompidas. No filme, jovens e velhos debatem sobre as dificuldades e resistências para a realização desta festa. Since 2002, Divino Tserewahú tried to make a film about the female initiation rite, no longer practiced in any other Xavante village, but since he started filming, the ritual is interrupted. Young and old discuss the difficulties and resistances involved in making this celebration.
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TAVA, A CASA DE PEDRA TAVA, THE STONE HOUSE Brasil e Argentina, , 2012, cor, 78’ direção director • Vincent Carelli, Patricia Ferreira (Yxapy), Ariel Duarte Ortega, Ernesto Ignacio de Carvalho fotografia cinematography • Vincent Carelli, Patricia Ferreira (Yxapy), Ariel Duarte Ortega, Ernesto Ignacio de Carvalho montagem editing • Tita (Tatiana Soares de Almeida) som sound • Vincent Carelli, Patricia Ferreira (Keretxu), Ariel Duarte Ortega, Ernesto Ignacio de Carvalho produção production • Vídeo nas Aldeias contato contact • olinda@videonasaldeias.org.br Memória, mito e história Mbya-Guarani sobre as reduções jesuíticas e a guerra guaranítica do século XVII no Brasil, Paraguai e Argentina. Mbyá-Guarani myth, history and memory about Jesuit reductions and the ‘guaranítica’ war of 17th century that happened in Brazil, Paraguai and Argentina.
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MARTÍRIO MARTYRDOM Mato Grosso do Sul, 2016, cor, 162’ direção director • Vincent Carelli em co-direção com Ernesto de Carvalho e Tita roteiro screenplay • Vincent Carelli e Tita fotografia cinematography • Ernesto de Carvalho montagem editing • Tita som sound • Gera Vieira, Nicolas Hallet produção production • Papo Amarelo & Vídeo nas Aldeias contato contact • olinda@videonasaldeias.org.br O retorno ao princípio da grande marcha de retomada dos territórios sagrados Guarani Kaiowá através das filmagens de Vincent Carelli, que registrou o nascedouro do movimento na década de 1980. Vinte anos mais tarde, tomado pelos relatos de sucessivos massacres, Carelli busca as origens deste genocídio, um conflito de forças desproporcionais: a insurgência pacífica e obstinada dos despossuídos Guarani Kaiowá frente ao poderoso aparato do agronegócio. The return of the big march for the retaking of the holy territories Guarani Kaiowá through the filming of Vincent Carelli who registered the origin of the movement in the 1980s. Twenty years later, taken by the reports of successive massacres, Carelli looks for the origins of that genocide, a conflict of disproportional powers: a peaceful and persistent protest Guarani Kaiowá against the powerful apparatus of the agrobusiness.
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YAÕKWA, IMAGEM E MEMÓRIA YAÕKWA, IMAGE AND MEMORY Pernambuco/ Mato Grosso, 2020, Cor, 21’ direção director • Rita Carelli, Vincent Carelli fotografia cinematography • Tiago Campos Torres imagens de arquivo • Altair Paixão e Vincent Carelli montagem editing • Tiago Campos Torres som sound • Wallace Nogueira produção production • Vídeo nas Aldeias contato contact • olinda@videonasaldeias.org.br O Vídeo nas Aldeias realizou com os índios Enawenê Nawê, durante quinze anos, extensos registros do Yaõkwa, seu mais longo ritual, em que os mestres de cerimônia puxam, durante sete meses, uma miríade de cantos, afim de manter o equilíbrio do mundo terreno como mundo espiritual. Neste filme, outros quinze anos mais tarde, os Enawenê Nawê reencontram essas imagens e, com elas, parentes falecidos, costumes que caíram em desuso e preciosos cantos rituais. Video In The Villages realized with the Enawenê Nawê indigenous people, during fifteen years, extensive records of Yaõkwa, their longest ritual, in which masters of the ceremony sing, for seven months, a myriad of songs in order to maintain the balance of the earthly and spiritual world. In this film, fifteen years later, the Enawenê Nawê rediscover these images and, with them, deceased relatives, habits that got disused and precious ritual songs.
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CORUMBIARA Brasil, 2009, cor, 117’ direção director • Vincent Carelli fotografia cinematography • Vincent Carelli, Altair Paixão montagem editing • Mari Corrêa som sound • Beto Ricardo, Vincent Carelli produção production • Vídeo nas Aldeias contato contact • olinda@videonasaldeias.org.br Em 1985, o indigenista Marcelo Santos, denuncia um massacre de índios na Gleba Corumbiara (RO), e Vincent Carelli filma o que resta das evidências. Bárbaro demais, o caso passa por fantasia, e cai no esquecimento. Marcelo e sua equipe levam anos para encontrar os sobreviventes. Duas décadas depois, Corumbiara revela essa busca e a versão dos índios… In 1985, a daring worker of the Bureau of Indian Affairs in Brazil denounced a massacre in the lawless region of Corumbiara. The investigations turned to a series of Indian genocides in the area. Spanning 20 years, the film shows the search for proof and the version of the survivors, when they were finally found, hiding in the forest, terrified of white men…
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SERRAS DA DESORDEM Brasil, 2005, cor/p&b, 135’ direção director • Andrea Tonacci fotografia cinematography • Aloysio Raulino, Alziro Barbosa, Fernando Coster montagem editing • Cristina Amaral som sound • Valéria Martins Ferro, René Brasil produção production • Extremart / Andrea Tonacci contato contact • extremart@extremart.com.br Carapirú é um índio nômade, que após ter seu grupo familiar massacrado num ataque surpresa de fazendeiros, consegue escapar, e durante 10 anos perambula sozinho pelas serras do Brasil central, até ser capturado a 2000 quilômetros de distância do seu ponto de fuga/partida. O projeto deve ser visualizado como a ficção documental de uma investigação filmada do encontro de duas humanidades distintas, de duas linguagens, que procura, diluir na narrativa, a linha divisória entre elas, ou entre a ficção e o documentário, entre a realidade e a representação. (Andrea Tonacci) Carapiru is a nomad indigenous man that after having his family group massacred in a surprise assault by farmers escapes and wonders alone for ten years though mountains of central Brazil, until being captured, 2.000 kilometers away from the start of his journey/escape. This project must be seen as a documental fiction of an investigation of the filming of the encounter of two different mankinds, of two languages, though the intention to dilute in the narrative, the borderline between these mankinds, or between fiction and documentary, between reality and representation. (Andrea Tonacci)
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PIRIPKURA Brasil, 2017, cor, 82’ direção director • Mariana Oliva, Renata Terra, Bruno Jorge roteiro screenplay • Mariana Oliva, Renata Terra fotografia cinematography • Bruno Jorge, Dado Carlin montagem editing • Renata Terra, Leopoldo Nakata produção production • Mariana Oliva / Zeza Filmes contato contact • Zeza Filmes Dois índios Piripkura sobrevivem cercados por fazendas e madeireiros numa área protegida no meio da Floresta Amazônica. Jair Candor, da FUNAI, acompanha os dois desde 1989. Realiza expedições monitorando vestígios que comprovem a presença deles na floresta, a fim de impedir a invasão da área. Packyî e Tamandua vivem com um facão, um machado e uma tocha. O filme aborda consequências de uma tragédia e revela resiliência e autonomia. Two Indians of the Piripkura people survive surrounded by farms and loggers in a protected area in Amazon Forest. Jair Candor (FUNAI) has been following the two since 1989. He conducts expeditions, monitoring traces that prove their presence in order to prevent that area from being invaded. Packyî and Tamandua live with a machete, a dull axe and a torch. The film examines the consequences of a tragedy and reveals resilience and autonomy.
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Communities of care: fabulations, confrontations and healing ethics
Mostra Comunidades de cuidado: fabulações, enfrentamentos e éticas de cura
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Comunidades de cuidado: fabulações, enfrentamentos e éticas de cura ARTHUR MEDRADO, CARLA ITALIANO, CORA LIMA e MILENE MIGLIANO O tempo foi o meu mestre que me ensinou a curar (Canto tradicional)
“O que é cura para você?” É impulsionada por essa pergunta provocadora e sem resolução, tomada de empréstimo do filme fundamental de Castiel Vitorino Brasileiro Lembrar daquilo que esqueci, que a jornada desta mostra se modula. Frente às incontáveis possibilidades de resposta, nos lançamos ao desafio de pensar a ideia de cura no cinema, em particular brasileiro e realizado nos últimos anos, junto às imagens sonoras que pensam uma existência partilhada no difícil cenário atual, permeado por retrocessos e apagamentos, mas também por novos modos criativos que a eles se opõem.1 Conceito plural e em disputa, por vezes inapreensível, e por isso uma via estimulante de aproximação às realidades vividas e propostas estéticas em suas estratégias de existência. Pela via do dicionário, o termo denomina o “ato, processo ou efeito de curar(-se)”,2 definição que, embora carregue a cegueira ocidental que move o ímpeto colonizador de categorização de tudo e todes, também revela a cura tanto como processo quanto como efeito, gesto simultâneo para si e outrem, funcionando como uma instigante força motriz. Mas se, num primeiro momento, a palavra evoca o tratamento e restabelecimento da saúde, em especial pelo viés das ciências médicas no senso comum, é fundamental retirá-la desse lugar apaziguador, ao expandi-la para múltiplas formas de conhecimentos e vivências, nas cosmologias tradicionais e
1. O movimento desta mostra encontra eco em diferentes iniciativas recentes no Brasil: em publicações, mostras e a própria produção artística a pensar práticas de cura a partir de perspectivas decoloniais, além de debates às voltas com a aproximação entre a curadoria e cura, como nas mesas on-line promovidas pelo IX CachoeiraDoc sob o tema “Festival impossível curadoria provisória”, em maio de 2020. Dentre os textos, destacamos os artigos “A cura pelo cinema”, de Carol Almeida (livro Outros Críticos – O outro é uma queda, 2018), e “Um sopro de cura: fruição estética e afetação em corpos audiovisuais para cuidar de traumas coloniais”, de Milene Migliano e Thiago Rizan (Rebeca, ano 9, n. 2, 2020), entre outros. No campo de mostras e festivais, destacamos ainda a I Mostra Cine Flecha, realizada on-line em outubro de 2020, que teve como subtítulo “(Re)Existir e Curar” e apresentou recente produção audiovisual de diferentes coletivos e realizadores e realizadoras indígenas do Brasil. 2. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001.
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conexões entre povos “afropindorâmicas”,3 nos modos insurgentes de estar no mundo frente às ficções de normatividades históricas, em especial sob a égide de movimentos antirracistas, feministas, queer, que convocam a rearticulação de práticas de cura e, sobretudo, a formação de comunidades voltadas para um cuidado sob bases outras. Um desafio que se desdobra em novas camadas no presente contexto de pandemia e isolamento social, com o seu brutal poder de reconfiguração de tempos, espaços e afetos. Castiel nos apresenta a cura como um “processo perecível de liberdade”. Se acionarmos a categoria tempo, talvez possamos nos aproximar de um estado que nos enlaça, passível de deterioração, mas que se renova como tudo o que é orgânico, que tem vida. O momento da cura pode ser o fim e o começo, assim como é um meio, como tantas vezes morremos e nascemos no tempo da Terra, esperando e vendo outros tempos chegarem. Desse modo, outras indagações vêm se somar à inicial, em uma profusão de interrogações: o que poderíamos chamar de éticas de cura? Que gestos podemos hoje, a fim de criar esses espaços perecíveis de liberdade? Quais as ações possíveis ao corpo, rumo a um espaço de liberdade na arte, na clínica e na vida? Qual a potência de um cuidado com outre que se dá no encontro com a câmera que filma e escuta? Nos meses que levamos a conceber a mostra, com uma metodologia gestada a várias mentes, mãos e corações, as referências vieram de diferentes campos, teóricos e artísticos, bem como da perspectiva daquilo que nos toca enquanto espectadoras/ es desejantes – reconhecendo e assumindo os riscos de tal posicionamento subjetivo. Um primeiro passo foi pensar a cura longe de definições hegemônicas e ingênuas; não uma finalidade em si, ou um télos a ser alcançado individualmente, e sim como um meio e tentativa transformadores coletivamente. Cura como uma experiência e uma ideia, um equilíbrio momentâneo e efêmero.4 Como lágrimas que deságuam e podem ou não irromper em soluços. Uma estética que diz respeito às formas que desviam dos parâmetros cristãos: o céu, a salvação, a culpa e punições. Castiel nos apresenta a pergunta “Como criar um espaço que não seja só de resistência, mas também de criação?”5 Partindo desse mote, digamos, conceitual, e mantendo no horizonte a vigorosa produção audiovisual brasileira encabeçada por sujeitos pertencentes a minorias de gênero, étnico-raciais de orientação sexual, que por décadas foram apartados dos modos de realização e exibição cinematográfica tradicionais, outras noções passaram a integrar nosso vocabulário: cuidado, amor, comunidade. Palavras que até poderiam ser consideradas ideias abstratas se não encontrassem lastro na concretude desses corpos à margem, em seu caráter intenso e insubmisso. Mais do que outros paradigmas estéticos, o que essa seleção de filmes almeja é despertar para epistemes que pulsam entre as cidades, as vidas confinadas pela pandemia, nas 3. Expressão que abrigaria povos quilombolas, negros e indígenas, conforme elabora Antônio Bispo dos Santos, teórico e liderança do Quilombo Saco-Curtume (Piauí). In: SANTOS, Antônio Bispo. Colonização, quilombos: modos e significações. Brasília: UnB, 2015. 4. Como Castiel nos ensina em suas falas e trabalhos. 5. 11º Encontro da Formação Aberta de Aquilombamento nas Margens. Disponível em: https://www.youtube. com/watch?v=Sw_z5A2GnKE&ab_channel=MargensCl%C3%ADnicas. Acesso em 25/10/21.
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brechas e espaços nos quais muito amor se reinventa, enfrentando a violência com sonhos, (auto)cuidados e diversas propostas de curas. Nesse sentido, torna-se fundamental pensar o papel do amor como ferramenta de transformação social em todas as esferas, junto a bell hooks: “Quando escolhemos amar, escolhemos nos mover contra o medo – contra a alienação e separação. A escolha por amar é uma escolha por conectar – por nos encontrarmos com o outro.”6 Atualmente, o que se vê dentro das incertezas é um desejo e um objetivo que toma forma muitas vezes em conjunto, entendendo que o cuidado com nós mesmes e com outres que nos cercam e também nos cuidam [humanas e não-humanas] é um possível caminho para persistir no amor. E não só de amor passivo vive a humanidade, mas é por amor que devemos enfrentá-la. A existência da espécie humana no mundo chegou num ponto crítico em que devemos dizer não. É necessário que este enfrentamento à guerra em seus muitos disfarces seja categórico, irreverente, cheio de energia, assim como é a própria guerra. Devemos propor o inverso, linhas de fuga sem destino certo, encontros que nesta proposta curatorial se delineiam entre debates, mesas on-line, conferência, textos e filmes que integram a programação. Frente ao desafio de categorização, aproximamos os dezenove filmes da mostra a partir de três agrupamentos tão provisórios quanto instigantes, de modo algum definitivos, que nos convidam a visitar comunidades de cuidado: enfrentamentos, éticas de cura e fabulações, como veremos a seguir.
Enfrentamentos, ou corpo como arquivo Audre Lorde, em “A poesia não é um luxo”,7 demonstra como a criação, sempre restrita aos corpos brancos e masculinos, e como o enfrentamento ao cartesianismo do “‘penso, logo existo’, é sussurrado pela mãe negra com um ‘sinto, logo posso ser livre’. A poesia cria a linguagem para expressar e registrar essa demanda revolucionária, a implementação da liberdade” (LORDE, 2019, p. 48). Ao eleger os sonhos como direção para a liberdade, no que diz respeito ao gesto feminino, ela nos coloca que (...) a força das mulheres está em reconhecer as diferenças entre nós como algo produtivo e em defender sem culpa as distorções que herdamos, mas que agora são nossas e cabe a nós alterar. A raiva das mulheres pode transformar a diferença, por meio da compreensão, em poder. Pois da raiva entre semelhantes nasce a mudança, não a destruição, e o desconforto e o sentimento de perda que ela costuma causar não são fatais, mas sintomas de crescimento. (LORDE, 2019, p. 164)
A raiva de que fala Lorde, passível de transformar a diferença em poder de mudanças efetivas, escancara como o confronto direto pode também operar enquanto uma estratégia de lidar com os adoecimentos de si e do mundo. Combater um projeto 6. hooks, bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. Editora Elefante, 2021. p. 209. 7. Capítulo de Irmã Outsider. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
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pautado pelo extermínio, na esteira do que propõe Jota Mombaça com uma redistribuição anticolonial da violência: “que modalidades de cuidado político devemos gerar a fim de sanar as feridas que a violência (contra nós e a nossa própria) produz em nós mesmas?”8 O paraíso não chega, mas talvez o que se evoque nas obras aqui selecionadas sejam justamente essas tentativas que libertam e permitem enfrentamentos ao sistema: não banalizar a violência, questionar a medicina enquanto instituição disciplinadora e homogeneizante, forjar outras formas de estar em grupo, de produzir e criar discursos artísticos como afirmação de existência coletiva. Em Recado do Bendegó/Kaminhos da pedra, díptico de Gustavo Caboco, há um encontro com imaginários indígenas, desta vez situado junto ao povo Wapichana, em Roraima e Paraná. A ética da pedra que chega a partir da transmutação de uma árvore em monte, traz o sentido de viver junto e cantar essa vida para que o caminho siga com os pés que forem possíveis, inclusive resistindo ao apagamento de sua memória diante do incêndio do Museu Nacional no Rio de Janeiro. Na animação, a música é visualidade concatenada para ser vista em diálogo com o vídeo Recado do Bendegó, ambos trabalhos originalmente exibidos em proximidade na 34a Bienal de São Paulo, 2021. Já em Exercício de Arquivo #2, de Abiniel João Nascimento, o enfrentamento está na intervenção sobre os arquivos dos brancos em seus discursos históricos que atestam as tentativas sistemáticas de apagamento simbólico e literal contra os povos indígenas, convocando para isso outras dimensões de arquivo, por meio do corpo e de memórias por ele carregadas. O tempo de agora tem mostrado que o estado de violências reservado a certos grupos se deteriora na medida em que se desenham novas formas de confrontação. A exaustão causada por essa “atualização perpétua da injustiça como fantasia de controle”9 só poderá oferecer saídas, que têm sido arquitetadas de forma mais sutil do que se imagina. E com sutil não se quer dizer dócil, muito menos fácil, menos ainda sem dor. Algo latente em Pérola, filme-processo disruptivo realizado coletivamente junto a um grupo de jovens mulheres em situação de rua. Trata-se de um filme fascinante no sentido de transformar a diferença em poder – também de fazer cinema –, e com raiva, ao recriar a existência da vida das ruas. Como processo ele inventa junto aos enfrentamentos ao status quo tantas vezes cego. Tão cego como é o imaginário vigente que violenta os corpos jovens em Rolê - histórias dos rolezinhos. No longa de Vladimir Seixas, o enfrentamento se faz nos corpos que atualizam a luta contra o racismo soterrado mas firme, tal qual as estruturas confrontadas pelos corpos jovens e negros nos/dos shopping centers. No filme, em diferentes dimensões de performances, em se manter vivo, atento e forte diante de violações dos seguranças, Rolê narra mais uma das batalhas da negritude nas cidades brasileiras e a potência de transformação nas vidas pulsantes. Fechando os modos de enfrentamento, e retomando a noção de pandemia sob outra ótica, temos dois filmes, um contemporâneo brasileiro e um estrangeiro da 8. Mombaça, Jota. “Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência!” Disponível em https://issuu.com/amilcarpacker/docs/rumo_a_uma_redistribuic__a__o_da_vi. Acesso em 25/10/21. p. 14. 9. Mombaça. Idem, p. 4.
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década de 1990, que evidenciam que o HIV/Aids são experiências que se constroem no tempo. Documentários feitos em momentos distintos, mas que se aproximam por apostarem em experiências de sujeitos que se livram da culpa, da posição de vítima e a partir da responsabilização se colocam frente à câmera como corpos-vivos falando de vida. Ambos nos apresentam outras possibilidades para o papel da produção de discursos artísticos sobre um vírus que (des)conhecemos há no mínimo quatro décadas. Quais projetos éticos-estéticos estão envolvidos nessas propostas? O filme do estadunidense Marlon Riggs, Non, je ne regrette rien (No regret), nos possibilita um acesso a uma ancestralidade positiva,10 que vemos performar a vida no contemporâneo Deus tem AIDS, dirigido por Fábio Leal e Gustavo Vinagre. Filmes que quebram o silêncio e povoam a tela apresentando tentativas de cura para o que (ainda) não tem cura. Que nos levam à urgência de entender que a AIDS não é uma doença do outro, que o HIV é um vírus, atualmente com possibilidade de se tornar indetectável,11 a partir do avanço do tratamento. É preciso eliminar monstros, construir outros e acabar com a ideia de outridade. E isso é possível justamente quando se criam condições para que corpos vivendo com HIV falem, inclusive, quebrando o silêncio garantido por lei. Tais corpos parecem operar numa performatividade da urgência. Não porque estejam à beira da morte, mas justamente porque precisam reafirmar sua potência de vida. Preciado nos ensina que o corpo é objeto central da política. Poderíamos pensar que os filmes dessa mostra afirmam a ideia inicial de queer, não se restringindo apenas à comunidade LGBTQIA+, mas se relacionando com outras vidas à margem: quem mora na rua, quem é patologizado, pretes, mulheres e pobres. Corporeidades em movimento que em tela não só nos possibilitam um contato com uma ética/ estética, mas também com um saber-do-corpo.
Éticas de cura, ou corpo como sonho e ancestralidade Este agrupamento reúne filmes que explicitamente tematizam práticas curativas a partir de uma gama de epistemologias e conhecimentos. A começar com o curta de Castiel que inicia este texto. Mostrando ser possível construir linhas finas, ligações, laços, formando desenhos, constelações, modos de se conectar a saberes que estão para além e, por isso mesmo, com poder de cura sobre os corpos; poderes que agem também pelos sonhos e ancestralidades, epistemes que transcendem a racionalidade binária. Formando lugares, sentimentos individuais e coletivos que irrompem trazendo novas propostas de sobre-vivências não atreladas a esse normal. Já faz um tempo que estamos descobrindo os efeitos danosos de uma pretensa normalidade. O mergulho no cotidiano de Afetadas, realizado por JEAN, nos leva ao encontro 10. Expressão proposta por Ronaldo Serruya no contexto do curso “Como eliminar monstros: discursos artísticos sobre HIV/ AIDS”. 11. Indetectável = Intransmissível e ponto final. Em 2018, a partir de estudos realizados pela pesquisa mosaico (entre 2007 e 2016), foi publicada pela UNAIDS nota técnica que afirma: uma pessoa que vive com HIV e está em tratamento há mais de 6 meses não transmite o vírus por via sexual, mesmo em relações sem proteção.
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de corporalidades encantadoras que superam o normal. Corpos plenos de desejos, enfrentando dificuldades e dores, ampliando sua gestualidade em ritualidades inventadas ao se preparar para a balada, para a expressão dançada, para os encontros e a performance, para ferver com os outros corpos que ali se alinham. O signo da performance que se inventa a partir de ancestralidades sonhadas pelos corpos também guia Aracá, outro curta de Abiniel João Nascimento a integrar a mostra, desde a encruza que recebe oferendas, até a dança silenciosa do manuseio da magia que misturam as ancestralidades negras e indígenas, o silenciamento de mulheres e de corpos encantados, enfeitiçantes, corpos calibãs.12 Daniel Munduruku, no texto “Da Gênese de Vexoá”, explica como o processo de silenciamento pelo qual passam os sujeitos indígenas na escola, quando lhes é arrancado de seus corpos o que trazem de “mágicos”, “a magia cede lugar para um princípio que escamoteia nosso desejo mais íntimo pela verdade: somos seres originados de uma matéria cósmica. Somos parte do universo e não seus donos.”13 Nesse sentido, em Encontro de Pajés - Yãy Tu Nunãhã Payexop, a cura coletiva se atualiza diante da câmera de Sueli Maxakali que, atenta, nos mostra a comunidade de seres que se reúnem na água, na terra, entre seus corpos, com os Yãmiy e conosco, que assistimos ao transe compartilhado e, afetadas, sentimos o arrepio na espinha que nos informa: estamos vivas! Também como nos diz Edna, que se posta enfaticamente diante da câmera cerrada no close das caixas de remédios espalhadas em um canto do quarto. Viva enquanto fala, narra, reconta e recria a trajetória da resistência de seu corpo diante da indústria farmacêutica, curando-o ali, no cinema. Fardo farmacopornográfico, como enuncia Preciado, que Edna carrega; no filme ela responde aos médicos que a receitavam cápsulas, drágeas, emplastos e um homem para chamar de seu. Mas a cura estava em outro lugar, no criar para voltar a sonhar e reverenciar as que vieram antes, como ela faz. A raiva que enfrenta e que tem potencial de curar, porque extrapola o limite do corpo, é compartilhada, pode se transformar inclusive em entendimento de que A vida é sempre um mistério, como anuncia o título do filme que acompanha o encontro do Movimento Nacional da População de Rua, no Rio Grande do Sul, em uma paragem plena de paisagens naturais. Entre as praias, dunas, manhãs, entardeceres e noites, os corpos dos associados performam danças, capoeiras, meditações e curas outras, éticas diferentes, conectando delírios/desenhos de outro mundo possível.
Fabulações, ou corpo como memória Seriam as imagens fabuladas nos filmes aqui presentes capazes de enfrentar e (des) construir os cinemas hegemônicos em suas ficções de poder particulares? Os gestos, procedimentos, montagens e remontagens dessas corpas deixam de ser sensações 12. Federici, Silvia. Calibã e a Bruxa, mulheres, corpo e acumulação primitiva. Trad. Coletivo Sycorax. Editora Elefante, 2017. 13. Munduruku, Daniel. “Da Gênese de Vexoá”. In: Vexoá, Nós sabemos, curadoria de Naine Terena, Pinacoteca do Estado, 2020. p. 130.
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passivas e compõem, com afetos, os mapas que orientam trajetos rumo aos encontros e aos efeitos dessas presenças em nossas vidas, mas também na de cada existência. Processos criativos como em O Elixir, de Marina Sandim e Lucas Campolina, que produzem lampejos de desejo com Raul e Martim em gestação, câmera que escuta as cantigas balbuciadas, o sussurro das sombras do vento nas folhas das plantas enquadradas em alguma parede da casa, um canto que serve de espaço para a escuta dos sonhos que seguem e virão. Há de se dizer que, na mostra, os encontros foram inúmeros, com seres viventes, sonhados, gestados, mágicos. Vemos em Nossos espíritos seguem chegando – Nhe’ẽ Kuery Jogueru Teri, de Kuaray Poty/Ariel Ortega e Bruno Huyer, o cuidado que Patrícia Ferreira Pará Yxapy nos deixa saber quando compartilha conosco as práticas guaranis de esperar uma criança, uma nova vida que vem aqui habitar e existir. E ainda sobre um estar no mundo sendo criança temos Olhos de Erê, dirigido por Luan Manzo, que revela os mistérios de sua casa, terreiro, quilombo a partir da curiosidade e fabulação infantil. A ancestralidade adentra o quadro por meio de sua atenção às guias, aos espaços sagrados, aos corpos que circulam pela sua morada-mundo na pandemia O estado de mundo pandêmico atravessa também Ano 2020, do Coletivo Olhares (Im)possíveis, em que adolescentes de Ouro Preto, no interior de Minas Gerais, recorrem às câmeras para inventar e dividir uma história do ponto de vista de quem não habita um centro. Por meio de texturas e telas diversas, a construção desse cotidiano marcado pelo distanciamento (dos amigos, da escola), por um lado, e pela conexão afetiva em um mundo que agora parece só existir imageticamente, por outro, se dá pela atenção àquilo que lhes é mais próximo, em uma potente reformulação de espaços e tempos no cenário contemporâneo. Em outra chave de fabular, mas não desprovida de tensionamentos, a imagem da Coroação da Nossa Senhora das Travestis, cena curta que Fredda Amorim, da Academia Transliterária e mama da Queerlombos, performa, questionando uma tradicionalidade simbólica baseada em opressões que, quando apropriada, transforma e inverte esses significados, convocando um novo olhar. Para finalizar a seleção, o longa estrangeiro Latcho drom, do diretor franco-romeno Tony Gatlif, apresenta as circularidades ciganas por muitos lugares do globo, em uma viagem musical que se torna uma potente experiência sensorial a iluminar os demais filmes da mostra, especialmente em uma era regida pela onipresença da palavra em sua lógica racionalizante. Um contexto macropolítico específico está instaurado. A tríade moderna (capitalismo, colonialismo e patriarcado) segue operando na construção e reconstrução de um vírus social que atinge a todes, mas que em algumas corpas opera até o estágio máximo: o fim, a morte, o aniquilamento. Uma modernidade, indissociável do pensamento a sustentar a era do Antropoceno, que concebe um mundo que também destrói a biodiversidade. Contra o “vírus colonial”,14 apresentamos aqui 14. A ideia da colonialidade como um vírus foi apresentada por Guilherme Marcondes em “Anticorpos para o combate ao vírus colonial: algumas ideias a partir da arte”. Horizontes ao Sul, 2020. Disponível em: https:// www.horizontesaosul.com/single-post/2020/04/29/ANTICORPOS-PARA-O-COMBATE-AO-VIRUS-COLONIALALGUMAS-IDEIAS-ATRAVES-DA-ARTE. Acesso em 01/11/21.
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um conjunto de filmes que trabalham incessantemente na busca pela imunização das biodiversidades que são atacadas por esse vírus, que diferente do da Covid e do HIV não é nada silencioso, ainda que muitas vezes velado. Anticorpos produzindo gestos e movimentos de corpas que fogem à representação. Em suas singularidades, os filmes aqui reunidos apresentam uma pluralidade de caminhos e modos de organização, de posicionamentos políticos e subjetivos, formas de aliança e de estar junto, além de estratégias de combate às violências sistêmicas. Propostas estéticas inovadoras, em consonância com o poder insurgente dos corpos colocados em cena, que transitam por vertentes de criação: da performance às artes visuais, à música, à dança, à literatura, entre relatos etnográficos, dispositivos em primeira pessoa ou narrativas de inspiração ficcional. A seu modo, cada filme coloca em curso a formulação de diferentes “comunidades de cuidado” que se rearticulam e questionam a cada trabalho. --Para falar de cuidado e cura, convidamos especiais queridas, querides e queridos para compartilhar suas ideias com o festival. Começamos com uma conferência com Castiel Vitorino Brasileiro, multiartista, escritora e psicóloga clínica, presente como quase síntese do que aqui enfatizamos, em conversa mediada pela professora e pesquisadora Tatiana Carvalho Costa. Nas mesas temáticas, Ronaldo Serruya, ator e participante de Deus tem AIDS, divide o debate com Fredda Amorim, da Academia Transliterária, e Arquivo Mangue, coletivo artístico composto por Cafira Zoé e Camila Freitas, que interpela a realidade com outras éticas, como a mineral e a herbária, para tematizar as Fabulações, ou o corpo como memória, no Dia Mundial da Luta Contra a Aids. Na mesa dedicada a pensar Enfrentamentos, ou o corpo como arquivo, Priscila Resende, artista sediada em Belo Horizonte e Vladimir Seixas, diretor de Rolê, conversam com Gabriela Gaia, professora em Arquitetura e Urbanismo na UFBA, sobre as interpelações vividas pelo corpo negro nas cidades brasileiras desde o início de suas formações; o texto “Contra o racismo, ocupar espaços” de Carlos Henrique Lima, professor na Faculdade de Arquitetura da UnB, também se dedica a estes enfrentamentos éticos. Na terceira mesa, Éticas de cura, ou o corpo como sonho e ancestralidade, Makota Cassia Kidoialê, mestra no espaço de afrobetização Kilombo Manzo Ngunzo Kaiango, do filme Olhos de Êre, encontra Sueli Maxakali, cineasta e liderança indígena e Abiniel Nascimento, que também escreveu o texto “Aracá é partícula de tempo”, excerto de seu trabalho de conclusão de curso na Universidade Federal Rural de Pernambuco. Já na mesa transversal de abertura do forumdoc.bh.2021, Gustavo Caboco, realizador do díptico que integra a seleção, será a presença de nossa mostra em diálogo com os demais convidados. Quanto aos debates gravados, contaremos com uma conversa sobre o filme processo de Pérola, num diálogo entre as realizadoras e a montadora Cristina Amaral, bem como com um debate junto ao coletivo realizador de Ano 2020. Na fortuna crítica inédita deste catálogo, Ana Carvalho e Maria Silvanete Lermem escreveram “Há sempre uma árvore que somos nós”, no qual conversam com as
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águas, ervas, cantos e sonhos dos filmes Encontro de pajés e Nossos espíritos continuam chegando. Em “Percursos de cuidado”, Priscila Miraz atenta para os modos de inventar e recriar os encontros entre a corporeidade, a música, a dança e o afetivo, inclusive na dimensão transfamiliar, ao comentar O Elixir e Latcho drom. “Do ritmo do outro aos muitos, um corpo para o cinema”, escrito pelo Fórum Nicarágua, enfatiza a substância da entrega ao acompanhar processos criativos em audiovisualidades motivados por situações de cuidado terapêutico. Ritmos que encontramos ao acompanhar Edna, os quatro integrantes do Movimento Nacional da População em Situação de Rua, em A vida é sempre um mistério, ou mesmo as mulheres em relação pelas ruas centrais de Belo Horizonte, em Pérola. Em “Sobre descanso”, Micaela Cyrino, que performa em Deus tem AIDS, apresenta um manifesto pela superação da cura social da Aids que interpela quem ainda não entendeu o que está acontecendo em 2021, igualmente em consonância com o filme No regrets. Em “Escrita que sai da tela”, Dodi Leal, primeira professora universitária trans na área de artes em uma universidade pública na América Latina, e novamente Fredda Amorim, vêm dizer que “não é possível a cura sem as pessoas trans estarem na curadoria”, diante da presença dos filmes Afetadas, uma dança com as amigas de JEAN, Lembrar daquilo que esqueci e, no mesmo continuum, Coroação de Nossa Senhora das Travestis. Para Fredda, infectada pela Covid-19 durante a escrita do texto, as éticas de cura aterrissam e aterram como bruxaria a seus modos de reencantamento e sonhos, como “o dia das (DES)APARECIDAS”, e ao futuro em que as travestis sejam cura, como dizem com Ventura Profana, com Linn da Quebrada. Por fim, Joanna Ladeira e Paula Kimo tecem os “Relatos de um filme-ação entre mulheres nas ruas de Belo Horizonte”, narrando o processo de produção de Pérola enquanto um filme de encontro entre mulheres, implicadas na realidade e nas imagens. Estamos em um momento difícil da história. Intuímos, então, que estes filmes podem nos apresentar algo inspirador, mantendo acesa a chama que nos conta que existem processos capazes de solapar as narrativas hegemônicas e contaminar nossa vida social. Procedimentos que nos apresentam outras maneiras de viver a vida, passando por práticas clínicas, artísticas, performáticas, educativas, derivas e encontros que abandonam a ideia de circuito fechado. Essas experiências “espiraladas” garantem a possibilidade de que esses mundos outros continuem acontecendo. Mundos onde a cura não é cristã, mas uma ética de não permitir o apagamento, uma ética pela vida. Algo possível de se vislumbrar quando o movimento de lembrar daquilo que esqueci esgarça os possíveis e coloca em cena repertórios que ainda não estavam evidentes no “mundo como conhecemos”.
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Communities of care: fabulations, confrontations and healing ethics ARTHUR MEDRADO, CARLA ITALIANO, CORA LIMA and MILENE MIGLIANO Translation: Ícaro Melo
Time was my master, it taught me how to heal (Traditional song)
“What healing means to you?” It is propelled by this provoking and unsolvable question, borrowed from Castiel Vitorino Brasileiro’s inspiring film To remember what I forgot, that the journey of this exhibition takes shape. Facing uncountable possibilities of answers, we take on the challenge of pondering the idea of healing in cinema, Brazilian cinema in particular and films released in recent years, alongside images and sounds that conceive an existence that shares the hardships of the current scenario, permeated by setbacks and effacements, but also by new creative ways that oppose such limitations.1 A plural and disputed concept, sometimes inconceivable, and, consequently, a stimulating way to approach the realities experienced and aesthetics proposals in their strategies of existence. Through the dictionary path, the term “cure” means the “act, process, or effect of healing (oneself)”,2 a definition that, despite carrying the western blindness that fuels the colonizer urge of categorizing everything and everyone, also reveals cure both as a process and as an effect, a simultaneous act towards oneself and the other, working as an instigating moving force. However, if, in a first glance, the word evokes treatment and restoration of health, especially through medical sciences in a common sense context, it is fundamental to remove 1. The movement of this exhibition finds resonance with different recent initiatives in Brazil: in publications, exhibitions, and the artistic production itself that think of healing practices departing from decolonial perspectives, besides debates surrounding the approximation between curatorship and cure, such as the online events promoted by the IX CachoeiraDoc under the theme “Impossible festival temporary curatorship”, in May 2020. Among the texts, we highlight Carol Almeida’s “A cura pelo cinema” [Healing through cinema] (from the book Outros Críticos – O outro é uma queda, 2018), and Milene Migliano and Thiago Rizan’s “Um sopro de cura: fruição estética e afetação em corpos audiovisuais para cuidar de traumas coloniais” [A healing breath: aesthetical fruition and affectation in audiovisual bodies to take care of colonial traumas] (Rebeca, year 9, n. 2, 2020), among others. In the field of exhibitions and festivals, we also highlight the I Mostra Cine Flecha, that took place online in October 2020, which had as subtitle “(Re)exist and Heal” and presented the recent audiovisual production from different collectives and indigenous filmmakers from Brazil. 2. From Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001. Translated into English.
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it from this peacemaking space, by expanding it into multiple ways of knowledge and life experiences. It is fundamental to expand it into traditional cosmologies and connections between afropindorâmicas3 peoples, into insurgent ways of being in the world in face of the historical fictions of normativities, especially those ways under the aegis of antiracist, feminist, and queer movements that demand the rearticulation of healing practices and, above all, the formation of communities oriented towards caring on other bases. A challenge that unfolds in new layers in the current pandemic and social distancing context, with its brutal power to reconfigure times, spaces and affections. Castiel presents healing as a “perishable process of freedom”. If we approach its time aspect, maybe we can get closer to a state that entangles us, susceptible to deterioration, but that renews itself as it happens with everything that is organic, that contains life. The healing moment may be the ending and the beginning, just as it is a means of, just as so many times we have died and been born on Earth’s time, waiting and watching other times arrive. In this way, other questions arrive to add up to the initial one, resulting in a profusion of interrogations: what could we call healing ethics? What actions can we take today in order to create such perishable spaces of freedom? What are the possible actions to the body, towards a space of freedom in art, in clinic, and in life? What is the power of the care towards the other that results from the encounter with the camera that records and hears? Throughout the months that we took to design this exhibition, by means of a methodology created by the combination of various minds, hands and hearts, the influences came from different fields, theoretical and artistic ones, as well as from the perspective of what moves us as eager spectators – acknowledging and taking the risks of such subjective positioning. An initial step was to think of healing far away from hegemonic and naïve definitions; not as a goal in itself, or as a telos to be individually achieved, but as a collective and transformative attempt and means. Healing as an experience and an idea, a momentary and fleeting balance.4 Just as tears that overflow and may or may not burst into sobbing. An aesthetic that concerns forms that deviate from Christian standards:heaven, salvation, guilt and punishments. Castiel presents us the question: “How to create a space that is not simply of resistance, but also of creation?”5 Based on this, so to say, conceptual theme, and maintaining in the horizon the vigorous Brazilian audiovisual production led by people who belong to gender, ethnic-racial and sexual orientation social minorities, who, for decades, were set apart from traditional ways of filmmaking and exhibition, other notions began to compose our vocabulary: care, love, community. Words that could even be considered 3. An expression that encompasses peoples such as quilombolas, blacks, and indigenous, as Antônio Bispo dos Santos, a theoretician and leader of the Quilombo Saco-Curtume (Piauí), elaborated. Santos, Antônio Bispo. Colonização, quilombos: modos e significações. Brasília: UnB, 2015 4. As Castiel teaches us through her words and works. 5. 11th Encontro de Formação Aberta de Aquilombamento nas Margens [Meeting for Open Qualification of Aquilombamento at the Margins] Available at: www.youtube.com/watch?v=Sw_z5A2GnKE&ab_channel=MargensCl%C3%ADnicas. Access date: 25 Oct. 2021.
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as abstract ideas if they were not anchored on the concreteness of these marginal bodies, in their inherent intense and unsubmissive nature. More than other aesthetic paradigms, what this selection of films desires is to awake for epistemes that pulsate amidst the cities, lives confined by the pandemic, on the cracks and spaces in which much love is reinvented, confronting violence with dreams, (self)care, and various healing propositions. In this sense, it becomes fundamental to think of the role of love as a social transformation tool in all aspects, together with bell hooks: “When we choose to love we choose to move against fear – against alienation and separation. The choice to love is a choice to connect – to find ourselves in the other”.6 Nowadays, what we see from the uncertainties is a desire and an objective that takes shape in being together, by understanding that the self-care and the care we have with others around us, those who also take care of us [human and non-human], is a potential way for remaining in love. Humanity lives not by passive love alone, but it is out of love that we should face it. The existence of humankind in the world has reached a critical point in which we should say no. It is necessary that this confrontation against war, with its many disguises, to be a categorical, irreverent, and full of energy one – such as it is with war itself. We should suggest the opposite, escape lines without a destination, encounters that, in this curatorial proposal, are outlined between debates, online round tables, conferences, texts and films that compose the program. In face of the challenge of categorization, we approached the nineteen films of the exhibition from three groups that are as momentary as instigating, in no way definitive, that invite us to visit communities of care: confrontations, healing ethics and fabulations, as we shall see next.
Confrontations, or the body as archive Audre Lorde, in “Poetry is not a luxury”,7 shows how the creation, always limited to the white and male bodies, and how the confrontation against the Cartesianism of “‘I think therefore I am; and the black mothers in each of us - the poet - whispers in our dreams, I feel therefore I can be free. Poetry coins the language to express and charter this revolutionary awareness and demand the implementation of that freedom” (LORDE, 2019, p. 48). By choosing dreams as the guide towards liberty, as it pertains the female gesture, she puts forward that: […] the strength of women lies in recognizing differences between us as creative, and in standing to those distortions which we inherited without blame, but which are now ours to alter. The angers of women can transform difference through insight into power. For anger between peers births change, not destruction, and the discomfort and sense of loss it often causes is not fatal, but a sign of growth. (LORDE, 2019, p. 164) 6. hooks, bell. All about love: new visions. Harper Perennial, 2000. p. 93 7. Chapter from Sister Outsider. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
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This anger of which Lorde talks about, capable of transforming difference into power of effective changes, exposes how direct confrontation can also work as a strategy to deal with the process of getting-sick both for oneself and for the world. Fighting against an extermination process, in consonance with what Jota Mombaça proposes as an anticolonial redistribution of violence: “which modalities of political care we should create in order to heal the wounds that violence (against us and our own) produces in ourselves?8 Heaven never comes, but perhaps what is being evoked on the works selected here are precisely these attempts that set free and allow for confrontations with the system: not banalizing violence, questioning medicine as a disciplinarian and homogenizing institution, forging other forms of being in group, of producing and creating artistic discourses as an affirmation of collective existence. In Message From Bedengó/Stone Paths, Gustavo Caboco’s diptych, we have an encounter with indigenous imaginaries, this time centered around the Wapichana people, in the states of Roraima and Paraná. The ethics of the stone that appeared from the transmutation of a three into a mount, brings with it the meaning of living collectively and the need of singing this life so that the path goes along with feet that are possible; moreover, resisting the effacement of its memory in face of the fire at the National Museum of Rio de Janeiro. In the animation, music becomes a concatenated visuality to be seen in dialogue with the video Message From Bedengó, both works that were originally shown in close relation at the 34th Bienal de São Paulo, 2021. In Abiniel João Nascimento’s Archive’s Exercise #2, in turn, the confrontation is situated at the intervention on the archives of whites and their historical discourses that attest the systematic attempts of symbolic and literal effacement against indigenous peoples; to do so, it evokes two other dimensions of archive, by means of the body and the memories it carries. The current times have shown that the state of various forms of violence reserved for specific groups deteriorates as new ways of confrontations are outlined. The exhaustion caused by this “perpetual updating of injustice as a fantasy of control”9 can only offer ways out, which have been designed in a more subtle way than one can imagine. And by subtle one does not mean docile, much less easy, even less painless. This is something that is latent in Pearl , a disruptive film-process collectively produced together with a group of young women living on the streets. It is a fascinating film in the sense of transforming difference into power – also the power to create cinema –, and with anger, by recreating the existence of life on the streets. As a process, the film creates alongside the confrontations against an often blind status quo. As blind as the prevailing imaginary that violates the young bodies in Rolê - Stories of Brazilian Protests in Malls. In this Vladmir Seixas’ feature film, confrontation is made through the bodies that updated the struggle against racism, buried but still strong, similar to the structures at/from the shopping malls confronted by the young and black protagonists. In this film, on different performance dimensions, through staying 8. Mombaça, Jota “Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero anticolonial da violência!” [Towards a gender-disobedient and anti-colonial redistribution of violence]. From: https://issuu.com/amilcarpacker/ docs/rumo_a_uma_redistribuic__a__o_da_vi. Access date 25 Oct 2021. p. 14. 9. Mombaça Ibid, p. 4.
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alive, aware, and strong in face of the violations of security staff, Rolê narrates one more of the battles of blackness on Brazilian cities and the transformative power of the pulsating lives. Closing the modes of confrontation and resuming the pandemic notion under another point of view, we have two films, a Brazilian contemporary one and a foreign one from the 1990s, that evince how HIV/Aids are experiences constructed throughout time. Documentaries made in distinct moments, but that approach each other by relying on experiences of subjects who set themselves free from guilt, from the victim position, and, grounded on accountability, put themselves in front of the camera as bodies-alive talking about life. Both present us with other possibilities for the role of artistic discourse production about a virus that we have (not)known for at least four decades. Which ethic-aesthetic projects are involved in these proposals? The film, by the North American Marlon Riggs, Non, je ne regrette rien (No regret), allows us to access a positive ancestry,10 that we see performing life in the contemporary God has AIDS, directed by Fábio Leal and Gustavo Vinagre. These films break the silence and populate the screen presenting healing attempts to what (still) has no cure. This takes us to an urgency to understand that AIDS is not an illness of the other, that the HIV is a virus which nowadays has the possibility of becoming undetectable,11 since the progress of treatment. It is necessary to eliminate monsters, build others and end the idea of otherness. And this is precisely possible when there is the creation of conditions for bodies living with HIV to talk, more than this, to break the silence they are granted by law. Such bodies seem to operate in a performativity of urgency. Not because they are close to death, but precisely because they need to reaffirm their potency of life. Preciado teaches us that the body is a central political object. We could think that the films in this exhibition affirm the initial idea of queer, not limited to the LGBTQIA+, but associating itself with other marginal lives: those who live on the street, who are pathologized, blacks, women, and poor ones. Corporealities in motion that, on screen, not only allow us a contact with an ethics/aesthetics, but also with the knowledge-of-body.
Ethics of healing, or body as dream and ancestry This group puts together films that overtly focus on the theme of healing practices based on a large scope of epistemologies and diverse forms of knowledge. Let us begin with Castiel’s short film that opens this text. Showing that it is possible to build fine lines, ties, bonds, making drawings, constellations, ways of connecting to 10. An expression proposed by Ronaldo Serruya in the context of the course “Como eliminar monstros: discursos artísticos sobre HIV/AIDS” [How to eliminate monsters: artistic discourses on HIV/AIDS]. 11. Undetectable = Untransmittable is the final goal. In 2018, based on studies carried out through mosaic research (between 2007 and 2016), UNAIDS published a technical note stating: a person who lives with HIV and is on treatment for more than 6 months does not transmit the virus through sexual transmission, even if through unprotected sex.
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knowledges that are far beyond and, for this reason, have healing power over bodies; powers that also act through dreams and ancestries, epistemes that transcend binary rationality. Creating places, individual and collective feelings that burst bringing new sur-vival propositions unrelated to the current normal. We have been figuring out for a long time the damaging effects of an assumed normality. The dive into the daily life that Afetadas takes, filmed by JEAN, leads us to the encounter of corporealities that surpass the normal. Bodies full of desires, facing difficulties and pains, expanding their gestures into invented rituals as they prepare to attend a party, to a dancing expression, to encounters and performance, to boil with the other bodies that align with each other there. The sign of performance that is invented from ancestries dreamed by the bodies also guides Aracá, another short film by Abiniel João Nascimento in the exhibition, from crossings that receive offerings to the silent dance of the handling of magic that blend the black and indigenous ancestries, the silencing of women and of charmed and charming bodies, Caliban bodies.12 Daniel Munduruku, in his text “Da Gênese de Vexoá”, explains how the silencing process that indigenous subjects go through at school, when it is uprooted from their bodies what they have of “magic”, “magic gives place to a principle that conceals our most inner desire for truth: we are beings generated by a cosmic math. We are part of the universe, not its owners.”13 In this sense, in Meeting of Pajés, Yãy tu nūnãhã payexop, the collective curve is update before Sueli Maxakali’s camera that, attentive, show us the community of beings that gather at the water, land, between their bodies, with the Yãmiy and with us, who watch the shared trance and, affected, feel a chill up the spine that let us know: we are alive! In the same way as Edna tells us, putting herself emphatically in front of the camera fixed on a close of the medicine bottles spread in a corner of the bedroom. Alive as she speaks, narrates, retells, and recreates the resilience journey of her body in face of the pharmacy industry, healing it right there, in the cinema. A pharmacopornographic burden, as Preciado states, that Edna carries; in the movie, she answers the doctors who prescribed her capsules, pills, plasters, and a man to call her own. But the cure was somewhere else, it was at creation to resume dreaming and honor those who came before, as she does. The anger that confronts and that has the potential to heal, since it extrapolates the limits of the body, can even be transformed into understanding that Life is always a mistery, as announced by the title of the movie that follows the Movimento Nacional de População de Rua [Street Population National Movement] meeting, at Rio Grande do Sul, at a stopover replete with natural landscapes. Between beaches, dunes, mornings, sundowns, and evenings, the bodies of the Movement’s members perform dances, capoeiras, meditations and other healings, different ethics, connecting delusions/drawings from another possible world. 12. Federici, Silvia. Calibã e a Bruxa, mulheres, corpo e acumulação primitiva. Trad. Coletivo Sycorax. Editora Elefante, 2017. 13. Munduruku, Daniel. “Da Gênese de Vexoá”. In Vexoá, Nós sabemos, curatorship by Naine Terena, Pinacoteca do Estado, 2020 p. 130.
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Fabulations, or body as memory Would the fabulated images present on the films shown here be capable of confronting and (de)construct the hegemonic filmmaking and their power fictions? The gestures, procedures, assembly and disassembly of these bodies are no longer passive sensations and constitute, with affections, maps that guide the paths towards the encounters and the effects of these presences in our lives, but also in the life of each existence. Creative processes such as the one in Marina Sandim and Lucas Campolina’s The Elixir, that produce flashes of desire with Raul and Martim in gestation, a camera that listens the murmured lullabies, the whispers from the wind shadows on plants’ leaves framed in a wall of the house, a corner that works as a space to hear the dreams that will follow and will come. It is necessary to say that, at the exhibition, the encounters were many, with living beings, dreamed, born, magical. In Kuaray Poty/Ariel Ortega and Bruno Huyer’s Our Spirits Keep Coming - Nhe’ẽ Kuery Jogueru Teri, we see the care that Patrícia Ferreira Pará Yxapy lets us perceive when she shares with us the Guarani practices for when one is expecting a child, a new life that comes to inhabit and exist here. Still on the subject of being in the world as a child we have Luan Manzo’s Eyes of Erê, which reveal mysteries of his house, terreiro [yard], quilombo, from the perspective of childish curiosity and fabulation. Ancestry enters the frame through the attention he gives to the guias [sacred collars], to the sacred spaces, to the bodies that move around his habitation-world during pandemic times. The pandemic world state also criss-crosses Coletivo Olhares (Im)possíveis’ Year 2020, in which teenagers from Ouro Preto, at the countryside of Minas Gerais, resort to cameras in order to invent and share a story from the point of view of somebody who does not inhabits the center. Through various textures and screens, the construction of this daily life marked by social distancing (from friends, from school), on the one hand, and by an affective connection in a world that now seems to only exist imagetically, on the other hand, takes place by the attention to what is closer to them, in a powerful reformulation of spaces and times in the contemporary scenery. On another fabulation key, but one that is not deprived of tensions, the image performs in Our Lady Of Travesti’s Coronation, short scene by Fredda Amorim, from Academia Transliterária and mamma of Queerlombos, questioning symbolic traditionality based on oppressions that, when appropriated, transforms and reverses these meanings, evoking a new way of looking. To close the selection, the foreign feature film Latcho drom, by Franco-Romanian Tony Gatlif, presents the Romani circularities through many places of the globe, in a musical journey that becomes a powerful sensorial experience shining over the other films in the exhibition, especially in an age ruled by the omnipresence of the word in its rationalizing logic. A specific macropolitical context is in place. The modern triad (capitalism, colonialism and patriarchy) goes on working at the construction and reconstruction of a social virus that reaches everyone, but that, to some bodies, works to its maximum stage: the end, death, annihilation. A modernity, indissociable from the thought sustaining the Anthropocene age, which conceives a world that also destroys biodiversity.
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Against the “colonial virus”,14 here we present a group of films that work incessantly on the search for immunization of biodiversities that are attacked by this virus that, differently from the Covid-19 and the HIV, is everything but silent, even though many times veiled. Antibodies producing gestures and movements of bodies that escape representation. From their uniqueness, the films grouped here present a plurality of paths and modes of organization, of political and subjective positionings, ways of bonding and of being together, beyond confrontation strategies against forms of systemic violence. Innovative esthetic propositions, in consonance with the insurgent power of the bodies placed in scene, bodies that walk through different creation dimensions: from performance to visual arts, music, dance, literature, between ethnographic reports, first person devices or fictionally inspired narratives. In their own way, each film sets in motion the formulation of different “communities of care” that is rearticulated and questioned at each work. --To talk about cure and healing we invited dear special ones to share their ideas with the festival. We began with a conference with Castiel Vitorino Brasileiro, multi-artist, writer, and clinical psychologist, present as almost a synthesis of what we emphasized here, in a conversation mediated by professor and researcher Tatiana Carvalho Costa. On the round-tables, Ronald Serruya, actor and participant of God has AIDS, shares the debate with Fredda Amorim, from Academia Transliterária, and with Arquivo Mangue, an artistic collective comprised of Cafira Zoé and Camila Freitas, that approaches reality from other ethics, such as the mineral and herbal, in order to thematize the Fabulations, or the body as memory, on the World AIDS Day. On the table dedicated to think Confrontations, or the body as archive, Priscila Resende, artist based on Belo Horizonte, and Vladimir Seixas, director of Rolê, have a conversation with Gabriela Gaia, professor of Architecture and Urbanism at UFBA, about the interpellations lived by black bodies at Brazilian cities since the beginning of their formation; the text “Contra o racismo, ocupar espaços” [Against racism, occupying spaces], by Carlos Henrique Lima, professor at UnB’s Architecture college, is also focused on these ethic confrontations. At the third table, Healing Ethics, or the body as dream and ancestry, Makota Cassia Kidoialê, a master at the afroliteracy space Kilombo Manzo Ngunzo Kaiango, from the film Eyes of Erê, meets Sueli Maxakali, filmmaker and indigenous leadership, and Abiniel Nascimento, who also wrote “Aracá is particle of time”, an excerpt of his course-conclusion paper at the Rural Federal University of Pernambuco. At the transversal opening table of the forumdoc.bh.2021, in turn, Gustavo Caboco, filmmaker 14. The notion of coloniality as a virus was introduced by Guilherme Marcondes. MARCONDES, Guilherme. “Anticorpos para o combate ao vírus colonial: algumas ideias a partir da arte”. Horizontes ao Sul, 2020. From: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/04/29/ANTICORPOS-PARA-O-COMBATE-AO-VIRUSCOLONIAL-ALGUMAS-IDEIAS-ATRAVES-DA-ARTE. Access date: 01 Nov. 21
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of the diptych that comprises the selection, will be the presence of our exhibition in dialogue with the other guests. As for the recorded debates, we will have a conversation about the film process of Pearl, in a dialogue between filmmakers and the editor Cristina Amaral, as well as a debate with the collective filmmaker of Year 2020. On the critical texts of this catalogue, Ana Carvalho and Maria Silvanete Lermem write “Há sempre uma árvore que somos nós”, in which they talk with the waters, herbs, songs, and dreams from the films Meeting of Pajés and Our Spirits Keep Coming. In “Percursos de Cuidado”, Priscila Miraz focuses on the ways of inventing and recreating the encounters between corporeality, music, dance and affection, even at the trans-familiar dimension, while commenting The Elixir, Latcho drom and the inventive criticism of To remember what I forgot. “Do ritmo do outro aos muitos, um corpo para o cinema”, written by Fórum Nicarágua, highlights the substance of presentation while following creative processes of audiovisualities motivated by therapeutic care situations. Rhythms that we meet while following Edna, the four members of the Street Population National Movement, in Life is Always a Mistery, or even the women in relationship along the central streets of Belo Horizonte, in Pearl. In “Sobre descanso”, Micaela Cyrino, who performs in God has AIDS , presents a manifesto for the overcoming of the social cure of Aids that approaches those who still have not understood what is happening in 2021, equally consonant with the film No regrets. In “Escrita que sai da tela”, Dodi Leal, first trans person to become an university professor on the field of arts at a public university in Latin America, and, once again, Fredda Amorim, come to say that “healing is not possible without trans people at the curatorship”, in face of the films Afetadas, a dance with JEAN’s friends, To remember what I forgot and, at the same continuum, Our Lady of Travesti’s Coronation. For Fredda, infected by Covid-19 during the writing process of the text, the healing ethics land and ground as witchcraft her modes of reenchantment and dreams, as “the day of the (DIS)APPEARED ones”, and to a future when travestis will be healing, as they say with Ventura Profana, with Linn da Quebrada. Finally, Joanna Ladeira and Paula Kimo weave the “Relatos de um filme-ação entre mulheres nas ruas de Belo Horizonte”, narrating Pear’s process as a film portraying the encounter between women, implied on reality and on the images. We are in a difficult moment in history. We have the intuition, then, that these films can present us with something inspiring, keeping alight the flame that tells us that there are processes capable of undermining hegemonic narratives and of infecting our social lives. Procedures that present us other ways of living life, going through clinical, artistic, performative, educational, derived practices and encounters that abandon the idea of closed circuit. These “spiral” experiences grant the possibility for these other worlds to keep happening. Worlds in which the healing is not Christian, but an ethics of not allowing the effacement, an ethics in favor of life. Something possible to imagine when the movement to remember what I forgot stretches the possibilities and brings to the stage repertoires that still are not evident in the “world as we know it”.
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A VIDA É SEMPRE UM MISTÉRIO LIFE IS ALWAYS A MISTERY Brasil/Rio Grande do Sul, 2019, cor, 16’ direção director • Calvin Da Cas Furtado fotografia cinematography • Rodrigo Goes montagem editing • André Luís Garcia som sound • Luciano Piccoli produção production • Calvin Da Cas Furtado contato contact • calvinfurtado@gmail.com Entre reflexões e performances, filosofias de vida propõem paralelos lúdicos com elementos da natureza. Um filme sobre o suicídio, a sexualidade, a liberdade, a loucura e o equilíbrio. A trajetória de uma missão. Um retrato de quatro integrantes do Movimento Nacional da População de Rua. Between reflections and performances, life philosophies propose playful parallels with nature’s elements. A film about suicide, sexuality, freedom, madness, and balance. The course of a mission. A portrait of four members of the Movimento Nacional da População de Rua [Street Population National Movement].
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AFETADAS AFETADAS Brasil/Pernambuco, 2021, cor, 19’ direção director • JEAN fotografia cinematography • JEAN montagem editing • André Antônio som sound • JEAN produção production • JEAN contato contact • jeoliveirr@gmail.com AFETADAS é um experimento documental que ficciona a realidade de parte da comunidade lgbtq+ recifense. Durante dois anos, com uma cybershot nas mãos, capturei as tentativas de manutenção de uma rede de afeto entre minhas amigas e como isso de alguma forma resulta em produções culturais. AFETADAS is a documentary experimentation that fictionalizes the reality of part of the LGBTQ+ community from Recife. For two years, with a Cybershot on my hands, I filmed the attempts to maintain an affection network between my friends, as well as the ways it somehow results in cultural productions.
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ANO 2020 YEAR 2020 Brasil/Minas Gerais, 2021, digital, cor, 16’ direção director • Coletivo Olhares (Im)possíveis fotografia cinematography • Elias Figueiredo, Guilherme Oliveira, Grace Ketyle Francisco dos Santos, Henrique Julio Romano, Hudson Roberto A. Camilo de Moura, Junior Alberto Gomes Moitinho, Leo Lopes, Ludmilla Lopes Veríssimo, Luiz Antônio Santana Júnior, Pedro Henrique Nunes, Rafael Santos Araújo, Ronessa do Carmo Teodoro montagem editing • Yura Netto som sound • Lais Garcia produção production • Thamira Bastos, Raquel Satto, Raquel Salazar, Susana de Fátima Barbosa, Arthur Medrado coordenação e concepção de projeto coordination and project conception • Arthur Medrado coordenação de produção production coordination • Raquel Salazar e Thamira Bastos
contato contact • olharesimpossiveis@gmail.com Com cenas cotidianas de Ouro Preto-MG por quem não mora em seu centro, Ano 2020 retrata a vida de jovens que viveram suas adolescências em isolamento. Uma mensagem de texto de um dos seus participantes despertou o desejo do grupo de falar sobre suas vivências durante a pandemia do Covid-19. O filme foi realizado pelo Coletivo Olhares (Im) possíveis, que desde 2018 se encontra para produzir imagens e compartilhar experiências. With everyday scenes of Ouro Preto-MG by those who do not live in its center, Year 2020 portrays the lives of young people who lived their adolescence in isolation. A text message from one of its participants aroused the group's desire to talk about their experiences during the Covid-19 pandemic. The film was made by the Collective Olhares (Im)possíveis, which has been meeting since 2018 to produce images and share experiences.
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ARACÁ Brasil/Pernambuco, 2021, cor, 11’ direção director • Abiniel João Nascimento assistant director • Karuá Tapuya-Tarairiú fotografia cinematography • Mitsy Queiroz montagem editing • Abiniel João Nascimento som sound • Priscila Nascimento produção production • Gabriela Monteiro contato contact • abinieljnascimento@gmail.com Aracá é partícula de tempo. Aracá is a time particle.
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COROAÇÃO DA NOSSA SENHORA DAS TRAVESTIS OUR LADY OF TRAVESTI’S CORONATION Brasil/Minas Gerais, 2021, cor, 9’ direção director • Idylla Silmarovi, Rodrigo Carizu, Vina Amorim fotografia cinematography • Vina Amorim e Gustavo Maia montagem editing • Adriane Puresa som sound • Lui Rodrigues produção production • Academia TransLiterária contato contact • idyllasilmarovi@yahoo.com.br Um rito de saudação. Corpos que saúdam a existência de uma outra. Ela está no meio de nós. Indigna de fé, de amor e compaixão, bendizemos o seu nome e em sua cabeça colocamos uma coroa, ainda que seja de plástico. Seu manto é a nossa bandeira. Essa ação é uma prece, para que deixemos de morrer. Boa noite. Estamos aqui para coroar a “nossa” senhora. Não a sua, a nossa e isso não tem absolutamente nada a ver com religião. Nos queremos vivas. A greeting rite. Bodies that greet the existence of another being. She is among us. Unworthy of faith, of love and compassion, we hail your name and on your head, we set a crown, even though it’s made of plastic. Your mantle is our flag. This act is a prayer, so that we stop dying. Good night. We are here to crown “our” lady. Not your lady, ours; and this has nothing to do with religion. We want ourselves alive.
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DEUS TEM AIDS GOD HAS AIDS Brasil, 2021, cor, 82’ direção director • Fábio Leal e Gustavo Vinagre fotografia cinematography • Tiago Calazans montagem editing • Beatriz Pomar, Quentin Delaroche som sound • Juliana Santana produção production • Dora Amorim, Júlia Machado, Thaís Vidal, Fábio Leal, Gustavo Vinagre contato contact • fabioleal@gmail.com, gustavovinagre@gmail.com 40 anos depois do início da epidemia de AIDS, sete artistas e um médico ativista, pessoas vivendo com HIV, oferecem novas imagens e perspectivas para lidar com a sorofobia no Brasil. 40 years after the beginning of the AIDS epidemic, seven artists and an activist doctor, people living with HIV, offer new images and perspectives to deal with serophobia in Brazil.
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EDNA Brasil/Rio de Janeiro , 2018, cor, 15’ direção director • Edna Lúcia de F L Toledo fotografia cinematography • Edna Lúcia de F L Toledo montagem editing • Edna Lúcia de F L Toledo som sound • Edna Lúcia de F L Toledo produção production • Edna Lúcia de F L Toledo contato contact • ednatoledo1960@gmail.com Edna Lúcia de F. L. Toledo nasceu em 1959 como Edna Henriqueta de Souza, filha de Leontina Henriqueta De Souza, vítima de um câncer. Talvez seja por isso ou por milhões de outros fatores que Edna desenvolveu uma doença na época ainda totalmente desconhecida. Em meio ao desespero, ela reúne todas as suas buscas por cura e em 2018 resolve se colocar frente a frente com sua maior inimiga: a indústria farmacêutica. Edna é um filme que se debruça sobre o inexprimível tormento dos efeitos colaterais dos medicamentos e sobre a busca por uma cura encontrada no inesperado. Edna Lúcia de F L Toledo was born in 1959 as Edna Henriqueta de Souza, daughter of Leontina Henriqueta De Souza, a victim of cancer. Perhaps it is because of this, or due to a million other reasons, that Edna developed a disease which was still unknown at that time. Amidst the desperation, she gathers all her searches for healing and, in 2018, decides to put herself face to face with her greatest enemy, the pharmaceutical industry. Edna is a film that ponders over the inexpressible suffering of medications’ side effects and about the quest for healing found in the unexpected.
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EXERCÍCIO DE ARQUIVO #2 ARCHIVE’S EXERCISE #2 Brasil/Pernambuco, 2020, Cor, 11’ direção director • Abiniel João Nascimento fotografia cinematography • Abiniel João Nascimento montagem editing • Abiniel João Nascimento som sound • Abiniel João Nascimento produção production • Abiniel João Nascimento contato contact • abinieljnascimento@gmail.com Numa busca vital por contar sua história, o personagem busca nos arquivos do corpo, orais, históricos, geográficos, artísticos e antropológicos pistas que constroem a colcha de retalhos que sustentam a sua origem. In a vital quest for telling his story, the character searches amid the body’s, oral, historical, geographic, artistic and anthropological archives for clues that build the patchwork sustaining his origin.
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KANAU’KYBA STONE PATHSY Brasil/Paraná-Roraima , 2021, Cor, 11’ direção director • Gustavo Caboco, Pedra do Bendegó argumento, roteiro, pesquisa script, screenplay, research • Gustavo Caboco, Roseane Cadete, Paula Berbert fotografia cinematography • Gustavo Caboco montagem editing • Gustavo Caboco som sound • Ian Wapichana, Gustavo Caboco produção production • Gustavo Caboco & Pedro Pastel, Besouro direção de animação animation director • Gustavo Caboco, Carlon Hardt gerência de projeto project management • Lucia Angélica desenho drawings • Gustavo Caboco assistente assistant • Felipe Lui animadores animators • Carlon Hardt, Juana Carvalho, Robson Vilalba, Lucas Fernandes, Gustavo Caboco trilha soundtrack • Ian Wapichana, Gustavo Caboco contato contact • gustavo@caboco.tv
Kanau’Kyba significa Kaminhos das Pedras em nossa língua Wapichana. Atravessamos diferentes paisagens que conectam as pedras do céu às pedras da terra ancestral. Das caminhadas nas pedras terrenas na Serra da Lua, em Roraima, na Terra Indígena Canauanim, nos conectamos às pedras no Paraná, na cidade de Kurityba. Campo em chamas. Das cinzas no Museu Nacional do Rio de Janeiro e a pedra do bendegó ao recado da borduna: não apagarão a nossa memória. Kanau’Kyba means Paths of the Stones in our language Wapichana. We crossed different landscapes that connect the stones of the sky to the stones of the ancestral land. From the many walks on the land stones at Serra da Lua, in Roraima, in the Indigenous Land Canauanim, we got connected to the stones in Paraná, at the city of Kurityba. Field in flames. From the ashes at the National Museum at Rio de Janeiro and from the Bendegó stone to the borduna message: they will not erase our memory.
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RECADO DO BEDENGÓ MESSAGE FROM BEDENGÓ Brasil/Paraná-Roraima , 2021, Cor, 11’ direção directors • Gustavo Caboco, Pedra do Bendegó argumento, roteiro, pesquisa script, screenplay, research • Gustavo Caboco, Roseane Cadete, Paula Berbert direção da animação animation director • Gustavo Caboco, Carlon Hardt animadores animators • Carlon Hardt, Juana Carvalho, Robson Vilalba, Lucas Fernandes, Davi Maciel, Gustavo Caboco produção production Rio de Janeiro•Lucas Canavarro, Nana Orlandi gerência de projeto project management • Lucia Angélica desenho drawings • Gustavo Caboco direção de imagem image director • Wanderson Wapixana imagens images • Gustavo Caboco, Wanderson Wapixana, Lucilene Wapichana, Roseane Cadete, Paula Berbert, Nana Orlandi, Lucas Canavarro, família Wapichana trilha soundtrack • Emanuel Wapichana,
Gustavo Caboco montagem editing • Gustavo Caboco contato contact • gustavo@caboco.tv Vovó chamou pedra do céu e ela se apresentou no sertão baiano. É indígena esta pedra do bendegó [meteorito]. Seu retorno, um campo em chamas, a kultura anda. Há uma fricção de narrativas: sua história terrena, a sertaneja, a nativa, sua folclorização, colonização, cientificização e resistência. Indígena / alienígena. É necessário um passo: o de ouvir a pedra. Há um brilho dentro que não é possível extrair. Grandma called the sky’s stone and it presented itself on Bahia’s arid hinterland. This Bendegó stone [meteorite] is indigenous. Its return, a field in flames, the kulture walks. There is a narrative friction: its earthly story, that of the hinterland, the native one, the making of its folklore, its colonization, its scientific rise, and resilience. Indigenous / alien. A step is necessary: the step to hearing the stone. There is an inner shine that is impossible to extract.
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LATCHO DROM França, 1993, cor, 103’ direção director • Tony Gatlif fotografia cinematography • Eric Guichard montagem editing • Nicole Berckmans som sound • William Flageollet produção production • Michèle Ray-Gavras contato contact • leonie@kgproductions.fr Latcho drom traça a longa viagem musical e histórica dos ciganos desde as suas origens no noroeste da Índia até Espanha. O filme percorre oito países e confronta a extraordinária variedade de canções, músicas e danças do povo cigano cuja história não está gravada em livros ou partituras. É a música oral que conta a memória das origens neste milênio marcado pelo ódio e pela rejeição. Latcho drom traces the long musical and historical journey of gypsies from their origins in northwest India to Spain. The film travels through eight countries and confronts the extraordinary variety of songs, tunes and dances of the gypsy people whose history is not recorded in books or music sheets. It is the oral music that tells the memory of the origins in this millennium marked by hatred and rejection.
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LEMBRAR DAQUILO QUE ESQUECI TO REMEMBER WHAT I FORGOT Brasil/Espírito Santo, 2020, Cor, 20’ direção director • Castiel Vitorino Brasileiro fotografia cinematography • Rodrio Jesus, Tatiane Loureiro Brasileiro, Iaia Rocha, Castiel Vitorino Brasileiro montagem editing • Castiel Vitorino Brasileiro som sound • Roger Ghil, Castiel Vitorino Brasileiro coordenação do projeto coordination project • Christine McCourt, Maria Paula Prates contato contact • castielvitorinob@gmail.com O que é Cura? Estou fazendo essa pergunta para vidas invisíveis e aquelas que aqui estão encarnadas. Como curar o colonialismo que nos adoece cotidianamente? Acredito na cura como um movimento cotidiano de nos fazer lembrar daquilo que a racialização nos faz esquecer. What is a Cure? I am asking this question both to invisible lives and to those that are incarnated here. How to heal the colonialism that makes us sick on a daily basis? I believe in healing as the daily movement of making ourselves remember what racialization made us forget.
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NON, JE NE REGRETTE RIEN (NO REGRET) SEM ARREPENDIMENTOS EUA, 1992, cor, 38’ direção director • Marlon T. Riggs fotografia cinematography • Robert Shepard, Vincent Casalaina montagem editing • Nicole Atkinson som sound • Sekou Shepard, Bob Kaputof produção production • Marlon T. Riggs, Jonathan Lee Através da música, poesia e autodescobrimento silencioso, e por vezes, aterrador, cinco homens gays vivendo com HIV falam sobre suas lutas individuais, iluminando a difícil jornada que homens negros de todo o território americano trilham em busca de lidar com a devastação pessoal e social da epidemia. Partindo do pânico, da resignação e do silêncio até à descoberta do poder libertador e curativo da fala, do se tornar visível como homens gays vivendo com HIV, cada um conta uma história única e ao mesmo tempo familiar de autotransformação
– uma história em que uma “dor”, antes vergonhosa e impronunciável, é transformada em uma ferramenta de empoderamento pessoal e comunitário neste importante filme de Marlon T. Riggs, realizado em 1992. Through music, poetry and quiet, at times, chilling self-disclosure, five positive black gay men speak of their individual confrontation with AIDS, illuminating the difficult journey black men throughout America have made in coping with the personal and social devastation of the epidemic. From panic, resignation, and silence to the discovery of the redemptive, healing power in being vocal and visible as HIV-positive black gay men, each tells a singular and at the same time familiar story of self-transformation—a story in which a once shameful, unmentionable “affliction” is forged into a tool of personal and communal empowerment in Marlon T. Riggs’ seminal 1992 film.
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NOSSOS ESPÍRITOS SEGUEM CHEGANDO - NHE’Ẽ KUERY JOGUERU TERI OUR SPIRITS KEEP COMING - NHE’Ẽ KUERY JOGUERU TERI Brasil/Rio Grande do Sul, 2021, Cor, 15’ direção director • Ariel Ortega (Kuaray Poty), Bruno Huyer fotografia cinematography • Ariel Ortega (Kuaray Poty) montagem editing • Bruno Huyer som sound • Ortega (Kuaray Poty) coordenação do projeto coordination project • Christine McCourt, Maria Paula Prates contato contact • pari-c@pari-c.org Na Tekoa Ko’ẽju, Pará Yxapy, indígena Mbya Guarani, dedica os primeiros cuidados a seu filho ainda no ventre, e reflete, junto com seus parentes, acerca dos sentidos de sua gravidez em meio a pandemia de COVID-19 no Brasil. Na Tekoa Ko’ẽju, Pará Yxapy, a Mbya Guarani indigenous woman, devotes the first cares to her son, who is still in the womb, and reflects, together with her relatives, about the meanings of her pregnancy amidst the COVID-19 pandemic in Brazil.
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O ELIXIR THE ELIXIR Brasil/Minas Gerais, 2021, Cor, 6’ direção director • Marina Sandim, Lucas Campolina fotografia cinematography • Lucas Campolina montagem editing • Lucas Campolina som sound • Marina Sandim, Lucas Campolina produção production • Marina Sandim, Lucas Campolina contato contact • lucasccs@gmail.com Uma hora, é preciso nascer. Ir para o mundo, deixar a porta aberta. Fazer um filme. In due time, it is necessary to be born. Enter the world, leave the door open. Make a film.
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OLHOS DE ERÊ EYES OF ERÊ Brasil/Minas Gerais, 2020, Cor, 11’ direção director • Luan Manzo roteiro script • Luan Manzo fotografia cinematography • Lucas Campolina montagem editing • Luan Manzo som sound • Luan Manzo produção production • Quilombo Manzo N’gunzo Kaiango, Bruno Vasconcelos empresa produtora production company • Quilombo Manzo N’gunzo Kaiango - Edukação de Kilombu; Guanambi Audiovisões contato contact • edukakilombu@gmail.com Luan Manzo tem seis anos e é bisneto da matriarca Mametu Muiande do Quilombo Manzo N’gunzo Kaiango, um dos quilombos reconhecidos pela cidade de Belo Horizonte. Fundado em 1970 por um preto velho, pai Benedito, Manzo é palácio de rei, governado por uma rainha. Ali germinam sementes e crianças, num processo educativo - a afrobetização - que afirma a organização, o coletivo, a ancestralidade e a circularidade do povo negro.
As crianças no quilombo crescem sabendose respeitadas, e por isso Luan percorre aqui o espaço sagrado, descrevendo-o a nós com segurança, conhecimento, rigor e frescor infantil. É ele quem, com um celular em mãos, propõe este filme. Luan Manzo is six years old and is the greatgrandson of Mametu Muiande, matriarch of the Manzo N’gunzo Kaiango Quilombo, one of the quilombos acknowledged by the city of Belo Horizonte. Established in 1970 by a preto velho (ancient black man), father Benedito, Manzo is a king’s palace, ruled by a queen. There, seeds and children are sprouted in an education process – the afroliteracy – that affirms the organization, the collective, the ancestry, and the circularity of the black people. At the quilombo, children grow up knowing they are respected. That is why here at Manzo, Luan moves along the sacred space, describing it to us with confidence, knowledge, rigor, and infantile freshness. It is he who, with a cellphone in his hands, offers us this film.
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PÉROLA [WORK IN PROGRESS] PEARL [WORK IN PROGRESS] Minas Gerais, 2021 (primeiro corte), cor, 51’ direção director • Joanna Ladeira, Paula Kimo, Zi Reis fotografia cinematography • Gabriel Albuquerque, Rafaela Rodrigues Dias, Dayse Jesus de Souza, Joanna Ladeira, Paula Kimo, Zi Reis elenco principal main cast • Andressa Jacqueline da Silva de Oliveira, Brisa, Camila de Lourdes Silva, Dayse Jesus de Souza, Gabriel Albuquerque, Rafaela Rodrigues Dias, Raquel Baia Sousa montagem editing • Paula Kimo produção production • Joanna Ladeira, Paula Kimo contato contact • deruafilme@gmail.com Um gesto de produzir e assistir imagens, um fluxo de pensamento, intervenção e montagem que acompanha mulheres em situação de rua, na cidade de Belo Horizonte, desde 2015. Pérola é o título provisório de um filme em processo. A movement of producing and watching images, a thought flow, intervention and editing that has followed women living on the streets, in the city of Belo Horizonte, since 2015. Pérola [Pearl] is a working title of a work in progress film.
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ROLÊ - HISTÓRIA DOS ROLEZINHOS ROLÊ — STORIES OF BRAZILIAN PROTESTS IN MALLS Brasil, 2021, cor, 82’ direção director • Vladimir Seixas fotografia cinematography • Léo Bittencourt, Vladimir Seixas montagem editing • Vladimir Seixas som sound • Vitor Kruter produção production • Luis Carlos de Alencar contato contact • cvladimirps@gmail.com Os Rolezinhos em shoppings no Brasil mobilizaram milhares de pessoas nos últimos anos. Essa forma inusitada de manifestação escancarou as barreiras impostas pela discriminação racial e exclusão social. Acompanhe neste documentário a vida e as lembranças de três personagens negras que enfrentaram situações traumáticas de racismo e participaram das ocupações em shoppings. Descubra os sonhos, a beleza, a poesia, a arte e a política de uma geração que encontrou novas maneiras de lidar com a violência vivida promovendo um intenso debate pelo país. Protests against the violence of security guards and shopping mall employees in Brazil have mobilized thousands of people in recent years. This form of protest showed the barriers imposed by racial discrimination and social exclusion. Follow in this documentary the lives and memories of three black characters that went through traumatic racism situations and took part in the protests which recently took place in shopping malls. Discover the dreams, beauty, poetry, art and politics of a generation that has found new ways of dealing with violence by promoting an intense debate across the Brazil about how black lives matter.
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YÃY TU NUNÃHÃ PAYEXOP - ENCONTRO DE PAJÉS Brasil, 2021, Cor, 26’ direção director • Sueli Maxakali fotografia cinematography • Sueli Maxakali montagem editing • André Victor, Cris Araujo contato contact • roberomerojr@gmail.com Em julho de 2020, em plena pandemia de Covid-19, cerca de 100 famílias Tikmῦ’ῦn-maxakali deixaram a reserva de Aldeia Verde (Ladainha, MG) em busca de uma nova terra. A tensão causada pelo isolamento tornou mais urgente a necessidade de uma terra rica em matas e, sobretudo, água, na qual pudessem fortalecer as relações com os povos-espíritos yãmĩyxop, através dos cantos, rituais, festas e brincadeiras. In July 2020, in the midst of the Covid-19 pandemic, around 100 Tikmῦ’ῦn-Maxakali families left the Aldeia Verde reserve (Ladainha, MG) in search of new land. The tension caused by isolation made more urgent the need for a land rich in forests and, above all, water, in which they could strengthen relations with the yãmĩyxop spirit-peoples, through songs, rituals, parties and games.
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Special Screenings
Sessões Especiais
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MESTRE GÊ E O ESTADO DA ARTE MESTRE GÊ AND THE STATE OF ART Brasil/Minas Gerais, 2021, cor, 86’ direção director • Portugal Braga fotografia cinematography • Lenysson Cunha, Portugal Braga (Dedé), Matheus Diniz Bruno Alves (Sasi), David, Alexandra Simões, Renata Otto, Fernando (Muranga), Jonatas Smith (John John) direção de arte art director • Gercino Alves montagem editing • Renata Otto, Portugal Braga e Francys Raphael produção production • Érica Bruna assistência de direção director assistant • Matheus Diniz organização do acervo archive organization • Fabiano Pereira, Maycon Antônio, Francys Rafael, Érica Bruna, Matheus Diniz concepção do projeto project conception • Alessandra Cecílio colorista colorist • José Cury tratamento de áudio audio treatment • Philippe Lobo vinhetas [vignette] e lettering • Matheus Sá Motta contato contact • dedeavesso@gmail.com/ ericabruna4123@gmail.com
Mestre Gê é mestre ator, mestre de capoeira angola, mestre do boi da manta, candombeiro, dançante da guarda de Moçambique, mestre carnavalesco, mestre diretor de cinema, mestre agitador cultural e político. Em seus trinta anos de atuação, ele aprende com outros mestres de diversas vertentes da cultura popular e ensina para qualquer um que em seu quintal se apresenta. Como o boi da manta, a cada vez que se reparte, se multiplica e levanta do chão a alegria de viver. Este filme quer transbordar essa cura como se fosse água. Master Gê is a master actor, master in capoeira Angola, master of boi da manta, a candombeiro, dancer of the Moçambique guard, a carnival master, a master filmmaker, master in cultural and political activism. Through his thirty years of work, he has learned from other masters of various popular culture strands and has taught whoever presents themselves to his yard. As it happens with boi da manta, every time he shares, he multiplies and raises from the floor the joy of living. This film wants to overflow this healing as if it were water.
SESSÕES ESPECIAIS
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NAS GIRAS DO VENTO IN THE WHIRLINGS OF WIND Brasil/ Minas Gerais, 2020, cor, 25’ direção directors • César Guimarães, Pedro Aspahan fotografia e montagem cinematography and editing • Pedro Aspahan som sound • Arthur Riale, Julia Avelar, Luis Oliveira, Luíza Lombardi fotografia still e assistência still photography and assistant • Gabriel de Moura imagem adicional additional camera • João Pedro de Carvalho, Mateus Carvalho produção e entrevistas production and interviews • César Guimarães contato contact • contato@saberestradicionais.org, www.saberestradicionais.org Mestra dos pontos cantados da umbanda, liderança quilombola e mãe de santo, Maria Luiza Marcelino, vai ao encontro de seus ancestrais escravizados que jazem próximos aos escombros de uma antiga fazenda colonial, por eles construída. Lá, ela cria, de improviso, um ritual, entre cantos e danças, numa gira entre as gerações e as diferentes temporalidades. Ela abre os caminhos e Iansã vem nos saudar. Filme realizado por professores
SESSÕES ESPECIAIS
e alunos do Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG, num esforço contra colonial de transformar a universidade pública brasileira em um espaço pluriepistêmico, abrigando mestras e mestres dos saberes tradicionais como professores de seus saberes no ambiente acadêmico. Maria Luiza Marcelino is an Afro Brazilian Master of Umbanda chants, leader of a traditional quilombo in Ubá, interior of Minas Gerais, Brazil and mother of saint (priestess of an Afro Brazilian religion). She visits her enslaved ancestors buried close to the ruins of an old colonial farmhouse, which was built by them. There, Maria Luiza creates a ritual, singing and dancing, to produce new connections between past and future, history and present, and announcing the duties of new generations. She opens the way and Iansã, the goddess of thunder, winds and storms, mother of spirits, comes to greet us. The film was made by professors and students of the Transversal Training in Traditional Knowledges of UFMG (Federal University of Minas Gerais), in a contra colonial effort to transform the Brazilian public university into a pluriepistemic environment, hosting masters of traditional knowledges as professors of their own knowledges in the uni.
Forum: seminar, conferences, debates, interviews and release
Fórum: Seminário, conferências, debates, entrevistas e lançamentos
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Programação Diária Fórum de Debates forumdoc.bh.2021 Quinta 18 nov 19h - Abertura forumdoc.bh.2021 Apresentação do festival seguida de mesa de debate sobre o tema arquivos com a participação de Gustavo Caboco, Juliana Fausto e Marcelo Zelic *Acessibilidade: tradução em LIBRAS Sábado 20 nov 15h - Mostra Comunidades de Cuidado Mesa Enfrentamentos, ou corpo como arquivo Com Gabriela Gaia, Priscila Rezende e Vladimir Seixas Mediação: Carla Italiano e Milene Migliano 18h às 22h30 - Mostra Desaparecimento e reaparecimento dos povos e das imagens Manifestação on-line pela vida dos povos isolados e pela floresta Líderes indígenas e indigenistas, mediados por imagens técnicas, em parte inéditas, falam sobre a situação dos índios isolados e as estratégias para sua proteção.
Domingo 21 nov 16h - Mostra Comunidades de Cuidado Conferência com Castiel Vitorino Brasileiro - “Tornar-se Imensurável” Mediação: Tatiana Carvalho Costa *Acessibilidade: tradução em LIBRAS
Terça 23 nov - Jardins Internos/Palácio das Artes 19h - Mostra Desaparecimento e reaparecimento dos povos e das imagens Debate com Vincent Carelli sobre a vídeo-instalação Inéditos Inevitáveis numa Experiência Sensorial: Fragmentos do Acervo Vídeo nas Aldeias. Mediação: Renata Otto
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Quarta 24 nov - Jardins Internos/Palácio das Artes 19h - Mostra Desaparecimento e reaparecimento dos povos e das imagens Sessão comentada por Vincent Carelli. Mediação: Cláudia Mesquita e Ruben Caixeta Exibição de A Festa da Moça (1987, 18’, Vincent Carelli); A Arca dos Zo’é (1993, 22’, Vincent Carelli e Dominique Gallois); Eu já fui seu Irmão (1993, 32’, Vincent Carelli)
Quinta 25 nov 19h - Retrospectiva Karrabing Film Collective Mesa “No princípio só existiam filmes Karrabing:” Retrospectiva Karrabing Film Collective com Kênia Freitas, Olinda Tupinambá e Renato Sztutman Mediação: Paulo Maia e Roberto Romero
Sexta 26 nov 10h - Lançamento de publicação Livro Cosmologias da imagem: cinemas de realização indígena (Filmes de Quintal) Debate com Ailton Krenak, Yxapy /Patrícia Ferreira e Ruben Caixeta Mediação: Daniel Ribeiro Duarte e Júnia Torres
Sábado 27 nov - Cine Humberto Mauro/Palácio das Artes 17h - Sessões Especiais Mestre Gê e o Estado da Arte (2021, 86’, Portugal Braga) Sessão apresentada por realizadores/as, Gercino Alves e Irmandade dos atores da pândega
Domingo 28 nov 16h - Mostra Comunidades de Cuidado Mesa Éticas de curas, ou corpo como sonho e ancestralidade com Abiniel João Nascimento, Makota Kidoiale e Sueli Maxakali Mediação: Milene Migliano e Cora Lima 20h - Retrospectiva Karrabing Film Collective Conferência com Elizabeth Povinelli (EUA) - “Ecologias, herdabilidade e o presente ancestral” Mediação: Paulo Maia e Roberto Romero *com tradução simultânea para português e LIBRAS
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Terça 30 nov - Cine Humberto Mauro/Palácio das Artes 19h - Lançamento de publicações Distribuição gratuita dos Cadernos do Cineclube Comum, vol. 4 - Sabotadores da Indústria II, vol. 5 – Brasil 68. Distribuição do Livro Cosmologias da imagem: cinemas de realização indígena (Filmes de Quintal). Lançamento da Revista Devires – Cinema e Humanidades – Dossiê Pedagogias do Cinema, v.15, n.1 e n. 2 (on-line)
Quarta 1 dez 15h - Mostra Comunidades de Cuidado Mesa Fabulações, ou corpo como memória com arquivo mangue, Fredda Amorim e Ronaldo Serruya Mediação: Arthur Medrado e Milene Migliano
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DEBATES GRAVADOS COM REALIZADORXS on-line a partir de 18 nov - canal do Youtube Ano 2020 (2021, 16’, de Coletivo Olhares (Im)possíveis) Debate com o coletivo realizador. Mediação: curadorxs da mostra Deus tem AIDS (2021, 82’, de Fábio Leal e Gustavo Vinagre) Debate com realizadores. Mediação: Arthur Medrado e Carla Italiano Pérola - work in progress (2021, 51’, de Paula Kimo, Joanna Ladeira e Zi Reis) Debate entre a convidada Cristina Amaral e as realizadoras do filme Mediação: Glaura Cardoso Vale Pi’õnhitsi – Mulheres Xavante Sem Nome (2009, 56’, de Divino Tserewahú e Tiago Campos Torres) Conversa entre Divino Ttserewahú e Bernard Belisário. Mediação: Renata Otto
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Debate de abertura forumdoc.bh.2021 [ON-LINE] Quinta, 18 nov, 19h
Abertura forumdoc.bh.2021 Apresentação do festival seguida de mesa de debate sobre o tema arquivos com a participação de Gustavo Caboco, Juliana Fausto e Marcelo Zelic *com tradução em LIBRAS --MINI-BIOS Gustavo Caboco: Nascido em Curitiba, Roraima. (1989). Artista visual Wapichana, trabalha na rede Paraná-Roraima e nos caminhos de retorno à terra. Sua produção com desenho, pintura, texto, bordado, animação e performance propõe maneiras de refletir sobre os deslocamentos dos corpos indígenas, nas formas de (re)conexão com os territórios originários e do cultivo da memória. Juliana Fausto é filósofa e escritora. Autora de A cosmopolítica dos animais (n-1 edições, 2020), possui graduação em Filosofia pela UFRJ, mestrado em Letras pela PUC-Rio e doutorado em Filosofia pela mesma universidade. Desenvolve pesquisa de pós-doutorado desde 2017 no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFPR, com bolsa PNPD/CAPES acerca das relações entre animais extra-humanos e política. Sua tese recebeu menção honrosa no prêmio ANPOF/2018 e prêmio de Melhor Tese de Filosofia no Concurso de Teses do CTCH da PUC-Rio 2018/2019. Tem publicações na área de estudos animais, estudos feministas, cinema e literatura, com enfoque no Antropoceno. Nos últimos anos vem participando de projetos em colaboração com artistas tais como Cecilia Cavalieri, Daniel Steegmann-Mangrané, Maya Da-Rin, Luisa Marques e Ana Vaz, entre outros, em diferentes interfaces. É pesquisadora da species - Núcleo de Antropologia Especulativa/UFPR e do Inuma - Interfaces humano não humano/UFS. Marcelo Zelic é membro da Comissão Justiça e Paz de São Paulo e coordenador do Armazém Memória. Foi um dos proponentes da inclusão da temática de violações contra os povos indígenas nos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV).
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Manifestação on-line pela vida dos povos isolados e pela floresta 20 de nov, das 18h às 22h30 Onde: Canal do Youtube do forumdoc.bh
Entre dezembro de 2018 e outubro de 2019, a Base Ituí-Itaquaí da Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari (FPEVJ) foi atacada oito vezes a tiros por invasores. Em 6 de setembro de 2019, o servidor da Funai Maxciel Pereira dos Santos foi assassinado a tiros em Tabatinga (AM), possivelmente em retaliação a ações de fiscalização que vinham sendo realizadas pelo órgão para coibir atividades ilegais na TI Vale do Javari. No dia 09 de outubro de 2020, o indigenista Rieli Franciscato foi atingido no coração por uma flecha lançada por indígenas isolados que miravam nos invasores mas, tragicamente, acertaram no defensor de seus territórios em Rondônia. Rieli faleceu logo em seguida. Reconhecido como um dos maiores indigenistas do país, Rieli era coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental Uru-Eu-Wau-Wau (FPEUEWW) da Funai, e dedicou 30 anos de sua vida aos povos isolados! No dia 16 de 2021, faleceu de Covid-19 Karapiru, ele mesmo sobrevivente de um massacre cometido por invasores da terra de seu povo, os Awá-Guajá do Maranhão. Karapiru tinha se tornado conhecido pela sua doçura e alegria contagiantes por meio de “Serras da desordem”, filme que conta sua saga de fuga dos “exterminadores dos índios” e do futuro. Estas perdas foram brutais demais para os povos indígenas e para o indigenismo. São simbólicas (des)norteantes para os tempos que estamos vivendo, nos quais, indigenistas e indígenas são ameaçados de todos os lados e o tempo todo: seja pelas frentes de colonização, seja pelo próprio Estado brasileiro que, no lugar de cumprir sua missão constitucional de proteção ao direito do índio, desmantela os órgãos responsáveis pela execução da política pública, coloca o emprego e a vida daqueles que são os mais vulneráveis em risco. Neste dia, convocaremos os re-existentes (indigenistas e indígenas), por meio de uma manifestação on-line e mediada pelas imagens. Alguns, estarão presentes apenas nos filmes, como “Tanuru”, o “índio do buraco”, ou Konibu, chefe Akuntsu falecido, vistos no filme Corumbiara; ou Karapiru Awá-Guajá, também falecido, visto no filme
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Serras da Desordem, ou os dois homens Piripkura, que insistem em viver livremente, “isolados”. Todos eles são, para nós, como vagalumes, cujo brilho intermitente nos guia nas trevas políticas de nosso tempo (atiçando-nos a crença de que um outro mundo é possível), inversamente aos “projetores ferozes” e às luzes cegantes do progresso capitalista, como escreveu o filósofo Didi-Huberman. Outros virão nos falar on-line, em modo síncrono ou gravado. Por meio destes testemunhos, comporemos um panorama da situação atual dos povos isolados e das principais ameaças que se abatem sobre seus territórios e suas próprias vidas: as invasões de madeireiros, garimpeiros, pecuaristas, proselitistas religiosos, estradas, linhas de transmissão, cadastros ambientais rurais... Co-organização: Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia (COIAB), Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI). Com participação confirmada de: • Angela Kaxuyana, coordenação executiva COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira); • Antenor Vaz, integrante do Grupo de Trabalho Internacional PIACI (Proteção dos Povos Indígenas em Isolamento e Contato Inicial)/Land is Life; • Beatriz Matos, integrante do OPI (Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato); • Beto Marubo, integrante da UNIVAJA (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari)/ AM; • Daniel Aristizábal, Coordinador Proceso PIACI y Bajo Amazonas/ACT (Amazon Conservation Team) Colombia; • Elias Bigio, integrante do Conselho Diretor da OPAN (Operação Amazônia Nativa) • Flay Guajajara, coordenador de comunicação na TI Araribóia/Maranhão; • Ivaneide Bandeia Cardoso (Neidinha), coordenadora na ONG Kanindé/RO; • Marcelo Santos, indigenista aposentado Funai; • Mateus Manchineri, integrante do Grupo de Monitoramento Mnaxineru, na TI Mamoadade/Acre e fronteira Brasil/Peru; • Wellington Figueiredo, indigenista aposentado Funai. Idealizadores e colaboradores da manifestação: • Alana Keline Costa Silva Manchineri, gerência de comunicação COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira); • Angela Kaxuyana, Coordenadora da COIAB; • Antenor Vaz, integrante do Grupo de Trabalho Internacional pela Proteção dos Povos Indígenas em Isolamento e Contato Inicial – GTI PIACI / Land is Life; • Beatriz Matos, professora na Universidade Federal do Pará (UFPA), integrante
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do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI); • Elias Bigio, integrante do conselho diretor da Operação Amazônia Nativa (OPAN) • Junia Torres, integrante do forumdoc.bh; • Luciano Pohl, assessor técnico na gerência de povos isolados e recente contato da COIAB; • Luisa Lanna, integrante do forumdoc.bh; • Maria Emília Coelho, conselheira na Comissão Pró Índio (CPI)- ACRE, assessora técnica na COIAB; • Renata Otto, integrante do forumdoc.bh; • Ruben Caixeta, professor na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), integrante do forumdoc.bh;
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Ecologias, herdabilidade e o presente ancestral
Conferência com Elizabeth Povinelli
“Ecologies, Heritability, and the Ancestral Present” Conference with Elizabeth Povinelli [No princípio, só existiam filme Karrabing: Retrospectiva Karrabing Film Collective]
Domingo, 28 de nov, às 20h - Canal do Youtube Mediação de Paulo Maia e Roberto Romero *com tradução simultânea para português e LIBRAS Sunday, Nov. 28 at 8 pm | forumdoc.bh Youtube channel Mediated by Paulo Maia and Roberto Romero *Simultaneous translation into Portuguese and LIBRAS
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À medida que as geleiras derretem e os mares sobem, as artes críticas (critical arts) e o cinema se voltam para as questões da ecologia humana e mais do que humana do ponto de vista da descolonização de formas de comunhão e relacionalidade. Esta masterclass usa trabalhos de Povinelli e do Karrabing Film Collective para perguntar como ações artísticas e ecológicas coletivas orientadas para a sobrevivência e a herdabilidade - a luta para reorientar o passado ancestral em direção a futuros ecológicos em rápida mudança - intervêm em uma multiplicidade de formas políticas, incluindo a sobrevivência indígena, Nativismo Branco (White Nativism) e aliança descolonizante. Elizabeth A. Povinelli é antropóloga e cineasta, professora de Antropologia e Estudos de Gênero da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. É autora dos livros Geontologies: A Requiem to Late Liberalism (2016), Economies of Abandonment: Social Belonging and Endurance in Late Liberalism (2011), e The Cunning of Recognition: Indigenous Alterities and the Making of Australian Multiculturalism (2002). É uma das fundadoras do Karrabing Film Collective.
As the glaciers melt and the seas rise, critical arts and cinema has turned to questions of human and more than human ecologies from the point of view of decolonizing forms of commoning and relationality. This masterclass uses works from Povinelli and the Karrabing Film Collective to ask how collective artistic and ecological actions oriented to survivance and heritability – the struggle to reorient the ancestral past toward rapidly shifting ecological futures – intervene in a multiplicity of political forms, including Indigenous survivance, White Nativism, and decolonizing alliance. Elizabeth A. Povinelli is Franz Boas Professor of Anthropology and Gender Studies at Columbia University. Her books include Geontologies: A Requiem to Late Liberalism (2016), Economies of Abandonment: Social Belonging and Endurance in Late Liberalism (2011), and The Cunning of Recognition: Indigenous Alterities and the Making of Australian Multiculturalism (2002). She is also a founding member of the Karrabing Film Collective.
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Tornar-se Imensurável
Conferência com Castiel Vitorino Brasileiro [Mostra Comunidades de Cuidado: fabulações, enfrentamentos e éticas de cura]
Domingo, 21 nov, 16h Mediação: Tatiana Carvalho Costa Ambiente Zoom com inscrições prévias e retransmissão para canal do Youtube *com tradução em LIBRAS Castiel Vitorino é artista, escritora e psicóloga clínica atualmente mestranda no programa de Psicologia Clínica da PUC-SP. Vive a Transmutação como um designo inevitável. Dribla, incorpora e mergulha em sua ontologia Bantu. Assumiu a cura como um momento perecível de liberdade. Estuda e constrói espiritualidade e ancestralidade interespecífica. Nasceu em Fonte Grande. Vitória/Espirito Santo - Brasil. Vive e trabalha no planeta Terra. Tatiana Carvalho Costa [mediação]: é Doutoranda no PPGCom/ UFMG e professora no Centro Universitário UNA, em Belo Horizonte. Integrante do FICINE - Fórum Itinerante do Cinema Negro - e conselheira da APAN - Associação de Profissionais do Audiovisual Negro.
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Debates
Retrospectiva Karrabing Film Collective MESA No princípio, só existiam filme Karrabing: Retrospectiva Karrabing Film Collective
Quinta, 25 nov, 19h Canal do Youtube com Kênia Freitas, Olinda Tupinambá e Renato Sztutman Mediação: Paulo Maia e Roberto Romero
MINI-BIOS Juliana Fausto é filósofa e escritora. Autora de A cosmopolítica dos animais (n-1 edições, 2020), possui graduação em Filosofia pela UFRJ, mestrado em Letras pela PUC-Rio e doutorado em Filosofia pela mesma universidade. Desenvolve pesquisa de pós-doutorado desde 2017 no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFPR, com bolsa PNPD/CAPES acerca das relações entre animais extra-humanos e política. Sua tese recebeu menção honrosa no prêmio ANPOF/2018 e prêmio de Melhor Tese de Filosofia no Concurso de Teses do CTCH da PUC-Rio 2018/2019. Tem publicações na área de estudos animais, estudos feministas, cinema e literatura, com enfoque no Antropoceno. Nos últimos anos vem participando de projetos em colaboração com artistas tais como Cecilia Cavalieri, Daniel Steegmann-Mangrané, Maya Da-Rin, Luisa Marques e Ana Vaz, entre outros, em diferentes interfaces. É pesquisadora da species – Núcleo de Antropologia Especulativa/UFPR e do Inuma – Interfaces humano não humano/UFS. Kênia Freitas é crítica e curadora de cinema, com pesquisa sobre Afrofuturismo e o Cinema Negro. Fez estágios de pós-doutorado (CAPES/PNPD) no programa de pós-graduação em Comunicação na UCB (2015-2018) e no programa de pós-graduação em Comunicação da Unesp (2018-2020). Doutora pela Escola da Comunicação da UFRJ na linha Tecnologias da Comunicação e Estéticas (2015). Mestre em Comunicação formado pelo Programa de Pós-Graduação em Multimeios da Unicamp (2010). Graduação em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelo Departamento de Comunicação Social da Ufes (2007). Realizou a curadoria das mostras “Afrofuturismo: cinema e música em uma diáspora intergaláctica”, “A Magia da Mulher Negra” e “Diretoras Negras no Cinema brasileiro”. Escreve críticas para o site Multiplot!. Ministra cursos e oficinas sobre cinema negro, afrofuturismo e fabulações.
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Olinda Tupinambá: indígena do povo Tupinambá e Pataxó hãhãhãe, jornalista, cineasta e ativista ambiental. Trabalha com audiovisual desde o final de 2015 e, entre documentários, ficção e performance, produziu e dirigiu 7 obras audiovisuais independentes. Foi curadora de diversos festivais e mostras de cinema, dentre eles o Festival de Cinema Indígena Cine Kurumin 8 edição (2021) e a mostra Lugar de Mulher é no cinema (2021). Produtora de duas mostras de cinema, Amotara – Olhares das Mulheres Indígenas (2021) e mostra Paraguaçu de Cinema Indígena. Coordenadora do Projeto Kaapora. Coautora do Doc/Especial TV. Falas da Terra. Produção: Estúdios Globo. Renato Sztutman é professor do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo. É mestre (2000) e doutor (2005) em Antropologia Social pela USP, área de etnologia indígena. Realizou pós-doutorado, em 2015, no Departamento de Filosofia da Universidade de Paris Ouest Nanterre. É coordenador do Centro de Estudos Ameríndios (CEstA-USP) e pesquisador do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia (LISA-USP). Foi editor responsável, entre 2013 e 2017, da Revista de Antropologia (Depto. de Antropologia da USP). Foi um dos fundadores e co-editou, entre 1997 e 2007, a revista Sexta-Feira. Seus principais temas de pesquisa são: cosmopolíticas ameríndias, fronteiras entre antropologia e filosofia, antropologia e cinema. [Curadoria e Mediação] Paulo Maia possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (1999), doutorado em Antropologia Social pelo PPGAS / Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (2009) e estágio pós-doutoral (2018) no Performance Department e Hemispheric Institute of Performance and Politics da New York University. Atualmente é professor associado e coordenador do Curso de Formação Intercultural para Educadores Indígenas (FIEI) na Faculdade de Educação (FaE-UFMG). Tem experiência na área de antropologia, com ênfase em Etnologia Sul Americana e Educação Indígena, tendo realizado pesquisa de campo com os Baré (alto rio Negro). Também é um dos idealizadores do forumdoc.bh – Festival do Filme Documentário e Etnográfico – Fórum de Antropologia e Cinema realizado anualmente desde 1997 pela Associação Filmes de Quintal em parceria com a UFMG em Belo Horizonte (MG), é coordenador do projeto de extensão forumdoc.ufmg. Roberto Romero é doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional (UFRJ) e pesquisador do Núcleo de Antropologia Simétrica (NanSi). É membro da Associação Filmes de Quintal e um dos organizadores do forumdoc.bh – festival do filme documentário e etnográfico de Belo Horizonte. Co-dirigiu o longa Nũhũ yãgmũ yõg hãm: essa terra é nossa! (2020).
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Debates
Mostra Comunidades de Cuidado: fabulações, enfrentamentos e éticas de cura Ambiente Zoom com inscrições prévias e retransmissão para canal do Youtube
Mesa 1. Enfrentamentos, ou corpo como arquivo Sábado, 20 nov, 15h com Gabriela Gaia, Priscila Rezende e Vladimir Seixas Mediação: Carla Italiano e Milene Migliano
Mesa 2. Éticas de Curas, ou corpo como sonho e ancestralidade Domingo, 28 nov, 16h com Abiniel João Nascimento, Makota Kidoiale e Sueli Maxakali Mediação: Milene Migliano e Cora Lima
Mesa 3. Fabulações, ou corpo como memória Quarta, 1 dez, 15h Com arquivo mangue, Fredda Amorim e Ronaldo Serruya Mediação: Arthur Medrado e Milene Migliano
DEBATES PRÉ-GRAVADOS Ano 2020 (2021,16’, de Coletivo Olhares (Im)possíveis) Debate com o coletivo realizador. Mediação: Carla Italiano e Milene Migliano Deus tem AIDS (2021, 82’, de Fábio Leal e Gustavo Vinagre) Debate com realizadores. Mediação: Arthur Medrado e Carla Italiano Pérola [work in progress] (2021, 51’, de Paula Kimo, Joanna Ladeira e Zi Reis) Debate entre a convidada Cristina Amaral e as realizadoras do filme Mediação: Glaura Cardoso Vale
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MINI-BIOS Mesa 1. Enfrentamentos, ou corpo como arquivo Gabriela Leandro Pereira (Gaia): É doutora em arquitetura e urbanismo, professora na UFBA, em Salvador, onde desenvolve investigações sobre narrativas, histórias, memórias e epistemologias produzidas sobre a cidade, urbanismo, arquitetura e seus apagamentos, interseccionados pelo debate das racialidades e de gênero. Se divide entre a docência, pesquisa, extensão, organização de eventos acadêmicos, curadoria e participação em comissões e conselhos editoriais. É autora do livro Corpo, discurso e território: Cidade em disputa nas dobras da narrativa de Carolina Maria de Jesus, adaptação de sua tese de doutorado de mesmo nome, premiada em 2017 pela Associação Nacional de Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional. É co-fundadora da Coletiva Terra Preta Cidade e Conselheira da Casa Sueli Carneiro. Priscila Rezende: É artista visual e desenvolve trabalhos em performance, instalação, vídeo e fotografia. Raça, identidade, inserção e presença do indivíduo negro e das mulheres na sociedade contemporânea são os principais norteadores e questionamentos levantados no seu trabalho. Partindo de suas próprias experiências, limitações impostas, discriminação e estereótipos são expostas em ações corporais viscerais, que buscam estabelecer com o público um diálogo direto e claro. Priscila é graduada em Artes Plásticas pela Escola Guignard-UEMG (Belo Horizonte, Brasil) com habilitação em Fotografia e Cerâmica. Dentre sua atuação destaca-se a presença em exposições em diversas regiões do Brasil como Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Pernambuco, Amapá e Rio Grande do Sul e em países como Alemanha, Inglaterra, EUA, Espanha, Holanda e Polônia. Vladimir Seixas: é diretor e roteirista audiovisual desde 2008. Indicado ao Emmy Internacional de melhor documentário em 2019 com “A Primeira Pedra”, Vladimir é formado em Filosofia com mestrado em Estética pela UERJ e em Direção Cinematográfica pela Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Seus filmes investigam as transformações políticas e culturais no Brasil dos últimos anos a partir das lutas de movimentos urbanos. Em 2015 criou no Rio de Janeiro a produtora Couro de Rato ao lado do sócio Luis Carlos de Alencar. Dirigiu e roteirizou cinco curtas, dois longas, uma série e um telefilme, participou de mais de 50 festivais pelo mundo e recebeu diversas premiações. Exibe no forumdoc.bh seu 3º doc longa “Rolê – Histórias dos Rolezinhos” e desenvolvendo seu primeiro longa de ficção.
Mesa 2. Éticas de Curas, ou corpo como sonho e ancestralidade Abiniel João Nascimento: Tabajara da mata norte pernambucana e idealizador da Ka’a Îuru – escola da memória. Tem buscado materializar suas inquietações se apropriando do lugar denominado arte. Nesse sentido, é artista visual, curador(a) e, não obstante, também é bacharelando em Museologia pela Universidade Federal de Pernambuco.
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Está membro(a) do Coletivo de Arte Negra e Indígena – CARNI; pesquisador(a) no grupo de pesquisa Cultura e Arte Indígena no Nordeste – CAIN e do Laboratório de Poéticas Indígenas (UFPE). Foi curador(a) convidado(a) na Plataforma Práticas Desviantes, assim como exerce a curadoria da exposição “Hoje somos muitas árvores”. Makota Kidoiale (Cássia Cristina da Silva): Liderança comunitária no kilombo e candomblé Manzo Ngunzo Kaiango, militante do Movimento Negro Unificado, (MNU), e do Coletivo Mães Pela Diversidade. Coordenadora do Projeto Kizomba, e idealizadora do projeto Eduka kilombo. Conselheira Estadual, e Municipal de Promoção da Igualdade Racial (CONEPIR/COMPIR), Mestra e professora no Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG. Vem construindo a luta pelas ações afirmativas dentro e fora da comunidade, com o intuito de transmitir o conhecimento da ancestralidade negra para a população, buscando dessa forma quebrar barreiras e preconceitos contra a população afrodescendente, contribuindo para o desenvolvimento da cidadania, com respeito a diversidade e a diferença. Participa e protagoniza lutas contra o machismo, racismo, intolerância religiosa e todas formas de discriminação, contribuindo para a sociedade na defesa dos direitos humanos. Sueli Maxakali: Presidente da Associação Maxakali de Aldeia Verde, fotógrafa, cineasta e professora do Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG. Atua como artista, liderança e ativista da questão indígena, utilizando em seu trabalho várias linguagens como o canto, o desenho, a fotografia, o cinema e os adornos de miçanga.
Mesa 3. Fabulações, ou corpo como memória arquivo mangue: arquivo mangue nasce do encontro de amor entre us artistas Camila Mota y Cafira Zoé y o desejo de criar mundos y imaginar presente-passado-futuros através do corpo-palavra-imagem-vídeo, fundindo caminhos fora do pensamento y dos modos de fazer-mundo coloniais-extrativistas, heterocentrados, binários, normativos, patriarcais y supremacistas. fazemos trabalhos de encruzilhada, obras-rituais. importa a simbiose, a confluência, o que se passa entre y o tempo da fermentação de tudo. praticamos a f(r)icção especulativa. criamos obras-vivas, multimídias, cosmopolíticas. ciência, tecnologia y transe. Ronaldo Serruya: É ator e dramaturgo de um dos mais importantes grupos de teatro do país, o Grupo XIX de teatro ( SP), premiado no Brasil e no exterior. Em 2009 fundou o Teatro Kunyn, coletivo que pesquisa a questão queer nas artes cênicas. Pelo texto Desmesura ganhou o Premio Suzy Capó no 25O Festival MIX da Diversidade. Desenvolve também o projeto Como eliminar monstros: discursos artísticos sobre HIV/ AIDS, projeto que analisa uma história social da doença e reflete sobre os estigmas que rondam corpos positivos através da fricção entre Arte x HIV. Seu texto A doença do outro, ganhador do 7º Edital de Dramaturgia em pequenos formatos do CCSP (SP), é um monólogo sobre sua experiência vivendo com HIV.
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Fredda Amorim: Historiadora e professora, Mestra em artes cênicas, pesquisadora incansável de performatividades, monstruosidades e fruições de gênero e sexualidade nas artes. Atualmente doutoranda em Teatro na UDESC onde onde busca agrupar corpas transvestigenere fazedoras de arte afim de criar uma produção a partir da escuta, do encontro e dos afetos. Militante e atuante em diversas frentes como Academia Transliteraria, Plataforma Queerlombos, MUTHA Brasil e coletivo MICA. Idealizadora e produtora da Bangalô de Irene produções artísticas onde vem transitando por produções locais, nacionais e internacionais no Teatro, Dança, cinema e festivais. [Debates gravados] Cristina Amaral [debatedora convidada]: Formada em Cinema pela ECA-USP, é responsável pela montagem de filmes de diretores como Andrea Tonacci, Carlos Reichenbach, Edgard Navarro, Joel Yamaji, Carlos Adriano, Paula Gaitán, Raquel Gerber, entre outros. Mais recentemente, tem feito trabalhos ao lado de jovens realizadores como Adirley Queirós,Thiago B.Mendonça, Eryk Rocha, Renata Martins, Djin Sganzerla e Jo Serfaty. [Curadoria e Mediação] Arthur Medrado: é pesquisador e educador audiovisual. Doutorando do PPGCine (Programa de Pós-graduação em Cinema e Audiovisual), da UFF. Mestre em Educação e bacharel em Jornalismo pela UFOP. Participou da mobilidade internacional na Universidade Nacional de La Plata – UNLP, na Argentina, onde estudou “Comunicação Audiovisual”. Também faz parte da Plataforma Queerlombos e do Coletivo Mica. Carla Italiano: é pesquisadora em cinema e programadora de mostras e festivais. Doutoranda em Comunicação Social pela UFMG. Integra a equipe de programação do Olhar de Cinema - Festival Internacional de Curitiba (2017-2021) e é uma das organizadoras do forumdoc.bh. Foi co-curadora das mostras “Esta terra é a nossa terra” (2020), “Retrospectiva Helena Solberg” (CCBB, 2018),”Retrospectiva Jonas Mekas” (forumdoc.2013). Também integra o grupo de pesquisa “Poéticas femininas, Políticas femininas” (UFMG). É natural de Recife e residente em Belo Horizonte. Cora Lima: é estudante de graduação em Antropologia Social na UFMG e produtora. Glaura Cardoso Vale: é ensaísta, produtora editorial e pesquisadora de cinema e outras artes. Publicou A mise-en-film da fotografia no documentário brasileiro e um ensaio avulso (Relicário, 1ª Ed. 2016, 2ª Ed. 2020). Colabora com o forumdoc.bh desde 2003 e coordena o editorial do FestCurtasBH desde 2017. Milene Migliano: é pesquisadora, professora e produtora. Pós-Doutoranda no GP Juvenália: questões estéticas, geracionais, raciais e de gênero em comunicação e
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consumo, no PPGCOM ESPM-SP. Doutora em Processos Urbanos Contemporâneos pelo PPGAU – UFBA, mestre em Comunicação e Sociabilidade Contemporânea pelo PPGCOM – UFMG e jornalista com formação complementar em cinema, também na UFMG. Tem se engajado desde 2003 em diversos festivais de cinema que articulam contextos singulares de universidades públicas, como o forumdoc.bh e a UFMG, o FIDÉ e a Paris VIII, o Cachoeira.doc e a UFRB, o Festival Mimoso de Cinema, com a UFRB e a UFOB, o F.EST.A e a UFSB, o Cinema Urbana e a UNB, entre outros. No forumdoc. bh foi co-curadora das mostras “Esta Terra é a Nossa Terra” (2020) e “Cinema dos Povos Originários: Bolívia e México” (2011), entre outras. Integra também o Grupo de Estudos em Experiência Estética: Comunicação e Arte, da UFRB. É pesquisadora do GT Infâncias e Juventudes da CLACSO, Conselho Latino Americano em Ciências Sociais.
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Debates
Mostra Desaparecimento e reaparecimento dos povos e das imagens: 35 anos de Vídeo nas Aldeias e 25 anos de forumdoc.bh Manifestação on-line pela vida dos povos isolados e pela floresta Sábado, 20 nov, 18h às 22h30 Canal do Youtube Líderes indígenas e indigenistas, mediados por imagens técnicas (mapas, fotos e vídeos), em parte inéditas, falam sobre a situação dos índios isolados e as estratégias para a sua proteção, a partir de uma reflexão que leve em conta: a) o conceito de isolamento; b) a autodeterminação dos povos isolados; c) as vulnerabilidades; d) o desmonte das políticas públicas de proteção aos povos isolados. [PRESENCIAL] Terça, 23 nov, 19h – Jardins Internos/ Palácio das Artes Debate com Vincent Carelli sobre vídeo-instalação Inéditos Inevitáveis numa Experiência Sensorial: Fragmentos do Acervo Vídeo nas Aldeias. Mediação: Renata Otto Quarta, 24 nov, 19h – Jardins Internos/ Palácio das Artes Sessão comentada por Vincent Carelli em torno aos filmes: A Festa da Moça (1987, 18’, Vincent Carelli); A Arca dos Zo’é (1993, 22’, Vincent Carelli e Dominique Gallois); Eu já fui seu Irmão (1993, 32’, Vincent Carelli Mediação: Cláudia Mesquita e Ruben Caixeta
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DEBATE GRAVADO COM REALIZADORXS Pi’õnhitsi – Mulheres Xavante Sem Nome (2009, 56’, de Divino Tserewahú e Tiago Campos Torres). Debate entre Divino Ttserewahú e Bernard Belisário Mediação: Renata Otto
MINI-BIOS Vincent Carelli: Indigenista e cineasta, criou em 1986 o Vídeo nas Aldeias, a serviço dos projetos políticos e culturais dos índios, e realizou uma série de documentários sobre os impactos deste trabalho. A Arca dos Zo’é, recebeu vários prêmios, entre eles nos Festivais de Tóquio e do Cinéma du Réel em Paris, e a trilogia O Espírito da TV, A Arca dos Zo’é e Eu já fui seu Irmão foi exibida por uma série de televisões públicas pelo mundo e no MOMA em NY. Em 1999, Carelli recebe o Prêmio UNESCO pelo respeito à diversidade cultural e pela busca de relações de paz interétnicas, e em 2000, realiza a série Índios no Brasil para a TV Escola do Ministério da Educação. Em 2009, a ONG Vídeo nas Aldeias, uma escola de cinema para indígenas, recebe a “Ordem do Mérito Cultural” do governo brasileiro e o seu filme Corumbiara, sobre o massacre de índios isolados em Rondônia, é o grande vencedor do Festival de Gramado, e de vários festivais nacionais e internacionais. Martírio (2016) é o segundo de uma trilogia, traça o percurso histórico do genocídio Guarani Kaiowa no Mato Grosso do Sul e o prêmio de Melhor Filme no festival de Mar Del Plata e em vários festivais nacionais e internacionais. Em 2017, Carelli recebeu o Prêmio Prince Claus nos Países Baixos pela sua militância pelo cinema indígena. O filme Adeus, Capitão fechará a sua trilogia. Divino Tserewahú: Divino começou a aprender sobre cinema em 1990, quando a comunidade Xavante de Sangradouro recebeu sua primeira câmera de filmagem (VHS), doada pelo Centro de Trabalho Indigenista (CTI) de São Paulo. Sua primeira atuação profissional na área foi como parte da equipe do Programa de Índio, série de TV realizada na Universidade Federal do Mato Grosso entre 1995 e 1996. Em 1997, Divino participou do primeiro encontro e oficina de formação de cineastas indígenas do Brasil, organizado pelo Vídeo nas Aldeias e realizado no Parque Indígena do Xingu. Já entre 2001 e 2002, por intermédio do Vídeo nas Aldeias, ele conseguiu uma vaga para estudar na Escola Internacional de Cinema de San António de Los Baños, em Cuba, onde se capacitou nas técnicas de edição, roteiro de documentário e ficção, animação, entre outras. Bernard Belisário: Pesquisador e professor de Cinema e Audiovisual na UFSB – Universidade Federal do Sul da Bahia. Graduou-se em Rádio/TV e em Jornalismo, e pós-graduou-se em Comunicação Social pela UFMG (Comunicação e Sociabilidade Contemporânea / Pragmáticas da Imagem – Mestrado e Doutorado). Atuou como diretor, roteirista, finalizador e montador de filmes, videoarte e programas de televisão (Rede Minas). Colaborador do Vídeo nas Aldeias/PE desde 2011, ministrou oficinas de realização cinematográfica junto a comunidades indígenas no Brasil (Alto Xingu,
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Xavante, Guarani e Kaiowá, Maxakali, Pataxó, Tupinambá e Kiriri) e no Paraguai (Ayoreo). Foi Arte-Educador de Cinema e Audiovisual em projetos da Fundação Municipal de Cultura de BH/MG, atuando principalmente na periferia Leste (São Geraldo, Mariano de Abreu, Alto Vera Cruz e Taquaril). Pesquisador participante da SOCINE – Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual/SP. Vice-líder do grupo de pesquisa Poéticas Ameríndias/BA (CNPq/UFSB). Colaborador internacional dos Laboratórios de História Indígena da UNAM – Universidad Nacional Autónoma de México. Integrante do Conselho Gestor da AIC – Agência de Iniciativas Cidadãs/MG. [Curadoria e Mediação] Cláudia Mesquita: Professora do curso de graduação e do programa de pós-graduação em Comunicação Social da UFMG, onde integra os grupos de pesquisa Poéticas da Experiência e Poéticas Femininas, Políticas Feministas. Pesquisadora do cinema brasileiro, com mestrado e doutorado na ECA-USP. Realizou pós-doutorado na Universidade Federal do Ceará (2018-2019), onde desenvolveu o projeto “O presente como história – estéticas da elaboração no cinema brasileiro contemporâneo”. Publicou, com Consuelo Lins, o livro Filmar o real – sobre o documentário brasileiro contemporâneo (Editora Jorge Zahar, 2008), e organizou, com Maria Campaña Ramia, El otro cine de Eduardo Coutinho (Cinememoria e Edoc, 2012), publicado no Equador. Júnia Torres: Documentarista e antropóloga com doutorado pela UFMG. Integrante da Associação Filmes de Quintal. Programadora de mostras de cinema com foco em realizações de autoria indígena. Integra a equipe de organização do forumdoc.bh – festival do filme documentário e etnográfico de BH e a curadoria do Mekukradjá, Círculo de Saberes. Luísa Lanna: Professora na Escola Livre de Artes Arena da Cultura, montadora e produtora na área de cinema. Coordenou oficinas de realização e edição em cinema junto aos povos Guarani, Kaiowá e Guajajara. Montadora para o longa-metragem Yamiyhex – As mulheres espírito (direção: Sueli e Isael Maxakali). É membra da Associação Filmes de Quintal, onde atuou como produtora de 2015 à 2018, participando da organização e planejamento do forumdoc.bh – Festival do Filme e Documentário Etnográfico de Belo Horizonte e demais projetos da associação. Renata Otto: Mestre em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ e doutoranda pelo PPGAS da UNB. Foi antropóloga da FUNAI, atuando nas coordenações de delimitação e demarcação de terras e proteção aos índios isolados. Co-dirigiu, com Isael Maxakali e Sueli Maxakali, o filme Quando os Yãmiy vêm Dançar Conosco (2012). Integra a Filmes de Quintal. Ruben Caixeta de Queiroz: Professor de antropologia do PPGAN – UFMG, etnólogo e pesquisador do CNPq. Pesquisa junto aos povos indígenas Karib das Guianas desde 1994. Integra a equipe de organização do forumdoc.bh – festival do filme documentário e etnográfico de BH.
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Livro “Cosmologias da imagem: cinemas de realização indígena” Ano: 2021 Organização: Associação Filmes de Quintal Coordenação editorial: Daniel Ribeiro Duarte, Júnia Torres e Roberto Romero
[ON-LINE] Sexta 26 nov, 10h Debate com Ailton Krenak, Yxapy /Patrícia Ferreira e Ruben Caixeta Mediação: Daniel Ribeiro Duarte e Júnia Torres [PRESENCIAL] Terça, 30 nov, 19h Distribuição gratuita no Cine Humberto Mauro/Palácio das Artes A publicação “Cosmologias da Imagem: Cinemas de Realização Indígena” é uma coletânea que tem a intenção de fazer circular novamente e de forma reunida, textos reflexivos e ensaísticos publicados nos catálogos do forumdoc.bh – Festival
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do Filme Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte – em seus 25 anos de existência, destinados a esse cinema singular e diverso. Esta coletânea é acrescida de textos recentes de autores como Ailton Krenak, Edgar Kanaykõ e Alberto Alvares, além de outros colaboradores que refletem sobre as realizações autorais indígenas de forma mais geral. The publication “Cosmologies of image: Cinemas of indigenous filmmaking” is a collection that intends to make circulate, again, and in a compiled way, reflective and essayistic texts published on the forumdoc.bh’s catalogues – Documentary and Ethnographic Film Festival of Belo Horizonte – in its 25 years of existence, dedicated to this singular and diverse cinema. This collection is supplemented by recent texts from authors such as Ailton Kernak, Edgar Kanaykõ and Alberto Alvares, besides other contributors who reflect upon the authorial indigenous filmmaking in a more general way.
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Cadernos do Cineclube Comum vol. 4 - Sabotadores da Indústria II, vol. 5 - Brasil 68 [PRESENCIAL] Terça, 30 nov, 19h - Cine Humberto Mauro/Palácio das Artes Distribuição gratuita
Em parceria com o forumdoc.bh, o Cineclube Comum – projeto de curadoria, exibição e discussão cinematográfica em atividade em Belo Horizonte desde 2012 – convida para a sessão de lançamento dos volumes 4 e 5 dos Cadernos do Cineclube Comum, duas coletâneas de ensaios críticos a partir dos filmes exibidos nas mostras Sabotadores da Indústria II e Brasil 68, realizadas em 2015 e 2018. As publicações impressas contam com a escrita de críticos e críticas, pesquisadoras e pesquisadores de todo o país e foram financiadas com recursos do edital BH nas Telas de 2019. Os Cadernos serão distribuídos gratuitamente para os presentes na sessão. In partnership with forumdoc.bh, Cineclube Comum – a film programming, exhibition and discussion project that has been in operation in Belo Horizonte since 2012 – invites to the release of volumes 4 and 5 of Cadernos do Cineclube Comum, consisting of two collections of critical essays based on the films shown in the Industry Saboteurs II and Brasil 68 exhibitions, held in 2015 and 2018. The printed publications are written by critics and researchers from all over the country and were financed with resources from BH nas Telas 2019. The books will be distributed free of charge to those present at the session.
Essays and interview
Ensaios e Entrevista
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forumdoc.bh.2021
Karrabing: Um Ensaio em Palavras-chave1 TESS LEA e ELIZABETH A. POVINELLI Tradução: Daniel Ribeiro Duarte
Introdução Um ovo quebrado chia no óleo de uma frigideira, enquanto uma espátula de metal passeia pelas bordas, levantando e liberando a clara à medida em que a sua gosma transparente cede para dar lugar a um opaco branco. “O que você acha daquele Sonhar de Cachorro?”, uma mulher pergunta à menina que está sentada no banco da cozinha, assistindo à fritura do ovo enquanto abraça os joelhos junto ao peito (ver Figura 1). A resposta não é imediatamente verificável. De fato, os espectadores não sabem ainda a que se refere o “Sonhar de Cachorro”; e mesmo quando são apresentados ao lugar a que se refere a mulher, é mais através de uma conversa do que de uma crença definida. Um grupo de jovens adultos e crianças debate o que poderia ter feito uma série de poços de água mineral numa pequena colina: um cachorro ancestral, equipamento de escavação, dinossauros, bombas talvez? De volta ao início, os espectadores veem apenas uma menina olhando para a mulher, o ovo ainda chiando, sons de um programa de televisão ao fundo. Quando a cena se move dessa discussão para outra em que moradores de uma casa têm que se levantar rapidamente dos seus dormitórios espalhados – uma cadeira, um sofá, colchões no chão – não cartelas com mapas para mostrar aos espectadores onde isso tudo está acontecendo. É uma sala de estar, uma casa, um jardim, e depois a rua. Poderia ser em qualquer lugar. Desde o início, é exigido aos espectadores trabalhar sobre o que estão vendo, e embora eles sejam ajudados pela legendagem, a experiência pode ser desorientadora. O filme coloca em cena essa desorientação de locação e espectador. Sugere que as questões de “o que” e “onde” são de fato legítimas, mas subverte as esperadas convenções de uma pronta tradução transcultural ou exegese etnográfica insistindo que os espectadores não-Indígenas também experimentem as interrupções de espaço e tempo que são usualmente impostas aos Indígenas. Portanto, o filme apresenta uma variedade de quadros de investigação e referência que são parte da vida comum do norte Indígena: introduzir questões metafísicas sobre os Sonhares juntamente a questões socio-críticas sobre as forças que estão em jogo na convivência colonial, 1. Originalmente publicado em: Visual Anthropology Review, Volume 34, Number 1, Spring 2018, pp. 36 – 46.
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incluindo como evitar e acomodar a negação implacável da privacidade e da agência indígenas, desde as reivindicações estatais para gerenciar o tempo e o dinheiro das pessoas até a intimidade do seu arranjo doméstico de colchões. A desorientação é deliberada, e serve para reorientar em direção a uma ruptura na facilidade social, e ainda, como discutiremos abaixo por meio de refrões comuns do público, tais esforços correspondem a um desejo de reconduzir a narratologia Karrabing para conceitos mais familiares, ou se quiser, criações mais confortáveis. Nós procedemos a nossa análise deste espaço de recepção interpolativa através de extratos de diálogos reais, conversações entre os Karrabing, e uma discussão de palavras-chave, enquanto analisamos a expectativa de que os membros do Karrabing reflitam sobre seus projetos fílmicos de maneira reconhecidamente esclarecedora.2 Começamos por descrever brevemente o coletivo Karrabing e sua filmografia (ver também ANGELOTTI, 2015; ANON, 2015; KARRABING FILM COLLECTIVE, 2017; POVINELLI, 2016).
O Karrabing O Coletivo Karrabing de Cinema é uma cooperativa de base formada por amigos e familiares, incluindo Elizabeth Povinelli, cujas vidas se interconectam por todas as águas costeiras imediatamente a oeste de Darwin e ao longo da Baía de Anson, na foz do Rio Daly, estendendo-se numa rede global e transnacional de curadores, artistas e cineastas. O Coletivo usa o cinema para analisar as formas contemporâneas do 2. Excluindo indicações em contrário, todos os extratos de diálogos são de conversações internas e entre membros do coletivo Karrabing, anotadas em cadernos de campo por Lea e Povinelli.
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colonialismo e, por meio destas representações, desafiar o seu controle. Seus filmes operam em muitos níveis: desde piadas internas e sugestões de um mundo sensível para além das fronteiras do visível, até investigações sobre o que está causando a corrosão diária na vida indígena. O Coletivo usa o termo Karrabing (“viragem de maré baixa”) da língua Emmiyengal para perturbar o usual binarismo antropológico entre políticas indígenas locais (“tradicionais”) e socialidades indígenas deslocadas e diaspóricas (“históricas”), vendo ambas como “construções etnográficas frágeis e ultrapassadas” (VINCENT, 2017, p.3). Enquanto a maior parte dos membros é indígena e proveniente dos mares e terras ao longo da Baía de Anson, no Território Setentrional, o Coletivo coloca ênfase num contexto de amizades e relações familiares que se estendem para o interior até as comunidades ribeirinhas e chegam tão longe quanto os Estados Unidos. Estas formas de conectividade falam, consciente e criticamente, ao uso estatal de linhagens descendentes e espaços delimitados, consagrados na legislação de reivindicação de terras, para artificialmente fixá-los numa “antiguidade homeostática” (NEALE, 2017, p. 59). As formas de interconexão assinaladas pelo termo Karrabing impelem explicitamente contra os métodos pelos quais as agências estatais isolam e dividem os povos indígenas uns dos outros via descendência racial. Rituais, casamento, trabalho conjunto e mudança de código linguístico são todos vistos como formas de conectar pessoas e lugares: fazem deles um coletivo sem cancelar a independência das pessoas e a diferença entre elas. Como Linda Yarrowin coloca, Através do casamento, rituais, suor você se junta a eles mas você também mantém o seu roan roan forte. É por isso que as pessoas eram fortes antes. Elas respeitavam as outras pessoas porque elas também eram conectadas dentro como fora. (O mesmo ocorre com o casamento, rituais, suar em algum lugar – quando você faz isso você se une ao lugar em que essas atividades acontecem, mas você também mantém o seu próprio povo e lugar fortes. É por isso que as pessoas eram fortes antes dos brancos chegarem. Eles respeitavam aquelas outras pessoas porque eles eram conectados por dentro e tinham um fora). (POVINELLI et al. 2017)
Ou como outro dos fundadores do coletivo Karrabing, Rex Edmunds, afirmou: “Karrabing significa maré baixa. E quando ela chega, fiquemos juntos.” O que nós estamos testemunhando é uma duplicação ainda mais generalizada, um modo de conectividade e independência, de semelhança e diferença. Essa duplicação do que é fortalecido como corpo individual (lugar, paisagem) através da conexão interna a um conjunto de ambientes contraria o dualismo liberal entre dentro ou fora, assim como entre o mesmo ou diferente. Tais distinções conceituais, sutis mas importantes, encontram-se no cerne dos impasses entre as aspirações do Coletivo e as métricas e discursos da política governamental e dos públicos engajados. E é esse impasse que define o primeiro dos filmes Karrabing. Quando os Cachorros Falavam (When the Dogs Talked) (Povinelli 2014) começa com o problema habitacional de uma das integrantes.
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Gigi: [é sobre] como nós temos lutado pela vida. Eu sou o mistério. Toda vez que estou com toda a minha família, tenho que acomodá-la em minha casa e ela fica lotada, às vezes é demais pra mim. Às vezes eu só quero sair, só quero ir a algum outro lugar. É muito stress, é gente demais. Isso afeta a todos nós. Rex: Nós queremos sair para o mato, onde podemos caçar e pescar e não pagar aluguel, pra estar com o resto da família.
Tal como no dilema da habitação, o Coletivo em si emergiu num momento de impasse e reorientação da política estatal federal sobre o bem estar indígena no Território Setentrional. Originalmente, os membros começam a fazer curtas-metragens como um método de auto-organização e análise social, impelidos pela experiência radical de tornarem-se refugiados em seu próprio país (POVINELLI, 2002). Tendo chegado a um outro lado da experiência de seus pais com a necropolítica do colonialismo – o período extraordinariamente violento entre genocídio, assimilação, autodeterminação e as exaustivas exumações da identidade cultural que a autodeterminação exigia então para reivindicação de terras (POVINELLI, 1994 and 2002; ROBERTS, 2009; ROSE, 1991) – as coisas começaram seriamente a se desvendar. Como Povinelli escreveu em outro lugar: Em 15 de Março, 2007, membros... foram ameaçados com motosserras e canos, viram seus carros e casas serem incendiados e seus cães espancados até a morte. Quatro famílias perderam empregos raros e bem remunerados na educação, habitação e abastecimento de água. (POVINELLI, 2011, np)
Nas vicissitudes mutáveis da habitação indígena e nas políticas sociais mais amplas (CRABTREE, 2013; LEA 2012b; LEA and PHOLEROS 2010), a resposta inicial a esse desalojamento foi vagamente esperançosa. Às famílias foi prometida nova habitação, escolarização adequada e empregos melhores em Bulgul, próximos à foz do Rio Daly, um local que, pequeno e com infraestrutura urbana de baixa para zero, estava mais próximo das suas terras ancestrais. Um assentamento de barracas foi montado; a maré estava virando. Linda: Em 2007, que foi quando estávamos fugindo de Belyuen. [Éramos] pessoas sem-teto porque nós nunca tivemos aquela casa, como você sabe, então nós tivemos todos que morar em casas lotadas em Minmerrama [um conjunto habitacional público em Darwin] e então na estação das chuvas nós todos decidimos que devíamos nos mudar para Bulgul [Daly River] e dormir sob as árvores [em barracas].
Enquanto eles moravam em pequenas barracas, esperando pelo cumprimento das promessas de nova habitação, empregos e escolas, a política governamental mudou rapidamente, desencadeando o que parecia ser uma nova onda de violência. Os povos Aborígenes não podiam receber financiamento para infraestrutura nas suas terras tradicionais, mas eram agora instruídos a mudar para “cidades em
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crescimento” determinadas arbitrariamente (MARKHAM e DORAN, 2015) ou para os bairros de habitação popular da capital. Gigi, repetindo as suas observações: O filme que nós fizemos era sobre o estilo de vida que temos vivido, tentando mostrar a outras pessoas como temos lutado ao longo da vida. Nós decidimos fazer este filme, é sobre mim... porque toda vez que eu tenho toda a minha família aqui eu tenho que colocá-los em minha casa. É uma casa de três quartos e está superlotada e é muito para mim e às vezes eu sinto que preciso sair e dar uma volta por aí. É muito stress. É muita gente.
Quando eu perguntei se o filme é, portanto, a sua história, Gigi responde, “São todas as nossas histórias”. Aqui, voltamos a uma questão anterior: a encenação e distribuição de desorientação interna e provocada pelos filmes Karrabing, cujo quadro de referência é considerado universal ou particular. O comentário de Gigi de que o filme encena “são todas as nossas histórias” pode ser lido como referindo-se meramente a “todas as nossas histórias (dos membros indígenas do coletivo Karrabing)”. Ou pode ser ampliado para “todas as nossas histórias (dos povos indígenas habitantes do Território Setentrional sob o jugo da lógica implacável da intervenção).” Ou indo além para “todas as nossas histórias (dos povos indígenas que vivem sob ocupação contínua).” E, assim por diante... logo a questão de qual história é legível, é universal, é a condição geral e a história de mais pessoas, se desloca – assim como se desloca o argumento cinematográfico dominante. Esse tipo de coisa é o que geralmente é sabido por quem vive no mundo da maior parte das pessoas, indígenas, de cor, subalternas, radicalmente marginalizadas, esculpidas por políticas de incentivo, e divididas pelo capitalismo extrativista. When the Dogs Talked é o primeiro de três filmes (When the Dogs Talked, The Stealing C*nt$ [Windjarrameru, os ladrões filhos da P*ut@], e Wutharr: Saltwater Dreams), frequentemente denominados como a Trilogia da Intervenção, que abordam as formas de vida indígena e a sua condição sob a Resposta de Emergência do Território Setentrional, também conhecida como “a Intervenção”, mas sem se referir especificamente a ela. A não-referência, por sua vez, levanta o impasse da documentação dentro das condições do presente. Qual seria a aparência da Intervenção em termos de sua duração contínua? O filme documentário poderia encenar e tematizar uma dura interrupção da vida indígena como simplesmente um outro conjunto contínuo de interrupções históricas, como evento e não-evento ao mesmo tempo? A magnitude dificilmente articulável daquilo que deveria ser testemunhado expõe a promessa delirante das mídias visuais enquanto oferta de um equipamento de registro abrangente, mas que responde pouco a fenômenos que são, por outro lado, invisíveis ao instinto intervencionista. Por um lado, When the Dogs Talked é um filme sobre pessoas constrangidas pelas suas circunstâncias sob as condições da ocupação colonialista liberal tardia. O filme começa com uma família, condenada pela Comissão de Habitação de Darwin devido à superlotação, que sai em busca de sua parente, Gigi, em cujo nome está a concessão da casa. Os agentes da Comissão de Habitação avisam que se a ausente
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Gigi não comparecer ao escritório da comissão até o dia seguinte, ela vai perder a casa. Esta perda não vai ser dela sozinha: todos os que dependem da casa como abrigo para uma noite de sono vão sofrer também. Em outras palavras, a falta de um teto é a causa do problema e o seu resultado. Por outro lado, mostra um grupo de famílias que também sustentam outras conexões, entre eles mesmos, com as suas terras tradicionais, e com diferentes racionalidades e percepções. Quando começa a jornada à procura de Gigi, e a família estendida viaja ainda mais longe para o interior de suas terras natais e por discussões sobre o que priorizar, o filme lentamente revela as interconexões viscerais corriqueiras entre as famílias e suas terras tradicionais que a ocupação colonialista consistentemente atropela mas não foi capaz de erradicar. Suas contra-alegações sobre como viver adequadamente, o que é viver bem e de acordo com a ética local, não se posicionam como uma alternativa ao mundo da existência burocratizada, mas como algo que pulsa dentro e ao redor das demandas mutantes de tal existência, reiterando e contornando simultaneamente as suas onipresentes reivindicações. Eles deveriam lutar pela concessão das casas em face das regulamentações governamentais sobre ruído e superlotação, ou viver sem infraestrutura em terras atravessadas por subdivisões, currais para gado e cercas? Ou eles vão administrar ambas as existências e mais além, incluindo as demandas de uma terra desejante, exigente, acusadora, punitiva e recompensadora? Estas interrogações não são respondidas pelo filme, mas animadas e amplificadas por ele. Todas as vezes em que uma possível resposta e logo uma saída para este dilema se apresenta, ela é imediatamente desviada por outra crise potencial, de origem bastante ordinária. Dizendo de outra forma, a abertura epistemológica com a qual o filme se inicia é continuamente suplementada por uma série de aberturas e fechamentos práticos. A causa dos buracos no chão sobre os quais a nossa menina das cenas iniciais é perguntada, os Sonhares de Cachorro, podem ser dinossauros, homens com máquinas, ou um ancestral gigante cujas garras foram feridas quando varas para atiçar o fogo foram espetadas e viradas em suas mãos descomunais, queimando e decepando os seus dedos. Quem e o quê os cães ancestrais são na medida em que estes cães persistem no presente é a pergunta que a menina deixa sem resposta, confundindo as expectativas da audiência, e o ovo ainda fritando no final do filme. Não dizer pode muito bem ser mais perturbador do que dizer. Ela não irá representar, digamos, uma lamentável lacuna de conhecimento entre o que os seus ancestrais teriam dito sobre o Sonhares de Cachorro e o conhecimento dos jovens de hoje. Ela também não será uma medida das reivindicações dinâmicas da “modernidade” sobre uma era estática dos Sonhares. Recusando o binarismo moral e conceitual, o filme atiça o desejo da audiência por uma resolução, mas ao invés disso a ficha técnica do filme é seguida por piadas sobre Star Gate, colocando humoristicamente em primeiro plano uma referência ao papel mediador das memórias cinematográficas embutidas no arco narrativo do filme. Mas ao lado dessas aberturas epistemológicas estão os vórtices práticos de um Estado que exige versões concorrentes da indigeneidade – tanto conhecedoras do que é selvagem quanto econômica e domesticamente condescendentes – sem
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fornecer caminhos e bloqueando os recursos disponíveis para a plena realização de qualquer um deles. Os Karrabing se perguntam se o Estado está muito contente deles falharem em ambos: “não se preocupe, eles [os brancos] continuam nos matando,” dirão os membros. Como a Intervenção, a rebelião e suas ramificações começaram muito antes da rebelião, e vão reverberar por muito tempo depois. No final do filme, enquanto a cena inicial se repete, espera-se que os espectadores vejam que há mais em jogo do que a positividade da redenção cultural pela qual as audiências anseiam, mesmo se o colonialismo a nega aos povos indígenas. Ao contrário (novamente, espera-se que), a audiência começa a sentir a desorientação de suas próprias bússolas morais, políticas e sociais, de uma maneira que Nietzsche apreciaria. Mas isso não pode ser controlado. Quando exibimos Quando os Cães falavam no Gertrude Contemporary (um complexo de estúdios e galeria sem fins lucrativos na cidade de Melbourne, Australia), um membro do público pediu esclarecimentos sobre a relação entre as ações dos Karrabing e as reações dos Sonhares além da natureza moral do Sonhar em si mesmo. “O Sonhar de Cachorro é bom ou mau?” ela perguntou. A resposta, como insistem as obras dos Karrabing, é não escolher um ou outro, mas recusar o enquadramento subjacente da própria pergunta. O segundo filme dos Karrabing, Windjarrameru, The Stealing C*nt$ (2015), faz isso de maneira mais explícita. Windjarrameru explora quem vai para a cadeia por qual tipo de roubo e violação, e que tipo de punição é aplicada a diferentes tipos de transgressão. Como em Dogs, os celulares têm um papel. Windjarrameru abre com um jovem vigilante florestal indígena recostado em uma árvore, fazendo uma pesquisa, passando o tempo com selfies enquanto ouve música pelo telefone. Claramente ele está em um turno de vigília prolongado. Ele é interrompido por um grupo de amigos da sua idade que o convidam para se juntar a eles na divisão de uma caixa de cerveja quente que eles por sorte encontraram no matagal, começando com uma breve especulação sobre como a cerveja chegou ali, sugerindo sutilmente a normalidade da transgressão cotidiana nas terras indígenas. “De onde você acha que veio essa cerveja?” pergunta um deles. “Campistas,” responde um outro. “Eles devem ter esquecido de colocar [as cervejas de volta] no isopor”.
Enquanto eles vão bebendo, palavras arrastadas e corpos vagarosos, a brincadeira dos rapazes muda de uma provocação para palavras sérias sobre como é a experiência de estar confinado na prisão de Berrimah em Darwin, onde muitos homens indígenas vão parar. Serem acusados de roubo quando há claramente invasores em suas terras se torna um dos muitos padrões ambíguos que passam diante dos olhos dos espectadores. Antes de os jovens beberrões o cooptarem, nosso jovem patrulheiro estava rastreando atividades suspeitas de mineração ilegal, um problema que os membros adultos do Coletivo Karrabing jogaram na trama. Nesse filme, os mineradores ilegais são representados por homens indígenas, vestidos com óculos espelhados de aviador e um desprezo indiferente pelos lugares sagrados que pretendem destruir, enquanto outros atores Karrabing mostram o conluio entre capital extrativista, policiamento e encarceramento. A imagem improvável dos executivos
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de mineração aborígenes funciona porque os atores capturam o seu cinismo com perfeição, uma análise de personagem baseada na familiaridade profunda com as formas racializadas de acumulação por meio de expropriação (cf. HARVEY, 2005). Linda Yarrowin: Explicando o argumento: “Os [mineradores] agem como vigaristas, escavando em terras como aquele local sagrado”. Gavin Bianumu: “Os nossos não denunciaram os mineradores. Só nós levamos a culpa”. Rex Edmunds: “Tipo nós entramos em cana por qualquer coisa, mas os Berragut [os brancos] é que roubam tudo” (veja também Madden 2015).
Ao considerarem os papéis desempenhados no incidente pelo presente ancestral, o Estado regulatório e a fé cristã, o terceiro filme da trilogia, Wutharr: Saltwater Dreams, desta vez filmado quase exclusivamente com smartphones,3 explora mais a fundo as demandas múltiplas e os vórtices inescapáveis da vida indígena contemporânea. Através de uma série de flashbacks, uma família indígena estendida discute sobre o que poderá ter causado a quebra do motor de seu barco, o que os deixou presos no mato. Fundamentalmente, Wutharr volta a temáticas exploradas em Dogs, mas agora com uma estrutura transtemporal mais profunda que insiste que a vida presente dessa família é incrustada e justaposta a uma paisagem ativamente interpretada. A natureza grotesca do Estado de bem-estar social punitivo é escancarada quando um dos membros interpreta um agente do Estado enviado para ajudar o grupo a preencher os formulários necessários para pagar uma multa enorme que eles acumularam por navegar até as suas terras sem o equipamento de segurança adequado. No momento em que o agente resume o sétimo documento indecifrável, qualquer pretensa racionalidade das práticas estatais já voou pela janela. O que retorna é um esfera de ancestralidade igualmente exigente. Quando uma das protagonistas – tendo sido pega num turbilhão de ideias que a remete a 1952 – pergunta aos seus ancestrais (ainda vivos) por que eles a puniram e à sua família quebrando o motor, a resposta é simples: você não nos visita o suficiente. É uma sinuca de bico: para cumprir as suas obrigações territoriais no contexto do colonialismo contemporâneo, eles precisam violar a lei estatal, ou vice versa. Eles não podem evitar que uma instância ou a outra os punam.
Conversando com Espectadores, Conversando com os Karrabing: Lições em Palavras-chave Sempre que os membros do Karrabing estão presentes para os debates após as sessões, seja em Berlim, Jerusalém, Atenas, Mechelen ou Canberra, o público procura fixar o significado do que está assistindo para conseguir uma explicação mas nítida das intenções do Coletivo Karrabing. As perguntas são usualmente provocativas, genuínas e comprobatórias, invocando risadas, discussão e interação. Como tais, elas não são perguntas equivocadas. Ainda assim, elas também são o indicativo de 3. Os filmes anteriores foram produzidos com a ajuda de uma equipe externa de cinema
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um campo de poder na amável busca de um significado, um apelo semântico sutil e bem-intencionado, que aqui, por sua vez, nós recolocamos num diálogo em torno de palavras-chave, sondando as sondagens do público para saber o que elas revelam sobre as políticas de recepção e circulação. Porque há esse jogo entre expectativas condicionadas – o que um público liberal, educado e ocidental foi ensinado a saber sobre a existência indígena e o que os membros do Karrabing querem dizer sobre quem eles são – que todos os filmes Karrabing tornam visível. Etnografia/Documentário Umas das perguntas que são continuamente feitas aos Karrabing é sobre o gênero (POVINELLI, 2016). Dependendo de onde os filmes são mostrados, os membros do coletivo são incitados a selecionar entre diferentes sugestões que lhes são apresentadas: etnografia, documentário, surrealismo, hiper-realismo, fragmentação ou não-ficção neorrealista. Quando Povinelli está disponível para responder ao público, a questão se volta frequentemente para o filme etnográfico, e mais especificamente, a tradição de Jean Rouch e a sua obra na África Ocidental Francesa (ROUCH, 1978). Alguns são mais insistentes que os outros que os filmes sejam considerados parte da tradição etnográfica (em oposição, digamos, às técnicas de Augusto Boal [2000], também conhecidas como Teatro do Oprimido). Há muitas coisas que poderiam ser ditas sobre isso. A primeira, muito importante, é salientar que o cinema etnográfico contemporâneo é um campo visual incrivelmente rico e diverso, que é frequentemente mais efetivo como mídia comprobatória do que a etnografia escrita, e que apesar disso foi implacavelmente criticada como a forma definitiva da representação colonialista. (BIDDLE, 2008; DEGER, 2006; GINSBURG, 2010, 2011; MACDOUGALL, 1998). Como um dos fundadores da etno-ficção – um gênero que se disseminaria no trabalho escrito de muitos antropólogos inovadores como Michael Taussig (EAKIN, 2001; TAUSSIG, 2004) – o trabalho de Rouch rompeu múltiplos gêneros existentes e ajudou a criar a Antropologia Visual como um campo; mas as problemáticas de representar “o Outro” simplesmente para re-presentar a nós mesmos manteve-se. Como Rachel Moore (1992) argumentou há algum tempo atrás, o “vídeo indígena” não resolve os problemas que contagiam as reivindicações de autoridade etnográfica. No entanto, embora essas discussões sejam importantes, elas direcionam erroneamente as intenções do Coletivo Karrabing. Trabalhar com questões de (má) tradução e (des)orientação são os principais métodos dos Karrabing, mesmo que os seus membros nunca tenham posicionado o seu trabalho como a solução empoderada para os problemas de voz antropológica, levantando a questão de por que o filme etnográfico é considerado o gênero com o qual os Karrabing estão trabalhando. Uma resposta é clara: um de seus membros é uma antropóloga identificada, se bem que ela tenha se tornado parte do grupo a pedido dos pais e avós dos atuais membros do Karrabing (POVINELLI, 2016). Outra resposta é que o coletivo constrói suas narrativas tendo como base a vida do dia-a-dia, e representar o cotidiano é o espaço reivindicado do trabalho antropológico. O que é mais interessante de explorar
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é o colapso de uma forma coletiva de criação em uma forma de ser representado por si mesmo ou por outro: pela antropóloga ou pelo grupo. Em outras palavras, a função do trabalho fílmico é ser representado ou representar a si mesmo para um público. É mostrar-se a si mesmo para o outro. Como disse Linda Yarrowin, “Os nossos filmes mostram como são as nossas vidas, o que está realmente acontecendo conosco”. Em outra ocasião, ela enfatizou novamente a questão: “Uma história verdadeira, mas uma história; é real, mas tem história.” Da mesma forma, Natasha Bigfoot Lewis descreve os filmes Karrabing como “verdadeiros” no sentido que mesmo o mais documental dos filmes é feito de cenas ficcionais que imitam a realidade, são coisas que aconteceram ou poderiam ter acontecido, uma captura fidedigna do que é ser indígena hoje em dia. E, no entanto, o que os membros também dizem é que esses filmes estão tornando algo verdadeiro, mas que ainda são incapazes de construir definições sobre o mundo. Sheree Bianamu e Ethan Jorrock, jovens membros do Coletivo, descrevem isso como uma tomada de consciência, pelo processo de trazer à visibilidade através das necessidades da filmagem e de transpirar novamente nas terras ancestrais, como as histórias que os seus pais e avós lhes contaram não são simples “histórias de crianças” mas um meio de enquadrar as ações de seu grupo e as reações da própria terra. (BIANAMU et al. 2017). Aqui, a questão muda de gênero e classificação para prática e formação: que práticas trazem à tona uma formação de existência social e territorial que os Karrabing lutam para (re)fazer como verdadeiras, um problema que emerge novamente com a questão da colaboração. Colaboração A palavra colaboração, assim como etnografia, não é uma palavra que os Karrabing tendem a utilizar, ainda que seja uma questão rotineiramente colocada, talvez como uma fachada para a pergunta que as pessoas são educadas demais para fazer: especificamente, o que exatamente é Karrabing? De qualquer maneira, as respostas não são prontamente convertidas em declarações enérgicas que diferentes interlocutores anseiam por ouvir, pois eles cortam transversalmente as definições antropologizadas de terra, parentesco e afinidade agora consagradas nos sistemas tanto legais quanto populares de reconhecimento cultural. A singularidade do conceito também implica um modo de co-presença que poderia de outra forma não existir senão pela deliberada intenção de trabalhar juntos, levantando a questão: trata-se de uma colaboração quando a formação preexiste como um conjunto de relações entre pessoas que viveram juntas, amaram, odiaram e sempre ajudaram-se mutuamente, em relações de duração e significado atemporal? Aqui, recordamos a afirmação de Rex Edmund’s de que Karrabing significa “conforme a maré chega, fiquemos juntos”. Isso descreve um grupo de pessoas que, como as marés, se juntam e se separam à medida que diferentes funções de suas vidas convergem e se dissipam, não sendo nem uma ação pontual nem um estado de equilíbrio constante, mas uma continuação das práticas relacionais.
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Concebida nos termos dos sistemas de financiamento, “colaboração” pode ainda supor que os membros do Coletivo representam grupos discretos de descendência soberana, como se estes fossem uma entidade atemporal real - como se diferentes grupos de descendência existissem discretamente, tendo sempre agido assim neste tipo de forma, e agora estão colaborando. Aqui também há grande fluidez na prática. Digamos que uma forma de receber terras seja através do seu pai; mas se o seu pai te abandonou (“apenas deixou o seu ovo”), então você deve contar com as terras que vêm do pai da sua mãe. Então, as áreas que podem ser a terra de alguém são sempre distribuídas e mutáveis. A maré vem e vai, as areias mudam, os fogos incendeiam, os rios alagam, as margens sofrem erosão, os Sonhares são contrariados e pressionam com suas demandas, os meios econômicos de subsistência decaem e fluem, e as pessoas se mudam e se casam através de diferentes encontros. Existem modos de absorção de parentesco e há modos exclusivistas. Para os Karrabing, os modos de absorção são dominantes: relações de sangue e amizade são igualmente envolvidos. Evidentemente, parentes formais podem ser julgados com critérios diferentes: quão boa é uma tia, ou filha, sobrinho, filho, em relação aos laços afetivos cumpridos ou fracassados? Mas isso é tão fixo quanto os limites de grupo podem ser; o que quer dizer, afetivamente falando mais uma vez, dificilmente fixado, em meio a outras histórias de relacionamento, resposta, contemplação e sentimento – e simplesmente estar presente, retornar, permanecer. Seria mais verdadeiro, mas talvez não tão claro, dizer que o Coletivo coleciona relações entre pessoas que transcendem as categorias normativas do reconhecimento liberal. Então outra resposta para a pergunta sobre o que é Karrabing, ou como nele se colabora, pode ser que ele é uma formação que representa uma auto-organização decisiva prévia ao modelo de conselho fundiário imposto por grupos soberanos que impedem uma socialidade ativa. E esta resposta complicada seria necessária porque toda essa fluidez inerente foi administrativamente colonizada sob sistemas de reconhecimento burocrático e antropológico: a fronteira e a descendência heteronormativa tidas pelos antropólogos sociais como verdadeiras para todos os lugares ajudaram a tornar secundários todos os outros modos de agrupamento, atendendo a uma demanda governamental por certeza no momento de exercer a muscularidade disciplinar a partir de antigas incursões etnográficas (POVINELLI, 2002). Karrabing coloca um modo de pertencimento mútuo e a uma extensão de paisagens que corre na direção oposta e diagonalmente a esse fardo etnográfico, recusando-o, como Audra Simpson (2014) poderia dizer, ao mesmo tempo em que destacam como esse fardo pesa e deforma suas vidas - e as deforma de acordo com uma lógica específica, embora em evolução, do colonizador liberal tardio. No entanto, assim como um agrupamento auto-organizado – “toda uma família” – não extrai antropologismos das esculturas determinantes da lei, também os membros do Karrabing são apreendidos de forma diferente. Povinelli: “Nós podemos amar uns aos outros tanto quanto queremos – mas os brancos e os governos nos interpretam e enquadram diferentemente; nós não podemos fingir que o mundo está estruturado de forma diferente.”
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Preservação Cultural Se aos coletivos indígenas é frequentemente direcionada uma demanda geral de produzir narrativas como formas de representação ao invés de inovação fílmica ou diversão pura e simples, uma demanda mais específica é que os esforços artísticos indígenas sejam direcionados a algo que esteja além da produção artística em si mesma. Novamente, como na questão do gênero, ou da colaboração, o assunto é complicado. Afinal, o Coletivo Karrabing como um grupo, incluindo Povinelli, enxerga a realização cinematográfica como um meio poderoso de atualizar o que já está potencialmente dentro do grupo. Contar e recontar narrativas, examinando porque as cenas se seguem umas às outras, descobrindo como a análise de uma geração sobre as pessoas e lugares é incorporada e reconfigurada pela outra, e discutindo sobre qual aspecto desta analítica deveria ser parte de um filme: todas essas práticas de fato mantêm no presente, tornando vital e atraente, o que os colonizadores gostariam de limitar ao passado que se desvanece. Provavelmente, seria possível até quantificar os efeitos da realização de filmes e da incorporação contínua das crenças do Karrabing como uma forma de “preservação cultural”. Entretanto, a preservação cultural por si não é a razão pela qual muitos Karrabing realizam filmes e obras de arte. Ao invés disso, eles os fazem por causa de como eles os fazem agora – de acordo com sua própria programação; cenas filmadas periodicamente; em alguns casos, uma pessoa desempenhando um papel, em outros casos, vários corpos desempenhando vários papéis – é divertido e absorvente, uma diversão em uma semana chata, um meio de abrir viagens interestaduais e internacionais, uma forma de ter algo “para mostrar” em suas vidas, uma razão pragmática para se unir e uma razão para co-criar. Da mesma forma, o sucesso do filme e da arte indígena como um modo de produção, e os papéis vitais desempenhados pelos centros regionais de arte e mídia na Austrália, não necessariamente giram em torno de grandes intenções ou capacidades gloriosas4, mas porque eles permitem uma maneira de fazer, envolver e estar juntos em seus territórios que está, de outras formas, sendo estrangulado (para mais informações sobre centros de arte, ver Biddle 2016; sobre co-presença como criatividade no cuidado com a terra, ver Vincent 2017). Cinema e arte resultam bem para os Karrabing quando eles acolhem os termos da vida cotidiana e sua pragmática. A multiplicidade de razões que motiva vários membros a fazer filmes abre a intencionalidade do cinema para um conjunto cada vez maior de fins e, assim, abre as possibilidades do que o cinema pode fazer pelos membros do Karrabing. Nesse sentido, a realização Karrabing recusa que o liberalismo tardio capture todas as práticas pela racionalidade econômica ou reconhecimento cultural, incluindo a ideia da realização cinematográfica como um aprendizado para um caminho mais laborioso em nome do indivíduo ou de melhorias para a comunidade. 4. Uma questão que está além do escopo deste ensaio mas merece uma reflexão em separado é a da adoção e porquê alguns curadores específicos do mundo da arte responderam aos filmes Karrabing tão positivamente, citando as inovações do coletivo em termos de duração, endereçamento e imaginários estéticos, incluindo suas sobreposições e articulação de imagens para demonstrar tanto a separação de indígenas e não-indígenas e suas interpenetrações irredutíveis.
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Mas isso, como quaisquer respostas até agora, não pode diminuir as demandas da audiência e de potenciais mecenas de que o objetivo de fazer filmes seja transicional, uma busca teleológica por um destino auto-disciplinado e credenciado. Treinamento Antropólogo no público: “Reparei nos créditos [de Windjarrameru] que os aborígenes não operam as câmeras. Eles estão sendo treinados para este trabalho, para que posteriormente consigam empregos?”
Particularmente na Austrália, onde a percepção burocratizada da possibilidade indígena reina até mesmo nos círculos antropológicos (LEA, 2012a), há uma demanda contínua para que os aborígenes adiram às reificações de suas tradições. Em termos de conteúdo, os sofredores indígenas deveriam ser obrigados pelas suas responsabilidades com a terra, e ser frustrados por um Estado indiferente, de maneiras particularmente reconhecíveis. E como realizadores que detêm o dispositivo reparador que agora simboliza toda a desigualdade racial e econômica, que é a câmera, eles deveriam não apenas estar representando a si mesmos como sujeitos etnográficos mas também como bons cidadãos em formação. O trabalho de estar envolvido em filmes não pode ser apenas para provocar o pensamento, mexer com um propósito significativo, ter uma desculpa para estar juntos, aliviar o tédio ou se divertir, mas tem que estar vinculado a um resultado instrumental. Ou seja, além da demanda de que o trabalho político de um filme seja feito de acordo com as convenções narrativas, o público quer o movimento reparador adicional de ter mãos negras segurando a câmera (ver também Moore 1992): qualquer coisa a menos é uma diminuição do lugar de fala indígena, e uma plataforma enfraquecida para o objetivo final dos “empregos de verdade”. O fato do ordenamento de recursos, especialidades e tecnologias midiáticas não indígenas servir para reescrever a maneira como se sobrevive e resiste às profundas hostilidades do colonialismo, e que não seja uma traição à própria indigeneidade parece um ponto óbvio, que foi fortemente defendido por estudiosos e praticantes similares (por ex., Ginsburg 2004). Mas dada a demanda insistente de que este trabalho lúdico de crítica e análise seja ao invés disso interpretado como um trabalho de auto aprimoramento, orientado para a categoria política fictícia de “trabalho de verdade” é um ponto que vale a pena reiterar. A demanda instrumental tem efeitos interpolativos. Os membros do Karrabing vão responder que eles também estão mostrando a sua agência. Mas quando Linda Yarrowin responde a alguém do público: “Estamos na realidade fazendo algo para nós mesmos. Não só sendo pisoteados. As pessoas nos reconhecem. Nos fazem mais fortes,” isso não é uma afirmação de “estamos nos treinando com o propósito de assegurar empregos formais de videografistas”, mas indica um pragmatismo diferente: o de confirmar e criar relações sociais, ativando novas possibilidades para uma agência contínua e de livre associação, numa situação na qual a terra em si (e não apenas o governo) tem desejos e desígnios para a agência das pessoas.
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Há um outro propósito da realização cinematográfica que os membros mais jovens indicam que poderia ser categorizado como orientado ao “desenvolvimento”: o prazer que vem de filmar as cenas, e de mostrá-las para públicos interessados, viajando por suas terras e pelo mundo. De fato, a forma como os Karrabing progressivamente produzem os seus filmes tensiona a lógica de trabalho militar da produção cinematográfica com seus calendários severos, exigências técnicas e cronogramas de filmagem. Deslocando-se para o cinema de smartphone, como fazem as últimas produções, as cenas são filmadas quando parece ser o melhor momento – o pessoal está por perto; os humores estão favoráveis; um iPhone está carregado; o lugar é bom. E porque não? Viver no liberalismo colonialista tardio cria estresse o suficiente para todos e cada um. E se a produção de filmes fosse, em vez disso, central para reeducar a si mesmo para os prazeres lúdicos de co-criar, de conviver conscientemente, sem uma agenda disciplinadora?
Nos bastidores, estas diferentes perspectivas ganham forma em esboços enquanto as pessoas conversam sobre vários roteiros possíveis, às vezes em encontros formais, mas com igual frequência mais informalmente, enquanto se está dirigindo para algum lugar ou sentado por aí (Figura 2). Todas as cenas são improvisadas com base na experiência, desejo e compreensão mútua dos membros. Dito isto, enquanto as exposições já citadas não sugerem nem uma aceitação total nem uma rejeição dos termos e condições do colonialismo liberal mas sim um combate às suas demandas
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incessantes com diversão incluída no processo. Não se trata de substituir uma prática cinematográfica indígena de vanguarda para tomar o lugar da hollywoodiana, ou, nesse caso, substituir reivindicações de verdade geradas pelo governo por contra-argumentos sobre a alteridade indígena. Ao contrário, eles são uma prática de investigação crítica das condições (de continuação) dentro das quais as realidades vividas das formas de vida indígenas prosseguem. E aqui está o obstáculo para a política de recepção. Os filmes Karrabing são melhor descritos como artefatos residuais, não exatamente secundários mas também não exatamente objetos, de uma analítica da vida em andamento que são expressos em múltiplas modalidades, sendo divertidos, vadiando por aí, com escuta ambiental e análise política incluídas. Transparência Rocky: “Os Berragut [brancos] têm essa forma de falar; o que eles querem dizer com aquela palavra ‘transparência’?
Foi uma conversa agradável no final de uma filmagem. Tess, a especialista em etnografia política, estava fazendo perguntas ao estilo forasteira sobre os processos de tomada de decisão dos Karrabing e o que eles queriam dizer com o seu termo “livro aberto”, imitando o interesse do público em como o Coletivo opera como um coletivo. Livro aberto, ela aprendeu, como transparência, tem valência flexível, gerando tipos diferentes de sinônimos, desde “nada é escondido” ou um problema compartilhado (“o que nós vamos fazer com o dinheiro?”), para um sentido probatório de abrir um tópico de discussão em que todos podem participar, sem uma agenda oculta, sem um prazo que se esgota rapidamente, com um ritmo, como aquele de usar iPhones para filmar, que permite estilos variados de participação. Livro aberto significa que as palavras não escondem intenções, mas revelam ações potenciais, estabelecendo possibilidades cheias de agência. Isso contrasta com – o que quer dizer, numa discussão foi contrastado com – a maneira como os não-indígenas tendem a lidar com os integrantes do Karrabing. Um exemplo foi dado. Um representante do conselho fundiário pode ligar, exigindo falar com um “Proprietário Tradicional”.5 Dirigir-se a essa nova categoria de personalidade jurídica clarifica o mecanismo para individualizar e hierarquizar a negociação para acesso à terra, geralmente com propósitos de extração e desenvolvimento empresarial não-indígenas. A consulta transparente, que já seria opaca para qualquer um fora da categoria introduzida de “Proprietário Tradicional”, pode ocultar ainda mais a sua agenda através de uma superabundância de material impenetrável, dita de forma acelerada; assim como o excesso de pormenores a serviço da ofuscação, entregue em documentos volumosos; ou como uma brevidade radicalmente simplificada, 5. No Ato dos Direitos de Propriedade Aborígenes (Território Setentrional) de 1976 (Cth), s3, os Proprietários Tradicionais Aborígenes são definidos legalmente como “em relação com um pedaço de terra relevante, um ‘grupo de descendência local’ de Aborígenes que: (1) têm vínculos espirituais em comum a um local, sendo vínculos que assentam o grupo sob uma responsabilidade espiritual primária por aquele lugar e pela terra; e (2) têm o direito, pela tradição aborígene, de forragear como de direito sobre esta terra”.
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como em uma tubulação que está sendo instalada, sem qualquer palavra sobre os dois quilômetros de área livre que deve ser mantida de cada lado do oleoduto, ao longo de sua totalidade, para serem permanentemente nivelados (o ferrão oculto por trás da consulta real sendo lembrado). Esta transparência é referida em Wutharr, em que o “porquê” das multas é comunicado através da violência administrativa de documentos impenetráveis. Linda: “Aquela história [dos Berragut], é atravessada. Uma história para esta pessoa; uma história diferente para wepella [nosso povo]. É como uma cobra.”
Ou, mais próximo da cena de recepção do público global, por meio do trabalho de bastidores para levar os Karrabing fisicamente para estas cenas de recepção do público, poderíamos exemplificar com o momento de tentar conseguir passaportes. Depois de procurar por certidões de nascimento, tirar repetidas fotos 3x4 para encontrar as que mantiveram a fisionomia mesmo com a iluminação precária de uma cabine, e localizando testemunhas “autorizadas” e legítimas para assinar estas fotografias como autênticas, os integrantes descobriram que tinham preenchido dedicadamente os formulários errados. Entre os primeiros encontros com as autoridades de fronteira e o dia da submissão dos documentos, aconteceu uma outra mudança tectônica nas políticas. As crianças filhas de cidadãos australianos naturalizados já não podiam assumir a sua própria cidadania australiana, uma restrição que foi anunciada pela negativa, sem transparência: um item que requeria a prova de naturalização dos pais como requisito para a obtenção de passaporte já não aparecia nos formulários que de resto permaneciam idênticos, tornando o nosso preenchimento do documento original, que era sutilmente mais inclusivo, nulo e sem efeito. Como os documentos agora incorretos dos requerentes indígenas foram rasgados, o estado-nação colonizador impôs o status de não-nacional a alguns, mas não todos os seus descendentes imigrantes. Pode então a progressiva distância entre as vidas cotidianas indígenas e os desejos dos seus interlocutores ser superada? Diríamos que a resposta não é uma entrega cada vez maior. Os Karrabing não se formam para ser uma máquina tradutora ou uma solução para os dilemas representacionais da descrição etnográfica sob ocupação contínua. Em vez disso, os hiatos de interpretação e expectativa são um resultado inevitável das imaginações burocratizadas e etnologizadas que muitos dos espectadores trazem para as próprias interpretações, suscitadas pelas mídias Karrabing independente da intenção, revelando o poder ou a força da demanda de que as formas comunicativas indígenas sejam reformatadas, ou niveladas, para assim tornarem-se compreensíveis e inteligíveis, enquanto evitam a implicação de que as relações estruturais de poder de que os filmes falam também assentam-se nas cadeiras de cinema. Com base no desejo de uma diferença palatável e consumível, os filmes resistem ao mesmo tempo em que acomodam as expectativas do público a que estão falando, uma acomodação que se atenua à medida que a filmografia de Karrabing se afasta dos formatos ficto-documentários mais facilmente legíveis para a surrealidade mais real possibilitada pela tecnologia dos smartphones. Nisso, o ciclo de recepção do público é semelhante
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ao das expectativas políticas, permeando esforços criativos mesmo que eles sejam evitados, simultaneamente satisfazendo e resistindo ao desejo de uma indigeneidade redentora como condição para serem ouvidos.
Agradecimentos Gostaríamos de agradecer à vibração, criatividade e resiliência permanentes do Coletivo Karrabing de Cinema e seus aliados. A possibilidade de Lea assumir um trabalho de campo com os Karrabing deve-se ao apoio de uma bolsa do Conselho Australiano de Pesquisa6 [DP 1094139] com o projeto intitulado “É possível haver boas políticas? Traçando os caminhos entre intenções políticas, evidências e benefício prático na Austrália regional e remota”.
Tess Lea É professora associada de Estudos Culturais e de Gênero na Universidade de Sydney, é uma antropóloga que estuda colonialismo e elaboração de políticas coloniais. Além de ajudar o Karrabing Film Collective na realização cinematográfica, ela trabalha em parceria com a ONG Healthabitat num programa de pesquisa aplicada com o objetivo de aprimorar políticas de habitação e saúde para indígenas e outros grupos minoritários.
Elizabeth A. Povinelli Ocupa a cátedra Franz Boas e é professora titular no Instituto de Pesquisa em Mulheres, Gênero e Sexualidade na Universidade de Columbia. Desenvolveu uma teoria crítica do liberalismo tardio que sustenta uma antropologia da diferença, primeiramente a partir de uma relação constante com colaboradores indígenas no norte da Austrália e ao longo de cinco livros, numerosos ensaios e múltiplos filmes com o coletivo Karrabing.
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O presente ancestral de ilusões oceânicas: conectado e diferenciado no liberalismo tóxico tardio1 ELIZABETH A. POVINELLI Tradução: Cátia Cristina Bocaiuva Maringolo
Eu o enviei meu pequeno livro que trata a religião como uma ilusão [The Future of an Illusion (O futuro de uma ilusão, 1989)], e ele respondeu que concordava totalmente com o meu parecer sobre o tema, mas que ele lamentava eu não ter adequadamente apreciado a verdadeira fonte das emoções religiosas. Isso, ele diz, consiste em um sentimento peculiar, o qual ele mesmo sempre possui, que acredita ser confirmado por muitos outros, e o qual presume está presente em milhões de pessoas. É um sentimento que ele gostaria de chamar de uma sensação de “eternidade”, um sentimento como de algo ilimitado, irrestrito – por assim dizer, oceânico”. Esse sentimento, acrescenta, é um fato puramente subjetivo, não um artigo de fé; não traz consigo nenhuma garantia de imortalidade pessoal, mas é a fonte de energia religiosa que é mobilizada por várias igrejas e sistemas religiosos, dirigida por eles em canais particulares, e também inquestionavelmente exaurida por eles. Alguém pode, ele acredita, certamente considerar-se religioso com base exclusivamente nesse sentimento oceânico, mesmo que rejeite toda crença e toda ilusão. Freud, Civilization and its Discontents, 2005, (O mal-estar na civilização).
1. Nem, nem A divisão geontológica do ser entre Vida e Não-vida está começando a perder a sua eficácia em assegurar o privilégio da elite capitalista liberal colonizadora e em gerir a hierarquia do humano e do mais-que-humano. Enquanto isso acontece, novas figuras conceituais e axiomas estão emergindo, e novas disposições estão sendo arrancadas ou ancoradas em outras mais antigas. Eu discuti três dessas figuras conceituais (o Deserto, o Animista e o Vírus) no meu último livro, Geontologies: a 1. Publicado originalmente em: e-flux journal, #112, outubro de 2020. Disponível em: https://www.e-flux. com/journal/112/352823/the-ancestral-present-of-oceanic-illusions-connected-and-differentiated-in-latetoxic-liberalism/. Acesso em: 13 out. 2021.
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requiem to late liberalism (2016) (Geontologias: um réquiem ao liberalismo tardio), e desenvolvo quatro axiomas recentemente surgidos da teoria crítica em um livro a ser lançado: Between Gaia and Ground: four axioms of existence and the ancestral catastrophe of late liberalism (2021) (Entre Gaia e o Chão: quatro axiomas da existência e catástrofe ancestral do liberalismo tardio). Esses quatro axiomas são: enredamento da existência; a distribuição desigual do poder que afeta terrenos locais e transversais desse enredamento; a multiplicidade e o colapso do evento como sine qua non do pensamento político; e a história racial e colonial que tem caracterizado epistemologias e ontologias ocidentais modernas e o conceito de ocidente como tal. Assim como nas figuras discutidas em Geontologies, os axiomas examinados em Between Gaia and Ground: eu não estou interessada em promover uma nova estrutura universalmente aplicável; mas sim ajudar a amplificar as lutas anticoloniais mais amplas a partir das quais essas figuras e axiomas emergiram. Eu também objetivo examinar uma formação reacionária – liberalismo tardio – que tenta remoldar, conter e redirecionar esses esforços. Afinal, essas figuras e axiomas são parte de superfícies discursivas muito mais amplas que refletem correntes opostas de pensamento e ação políticas como consequência do geontopoder. A maneira como as abordamos – incluindo um arranjo sintático aparentemente casual de afirmações teóricas – resulta em paradigmas dramaticamente distintos que representam o presente tanto enquanto uma catástrofe porvir (la catastrophe à venir) bem como a catástrofe ancestral (la catastrophe ancestral/historique). Em nenhum lugar esse ponto é mais importante, eu acho, do que em como abordamos os sentimentos oceânicos, forças e presentes ancestrais. Desde Aimé e Suzanne Césaire, C. L. R. James, Claudia Jones, Édouard Glissant, passando por Sylvia Wynter, Christina Sharpe, e tantos outros, a crítica anticolonial e teoria racial têm sido escritos a partir de histórias específicas que marcaram o Atlântico Negro. Glissant abre suas reflexões em Poetics of relation (1997) (Poética da relação) em um barco no meio do Atlântico, envolto na exploração radical e despossessão dos homens, mulheres e crianças do oeste Africano “que viveram a experiência de deportação para as Américas” (GLISSANT, 1997, p. 5). Três abismos desenrolam-se nesse mar turbulento: o abismo da barriga do navio, o abismo das profundezas do mar, e o abismo de tudo que foi rompido e deixado para trás. A aposta sobre o que é a existência – essência ou evento – reduz-se a um ponto de fuga relativo a, por um lado, como o mundo se tornou enredado nessas práticas sádicas e, por outro lado, como a Relação que se abriu nessa cena específica continua a enredar a existência. Ao ancorar seu conceito-construção no horror do navio negreiro, Glissant, entretanto, não busca meramente como “todo grande filósofo”, “demonstrar um novo plano de imanência, introduzir uma nova substância do ser e compor uma nova imagem de pensamento” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 51). E nem tampouco procura apenas iniciar ou fornecer um novo procedimento para velhos afetos e discursos. Ele faz ambas essas coisas, sim; mas ele também faz algo mais, algo levemente errante para a obsessão de seus amigos Deleuze e Guattari: ele questiona se algum conceito importa fora dos mundos dentro dos quais eles surgem e para os quais pretendem ser empregados. Em última análise, com o que nos importamos: a condição ontológica
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da existência, ou os modos de ser e substância que um específico ingurgitamento comercial de humanos e terras produziu e continua a acionar? Em outras palavras, ao iniciar a partir desse abismo específico, Glissant nos lembra, em primeiro lugar, que as políticas liberais de empatia, de se colocar no lugar do outro – agindo como se qualquer pessoa pudesse experienciar e como se todo mundo devesse agir como se pudesse experienciar essa cavidade de ser na Relação – não é simplesmente equivocada, mas uma continuação das relações políticas devastadoras que se desdobraram no Atlântico Negro. Isso não sugere que aqueles que estiveram, e estão, em uma relação diferente com o Abismo – aqueles que se beneficiam dos três abismos – deveriam enfiar cera em seus ouvidos e forçar os outros a remá-los para frente. Pelo contrário, as perguntas são: o quão especificamente alguém emergiu em relação ao presente ancestral desse abismo; como o enredamento da existência não é um ponto de início abstrato, mas situações sociais que são dadas a diferentes pessoas no presente em um mundo estruturado para se importar com a existência de alguns e não de outros; e como se pode mudar as relações dadas que se sedimentaram na existência das profundezas desses mares e litorais recortados. Glissant também nos recorda, em segundo lugar, o quão astutos são os poderes absorventes do capitalismo liberal tardio – quão rapidamente relações específicas são refeitas como relações-que-apagam abstrações universais. “Um abismo aberto aqui para eles” é reformulado para “todos nós vivemos no abismo”. Esse universalismo absorvente, que apaga-relações é especificamente aparente em alguns discursos contemporâneos do liberalismo tardio tóxico e do colapso climático – o que alguns chamam de Antropoceno – especialmente aqueles que ancoram a crise em uma calamidade humana geral que, como Sylvia Wynter pontuou, é meramente o nome de um homem europeu sobredeterminado e específico (WYNTER, 2003). Como o geontopoder, a toxicidade do colonialismo e sua desova, o capitalismo liberal, operavam a céu aberto em largas faixas de terra onde diásporas europeias espoliaram e drenaram o que enxergavam como valioso e deixaram para trás os restos processados tóxicos que condensavam valor. Emaranhados ecológicos de longa data, relações entre espécies e analíticas de existências foram abordados com uma fúria genocida ou, não menos rançoso, um desrespeito cruel. Em The future of an illusion (1989) (O futuro da ilusão), Freud ensaia o trope primitivista pelo qual o homem se torna homem como tal na medida em que é diferenciado dos animais. Aqui ele é apenas um dos muitos pensadores ocidentais espalhados por numerosas formações disciplinares que defendem a diferença humana como uma diferença de mundanidade. Outro deles é Heidegger, com suas famosas três teses da distribuição do mundo: a pedra é sem-mundo; o animal é pobre de mundo, e o homem é formador de mundo pois o próprio ser do homem (Dasein) sempre está sintonizado com o mundo onde o ser é irredutivelmente estar-aí. Nós ouvimos essa disposição por trás da lógica de Hannah Arendt ao diferenciar colonialismo de imperialismo. De acordo com Arendt, diferentemente do imperialismo, “A colonização aconteceu na América e na Austrália, os dois continentes que, sem cultura e história próprias, caíram nas mãos dos Europeus.” (ARENDT, 2006, p. 03) O imperialismo europeu ocorreu muito posteriormente na África e Ásia (1884-1914), momento no
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qual a terra se tornara uma coisa e o capitalismo emergira do transbordamento do valor humano e material no mercado triangular que definiu o Atlântico de cerca de 1500 até 1800. Nenhum desejo de criar novas formas de pluralidades humanas definiu as “aventuras” europeias nos mundos imperiais. Territórios imperiais eram considerados exclusivamente com relação ao que podiam fornecer para a maior expansão da riqueza da metrópole. John Adams não era Cecil Rhodes, então o argumento de Arendt segue que: porque Adams buscava uma “completa mudança da sociedade” na sua compreensão do “assentamento da América como a abertura para um grandioso esquema e elaboração na Providência para a iluminação do ignorante e a emancipação da parte servil da humanidade ao redor de toda a terra.” (ARENDT, 2006, p. 13) Rhodes simplesmente pensava em seu corpo Rabelaisiano. Kathryn Gines, Fred Moten e outros escreveram cáusticas críticas às considerações de Arendt sobre raça e colonialismo. Moten, por exemplo, concorda que o advento do colonizador e do colonialismo escravista nas “Américas” de fato conduziu a “um outro modo de ser” no mundo, mas a condição de criação desse novo mundo comum europeu foi a destruição da multitude de mundos negros e racializados existentes2. O tsunami do colonialismo não foi percebido como algo que afetava a humanidade, mas somente essas pessoas específicas. Elas eram específicas – o que aconteceu com elas pode ter sido necessário, lamentável, intencional, acidental – mas são sempre elas. É somente quando essas histórias ancestrais se tornam presentes para alguns, para aqueles que têm se beneficiado há muito tempo da despossessão do trabalho, pensamento, terras de outras pessoas que subitamente o problema é de todos nós, como catástrofe humana. A frase “todos nós” é ouvida somente após alguns de nós sentirmos os efeitos dessas ações, experienciarmos as toxicidades específicas com as quais eles enredaram o mundo. Não deixemos que os estudos críticos oceânicos sejam tomados por esse embuste – não ter um sentimento oceânico ser o que aniquila a especificidade de como os enredamentos produzem diferença a fim de apagar o presente ancestral específico. O que se segue move as percepções de longa data que emergem a partir do Atlântico Negro para os sentimentos oceânicos liberais e tardios dos indígenas do pacífico. Na superfície, o seguinte pode parecer etnográfico no sentido de um projeto de tradução – muitas palavras, conceitos e analíticas que caracterizam as compreensões dos Karrabing sobre as relações que existem entre eles e seus mundos mais-que-humanos. Mas, como pode ficar óbvio muito rapidamente, o propósito está em seguir as estratégias karrabing de como enfrentar as forças governantes dos colonizadores do liberalismo tardio e do capitalismo sem entregar tudo no processo. A ideia é fornecer somente o suficiente para saber, mas não mais, uma vez que não 2. Fred Moten, “The New International of Insurgent Feeling” (O novo internacional do sentimento insurgente) Palestinian Campaign for the Academic & Cultural Boycott of Israel, November 7, 2009. Disponível em: https:// bdsmovement.net/news/new-international-insurgent-feeling. Veja também Achille Mbembe, “Necropolítica” (Necropolítica) Public Culture 15, no. 1 (2003): 11-40. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/ article/view/8993/7169; e Patricia Owens, “Racism in the Theory Canon: Hannah Arendt and ‘The One Great Crime in Which America Was Never Involved,’” (Racismo na teoria do canon: Hannah Arendt e ‘o grande crime no qual a América nunca esteve envolvida’) Millennium: Journal of International Studies 45, no. 3, 2017, 403-24. Disponível em: https://doi.org/10.1177/0305829817695880. Acesso: 15 out. 2021.
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é realmente de vocês para saber – relembrar que a maneira como você conhece o mundo, as disposições do mundo, e sua relação com ele pode ou não pode ser parte e parcela das forças do geontopoder liberal tardio.
2. Conversas à beira mar É março de 1985 em uma pequena área litorânea chamada Madpil no Território do Norte da Austrália. Marjorie Bilbil, Ruby Yarrowin, Alice Wainbirri, alguns de seus filhos e netos, e eu estamos sentados na praia na beira de um manguezal, conversando durante uma refeição de arroz, búzios, caranguejo de lama e chá doce. A cidade de Darwin está tremeluzente do outro lado do porto. Eu conheci essas mulheres, que variam em idade dos fins dos quarenta beirando os sessenta, logo depois que eu cheguei ao Território do Norte em 1984, direto da minha graduação em filosofia. Desde 1975, elas têm observado e participado de uma disputa de terra litigiosa da Península de Cox, onde está localizada Madpil. No centro da península se encontrava a comunidade onde elas viviam, e na sua maioria, cresceram e tiveram filhos. Seus pais e avós viajavam para cima e para baixo do litoral de onde estamos sentadas, se esquivando e tirando vantagem de uma nova pestilência virulenta chamada de colonialismo de ocupação enquanto mantinham práticas conectivas que sustentavam a estabilidade das diferentes terras das pessoas que se estendiam ao longo da costa até a Baía de Anson, a aproximadamente duzentas milhas ao sul. Essas práticas incluíam rituais formais que reencenavam as viagens ancestrais de durlg específico (na língua Batjemalh; “therrawin” na língua Emmiyengal; “totens” em inglês antropológico; “Dreamings (lugares ancestrais)” em inglês público) que criou a topologia da região; rituais formais que reconheciam e refletiam a resposta da paisagem durlg-infusa para as novas condições da pestilência do colonizador e as maneiras comuns de prestar atenção e cuidar da terra, assim como nesse dia que passamos suando no manguezal. Na década de 1930, o governo dos Territórios do Norte duplicou a internação forçada de grupos indígenas. Os pais de Bilbil, Yarrowin e Wainbirri foram forçados a ingressar no Assentamento Delissaville no centro da Península de Cox. (Com a aprovação da Aboriginal Land Rights Act (Lei dos Direitos dos Aborígenes à Terra) em 1976, o assentamento foi renomeado de “Belyuen” por causa do seu poço). Dali em diante, toda movimentação era estritamente monitorada pelos superintendentes colonizadores como parte da nova tática do estado federal para eliminar os indígenas de outro modo (do que por meio do assassinato e violência): por meio da contenção e assimilação forçada. Mas a terra e seu povo em Delissaville recusavam a autoridade da lei colonizadora. Eles se juntaram ao redor do poço de Belyuen e seus túneis aquáticos subterrâneos que se esticavam até o litoral ao redor da Península de Cox e desciam até a Baía de Anson. Belyuen era um lugar (um lugar de interação dinâmica entre os espíritos dos falecidos e os espíritos das crianças ainda por nascer) maroi (Batjemalh; “mirrhe”, Emmiyengal; “totem de concepção”, inglês antropológico). Belyuen iria manter viva o tecido conjuntivo dos lugares dispersos – as maneiras pelas quais a terra era especificamente enredada – de modo que cada lugar permanecesse vivo.
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Enquanto descansávamos de uma longa e suada caminhada pelo mangue, Bilbil, Yarrowin e Wainbirri descreveram a luta para explicar aos antropólogos e advogados que trabalhavam em seu nome para que as terras ao redor de Madpil fossem devolvidas para suas famílias, como poderiam de uma vez e ao mesmo tempo ter e manter terras litorâneas específicas que abraçavam a costa da Baía de Anson, muito mais ao sul, e ainda estar irredutivelmente conectadas às terras ao redor de Belyuen também. A expressão crioula que costumavam utilizar para descrever a situação era “Mebela got roan roan country, yeah, but They imjoinedupbet got that Belyuen waterhole. Belyuen, im now been make mebela properly bla dis country.” (Nós temos nossas próprias terras, mas elas estão unidas a outras de uma maneira original e contínua através do poço Belyuen. Belyuen nos fez apropriadamente daqui). Seus “roan roan” países se encontravam dentro dos países falantes de Marritjaben, Marriamu, Menthayengal, Emmiyengal, Wadjigiyn e Kiyuk, e incluíam aproximadamente vinte therrawin (Emmiyengal; “durlg” Batjemalh; “totens”, inglês antropológico). Sim, alguns dos tecidos conjuntivos eram derivados dos efeitos topologicamente formativos de durlg ancestral que se movia pela região, mas os efeitos não estavam concluídos e mortos. Eles eram presentes e dinâmicos. Bilbil usou sua filha mais velha, AA, como um exemplo. AA era uma mulher Emmiyengal Murrumurru (Long Yam therrawin) pelo lado do seu pai. Das notas, Bilbil me disse: Sua edje, eu pego aquela murrumurru de Babaluk do meu pai, embora eu também penso la meu Redjerung (Canguru Vermelho therrawin), do lado Marritjaben. Mas eu tenho ingaraiyn maroi (Batjemalh; “mirrhe”, Emmiyengal, “totem de concepção” em inglês antropológico) de Belyuen, e deve estar aqui langa outro lado, Imaluk. Que o poço Belyuen tem cheirado a suor quando me eu estive bogey lá, eu estou pensando, “sim, vai enviar espírito bebê naquela tartaruga marinha”. Então, quando aquele homem velho que ingaraiyn langa Milik, eu mesma tenho olhado e penso “eu sou diferente dessa tartaruga. Muita alga marinha emaranhada lei estou de volta.” Então AA se revelou gamenawerra. Muito cabelo lei de volta. Nós sebe. Eu sou rastro.
Ela gesticulava para leste na direção de onde um Ingaraiyn therrawin estava sentado na zona das marés como a provável origem do espírito de tartaruga Belyuen, enviado como uma tartaruga marinha de verdade, que agia como um conduíte material para dentro de seu marido e então ela e então sua filha. Ao fazê-lo, o corpo de AA se esticou e se estendeu (ex-tendĕre) para dentro e através das formas topológicas do presente ancestral, dobrando e empurrando para dentro (in-tendĕre) um espaçamento imanente. Deixe de lado debates antropológicos envelhecidos sobre culturas totens e animistas por agora (DESCOLA, 2014). Note ao invés disso a porosidade dos modos de corporificação (água, corpos orgânicos) e a multiplicidade das conectividades assumidas como potencialmente codeterminando-as substancialmente. Algumas são verdadeiras, algumas imanentes, todas para um mundo mais-que-humano que está constantemente assinalando a seus coparticipantes humanos, que devem pesar
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o que é e não é um sinal de uma manifestação. Um local de Long Yam, localizado em Mabaluk a cerca de 150 quilômetros em linha reta de onde estamos sentadas, passado para AA através do corpo de seu pai (“O que essa palavra? O que eles dizem, perragut para esse kindabet? Olha aqui, Beth, Ôpatrilineal.” [O que essa palavra? O que as pessoas brancas dizem para esse tipo de conexão com a terra? Aqui, olha isso, Beth, Patrilinear”.] Uma tartaruga marinha mirrhe passou para a AA a partir de um encontro de água salgada entre um humano, uma tartaruga marinha e um poço durante um evento de caça, criando uma conexão entre um lugar da Tartaruga Marinha próximo de onde ela nasceu, fez a cerimônia e caçou (toda suada). E um poço dentro da comunidade age como uma comunicação material. É um local através do qual seres ancestrais viajam por túneis subterrâneos aquáticos para lugares próximos e distantes. Bilbil, Yarrowin, Wainbirri e outros homens e mulheres idosos de Belyuen estavam certos. Eles enfrentaram uma lei estatal que apenas reconhecia (por exemplo, que demandava, como base para a devolução de propriedade roubada) uma forma singular de relações humano-terra – alguma forma de um “grupo de descendência local” (inglês antropológico para “biologia infligida socialmente tal como patrilinearidade e matrilinearidade”). Eles também enfrentaram consultores antropólogos teoricamente conservadores que escreveram relatórios adjudicando suas reivindicações e os advogados que leram os relatórios. Tanto os antropólogos quanto os advogados permaneceram perplexos, se não completamente céticos, em face de perguntas como: como poderiam essas mulheres e homens da comunidade dizer que seus therrawin sempre estiveram onde estavam e ainda assim continuam a se envolver nos mesmos eventos? Como o imutável poderia ser dinâmico, o permanente alterável e o persistente conturbado? Nem todos os antropólogos estavam confusos desse jeito. Barbara Glowczewski descreve uma realidade similar entre seus colegas Yuendemu, em que a cerimônia puxa para a atualidade as cartografias imanentes que atravessam os mundos humanos e mais-que-humano (GLOWCZEWSKI, 2015). Essas atualizações são as consequências das sedimentações anteriores que permanecem sob e através da sobreposição do estado colonizador. O que incomodava Bilbil, Yarrowin, Wainbirri e outros homens e mulheres mais velhos era que antropólogos e advogados enxergavam todas as formas de permanência dinâmica como de algum modo menos importantes do que a estrutura congelada de uma lei colonizadora que reconhecia apenas um tipo de relação – o descendente do homem. Isso era uma redução biológica pela qual suas densas relações com o mais-que-humano não eram nada além de uma questão de qual homem deu à luz a qual pessoa. Era como tentar navegar por uma série interminável de espelhos de uma casa de diversão. Conforme essas mulheres descreviam uma relação dinâmica, mas determinada por durlg com seu país, o estado e seus antropólogos tentavam redefinir a dinâmica reduzindo sua complexidade a uma impressionante e hermeneuticamente idiota lição de biologia que cortava os laços com as pessoas e lugares para produzir um mini nação-estado contido em si. A reivindicação de terras se arrastou por mais de vinte anos; florestas foram saqueadas para produzir toda a lei e relatórios de consulta e evidência formal. Mas sob o pretexto de reconhecimento
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liberal, nenhuma conversa foi de fato permitida de ocorrer. Como Aimé Césaire escreveu em seu Discourse on colonialism (1950) (Discurso sobre o colonialismo): Eu admito que é uma boa coisa colocar diferentes civilizações em contato uma com a outra; que é uma coisa excelente misturar mundos diferentes; que o que quer que possa ser seu gênio particular, uma civilização que se fecha em si própria atrofia; que para civilizações, a troca é como oxigênio... Mas, então eu faço a seguinte pergunta: a colonização realmente colocou as civilizações em contato? Ou, se você preferir, de todas as formas de estabelecer contato, foi a melhor? Eu respondo que não. (2000, p. 33)
Uns vinte e cinco anos após nossa conversa em Madpil, eu estou sentada próxima a um acampamento com muitas das agora-adultas crianças de Yarrowin e Wainbirri, seus parceiros, e seus filhos. Nós crescemos lado a lado enquanto eu ia e voltava dos Estados Unidos duas ou três vezes por ano. Eles estão morando na orla do litoral norte da Baía de Anson, e decidiram deixar Belyuen. Belyuen foi engolida pela violência, causada em grande medida pelas sequelas da mesma disputa de terra que deu início a conversa entre mim e Bilbil, Yarrowin e Wainbirri em 1985. Um documento federal celebrado como reconhecimento da lei indígena se recusou a admitir um lado da dinâmica que as mulheres mais velhas lutaram para explicar. A Land Rights Commission (Comissão de Direitos à Terra) concluiu que uma pequena seção da comunidade era legalmente reconhecida como “proprietários aborígenes tradicionais”, ao mesmo tempo que afirmava que a comunidade inteira tinha os mesmos direitos a área através de lei cerimonial e cultural indígena. A lei indígena poderia ser reconhecida como existente, mas não tinha permissão de determinar a operação do estado. A lei de divisões do colonizador que fatiaram a comunidade tiveram enormes consequências sociais e econômicas. Todas as decisões sobre como as terras circundantes iriam se desenvolver foram tomadas por apenas um pequeno grupo, que também colheu todos os benefícios provenientes de tais decisões. As tensões que o estado criou não afetaram o estado; elas foram engolidas e então explodiram. Disseram que eram estrangeiros em sua própria terra, os cinquenta e pouco homens, mulheres, crianças e eu estávamos discutindo como evitarmos cair na miséria, mas também como nos recusarmos a abrir suas terras para a mineração. A mineração é como uma falange de circulantes pássaros escavadores capitalistas, que prometem separar e extrair enquanto preservam e potencializam – inversões de ficção científica de durlg ancestral. Todo mundo já viu as consequências de tais promessas: buracos abertos de minas permeáveis, rios envenenados, e cânceres inexplicados. Liam Grealy e Kirsty Howey descrevem “o edifício político-burocrático de governança uniforme de água potável e da prestação de serviço em todo o TN [Território do Norte]” como “uma ficção de curadoria-estatal” que “produz um archipelago racializado de ilhas diferenciadas de governança de água potável.” (GREALY; HOWEY, 2020)
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Algumas pessoas sugeriram apresentar uma vestimenta verde para turista e criar uma corporação para isso por meio do Office of the Registrar of Indigenous Corporations (Escritório de Registros de Corporações Indígenas) (POVINELLI, 2011). Muito rapidamente, todo mundo lutava contra a armadilha estatal inerente a esse plano. Se eles escolhessem um nome de um lugar, diga-se Mabaluk, então o estado iria imediatamente considerar outros membros familiares de países e línguas adjacentes como externos ou subsidiários. “Karrabing” foi proposto tanto por seu conteúdo semântico quanto sua pragmática conceitual. “Karrabing” é uma palavra Emmiyengal que se refere a quando as vastas marés regionais estão no seu ponto mais baixo. Karrabing abre possibilidades ao mesmo tempo em que conecta lugares distintos – abre a pesca de peixes, caranguejos e moluscos, na medida em que exibe e torna disponíveis corais, manguezais e as margens do litoral, conectando (“ajuntando”) os países de habitantes indígenas da linha costeira. “Karrabing” não era meramente um termo referencial. Foi pretendido como um conceito, realçando o processo dinâmico de conexões emergentes e submersas entre lugares. Para as pessoas que se tornariam os Karrabing, “karrabing” assinala como as famílias podem melhor reforçar sua relação e a saúde de seu “roan roan” país ao manterem fortalecido o tecido conjuntivo entre elas (joinedupbet). Eles aprenderam isso com seus pais, que aprenderam com os seus. Essa aprendizagem é uma prática. Karrabing se tornaria a estrutura por meio da qual um conjunto de práticas fílmicas orientadas pela terra incorporaram uma resistência contínua contra o esforço do estado em dividir e opor os povos indígenas e suas terras colocando-os uns contra os outros. Em outras palavras, fazer filmes não apenas representaria as visões dos membros Karrabing sobre a condição irredutível da conectividade entre diferentes países, como também exercitaria um contradiscurso intergeracional.
3. Relações de propriedade, sentimentos oceânicos As frustrações que as mulheres mais velhas descreveram para mim em 1985 quando tentavam explicar para perragut (pessoas brancas como uma categoria geral para colonizadores) como elas tinham seus próprios e distintos países – mesmo quando esses países não podiam ser separados em pequenos feudos soberanos – é espelhado na surpresa que muitos membros Karrabing expressam depois de encontrar com os espectadores de seus filmes dentro e fora da Austrália. Ninguém expressa raiva, nem mesmo a angústia de Bilbil, Yarrowin e Wainbirri. Mas o problema permanece, persistindo ao longo do tempo e espaço – a dificuldade que alguns perragut têm em compreender essas declarações simultâneas: “Cada um de nós tem seu roan roan país proveniente de seus pais. Lugares não podem ser separados-separados”. Duas respostas comuns a esse tipo de declaração sugerem o que ainda está em jogo conforme a teoria crítica continua tentando romper com o conceito de objetos soberanos. Por um lado, quando eles descrevem suas relações durlg com a sua terra, membros Karrabing são frequentemente compreendidos como proprietários de sua terra. Por outro lado, quando eles discutem a conectividade subjacente entre eles e o mundo mais-que-humano, ouve-se que estão descrevendo um sentimento
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oceânico indiferenciado, às vezes comparado à compreensão coloquial do budista que abandona toda a diferença. O primeiro mal-entendido tem estado sob constante pressão na teoria crítica e teoria indígena. Aileen Moreton-Robinson critica fortemente a “possessividade branca” onde a dádiva de autodeterminação do estado colonizador é uma demanda de que povos indígenas mimetizem a psicose no cerne do liberalismo ocidental: a saber, a fantasia de um corpo soberano que determina a si próprio, que tem palavra final sobre seu uso e o uso das coisas dentro de si – que fala com base em seu próprio autocontrole soberano. Quando membros Karrabing se descrevem como sendo um grupo com múltiplas terras e durlg se esticando ao longo do litoral da Baía de Anson e para além, eles percebem que os espectadores os ouvem dizer algo como isso: “Eu” tenho um país que é diferente do país dele ou dela, muito como um cidadão diria que o país dele ou dela era distinto de um outro, ou capitalistas diriam que possuem o que era deles. Ou seja, algumas pessoas na plateia ouvem os Karrabing evocando uma relação de propriedade liberal. Eu frequentemente uso Mikhail Bakhtin como um contraposto a esse mal-entendido. Para ele, todas as palavras, incluso “Eu”, são meras réplicas a um mundo dentro de nós, porque nos caracteriza, antes de sermos nós mesmos. Podemos citar longamente de seu “The problem of speech genres” (“O problema do gênero do discurso”): As próprias fronteiras do enunciado são determinadas por uma mudança dos sujeitos do discurso. Enunciados não são indiferentes uns aos outros, e não são autossuficientes; eles estão cientes e refletem mutuamente um ao outro. Essas reflexões mútuas determinam suas características. Todo enunciado é preenchido por ecos e reverberações de outros enunciados para os quais está relacionado pela comunalidade da esfera da comunicação do discurso. Todo enunciado deve ser considerado primeiramente como uma resposta a enunciados anteriores em uma dada esfera (nós compreendemos a palavra “resposta” aqui no sentido mais amplo). Todo enunciado refuta, afirma, suplementa e se baseia em outros, assume que sejam conhecidos, e de algum modo leva-os em consideração. (BAKHTIN, 1987, p. 91)
Mas frequentemente nessas exibições de filme, eu não me envolvo muito em longas citações de Bakhtin, pois os membros Karrabing, como Cecilia Lewis, poderosamente descrevem sua forma de pertencimento a sua própria terra como uma posição ética irredutivelmente desdobrada através dos mundos mais-que-humanos de outros membros Karrabing. Em uma conversa que derrubava a narrativa Judaicocristã sobre Babel, Cecilia e outros membros Karrabing descrevem não meramente uma multiplicidade linguisticamente original, mas uma relação ética original para com a língua do outro: Yeah but here where you talk to det person le you joinimupbet det tubela –and det nuther language where you speak le, that other person dem inside you again. You think bla det person.
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(Sim, mas aqui nós acreditamos que quando você fala com aquela pessoa desse jeito, você conecta ou articula, você e ele – quando você fala a língua deles com eles, a outra pessoa vem para dentro de você e você para dentro da outra pessoa. Você está pensando na/com/por meio da outra pessoa)3.
A legislação da reivindicação de terra rompeu todos os tecidos conjuntivos que propiciavam as condições para a propriedade de terras. Os Karrabing iriam trabalhar para restaurar esse tecido. Para o membro Karrabing Rex Edmunds, esse era o tecido conjuntivo que não podia ser recomposto sem cuidado apropriado. É materialmente análogo a como as cerimônias devem ser realizadas: Bem, você precisa do seu tio ou tia ou primo/prima, no nosso jeito é um primo/prima, como os filhos/as do irmão da sua mãe ou os filhos/as da irmã do seu pai para fazer a queima das roupas. Porque eles são sua tia (irmã do seu pai) ou tio (irmão da sua mãe), eles são sempre de outro clã, portanto de outro país. Melhor se o tio, tia ou primos/primas forem próximos, mas enquanto for conectado desse modo está bem. Como eu poderia queimar as roupas da minha mãe ou minha irmã ou meu pai sozinho: ninguém que está no meu grupo totem pode tocar essas coisas durante a cerimônia. Eu sou chefe deles, mas não posso fazer isso sozinho. Eu preciso de meus familiares de outros totem ou país. (EDMUNDS; POVINELLI, 2019)
Ironicamente, na preparação para a elaboração da lei de direitos à terra em 1976, a Land Rights Commission (Comissão de Direitos à Terra) notou como esse princípio fodia com noções ocidentais de propriedade sem negar o fato de que as pessoas sabiam quais terras pertenciam com e a elas. Pode-se dizer que “ritos religiosos [são] possuídos por um clã”, mas os ritos “não podiam ser realizados sem a assistência dos administradores cuja tarefa essencial era preparar a parafernália do ritual, enfeitar os celebrantes e conduzir o rito.”4 E caso os leitores reduzam a importância desses administradores para algo análogo a trabalho assalariado, a Comissão observa que “o acordo dos administradores teve que ser protegido contra a exploração de recursos locais especializados tais como os depósitos de ocre e sílex e para as visitas pelos proprietários de clãs a seus próprios lugares sagrados.”5 Rex Edmunds compreende isso como uma estratégia por meio da qual o reconhecimento é um truque que rompe com as relações entre os grupos de modo a criar hostilidade entre eles. Os Karrabing colocam em primeiro plano a conectividade ou natureza conjunta de si mesmos e suas terras conforme lutam contra a redução de seu sentido a uma lógica contratual que pressupõe a própria coisa contra a qual eles lutam: a irredutibilidade 3. “Australian Babel: A Conversation with Karrabing,” (Babel australiana: uma conversa com Karrabing) Specimen: The Babel Review of Translations, October 31, 2017. Disponível em: http://www.specimen.press/ writers/karrabing/. 4. Relatório do Aboriginal Land Rights Commission (Comissão de Direitos à Terra Aborígenes), 1973, p. 05. 5. Relatório do Aboriginal Land Rights Commission (Comissão de Direitos à Terra Aborígenes), 1973, p. 05. Vide também Andrew Schaap, “The Absurd Logic of Aboriginal Sovereignty” (A lógica absurda da soberania aborígene).
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de um sujeito soberano. O imaginário contratual pode estar explícito, como em uma dívida monetária ou compensatória entre dois sujeitos. Também pode ser afetiva, tal como o sentimento de que alguém possui uma mãe ou uma nação. O sujeito contratual pode ser um sujeito de massa, tal como um estado-nação conectado por tratados a outros estados-nação. E pode ser uma pessoa abstrata, como em uma corporação. Todo mundo reconhece que as realidades de tais corpos soberanos são confusas e dificilmente encerradas. Corpos humanos vazam de dentro para fora e absorvem o de fora para dentro. Fronteiras estatais se tornam dilatadas, seus órgãos espalhados por chãos estrangeiros, enquanto governantes estendem as audiências para o alto mar. Como a fiscalização de migração australiana chegou até a Christmas Island (Ilha de Natal), em Nauru? Como a interdição haitiana se tornou uma questão marítima? (KAHN, 2019) Como desesperos existenciais resultaram na ideologia do tratado político? Além disso, sujeitos de massa assumem todos os traços de lógicas raciais e de classe que compõem o próprio sujeito. Mas, seja qual for a maneira como você observe, o sujeito contratual não tem nada a ver com a essência do que estão falando os Karrabing. Em um vídeo encomendado pela Art Gallery de Nova Gales do Sul, Cecilia Lewis, sua filha Natasha Bigfoot Lewis e Rex colocaram desse modo: CL: Como nós temos grupo Suntu wuliya Kiyuk e wuliya roan. Eles têm seu roan lugar e roan história le eles roan país. Nós temos a população Trevor. Eles têm seu próprio país, roan língua, roan história. Bwudjut população, eles têm sua própria história. Emmi população tem sua roan história aqui la Mabaluk. Methnayengal tem sua roan história la Kugan população. Mas nós somos apenas uma população. Nós diferente grupo de línguas. RE: .... mas nós somos uma população. CL: Todos uma grande família descendo o litoral. Relações familiares casadas. NL: Porque estamos conectados pelo litoral. RE: E por aquelas histórias (caminhos ancestrais cruzando países).
Essa posição de respeito interdependente se estende para o mundo mais-que-humano. Em uma parte, que não foi ao ar, Cecilia, Natasha e Rex discutem algumas das dinâmicas ancestrais que demandam atenção humana e comprometimento. Natasha observa que se os Karrabing não continuarem a cuidar das terras ancestrais se aproximando e estando com elas (no conceito de “suor”) então a “terra morre, se fecha”. Observe a qualificação da morte – a divergência a partir de uma compreensão geontológica. Os Karrabing compreendem o “morrer” do mundo mais-que-humano como um afastamento ativo, um afundamento, uma privação que por sua vez pode catastroficamente transformar o mundo humano. Os Karrabing compreendem que como eles mesmos, durlg persistem em um passado ancestral, congelado, porém
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presente ancestral. Durlg são responsivos às forças de torção da topologia e da ecologia, agora especialmente à pestilência do capitalismo consumista extrativo. Se os Karrabing devem continuamente corrigir aqueles que podem inadvertidamente desmoronar a compreensão deles de “roan country” para um conceito de propriedade ocidental, eles também devem combater um segundo, talvez estrangeiro, escoamento de toda especificidade entre vários mundos humanos e mais-que-humanos. Abordados pelo imaginário de Pessoas-em-um-com-a-natureza, os Karrabing se veem lançados a um mar indiferenciado; ouviram dizer que estão conectados a tudo, ao invés de conectados a territórios e relações multicamadas específicas. Isso é de algum modo similar à ideia de 1927 de Romain Rolland sobre religião como uma intuição afetiva de ser não meramente conectada com o todo do universo, mas também se encontrando difusa ao longo dele, distinta de qualquer premissa de credo ou conteúdo teológico específico. Para Rolland, a base distinta da religião, o que a distingue de uma mera projeção psíquica, é sentida como “um sentimento oceânico”. Freud responde diretamente a Rolland em Civilization and its Discontents (O mal-estar na civilização, 2005). Nesse ponto, Freud abandonou os aspectos técnicos da sua teoria para reescrever debates antropológicos e sociológicos a partir de uma perspectiva psicanalítica. A questão de como se explica a fonte desse sentimento oceânico foi impulsionada por Freud em textos anteriores, The future of an illusion (O futuro de uma ilusão, 1989). Lá ele reformula as origens e funções da religião como uma recapitulação e projeção (“um protótipo infantil”) da relação do filho com o pai. A relação do homem com a natureza era uma de impotência; como uma criança que se encontrava impotente embora completamente dependente dos pais, ansiando por proteção das próprias pessoas que tinham o poder de destruir você. Como Freud diz: “tem-se razão em temê-los e especialmente o pai; e embora se estivesse certo da proteção contra os perigos que se conhecia.” (FREUD, 1989, p. 41) O sentimento oceânico, Freud afirmava, estava similarmente situado dentro das dinâmicas da psique, apesar de dinâmicas que se seguiam das discussões do complexo de Édipo per ser para as formações do ego. No “Ego and Id” (“Ego e no Id”, 1923), seu texto anterior, as noções do Cs (consciente), Pcs. (pré-consciente) e Ics (inconsciente) foram substituídas pelas dinâmicas do id, ego e superego. O ego é uma incrustação imanente, uma crosta, que se desenvolve como uma membrana diferenciada, mas submersa dentro do princípio de prazer do id e do superego. Em Civilization and Its Discontents (O mal-estar na civilização) Freud enfatiza menos o ego como uma formação de compromisso e mais o dinamismo duradouro original que afunda e expande: “uma criança recém-nascida no seio ainda não distingue seu ego do mundo exterior como uma fonte de sensações que fluem sobre ele.” (FREUD, 2005, p. 39). Nossos sentimentos oceânicos se originam de um tempo quando “o ego inclui tudo, mais tarde se separa de um mundo externo a si. Nosso ego presente – sentimento é, portanto, somente um mirrado resíduo de um muito mais inclusivo – de fato, totalmente abrangente – sentimento que corresponde a um vínculo mais íntimo entre o ego e o mundo a seu redor” (FREUD, 2005, p. 41). Usando algo como o gato de Schrodinger, o restante de Civilization and its Discontents (O mal-estar na civilização) tenta sugerir como uma arquitetura psíquica ancestral, diferente das
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ruínas do Império Romano, está lá e não está: “O mesmo espaço não pode ter dois conteúdos diferentes”. (FREUD, 2005, p. 45) Não estamos apenas experienciando exclusivamente o ego do recém-nascido quando experenciamos sentimentos oceânicos. Nós não estamos nem mesmo sentindo algo que o ego do recém-nascido realmente sentiria no momento em que seu ego já se diferenciara como um espaço entre um dentro e um fora. Lacan recorre a essa temporalidade material estranha mesmo depois de alterá-la em “The Mirror Stage” (“O estádio do espelho”, 2007), onde ele começa a sobrepor, ou escavar, as lógicas estruturais da psicanálise de Freud. Aqui está o primeiro vislumbre das projeções retrospectivas que preservam e distorcem o acesso à subjetividade. Cada progressão da psique Lacaniana, sua entrada no Imaginário, no Simbólico, reativamente reconstitui o conteúdo da anterior. Qualquer que seja a experiência fenomenológica do Imaginário, ela foi dinamicamente excluída pelo simbólico. O mesmo é verdade para como a entrada no Imaginário dinamicamente exclui o Real. Como Lacan famosamente disse: o Real não é realidade. Longe disso. O Real é um sentimento do absoluto indiferenciado, da infinidade, de participar sem ter diferença, algo horrivelmente atraente e incompreensível, pois mediado pelo Imaginário e o Simbólico. Aqui nós observamos uma similaridade com as ideias de Freud de que o ego do recém-nascido permanece, mudando para um remanescente que não pode permanecer. Freud pode ter trocado o desenvolvimento da psique da criança pela verdade de um ser supranacional ou metafísico. Nós podemos nos questionar se a redução de tais especificidades nuançadas que os Karrabing descrevem para um abraço espiritual de alguns indiferenciados do todo reflete algum outro inconsciente. É importante enfatizar que a diferença entre o que alguém como Rex Edmunds está dizendo quando ele fala sobre mudi durlg específico dele – como reside em um lugar específico; como o mudi durlg reage a ele e ele ao mudi durlg devido ao ancestralmente presente relacionamento deles; como está dentro e fora dele; passando pelo coral e por determinado peixe que encontra; como está conectado a um outro lugar para leste, Bandawarrangalgen; e como ele e o mudi durlg devem lutar para resistirem juntos contra as contínuas pressões do capitalismo extrativista do colonizador – uma busca espiritual para experienciar um vazio indiferenciado, ou um estágio psicológico que irrompe e racha a crosta do ego. Tanto a possessividade soberana quanto o todo indiferenciado são o inconsciente do geontopoder. Eles são dois lados do que Luce Irigaray chamou de “o outro do mesmo”; sentimento oceânico que busca parar de estar em sintonia com nossos enredamentos específicos e imanente diferente e ancestralmente presentes é uma fantasia ideológica, um desejo de não enfrentar e conter as ações e consequências. (IRIGARAY, 1995). Esse tipo de sentimento oceânico exemplifica as analíticas contrastantes entre o liberalismo colonial tóxico e os Karrabing e outros que há muito suportaram os mutáveis estados de espírito do capitalismo colonizador. Quando Natasha Bigfoot Lewis notou a consequência de se negligenciar relações contínuas com mundos mais-que-humanos das terras Karrabing, ela fez referência ao filme Karrabing The mermaids, or Aiden in Wonderland (Karrabing Film Collective, 2018) (Sereias, ou Aiden no País das Maravilhas). O filme é uma análise da
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contaminação tóxica ocidental, capitalismo, e vida humana e não-humana. Centrado em uma terra e uma paisagem marítima envenenados pelo capitalismo onde somente os aborígenes podem sobreviver longos períodos ao ar livre, o filme conta a história de um jovem homem indígena, Aiden, que é levado quando era apenas um bebê para se tornar parte de um experimento médico que objetivava salvar a raça branca. Ele é então liberto e devolvido ao mundo para sua família. Enquanto viaja com seu pai e irmão pelo território, ele confronta duas possibilidades de futuro e passado incorporados em sua própria fábula e as narrativas oportunas de indústrias químicas e extrativistas multinacionais. Natasha também sabe que as contaminações do colonialismo podem expelir e se sedimentar abaixo da perceptibilidade humana. Em um trabalho de projeção simultânea de três vídeos encomendado por Natasha Ginwala para o Contour Biennale de 2017, Natasha e outros descrevem como, ao fazer seu segundo filme, Windjarrameru, The stealing C*nt$ (Karrabing Film Collective, 2015) (Windjarrameru, os ladrões filhos da P*ut@] os Karrabing descobriram que as terras nas quais eles tinham caçado e acampado por muitos anos estavam contaminadas pelos restos tóxicos de uma instalação militar de rádio abandonada. A comunidade perragut adjacente tinha sido informada anos antes, mas não os membros de Belyuen. Enquanto as mulheres mais velhas, seus filhos e filhas e netos e netas e eu estávamos sentados comendo nossos caranguejos e búzios duramente obtidos em Madpil, nós – mas eles mais ainda porque eu não tinha chegado até 1984, e então ido e voltado – estávamos ingerindo nesses alimentos litorâneos os sedimentos do colonialismo tóxico. Correntes oceânicas trazem e levam essas toxicidades em padrões previsivelmente distribuídos – os pobres de mundo continuam a agir como os rins dos ricos de mundo.
Referências ARENDT, Hannah. On the origins of totalitarianism. San Diego, New York, London: A Harvest, HBJ Book, 1973. _____. On revolution. New York: Penguin Classics, 2006. BAKHTIN, M. M. The Problem of Speech Genres. In: Speech Genres and Other Late Essays. Trad. Vern W. McGee. Austin: University of Texas Press, 1987, p. 60-102. CÉSAIRE, Aimé Césaire. Discourse on Colonialism. Trad. Joan Pinkham. New York: Monthly Review Press, 2000, p. 33. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. What is Philosophy? New York: Columbia University Press, 1996. DESCOLA, Philippe. Beyond Nature and Culture. Trad. Kanet Lloyd. Chicago: University of Chicago Press, 2014.
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Pele e osso do cinema Karrabing JULIANA FAUSTO
A certa altura de When the dogs talked (Elizabeth Povinelli, 2014), um grupo de crianças e jovens Karrabing discute. Os buracos que veem em determinados lugares na terra teriam sido produzidos por dingos que andavam como humanos, possuíam mãos como humanos e falavam como humanos, no Dreamtime, conforme contam seus mais velhos, ou seriam fruto do trabalho de máquinas? Talvez tenha havido pedras meio soltas naqueles lugares, retiradas por humanos. Quem sabe sejam obra de fantasmas. Nada disso faz sentido, o menor entre eles assevera. A questão temporal tampouco é simples: quando isso aconteceu? Na época dos dinossauros? Durante o epílogo, enquanto caminham contra o crepúsculo, na beira da praia, os jovens seguem especulando – e recorrem ao filme de ficção científica Stargate (Roland Emmerich, 1994), uma versão militar e (mais) desvairada de Eram os deuses astronautas?, para, ao articulá-lo aos animais que compunham a megafauna, levantar mais uma hipótese, ainda que alguém proteste que nada disso faz parte da história do Dreamtime. Embora dirigido por Povinelli, o filme é escrito e performado por The Karrabing Indigenous Corporation, de que mais tarde o Karrabing Film Collective comporia um braço. Isso significa que cada cena, cada sequência é composta coletivamente, que cada diálogo é cocriado pelo grupo. Em 2011, a antropóloga, que também tem formação em filosofia, escrevia, evocando Borges, Foucault e Derrida, sobre como a composição de arquivos é indissociável das relações de poder. “Pois todo arquivo […] é ao mesmo tempo instituidor e conservador. Revolucionário e tradicional […] fazendo a lei (nomos) ou fazendo respeitar a lei” (DERRIDA, 2001, p. 17); ou, como viria a resumir, expandindo, Paul B. Preciado anos mais tarde, “todo arquivo contém o fogo com o qual a memória do outro é destruída. Todo arquivo é um necroarquivo. Um arquivo é um bloco de raiva comprimida” (PRECIADO, 2017, p. 131). Povinelli situava o arquivo nesse quadro para colocar-se outros desafios: a invenção de arquivos pós-coloniais em plataformas digitais. Seu texto e este se separam por dez anos. Nesse período, muito do que a internet prometia foi devorado por grandes corporações e monopólios. Apesar de o trabalho anunciado no artigo, o de reconceitualização da noção de mapeamento realizado pelo próprio ato de mapear terras segundo sua cosmologia com o auxílio de tecnologias como GPS e GIS, continuar ativo, o coletivo Karrabing tornou-se célebre principalmente por causa de seu trabalho com arte, sobretudo, audiovisual. Isso não significa que os problemas levantados em 2011 não permaneçam: afinal, como constituir um arquivo pós-colonial, que não seja apenas mais uma sala na
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biblioteca de Babel imaginada por Borges, mas um arquivo alienígena ao conceito de arquivo; um arquivo indígena? O que está em jogo aqui não é apenas um conjunto de protocolos para a circulação do conhecimento, mas também o modo pelo qual o conhecimento é uma forma de criar e manter a consubstancialidade das formas de ser. Em outras palavras, a questão não é o conhecimento em si, mas o propósito do conhecimento. (POVINELLI, 2011, p. 160)
Em Day in the life (Elizabeth Povinelli, 2020), musical que segue um dia na vida da comunidade enquanto conecta temporalidades e presentifica a catástrofe ancestral, deparamo-nos em certo momento com um homem adulto que gostaria de passar seu conhecimento a um jovem. O que eles encontram pelo caminho é o lixo deixado pela colonização, a terra contaminada por amianto. Ao fundo toca um hip-hop, esse fenômeno expressivo cuja batida, os Karrabing fazem questão de frisar, tem também origem na música tradicional dos seus mais velhos. A letra, cantada por um jovem, vai mais ou menos assim: “Eu entendo/ Ele quer que a gente aprenda/ Mas eu olho em volta/ E vejo dano/ Dá pra sentir o terror desta era/ Ninguém interfere, ninguém se importa/ Tem gente ganhando dinheiro aqui/ Nós estamos pele e osso/ A terra é nossa pele e osso”. No artigo de 2011, Povinelli lembrava que o chão orgânico do arquivo pós-colonial – as pessoas cujas narrativas pessoais são os loci da memória como arquivo – não está sendo mantido no lugar por tempo suficiente para que seja possível fazer a transferência do arquivo enquanto conhecimento e memória corporificados para o conhecimento e memória textuais. (POVINELLI, 2011, p. 161)
O desespero dessa constatação fez com que a autora aventasse, aconselhada por seus amigos Karrabing, a queimar o acervo que possuía. Às vezes, as chamas contidas em alguns arquivos são ferozes demais. Esse é o caso da catástrofe ancestral, não o Antropoceno como horizonte, catástrofe que vem, mas aquela que começou com o colonialismo e a escravidão. Nela, a localização do colapso climático, ambiental e social gira e se transforma em algo completamente diferente. Catástrofes ancestrais são passadas e presentes; elas continuam a sair do chão do colonialismo e do racismo em vez de emergirem no horizonte do progresso liberal. (POVINELLI, 2021, p. 3)
Tive a oportunidade de entrevistar Elizabeth Povinelli em 2014. Enquanto falávamos sobre cinema, mencionei A última onda (Peter Weir, 1977), filme com Richard Chamberlain e David Gulpilil, do povo Yolngu, do Território do Norte da Austrália, tornado famoso por A longa caminhada (Nicolas Roeg, 1971). No filme de Weir, Chamberlain é um advogado que entra em uma estranha relação com Gulpilil e seu mundo, o que culmina no cumprimento de uma antiga profecia acerca de uma onda gigante e o fim do mundo. Ela deu uma risada enorme e me contou que viajaria no dia
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seguinte para começar as gravações do que então se chamava The waves [As ondas], a que assisti, mais tarde, sob o título de Windjarrameru, the stealing c*nt$ (Elizabeth Povinelli, 2015). A catástrofe ancestral está presente no filme sob muitas formas, a mais comentada delas no diálogo exemplar entre os jovens que se escondem da polícia em uma área contaminada, após terem roubado cerveja de alguns velhos que pareciam fazer pinturas tradicionais em pedras, mas na verdade trabalhavam para mineradores ilegais. Um deles procura confortar os outros: “Não se preocupe. Eles não virão aqui. Estamos seguros; há muita radiação aqui. Estamos seguros”. Mas há também essa piscadela a A última onda quando, no epílogo, em uma espécie de futuro não tão distante, enquanto ainda continuam sendo perseguidos, agora por uma polícia que veste trajes de proteção antirradiação ou de biossegurança, dois karrabing (não sei se contemporâneos ou ancestrais) conversam: – O que aconteceu a esse lugar? – Só pequenas ondas vieram, só pequenas. – E aquela grande? – De onde, essa grande? Só pequenas, só ondinhas vieram. – O que aconteceu a esse lugar?
A catástrofe ancestral definitivamente destrói mundos – “eu posso sentir o terror desta era” – ao trucidar a terra e seus seres, impossibilitar a geratividade em todos os seus sentidos (inclusive compreendido como direcionalidade). “Nós estamos pele e osso/ A terra é nossa pele e osso”. Mas nada disso é um horizonte, um grande tsunami que vem. Trata-se de todas as pequenas ondas, incessantes, de cada caravela, cada navio trazendo seres transformados à força em mercadorias, para os quais os portos jamais se fecharam. A colonização e a escravidão fizeram com que povos humanos e outros-que-humanos ardessem, não cessassem de arder há pelo menos 500 anos. “O que aconteceu a esse lugar?” Em vez de atear fogo aos arquivos, o Coletivo Karrabing continou fazendo arte. Em uma fala de 2019, Povinelli explicou que eles compreendem sua prática como pesca à linha. Um tipo de pesca perigosa, pois, a depender da força com que se lança a linha ou da força do peixe que morde a isca, pode-se perder um dedo: “Todos temos cicatrizes”, ela ponderou. “Também digo Macguffin”, prosseguiu, aludindo ao vocabulário cinematográfico, “mas usamos o termo isca porque todos caçam”. O modo de falar, ligado a imaginários situados, faz diferença e produz diferentes imagens. O que está em jogo nessa arte de pescar à linha é Como fazer com que múltiplas formas de existência mordam [a isca]. Os peixes que queremos fisgar estão dentro desse nó. Por um lado são os mais jovens, alguns da mesma idade, que estamos tentando atrair para aprenderem, manterem no lugar, preocuparem-se, mesmo que seja apenas sob a forma de uma discussão sobre o presente ancestral em curso. E isso tem sido muito eficaz. Estamos tentando transfixar seus sentidos e práticas de modo que, enquanto estão fazendo uma coisa, por exemplo, filmes, arte e instalações, não deixem de ser compelidos pelas presenças
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ancestrais. Por outro lado, estamos tentando fisgar instituições maiores para que, quando elas mordam, recursos sejam puxados, mas… Bem, essa é a questão da isca, né? É a direção para a qual a linha é puxada. Nós temos o anzol e estamos tentando puxar numa direção, e as instituições estão tentando puxar para outra de acordo com […] diferentes relações de força. Então, mais uma vez, enquanto prática, trata-se de lançar a isca a fim de conseguirmos interesse institucional, que as instituições a mordam sem que arranquem nossos dedos fora, ao mesmo tempo em que conseguimos mordidas geracionais de modo que o arquivo do presente ancestral não esteja em uma biblioteca, não esteja em um museu, mas esteja nos corpos. (POVINELLI, 2019, s/p)
Parece que o problema acerca da invenção de um arquivo pós-colonial e a sustentação de sua base orgânica foi tratado pelos Karrabing por meio da criação mantenedora e interconectiva de corpos-arquivo. Quando discutem sobre a origem dos buracos, explorando narrativas científicas que invalidam sua cosmologia, cadeias causais de um mundo desencantado e colonizado ou filmes multimilionários com fundo racista, as histórias contadas por seus mais velhos, aquelas que os constituem enquanto comunidades ligadas àquela terra segundo uma determinada temporalidade passam a fazer parte de seu repertório, imaginários e mentes-corpos, e isso acontece durante a realização do filme, o que inclui sua idealização, feitura e pós-produção. Um arquivo-corpo processo, exsudando força centrípeta. A dimensão muito concreta do financiamento dessas obras lança os pescadores em um jogo com instituições que, por mais abertas, se dará sempre sob a égide da questão da “distribuição dos efeitos de poder e do poder de afetar um dado terreno de existência” (POVINELLI, 2021, p. 15). Quais são os efeitos concretos dos financiamentos? Quais são os efeitos de se exibir um filme – uma isca – em um museu, a biblioteca de Babel? Transformar-se-ão esses filmes em arquivos tradicionais ou serão eles capazes de afetar essas instituições, transformando-as? Quem afeta quem, e como? Seria a isca um contra-arquivo, se considerarmos arquivo no sentido derridiano? Presente ancestral é um conceito cunhado pelo coletivo diante de alguns debates nessas instituições. Confrontados com perguntas de espectadores mergulhados em um entendimento multiculturalista, que tinham a impressão de que os ancestrais, humanos e mais-que-humanos, estavam no passado de uma vez por todas, os Karrabing criaram a noção de presente ou presença ancestral. Certa vez Walter Benjamin disse que “também os mortos não estarão em segurança se o inimigo” – o fascismo – “vencer”, completando que “esse inimigo não tem cessado de vencer” (BENJAMIN, 1985, p. 224-225). Para os Karrabing, os ancestrais “lutam para se manter no lugar diante do colonialismo em curso” (POVINELLI, 2019, p. 134), isto é, estão e estarão sempre em perigo enquanto essa forma de poder estiver vigente. Sua presença é contemporânea e ancestral porque os ancestrais não se situam de uma vez por todas em um passado ido, mas se mantêm em uma temporalidade cumulativa e fluente, conectada a bases materiais – a terra, as formações dos Dreamings – para que possam seguir existindo com os Karrabing e nas histórias. Em termos audiovisuais, isso significa que, nos filmes, o coletivo passou a experimentar cada vez mais com sobreposições e fusões de modo a instanciar o presente ancestral, além de entrar em contato direto com esses ancestrais.
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Em Mermaids, or Aiden in Wonderland (Elizabeth Povinelli, 2018), uma das sereias sequestra um menino karrabing e o conduz até um lamaçal, onde ele servirá de cobaia para experimentação de cientistas/torturadores. Confrontada pela criança (“Eu acreditava que vocês, sereias, ajudavam as pessoas. Mas vocês não as ajudam. Querem matá-las”), ela responde que “A gente branca forçou as sereias a agirem assim”. Nesse filme, uma distopia ancestral-próxima, na qual um filtro amarelo dá a impressão de terra quente e exotizada, seres mais-que-humanos sofrem os efeitos da colonização. Perguntei a Povinelli por e-mail em que medida a catástrofe também os afetaria; se, em suma, seria possível que houvesse um colapso dos Dreamings. Ela me respondeu que essa era uma questão difícil para a qual havia muitas respostas: alguns de nós acreditamos que há coisas que no passado se esconderam nos subterrâneos que podem emergir no presente se retornarmos e cuidarmos delas. Outras vezes, alguns dizem que tudo está morrendo, desvanecendo-se. Mas, geralmente, “aquele Dreaming continuará aqui depois” é mais comum. (POVINELLI, comunicação pessoal, 26/09/2021)
Em algumas das últimas obras a que assisti, como Night time go (Elizabeth Povinelli, 2017) e os já referidos Day in the life e Mermaids, alianças com o presente ancestral mudam de modo imprevisto, para os colonizadores, nas histórias, o curso da História. A maré sempre retorna. Dreamings e Karrabing se ativando, iscas sendo lançadas, corpos-arquivo em processo. Longe de derrotado, o presente ancestral se ergue. Ao final de Mermaids, ouve-se: “Tentamos advertir os brancos. Eles não compreendem as consequências de se violar a lei negra”. Juliana Fausto é filósofa e escritora. Autora de A cosmopolítica dos animais (n-1 edições, 2020), possui graduação em Filosofia (UFRJ), mestrado em Letras e doutorado em Filosofia (PUC-Rio). É pesquisadora de pós-doutorado PNPD/CAPES no PGFilos/ UFPR. Trabalha com estudos animais, estudos feministas e artes, com enfoque na catástrofe socioambiental conhecida como Antropoceno, tendo colaborado com uma série de artistas nos últimos anos.
Referências BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Obras escolhidas, vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 222-232. DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo. Uma impressão freudiana. Trad. Claudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. POVINELLI, Elizabeth A. The Woman on the other side of the wall: archiving the otherwise in postcolonial digital archives. Differences: A Journal of Feminist Cultural Studies, vol. 22, n. 1, p. 146-171, 2011.
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_____. After the end, stubborn affects and collective practices. Sonic Acts Festival 2019 – Hereafter. 24/02/2019. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=B39F2duTlJ4. Acesso em 3 de outubro de 2021. _____. Between Gaia and ground. Four axioms of existence and the ancestal catastrophe of late liberalism. Durham and London: Duke University Press, 2021. PRECIADO, Paul B. My Body Doesn’t Exist. In: LATIMER, Quinn; SZYMCZYK, Adam (eds.). The documenta 14 Reader. Munich, London, New York: Prestel Verlag, 2017, p. 117-161.
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Sobreposições e rotas alternativas do espaço-tempo KÊNIA FREITAS
Há uma expressão kanak que diz: “Eles têm relógios, nós temos tempo.” “Eles” na expressão são os colonizadores brancos (do passado e do presente), o “nós” estendemos aqui para além dos Kanaks às pessoas racializadas e subjugadas pelos processos de colonização. A expressão separa o tempo das tecnologias de medida e uniformização (portanto de controle) eurocêntricas. Essa frase dá título a um dossiê da revista The Funambulist: Politics of Space And Bodies (2021), inspirado pelo trabalho da afro-quantum-futurista Rasheedah Phillips. E é a partir dela que gostaríamos de nos aproximar de alguns filmes do Karrabing Film Collective, e das percepções de tempo-espaço que estes nos abrem. Em sua pesquisa e trabalho artístico, Rasheedah Phillips ressalta o quanto a dominação espacial dos territórios pelo projeto colonial foi (e é) também uma dominação do tempo e sobretudo do futuro. A divisão imperial do mundo em colônias foi também a sua divisão em zonas de fuso horário padronizadas pelo poder colonial. Para Phillips: “O progresso e o acúmulo de fatos ou pontos na linha do tempo linear sempre ocorrem às custas das vidas negras. O objetivo do tempo linear Ocidental é sempre bloquear os corpos negros do futuro e removê-los da linha do tempo da civilização” (PHILLIPS, 2021, p. 22; tradução livre). Portanto, a recusa do tempo linear e das padronizações temporais do colonialismo e do capitalismo são táticas ativas na criação de contrafuturos para as populações historicamente racializadas e subalternizadas. O encontro com os filmes do Karrabing Film Collective nos despertou justamente para táticas diversas na desconstrução das temporalidades lineares tanto na premissa, quanto na montagem das narrativas. Nestes filmes, experienciamos a abertura para uma não separabilidade espaço-temporal e futuro-ancestralidade. Ter tempo é também percorrer o território, voltar ao “país” (local dos ancestrais) e levar consigo as novas gerações – gestos que se repetem em quase todos os filmes do coletivo. Neste texto, pensaremos alguns aspectos dessas táticas a partir dos filmes: Wutharr, Saltwater Dreams (2016) e Night Time Go (2017). Narrativas que de formas diversas pluralizam a criação de espaço-temporalidades não hegemônicas pelo uso das imagens e sons.
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Circularidades e impasses narrativos Wutharr, Saltwater Dreams (2016) é o filme que fecha a trilogia inicial do Karrabing Film Collective – após When the Dogs Talked (2014) e Windjarrameru, the Stealing C*nt$ (2015) –, em uma fase marcada pela ideia de “realismo improvisado” (LEA; POVINELLI, 2018). Esses filmes partem do cotidiano karrabing para evidenciar a opressão colonial e as suas marcas ainda vividas pelos membros do grupo. Ao mesmo tempo, esse cotidiano recriado para os filmes convida a um vislumbre de percepções de mundos a partir de sua perspectiva. No filme, uma família lida com o seu barco quebrado e três explicações co-possíveis que levaram a isso. O regime temporal da narrativa é embaralhado de saída com uma espécie de prólogo que apresenta a situação já em andamento: o barco quebrado, a intervenção da polícia que busca punir os detentores do barco (acusando-os de navegar de forma insegura), a presença dos ancestrais – que é mesclada com as sirenes da viatura policial –, o encontro com objetos do passado (como uma moeda de 1953). Enfim, um conjunto de imagens e situações pouco ou nada contextualizadas. Imersos já no embaralhamento, só então, o filme parte para o seu primeiro bloco com o título de “No início – água salgada, água sagrada, espíritos amargos”. Esse bloco situa a ação no momento em que a família, com a ajuda de vizinhos e amigos, precisa lidar com o barco que não funciona e passa a discutir os motivos para isso. Da conversa surgem três versões distintas para o acontecimento – que mais se sobrepõem do que concorrem entre si. A versão de Trevor (“Apaziguar os ancestrais”) começa com uma transposição espaço-temporal ligando o presente aos tempos antigos, e o quintal de casa ao meio do mar. O conserto do barco nessa linha tempo-espacial passa por revisitar a terra dos ancestrais e apresentá-la às novas gerações. Voltar ao país quer dizer percorrer esse território a pé e derramar o suor nele, beber a sua água – recriando um laço espiritual-material entre passado, presente e futuro com as crianças andando no território pela primeira vez. A recepção dos espíritos que habitam o país não é de acolhimento, mas de perseguição e de sabotagem para os descendentes que há muito tempo não os visitavam. A versão da Linda (“Dai a César… e dai a Deus”) – apresentada na sequência – nos leva brevemente de volta ao quintal da casa, no presente. O grupo recebe a visita de uma agente do governo que veio entregar formulários a serem preenchidos para evitar uma multa pelo barco estar circulando de forma irregular, sem os devidos equipamentos de segurança. A burocracia estatal é apresentada de forma tragicômica: os formulários são intermináveis e incompreensíveis e a tentativa de preenchê-los coletivamente leva a mais discordâncias e frustrações ao grupo. Diante disso, Linda apresenta a sua solução: convocando o grupo para abandonar formulários e consertos, e juntar-se a ela em oração em uma igreja cristã. É dentro dessa velha igreja que o filme nos leva para a terceira versão dos acontecimentos, a versão dos ancestrais (“O que foi guardado permanece no lugar onde foi guardado”) – agora se instalando definitivamente na temporalidade dos espíritos e em sua espacialidade. Linda é levada pelos sacerdotes da igreja para o encontro com os seus ancestrais, de 2015 para 1952.
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No filme, as sobreposições de imagens e sons na tela e a montagem consecutiva de cenas de versões/temporalidades distintas ajudam a criar a ideia de co-possibilidade das diferentes linhas espaço-temporais para a história. A espiritualidade traz uma dualidade entre visível e invisível ao ser trabalhada como camadas de sobreposição imagéticas e sonoras. Esse efeito se intensifica na terceira versão, pois estamos dentro da perspectiva dos ancestrais. Nela eles estão vivos e Linda que é a agente externa (sem permissão para permanecer). Assim, as imagens do presente na nossa linha temporal (Linda e os sacerdotes) transpassam e se sobrepõem em transparências às do passado, com ruídos e interferências de imagens e sons embaralhando ainda mais as camadas. A versão dos ancestrais termina justamente com Linda sozinha na mata, encontrando a moeda de 1953 (cena que aparece pela primeira vez no prólogo), indicando uma ideia de circularidade da narrativa (sem pontos definitivos de começo e fim). A circularidade é reforçada com a repetição de diversas cenas do bloco de abertura no encerramento do filme. Não há apontamento de uma solução, mas o filme se faz reforçando a trama de pontos de vistas diversos e dos efeitos do passado no presente. Nesse sentido, as versões não se auto-excluem mas fazem parte da mesma realidade complexa. O motor quebrou por causa da água salgada corroendo a fiação e por causa da punição dos ancestrais pela ausência de visita dos descendentes ao território e pela falta de oração e por causa da perseguição estatal. O impasse é o elemento que une trama e forma fílmica.
Recriando linhas espaço-temporais Night Time Go (2017) é um filme dedicado a recontar um momento marcante do passado Karrabing – quando, durante a Segunda Guerra Mundial, seus antepassados foram forçados pelo estado australiano a viverem em campos de guerra e empreenderam fugas de mais de 300 km para voltar aos seus territórios originais. Sendo, no conjunto dos filmes Karrabings, o que mais diretamente refere-se e confronta a narrativa histórica colonial, trazendo para dentro do filme arquivos fílmicos diversos do período (como reportagens feitas para o cinema e trechos de documentários). Ao mesmo tempo, é um filme que questiona a ausência de registros oficiais da existência de tais campos (e da resistência dos povos originários contra eles). Nos levando a perguntar: afinal, a quem os arquivos oficiais contemplam e que história eles constituem? Esse questionamento à história oficial se dá sobretudo pela tática da reencenação criativa no presente desses acontecimentos do passado. Essas encenações começam a aparecer aos poucos, misturando-se dentro dos materiais de arquivo, de forma a imitar sua textura e formato – as cenas reencenadas aparecem em preto e branco e com o tamanho de tela quadrado (simulando a aparência dos filmes em 16mm utilizados como contraponto histórico). Se no arquivo histórico a presença dos povos originários no país é tratada de forma exótica, condescendente e/ou ameaçadora, a reencenação da perspectiva karrabing não apenas corporifica uma presença que foi invisibilizada pelo processo colonial, mas vai aos poucos
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reescrevendo os acontecimentos históricos. Reinvenção que culmina por gerar um presente karrabing alternativo em 2017 – que se sucede após uma grande rebelião contra o controle nos campos, marcada pela união dos povos subalternizados contra os colonizadores brancos. Essa fabricação intencional de um registro histórico karrabing ressoa o teor inventivo da própria criação do coletivo – seu nome não se refere a uma etnia ou um local já existente, mas forja uma aliança entre familiares, amigos e cúmplices em torno de um projeto de auto-organização e determinação pela realização de filmes que questionam as relações de opressão colonial no presente. Reencenar a história no que ela tem de ausente é um gesto que não apenas ressalta as lacunas dos registros oficiais, mas que coloca em evidência o teor fabricado da história do ponto de vista colonial. Como afirma Meryem-Bahia Arfaoui: “(...) colonização não é um momento na história, mas um processo de destruição. É a negação permanente de tudo o que é pré-existente. (...) A colonização nega a construção coletiva da história em favor de um imaginário fictício” (ARFAOUI, 2021, p. 27). Nesse sentido, podemos perceber o material de arquivo dos jornais e documentários feitos da perspectiva do estado colonial australiano menos como documentos e mais como ficções perversas elaboradas pelo projeto imperialista eurocêntrico: de uma Austrália branca, civilizada, pacífica e benevolente com os seus habitantes originais desprotegidos. Se o começo do filme é marcado pela infiltração da reencenação karrabing nos arquivos da ficção colonial, este logo tem um momento de virada passando do preto e branco para as cores e da tela quadrada para o formato aberto retangular do cinema. Essa passagem entre registros fílmicos e tempo-espaços históricos se dá justamente dentro de um trem (que na narrativa transporta os antepassados dos karrabing para os campos de guerra) – em uma cena que se assemelha muito em função narrativa e montagem com a passagem do trem em Serras da desordem (Andrea Tonacci, 2006). Se o relógio e a divisão das zonas de fuso horário foram/ são as tecnologias coloniais do tempo, o navio e o trem foram/são as do espaço. Nessa passagem do filme, há uma sobreposição imagética sobre os Karrabing no trem que mostra uma materialidade se decompondo – como películas sendo queimadas – dando a imaginar também a destruição do projeto colonial sobre as histórias coletivas. E a trilha sonora traz de forma inusitada o tema de abertura do seriado Westworld (2016) – série estadunidense de ficção científica que se passa em um futuro próximo, no qual um parque de diversões replicando o universo dos filmes de western hollywoodianos foi construído utilizando androides. O que esse parque futurista permite é que os seus visitantes humanos (muito ricos e, em geral, brancos) revivam e inventem as perversões que desejarem reencenando a invasão do Oeste estadunidense – revitimizando (mais uma vez sem culpa) as populações indígenas. Esse uso da trilha – em geral bastante inventivo nos filmes Karrabings – nos faz pensar que o passado e algumas linhas temporais do futuro diferem em muito pouco. Ainda que acene para essas perversidades transtemporais, Night Time Go está mais interessado em criar a sua própria linha do tempo. A reencenação assim não traz apenas o processo de violência e opressão colonial dos campos, mas irá na
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parte final do filme focar-se nos processos de fuga e rebelião. O próprio título do filme faz referência ao momento da fuga à noite – “night time go”, que poderia ser traduzido como “tempo da noite vamos”, é uma frase dita por uma das karrabings insurgentes combinando a partida. A insurreição do passado é ampliada pela encenação, resultando em um futuro alternativo de liberdade. Nessa linha do tempo, as mesmas imagens de arquivo que mostravam as danças de antepassados karrabing como “bons selvagens inocentes” nas reportagens do governo australiano, são retomadas como danças que celebram a sua liberdade no passado e no futuro. Futuro para quem o filme acena com o otimismo de um mundo alternativo, fazendo o encontro de avós com seus netos em uma praia – mais de 300 km longe dos campos de guerra. As crianças karrabing brincam, correm e fazem perguntas às suas matriarcas. O gesto da conversa e da troca entre as gerações encenam o que pode ser na prática a feitura de uma história coletiva fora do enquadramento da destruição colonial.
Tempos sobre espaços, espaços sobre tempos As recorrentes sobreposições de imagens nos filmes do coletivo brincam com diferentes tipos de transparência e (in)visibilidade. Concretamente, por essa tática de montagem o mesmo espaço (a tela) pode abrigar diferentes temporalidades – por exemplo, os anos 1940-50 e o presente, nos filmes que comentamos neste texto. Dando a perceber uma apreensão do tempo que não passa pela linearidade, mas pela transposição e copresença. Assim, os ancestrais são espíritos e também estão vivos – depende de em que camada sobreposta do tempo nós nos situamos. Do mesmo modo, voltar ao país, percorrer o território, derramar o suor na terra ancestral, ir ao mato para refletir e encontrar-se consigo são ações recorrentes em muitos dos filmes do coletivo. Quase sempre esses deslocamentos especiais no presente levam também a deslocamentos temporais aos passados e futuros – alternativos ou existentes. Nesse sentido, a contestação nos filmes dos controles espaciais e territoriais que o estado australiano os impõe – a burocracia paralisante do estado é personagem importante em várias das suas narrativas – é também uma reivindicação de possuir os seus próprios tempos. Nesse sentido, o que os filmes nos fazem perceber é que o acesso aos territórios ancestrais é o acesso a uma tecnologia karrabing do tempo – o tempo em sua amplitude de versões e possibilidades simultâneas. Essa é uma tecnologia de tempo que nada tem a ver com relógios ou fusos horários, e sim com uma forma karrabing de apreensão de mundos e táticas de resistência anti-colonial. Se, como diz Léopold Lambert, “Desafiar fundamentalmente a uniformidade e a linearidade do tempo pode alterar significativamente nossa compreensão da realidade e nosso engajamento político dentro dela” (LAMBERT, 2021, p. 17), a abertura às afecções que os filmes karrabing nos oferecem com suas táticas narrativas e estéticas de desmontar e remontar espaço-tempos pode ser um incentivo ao nosso próprio deslocamento perceptivo da realidade.
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Kênia Freitas é pesquisadora e crítica de cinema. Fez estágios de pós-doutorado em Comunicação na UCB (2015-2018) e na Unesp (2018-2020). Doutora em Comunicação e Cultura pela ECO-UFRJ (2015). Realizou diversas curadorias e integrou as equipes curatoriais do IX CachoeiraDoc (2020) e Festival de Cinema de Vitória (2018). Escreve críticas para o site Multiplot!.
Referências ARFAOUI, Meryem-Bahia. Time and the Colonial State. The Funambulist: Politics of Space And Bodies. Issue 36, July-August, p. 26-29, 2021. LAMBERT, Léopold. They Have Clocks, We Have Time: Introduction. The Funambulist: Politics of Space And Bodies. Issue 36, July-August, p. 16-17, 2021. LEA, Tess; POVINELLI, Elizabeth A. Karrabing: An Essay in Keywords. Visual Anthropology Review, v. 34, Issue 1, p. 36-46, 2018. PHILLIPS, Rasheedah. Counter Clockwise: Unmapping Black Temporalities From Greenwich Mean Timelines. The Funambulist: Politics of Space And Bodies, Issue 36, July-August, p. 20-25, 2021.
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O cinema como sonhar RENATO SZTUTMAN
Com Mermaids: Aiden in Wonderland (2018), o coletivo Karrabing oferece ao espectador uma ficção científica distópica, sem abdicar de uma certa dose de humor, que é marca de seus filmes. Estamos num futuro próximo, no Território Norte da Austrália. Imagens apocalípticas amareladas ganham a tela: queimadas, fumaça, fome, desmatamento, lixo radioativo, lama exterminadora. Tudo é devastação. As primeiras cenas que vemos, depois da abertura, são as de um hospital, em que indígenas parecem ser prisioneiros e cobaias de um estranho experimento. Vemos cientistas (médicos?) paramentados com uniformes de ultraproteção, algo que nos faz lembrar de imagens da pandemia de Covid-19. Profissionais que ali trabalham – todos eles brancos – dão a entender que a Terra foi envenenada, e que, para seu desalento, os indígenas foram os únicos a permanecer imunes a essa toxidade. Alguns deles foram, aliás, mantidos em cativeiro, tornando-se objetos de experimentação. Um deles é o jovem Aiden, protagonista da história, sequestrado ainda criança. Aiden é libertado logo no início do filme, dando sequência a uma longa trajetória, na qual buscará reconectar-se com o seu passado e com os seus ancestrais. A narrativa de Mermaids, como as demais narrativas dos filmes Karrabing, recusa qualquer linearidade. O percurso de Aiden pelo território de seus familiares, guiado por seu tio Trevor e por seu primo Gavin, condensa tempos diversos: sua infância – quando a catástrofe é deflagrada e ele é capturado pelos brancos –, a libertação e o reencontro com os familiares – que é também o tempo da rotinização da catástrofe – e o tempo dos “sonhares” (dreamings).1 “Sonhar” é um conceito-chave para os indígenas australianos e, mais especificamente, para o coletivo Karrabing: pode referir-se a personagens míticos, a narrativas, a lugares ou mesmo a trajetos. Pode “pertencer” a uma pessoa ou a um coletivo. O “sonho” em questão não coincide com o objeto psicanalítico, não advém do trabalho de um inconsciente psíquico, mas sim de acontecimentos virtuais, que existem para além do sujeito e sua consciência. Na língua batjemalh – uma das línguas faladas entre os membros do coletivo Karrabing – a palavra para “sonhar” é durlg. Antropólogos costumaram traduzir conceitos como esse como “totem”, incorrendo em certas simplificações e reificações. De modo geral, como indica Povinelli (2016), os sonhares estão na base da criação da topologia da região, descrevendo o trajeto que culminou no estabelecimento de lugares e acidentes geográficos. Os sonhares seriam, na glosa de Barbara Glowczewski, inspirada em Félix Guattari, “territórios existenciais”– virtuais, porém reais, já que atuam fortemente na vida das pessoas. O tempo do sonhar não se dissocia do tempo 1. Uso aqui a tradução de Jamille Pinheiro para o termo dreaming (in Glowczewski, 2015).
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da experiência. Parece-me ser nesse entrelaçamento de tempos – ou melhor, de espaços-tempo – que se inscreve o desafio maior do coletivo Karrabing. Elizabeth Povinelli, integrante do coletivo Karrabing e diretora de grande parte de seus filmes, refere-se a um “presente ancestral”. O mundo dos durlg, bem como dos ancestrais, não poderia ser reduzido a uma existência passada, tampouco poderia ser pensado como “cultura”, como representação do mundo. Segundo ela, os sonhares atuam no presente, produzem efeitos sobre ele. Mais do que isso, insistem em habitar uma Terra devastada pelo colonialismo, este que impõe uma flecha do tempo implacável. Eles lutam pela sua “supervivência” – survivance, no sentido atribuído pelo intelectual chippewa Gerald Vizenor: não uma sobrevivência (survival), a repetição enfraquecida do mesmo, mas uma persistência que inclui a possibilidade de alterar o passado (Povinelli, 2021b). A ideia dos “sonhares” como passado e da “cultura” como representação seria resultado, segundo Povinelli, do que ela chama de “liberalismo tardio”, reação do liberalismo a críticas e alternativas ao seu funcionamento, combinando “políticas do reconhecimento” – o multiculturalismo, a tolerância cínica da diferença (como apontada por Isabelle Stengers, 1997) – com o “geontopoder” – não mais o poder de controlar a vida (bios), mas uma nova espécie de governança da terra (geos), que opera por meio da definição dos limites entre o vivo e o não vivo (Povinelli, 2016). Segundo Povinelli, a Austrália contemporânea – e, mais especificamente, o Território Norte – é um campo exemplar da ação desse “geontopoder”: em nome do capitalismo extrativo, é estabelecida uma governança da terra, à qual cabe transformar paisagens cada vez mais ermas em recursos exploráveis e rentáveis. Esse “geontopoder” depara-se, no entanto, com as “analíticas da existência” dos povos indígenas, para quem paisagens contêm histórias, são marcos de percursos míticos e permanecem habitadas por diferentes sortes de sonhares e ancestrais. Os filmes do coletivo Karrabing são por isso mesmo pensados como um “contra-discurso” ao liberalismo tardio, como um “outro modo” (otherwise) de habitar a Terra. Povinelli designa o coletivo Karrabing como um “projeto social”, cuja motivação maior é a defesa de seu território, concebido como rede de conexões entre humanos e seres extra-humanos. A palavra karrabing – que significa “maré baixa” (ver Maia e Romero, neste volume) – se empresta como metáfora da conectividade: o movimento das marés indica que tudo está ao mesmo tempo junto e separado, “separate, separate, but connected”. E essa conectividade seria o antídoto ao confinamento e às ideias de propriedade impostos pelo liberalismo tardio. Mermaids conta a história da “morte da Terra”, morte por envenenamento, ao qual somente os indígenas permanecem imunes. Os brancos (berragut) sabem que, para solucionar os impasses de uma catástrofe que eles mesmos produziram, é preciso adentrar o universo indígena e cooptar os sonhares. Os brancos se veem privados de mundo: eles não podem mais viver “ao ar livre” sob o risco de se contaminarem. Teria essa ficção científica karrabing, de 2018, antevisto a situação vivida ao longo da pandemia da Covid-19, na qual habitantes de todo o mundo tiveram de permanecer reclusos (inside), confinados em suas casas, enquanto “lá fora” (outside) abundavam imagens de desolação e morte? (A diferença é que, no caso da pandemia, indígenas
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e negros são os mais afetados; afinal seus corpos são vulnerabilizados justamente pelas estratégias do liberalismo tardio, que aproveitam-se do estado de alerta e da reclusão para pôr em marcha a destruição ambiental e a violência policial.) Em Geontologies (2016), Povinelli apontou o “vírus” como uma das três figuras do geontopoder, uma vez que ele põe em xeque a fronteira entre vida e não vida, emergindo como o “inimigo comum” de uma guerra. É nesse sentido também que ela assume que a figura do vírus estaria ligada ao “imaginário do terrorista”, o estrangeiro que representa uma ameaça (e que acaba sendo alvo da violência de Estado). Em Mermaids, os corpos indígenas imunes ao envenenamento da terra representam também uma ameaça, aquilo que deve ser controlado e subordinado. Sob esse prisma, os sonhares – que desafiam a fronteira entre o vivo e o não vivo, e impõem obstáculos ao exercício do geontopoder e à flecha unidirecional do tempo – precisam ser dominados e cooptados. Em Mermaids, cientistas (militares?) com seus uniformes de proteção perseguem e aprisionam diferentes sonhares – a menina vestida como rapaz (Tjipel), a abelha sugarbag, o pelicano, a cacatua. Todos eles são conduzidos a um lamaçal (the mud place), onde serão sugados por canos e então atacados pelas moscas varejeiras, o sonhar mais perigoso, capaz de destruir o mundo.2 As sereias (mermaids) – “estrelas” do filme – são figuras intrigantes. Sabemos de início que elas são sonhares que habitam o fundo das águas e que atraem as pessoas para viver com elas. Num determinado momento, Trevor revela a Aiden que foram elas que o raptaram, entregando-lhe aos brancos.3 Apenas no final, ficamos sabendo que os brancos lograram escravizar as sereias, que por sua vez se aliaram às moscas varejeiras, dotadas de forte poder mortífero. Na ficção científica karrabing, sonhares acabam cooptados pelo liberalismo tardio, pondo tudo a perder. Diante do lamaçal ao qual crianças e sonhares são levados para serem “tragados”, Aiden (na versão menino) exclama: “É o fim do mundo!” Ao que a velha sereia que o conduziu até ali confirma: “É o fim do mundo.” Sereias seriam os “sonhares” cooptados, a cartada decisiva rumo à morte da Terra. Na instalação Mermaids, mirror worlds (2019), o coletivo Karrabing optou por introduzir a projeção de um outro filme ao lado da projeção de Mermaids: Aiden in Wonderland. Vemos ali imagens de materiais promocionais de gigantes industriais, como a Monsanto e a Dow Chemical Corporation, nos quais veiculam-se mensagens em defesa de um bem viver e da sustentabilidade ambiental.4 Os agentes mais mor2. Inseto da família Calliphoridae, que se alimenta de matéria orgânica em putrefação, e que costuma ser responsável pela transmissão de doenças a humanos e a outros animais. 3. O motivo do rapto de crianças é especialmente sensível entre os indígenas australianos. Entre 1910 e 1970, o governo australiano separou crianças indígenas de suas famílias, sob o intuito de promover a assimilação mais efetiva desses povos à sociedade nacional. Esse trauma é abordado no filme Day in the life (2020), em uma sequência que alterna imagens de arquivo – que tratam das “gerações roubadas” – com cenas cotidianas em Beluyen, nas quais mães manifestam o temor de ter seus filhos levados pela polícia. Como em outros filmes do coletivo Karrabing, Day in the life exibe a tensão entre o cotidiano pacato e a possibilidade de irrupção da violência policial, de Estado; mostra também como o tempo do cotidiano pode ser constantemente “assombrado”, seja por um passado histórico de dor, seja pelo universo invisível – virtual – dos sonhares e dos ancestrais. Esses mesmos temas reaparecem na ficção científica, em que a vida de Aiden é posta em risco por uma violência de Estado, agora com a cooptação de sonhares. 4. Algo análogo à mensagem “O agro é pop”, veiculada pela Rede Globo, slogan que ganha resposta com a série “O agro não é pop”, do artista indígena Denilson Baniwa.
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tíferos declaram-se cinicamente arautos da responsabilidade social e ecológica: eis um traço fundamental do “liberalismo tardio”, a que se refere Povinelli. Eles se valem do “canto das sereias” para entorpecer – e por que não “enfeitiçar”?, como propõem Pignarre e Stengers (2005) – o consumidor, fazendo-o acreditar em promessas vazias. Diante de tamanha contradição (os sonhares cooptados pelo liberalismo tardio e seu poder de destruição), cabe ao espectador do filme ou da instalação compartilhar com Aiden um sentimento de inconformidade: por que, afinal, ninguém consegue parar essa ação mortífera? O final de Mermaids: Aiden in Wonderland é incerto. Não é possível saber se Aiden está vivo ou morto, se ele liberta as crianças ou as moscas varejeiras, precipitando o fim de tudo. No final, com a tela já escura, ouvimos a pergunta sempre feita pelo protagonista ao tio e ao primo: “Isso é verdade? Não será tudo uma ilusão?”5 Os créditos começam a subir, e um narrador retoma brevemente a história sobre a escravização das sereias, concluindo que “os brancos não entendem as consequências da violação da lei negra”. Já quase ao final dos créditos, a voz de uma criança conclui: “no início, havia apenas filmes Karrabing... e sereias... e lama”. O cinema e a tecnologia na qual se apoia seriam análogos aos sonhares: pertencem ao tempo antes do tempo, a um tempo em que todos os tempos se confundem e se co-constituem. O cinema já existiria no tempo em que só havia sereias... e lama, começo de onde pode brotar e também onde tudo pode fenecer. Em uma entrevista recente (Pinheiro; Sztutman, 2018), Povinelli dizia que os filmes do coletivo Karrabing não podem ser descritos como “etnográficos”, ao menos não no sentido canônico. Eles não pretendem ser a versão visual de uma enquete científica, voltada para um público científico. Eles não pretendem explicar o universo dos sonhares. O que eles fazem, mais do que dar visibilidade, é mimetizar os sonhares, recusando toda linearidade temporal, fazendo conviver tempos em uma sequência ou no interior do próprio plano. O recurso à sobreposição de imagens, entre outros, é recorrente para alertar para uma sobreposição de tempos, para a ideia de que há outro mundo virtualmente ativo, implicado na existência. Se em Mermaids temos esse cruzamento entre dois tempos de uma vida e o tempo dos sonhares, em outros filmes – como Wutharr (2016), Night time go (2017) e Day in the life (2020) – são introduzidas também imagens de arquivo, problematizando os efeitos do passado no presente, e vice-versa. A presença de um passado menos longínquo se faz notar especialmente em filmes como A day in the life e Wutharr. No último, a protagonista volta ao ano de 1952 para resolver uma dívida com ancestrais, dívida obliterada pelas incessantes demandas da burocracia estatal. No primeiro, um personagem do tempo atual visita um acampamento de antigos: “Venho do futuro. Está muito ruim. Terra envenenada, roubo de crianças...”, lamenta aos seus ascendentes, pedindo para que com seu canto mandem os brancos embora de seu país. Além da sobreposição de imagens, temos aqui uma sobreposição de sons: o hip hop dreamings, que acompanha toda a narrativa do filme, e a música dos antigos, acompanhada pelos aerofones didjeridoo (ver Maia e Romero, neste volume). 5. A ideia de que a cosmologia está aberta para a discussão e para a dúvida é outra marca dos filmes do coletivo Karrabing. A existência dos sonhares é muitas vezes questionada e submetida a controvérsias. Esse ponto é bastante explícito na chamada Trilogia da Intervenção (ver Maia e Romero, neste volume): When dogs talked (2014), Windjarrameru (2015) e Wutharr: saltwater dreams (2016).
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Um sonhar recusa a sucessão de passado, presente e futuro. Um sonhar não é simplesmente um passado imaginado, o mundo das origens, como se disse dos mitos; tampouco uma forma de antever ou imaginar o futuro, como se disse dos sonhos e da ficção científica. Um sonhar é a possibilidade de conceber a convivência de tempos diversos, que se entre-afetam. Nos filmes do coletivo Karrabing, o ancestral vive no presente, o futuro altera o passado. O cotidiano é invadido por memórias e imagens, por encontros com seres extra-humanos, que cobram dívidas, exigem reciprocidade. Em seu mais recente livro, Bewteen Gaia and Ground, Povinelli (2021b) problematiza a ideia de fim de mundo e de “catástrofe por vir”. Para a autora, a “catástrofe por vir” (futura) não pode ser dissociada do que ela chama de “catástrofe ancestral”, aquela promovida pelos europeus em lugares como a América, a África e a Oceania. O colonialismo e o racismo – com sua necropolítica voraz – seriam a causa dessa catástrofe ancestral. Não haveria como pensar o Antropoceno, o geontopoder fora desse acontecimento. (Como sinalizaram Haraway e Tsing, 2018, Plantationceno seria o nome do Antropoceno capaz de associar a exploração simultânea da terra e dos povos, vítimas da colonização.) Como escreveram Danowski e Viveiros de Castro (2014), o mundo dos indígenas das Américas já teria acabado há séculos, e muitas vezes mais de uma vez, de forma recursiva. Em suma, a catástrofe já chegou para boa parte dos povos do planeta. O que se passaria nos dias hoje é o aguçamento de uma “consciência planetária”, na qual pela primeira vez os brancos – berragut, ocidentais, modernos, euroamericanos – se veem na iminência de perder o mundo, e isso por consequência de suas próprias convicções. Nesse sentido, eles poderiam se abrir para as lições de fim de mundo dos indígenas. Segundo a karrabing Povinelli, não se trata de encontrar nos indígenas uma salvação para os brancos, trata-se sim de empreender uma crítica incisiva do liberalismo tardio e do capitalismo extrativo, e essa crítica os obrigaria a encarar, finalmente, a “catástrofe ancestral”. Como escrevia Starhawk (apud Pignarre; Stengers, 2005), “a fumaça das bruxas queimadas ainda se faz sentir em nossas narinas”. A própria Starhawk reconhece que a violência ocorrida na Europa é indissociável de uma caça às bruxas em escala maior, aquela realizada nas colônias além-mar. Caça às bruxas (e às sereias) que aparece em Mermaids – e em outros filmes do coletivo Karrabing – como uma caça aos sonhares realizada pelos escudeiros do liberalismo tardio. Renato Sztutman é professor do Departamento de Antropologia da USP, pesquisador do Centro de Estudos Ameríndios — CEstA/USP e autor do livro O profeta e o principal: a ação política ameríndia e seus personagens (Edusp/Fapesp, 2012).
Referências DANOWSKI, Débora; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir? Ensaio sobre medos e fins. São Paulo: ISA/Cultura e Barbárie, 2014. GLOWCZEWSKI, Bárbara. Devires totêmicos: cosmopolíticas do sonho. Tradução de Jamille Pinheiro. São Paulo: Ed. N-1, 2015.
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HARAWAY, Donna; TSING, Anna. Reflections on the Plantationcene: a conversation with Donna Haraway and Anna Tsing, moderated by Greg Mittman. Madison: Nelson Institute for Environmental Studies, 2018. MAIA, Paulo; ROMERO, Roberto. No princípio, só existiam filmes karrabing. In: Catálogo forumdoc.bh.2021 – 25anos. Belo Horizonte: Associação Filmes de Quintal, 2021. PIGNARRE, Philippe; STENGERS, Isabelle. La sorcellerie capitaliste: Pratiques de désenvoûtement. Paris: La Découverte, 2005. PINHEIRO, Jamille; SZTUTMAN, Renato. Entrevista com Elizabeth Povinelli realizada em 3 de dezembro de 2018. Em edição. POVINELLI, Elizabeth. Geontologies: a Requiem to Late Liberalism. Durham: Duke University Press, 2016. POVINELLI, Elizabeth. The Ancestral Present of Oceanic Illusions: Connected and Differentiated in Late Toxic Liberalism. E-Flux #112, outubro de 2020. POVINELLI, Elizabeth. Divergent survivances. E-flux #121, outubro de 2021a. https:// www.e-flux.com/journal/121/424069/divergent-survivances/ POVINELLI, Elizabeth. Between Gaia and Ground: Four Axioms of Existence and the Ancestral Catastrophe of Late Liberalism. Durham: Duke University Press, 2021b. STENGERS, Isabelle. Pour en finir avec la tolérance – Cosmopolitiques v. 7. Paris: La Découverte, 1997.
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Registro-memória, vídeo-transe, acervo e devolutiva: uma entrevista com Vincent Carelli CLÁUDIA MESQUITA, JÚNIA TORRES, RENATA OTTO e RUBEN CAIXETA DE QUEIROZ
Nos encontramos virtualmente para conversar com Vincent Carelli sobre aspectos decisivos para a concepção e montagem de Inéditos inevitáveis numa experiência sensorial, videoinstalação que está no centro da mostra Desaparecimento e Reaparecimento dos Povos e das Imagens, homenagem aos 35 anos do Vídeo nas Aldeias (VNA) e aos 25 anos do forumdoc.bh. No trabalho, que estará instalado no Espaço Mari´Stella Tristão (Palácio das Artes), Vincent nos propõe uma imersão em seis sequências de imagens realizadas por ele junto a povos indígenas durante a primeira década do VNA. O encontro foi ocasião para conversarmos sobre as sequências da instalação e as relações que elas inscrevem, remontando aos primeiros tempos do projeto; sobre a devolutiva e a circulação das imagens dos povos indígenas; e sobre os desafios que se colocam para a sua memória, em especial para o Acervo do VNA. RUBEN: Vincent, você poderia explicar, do ponto de vista técnico, qual foi o critério de escolha das seis sequências – Corumbiara, intercâmbio Krahô-Gavião, Wajãpi, Xavante de Sangradouro, Guarani-Kaiowá, Yanomami – que compõem a videoinstalação? E também qual é o nível de edição das sequências, se você cortou muito… algumas são mais editadas, outras são quase planos-sequências. Por que você escolheu esses seis povos, o que norteou as suas escolhas? VINCENT: Foi sem elaborar muito… não tive nem tempo de parar e pensar “O que eu vou fazer?” Eu fui lembrando de algumas coisas e, claro, pegando o material já digitalizado. O processo de digitalização foi justamente de trás para frente. Então, o que tem aí são coisas feitas por mim na primeira década do VNA. O espírito, a preocupação, era sobretudo de registro. Espero que a experiência da instalação seja muito mais sensitiva do que cognitiva. É claro que ficam sempre umas perguntas... Como nos primeiros filmes que eu fiz sobre o vídeo-processo (do VNA), filmes que tinham como pano de fundo algum cerimonial, as pessoas sempre diziam: “Eu queria saber mais sobre aquele cerimonial.” E eu falava: “O filme não é sobre o cerimonial, ele é só um pano de fundo.” Mas, enfim, são todos momentos muito especiais. Aquele
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Mostra Desaparecimento e reaparecimento dos povos e das imagens
transe da Tiramantu, a índia Kanoê que havíamos contactado poucos dias antes na Gleba Corumbiara, é muito bonito pelo seu bailado, enfim, é uma proposta de imersão, de fazer sentir. Foi um pouco essa a ideia... É diferente de ver o material citado num filme, com 3 minutos e tudo cortado. Outra coisa é ter a possibilidade de imersão. Aí a edição que fiz foi mínima. No caso de Tiramantu, eu só juntei aqueles comecinhos, o primeiro contato com o velho Akuntsu, a introdução do produto que vai deixar todo mundo louco [sementes de angico], foi isso. O mesmo para as outras sequências. No material Krahô-Gavião, eu peguei uma sequência de chegada do Krohokrenhum [chefe gavião] e sua conversinha com outro chefe, para caracterizar que era um momento de intercâmbio, e algumas sequências do ritual. O material Wajãpi, por exemplo, se refere ao primeiro dia da festa... São três dias de festa, mas em vez de cortar e juntar para dar uma sequência, achei melhor mergulhar numa sucessão de acontecimentos. O nível de montagem é só esse: escolher alguns momentos e deixar correr. Deve ter inclusive imagem em que aparece minha filha segurando o som, sei lá... Nem passei na peneira. Enfim, o que foi possível fazer no meio do fechamento de Adeus, capitão [próximo filme de Vincent, a partir de seus registros do povo Gavião, a compor uma trilogia com Corumbiara e Martírio], e nesse momento maluco, em que tudo é virtual, eu só fico aqui despachando links, sinopses, fotos. Não sei se eu respondi… não tem nenhuma grande intenção, mas eu acho que estão reunidos ali momentos muito especiais. Essa festa Xavante, que é fora de qualquer outra festa Xavante, 1995 é a última vez que esse ritual foi realizado. E depois a gente fez um filme a respeito [Mulheres xavante sem nome], nele se entende por que a festa não é mais realizada. Mas este é um registro histórico, e inclusive está nesse acervo por conta da herança do Padre Adalberto. Ele filmou esse ritual que só aconteceu em 1967, e depois o que eu filmei em 1995. Fora da aldeia, quando as onças se pintam, ali tem uma cena que eu não filmei, sabia que era proibido (esse é o segredo dos homens). Mas o padre filmou um transe. Era Super-8 na época, e os indígenas não se deram conta da filmagem. O Pacu-Açu também foi uma experiência... um momento raro, no embalo dos Wajãpi com a feitura de Segredos da mata (1996), que foi conduzido pelo Seremeté, um wajãpi maduro e animado, que se animou a fazer o Pacu-Açu. RUBEN: O conjunto dos seis blocos é realmente maravilhoso, acho que faz muito sentido se a gente pensar na instalação: é uma experiência sensorial impressionante. Você pensou nessa imersão, já que quase não fez montagem… manteve quase que em estado bruto o material que foi filmado. VINCENT: Sim, sim. CLÁUDIA: Desdobrando a questão inicial, gostaria de perguntar como foi para você rever essas imagens hoje, como foi se ver filmando. O material tem muitos aspectos incríveis, um deles é a sua habilidade, na falta de melhor termo, como cinegrafista. Você nos lança no fluxo e na duração daqueles rituais. Mesmo que não conheça a
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língua ou não conheça o passo-a-passo de cada ritual, você se posiciona extremamente bem, tem uma entrega e habilidade enormes ao filmar — o que deve ter a ver com o repertório anterior, vivências e filmagens de rituais. Em todo caso, o que era ou é importante para você como cinegrafista que registra um ritual? O que você buscava assegurar, enfim, o que considerava imprescindível ao filmar? VINCENT: O caso dos Wajãpi é específico, eu tirei do material longos depoimentos na língua, pensando no ritmo e no espírito da instalação, já que não teria nem tradução nem legendagem. Mas é um caso específico, porque aí tinha uma interlocução da Dominique [Gallois] na língua, que fazia com que, no desenrolar do ritual, eles fossem comentando e explicando, contando as histórias, o mito — enfim, o registro vinha com todo um conteúdo. Já com os Xavante, Krahô, Yanomami, muito menos com os isolados de Corumbiara, eu não tinha esse acesso, e me acostumei realmente a filmar às cegas... Não, às surdas! Às cegas, não! Percebendo, enfim, pelo enredo, pela situação... Hoje eu tenho sofrido muito, porque eu sei que não tenho mais a agilidade e a energia de continuar filmando como eu filmava, e isso me custa muito. Hoje em dia eu sou personagem, não fico controlando o que as pessoas estão filmando, mas aí quando vejo as imagens... eu fico assim, meio desorientado. Mas enfim… são povos que eu filmei várias vezes, por exemplo, os Krahô, desde o primeiro intercâmbio (com os Gavião), que vai estar em Adeus, capitão. Então, são coreografias que eu conheço, eu sei onde vão dar, onde eu tenho que me posicionar para fazer uma boa cobertura. E também tem essa coisa do “cinema direto”, essa emoção... Aquela filmagem da Tiramantu [Isolados de Corumbiara], dois dias antes os índios isolados Akuntsu estavam correndo da gente. Dois dias depois estavam ali... Sabe-se lá o que ia acontecer, se a gente era bem-vindo ou não... Enfim, tem todo um clima. Eu sempre tive essa obsessão pelo flagrante, às vezes um flagrante impossível, e pelo registro-memória. Não tô cortando para fazer um filme, não tem filme nenhum em perspectiva, tem um megaevento maravilhoso que está acontecendo agora. Eu acho que, desde que eu cheguei em 1969 em uma aldeia indígena, eu já me voltei para a fotografia, e logo da segunda vez para o gravador. Eu tinha esse sentimento de que aquelas coisas que eu tinha o privilégio de ver e que me encantavam, e me encantam ainda, eu devia anotar, fotografar, registrar de alguma maneira — com uma consciência clara de que as coisas que eu estava testemunhando ali não existiriam, ou existiriam de outra forma, dentro de algumas décadas. Então, era um pouco esse prazer, esse fascínio pelo registro mesmo. Acho que o trabalho respira isso. Desde a primeira experiência com os Nambiquara, que foi muito forte, eu fui tomado, na verdade todos nós ali presentes fomos tomados, pelo vídeo-transe alimentado pelas projeções. Que é a onda energética que circula entre quem filma e quem está sendo filmado, um pacto de prazer e cumplicidade se estabelece. O filme A festa da moça me levou a Nova York e lá vi pela primeira vez um filme do Jean Rouch, e mais tarde, quando ouvi ele falar de cine-transe, eu sabia do que ele falava. RENATA: Sim, é muito impressionante o tipo de gravação que você faz, você fica em cima do evento. No material Corumbiara dá para ver isso, que você estava lá com
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eles quando tudo começou, você já estava gravando, depois é que chegam as outras pessoas, a linguista, por exemplo. A gente vê depois o Alemão [indigenista] sentado no pé da palmeira, mais distante, mas você já estava lá gravando. E também no material Yanomami, que é muito impressionante. Eu imagino que deve ter sido muito complicado filmar naquelas condições. Que eu saiba você não voltou aos Yanomami, e essa sequência é, de certa forma, algo fora da curva, que também não virou filme... VINCENT: Não. RENATA: Então, essa é uma questão: por que os Yanomami não viraram filme? E se você puder falar um pouco das condições: era inverno, chuvoso, floresta fechada. Como era essa questão de energia, bateria, como era filmar naquele mundo yanomami? VINCENT: Então, eu dei uma oficina lá — inclusive o Raimundo Yanomami, que está fazendo a projeção [na primeira cena do material yanomami], depois virou um xamãzão, deixou a fotografia. Eu estava ali, na verdade, porque ia fazer um vídeo institucional — o que também é bom que se diga, o Vídeo nas Aldeias só existiu porque tinha uma cooperação internacional que garantia um troquinho para andar para lá, para cá, pegando carona, prestando serviços... tudo feito na oportunidade e no possível. Então, eu ia fazer um vídeo institucional sobre um projeto de saúde e estava ali filmando a equipe vacinando os Yanomami. Aí pensei: “Já que eu tô aqui, vou andar na mata com eles”, e tudo aconteceu na surpresa. Não sei se vocês repararam que, naquela loucura da ameaça de guerra, as velhas têm trânsito no campo de batalha. Elas podem cruzar a fronteira e vir negociar. Então, elas estavam excitadíssimas, coordenando. E tem uma hora que uma velha está falando e de repente ela olha para mim e me dá um esporro, eu tiro a câmera ou desligo, não sei... Mas não foi nada difícil, foi tranquilíssimo. A gente tinha ido de avião — no Alalaú só se chega de avião — e houve essa vacinação. Eles se deslocaram para fazer a vacinação, o Raimundo projetou umas imagens que ele tinha filmado na oficina na sua aldeia do Demini... Isso é uma chave para filmagem, quer dizer, você fica ali e já é parte do negócio. Então, foi absolutamente tranquilo, e eu estava ali do lado certo, na guerra… eles estavam em guerra com outra aldeia e estavam preocupados com um possível revide. As condições técnicas eram precaríssimas. Eu tinha cintos de bateria de 8 kg da câmera Betacam. E aí os caras, no meio de trovoadas, tinham levado o case da Beta, e eu me vi no meio da chuva — cortei quatro folhas de banana brava e botei de guarda-chuva e saí correndo feito um maluco, por isso que tudo que eu filmava embaçava, estava com o corpo muito quente. E olha que eu estava na fase áurea, com uma Betacam, cinto de bateria, o que é isso! E nessa viagem eu fui na aldeia Yanomami do Tootobi, que foi a primeira escala de vacinação. Tinham acabado de chegar parte dos sobreviventes de Haximu [massacre dos garimpeiros contra uma aldeia yanomami, ocorrido em 1991] e eu tive a oportunidade de fazer alguns depoimentos na língua, uma mulher e um homem falando do massacre. Então, a gente vai colhendo registros, isso vira uma obsessão. E nunca fiz filme com
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os Yanomami. Eu tenho um material que tenho curiosidade de retomar... Uma vez eu estava há uns meses em Nova York, com uma bolsa. E o Davi Kopenawa apareceu por lá. Ele fez uma fala na ONU e eu fiquei três dias de cicerone do Davi em Nova York, peguei uma câmera Hi-8 emprestada e gravei. Ele não entrava no metrô, que era o espaço dos demônios subterrâneos, fomos em vários lugares, no Empire State… ele fez um discurso, uma contação de histórias, dizendo que todos aqueles prédios eram coisas tiradas do fundo da terra e que o negócio iria desmoronar. Talvez um dia eu faça um filme… JÚNIA: Eu queria fazer um comentário, a partir do contato com o material maravilhoso selecionado para a instalação. Estou muito impactada e, na verdade, muito emocionada. Esse recorte que você propôs nos permite uma relação de proximidade radical com os povos indígenas filmados – tanto pela forma como você filmou, quanto pela maneira como nos entregou o material, não montado (acho que não faz falta nenhuma, pelo contrário, o material está mais próximo do registro, da documentação). Isso nos leva a entrar numa relação mais do que sensível, talvez até de transe, junto com esse material. Você como autor está recuado do ponto de vista da montagem e nos permite uma aproximação, um compartilhamento da experiência sensível mais próxima da que você teve. Eu me emociono com esse material pela competência cinematográfica dele, que vem na verdade de sua entrega — a Claudinha usou esse termo, que é importante para pensar toda a sua trajetória. Vendo esse material, isso bateu de um jeito diferente… Nos filmes montados, tem todo o seu interesse político, didático, de nos fazer aliados desses povos, mas aqui sobressaem essa emoção, essa entrega... uma possibilidade de proximidade e de entendimento que ultrapassam a capacidade cognitiva. Mas é isso, você já estava acompanhando tantos povos, você sabia se posicionar, posicionar a câmera e nos conduzir por dentro daqueles rituais, daquela floresta. Então, a ideia de imersão para esse material é muito apropriada. E esse recorte parece muito pensado, parece que você trabalhou no acervo e separou o crème de la crème... VINCENT: Depois que fiz as seis sequências, pensei: “Bom, mas tem aquele outro, e aquele outro... Vamos fazer 10, vamos fazer 15” [risos]. JÚNIA: É isso que eu imaginei... Para a gente ter uma noção da dimensão do acervo VNA, não sei se você tem isso mapeado, são quantos povos, quantas horas, quanto disso já está digitalizado, e o que você pensa em fazer daqui para frente? VINCENT: Nós fizemos 1.700, quase 1.800 horas de digitalização só na primeira rodada. Na verdade, a preservação de acervo não se faz assim. Primeiro, tem uma conferência do que está bem digitalizado, o que não está. Tem uma série de procedimentos a fazer. Mas enfim... Tem quase 1.800 horas de vídeo gravado, basicamente trabalho meu, e tem mais 2 mil horas de material produzido durante as oficinas, que resultaram em filme — quase todas as oficinas resultaram em filme. Outro dia o Zezinho Yube me disse, na nossa assembleia virtual, que ele tinha pensado a
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situação do acervo, que tinha que ficar aqui à disposição deles, digitalizado, e toda vez que eles precisassem de alguma coisa, ligavam para o VNA. Não deu outra, dez dias depois me liga o Zezinho, falando: “Meu pai está precisando de todo o material que a gente filmou do Kene.” Eu respondi: “Zé, não está digitalizado. Eu estou mandando 300 giga de material que foi digitalizado para fazer o filme [As voltas do Kene], isso está nos HDs.” E aí eu fui achar o pacote, são 40 horas de Mini DV. Falei: “Zé, tenho uma péssima notícia para você, tá em HDV.” O Wallace passou um dia aqui, para digitalizar uma fita. Porque a HDV é o último passo entre o analógico e o digital, e é o mais frágil. “Zé, são dois meses de trabalho para digitalizar esse material aqui.” Além disso, tem muitas fotos ainda, acho que digitalizaram 12 mil fotos. A gente incorporou dois arquivos importantes: o arquivo do Frei José, que é Xikrin-Gavião, e o arquivo Xavante do Padre Salesiano Adalberto Heide, parte em Super-8 e em parte já digitalizado. Tem coisas históricas, documentos da época da ditadura inacreditáveis: uma dança em roda dos Xavante em torno de uma bandeira brasileira hasteada, por exemplo. Enfim, a gente vai dando passinhos. Aprovamos 60 mil reais, no Funcultura de Pernambuco, para trazer a Patrícia, uma profissional de catalogação de acervo, para instituir um procedimento de catalogação. Para a gente juntar analógico com digital num sistema de busca tem que renomear tudo, tem que ter um estudo para não fazer besteira. Investir no que já foi digitalizado para conseguir acessar tantas horas. Eu estava até propondo aqui, quando sair a grana, pegar todo o material Gavião, que atravessa desde o Super-8 até o digital, para arquivar, indexar, todos esses 30 anos de material... O Kamikiã Kisêdjê trouxe um acervo de 500 horas, tudo que ele filmou na vida: reuniões e não sei o quê... Pode ter interesse para eles um dia. Mas é uma quantidade colossal de material. Eu estou fazendo um crowdfunding para digitalizar o material para devolver aos índios, vamos ver quanto a gente alcança, e vamos avançando. A última ideia que me ocorreu, diante desse impasse: “Se pudéssemos fazer uma aliança com uma organização indígena canadense — que é um país que, depois de toda a barbárie, se dispõe a ser um pouquinho mais civilizado e tem centros de restauro de arquivo… A gente poderia formar uma associação dos índios que têm material no VNA, que eles sejam um corpo jurídico decisório do que, afinal de contas, lhes pertence.” Mas é tudo tão burocrático... não sei, tô meio perdido. No Brasil não dá para contar com ninguém dessas corporações, com financiamentos. Triste Brasil, que não reservou nenhum espaço institucional de autonomia para os índios, um espaço financiado pelo Estado! Mas as coisas acontecem por outras vias, vai chegar o dia, eu espero… Digitalizar já seria um grande feito, se não nas melhores condições, pelo menos duplicado… Aqui coexistem os HDs originais e backups. Se dá um curto-circuito no estabilizador: “tchau, baby”. Não sei, nesse momento do Brasil é meio difícil pensar em qualquer coisa. Primeiro é “Fora Bolsonaro”, depois nós vemos o que fazer… RUBEN: Essa história do acervo é muito importante… o Museu Nacional pegou fogo, a Cinemateca pegou fogo. Temos exemplos muito presentes da falta de cuidado do
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Estado com sua própria memória. Quando a gente fala de fotografia e vídeo, falamos de um tipo de acervo que os índios, tradicionalmente, antes dos ocidentais, nunca tiveram: a memória deles passa por outros registros diferentes da imagem técnica. Então o acervo gigantesco do VNA é muito importante — imagina que daqui a 20, 30 anos, uma nova geração de cineastas e antropólogos indígenas queira ter acesso a essas imagens. Mas o que eu queria dizer é até outra coisa: o material que você nos apresenta nessas seis sequências não foi montado para ser filme... você filmou para memória, para guardar alguma coisa. E agora a gente está trazendo isso para dentro de uma instalação. Nesse conjunto de seis sequências, há pelo menos três temas caríssimos para a história do documentário etnográfico: o tema do transe, o tema da bebida alcóolica (quando você filma pessoas que estão em rituais, embriagadas, ou sob o efeito de alguma substância de alteração), e o tema da guerra (no caso Yanomami), uma guerra muito sutil, que acaba não acontecendo. São temas muito delicados de filmar e devolver para um público leigo, que não conhece esses povos. Quando se edita um filme como Corumbiara ou Martírio, você pensa muito bem no que dizer, no que não dizer, o que mostrar, o que não mostrar: a montagem é para isso. E aí eu fico pensando na instalação, já que as pessoas vão receber um material bruto, pouco controlado. Esse material é riquíssimo, sobretudo de dois pontos de vista: da experiência sensorial, mas também do sentido etnográfico. Penso que essas sequências, principalmente três delas, cabem muito bem na instalação, na proposta de imersão. Por outro lado, a compreensão que a gente tem do mundo indígena é mínima, a barreira é muito grande. E a possibilidade de a gente oferecer para o espectador um estereótipo dessas sociedades, quando não se tem um controle muito grande sobre a montagem, é real. VINCENT: É, eu concordo plenamente com você, sempre fui contra colocar essas imagens na internet. Essa instalação é para cinéfilos, para discutir acervo, é para um público forumdoc. Continuo resistindo à pressão para colocar esse material on-line, acho que não é o caso, pelas razões que você enumerou. A proposta é dialogar com o público que está refletindo sobre cinema, acervo, discutir inclusive o que filmar, o que não filmar. Quando fui aos Xikrin, me despedir do meu pai indígena, que estava morrendo, fiz um só plano do avião chegando e desembarcando, e o caixão passando rumo à aldeia. Eu falei: “ok, basta”. Deixei a equipe no carro e fui para lá, no choro. Era uma cena inacreditável em torno do corpo. Me puxaram, chorei com eles, pegavam no corpo, mulheres entrando em transe, se machucavam, era de uma violência... Eu olhava para aquilo, pensando: “Eu não filmaria uma cena dessas, nem tanto pela merda que poderia ser a recepção dos brancos, mas porque acho que eles não iam querer reviver esse momento; portanto, essas cenas não deveriam estar registradas, mas simplesmente vividas.” RUBEN: Sim. São sequências ao mesmo tempo sensoriais e etnográficas, com a profundidade que isso tem. Quando você tem um filme muito montado, perde essa dimensão do momento vivido, da experiência. A duração dos planos é muito importante para o espectador mergulhar, ainda que de forma indireta, naquela realidade, ver,
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sentir, ouvir… A Renata comentou: “Os índios, mesmo aqueles que não entenderiam a língua, iriam adorar ver essas sequências na íntegra.” Já os não-indígenas… eu teria muita precaução de mostrar essas imagens sem controle para as pessoas que não têm o mínimo de informação. Vincent, sobre a devolução, fico imaginando: no caso dos isolados de Corumbiara, como devolver essas imagens para essas pessoas que estão desaparecendo? A devolutiva das imagens para os povos guarda também essa sutileza… não é devolver simplesmente, chegar e dizer: “Está aqui!” VINCENT: Depois de um ano ou dois do lançamento de Corumbiara, o Profissão: Repórter quis fazer um programa comigo lá em Rondônia e houve um momento de devolução muito interessante. Quando cheguei, lá estavam o fazendeiro e o filho dele de Campinas: “Ah, você é que fez a merda desse filme, por isso estamos com a fazenda embargada aqui.” Só faltou o cara me bater. Mas nós mostramos as imagens do contato para a Tiramantu Kanoê, e o filho dela já era um menino de nove anos. A Tiramantu estava fazendo alguma coisa, com aquele jeito dela que faz que não está vendo... Mas esse menino, o olhar dele descobrindo as imagens do primeiro contato com a mãe... Ele ficou alucinado! E eu falava para o cinegrafista: “Foca no menino”, porque aquilo estava sendo uma experiência! Mas nada: ele fez um close de poucos segundos. É uma situação incrível, esse menino. Os Kanoê não quiseram nem aprender português, fizeram contato, mas se fecharam naquela redoma. Agora, esse menino deve ser um rapaz. É o futuro de um povo que não tem futuro. É uma situação de dar nó na cabeça da gente. Então, tenho curiosidade de conhecer esse rapaz. Depois de ter dado sequência nessa filmagem, nunca tive dinheiro para sair correndo, ir para Rondônia. Quando a velha Ururu morreu, a Tiramantu teve esse eterno conflito: dois povos se dominando, se estranhando. A Tiramantu fez todos os serviços fúnebres para a velha, quase um gesto de reconciliação pós-morte. Enfim, essas histórias ficam com a gente. Mas cada devolução é sim uma história, cada devolução tem seu momento. Também tem que chegar o momento da demanda, que pode ser uma coisa banal, ou pode ser um daqueles momentos em que há um furacão, um processo de fusão, resistência, enfim. Lamento que Adeus, capitão vai ser lançado em um momento ruim, um momento tão anti-indígena. Focando no personagem do Krohokrenhum, o chefe gavião, que é um guerreiro no mato bravo que vira chefe em uma megaempresa, passando por todas as contradições do mundo. O tipo de coisa que você não está para julgar, mas está para expor em sua complexidade. Sim, pode ser mal interpretado. Mas o que vale para mim é que para eles vai ser uma experiência incrível. Tem uns que já me ligaram aqui, que eram brigados com o Krohokrenhum. E ainda assim concordaram: “o Krohokrenhum é muito importante pra gente”. RUBEN: Eu sei que você vai concordar comigo, porque acho que o VNA sempre teve isso como horizonte, como missão: qual imagem dos índios passar para os brancos, para tentar desconstruir uma imagem dos brancos sobre os índios? Eu acho que é muito cruel essa história de mostrar o mundo dos índios para os brancos, porque o preconceito é tão grande que se você mostra o índio de roupa a tendência é: “Ah,
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isso não é mais índio”; se você mostra índio pelado: “Ah, ainda vive no tempo da pedra.” Se você mostra uma guerra: “Ah, esses índios são selvagens.” Se você mostra um ritual deles em transe: “Ah, esses índios são bárbaros.” VINCENT: Rubinho, péra lá! Essas pessoas provavelmente não vão nem assistir filme de índio, não vão assistir a instalação. Martírio foi legal porque os índios adoraram, porque bate com narrativas históricas deles, mas também porque expõe o nosso lado perverso. Mas eu fiz Martírio sobretudo pela militância. Hoje em dia tem uma bolha de jovens interessados pelos índios, tem jovens cineastas em todos os lugares. Da parte da juventude, de uma certa juventude, talvez dessa bolha burguesa nossa, há um novo olhar sobre a questão dos índios, um novo interesse. E eu acho que, nesse sentido, para esse público, é bom desmistificar. Estou absolutamente conformado e satisfeito com isso, não serão vistos por muita gente, mas, para aqueles que tiverem a paciência de ver, vai ser importante. Eu fiquei muito feliz, uma vez, numa festa do forum.doc, um grupo de jovens veio falar comigo: “Puxa, você traz uma realidade que a gente não teria acesso se não fossem os seus filmes.” Eu fiquei emocionado. É para esses jovens que a gente está fazendo, ou que a gente pode apostar alguma coisa. É um pouco a proposta da trilogia [Corumbiara, Martírio, Adeus, capitão]: o que foi feito de nossos sonhos de jovens indigenistas e o que a história nos ensinou? Isso é maravilhoso: estar aqui para reunir os elementos que contribuíram para a gente chegar no que chegou; quantos descaminhos, quantos acertos, quanta entrega... Então, não dá, desde a chegada de Cabral na praia que tem esse negócio de que “os índios são isso, são aquilo”. Esses chavões são provavelmente do senso comum, de quem nunca vai sair dessa, a não ser que o país passe por um processo educativo mais profundo. JÚNIA: Eu penso que a produção e circulação dessas imagens é importante e didática para a relação dos não indígenas com os indígenas. Eu acho que a mediação do cinema — e do VNA, particularmente — tem sido muito importante: as imagens são um elemento decisivo na relação possível da sociedade indígena com a não-indígena no Brasil. Acho que é fundamental criar essas imagens, refletir sobre elas, dar a ver essas imagens. É isso: a gente precisa ter uma conexão com os indígenas. E eu acho que o VNA fez e faz um trabalho gigante e fundamental, não só para os nossos pequenos grupos, mas de forma mais ampliada, com os projetos de escola, de televisão... E, nesse sentido, volto à questão da instalação. Concordo que não sejam exibidas todas as sequências on-line, mas que façamos uma reflexão sobre quais seriam possíveis. CLÁUDIA: Concordo. Importante estrategicamente, inclusive, para dar visibilidade ao Acervo do VNA. RUBEN: Eu discordo de vocês duas. A primeira sequência que eu vi foi a dos Yanomami. Pensei: “essa eu jamais passaria on-line”. Tem toda a história da relação que os Yanomami têm com as imagens, com a guerra… A terceira que vi, foi a dos isolados
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de Corumbiara. Foi imediato, eu nem pensei duas vezes: “Não passaria esse filme num espaço on-line para um público que eu não sei quem é, por respeito a uma série de questões.” Acho que o Vincent foi ousado demais em filmar daquele jeito. Ainda bem que você filmou, Vincent. Mas é muito difícil se colocar naquele lugar, com uma câmera ligada, e continuar filmando em continuidade. A questão é como mostrar isso amplamente, sem nenhum filtro que garanta o sentido que o público vai apreender. Eu ouço com muita frequência esse tipo de pergunta, que me irrita e nem respondo mais: “Que é isso que os índios estão cheirando, estão fumando?” Umas coisas assim, que são muito difíceis de controlar só exibindo imagens sem comentário, sem o controle mínimo sobre o sentido que o espectador vai construir. Claro que a imagem tem esse poder da polissemia; nós não vamos controlar tudo, mas alguma coisa a gente quer que o público aprenda com aquelas imagens, algum compromisso ético a gente tem. Claro que essas imagens são do Vincent e ele é que vai decidir. Eu acho que daria para passar tranquilamente as sequências Xavante, Guarani-Kaiowá, Krahô-Gavião, que não têm essas relações delicadas com a bebida, a guerra, o transe. Os outros têm dimensões éticas complicadas. No caso dos Yanomami e dos Kanoê, isso é mais complicado ainda. Os Yanomami não têm controle sobre essas imagens. É uma relação mais distanciada com o VNA. VINCENT: Sim, podemos ficar com o material Xavante, Krahô e Kaiowá [para exibição on-line]. O material no Panambi é maravilhoso. Aquele transe final… e eles satisfeitos. Quando eles terminaram, disseram: é o Kaiowá legítimo! Mas eu penso todo dia nisso: na questão do arquivo indígena, pulverizado, múltiplo. Em fazer essa costura, reunir tudo isso, articular com os índios, é todo um trabalho que teria que ser feito e faria sentido. Tem um acervo por aí esparramado e agora, a partir de tantos jovens cineastas produzindo, teria que pensar numa coisa maior do que só o acervo VNA, que, claro, é um ponto de partida. JÚNIA: Já te ouvi falando sobre a importância da devolução dos arquivos para os povos indígenas, inclusive imagens mais antigas. Seria interessante aprofundar a sua reflexão sobre a questão da devolução. Por que devolver as imagens para os índios? VINCENT: Porque há uma demanda para isso. Essas devoluções estão sendo feitas. A dos Enawenê, por exemplo, eu estava ainda em São Paulo, quando eles foram lá para outra coisa, baixaram no escritório e falaram: “Queremos as imagens do kateokum, que é aquela festa da mulherada.” Aí eu falei: “Putz, eu não tenho a menor ideia de onde está essa fita.” Os caras entraram no acervo – eu achei que eles eram analfabetos – e apareceram meia-hora depois com três fitas. E eu falei: “Porra, vocês são foda!” Enfim, tem alguns casos que eles nem sabem... Os Tapirapé fizeram um grande cerimonial, bem rico – até nem fui, foi o Paixão filmar, e ele tem aquele estilo de cinegrafista de telejornal, mas aprendeu a fazer planos-sequência. A única coisa que nós filmamos: cinco dias de um grande cerimonial Tapirapé, nem eles lembram que tem esse material por aí, há situações desse tipo.
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JÚNIA: E essa ideia também de ativação, como a gente vê em A festa da moça: a retomada de rituais que não estavam mais sendo feitos. Agora tenho notícia de uma retomada de um ritual Bororo fúnebre: os Bororo estão reivindicando a retomada de seu ritual fúnebre, a partir de imagens que lhes foram devolvidas. VINCENT: Nós fizemos. Quando estávamos fazendo o Programa de Índio de Cuiabá, os Bororo eram o tema daquela edição. E eu já sabia, descolamos um couro de onça — e provocou, porque o couro de onça é um elemento fundamental nesse ritual fúnebre, e imediatamente eles abriram um começo de cerimonial. Fizemos uma bela filmagem lá. CLÁUDIA: Vincent, pensando ainda sobre as sequências da instalação, elas remontam, como você diz, à primeira década do projeto. Eu queria te pedir para situar a relação do VNA com esses povos filmados naquele momento. Que relações essas sequências inscrevem? Em algumas delas, a gente vê, por exemplo, indígenas filmando, entre os Yanomami, os Xavante, os Krahô. Mas se trata de um momento anterior às oficinas de formação de realizadores indígenas. Qual era a relação desses povos com as imagens? Sabemos que alguns deles, como os Wajãpi, já tinham essa reflexão sobre a imagem provocada pelo VNA. VINCENT: Na verdade, todos eles, menos os isolados de Corumbiara, já que se tratava de um primeiro contato... mesmo assim eles foram assistindo a seu próprio contato. Eles assistiram os rituais Enawenê. Quando visitavam o acampamento, sempre tinha um cineminha rolando para eles. Eu não tenho grandes vivências com os Wajãpi, mas herdei essa relação da Dominique, que tinha uma relação profunda, falava a língua, era uma entrada fantástica. Os Krahô, a relação é anterior, trabalhei como indigenista, fizemos uma revolução contra a fome lá. Fome Zero, a gente fez na década de 1970, com os Krahô. CLÁUDIA: A relação dos Krahô com os Gavião já tinha gerado filme [Eu já fui seu irmão]... VINCENT: Sim. Adeus, capitão é também a história desse relacionamento. E em todos os lugares, se eu não tinha ainda as oficinas mais sistemáticas, a gente distribuía câmeras. Então, no material Krahô-Gavião, tem um índio Krikati, tem um índio Gavião filmando; nos Yanomami tinha o Raimundo, para quem eu já tinha dado oficina... Já este grupo yanomami, que é bem isolado, o mais distante da sede do projeto, eles estavam vendo imagens pela primeira vez, mas tiveram um dia de sessão de cinema introdutório, que outros povos também tiveram. Enfim, em todos os povos houve essa relação de ver cinema, de ver sua imagem, de ter câmera, de estar fazendo, mesmo que a gente não participasse. Eu era contra — uma bobagem minha — ficar ensinando. Depois eu mudei um pouco de ideia quanto às oficinas; quando o impacto desse material começou a surgir, deu outra dimensão às coisas. Sem desmerecer ou desprestigiar o lado interno da relação com os índios, o material jogava a questão
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para outros horizontes. Então, eu sempre fui o cara que filma. “Olha o filmador aí.” O mais natural é eu estar filmando. RENATA: E tem uns que tomaram para si totalmente a função de filmar: o Divino [cineasta xavante], que faz os filmes e que, inclusive, no material xavante presente na instalação, foi quem te chamou para registrar. Acredito que, entre os Maxakali, essa coisa do filme foi um grande disparador dos rituais. Tem algo muito forte: os filmes disparam e mobilizam a reprodução. Então, acho que a Júnia pensava um pouco nesse sentido: de como o filme na mão deles se torna um tipo de ritual, mais um dispositivo-ritual, não sei se você concorda com isso. Mas eu queria falar, voltando para a instalação: por que você pensou nessa proposta da imersão? Você chegou a dizer que queria que fosse um looping, uma coisa repetida, que a instalação projetasse um material e que ele fosse se repetindo, no sentido de aprofundar a dimensão sensitiva da instalação. VINCENT: Foi com a Bienal de São Paulo (2016), quando nos convidaram dois meses antes para participar, que a gente começou a olhar para o arquivo. E eu tinha essa ideia de fazer um labirinto de imersão musical com imagens, mais trechos como aquele transe kaiowá, músicas de transe, mas em cabines, uma viagem pelo labirinto de imersão musical dos índios. Talvez um dia eu faça. Embora a gente não tenha captado o som... Até que o som VHS era um belo som, do repórter abelha que eu sempre fui, captando imagens-sons. Mas eu fiquei surpreso com vocês por uma coisa. Eu pensei: “Putz, o pessoal vai ficar meio decepcionado, porque é só filmagem do Vincent na instalação, todo mundo tá querendo ver filmagem dos índios e infelizmente não está digitalizado ainda.” RUBEN: Vincent, acredito que o VNA seja a instituição que mais contribuiu para modificar o modo como a nossa sociedade pensa e lida com os índios. Eu sinto Martírio como um ponto fora da curva com relação aos filmes feitos por pessoas que, primeiro, defendem outra visão dos índios, segundo, que têm um papel fundamental na militância política indigenista, a favor deles. Não há dúvida. Apesar disso tudo, a imagem dos índios na sociedade brasileira é uma coisa extremamente perniciosa, ainda hoje. E é isso que alimenta teses do tipo Marco Temporal. É isso que alimenta esse governo que está aí, dizendo que tem que converter terras indígenas em terras produtivas. Apesar do VNA, da Constituição de 1988, o Brasil é um país anti-indígena, colonialista e genocida. Várias sociedades indígenas desapareceram, continuam desaparecendo e a gente está muito longe de viver um momento tranquilo, de consolidação dos direitos indígenas. Vivemos um momento de retrocesso, de regressão. VINCENT: E o Marco Temporal foi concebido dentro do Supremo, que é a elite. Quando eles estão julgando coisas que têm histórico, eles contratam assessores; eles têm material histórico vasto, para defender uma retomada, por exemplo. Então você vê quão grave, pois não é nem questão de falta de educação, é educação perniciosa. É muito grave. O VNA só existiu por causa da cooperação internacional, que era uma
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relação de confiança, não tinha condições nesse país de alguém financiar esse tipo de projeto. Mas a cooperação internacional se burocratizou e foi super ingrata com a gente; depois de 25 anos de financiamento, de estar todo ano tendo que prometer que eu vou revolucionar o mundo, preenchendo um relatório anual glorificando todas as nossas conquistas, eu me enchi… depois que a direita entrou na Noruega, eu falei: “Não quero mais, se vocês não são capazes de avaliar de uma maneira mais global a contribuição que o VNA tem dado para esse país.” E abandonamos a cooperação. Foi recíproco, acho. A instituição já está quase fechando, a gente achou que poderia manter uma instituição com verba de fazer filme, é uma ilusão total… já não tem ninguém trabalhando aqui, só eu fazendo distribuição o dia inteiro e tentando terminar meus filmes. Então foi isso que aconteceu e não há espaço… Enfim, eu não tenho mais energia de sair por aí mendigando, como eu fiz a vida inteira. Cansei. JÚNIA: Concordo totalmente com esse diagnóstico tão realista do Rubinho sobre a visão da sociedade não indígena, branca, para com os povos indígenas. Mas acho impressionante como os próprios indígenas, com as imagens do VNA, com as imagens que eles próprios estão produzindo no campo das artes visuais, têm se apropriado e desviado dessa curva. Por outro lado, o movimento indígena é o movimento político de resistência mais importante no Brasil hoje, contra esse governo, por exemplo. E eu acho que as imagens têm tido um enorme papel na resistência e na política da autoafirmação. VINCENT: Eu acho muito bom os índios perceberem que, no fundo, a Funai é seu inimigo número um… essa questão do novo estatuto dos povos indígenas nunca avançou no Congresso Nacional, porque a tutela impediu – e quando se fala em acabar com a Funai, até os índios, uma parte deles, se sentem ameaçados. E acho que o Estatuto do Índio não avançou por causa disso, uma parte sentia: “Vamos perder o nosso pai.” E acho que o movimento indígena cresceu com a decadência do poder e da mão forte que o Estado tinha sobre eles, embora os esforços da ditadura tenham sido pontuais, investimentos massivos em agroindústria nos Xavante, que eram os caras que incomodavam mais. O movimento indígena cresceu diante do abandono do Estado, e teve ONG, teve gente da sociedade civil apoiando, o movimento cresceu no abandono do pai-patrão, que era uma coisa muito desmobilizadora politicamente: a tutela. RUBEN: Mas esse papel do Estado, da tutela, é sempre ambíguo; por um lado, realmente, os caras esfolaram os índios, mas em algumas situações, sobretudo para os índios isolados, a gente está pedindo a proteção do Estado; eles não têm com quem contar. Essa história da restrição de uso das terras dos índios isolados, que estão sendo ameaçados. Antes tinha uma restrição de dois anos, agora deram de seis meses, quer dizer, sem esses caras lá da ponta da Funai, Marcelo, Seu Jair, que defende os Piripkura, se não fossem eles, não sei o que teria sido do restante dos povos… vem desde a colonização, mas continuamos vivendo isso.
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VINCENT: E é incrível que foi na época da ditadura que se demarcaram mais áreas indígenas nesse país, porque estava na balança com a disputa por financiamento, Banco Mundial e tudo mais, pegava muito mal, para o Brasil, a questão indígena. E era um jogo, um toma lá dá cá. Mas que coisa mais contraditória, não? RUBEN: E tem outras duas coisas que também me preocupam e angustiam muito hoje: de um lado, uma coisa que nunca parou, é a ação dos missionários, esses evangélicos que têm um papel crucial na detonação dos índios; e, por incrível que pareça, outra coisa que era para ser boa e positiva, mas que também tem produzido um trator sobre os índios, são as políticas de auxílio, a introdução do dinheiro, do Bolsa Família. Os índios estão na dependência desses auxílios em muitos lugares, fugindo da terra indígena em função da alteração que esses auxílios levam para as cidades. Então é isso… um mundo paradoxal. VINCENT: Porque não é pensado com carinho; são grandes máquinas burocráticas, em todos os lugares... no Rio Negro teve um fator devastador: como o auxílio não podia acumular mais de três meses, o negócio era baixar para a cidade e receber todo mês; quando, na verdade, esse dinheiro podia ser entregue, podia acumular o quanto quisesse. Enfim, não se esmiúça política pública para públicos diferenciados, não se tem a menor consideração; então vira uma máquina arrasadora, trituradora, mexe com aspectos que os gestores públicos nem imaginam, porque não há nenhuma sutileza. JÚNIA: forum.doc fazendo 25 anos, Vincent junto com a gente, desde o primeiro até agora, sempre aparecendo com um trabalho inovador, vai ser a primeira instalação que o forum.doc vai fazer. VINCENT: É quase um casamento. JÚNIA: Estou superfeliz de você estar junto com a gente esse tempo todo e não podia ser diferente este ano, com a generosidade desse material incrível que a gente vai poder acessar e dar acesso. Agradeço demais, mais uma vez, a sua disponibilidade de estar aqui com a gente. VINCENT: Está bom, queridos, até breve.
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O cinema e as barragens1 (anotações sobre a devolução das imagens) ANDRÉ BRASIL
Anoitece na comunidade Enawenê-nawê, no Mato Grosso. Alguns poucos fachos de lanterna atravessam o breu, onde, ao fundo, a pequena tela de cinema exibe imagens do Yaõkwa, o importante cerimonial que atravessa sete meses em uma experiência complexa de cantos, trocas rituais e pesca. Diante das imagens, uma multidão de espectadores, na circunstancial comunidade de cinema que ali se forma: muitos deles, jovens e crianças, não testemunharam os eventos filmados entre 1989 e 1995. “Estes éramos nós?”, se perguntam. O curta Yaõkwa – imagem e memória (2020) é resultado de uma expedição que Vincent Carelli organizou com Rita Carelli para devolver as imagens aos Enawenê-nawê. As sequências iniciais que surgem aos espectadores na aldeia mostram os parentes anos atrás deslizando no rio em suas imponentes canoas a mirar a câmera, como a endereçar o olhar para aqueles que, tempos depois, reencontrarão suas imagens. ***
1. Agradeço a leitura, os comentários e correções de Cláudia Mesquita e Vincent Carelli, que contribuíram para tornar mais precisa a versão final do texto. Minhas pesquisas encontram no grupo Poéticas da Experiência espaço de criativa interlocução. Agradeço aos professores e alunos do grupo, assim como aos amigos da Filmes de Quintal pelos constantes aprendizados.
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Ao mencionar um post de Vincent Carelli no Facebook, por meio do qual ele devolve um conjunto de fotografias aos Xikrin, Amaranta Cesar comenta como ali se funda não apenas a memória, mas sua abertura ao olhar do outro, abertura a outro tempo, “que é justamente o que permite a atuação política das imagens em processos de resistência e sobrevivência cultural.”2 Que, de lá para cá, parte dos esforços do Vídeo nas Aldeias (VNA) venha sendo o de digitalizar seu acervo de imagens para que elas possam ser devolvidas aos lugares onde foram feitas e à comunidade daqueles que foram filmados (e que, muitas vezes, participaram das filmagens); que essa devolução possa vir acompanhada de equipamentos e oficinas de formação para que novas imagens sejam criadas pelos indígenas, tudo isso define uma espécie de cinema contínuo, um cinema-processo,3 em aberto, que se constitui pela tomada e retomada de arquivos da história, pela devolução das imagens e pela feitura de novas imagens, em uma relação com as práticas cotidianas e rituais que não é apenas de salvaguarda de um passado, mas de engajamento no presente da comunidade, em ato de elaboração de sua história. *** Em Imagem e memória, a devolução das imagens se faz no interior da cena, produzindo uma mise-en-abyme na qual nós, espectadores, assistimos outros espectadores 2. CESAR, Amaranta. Sobreviver com as imagens: cinema, resistência e retomadas. Palestra realizada no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG, em 23 de março de 2015. 3. Sobre o conceito de cinema-processo: MESQUITA, Cláudia. A família de Elizabeth Teixeira: a história reaberta. In: Catálogo do forumdoc.bh.2014. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2014. ALVARENGA, C.; BELISÁRIO, B. O cinema-processo de Vincent Carelli em Corumbiara. In: Maia, C.; Veiga, R.; Guimarães, V. Limiar e partilha: uma experiência com filmes brasileiros. Belo Horizonte: Selo PPGCOM/UFMG, 2015.
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a ver as imagens que chegam de outro tempo. Atentos, curiosos, sorridentes, inquietos, agitados, saudosos, emocionados, o que veem estes olhares espectadores que agora vemos? Se não há como saber o que singularmente cada um vê – as crianças, os jovens, os adultos, os anciãos, as mulheres –, o que se pode dizer – e é pouco, mas definidor da experiência dos espectadores – é que se trata de uma experiência cindida. Em, ao menos, dois sentidos: primeiro, justamente porque a cena do ver juntos é múltipla, marcada por olhares singulares, irredutíveis uns aos outros. Vê-se junto na separação uns dos outros; vê-se separado, em comunidade e vizinhança, uns aos outros. Ou ainda, como dirá César Guimarães, comunidades de cinema são capazes de ligar os separados “sem preencher a distância que se abre entre eles”.4 Há ainda uma segunda defasagem: afinal, o que se endereça não será o que chega. A viagem das imagens no tempo é transformação. Mudam as imagens, mudam as pessoas, mudam os lugares. Essa distância – entre uns e outros; entre o que se endereça e o que se encontra – é o espaço do espectador, ali onde se move, onde se inquieta, onde pensa, onde conversa. É assim o espaço no qual as imagens se avizinham aos olhares que, por sua vez, se avizinham ao pensamento e às palavras. A devolução das imagens move e se liga a uma experiência de sensível e silenciosa curiosidade, que logo se desdobra em trocas e conversas. Ver com os outros, dirá Marie-José Mondzain, eis a questão: “é o que se tece invisivelmente entre os corpos que veem e as imagens vistas que constitui a trama de um sentido partilhado”.5 ***
4. GUIMARÃES, César. O que é uma comunidade de cinema? Revista Eco Pós, Rio de Janeiro, v. 18, n.1, p. 48, 2015. 5. MONDZAIN, Marie-José. A violenta história das imagens. In: _________. A imagem pode matar? Lisboa: Vega, 2009, p. 41.
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O cinema pode ser definido, afinal, como uma máquina de devolver imagens, de trazê-las novamente à experiência partilhada: elas podem ser devolvidas a lugares outros, distantes, no tempo e na geografia, daqueles onde foram feitas; elas podem regressar aos lugares de onde surgiram. No primeiro caso, são estrangeiras em terra alheia. No segundo caso, não deixam de ser um pouco estrangeiras, como aqueles que saíram de sua terra natal e agora voltam, transformados, a um lugar, ele também, mudado. Chegam trazendo notícias de outrora e se juntam, mesmo que momentaneamente, àqueles que constroem o presente de um lugar. Elas podem ser também espíritos em sonho, a sussurrar cantos ao pé do ouvido dos jovens; a mostrar como faziam suas barragens e armadilhas de pesca, a divertir as crianças com suas brincadeiras. São, no entanto, imagens: ou seja, projeções em uma tela diante das quais se estabelece o jogo de identificação e distância constituidor das pessoas e das comunidades (nos identificamos na distância, nos distanciamos na identificação). *** Antes da devolução das imagens, há filmagem, inscrição, testemunho. Ao ver os filmes e parte do material bruto do VNA presente na instalação Inéditos inevitáveis numa experiência sensorial, impressiona antes de tudo que a câmera (ou as câmeras) tenha(m) estado ali, em tantos lugares, entre tantos povos, nos momentos os mais cotidianos, em situações rituais, acompanhando excursões pela mata ou percursos de rio até a cidade, em meio aos encontros esperados e inesperados, participando das experiências de mobilização política. Notável também como, não raro, a câmera de Vincent Carelli divide a cena da filmagem com outras câmeras, muitas vezes portadas por indígenas (o que mostra um interesse de princípio em possibilitar que façam as próprias imagens). Tudo isso confere importância ímpar a este acervo (importância que não vem acompanhada do devido reconhecimento, que garantisse os recursos necessários para sua manutenção): trata-se de um testemunho, em imagens, da história recente e da realidade de mais de quarenta povos indígenas no Brasil. Se, muitas vezes, a fotografia e o cinema vieram testemunhar uma desaparição (a documentando e, em alguns casos, ajudando a produzi-la), aqui, se trata de testemunhos de vida, de existência e de re-existência. Ainda que surjam de “povos”, “comunidades”, referindo-se a eles e a seus modos de vida, o que os arquivos nos devolvem são pessoas que vivem suas vidas, que lidam coletivamente com uma história que não era a delas e que passa a sê-lo, como os peixes de um rio que veem suas águas serem gradativa ou subitamente poluídas. As pessoas que aparecem nas imagens lidam com duas histórias, com as quais inventam seu cotidiano: a história que legou seus antepassados e que eles vivem no presente; a história que se abateu sobre eles a partir do “contato”, história tantas vezes catastrófica, traumática, que não para de se atualizar e diante da qual respondem inventando modos de habitar a destruição. ***
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A riqueza do acervo do VNA talvez guarde relação com o modo como se filma e que, a despeito de suas variações (a depender de quem porta a câmera), compartilha a opção pelo direto: uma câmera-escuta, participante, que se recusa a ocultar a situação da filmagem; câmera que pouco intervém, mas que afeta e se afeta pelas relações nas quais está enredada. Ela filma relações, participa de relações e instaura relações. Que sejam rituais, afetivas ou conflituosas, que surjam de situações de guerra ou de festa, que se estabeleçam entre humanos, animais ou espíritos, que envolvam acolhimento ou risco, o que importa é que a imagem nasça dessas relações, se deixe atravessar por elas, mostrando-se parte do que filma. Importa que as pessoas filmadas não sejam separadas daquilo que as liga ao coletivo, no qual está posicionado e implicado também, de alguma maneira, aquele que filma. Não raro, a câmera precisa sustentar sua distância, sua discreta observação, garantir a duração do plano ao filmar os corpos, a luz ou a penumbra em que estão mergulhados. É preciso guardar o ritual, o canto e seu entorno para que retornem aos parentes tempos depois, como se esse retorno já estivesse, de algum modo, inscrito nestes planos. Logo, a câmera será novamente convocada para a cena, seja por meio das palavras, dos olhares, de enfáticas ou sutis interpelações; seja por um humano, seja por um espírito. Nesse vasto acervo, são variáveis também os modos de enunciação: as pessoas filmadas conversam entre si, sem tradução, e a câmera filma “às surdas”; conversam com aqueles que filmam (estamos longe, contudo, do protocolo da “entrevista”); há pequenas assembleias, muitas vezes provocadas pela câmera; há os cantos, há o diálogo com os bichos na mata. Se com o direto, nos diz Jean-Louis Comolli, o cinema “conquista a palavra”, aqui, a palavra leva o cinema para estes mundos outros, constituídos por relações com os espíritos, com os animais, com a floresta. Como diz ainda Comolli, o cinema direto não é um outro modo de filmar a mesma coisa, mas abre o cinema a outro horizonte, fazendo-o mudar de objeto: ele possibilita novas formas de ligar-se ao vivido, que “dialogam e se produzem por e nessa palavra”.6 *** Ao trazer para a cena fílmica as situações de visionagem das imagens – sejam elas para enormes plateias reunidas no pátio da aldeia; sejam elas em pequenos grupos no interior de uma maloca; seja individualmente, por alguém com um laptop em uma rede –, Imagem e memória mostra as idas e vindas das imagens, o modo como a comunidade de espectadores as elabora e se elabora com elas. Em uma das sequências do filme, vemos a exibição da dança dos espíritos para a multidão no pátio. A montagem nos leva então ao plano em que o jovem Xohikwa assiste o mesmo material no computador. “Esse canto eu não conhecia”, ele diz, e acompanha as palavras como a memorizá-las. “Durante as projeções, os velhos 6. COMOLLI, Jean-Louis. O desvio pelo direto. In: Catálogo do forum.doc (Festival do Filme Documentário e Etnográfico) 2010. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2010, p. 303.
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querem ver tudinho, quando eu corto ou avanço para outra cena, eles ficam bravos.” A breve passagem, que traz para o interior do filme a preparação das exibições coletivas, é sugestiva: Xohikwa escuta os mais velhos, sem deixar de jocosamente marcar seu olhar e seu lugar, em uma diferença geracional. “Haja paciência para ver tudo”, brinca. Este é um acervo coletivo – salvaguarda um repertório ritual importante para que possa ser visto, manejado e retomado no presente da comunidade –, mas também pessoal, funcionando como espécie de arquivo de família. Como naquela sequência em que, rodeada de outras mulheres, Watolio Enawenero expressa sua saudade, desejosa em ver novamente as imagens do pai, do tio, da tia e da cunhada Yololo. *** De um filme a outro, de um a outro material (feitos em momentos distantes no tempo), as pessoas voltam. Reaparecem em idades diferentes, em situações distintas, o que faz com que, lacunar e descontínuo, o acervo guarde fios de continuidade, recorrências, reaparições. Nesses trinta e cinco anos de atividade, o acervo do VNA mostra um cinema não só do encontro, mas do reencontro. Na sequência dos três filmes – Yãkwá – o banquete dos espíritos (Virginia Valadão, 1995), Yaõkwa (Fausto Campoli e Vincent Carelli, 2009) e este Yaõkwa – imagem e memória – as pessoas reaparecem, transformando-se tal como se transforma também o ritual ao qual se dedicam. De um momento a outro, os filmes mostram a história, são constituídos por ela e intervêm em seu curso: Yaõkwa, de 2009, por exemplo, é um filme ligado a um processo de patrimonialização do ritual enawenê-nawê, em um momento em que ele está ameaçado por um projeto de construção de barragens ao longo do rio Juruena. A fartura de peixes que vemos no filme de Virgínia Valadão desaparece, substituída pela frustração. As expedições mostram o desmatamento das terras ancestrais – “eles nos expulsam plantando capim” – e a dificuldade em encontrar os locais para construir as barragens de pesca. Yaõkwa se posiciona fortemente como instrumento para intervir nessa situação. Como dirá Cláudia Mesquita, em outro contexto, ao entrelaçarem o cinema ao vivido em longos arcos temporais, os filmes-processo se mostram irremediavelmente marcados pela história, por suas forças, constrangimentos e aberturas. Mas, mais radicalmente, “o cinema não é apenas tangido e modificado pela experiência histórica, mas intervém e altera, participando da mudança”.7 Raramente o retorno aos lugares e o reencontro com as pessoas se dá em um arco temporal breve. Com isso, do encontro ao reencontro, as pessoas padecem o tempo, mostram sua resiliência a persistir em seus rituais, a alimentar os espíritos, a despeito de outra história – que é e não é a delas – e que não para de produzir danos para as vidas e para o ambiente onde habitam.
7. MESQUITA, Cláudia. A família de Elizabeth Teixeira: a história reaberta. In: Catálogo do forumdoc.bh.2014. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2014, p. 217. Essa discussão, como apontamos, encontra diálogo direto em ALVARENGA; BELISÁRIO, 2015 (Cf. nota 2).
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Tecnologias e protocolos rituais se mostram, de um filme a outro, alterados, ameaçados pelos danos ambientais no encontro com essa história que, em sua ligação entre progresso e propriedade privada, sob a mediação do estado, não vê limites para seu avanço. O que resulta, muitas vezes, em barrar, interromper drasticamente práticas tradicionais daqueles que habitam, desde o início, o território, arriscando desequilibrar sua relação com os espíritos. Nestes filmes, vemos o esforço das pessoas enawenê-nawê em construir suas belas e sofisticadas barragens para a pescaria: feitas de troncos entrecruzados, permeáveis, contendo a água o suficiente para a fartura do alimento aos espíritos e à comunidade, elas seguem protocolos rigorosos em atenta observação da natureza. Depois, serão desfeitas para que o rio siga seu curso normal e os peixes possam subir para desovar na cabeceira dos igarapés. A barragem provisória é em tudo oposta às inúmeras barragens permanentes, de efeitos desmedidos, que se construíram pelo rio Juruena, trazendo um impacto devastador para a continuidade do ritual.8 *** Diante das belas imagens dos antepassados da Aldeia Halataikwa antiga, feitas em momento de contato pelos missionários Thomaz de Aquino Lisboa e Vicente Cañas, Lulanakwa não esconde seu entusiasmo. Ao final de uma exibição curta no computador – já que Fausto Campoli recuperou o pouco que resta das filmagens –, ele pergunta: “Acabou? Tem mais não?” Bastante afetado pela ação do tempo, o arquivo nos mostra planos aéreos da antiga aldeia, cenas do contato com os missionários e breves retratos das pessoas a devolver o olhar para a câmera. Ver essas imagens, no contexto enawenê-nawê, revela um sentido triplo para o arquivo: elas são arquivos domésticos – já que ali se reconhecem parentes, como o pai de Anaori. São arquivos históricos: vemos o encontro dos missionários com os Enawenê, em 1974, entre eles, Vicente Cañas, assassinado em 1987, em sua participação na luta pela demarcação das terras do povo do qual passou a fazer parte. Elas são também, quem sabe, arquivos-sonhos que nos devolvem as aparições dos parentes ancestrais, portando suas flechas, seus artefatos corporais, diante de suas malocas. Em sua materialidade precária, as imagens-sonhos surgem com os antepassados, devolvem num lampejo sua presença e sua força e desaparecem levando-os de volta ao lugar onde moram. ***
8. Vincent Carelli denuncia esse triste processo, cujos desdobramentos se deixam ver, de algum modo, em Yaõkwa – imagem e memória. https://pib.socioambiental.org/pt/Not%C3%ADcias?id=85689
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Yaõkwa – imagem e memória termina com a multidão a se divertir com a dança dos espíritos Jacamim. A cena burlesca nos devolve os primórdios do cinema, recomeço que afinal se experiencia a cada nova exibição. Ali, uma comunidade se vê na distância de si mesma. Se, no momento da filmagem, o acervo do VNA sugere uma expansão da agência das pessoas indígenas nas imagens, agora, com sua devolução, vemos sujeitos do olhar, outro modo importante de subjetivação. Sujeitos que, na distância que as imagens instauram, elaboram a história como forma de pensar e intervir no presente. Em lugar da sala escura do cinema, a noite a céu aberto, espaço vazado ao entorno, onde os sons das flautas e dos cantos se misturam aos sons da mata. André Brasil é docente do Departamento de Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais. Divide com o professor Eduardo de Jesus a coordenação do Grupo de Pesquisa Poéticas da Experiência e compõe a equipe de editores da Revista Devires – Cinema e Humanidades. Participa da Formação Transversal em Saberes Tradicionais e do Núcleo de Antropologia Visual (NAV) na UFMG.
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O sopro de Tiramantu: contato e xamanismo feminino no Igarapé Omerê CLARISSE ALVARENGA
Ao longo de 20 anos (1986-2006), Vincent Carelli realizou gravações no Igarapé Omerê, afluente da margem esquerda do rio Corumbiara, localizado na gleba de terra Corumbiara, no Sul de Rondônia, na Amazônia. Em 2009, Mari Corrêa finalizou a montagem do material, dando origem ao documentário Corumbiara. No filme, o contato com os Kanoê (e com um segundo e igualmente reduzido grupo denominado Akuntsu) é tomado como fio condutor para contar a história das tentativas dos indígenas de sobreviver a investidas de fazendeiros que buscavam exterminá-los. Não por outro motivo, eles viviam em isolamento nas terras que habitavam originariamente, mas que foram destruídas ao longo do tempo em função do interesse econômico desses mesmos empresários. No conjunto, as filmagens compõem um arquivo constituído por 66 horas de gravações realizadas em diversos formatos (VHS, Hi-8, S-VHS, MiniDV e Betacam). Esse material, como seria de se esperar, apresenta inúmeras circunstâncias que, apesar de registradas, não entraram na edição final do filme, tendo sido preservadas pelo diretor sem circulação. Entre as situações filmadas está Isolados de Corumbiara (2021). O material, que integra o arquivo do filme Corumbiara, é uma amostra eloquente da importância do registro que transcende a experiência do filme, modificando-o. Em exibição na Mostra Desaparecimento e Reaparecimento dos Povos e das Imagens, promovida pelo forumdoc.bh, esse trabalho apresenta montagem de quase uma hora de duração de um trecho específico do arquivo, filmado em duas horas seguidas e de um ponto fixo com a câmera Hi-8 na mão: a Sessão Xamânica conduzida por Tiramantu. Ao serem retiradas do arquivo e colocadas em relevo, as imagens vêm complexificar ainda mais o intrincado campo de visualidade que Corumbiara produzira. O trecho é citado em uma sequência de cerca de 5 minutos do filme e termina com um comentário de Vincent: “Nesse dia entendemos o poder de Tiramantu sobre todos eles”, referindo-se à importância de Tiramantu para os Kanoê. No entanto, no trecho que compõe a Mostra, a Sessão Xamânica é apresentada de forma ampliada, em sua duração, permitindo que o poder de Tiramantu sobre os Kanoê se estenda sobre o filme e sobre nós nos dias de hoje. Assim como o filme de 2009 passou por uma série de transformações ao longo do processo de realização, a existência da Sessão Xamânica de Tiramantu modifica
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o seu sentido e o campo de visualidade por ele criado. Sua importância decorre de lançar luz sobre a figura de Tiramantu e sobre o xamanismo feminino como um aspecto fundamental do contato entre povos e da resistência que fazem aos processos de extermínio, em diversos níveis e incessantemente, seja no Igarapé Omerê ou em qualquer outro espaço no Brasil.
Corumbiara (2009) Tendo ao seu lado os indigenistas Marcelo Santos e Altair Algayer (conhecido como Alemão), Vincent Carelli realizou as filmagens que deram origem a Corumbiara. Seu objetivo – manifesto na narração em voz over que introduz a obra – não era exatamente o de fazer um filme. Em princípio, a proposta era acompanhar o trabalho da Fundação Nacional do Índio (Funai), instituição à qual Marcelo e Altair estavam vinculados, produzindo imagens que pudessem ser usadas para convencer a Justiça brasileira da existência de um grupo de índios que ainda não se sabia qual era, apesar de se saber que vivia em isolamento voluntário. A partir daí seria possível argumentar em prol da interdição da área a fim de garantir a sobrevivência do grupo. A par e passo com Vincent e com a equipe da Funai, estava a antropóloga Virgínia Valadão, mulher de Vincent a quem o filme é dedicado – infelizmente ela vem a falecer de infarto ao longo do processo de realização. Foi Virgínia quem assumiu a tarefa de produzir os laudos antropológicos que embasaram a defesa dos índios na Justiça. E estava ainda Inês Hargreaves, linguista a quem se deve a identificação da língua e, consequentemente, da etnia dos índios isolados, a partir de uma comparação das gravações realizadas por ela em campo, por meio de um gravador de fita cassete, com os registros de línguas extintas do Museu Paraense Emílio Goeldi. A partir daí, foi possível traduzir as narrações dos indígenas sobre a experiência de perseguição vivida por eles e estabelecer interlocuções deles entre si, com parentes que não mais viviam isolados, com outros grupos (como os próprios Akuntsu) e com a equipe, fundamentais para compreender a situação que enfrentavam. Tendo em mãos os laudos, objetos coletados na área, as imagens e os sons dos índios, acreditava-se ser possível interditar a terra leiloada pelo governo militar, ainda na década de 1960, a preços baixos para empresários paulistas. Para os fazendeiros interessados na exploração da terra, o material era “forjado”, como se fosse possível “plantar” os índios na terra para forçar sua interdição, barrando o “desenvolvimento” do agronegócio, identificado, nesse caso, com a extração da madeira, criação de gado e, posteriormente, com o plantio de soja. Sobreviventes de um massacre empreendido por esses mesmos fazendeiros no final do regime militar, que envolveu também o extermínio de trabalhadores agrícolas que ali viviam, os Kanoê e os Akuntsu viviam isolados no Igarapé Omerê. No entanto, na medida em que o tempo passa, os indigenistas percebem se tratar de um processo de extermínio ao qual ambos os grupos estavam submetidos ao menos desde a década de 1940, quando o então Serviço de Proteção ao Índio (SPI) tentou transferi-los para a cidade de Guajará-Mirim, em Rondônia (RO), com o interesse de liberar as terras para exploração. Os poucos que conseguiram permanecer na terra
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viviam – não sem motivo – acuados e com medo, procurando a todo custo se esconder. Além das várias mudanças conjunturais que o filme acompanha e da mudança nas vidas daqueles que dele participam, altera-se também a perspectiva de Vincent em relação ao trabalho que faz. Ele percebe a insuficiência das evidências para a justiça e a inércia do governo, que se recusava a tomar providências. O cineasta que acompanhara as frentes de contato da Funai no intuito de recolher provas da existência dos indígenas (sua preocupação era objetiva), ao final entende que precisa se dedicar a outra tarefa: contar a história. Vincent deixa a função de investigador, de pesquisador, para tornar-se, em alguma medida, narrador. Se, antes, as imagens eram consideradas importantes para uma possível argumentação judicial em favor dos índios e da demarcação de suas terras, ao final o mais importante é contar a história de resistência dos índios aos fazendeiros, e também da resistência deles ao filme e ao contato. É importante contar ainda a história do próprio ato de filmar povos indígenas em isolamento e das questões éticas por ele provocadas. No filme, os diversos momentos vividos ao longo dos anos são expostos de forma cronológica, com identificação do ano em que os acontecimentos transcorrem: 1986, 1995, 1996, 1998, 2000 e 2006. Para acionar as imagens, a montagem usa uma narração em voz over na primeira pessoa, expondo, em retrospecto, dúvidas e reflexões surgidas a partir dos encontros com os indígenas e de todos os obstáculos enfrentados ao longo do percurso. Em campo, o cineasta se pergunta até onde estava disposto a ir em busca das imagens. A cronologia dos acontecimentos que o filme abarca é colocada em cena dando visibilidade para as transformações vividas pelos sujeitos nele (e por ele) enredados, para os novos contextos que enfrentam e para as novas formas que o filme assume momento a momento. Afinal, o que muda ao longo do filme não é apenas a cronologia dos acontecimentos narrados posteriormente, mas o próprio campo de visibilidade (e invisibilidade) subjacente aos diferentes modos como o filme constitui a cena. A cada nova investida que faz em busca dos índios, Vincent termina por desistir de continuar o projeto. Já em 1998, a autocrítica sugerida pelo narrador sobre os limites da visualidade criada sob o intuito de defender os índios abate fortemente Vincent, especialmente a partir da esquiva do chamado índio do buraco, que recusa qualquer tipo de contato, não se deixando filmar. Em trabalhos anteriores (ALVARENGA, 2012; ALVARENGA e BELISÁRIO, 2015; ALVARENGA, 2017) abordamos essa recusa como uma maneira de resistir ao contato, ao enquadramento e também de produzir o invisível identificado no extracampo do filme. A apresentação da Sessão Xamânica de Tiramantu vem trazer novos elementos que, de uma maneira diferente, também interferem naquilo que não é visível, no extracampo do filme. Isso significa que o material que temos a oportunidade de conhecer não elimina o extracampo, ou o invisível do filme, mas torna-o mais complexo.
Isolados de Corumbiara (2021) No contato registrado por Vincent em Corumbiara, Tiramantu é a primeira pessoa a se aproximar da equipe. Com seu sopro, conduzido por movimentos circulares dos
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braços sobre a equipe da Funai e do filme, ela se aproxima das pessoas e também dos objetos, inclusive da câmara, como se estivesse ativando canais de ligação nos corpos e no espaço e liberando-os para o encontro. Ao final da sequência do contato, filmada no dia 3 de setembro de 1995, Tiramantu realiza uma encenação que em princípio parece ser a de um ataque, uma guerra, e ficamos sabendo, a partir da narração de Vincent, se tratar de uma reencenação que elabora a própria aproximação da equipe do filme e da Funai ao grupo, que vinha acompanhando os movimentos que eram feitos em seu território. Ela é também a pessoa que sopra a flauta de bambu com embocadura de cera, como veremos depois no acampamento, num momento em que sopra e oferece o instrumento para que Virgínia Valadão também o experimente. Ainda no acampamento ela será quem mais se aproxima da câmera com seu corpo. Em um certo momento, Tiramantu usa inclusive uma câmera fotográfica, devolvendo o olhar para a câmera que filma. Além dos vários momentos em que se faz presente, ela vai protagonizar a sequência de cerca de 5 minutos de atuação xamânica, em que é seguida por Konibu, o xamã Akuntsu. Essa sessão deflagra, pela via do xamanismo de Tiramantu, mas também de Konibu, uma aproximação entre os Kanoê e os Akuntsu, que sempre fora tratada como uma relação tensa, algo que o filme identifica na dificuldade que os grupos enfrentam para conseguir que Purá, irmão de Tiramantu, se case com uma jovem Akuntsu. O filme de 2009 termina com Konibu, que faleceu em 2016, portanto após o filme finalizado, tocando flauta e cantando, com a sobreposição da voz over de Vincent dizendo: “Ao ouvir a flauta de Konibu fico imaginando uma aldeia com 20 ou 30 flautistas. Tenho saudade do que não será mais.” A partir dali ficamos sabendo que Tiramantu teve um filho de uma relação com Konibu. Ela é filmada brincando com a criança com um sorriso direcionado ao menino, como se a câmera flagrasse de longe a intimidade da relação entre mãe e filho. De alguma forma, a expressão de Tiramantu foi totalmente modificada, como se ela vivesse um outro momento, transformada pela relação com a criança. Ficamos sabendo que ela se dedicava integralmente ao filho, inclusive longe dos Akuntsu e do Posto da Funai. A figura de Tiramantu reflete as transformações que o filme registra e também pelas quais ele próprio passa, ao longo do tempo. É possível que essa modificação que percebemos na presença de Tiramantu tenha a ver com a maternidade (tal como expresso em Corumbiara), mas também com o xamanismo feminino que ela alcança e coloca em prática no segmento Isolados de Corumbiara. Ao acompanhá-la em Corumbiara e reencontrá-la em Isolados de Corumbiara, podemos pensar que tanto a maternidade (produção de pessoas) quanto o xamanismo feminino (contato com outras espécies) são formas de resistência que mantêm os Kanoê e os Akuntsu em suas terras, sobrevivendo aos ataques externos. Nesse sentido, as imagens de Tiramantu inscrevem formas de resistência nas quais, ao contrário daquela realizada pelo índio do buraco, que foge e se esconde, está em jogo a colocação do corpo em cena.
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Contato e xamanismo A Sessão Xamânica conduzida por Tiramantu em Isolados de Corumbiara é iniciada a partir do momento em que ela traz sementes de angico para Konibu. Ele, por sua vez, macera as sementes, prepara uma espécie de cera e usa o fogo para esquentar uma pequena placa. Eles inalam o pó de angico e ela coloca em prática seu sopro, seus movimentos circulares com os braços – que parecem, em princípio, criar canais de comunicação que permitam a circulação de ar dentro do próprio corpo e depois pelo corpo do território ao redor. Se ela começa a sessão permanecendo um tempo sentada, em um dado momento se levanta e passa a se deslocar no espaço, convocando Konibu a se deslocar também. Ela canta, eles andam em círculo, batendo os pés no chão e interagindo entre si. Nesse momento é como se o corpo deles guardasse em seus movimentos e sons a memória de seus povos, suas aldeias, suas relações, seus rituais, seus parentes, estes não mais presentes entre eles. A força da encenação dos dois xamãs é solitária e ao mesmo tempo povoada pela memória presente no corpo e pelas interações que estabelecem com outros seres da floresta ali convocados. Tiramantu interage com Konibu, com as plantas da floresta (a começar pela própria semente de angico que ela traz para compartilhar com Konibu) e também com a câmera e com a presença de Vincent, assim como interage com os demais seres [espíritos] que compõem a cena. Seu corpo alcança uma miríade de relações que são sugeridas pelos movimentos que faz. Num determinado momento, Tiramantu cai no chão e apaga, quando a cena é assumida por Konibu. Após algum tempo, ela retorna fortalecida. Seus movimentos corporais parecem surgir do sopro e serem conduzidos pelos braços, como se ela conduzisse a respiração de volta para o próprio corpo, para os corpos de seus presentes e para o espaço ao redor. Ao final, quando termina a sessão, um pequeno grupo de mulheres Akuntsu entra em cena e ela refaz o mesmo procedimento de conduzir o sopro para abrir canais de comunicação no corpo da menina mais jovem do grupo, como se estivesse vitalizando-a com um sopro de vida. Essa é a última fase do segmento. A atuação de Tiramantu chama atenção para a importância do xamanismo em todas as relações de contato, visto que, ao acompanhar a Sessão Xamânica, percebemos em retrospecto que os outros contatos que o filme apresenta também são atravessados pelo xamanismo. Além disso, a atuação de Tiramantu oferece um exemplo de como as mulheres guardam nos seus corpos os movimentos de transformação pelos quais elas e seus povos passam. A postura de Tiramantu é de adesão ao filme, no entanto o que ela traz é também um extracampo, assim como observamos anteriormente em relação ao índio do buraco (2012, 2015, 2017). No caso do índio do buraco, seria como se, ao optar pela busca de evidências, pela retratação dos indígenas, ou seja, ao optar por esse desejo de visibilidade justificado pela necessidade de garantir a sobrevivência dos próprios índios, mas ao se deparar com a recusa do índio do buraco, o filme tivesse que lidar também com aquilo que é da ordem do invisível que ele faz surgir e que
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a ele resiste. Ao se deparar com o xamanismo de Tiramantu, uma nova camada invisível parece surgir, no entanto ela é produzida pela presença do corpo da xamã em cena, e não pela fuga. O trabalho de Tiramantu nos faz compreender a presença do xamanismo em todas as situações de contato que o filme nos apresenta. Desse ponto de vista, estabelecer relações entre povos diferentes é também estabelecer relações com outras espécies, algo que o corpo – e mais precisamente o sopro – de Tiramantu nos ensina a observar. Nesse sentido, é como se o sopro de Tiramantu recobrisse as imagens, modificando seu sentido, do mesmo modo em que recobre seus parentes e a história de resistência e luta de seu povo, resguardando-os no movimento de sua dança, de seu canto, de seus gestos e, enfim, em sua presença aberta para o espaço e para o tempo. Clarisse Alvarenga é professora na Faculdade de Educação da UFMG, onde coordena o Laboratório de Práticas Audiovisuais (LAPA) e o Laboratório e Arquivo de Imagem e Som (LAIS). Contato: clarissealvarenga@gmail.com
Referências ALVARENGA, Clarisse. A Câmera e a flecha em Corumbiara. Devires – Cinema e Humanidades, Belo Horizonte, v. 9, n. 1, p. 118-127, jan./jun. 2012. ALVARENGA, Clarisse; BELISÁRIO, Bernard. O cinema-processo de Vincent Carelli em Corumbiara. In: Limiar e partilha: uma experiência com filmes brasileiros. Belo Horizonte: Selo do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social, 2015. v. 4. ALVARENGA, Clarisse. Da cena do contato ao inacabamento da história. Salvador: Edufba, 2017.
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Vida de guerra, sonho de festa1 SPENSY PIMENTEL É com uma sequência gravada no acampamento kaiowa do Apyka’i, nas proximidades de Dourados (MS), que se inicia Martírio. Ao longo do filme, serão recorrentes as aparições da líder Damiana Cavanha e seus familiares, que também estão presentes num extra destacado pelo DVD, em que figura gravação realizada no último despejo sofrido pelo grupo, em junho de 2016. Comunidade emblemática da luta em Mato Grosso do Sul na última década, o Apyka’i impressiona como exemplo puro da obstinação kaiowa. Instalado à margem da BR 463, estrada que leva até a cidade de Ponta Porã, na fronteira com o Paraguai, o grupo do Apyka’i reivindica a demarcação de área de extensão ainda não medida, parte da qual incide sobre terras utilizadas nos últimos anos pela Usina São Fernando, empresa do setor sucroalcooleiro que é propriedade do pecuarista José Carlos Bumlai – preso em 2015 durante a Operação Lava-Jato. O grupo que permanece no local costuma ser pequeno, em alguns períodos não mais que uma dúzia de pessoas – nesses acampamentos de beira de estrada, é frequente que os homens, sobretudo, saiam para changuear, ou seja, trabalhar nas fazendas próximas ou mesmo na cidade. Damiana tomou a dianteira no Apyka’i depois da morte de seu esposo, Ilário, em 2002. Além dele, outros oito integrantes do grupo morreram em consequência de atropelamentos no local, nos 15 anos anteriores a 2016 – só em junho desse ano, poucos dias antes do último despejo sofrido pelo grupo, foi criado pela Funai um grupo de trabalho para realizar a identificação e delimitação da terra indígena. Como se vê em Martírio, na avaliação dos indígenas, várias dessas mortes não são acidentais, e sim fruto de atos criminosos, praticados por pessoas ligadas aos fazendeiros. Os corpos foram enterrados na área reivindicada, em uma pequena mata ciliar próxima aos locais onde o grupo tem acampado ao longo dos últimos anos, gerando um cemitério particular, que é o cenário de uma das passagens mais impressionantes do filme. Em meio a um mar de cana, ocasionalmente um mar de chamas, como aconteceu em 2013, após um incêndio acidental que consumiu por completo os barracos do acampamento, e situado a poucos quilômetros da cidade, no próprio anel viário dessa que é uma das mais conhecidas mecas do agronegócio brasileiro, Apyka’i é como uma espécie de reflexo invertido daquelas fotos que, periodicamente, aparecem na imprensa mundial “revelando” algum grupo de índios isolados nos rincões da 1. Adaptado de “Martirio – quando os Kaiowa e Guarani fizeram contato” (Revista de Antropologia v. 60, n. 3, 2017).
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Amazônia – os últimos remanescentes – de uma humanidade virgem, numa espécie de chavão mítico, ecoado ad infinitum pelas redes sociais. Estes isolados por uma relativa distância física – aqueles, pela indiferença absoluta da população regional. Kulechov evidenciou o fato de que duas imagens postas em sequência geram, inevitavelmente, um significado. Dziga Vertov escreveu certa vez, em um de seus manifestos: “Hoje, no ano de 1923, você anda por uma rua de Chicago e eu posso obrigá-lo a cumprimentar o camarada Volodarski que caminha, em 1918, por uma rua de Petrogrado e não responde ao seu aceno”. Podíamos pensar assim o salto entre os dois longas-metragens de Carelli mais recentes – Corumbiara (2009) e Martírio (2016). Quando, em um “fade-in/fade-out” vertoviano, Carelli passa dos isolados de Corumbiara aos isolados do Apyka’i, propicia a geração de um novo significado do próprio termo “índio” a um amplo público no Brasil. Essa é, talvez, uma das grandes contribuições de Martírio, captando uma operação que a própria difusão das imagens, palavras e cantos dos Kaiowa e Guarani tem gerado de forma intensiva no debate público nacional e internacional. Em dezembro de 2013, por ocasião da morte do líder kaiowa Ambrósio Vilhalva, da também emblemática comunidade de Guyraroka, escrevi, a respeito do longa-metragem que ele havia protagonizado como ator, em 2008: Com suas virtudes e defeitos, Terra Vermelha foi um marco na divulgação da luta guarani-kaiowa, disso não há dúvida. Logo esses índios que, aos olhos dos brasileiros em geral, são aculturados, integrados, que já nem são índios, para alguns: ficaram famosos. A pequena revolução que os Guarani-Kaiowa estão operando no imaginário brasileiro apenas começou. E muito disso se deve à figura de Ambrósio, que conseguiu, com seu olhar, transmitir ao público o que significa arriscar a vida, dia a dia, nos mais de 30 acampamentos indígenas do sul de MS que buscam, teimosamente, recuperar as terras chamadas pelos Kaiowa de tekoha – “o lugar onde se pode ser do nosso próprio jeito”.2
Uma comparação entre Terra Vermelha e Martírio não deixa de ser digna de nota. O primeiro teve carreira internacional e, certamente, levou grande visibilidade ao drama dos Kaiowa e Guarani. Ao mesmo tempo, foi um filme incompatível com a cosmológica indígena. Quando iniciei o trabalho de campo para a pesquisa de doutorado, em 2009, não era incomum encontrar comentários de lideranças de que, apesar de importante, no sentido de superar a invisibilidade que pairava sobre aqueles indígenas, o longa de Marco Becchis não poderia ser exibido nas comunidades, em função das encenações ligadas ao suicídio juvenil que trazia.3 Martírio, por outro lado, vai ao encontro do cinema desejado pelos indígenas. Como é explicitado no filme, o processo que culmina na montagem do documentário passa pela recuperação, edição e tradução das gravações que Carelli havia realizado 2. http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-midias/androsio-vilhalva-a-morte-de-ummorubixaba/ (consultado em 11/10/2021) 3. Falar sobre ou representar um suicídio é algo que pode levar outros jovens a “contaminar-se” – segundo os xamãs.
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no MS entre 1988 e 1998. São documentos históricos considerados cruciais pelos mais velhos, pois ali há performances, discursos e entrevistas com lideranças de prestígio, já mortas. Um exemplo é o breve trecho que o filme apresenta da cerimônia conhecida como kunumi pepy, antigo rito masculino de passagem, em que se furavam os lábios dos meninos. A última comunidade do lado brasileiro da fronteira4 a realizar a festa foi o Panambizinho, onde costumava ser conduzida pelos descendentes do famoso xamã Paulito Aquino, morto em 1980.5 Agora, o forumdoc.bh.2021 exibe um registro extenso da cerimônia, material inédito guardado no Acervo do Vídeo nas Aldeias – registro raro para grande parte dos Kaiowa do Brasil, portanto. Muitos dos adultos, hoje, não puderam passar pela cerimônia, não portando mais o adorno labial. O desejo intenso de voltar a viver num local em que seja possível retomar essa festa é central para o movimento de luta pela terra que esses indígenas empreendem. Não restam, hoje, deste lado da fronteira, muitos xamãs capazes de ainda conduzir tal festa. Para complicar, a ampla devastação ambiental promovida pelo agronegócio torna muito difícil encontrar vários dos elementos imprescindíveis à realização da cerimônia – em particular, certas árvores sagradas, outrora abundantes quando o sul de Mato Grosso do Sul era tomado pela mata atlântica, fazendo jus ao nome do estado. Em obra recente, Beatriz Perrone-Moisés reflete sobre a política praticada pelos povos indígenas “entre festa e guerra”. Martírio mostra a guerra lutada pelos Kaiowa e Guarani. Agora, a instalação e mostra “Desaparecimento e reaparecimento dos povos e das imagens” revela a outra face da mobilização desse povo, sua motivação mais profunda: o sonho de um dia reviver, em plenitude, as antigas festas que teciam a sociabilidade indígena, como o kunumi pepy. Martírio fecha um ciclo iniciado nove anos atrás, pelo fenômeno da difusão viral, nas redes sociais, da carta de socorro escrita pelos indígenas do acampamento de Pyelito Kue, em outubro de 2012. Na ocasião, o documento disparou um amplo processo de solidariedade, o qual, além de ter culminado em manifestações de rua em mais de 50 cidades do Brasil e do exterior – numa espécie de preâmbulo das manifestações de junho de 2013 –, também fez com que milhares de internautas trocassem seus sobrenomes no Facebook por “Guarani-Kaiowa”.6 O assassinato do kaiowa Nísio Gomes, líder do acampamento do Guaiviry, em novembro de 2011, outro dos episódios revisitados em Martírio, foi o marco fundacional da experiência de comunicação que culminou no viral de outubro de 2012. A data da morte de Nísio, 18/11/11, é a mesma do“nascimento” da Aty Guasu – Grande Assembleia Kaiowa e Guarani – no Facebook. Encontrei Carelli em 2013, em Mato Grosso do Sul, quando as gravações de Martírio já estavam em pleno curso, durante os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, da qual ambos fomos colaboradores. Não fica evidente no filme, mas as imagens de 4. Do lado paraguaio, também há as comunidades kaiowa (lá chamadas de pai-tavyterã) 5. https://osbrasisesuasmemorias.com.br/biografia-pai-chiquito/ 6. Ver “Tonico Benites - como um líder indígena rompeu as fronteiras do Mato Grosso do Sul e transformou uma tragédia local em uma causa na aldeia global da internet”. Disponível em www.fundodireitoshumanos. org.br/wp-content/uploads/2016/12/revista-x-anos.pdf (acesso em 11/10/2021).
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reportagens de TV como aquela sobre o despejo de 1985 no Jaguapiré foram exibidas por Carelli em uma das audiências públicas promovidas em Dourados no início de 2014, durante o processo deflagrado pela CNV. Outras imagens descobertas ao longo do processo do filme foram inicialmente divulgadas pela Aty Guasu na internet – é o caso da sequência de celular que mostra o treinamento dos empregados da empresa de segurança Gaspem, envolvida na morte de Nísio Gomes. E foi assim que o filme se tornou muito mais do que a simples resolução da dívida que Carelli tinha com os Kaiowa e Guarani, em função das imagens que guardava. Muito mais que um conjunto de reflexões pessoais sobre o “genocídio surreal” que esses indígenas vivem. Martírio tornou-se parte do próprio processo cultural heraclitiano a partir do qual a visibilidade adquirida pelas violências contra os Kaiowa e Guarani escancarou para milhares de pessoas a forma violenta e injusta como o país lida até hoje com boa parte dos povos indígenas que aqui vivem. É emblemática a cena final do filme, em que os pistoleiros que atacavam o Pyelito são flagrados, finalmente, pelas câmeras deixadas com os moradores da comunidade. É o golpe mais contundente contra o fetiche das fotos de “índios isolados” dos confins amazônicos. O reverso de nossa ânsia por consumir imagens de uma “humanidade virgem” – um flagrante da violência hipócrita e covarde que fundou nosso país e que até hoje mantém a desigualdade que é sua marca maior. Os tiros dos pistoleiros no Pyelito tornam-se uma espécie de derradeira metonímia, que se amplia como redemoinho na conclusão do filme, pois, a partir desse vórtice, pode-se pensar todo o resto das imagens dos ruralistas que ali estão – dos despejos praticados pela Polícia Militar no Jaguapiré, em 1985, ao depoimento do fazendeiro, nos anos 90, negando a existência prévia de indígenas no Jaguary, até o bizarro Leilão da Resistência, em 2013, precursor das manifestações que levaram ao processo político de 2016. E foi assim que nos tornamos todos “Guarani Kaiowa” na internet; parte solidária desse “tudo o que não presta” – como diz o deputado ruralista em cena também recuperada no filme – que passou a exigir seus direitos nos últimos anos. Os espelhos dados como presente aos indígenas pelos portugueses – agora câmeras deixadas nas aldeias – virados por eles para nossas próprias faces vis. Sobem os créditos, com música do Bro MC’s, o primeiro grupo de rap indígena a gravar um disco no país, inspirado pelo som virulento dos paulistanos do Racionais MC’s. Mais um sinal de que Martírio não é só um filme, é um documento, é um sintoma, o sinal de existência de todo um universo de imagens, verdadeiro ecossistema que tem emergido nos últimos quinze anos em MS: pois o Bro formou-se durante as filmagens de Terra Vermelha, foi personagem de A Sombra de um Delírio Verde (2011), e com Martírio encerra o filme que faz uma síntese de muito do que esse período representou. Spensy Pimentel é antropólogo e jornalista, desenvolve pesquisas, documentários e reportagens junto aos Kaiowá e Guarani desde 1997. Doutor pela Universidade de São Paulo, com estágio de pesquisa na Universidade Nacional Autônoma do México, é atualmente professor na Universidade Federal do Sul da Bahia. Junto com parceiros, realizou, entre outros filmes, Mbaraka, A Palavra que age (2011) e Monocultura da
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Fé (2018). É autor do livro O Índio que mora na nossa cabeça – sobre as dificuldades para entender os povos indígenas (ed. Prumo, 2012). Para saber mais CHAMORRO, Graciela. Kurusu Ñe’engatu – Palabras que la Historia no Podría Olvidar. Asunción/ São Leopoldo: CEI-UC/IEP-EST/CMI, 1995. PERRONE-MOISÉS, Beatriz. 2015. Festa e guerra. Tese de livre docência, Universidade de São Paulo. PIMENTEL, Spensy K. 2015 “Aty Guasu, as grandes assembleias kaiowa e guarani: Os indígenas de Mato Grosso do Sul e a luta pela redemocratização do país”. In: Chamorro, G., Combès, I. (Org.), Povos indígenas em Mato Grosso do Sul: história, cultura e transformações sociais (pp. 795-814). Dourados, Ed. UFGD.
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KARAPIRU Awá-Guajá RENATA OTTO
Hoje, 16 de julho de 2021, soube da morte de Karapiru Awá-Guajá. Numa rede social, Flavia Berto escreveu: Karapiru oho iwapé. “Karapiru foi para o céu”. Espero que sim, que ele tenha alcançado fácil o caminho e chegado lá. Embora eu, definitivamente, preferisse que não tivesse ido. Karapiru devia ter cerca de 75 anos de idade (nos seus documentos de identidade encontramos uma data de nascimento imaginada no ano de 1945). Ele era um homem forte ainda e não teria subido assim para o céu, se o mundo dos brancos, karaí, não estivesse se abatendo mais uma vez violentamente sobre o mundo indígena. Karapiru tornou-se “célebre” entre os brancos depois do filme Serras da Desordem, (2006), de Andrea Tonacci. No seu filme, Tonacci concentrou-se numa perspectiva preciosa: tomou a história de Karapiru tratando-a como emblema do modo como o Brasil “grande” – o das commodities de soja e minério, do trem de ferro estrondoso frenético cortando a carne da terra sem cessar, o do som ufanista do carnaval de exportação, o do céu e das edificações estonteantes de Brasília – lida com as populações indígenas, donas originárias desta terra. Mas também conseguiu filmar o modo como os Awá, representando os povos indígenas, lidam com os invasores. No filme, Karapiru sonha sua vida de abundância, aquela vivida pelos povos indígenas, até o encontro fatídico com os karaí, que seria repetido muitas vezes em vigília. Karapiru vivia recentemente na Terra Indígena (TI) Caru, situada no noroeste do Maranhão. Esta terra participa de um mosaico de áreas protegidas: ao norte, faz fronteira com a TI Awá que, por sua vez, é contígua à TI Alto Turiaçu, ligada à TI Tembé, já no estado do Pará. Ao oeste, a TI Caru ainda é contígua à Reserva Biológica do Gurupi. Essas áreas, situadas nas franjas ocidentais da floresta amazônica, se transformaram nas últimas ilhas verdes do estado do Maranhão, rodeadas que estão de serrarias ilegais.
A gente de Karapiru, o povo conhecido como Awá-Guajá, faz parte do conjunto de povos tupi-guarani. Hoje, dia da morte de Karapiru, houve na Alemanha mais de cento e vinte mortes por uma inundação sem precedentes que fez também desaparecerem outras cerca de mil e quinhentas pessoas. No Canadá, acontece uma onda de calor que já matou cerca de cem pessoas. No Brasil, estamos numa seca que faz baixar reservatórios abaixo do nível e ameaça apagões de energia. Aqui, a Covid-19 não dá trégua há dois
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anos e, hoje, ultrapassamos os 540 mil mortos. Só hoje, mesmo depois que o número de mortos diários no Brasil se reduziu dos 4 mil, morreram mais de 1400 pessoas por Covid-19. Tudo isso me leva a pensar que estamos nas bordas do fim. Ao mesmo tempo está explícito que o fim não chega na mesma intensidade e velocidade para todos. Os povos indígenas tiveram sua taxa de mortalidade por Covid-19 cinco vezes maior que o restante da população brasileira. Hoje, essa tragédia matou Karapiru. Os Awá-Guajá foram vacinados. Há estatísticas que contam 1 morto em cada 25 mil vacinados. Karapiru provou sua sorte. Mas isso é apenas uma maneira cabalística de ver a tragédia, outros motivos estão certamente em jogo. Os Awá participaram, no último junho, do “Levante Indígena”, movimento político para defesa de seus direitos que, mesmo na pandemia, teve que ser levado adiante. Os Awá tomaram parte na luta porque seus direitos territoriais, e sua vida, estão francamente ameaçados. Na sua t-/Terra, isto é, nos territórios, os invasores estão se encorajando ainda mais, se sentindo impunes e se tornando ainda mais violentos. No Congresso, já passou pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) e está para ser votado pela plenária, de maioria ruralista, um projeto de Lei, o PL490, na contramão absoluta do que diz a Constituição a respeito dos direitos dos povos originários. Este PL pretende acabar definitivamente com o usufruto exclusivo dos índios sobre suas terras, permitindo todo tipo de exploração por terceiros, além de permitir rever a titularidade de terras já demarcadas. Ou seja, é um pacote de maldades que destrói completamente a figura da Terra Indígena. No Supremo Tribunal Federal estão para julgar um caso que dará jurisprudência para o que chamam de “marco temporal” e que faz restringir a terra indígena àquela ocupada no ano de 1988, como se os índios pudessem desaparecer ou deixar de ser índios depois ou antes de 1988… Os tempos são aqueles ditos pelo ex-ministro do meio ambiente, investigado por crime ambiental: tempos de “passar a boiada” em cima de tudo. Neste cenário, os Awá tomaram parte no Levante. Participaram das reuniões e da manifestação na cidade de Santa Inês/MA que fechou a rodovia, junto com os Guajajara. Dez dias depois, as pessoas passaram a adoecer na TI Caru. Essa imagem de fim não me leva ao céu dos Awá, que é um bom lugar. Leva-me direto à sabedoria Guarani, Apapokuva. Tupi-Guarani, como os Awá-Guajá. Há mais de cem anos, o etnólogo alemão batizado Nimuendaju por esses Guarani publicou “As Lendas de Criação e Destruição do Mundo”. A monografia sobre esses que o batizaram foi um comentário aos mitos que o autor ouviu quando acompanhava alguns bandos que atravessavam do Paraguai ao litoral de São Paulo em busca da “terra sem mal”, Yvy Mara’ey. Eles diziam que a destruição do mundo começaria inevitavelmente, ela estava à espreita, era uma espécie de acontecimento já em curso desde o começo. A destruição apapokuva começa pelo oeste com um incêndio e um desmoronamento da Terra e segue mais ao leste, onde há uma grande enchente que termina de destruir a Terra imperfeita. Mais tarde, na década de 1970, Pierre Clastres escutou os Mbyá Guarani e sua obra reverbera as falas sagradas dos sábios. São eles que comentam agora seus próprios mitos e explicam que a Terra sucumbe porque está, ela mesma, cansada, exausta, muitos corpos estão pesando no corpo dela, e ela ruirá.
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Os Awá-Guajá também compartilham da sabedoria tupi-guarani nos seus mitos e em modos de viver. Eles também provaram uma grande marcha do oeste para o leste há cerca de duzentos anos, quando saíram de uma região da margem esquerda do rio Tocantins e seguiram para o vale do rio Pindaré no Maranhão, onde habitam até hoje. No novo lugar eles se deixaram ver pelos karaí, apenas muito recentemente (a partir da década de 1970), só depois que as rodovias e a estrada de ferro da Vale começaram a cortar sua terra-planeta, sua t-/Terra. Desde então, os Awá-Guajá tentam escapar do assédio desses invasores e sobretudo das suas doenças, inamuhun, do seu fedor de morte, aquilo que os invasores carregam consigo, que contamina e mata os Awá, especialmente vulneráveis porque têm pouco tempo de exposição aos vírus e bactérias e baixa imunidade contra eles. Além de driblar as doenças dos invasores, Karapiru foi um dos Awá-Guajá que escapou das suas armas de fogo. Em 1978, Karapiru e seu grupo familiar foram assaltados na sua própria casa. Os invasores queriam expulsar os Awá das terras que grilavam. Armaram uma emboscada, atiraram sobre todos os Awá que encontraram na mata e atearam fogo nas casas do seu acampamento. Temos registro que foram mortas quatro pessoas nessa emboscada, mas pode ser que tenha sido mais gente. Karapiru se salvou atirando-se ao rio com seu filho de colo. Correu para dentro da mata. Fugiu. O filho não resistiu à marcha – sem o leite e o colo maternos –, faleceu. Caminhando sozinho e fugindo dos brancos, Karapiru chegou ao sertão da Bahia, cerca de 1.500 km distante de seu lugar. Esta saga de Karapiru está reencenada com maestria, pelos Awá, inclusive por Karapiru, no filme de Tonacci. Mas Serras da Desordem não se contenta com a história de invasão, perseguição e fuga de Karapiru. Ele acompanha um encontro igualmente dramático. Sidney Possuelo, sertanista responsável na época pelo departamento de índios isolados, foi buscar Karapiru, no sertão da Bahia, para tentar reconduzi-lo ao encontro de seus antigos parentes. Desconfiando que aquele andarilho solitário pudesse ser um Avá Canoeiro ou um Awá-Guajá – por causa das palavras tupi que reconhecia e o lugar em que o encontrara –, mandou chamar um “intérprete” guajá, que vivia na TI alto Turiaçu. Este intérprete era Xiramuku, conhecido como Benvindo Guajá. Então, Xiramuku não apenas reconheceu a língua falada pelo “estranho” como sendo a sua própria, como reconheceu o homem como seu próprio pai. Xiramuku era ainda criança na época da emboscada, e também conseguira escapar. Ele havia sido levado a viver com aqueles outros karaí, amigáveis, no posto da Funai. Tornou-se um homem adulto assim, criado por gente mais ou menos do tipo daquela que matou seus parentes. Mas, desde lá, os dois não sabiam absolutamente nada um do outro, até o re-encontro. Karapiru foi viver no lugar onde vivia o filho, Xiramuku, junto com outros AwáGuajá na TI Alto Turiaçu, originalmente demarcada para os Ka’apor, outro povo tupi-guarani. Não se demorou muito lá e foi viver em companhia de outras famílias awá-guajá na Terra Indígena Caru, habitada também pelos Tenetehara-Guajajara. Naquela época, ainda não havia sido demarcada a Terra Indígena Awá, e os brancos continuavam ameaçando e invadindo a t-/Terra dos Awá (como fazem até hoje). Na TI Caru, Karapiru encontrou esposas e teve filhos. Lá, na aldeia Tiracambu, era
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renomado como bom caçador, mas não chegou a ter família mais numerosa. Não reencontrou outros homens de sua geração, com quem tivesse uma relação de maior proximidade, de quem pudesse ser verdadeiramente companheiro. Não tinha mulheres a quem pudesse chamar propriamente de irmã ou de mãe. Frequentemente ele ia à mata, andar-caçar, sozinho. Parece que Karapiru nunca pôde deixar de ser um tanto estrangeiro. Ao mesmo tempo, apesar de certa fama entre os brancos, ele não fazia questão alguma da companhia, ou dos bens, deles. Não gostava de ir ao povoado, que fica a dois quilômetros da aldeia, na outra margem do rio Caru, em torno da parada do trem da Vale, que passa muitas vezes por dia e durante a noite. Só frequentava a cidade obrigado por motivos de saúde, por exemplo. Mas ele era inquestionavelmente uma pessoa muito simpática. Jamais arrogante ou raivoso. O sorriso sempre amigável, generoso para todos os que se aproximavam dele. Lembro-me especialmente de duas pequenas passagens que tive com ele na aldeia Tiracambu. Uma vez, notei que ele passou a vir ao posto com frequência. Ao anoitecer, ele vinha tomar um remédio. Perguntei por que ele tomava aquilo. Ele me contou que sentia muitas dores na coluna porque tinha tomado um tiro dos brancos. Espantei-me. Como teria acontecido isso? Quando? Até que pude entender que ele se referia ao acontecido naquela vez, há mais de 30 anos. Para mim, soava como se tivesse acontecido ontem. Isso me leva a entender a tragédia que aconteceu com ele como a verdade do mito: ela não tem propriamente um passado. Aquele mau encontro (criminoso) era sentido todos dias como um presente mau. Isso, todavia, não tirava de Karapiru sua aparente felicidade de viver e sua cortesia para com todos os Outros. Tanto que, uma vez, o vi se orgulhando de criar um par de bem-te-vis. Estes frequentavam todos os dias a sua casa, se empoleiravam nas proximidades da sua rede de dormir. Ele sorria alimentando-os com qualquer sobra. Eles agradeciam isso lhe fazendo companhia constante.
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fotos: Renata Otto
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Homenagem por Renata Otto, doutoranda em Antropologia na UnB, pesquisadora entre os Awá-Guajá e colaboradora da Rede Vagalumes.
El País publicou: https://brasil.elpais.com/brasil/2021-07-19/tragedia-e-resistencia-a-extraordinaria-vida-de-karapiru.html
Para saber mais sobre a história de Karapiru: Assista Serras da Desordem de Andréa Tonacci https://www.youtube.com/watch?v=VNMrboKyunw Leia esse texto de André Toral: encurtador.com.br/iqvRU
Para saber mais sobre os Awá-Guajá acesse: Survival International https://survivalbrasil.org/pt/awa Mapa de Conflitos da Fiocruz encurtador.com.br/ajuB8
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Algumas notas sobre a Cinemateca Brasileira o fogo não é o fim PATRÍCIA MACHADO
1. As primeiras imagens do incêndio da Cinemateca Brasileira, em 29 de julho de 2021, chegaram até mim através de um vídeo enviado pelo WhatsApp, seguido pela mensagem de uma amiga que ainda não sabia responder o que tinha acontecido, mas me tranquilizava na medida do possível: “não foi na sede onde se encontra o acervo principal, foi na unidade da Vila Leopoldina, ainda não sabemos o que havia ali, mas parece que são apenas filmes irrecuperáveis”, ela dizia. Apesar da horrível notícia, levando em conta o descaso, abandono e ataque à cultura promovidos pelo governo Bolsonaro, me senti aliviada ao saber que a notícia poderia ter sido pior. Apesar de tudo, ainda havia um acervo a ser preservado. Há pesquisa a ser feita, algo se salvou. Ufa. O breve alívio, no entanto, veio sucedido de uma terrível angústia. As informações de diferentes amigos chegavam no meu celular. Não havia respostas precisas, mas as especulações não eram boas: o acervo de Glauber Rocha estava nesse depósito, assim como toda a documentação da Embrafilme, me diziam. Como ironia do destino, roteiros, arquivos em papel, cópias de filmes e equipamentos do início do século XX que seriam usados na montagem de um museu para contar a história do cinema brasileiro também estavam guardados ali. Fui compreendendo que o desastre poderia ser bem maior do que o que estávamos imaginando a princípio. Enquanto especulávamos o que poderia estar sendo destruído naquele momento, liguei a televisão, que transmitia ao vivo as imagens das labaredas de fogo que subiam além do telhado do prédio. No meio da transmissão, e dessas imagens assustadoras, uma antiga funcionária da Cinemateca interrompeu a entrevista que a repórter realizava com o representante do Corpo de Bombeiros e se direcionou a ele, muito nervosa, dizendo: “por favor, vocês precisam tomar cuidado, a água pode ser tão prejudicial para o acervo quanto o fogo”. Esse alerta mostrava que a situação poderia ser ainda mais dramática. 2. Essa fala me remeteu imediatamente ao artigo “Vestígios do passado”, publicado em 2003 na revista CPDOC 30 anos, por Eduardo Escorel. No texto, o cineasta faz a crítica à falta de uma política de preservação dos arquivos no Brasil, ao sintoma de precariedade à qual a memória audiovisual brasileira está submetida e às dificuldades enfrentadas por aqueles que desejam recorrer às imagens do passado para realizar
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filmes. Em tom melancólico, Escorel lamentava o desaparecimento de diferentes filmes e registros, o que considerava um sintoma da precariedade com que é tratada a memória audiovisual brasileira: “a água, o ar, a terra e o fogo conspiram contra a preservação dos registros audiovisuais (...), o que resta são apenas tênues vestígios do passado, cuja sobrevivência, muitas vezes quase miraculosa, não temos como explicar” (2003, p.45). O cineasta se referia a uma série de tragédias, como incêndios e inundações, que acometeram instituições de preservação audiovisual no Brasil, a partir do século XX. Só o patrimônio resguardado na Cinemateca Brasileira já havia sofrido quatro incêndios, em diferentes prédios que ocupou, nos anos de 1957, 1969, 1982 e 2016. É importante ressaltar que até os anos 1950, as películas eram feitas com nitrato de celulose, material autoinflamável que oferecia riscos no armazenamento. Essa foi a causa de alguns incêndios do passado, mas não é o caso deste último em 2021. Dessa vez o fogo começou em um aparelho de ar condicionado. O prédio estava fechado desde o início da pandemia do coronavírus, os funcionários da Cinemateca tinham sido dispensados, uma empresa terceirizada foi chamada para fazer a manutenção do aparelho e uma faísca teria dado início ao fogo que se alastrou rapidamente. Nove dias antes, o Ministério Público Federal em São Paulo havia alertado o Governo Federal, responsável pela Cinemateca, para o risco de incêndio. Ex-trabalhadores, pesquisadores, Amigos da Cinemateca vinham há meses fazendo o alerta. A tragédia foi anunciada, mas não quiseram ouvir. 3. Quando escreveu o artigo citado acima, Eduardo Escorel estava em busca de imagens que realizou em maio de 1968, no dia do cortejo fúnebre do estudante Edson Luis. Esse material foi considerado perdido e só depois de quarenta anos foi encontrado por acaso, na Cinemateca do MAM-RJ, onde ficou camuflado em uma lata com o nome “Avellar”. Apesar do perfeito estado de conservação das imagens, Eduardo Escorel decidiu transferi-las para a Cinemateca Brasileira, que teria uma melhor estrutura para conservá-las. Hoje, elas estão entre os milhares de filmes, documentos, cartazes, fotografias relativos ao cinema brasileiro trancados na Cinemateca Brasileira e sujeitos a uma nova tragédia. Foram essas imagens realizadas por Eduardo Escorel que deram origem ao meu percurso como pesquisadora. Interessada nas maneiras como esses registros foram produzidos, como sobreviveram, quais os caminhos que percorreram e como foram retomados, fui em busca das pistas deixadas, realizei entrevistas, percorri diferentes acervos, analisei filmes e mapeei uma rota clandestina de imagens que ligava Brasil, Cuba e França durante a ditadura militar brasileira. Descobri que uma cópia do material realizado por Escorel saiu do Brasil, sem ele saber, foi usado em um noticiero do Instituto Cubano de Arte y Industria Cinematográficos (ICAIC) e em dois filmes de Chris Marker, entre os anos 1960/70. Percorrer os arquivos, seguir os caminhos das imagens, descobrir imagens perdidas e estabelecer conexões entre diferentes documentos propiciou o desenvolvimento de uma metodologia de pesquisa que tem incitado procedimentos de busca e reflexão sobre as elaborações de memórias políticas, sociais e culturais no Brasil
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a partir dos arquivos. A proposta é fazer emergir histórias e sujeitos invisibilizados ao longo do tempo, produzir uma nova historiografia do país e do próprio cinema, trazendo o protagonismo para aqueles que normalmente foram colocados à margem das narrativas oficiais. 4. Os diferentes modos de participação das mulheres na resistência à ditadura militar brasileira é um tema que aparece na minha mais recente pesquisa, que foi paralisada por falta de acesso à Cinemateca Brasileira. A pesquisadora Thais Blank e eu temos nos dedicado à coleta, mapeamento e análise de imagens domésticas da ditadura. Entre o material pesquisado, encontramos um filme Super-8 que registra o casamento da militante política Inês Etienne, a única sobrevivente da Casa da Morte de Petrópolis. Inês estava presa na época do casamento, que foi realizado para que a família tornasse pública a informação de que a militante estava viva e corria risco de ser assassinada na prisão. Inês havia denunciado os assassinatos que presenciou e as torturas às quais foi submetida na Casa da Morte. Como um documento nos leva a outro, descobrimos mais um filme, realizado nos anos 1970 por um coletivo feminista na França, que teve como intuito a denúncia da prisão e um pedido de libertação para Inês. O filme foi dirigido pela atriz Delphine Seyrig com a colaboração da atriz Norma Bengell, que, segundo descobrimos, também filmou com uma câmera Super-8 a saída de Inês da prisão, em 1979. Essas imagens raras que pertenciam ao acervo pessoal de Norma estão na Cinemateca Brasileira. Em 4 de maio de 2018, em troca de emails com uma funcionária da instituição, perguntávamos sobre a possibilidade de visionar esse material. Recebemos a seguinte resposta: “Patrícia e Thais, Recebemos seu e-mail e já registramos sua solicitação para acesso ao material. Como lhe adiantei, nossa intenção é iniciar a digitalização da coleção de materiais super-8 do acervo Norma Bengell ainda esse semestre. Estamos dependendo ainda de algumas definições de equipe e máquinas do nosso Laboratório. Assim que conseguirmos programar esse trabalho, retomo o contato com vocês. Parabéns pela bela pesquisa. Um abraço.”
Ainda tínhamos esperanças de ter acesso às imagens amadoras realizadas por Norma Bengell, até que Bolsonaro ganhasse as eleições para ocupar a presidência do país. Entendemos a partir daí que teríamos que ter paciência, mas não poderíamos imaginar que o processo de destruição de toda política do audiovisual seria tão direto e veloz. Não foi possível até agora retomar nossa pesquisa. Até quando?
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5. Quantas pesquisas hoje estão paralisadas no Brasil por causa da falta de acesso à Cinemateca Brasileira e a outros acervos públicos que estão sob a custódia do Estado? Quantos filmes estão deixando de ser feitos por causa da falta de acesso a esses acervos. Até quando? 6. No último dia 7 de outubro a Cinemateca Brasileira completou 75 anos, mas não houve comemoração. A instituição permanece fechada ao público e sem funcionários especializados há 14 meses. As investigações sobre o incêndio de 29 de julho ainda não foram concluídas e a União sequer informou quais materiais foram afetados ou perdidos. É importante lembrar que a Cinemateca, o arquivo nacional de maior volume e responsável pela preservação de grande parte da nossa filmografia, está em risco em consequência direta da negligência do governo Bolsonaro. Em recente audiência pública do edital de chamamento da Organização Social (OS) para a administração da Cinemateca, ficou claro um cenário temeroso: o governo não pretende arcar nem com o suficiente para os custos de manutenção da instituição. Nesse cenário, outros centros de preservação audiovisual correm riscos. É o caso do Centro Técnico do Audiovisual (CTAV), um importante arquivo audiovisual federal localizado no Rio de Janeiro. Toda a equipe de terceirizados do setor de preservação audiovisual foi dispensada e não resta quase nenhum servidor público na instituição. Em recente reportagem publicada no jornal O Globo, a manchete anuncia: “Prédio no Rio que acolhe relíquias do cinema nacional tem até rato caindo do teto”. Rato caindo do teto. Essa descrição não saiu da minha cabeça por noites seguidas. De vez em quando, ainda volta com força. Rato caindo do teto. 7. Algumas semanas depois e ainda abalada com as imagens das labaredas da Cinemateca, tive contato com um filme que desconhecia, realizado em 1974, que trata da complexidade das políticas de memória e preservação dos arquivos audiovisuais brasileiros. Nitrato, de Alain Fresnot, mistura diferentes temporalidades ao retomar imagens de cinejornais e fotogramas de diferentes filmes ao mesmo tempo que investiga, com a câmera inquieta, as latas de filmes, livros, cartazes e fotografias do acervo da Cinemateca espalhados pelo chão do prédio público. Ao longo do filme, ao mesmo tempo que percebemos a riqueza da história do cinema nacional, somos confrontados com a precariedade das condições de manutenção do acervo e do prédio que abrigava a instituição naquela época. A imagem inicial do curta é forte: as películas se contorcem à medida que o fogo consome o nitrato. A música dissonante e as narrações em off vão dando conta da tragédia histórica: relatos dos estragos provocados por incêndios, a censura do Estado Novo, a ausência de uma política cultural do estado, o desinteresse da sociedade são elementos trazidos na leitura dos jornais e em falas de Jean Claude Bernardet e Paulo Emilio Salles Gomes. Essas falas, imagens e sons dão a dimensão do desastre que sempre esteve à espreita, mas também da conjunção de forças para evitá-lo e para reinventar a história da preservação no Brasil. É o amor ao cinema que reúne aqueles que não se cansam de lutar pela Cinemateca Brasileira e pela política dos arquivos brasileiros.
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Como maneira de se inspirar e se engajar nessa luta, sugiro que assistam à conversa “A força de trabalho da Cinemateca Brasileira: história e luta pela preservação audiovisual”, promovida pela ABPA.1 É no relato de funcionários qualificados que ajudaram a construir e a manter a Cinemateca ao longo das últimos décadas que temos que nos apoiar. Conhecer essas experiências, as minúcias do trabalho de preservação, os processos de trabalho dentro da instituição é fundamental para compreender o que é a Cinemateca Brasileira hoje e porque temos que, enquanto sociedade, acreditar e lutar por sua sobrevivência. Tudo isso vai passar. O fogo não é o fim. Escrito em 12 de outubro de 2021. Patrícia Machado é professora do Programa de Pós-Graduação e da graduação do Departamento de Comunicação da PUC-Rio. É doutora em Comunicação e Cultura pela ECO-UFRJ, com estágio na Universidade Université Sorbonne Nouvelle Paris 3. Co-organizadora dos livros Imagens em disputa (ed.7 Letras, 2018) e do e-book Arquivos em movimento (ed.FGV, 2017). Atua no campo da Comunicação, com ênfase em estudos de cinema, memória, arquivos audiovisuais. Referências BLANK, Thais; MACHADO, Patrícia. Musas insubmissas: estudo de Inês (1974), um filme de coletivo sobre uma presa política brasileira. Revista Eco-Pós, v. 23, n. 3, 2020. Acesso em: https://revistaecopos.eco.ufrj.br/eco_pos/article/view/27608 ESCOREL, Eduardo. Vestígios do passado. CPDOC 30 anos / Textos de Célia Camargo... [et al.]. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas/CPDOC, 2003.
1. https://www.youtube.com/watch?v=P170F1bVeTA&t=1s
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Contra o racismo, ocupar espaços CARLOS HENRIQUE DE LIMA
Na última década, o espaço urbano foi transformado pela militância e produção intelectual dos movimentos feminista e negro. Rolê, história dos rolezinhos (Vladimir Seixas, 2021) aborda os repertórios empregados pela juventude negra metropolitana em torno da construção de signos discursivos que nascem nas redes sociais e ganham as ruas. Rolê é um filme que dialoga com Hiato (Vladimir Seixas, 2008), documentário em que o diretor aborda o protesto do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto do Rio de Janeiro em um shopping de alta renda da cidade, realizado em agosto de 2000. A imagem de centenas de pessoas ocupando os corredores e a praça de alimentação daquele espaço colocou policiais e seguranças privados em alerta. Algumas lojas chegaram a baixar as portas diante da cena. A repercussão do ato, a circulação das imagens produzidas no dia, são indicativos de que aquelas pessoas desobedeceram a divisão arbitrária dos corpos que governa nossas cidades. Mas se em Hiato predomina o viés dos conflitos de classe, Rolê traz o problema para o campo de lutas protagonizadas por negras e negros, suas ambições, anseios e expressões de grupo e subjetivas. Afinal, no Brasil urbano, o que essa mexida revela sobre nossas cidades e suas divisões? O que pode apontar sobre as transformações em curso na vida urbana? Os rolezinhos promoveram súbita mudança no movimento e ritmo daqueles de quem se espera que permaneçam nas posições mais baixas e subalternas a todo tempo. Esta posição foi historicamente construída por diversos dispositivos, entre os quais, o urbanismo e suas práticas. Bernado Secchi (2014, p. 21) afirma que, durante a modernização, as cidades se convertem em fonte de inovação dos saberes, da integração social e cultural, onde as diferenças se encontram e trocam as melhores partes de seus próprios conhecimentos em benefício comum; mas tem sido desde sempre governada por uma vasta ação biopolítica por meio da qual governos tentam “garantir e controlar a vida de diferentes populações, incluindo suas distribuições no espaço”. No Brasil, as cidades foram desde sempre máquinas potentes de separação e exclusão, de atividades e profissões, de ricos e pobres, mas sobretudo de negros e brancos. Além dos séculos de hedionda escravização, metrópole e colônia dividiram o espaço do país por décadas, situação que nos exige pensar não só sobre a maneira pela qual os benefícios da urbanização são distribuídos, mas sobre quais ações e projetos convergem para promover todo tipo de segregação. Exemplos não faltam: a dinâmica fundiária no Porto do Rio de Janeiro, controlada pelas ordens religiosas, utilizando mão de obra não remunerada e privando escravizados e seus
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descendentes do acesso aos bens que produziam (FRIDMAN, 1999); os anos de serviço compulsório que milhares de pessoas tiveram que enfrentar após a manumissão, prestando serviços em obras públicas ou a empreendedores (MAMIGONIAN, 2017); a construção do lazareto da Gamboa, um flagrante caso de colaboração permissiva entre poder público e agentes privados (GONÇALVES; COSTA, 2020). Esse quadro de privação material é completado pela proliferação do controle e das coerções que afetaram diretamente as formas e possibilidades de negros e negras circularem em espaços públicos. Com efeito, a população negra elaborou interações fragmentadas e muito distendidas com o espaço urbano, em que redes de solidariedade e luta se sintonizaram por meio de um modo heterogêneo – mas articulado – de estar nas ruas, ocupá-las. Algumas revoltas, greves e levantes negros caracterizam esse desacordo e, por seu ineditismo, desestabilizam os mecanismos de coerção com grande inteligência. Em 1857, escravos de ganho e negros livres paralisaram a cidade de Salvador por dez dias, uma greve original que impôs dificuldade aos poderes: como reprimir um movimento que não estava ocupando as ruas, bloqueando as ruas, mas invertendo a lógica de ocupação de espaços por seus participantes serem protagonistas das principais funções urbanas (REIS, 2019)? Os rolezinhos driblaram a lógica do conflito capital-trabalho que predomina nas chaves explicativas dos fenômenos de segregação urbana no Brasil. Em 2014, ano de seu surgimento, cidades brasileiras experimentavam um ciclo de desenvolvimento marcado por obras de infraestrutura, incremento do setor de serviços, o que resultou em uma situação de pleno emprego. Os rolezinhos não partem de demanda reivindicatória previamente formulada; ao que parece, são expressões coletivas imbuídas por sentido de pertencimento e usufruto de espaços públicos dos quais os sujeitos foram historicamente privados. Em Rolê, acompanhamos as memórias e experiências de Thayná Trindade, Jefferson Luis e Priscila Rezende, que enfrentaram situações de racismo durante ocupações em shoppings – e as vivem cotidianamente. Ainda que assuma a perspectiva dos manifestantes, deixando clara sua identificação e posicionamento, o diretor constrói uma montagem que não simplifica as personagens em sua agência, mas procura apresentá-las em seus desejos presentes e na imaginação futura. A vida das personagens é toda atravessada por pequenas agressões que impossibilitam qualquer teoria da mudança que se esquiva de enfrentar a violência que satura o cotidiano de negras e negros, que “espalha suas gavinhas por todo o corpo, sufoca a comunidade, e se expande, intensifica, e se transmuta [...]” incessantemente (WILDERSON, 2021, p. 248). Em uma passagem, a câmera de Seixas focaliza os rostos de trabalhadoras das lojas. Ouvimos a voz em off de um homem afirmando que ninguém mandou o gerente “olhar a gente de cara feia.” O desprezo daquelas expressões é anterior, arraigado. A expressão de desprezo ou pânico impressa naqueles não é contingente, não se manifesta apenas diante de transgressões contra normas e proibições regulatórias no corpo social, mas é “disparada por catalisadores pré-lógicos” que não respondem a mudanças históricas (idem.). De outra forma, o que explicaria o soco que Jefferson Luís, um dos protagonistas do movimento, relata ter sofrido de
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um Policial Militar no caminho de casa? O que justifica a recorrência com a qual as mulheres negras relatam, no filme, serem confundidas com faxineiras por interlocutoras que não têm qualquer outra informação a seu respeito além da cor da pele? Rolê é uma obra que deixa entrever as formas pelas quais a cultura está no corpo de dinâmicas políticas formadas em forte articulação com o espaço urbano. Nesses ambientes de privação de direito e violência constante, jovens parecem cada vez mais conscientes da importância que é produzir imagens e criar referências compartilháveis, permitindo falar para muito além de sua vizinhança, despertando consciências diante as repressões que sofrem. É o caso da performance Bombril em que Priscila Rezende e um grupo de mulheres negras esfregam peças de alumínio contra os cabelos em um shopping de Niterói, enquanto são observadas com ar de incredulidade e incompreensão. É uma luta histórica, imagética e material forjada no caldo da cultura negra, jovem e urbana. O filme traz memória a João Alberto Silveira Freitas, brutalmente assassinado em uma loja do Carrefour de Porto Alegre, em 20 de novembro de 2020, Dia da Consciência Negra. Aliás, as reações que provocou em cidades do país diferem dos rolezinhos em caráter e táticas de aparecimento. É sobretudo na concretude das relações que Rolê faz a história de movimento e do que não muda: o racismo que estrutura todas as nossas relações. Carlos Henrique de Lima é arquiteto e urbanista (FAU-UnB, 2006); Doutor em Urbanismo (PROURB-UFRJ, 2016) e professor do Departamento de Teoria e História da FAUUnB desde 2016. Referências ECCHI, Bernardo. A Tradição Européia do Planejamento: Culturas e Políticas. In RIBEIRO,Elane; et. al (orgs). Tempos e Escalas da Cidade e do Urbanismo: quatro palestras. Brasília: FAU-UnB, 2014, p. 13-24. FRIDMAN, Fania. Donos do Rio em Nome do Rei: uma história fundiária da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond, 1999. GONÇALVES, Guilherme L; COSTA, Sérgio. Um porto no capitalismo global: desvendando a acumulação entrelaçada no Rio de Janeiro. São Paulo: Boitempo, 2020. MAMIGONIAN, B. Africanos livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. REIS, João José. Ganhadores: a greve negra de 1857 na Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. WILDERSON III, Frank B. Afropessimismo. São Paulo: Todavia, 2021
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Há sempre uma árvore que somos nós – considerações sobre saúde, território e doença a partir dos filmes Yãy tu nũnãhã payexop encontro de pajés e Nhe’ẽ kuery jogueru teri - Nossos espíritos seguem chegando1 ANA CARVALHO e MARIA SILVANETE LERMEN
“Na cultura de nossos povos, a despeito da história contraditória da colonização, marcadamente genocida, estes corpos, estes povos, se expressam no sentido de que a terra é saúde. Uma questão fundamental para ter saúde é viver na terra. Saúde vem do alimento, da água de boa qualidade, de um estado e de uma disposição social de produzir saúde. A saúde é produzida coletivamente pela comunidade, dentro dos corpos. É tão maravilhosa essa compreensão da saúde como produção de vida!” Ailton Krenak2 “Não são apenas os índios, mas também os brancos, que estão ameaçados pela cobiça de ouro e pelas epidemias introduzidas por estes últimos. Todos serão arrastados pela mesma catástrofe, a não ser que se compreenda que o respeito pelo outro é a condição de sobrevivência de cada um.” Claude Lévi-Strauss3
1. Texto editado a partir de conversas telefônicas e troca de mensagens entre as autoras à luz dos filmes citados, dos encontros do Ciclo de Leitura Selvagem: Mulheres, Plantas e Cura (selvagemciclo.com.br) e da conferência de Ailton Krenak na aula inaugural do Mestrado Profissional em Saúde das Populações Negras e Indígenas, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB, 2021. 2. Aula inaugural do Mestrado Profissional em Saúde das Populações Negras e Indígenas, 2021. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=ql7q6AEr6tE&t=4465s 3. LÉVI-STRAUSS, Claude. Présentation. In: Chroniques d’une Conquêt, Ethnies. In ALBERT, Bruce; KOPENAWA, Davi. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Cia da Letras, 2015.
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“Nós, xamãs, dizemos apenas que protegemos a natureza por inteiro. Defendemos suas árvores, seus morros, suas montanhas e seus rios; seus peixes, animais, espíritos xapiri e habitantes humanos. Defendemos inclusive, para além dela, a terra dos brancos e todos que nela vivem. Essas são as palavras de nossos espíritos e as nossas.” Davi Kopenawa4
1. Cantar, dançar e banhar - Dois filmes são realizados no contexto de uma pandemia. Não por acaso há neles a presença do canto, da dança e do banho como ritual de cura e proteção. Cantam os yamiy através da escuridão para espantar as coisas ruins. Dançam os pajés no pátio da aldeia nova, o seu ritual verdadeiro para manter o seu povo alegre e forte. Banha-se a mulher grávida com raminhos de alecrim e jaborandi para ter um sono bom, para proteger a si mesma e ao seu bebê dos espíritos ruins que visitam os sonhos à noite. Haveria ainda o canto, a dança e o banho mesmo em tempos mais serenados. Afinal é assim que se produz saúde, alegria e vida entre os indígenas e as comunidades tradicionais. É isso, afinal, o que fazem os pajés, os curandeiros, as benzedeiras, as avós: sopram, banham, cantam e benzem – alimentam e cuidam dos corpos, dos espíritos e da terra para restituir a condição de saúde de uma pessoa, de um povo e de um território. 2. O esgotamento do mundo e o maravilhamento da vida - Enquanto preparam o reviro, aquecidas pelo fogo e pelo mate, Para Yxapy, sua mãe e sua sogra conversam. Estamos nos primeiros meses da pandemia e Yxapy se questiona sobre a chegada de sua criança em meio à doença. É sua mãe quem diz: “Para mim [essa doença] é resultado da vida dos brancos. Tudo isso acontece por eles serem mesquinhos. Querem tudo só para os ricos sobreviverem. Não acho que é castigo dos Nhanderu. Se eles seguem enviando crianças para nós mbya. Porque seguem chegando crianças.” Elza, sua sogra, completa: “Se fosse um castigo não enviariam mais. Por isso não devemos entrar em pânico. Temos que nos deixar conduzir pelos Nhanderu. Mas não podemos ignorar essa doença. Ficar circulando pela cidade.” (Nossos espíritos seguem chegando, Kuaray Poty/Ariel Ortega e Bruno Huyer, 2020). Numa conferência sobre saúde dos povos indígenas e tradicionais, Ailton Krenak reivindica uma saúde de alteridade, não racista, não preconceituosa, que não vai impor a alguém ou a algum grupo uma prática sanitária alienígena a um território. Mas uma prática que garanta a oportunidade de uma comunidade de viver em liberdade, sem ser submetida a constantes violências, que entenda a vida como dádiva, o mundo como maravilhamento, produtor de saúde e alegria. Em ressonância com Elza, afirma: “Existem plantas que produzem banhos, chás que vão tirar do corpo a possibilidade de um contágio, porém, nesse tempo de pandemia seria desaconselhável pedir a uma pessoa que evite a Covid tomando apenas chás e banhos. Um risco pandêmico não se limita àquele corpo, àquela comunidade, 4. ALBERT, Bruce; KOPENAWA, Davi. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Cia da Letras, 2015.
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ele está em relação a um social amplo.”5 Para as doenças vindas de fora – como as grandes epidemias dos primeiros contatos e a pandemia que assola nosso tempo – e que refletem essa violência histórica contra os povos indígenas e tradicionais, existem os procedimentos e cuidados dos brancos, sem, no entanto, deixar de ouvir seus deuses e espíritos e cantar com eles. 3. Toda medicina é natureza - O embate entre a ciência dos povos tradicionais e a ciência dos brancos é algo que não deveria existir. Nós, enquanto seres, habitamos a mesma terra. A ciência do laboratório só existe porque anterior a ela existe a ciência dos povos, da terra, da natureza. A saúde e a cura estão na terra, no alimento. Se temos uma terra boa, temos abundância, temos saúde e temos vida. Neste sentido, quando olho para estes dois filmes, penso nessa pouca distância entre nós [comunidades tradicionais] e eles [os indígenas]. Quando vemos os Tikmu’ún-Maxakali, pensamos em nós mesmos. Quando vemos três mulheres ao redor do fogo também pensamos em nós mesmos. Quando vemos uma mulher que se banha e faz um pré-natal no posto de saúde indígena, também aí vemos a nós mesmos. Nossas dificuldades e nossas lutas são as mesmas: a questão da terra, a pressão sobre nossa pertença e identidade – a gente luta dia e noite para que nossos filhos cresçam com terra, com água boa, com abundância. Essa é a condição de nossa saúde e nossa sobrevivência. Nossa e de toda a humanidade. Não queremos dizer com isso que somos iguais, porque cada povo, cada território traz uma história, um jeito próprio de estar no mundo, mas se não pensarmos nessa casa, a mãe-terra, como um espaço de morada comum, nosso, enquanto seres seguiremos ameaçados pela nossa própria existência. Precisamos pensar a mata, a floresta, a caatinga, o sertão, os territórios, como espaços de existência, de resistência e de cura coletiva. 4. Aprender com a avó, os pajés e o primeiro sol - Existe um repertório imenso de saberes e práticas envolvidos nos procedimentos de cuidado e cura nessas comunidades. É no pátio das aldeias, nos roçados, nas casas de reza, nos quintais e ao redor do fogo, onde esses saberes são transmitidos e reafirmados. Não se trata de negar um conhecimento em detrimento de outro, mas de destronar um pensamento hegemônico que se quer único e inquestionável, uma indústria que busca fazer desaparecer seu vínculo com os conhecimentos tradicionais. Citando mais uma vez Krenak: “... o não reconhecimento destes saberes produz aberrações. Como achar que a literatura médica fala mais verdade do que aprender com a avó, em casa, na sua comunidade?”6 Não se trata, no entanto, de deslegitimar a ciência dos laboratórios, dos médicos e pesquisadores, ao contrário, trata-se de afirmar essa ciência em convivência e confluência com outros saberes e práticas 5. Aula inaugural do Mestrado Profissional em Saúde das Populações Negras e Indígenas, 2021. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=ql7q6AEr6tE&t=4465s 6. Aula inaugural do Mestrado Profissional em saúde das Populações Negras e Indígenas,2021. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=ql7q6AEr6tE&t=4465s
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de saúde e cuidado. É saber que uma substância sintética deriva da raiz de uma planta, de um tecido animal, da casca de uma árvore. É levar em consideração que os saberes sobre os matos de cura, as medicinas da floresta, são conhecimentos fundados em observações, pesquisas, usos e aplicações cotidianas, passados de geração em geração por séculos. São documentos da identidade e do conhecimento de um povo, saberes que criam laços, nutrem espíritos e corpos, produzem “sentido de vida”,7 acalentam o sono e guardam os sonhos bons. Quando Yxapy acorda pela manhã e desperta seu bebê com as belas palavras guarani e o calor de Nhamandu, ela está produzindo vida nessa “terra em que tudo falece. Com tantas coisas ruins acontecendo, os pais e mães de nossos espíritos estão lhe assentando. Você deve estar vindo para me ensinar a te cuidar bem. E que assim nos levantemos todos os dias.” Aprender a cuidar e a ser cuidado pela mãe, as avós e os espíritos. Cantar e dançar com eles, banhar na primeira luz da manhã uma criança por vir, banhar-se no rio da aldeia nova com as mulheres, as crianças e os pajés. O ritual como cuidado, resistência e enfrentamento. 5. Retomar a vida na terra - Volto novamente aos filmes e penso mais uma vez sobre território e pertencimento. Como a espoliação de nossos territórios tradicionais vem ceifando vidas, restringindo nossas terras, constrangendo nossos saberes, nos adoecendo e exterminando. E como se faz necessário a todos nós, pretos, indígenas e, sobretudo, os brancos, fazermos este processo de retomada, de reconstruirmos nossas identidades e territórios num esforço coletivo de manutenção da vida, de retomada da vida no planeta, respeitando e convivendo com nossas diferenças, num gesto coletivo de reconstrução da mãe-terra. Sinto que estamos perdendo nossa identidade a galope quando, entre tantas vozes, não posso mais identificar a mensagem dos espíritos da cura. Para compreender precisamos que o nosso corpo, mente e alma estejam desintoxicados de todos aqueles e tudo aquilo que perderam o compromisso com a vida. A maior escuridão acontece quando não consigo ouvir as vozes dos nossos espíritos que são nossos guias. Espíritos das sementes, da cura, da fartura, dos saberes e fazeres. Acredito que nossa resistência está na união dos territórios com o reavivamento das pajelanças, dos rituais, das celebrações do plantio e da colheita, do nascimento de uma vida. Precisamos semear para florescer o desabrochar da vida e fazer verdejar e crescer o manto sagrado das matas e florestas que cobrem nosso planeta. 6. Há sempre uma árvore que somos nós - Por fim, seria importante dizer ainda dessa necessidade de fazermos o caminho de volta pra casa. Cada um de nós, individual e coletivamente, tem uma forma de pertença, de pensamento, de estar no mundo. 7. Aula inaugural do Mestrado Profissional em Saúde das Populações Negras e Indígenas, 2021. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=ql7q6AEr6tE&t=4465s
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Minha história é também a história de minha mãe e da mãe de minha mãe, a memória da casa e a memória coletiva do território onde ela habitava. Gerar uma criança e cuidar dela é voltar pra casa, mirar o passado para construir um futuro. Voltar pra casa é nutrir-se de amor e sabedoria, é buscar o cheiro que nos remete a este primeiro habitar na terra. Qual a árvore, qual o mato, qual a planta que carrega este cheiro, que nos faz pertencer? A busca por este cheiro reaviva em nós a mata que habitamos e que nos habita, o pertencimento a um lugar, uma comunidade, uma tradição. Há sempre uma árvore que somos nós. Quando encontramos essa árvore, ela somos nós na mata. Assim o sentido da vida se renova. Maria Silvanete Lermen é educadora popular, orientadora em saúde comunitária, benzedeira de mãos postas, orientadora de portais ancestrais, agroflorestora, praticante e pesquisadora das vivências dos povos. Vive na Serra dos Paus Dóias, Exu, Sertão do Araripe/PE. Ana Carvalho é artista, documentarista e técnica em agroecologia. Trabalha junto a povos indígenas e comunidades tradicionais no desenvolvimento de projetos culturais de criação compartilhada nos campos das artes visuais, cinema e patrimônio imaterial. Desenvolve pesquisa em saúde popular e roçados ameríndios. Vive em Paudalho, Zona da Mata Norte/PE.
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Percursos de cuidado PRISCILA MIRAZ DE FREITAS GRECCO Vamos seguir, Reinventar o espaço, Juntos manter o passo Não ter cansaço, não crer no fim O fim do amor oh não, Alguma dor talvez sim Que a luz nasce da escuridão Gilberto Gil1
Elixir (Marina Sandim e Lucas Campolina, 2021) é um pequeno poema em movimento. Corteversos em montagem precisa na tênue fronteira do que pode ser dito e do que deve ser preservado como mistério na intensa criação do cotidiano, do viver comum. O tempo vivido por quatro pessoas (uma em gestação) no espaço delimitado da casa durante o isolamento pela covid-19, é redimensionado pelos gestos que pontuam os corteversos, movimentos que estabelecem o trânsito entre o que se vê pela janela e o que se cria dentro da casa. Sentimos o tempo em gira que começa quando somos recepcionadas pelos sons uterinos e entramos pelas sombras das plantas refletidas nas janelas durante a noite calma, durante o repouso embalado pela proteção de Exú, e que se interrompe com a porta entreaberta ao trânsito por vir pela porta guardada por Ogum. O tempo do entre é o tempo redefinido pelos gestos de cuidado, é o dormir junto e cantar pra embalar o onírico dos desenhos infantis, é limpar o chão, movimentar o corpo que gesta, molhar as plantas, cozinhar com fogo alto à luz de velas e ervas e ir até o mato, levar o corpo que espera até a terra – apresentar o cheiro da terra, deslizar os caminhos da terra, criar a fenda, a passagem. É criar estratégias pro amor em ação, que é território ancestral, que é capaz de curar as dores do nosso estado de colonialidade. É preciso lembrar a artista macumbeira Castiel Vitorino Brasileiro: “O Tempo da cura não é da colonialidade” (BRASILEIRO, 2019, p. 13). É preciso devolver ao amor seu estado de ação, fazer o amor desaprender a romantização a que foi condicionado para ser espaço de captura, triste e esvaziado das formas eletivas de criar saúde a partir do viver comum (REVIGNET, 2021, p. 43). Então o espaço do entre é também o espaço que problematiza uma ideia de 1. Trecho da música “Deixar você”, do álbum de Gilberto Gil Um Banda Um, produzido por Liminha e gravado pela Emi-Odeon, em 1982.
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família como núcleo que serve à conservação da estrutura de colonialidade de um Estado doente. Entranhada à produção de saúde e cuidado dos corpos individuais e coletivos, está a necessidade de nos entendermos como pertencentes ao mundo, e que modos próprios de existir fabulam esse pertencimento a partir de seus lugares de conhecimento e de ação, e que isso deve ser o guia contra as políticas de adoecimento e morte, como faz em sua obra Amarração (2020) a artista plástica goiana Hariel Revignet, quando fala e age a partir de suas práticas autobiogeográficas, “É preciso reconhecermos nosso passado ancestral para sabermos projetar futuros possíveis. Somos as ancestrais do futuro, e para reexistirmos no agora é preciso reconfigurar nossa realidade” (REVIGNET, 2021, p. 44). Elixir é também o quarto do curandeiro que se atualiza quando constrói sua “Axétetura”.2 E talvez a resposta que podemos dar a Raul quando lê em voz alta a palavra elixir e pergunta o que é isso?, seja que elixir são substâncias aromáticas que misturamos quando é preciso restaurar os corpos, é sortílego, é filtro e permissão da vida pela via coletiva-afetiva, que sempre precisará ser preparado uma e outra vez, sempre que necessário. Essa axétetura, essa amarração que conecta o chão ao estar vivendo nele em sua conjugação de tempos pra além do tempo, de um tempo que não se diz, mas que se presentifica em histórias, em memórias e assim se ouve em vozes ondulantes e gestos em cores, é o poema em fluxo cantado de Latcho Drom (Tony Gatlif, 1997). Poesia é uma das formas como Gatlif se refere a seus filmes: poesias provocadas pela vida que criam uma estética do cotidiano dos exilados do mundo (CICHOWICZ, 2018, p. 24). E novamente, por vias distintas, o tempo entra em gira e se apresenta como empuxo que nos impulsiona e nos mostra alguns caminhos dos mapas invertidos dessa terra. Em Latcho Drom somos inseridos no percurso que será apresentado por uma narração em off: “Do Noroeste da Índia, há cerca de 1000 anos atrás, por razões ainda desconhecidas, os ciganos percorreram as estradas da Europa, do Egito, do Norte da África. Durante essa longa viagem para além das fronteiras da Índia, os termos gitan, halab, tzigane, bohémien, gipsy, ciganos… foram dados ao povo Romani”. Está posta a violência do poder de nomear o diferente e criar a partir daí a redução que carrega o peso homogeneizador, estereotipado e racista direcionado aos grupos dos Calon, Rom, Sinti, Manuches (FERRARI, 2005, p. 81), e ainda para as subdivisões desses grupos como os Rom-kalderash (CICHOWICZ, 2018, p. 17). Em vários momentos essas violências estão pontuadas no filme de Gatlif, como a referência ao extermínio em massa de ciganos durante o nazismo, a expulsão dos grupos que ocupavam um terreno ou prédios abandonados nas periferias das cidades.3 A última cena é profunda nesse sentido: uma mulher e um adolescente sozinhos no alto de 2. Axétetura é um conceito e uma metodologia em arquitetura, criada pela artista Hariel Revignet (REVIGNET, 2021, p. 45). 3. A pesquisadora Caterina Alessandra Rea (UNILAB), que se dedica a pensar a pós-colonialidade e epstemologias não-hegemônicas, discute, em seu artigo “Feminismo, transnacionalidade e intersecção: o caso da constituição do feminismo cigano”, como na atualidade vêm se constituindo e desenvolvendo movimentos sociais ciganos com o objetivo de problematizar a condição de subalternização, marginalização e violências às quais são submetidos os grupos ciganos no mundo. Segundo a autora, a maior dificuldade desse movimento consiste na elaboração de estratégias políticas para “a promoção de políticas públicas voltadas à inclusão e à cidadania” dos romis (REA, 2018, p. 235-236).
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um morro olham a cidade no horizonte enquanto ela canta um flamenco: “Por que me cospem na cara?/ por ser eu morena e cigana?” Existe no filme de Gatlif um protagonismo do corpo que carrega inscrito em seus gestos e em suas peles as memórias do pertencer ao mundo com uma alegria consciente de si que se transformam em imagens de corpos em dança e de sonoridades que nos atingem também no corpo, pela vibração – a composição das imagens criadas pela poética do cotidiano é tátil, vibrátil e materializa afecções dos corpos humanos, animais, vegetais em relação simbiótica de pertencimento ao presente do mundo, arquivo dos corpos. Os dois filmes, através de abordagens diferentes, permitem o acesso a redesenhos do mundo, o que seria uma busca pela plenitude da vida em sua carga de potência de criação de formas éticas postas pelas diferentes experiências no mundo, em uma mistura de ações com vontades políticas que são os ossos das criações estéticas, a matéria com a qual podemos construir caminhos que rumem para o pluriverso. Priscila Miraz de Freitas Grecco é professora de História da Arte do curso de Artes Visuais da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Coordenadora do Projeto de Pesquisa “Ahora ponemos el mapa al revés: história da arte contemporânea desde a América Latina” e do Grupo de Estudos História da Arte e Gênero.
Referências ACOSTA, Alberto. O bem viver. Uma oportunidade para imaginar outros mundos. Trad. Tadeu Breda. São Paulo: Elefante, 2016. BRASILEIRO, Castiel Vitorino. Quando eu encontro vocês: macumbas de travesti, feitiços de bixa. Vitória: Editora Aurora, 2019. CICHOWICZ, Ana Paula Casagrande. “A câmera é um corpo vivo”: política e poética nos filmes de Tony Gatlif. 2018. 353 fls. Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2018. FERRARI, Florencia. Palavra cigana. Seis contos nômades. São Paulo: Cosac Naify, 2005. OLIVEIRA, Joana Cabral de. et. al. (Orgs.). Vozes Vegetais: diversidade, resistências e histórias da floresta. São Paulo: UBU, 2020. REA, Caterina Alessandra. Feminismo, transnacionalidade e intersecção: o caso da constituição do feminismo cigano. In: GROSSI, Mirian Pillar; BONETTI, Aline de Lima (Org.). Caminhos feministas no Brasil. Teorias e movimentos sociais. Florianópolis: Tribo da Ilha, 2018. REVIGNET, Hariel. Amarração. In: Juchari Palabra. 3ª Edição de setembro de 2021, p. 43-45.
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Do ritmo do outro aos muitos, um corpo para o cinema FÓRUM NICARÁGUA1
Em um encontro na UFRJ, organizado pelo grupo de trabalho Cinema, estética e política, durante a Socine de 2007, o cineasta Andrea Tonacci falou sobre seus filmes, alguns inacabados, com indígenas. Nesta palestra, uma bela formulação de Tonacci insiste nos trabalhos que viemos a fazer anos depois. “A dificuldade do documentarista é andar no ritmo do outro.” Ao falar dessa dificuldade, Tonacci abre o trabalho do cineasta para dois desafios. O primeiro é o desafio de perceber e acompanhar um ritmo, um movimento, um fazer ou um passeio que não é seu. O cineasta é aquele que acompanha. Esse lugar do cineasta que faz trajetos nos indica que entre ele e o outro há um mundo, um socius, uma rua ou outras pessoas que aparecem nesse movimento. Acompanhar é então entrar em um movimento em que o acaso e os esbarrões vêm compor a cena. O segundo desafio do documentarista, que podemos desdobrar da formulação do cineasta, é que para andar no ritmo do outro é preciso ter um corpo para tal. Mais que um corpo para andar, um corpo que não se quebre na relação com o ritmo do outro, que se autorize os esbarrões, que suporte emprestar o seu ritmo ao ritmo do outro. Ter um corpo para acompanhar: não é outro o desafio quando pensamos os trabalhos do cinema em grupos clínicos. Antes de falar desse corpo, tentemos desdobrar esse acompanhamento. Fábio Araújo, em seu belo livro Passeio esquizo pelo acompanhamento terapêutico, nos dá uma pista para fazermos essa conexão entre a clínica, o acompanhamento e os grupos, afirmando que o acompanhamento terapêutico é “o modos operandi da própria clínica, ou seja, o acompanhamento terapêutico está presente em qualquer lugar onde a clínica se dê” (ARAÚJO, 2007, p. 20). Quando semanalmente encontramos um grupo heterogêneo que se reúne para criar com os meios do cinema, sem que isso tenha um objetivo profissional nem mesmo o objetivo de um filme, há algo que é central nesses encontros: os processos criativos. São esses processos que os grupos e os trabalhadores neles envolvidos acompanham. Processos criativos que podemos entender como a possibilidade de produção de materialidades ligadas às artes – um plano, uma foto, um som – mas, 1. O ensaio é assinado por Fórum Nicarágua. Compõe o Fórum nesse artigo: Cezar Migliorin, Iulik Lomba de Farias e Viviane Cid.
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também, como necessários para a produção de si – um encontro, uma percepção, uma escuta. Trata-se então de pensarmos o grupo e os trabalhadores como acompanhantes de processos subjetivos que, por conta das condições dadas pelo cinema de grupo, estão a inventar novas paisagens. Dito de outra maneira, acompanhamos processos criativos de sujeitos e grupos, e esses são inevitavelmente desestabilizadores. Processos que apontam para instabilidades relativas a certos modos de percepção do mundo e, certamente, de si. Como sabemos, uma alteração nas formas de ver e sentir é uma alteração no que somos, nas formas de ver e sentir a si mesmo. Se a dificuldade do documentarista é andar no ritmo do outro, a dificuldade de um clínico em um cinema de grupo não é diferente. Quando um participante de um grupo está na rua fazendo um plano ou conversando com alguém, ele sabe que aquela imagem será vista pelo grupo, será acolhida – mesmo que nos grupos não identifiquemos os autores dos dispositivos. Ele sabe que o grupo se forja a cada encontro como um território que recebe esses processos desviantes intrínsecos à criação. Os trabalhadores do grupo podem assim ser pensados como aqueles que sustentam o grupo como território para que esse andar de cada acompanhante possa acontecer, para que a cada encontro um novo trajeto de experimentação seja proposto, para que um acontecimento seja possível nas invenções e esbarrões que a própria criação cinematográfica permite que sejam possíveis para aqueles que se põem sob o risco da criação. Podemos agora desdobrar a formulação de Tonacci afirmando que o problema do clínico de grupo é andar no ritmo do outro (em devir). Se esse é o desafio, que corpo é este capaz de acompanhar? Como nos lembra Deleuze, antes de perguntarmos o que fazer, talvez devêssemos nos perguntar se temos um corpo para tal. Ter corpo para o que não se sabe, não se prevê, para o que não se explica. Corpo que sustenta as desestabilizações com o outro e sensibiliza-se na prática processual do encontro, que deixa passar algo para que a clínica se dê enquanto acontecimento. A clínica-acontecimento, como abertura intensiva, instaura outra temporalidade e espacialidade por ser disruptiva e irruptiva, e, por cuja potência, acionar o processo de devir (ARAÚJO, 2007). Cabe ao corpo que acompanha garantir os dispositivos que viabilizam o onde e o como das desestabilizações e irrupções dessas potencialidades. No cinema de grupo, o corpo acompanhante não é o especialista. Não precisa saber o que fazer, apenas deixar passar o que acontece quando todos estão envoltos no fazer-ver-junto mobilizados por imagens e sons. Cada participante, ao ser convocado a fotografar mobilizado pelas cores e texturas ao seu redor, por exemplo, tem sua semana atravessada pelo grupo. E quando cada um devolve ao grupo, em anonimato, as imagens realizadas que são vistas coletivamente, estas se juntam e se afetam à revelia de qualquer intenção individual. Assim, as imagens e sons dos grupos compõem, junto com o acaso, cada encontro. A ordem aleatória das projeções, os comentários ou silêncios que se tecem ao longo do ver junto, o que foi escolhido para ser enquadrado e até o que não aparece nas imagens ou sons, vão costurando possibilidades que, por escaparem de cada um, tecem um comum. Não há técnica que nos assegure diante da singularidade do que vai chegar e nem sistema de coordenadas de ação previamente definidos que dê conta. O corpo do acompanhante
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se prepara para ser condutor das passagens dos processos subjetivos dos quais o cinema e o grupo são dispositivos. Não há cartilha, apenas sensibilização no ato de acompanhar. O corpo que acompanha é convocado a se reconfigurar continuamente pelo cinema de grupo. Este corpo nunca está finalizado, funcionalizado ou sequer é externo ao encontro. Somente tendo passagem na experiência de grupo é que este corpo fabrica-se. Ser acompanhado para acompanhar. Assim, grupo e cinema também são territórios para composição deste corpo, e não somente possibilidade de ser acompanhado. É dentro desta experiência que corpo que acompanha e corpo acompanhado são indiscerníveis. Compor corpo capaz de acolher a angústia ligada ao exercício do não controle, de nem sequer saber como agir e desapegar-se dos objetivos finais. Quando acompanhamos processos criativos não nos pautamos pela obra, planejamento fixo ou externo ao grupo, cada encontro dará o tom desse acompanhar. Nenhum dispositivo ou gesto devem estar previamente no roteiro. Não é aula, curso ou projeto. É algo que se tece com certa calmaria necessária à escuta das sutilezas, e que sinta que todo o processo é, ao mesmo tempo, frágil e avassalador diante da hermética unidade do eu e das estruturações já dadas. Corpo que se equilibra entre as intervenções imbricadas nas imprevisibilidades. E percebe que não se trata dos grandiosos fatos, mas sim de pequenos e inexplicáveis detalhes que nunca nos dão certeza do que está acontecendo, nos deixando apenas com a sensação de que algo está passando e que não devemos interromper sua passagem. Para acompanhar processos criativos dos quais não dominamos suas reverberações, é preciso um corpo disponível ao encontro, capaz de sentir quando algo acontece e sensível à sua capacidade de afetação. Andar no ritmo do outro versa sobre preparar um corpo capaz de perder sua própria passada e seguir caminhando sem um percurso delimitado. Ou seja, capaz de vaguear. Não há garantias, apenas a possibilidade de inventar outra passada que faz emergir o terreno caminhado. Vagar é cúmplice do acaso. Tal como traça Deligny (2015), é o movimento do corpo aracniano que garante a vulnerabilidade e se mantém à espreita para que dessa cumplicidade algo inicial possa ser tramado junto ao que nos escapa. Dessa trama se sustentará o risco da criação que viabiliza outros modos de existências. Vaguear e, assim, cartografar pelas aberturas do construir-se no mundo com o outro. Do corpo aracniano do acompanhante é necessário lançar o primeiro fio, disparando a trama que logo se desdobrará no tecer da rede. Mas este primeiro fio disparado não é dependente do corpo deste trabalhador, e nem possui destino. Já que, uma vez lançado, se acopla no imprevisível e, após a rede tecida, perde sua necessidade. Esse gesto inicial se faz a partir das proposições dos dispositivos de imagens e sons, e a tecedura da rede se fará mobilizada por este fazer e ver junto. Assim, a rede não está subordinada ao corpo do acompanhante, este apenas garante que algo seja tramado. Talvez restará ao corpo do trabalhador relançar esse primeiro gesto para continuar fomentando a trança da rede que deve ser um contínuo para que se faça grupo-território de experimentações. Este corpo não perde a passada por si mesmo. Uma triangulação se faz importante na relação nós-mundo para tornar tudo plástico às reconfigurações disparadas pela passada do outro. O cinema de grupo surge como aquilo que consegue afinar as
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passadas enquanto mantemos suas singularidades. Aqui, cinema possibilita a lacuna entre nós e as territorialidades já edificadas e saturadas de significados. Manter essa brecha é sustentar as passadas para os possíveis, já que não é nas certezas que os possíveis nos encontram. Podemos sustentar as incertezas das experimentações quando o cinema, como fazer-junto, se faz combustível de encontro: ponto frágil e impreciso, por onde nossos pés podem tocar territórios outros. Entre as imagens e os sons, esses territórios são como campos intensivos de criação que produzem um co-habitar, uma espécie de ontologia do sensível compartilhada por aqueles que do grupo são as partes. Partes que fazem corpo para além dos corpos dos sujeitos, e que se intensificam e se exasperam mutuamente a cada encontro. Corpo que se fabrica atravessado pela criação do outro, pelo que não lhe pertence, pelo que não se é. Um corpo que acopla intensidades, durações e potências mais como escalas de um mapa dobrável, do que como um conjunto de subjetividades individuadas. Em grupo e com o cinema podemos fazer da foto da garça nossos olhos diante do assombro, para ver além da poça d’água e seu chorume, o mundo das bactérias; ou escutar como as formigas que vagam sobre a mesa o estilhar da pedra de gelo ao tocar com violência o copo de vidro; ou ainda comer com algumas lagartas um banquete formidável de folhas para devir-outro, para experimentar corpos. Transindividual, transsituacional, transperspectivo e mais que não sabemos; por hora rede e acontecimento, cinema de grupo. Andar no ritmo do outro, dizia Tonacci. E assim inventar uma abertura para uma infinidade de ritmos que não estão mais em um ou em outro, mas no atravessamento entre muitos, que não cessa de convocar novos outros, próprios aos processos de criação. Cezar Migliorin é psicanalista e professor do departamento de cinema da UFF e do PPGCine. Iulik Lomba de Farias é diretor e montador de cinema e antropólogo. Doutorando em Cinema pela UFF, Mestre em Antropologia Social pela UFGD e Bacharel em Cinema e Audiovisual pela UFF. Tem interesse por Cinema Indígena, Cinema de Vanguarda, Performance, Antropologia Visual, Etnologia Ameríndia e Cosmopolítica. Premiado em festivais nacionais e internacionais. Viviane Cid é Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Cinema e Audiovisual, PPGCine-UFF. Mestre em Sociologia e Antropologia pelo PPGSA-UFRJ. Bacharel e licenciada em Ciências Sociais (UFRJ). Professora de Sociologia (Seeduc-RJ) e Orientadora Educacional (SME- Maricá/RJ).
Referência ARAÚJO, Fábio. Um passeio esquizo pelo acompanhamento terapêutico dos especialismos à política da amizade. Niterói, RJ: Ed. AT, 1º edição. 2007.
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DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. 28 de novembro de 1947 - Como criar para si um Corpo sem Órgãos. In: Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. vol 3. São Paulo: Ed. 34, 2012. DELIGNY, Fernand. O Aracniano e outros textos. São Paulo: n-1, 2015. MASSUMI, Brian. O que os animais nos ensinam sobre política. São Paulo: n-1, 2021. PELBART, Peter Pál. Ensaios do assombro. São Paulo: n-1, 2019.
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Sobre descanso MICAELA CYRINO
Como descansar o corpo físico vivendo em caos constante? Todo ser negro nasce militante, não tem como não ser. Se você nasce mulher, negra e soropositiva, esse “fardo” pesa um pouco mais. Admiro quem encontrou na “militância” espaço de lucro e profissão, pra nós é força motora da vida e equilíbrio na dor. Hoje eu desejo o descanso, ainda desejando o fim da sorofobia , racismo e machismo. Não falarei mais sobre nossas dores. Não adianta falar na bolha, falar sozinha... A Aid$ será assunto do outro até quando? Quero de volta os meus rins, meu fígado, meu estômago, minha psique, minha dignidade... QUERO que Deus & a indústria da Aid$ me devolvam a vitalidade roubada. QUERO que a sociedade enxergue o mal que me fez. Estou aqui por nós, há muito tempo estou por nós e vcs onde estão? Graças ao meu corpo enfermo e de muitas outras, vcs podem desfrutar de um sexo “seguro”, sem aid$. Enquanto isso as crianças ainda nascem com Aid$ no Brasil. Em 2021 ainda morre-se de AID$. É importante ressaltar a necessidade de zelar pela saúde das mulheres racializadas, nossos corpos são atravessados por diversas violências desde o nosso nascimento. Nós, mulheridades com HIV, olhamos para o passado e pensamos o quanto nossa ancestralidade criou estratégias para nos manter vivas até hoje. 2021 está sendo o ano de rever as nossas estratégias para seguir adiante, enfim temos uma perspectiva de cura em diálogo, a oralidade nos ensina a importância do diálogo como transporte para as informações. Quando se trata de HIV e Aids, o debate ainda está muito na linguagem clínica, a sociedade civil há tempos cria pontes para que as informações sejam atualizadas e nos alcancem com o entendimento necessário.
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Acredito que a cura clínica para a Aids está mais próxima do que a cura social. A nossa sociedade está mergulhada em padrões de pensamentos e ações coloniais que nos impedem debater livremente temas como: sexualidade, direito ao prazer, direito ao afeto e outras coisas tão importantes e urgentes. Precisamos evoluir urgente nessa pauta! Micaela Cyrino é artista visual de formação, arte-educadora e militante pela saúde sexual e reprodutiva das pessoas negras soropositivas.
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Escrita que Sai da Tela:1
TRANSflexões Afetadas para lembrar daquilo que esqueci e para coroar nossas Senhoras das Travestis FREDDA AMORIM e DODI LEAL
escrita que sai da pele 1 - mama O processo de cura precisa doer, quebrar, amargar. Para curar tem que amargar. Minha avó dizia que quanto mais amargo for o remédio mais ele é bom. Eu cresci com uma relação muito íntima (por vezes traumática) com o boldo e é estranho pensar que uma erva tão importante e potente pode causar traumas, mas ao mesmo tempo é revelador pensar que crescemos e nos formamos enquanto pessoas a partir do acúmulo de traumas e ainda mais revelador quando entendo que o fato de ser preta e travesti é determinante para isso, mas até me reconhecer como preta e travesti tem sido processos cheios de traumas. O amargor do boldo me traumatizou quando criança e agora adulta ele me acalma e me cura. Os AMARgores da vida me curam. Minha avó também dizia, o boldo cura tudo. Gostaria de começar essa conversa falando sobre o boldo, sobre amargo, sobre dores, mas também sobre cura e sobre encontro. O encontro me cura e agora estou contagiada pela Covid-19 e nesse terceiro dia de isolamento sinto fortes dores no fundo dos olhos, lá no lugar onde se firma pra focar e ver melhor, sinto dores na cabeça, febre e, agora, neste exato momento estou tomando um chá de boldo, porque minha vó me disse que boldo cura tudo. O maior trauma que o vírus poderia me causar foi a privação do encontro, porque me pergunto: como posso me curar de algo se sou proibida de me deleitar daquilo que liberta e cura, encontrAR. O vírus tira o AR. Eu queria falar sobre como foi o meu processo de cura, como tem sido e eu fico me perguntando se realmente estou curada do que quer que seja, porque me parece que a cura não pertence à minha corpa, vivo em processo (in)constante de cura. Mas depois de tanto dito sobre boldos, memórias da infância, traumas e cura, penso que 1. Localizo esta escrita-CONVERSA: Afet(o)açao escrita que sai da pele – metodologia criada por Fredda Amorim para ser aplicada aos seus processos de pesquisa em Artes como um ato psicofísico de re-existência, no campo das Artes da Presença, mais especificamente no campo da Performance e no âmbito da arte pública, mas, para além disso, esta escrita-conversa acontece dentro das redes que criamos, como texto-tecido-trama que me enreda enredando as outras. Este FOI (e tem sido) UM EXERCÍCIO DE ESCUTA.
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o mais importante nessa escrita que sai da pele, que salta das nossas peles é pensar em como nos encontrar já tem sido um processo de cura para mim... Eu não sabia muito bem o que eu era ou quem eu era, isso tudo estava oculto e muita coisa se revela a partir do momento em que descubro que sempre senti essa dor no fundo dos olhos, onde se firma para focar e ver melhor, porque eu não estava me vendo nem de dentro e nem de fora... me vejo hoje nas minhas manas, fui curada antes mesmo de ser contaminada... Como vão suas TRAVAeCIAS, mulher?? Como vai, como passou?! -----
escrita que sai da pele 2 - doida Fredda, amada. O início da leitura do texto coincide com o fim da live que acompanhei assincronamente, da Ventura Profana. Ela fala que espera uma chupada gostosa nas suas obras, que a arte seja suculenta, que a gente goze bem da nossa vida. Conhecidir, conhecidinha, começadinha. Tenho me dedicado às tempografias não-lineares das nossas existências trans. Somos sincopadas. Nossos inícios em precipícios, como diz Linn da Quebrada, são principícios. E como tenho dito, precisamos futurar pra além da única condição de temporalidade que nos impõem: a fatura do fim, ou o fimturo. Somos rasgadas. Não há tempo, porque há tempos. E há tempos que... A coroação da Nossa Senhora das Travestis, e escrevo hoje no dia de erês da “Aparecida” (12 de outubro), é uma beatificação da bestificação. As chagas das covidadas são agora a benção das traumaturgias que ora enredamos na cena. Cinema pra mim é bruxaria pura. Por isso a escrita que sai da pele, pra gente, é escrita que sai da tela. A Ventura estava indignada. Eu me subscrevo: a hipocrisia que nomeia as bixas no feminino e as travestis no masculino. A arte é suja. A arte mata. A arte não é salvação. Lembrar daquilo que jamais pude dizer. Eu não sou responsável pela transição de gênero de ninguém. Eu sou uma traidora do gênero. Façam suas traições, depois venham me contar. Quando criei o conceito de afetossíntese, procuro rasgar o binarismo corpoXnatureza. Somos mais que afetadas. Somos produdoras de luz. Energia pura. O estalar da transmutação é a raiz dos brotos do peito. Não coloquei silicone, coloquei titânio. Sou ciborgue. Minha teta está no cotovelo. A cura é ter a finesse de dizer: não sou doente, sou Doidinha. E vocês também são Doidinhas. Não sou um traveco, sou uma ECOTRAVA. Você, Fredda, é uma reina do balangandã, mama florecida, nosso acuirlombamento é florestal. Essas vozes todas sussurram da noite das copas, das folhas a voarem e são a anunciação. São a força do rasgo das nossas existências. Em cada um dos filmes, vemos traços dessas TRAVOADAS, como diz meu querido Ierê Papá. Estas três obras estão tocando no calcanhar, batendo na bunda do forumdoc. bh, pra anunciar que sempre estivemos e, por isso, nunca mais podemos deixar de estar. Não é possível a cura sem pessoas trans na curadoria.
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escrita que sai da pele 3 - mama escrevo esta primeira linha porque gritei, (ela GRITOU) retorno... Volta pro buraco de onde você saiu. Eu estou no buraco de onde saí. Escrevo hoje daqui, ainda dia de erê e de “Aparecida”, assim como minha mãe, que se chama Aparecida por causa dela. Que está nas mãos dela. Eu gritei quando te ouvi, te li, te senti e sabe por que eu gritei? Porque eu sinto muito, sinto tanto, tantas dores, eu me rasgo e sou rasgada o tempo inteiro e eu grito por isso. Mim deixa. Hoje é dia de Aparecida e que dia será o das (DES)APARECIDAS? A padroeira, aparecida e santa de um um país que nos PARA. Ontem tivemos um encontro e eu lembrei muito de tanto, parecia terapia, eu disse pra uma mana que estava lá e pensei que acho que essa é a minha terapia, ESCUTAR. Eu quero tanto falar, mas às vezes penso que não tenho tanto a dizer, mas uma coisa que eu gosto mesmo de fazer é escutar. Isso me ajuda a me materializar a partir daquilo que crio de mim mesma ouvindo minhas manas, a gente parece que tem que se fazer o tempo todo e é como se a gente fosse escrevendo e alguém apagando atrás e a gente não para de escrever, escrever, escrever e apagarem, apagarem, apagarem. Inferno. Não é mais possível. Maravilhosa, rainha, showme: se é isso que vocês dizem então eu DETERMINO aqui, assim como Linn da Quebrada aqui invocada. CHEGA. Eu também não me responsabilizo por suas transições e tampouco vou apontar as minhas como fardos porque são minhas e tudo que tenho são as TRAVAeCIAs e as TRAVESSIAS. São minhas. Marcas, dores, cicatrizes, alegrias, gozos, tudo meu. As grafias que saem das nossas peles traviarcas me permitem existir e me aCUirlombar. Coroar uma travesti é um lixo, pra você o que é? É do lixo, da lixaiada, do sujo e imundo, porque é assim que nós somos e reivindicamos também assim como Susy o fez, o direito de sermos as MONSTRAS, o lixo, as sujas e rasgadas. Mulher de barba e pau, travesti que parir suas filhes pelo CU no alto da santa cruz de Ouro Preto da comarca de nossa senhora do Pilar. Você precisa se comprometer com isso, tirar as TIBIRAS da boca do canhão, coroar AGORA aquilo que foi esquartejado ontem e será amanhã. A melhor hora do dia pra mim é quando o dia TRANSICIONA, deixa de ser dia e vira noite. Não pretendo ser salva de nada, porque não tenho garantias de nada, minha corpa preta e travesti não me garante nada, mas pretendo salvar as minhas, porque a minha força, a força que sai do meu CUVENTRE, essa eu garanto. A cura é ESCUTAR, eu me curo quando escuto. A cura é TRAVESTI. ----------
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escrita que sai da pele 4 - doida Cuventre é igual coração de mama, sempre trava mais um. E a coroação da santa-puta é o coração da puta-santa. Voltando pro buraco de onde saí, eu o arregaço. As pregas da minha ventrificação, do parto que me parti. Não fui parida em Paris. Fui parida pelas minhas pares. Que no caso são ímpares parideiras. Continuo afirmando que somos rasgadas. E é rasgo de recusa também. Rasgacusar pois nosso NÃO é rasga-cu. Vai coroar agora! E corra com a coroa. Corra, monstra, morra. Desaparecidas porque somos invisíveis. Com a Castiel aprendi que nesse jogo colonial da arte que nos quer mas não nos dá aquér, não é mais sobre ganhar ou perder. É ganhar perdendo. É perder ganhando. E eu acrescento: somos travecoins, moedas criptografadas (não mais compradas ou vendidas; as moedas, commodities, câmbio, especuladas), então adentramos nos paranauês com nossos códigos. Paul Preciado fala que pessoas trans são softwares livres de gênero, mas eu recuso. Nosso pajubá é sudaca. Y em Abya Yala, a travestis é originária, a travestis é mestra do saber e monstra do sabor. Adentramos o CIStema com nossos valores de implosão: segredo-fofoca é ciência da informação. Arqueólogas e museólogas a céu aberto. Entregamos não entregando. Y não entregamos entregando. Lidem com isso! E troquem o apagamento audiovisual pelo pagamento Aldirvisual. -------------
escrita que sai da pele 5 - mama y doida O que a gente vai escrever? Estamos aqui juntas, doidas y mamadas. Porque não basta vocês darem uma chupada na nossa arte, é preciso que em-sã-descida vocês caiam. Então, não só VOLTEM pro buraco de onde saíram, mas caiam de boca nesse buraco. A cura é bruxaria. A cura é travesti. A cura é ancestralidade. E a cura não existe. E vocês que lutem! A dor no fundo do olho é cura. Castiel nos diz que o processo de cura começa no adoecimento. Padecer é pra descer. Então DESÇA pra curar. Boldo é AMAR. Amargo é amar. Se faltou ar é porque nós somos boldo. Travesti é erva-pura. A cor da mama é peito. Preta é a mamada. Depois de tirar TIBIRA do cala-boca do canhão, você também será uma desaparecida. Desapareça daqui! Showme é sobre (des)aparecer. E (pra)descer.
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Fredda Amorim sou Historiadora, mestra em artes cênicas (UFOP) e atualmente doutoranda em Teatro (UDESC). Professora em BBI of Chicago.Tenho me relacionado com as Artes, com a performance, intervenções urbanas, teatro, poéticas, processos de criação e performatividade de gênero dentro e fora das instituições. Desenvolvendo e me debruçando em pesquisas, ações e práticas voltadas para as questões de gênero e raça, junto da coletiva plaTaforma QUEERLOMBOS, coletivo Mica, Academia Transliteraria e MUTHA Brasil. Dodi Leal é professora do Centro de Formação em Artes e Comunicação (CFAC) da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), em Porto Seguro. Líder do Grupo de Pesquisa “Pedagogia da Performance: visualidades da cena e tecnologias críticas do corpo” (CNPq/UFSB). Docente permanente do PPGER/UFSB e colaboradora do PPGT/ UDESC. Co-coordenadora do GT “Mulheres da Cena” da ABRACE. Realiza estudos e obras artísticas de performance e iluminação cênica, perpassando por ações de crítica teatral, curadoria e pedagogia das artes. Doutora em Psicologia Social (IPUSP) e Licenciada em Artes Cênicas (ECA-USP).
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Relato de um filme-ação entre mulheres nas ruas de Belo Horizonte JOANNA LADEIRA e PAULA KIMO Quando filmávamos o curta-metragem Filme de rua,1 em 2015, Maira era a única menina do grupo. Por diversas circunstâncias ela não aparece no filme e tampouco está entre nós.2 Pouco depois conhecemos Raquel, mãe do Biscoito. Já naquele dia, Raquel se sentiu à vontade diante da câmera e contou histórias sobre a vivência na antiga Febem durante sua infância, sobre os filhos e seu olhar sobre a rua. Anos mais tarde, diante da decisão de filmar apenas com as mulheres, reencontramos Raquel e conhecemos outras meninas, entre elas Dayse e a amiga Andressa. Sua maloca passou a ser ponto de encontro e lugar de partida para as filmagens nas tardes de quinta-feira. Talvez possamos dizer que Pérola é um filme de encontro entre mulheres. Mulheres que se aproximam nas ruas, mulheres que vivem nas ruas, mulheres que se implicam nessa realidade e tentam por meio da imagem provocar algum tipo de deslocamento, seja dos olhares e afetos, seja da maneira como as próprias meninas planejam e realizam seus futuros, seja na forma como elas se veem e percebem o que acontece com mulheres como elas, pelas ruas, em todo o Brasil. Pérola é um nome provisório de um filme em processo, estamos no primeiro corte.3 No início era Filme das meninas, às vezes falamos Filme das mulheres. Pensamos também em Vitória. Entre aquilo que se mostra, que reluz e provoca interesse (é isso que o filme faz), e aquilo que se conquista a partir de uma caminhada (é isso que o filme quer), todos os títulos possíveis trazem signos do feminino, daquilo que faz caminho, ampara, tece cuidados, nutre e gera vida: a menina, a mulher, as amigas, as filhas da menina, as filhas da mulher, Pérola, Vitória, também Eloá e o menino Enzo. Crianças que vieram, que ficaram ou que se foram. Histórias que se repetem, dores reproduzidas e invisibilizadas. Independente do nome que venha a ter, o filme é, antes de mais nada, uma ação no mundo. Para que essas crianças possam atravessar a adolescência, mesmo em situação de rua, e se tornar mulheres. Para que essas 1. A mobilização em torno do curta-metragem Filme de rua, gravado em 2015 e lançado em 2017, deu origem a um coletivo de realização audiovisual. Em 2019, foi fundada a Associação Filme de Rua, que atualmente mantém um espaço de exibição no hipercentro de Belo Horizonte e um laboratório de filmes que convida jovens e adultos com trajetória de vivência nas ruas a participar de ações de criação e difusão audiovisual. 2. No dia 5 de setembro de 2021, ela faria 22 anos. 3. O filme conta com direção compartilhada de Joanna Ladeira, Paula Kimo e Zi Reis. Participam: Andressa Jacqueline da Silva de Oliveira, Brisa, Camila de Lourdes Silva, Dayse Jesus de Souza, Gabriel Albuquerque, Rafaela Rodrigues Dias e Raquel Baia Sousa.
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mulheres possam ter respeito e dignidade, inclusive para se tornar mães, e tenham seus direitos minimamente preservados. Diante do que presenciamos, a sensação que dá é que assim não pode ficar e que, ao mesmo tempo, qualquer tanto que se faça é sempre pouco. Percebemos o filme como uma espécie de diário entrecortado. Assim como o processo de filmagem que experimentamos na rua. O centro da cidade é ambiente e cenário, as malocas são moradas e locações, o ritmo urbano que perpassa a dinâmica dos encontros também atravessa a textura das imagens e o compasso da montagem. Assim, apesar do caminhar entre uma maloca e outra, dos encontros sempre no mesmo dia da semana, apesar dessa aparente rotina, é dessa relação nua e crua com a cidade, de pés no chão, no asfalto quente, que o filme começa a acontecer. Esbarrando sempre no acaso e na contingência, tanto que o próprio imprevisível passou a fazer parte daquilo que a gente esperava. Tínhamos uma câmera, um microfone acoplado e um enorme desejo de filmar. Tínhamos o compromisso e a alegria do encontro, os laços e a vontade de fazer um filme só com as mulheres. Um filme que funcionasse também como espaço seguro, um lugar onde elas pudessem falar, trocar ideias, pedir ajuda, um lugar possível para acolher e fazer caminho. E era assim mesmo. A câmera chegava, mas antes mesmo de conversarmos sobre o que seria filmado naquele dia, os acontecimentos e urgências da vida roubavam a cena, transformando, inclusive, a própria forma do filme imaginado. Muita treta, sempre. E em meio às tretas, imagens. Em meio a uma rede de afeto e cuidado, um filme. Em meio ao filme, tretas. Aprendemos entre nós qual era a hora de ligar a câmera e também de desligar, a cada vez. Às vezes a cumplicidade no olhar sustentava o gesto de manter ou de suspender a filmagem, numa decisão partilhada, a partir daquilo que se apresentava, daquilo que encontrávamos. No início das filmagens Rafaela anunciou que estava grávida. No mês seguinte, Camila. Mais um mês passado, foi a vez de Paula. Os encontros de quinta-feira, ou melhor, esse tempo-espaço chamado filme das meninas, era também um lugar de acolhida e fortalecimento daquelas barrigas. Mulheres grávidas vivendo e/ou filmando na rua. Assim, entre conversas e caminhadas filmadas, ultrassons e roupinhas de bebê, nos preparamos para receber Eloá, Enzo e Moa e nos envolvemos na feitura de um filme. Antes mesmo de termos um filme, nasceram as crianças. No caso da Rafa, além de gestar Eloá, o tempo das filmagens foi também época de luta pela guarda de Vitória, com apoio irrestrito de uma rede de proteção tecida para amparar esse caso. Na interação com a cidade, com os passantes e lojistas que conhece há anos, mesmo planejando uma situação para encenar, mesmo que de forma improvisada, Andressa volta e meia era surpreendida pelos acontecimentos que atravessavam seu caminho. Todas eram. Todas nós fomos. A liberdade diante da câmera, liberdade para criar, improvisar, atuar, tomar a câmera, estar e ser quem se é e se colocar como quiser, criou um registro na experiência de cada mulher que participou desse processo-vivência. Além de um filme, a construção de um lugar para cada uma. Nos demos conta de que uma cena se repete. Em 2015 foi assim e, três anos depois, Biel sofre mais uma abordagem policial violenta. Mais uma vez, a câmera não
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recua diante da violência, do racismo e da transfobia institucional. Algo da nossa política se firma também aí, no gesto de manter o registro disso que acontece tantas vezes na rua, quando ninguém está olhando. A continuidade da cena sustentada por Andressa, que se apropria da câmera e justifica seu gesto de filmar, nos deixa ver um cinema apoiado na urgência da vida cotidiana daquelas mulheres. Um cinema que quer colocar essa cena no debate público. Poucas vezes se para pra ver ou pra pensar sobre isso que acontece. Interessa a quem? Essa é a provocação que Brisa parece fazer quando conversa com a câmera a partir do seu lugar de mulher que esteve em situação de rua. Saber que grande parte das imagens ficaria entre nós e que faríamos de forma coletiva a escolha do que poderia – e principalmente do que não poderia4 – chegar ao espectador, pareceu deixar todas mais confortáveis diante do registro. O uso das imagens como outro momento, resultado de uma construção entre nós e na ilha de edição, tem sido uma etapa importante, ainda que as imagens apontadas possam entrar ou não no corte final, pois o filme é, ainda, uma outra coisa. Esse processo mexeu com a gente. Com a forma como vemos a cidade, as mulheres na rua e o próprio gesto de fazer filmes. Joanna Ladeira é psicóloga e realizadora audiovisual no Filme de Rua. Se dedica como psicanalista à prática clínica no consultório e também desenvolve trabalhos e ações no campo social e da cultura na cidade. Paula Kimo é pesquisadora, realizadora e produtora de cinema. Se interessa por filmes e processos implicados com a realidade filmada, estuda a relação corpo-câmera no cinema, em especial nas manifestações políticas desde 2013 no Brasil.
4. A dinâmica de assistir e escolher imagens coletivamente é uma prática e um princípio sustentado pela Associação Filme de Rua.
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Aracá é partícula de tempo1 ABINIEL JOÃO NASCIMENTO
CHEGADA Reluto em iniciar esse texto indo ao encontro de uma lembrança. Planejo a introdução com frases como “na imensidão verde do canavial que parece disputar com o azul do céu a retina dos olhos...”. Mas essa introdução não parece dar conta do delineamento que pretendo desenhar aqui nesse texto, o qual adio por horas a fio o início de sua escrita, até o presente momento. São 23h55 da penúltima quinta-feira de setembro e me ponho de frente ao computador para iniciar a construção desse escrito, que surge a partir de pensamentos-atos que vêm me construindo há alguns anos – tanto quanto o venho construindo. Talvez mais anos do que eu possa mensurar, já que, a experiência que antecede a construção desse texto também atravessa a constituição corporal do eu-coletivo, que por consequência é futuro-presente-passado. Diante disso, pontuo que, mirando na possibilidade de favorecer nosso encontro, utilizarei a temporalidade e língua não-maternas, mesmo compreendendo que as limitações da colonialidade não dão conta da complexidade das tecnologias implicadas na construção de vida aqui explanadas – e para isso poderei recorrer, muitas vezes, a línguas, dialetos, sons. Pontuo porque o tempo cronológico é um tempo de morte e o nego. Pontuo porque viver é verbo e nos roubaram a língua. Apesar disso, reconhecemos que comunicação também se dá por outros meios e por isso exercitamos o segredo como ciência primeira: minha vó negocia com o karaka’rá quando ele ronda o mato onde as galinhas ciscam; os encantados assoviam e nos ensinam a assoviar para transformar o espaço-tempo colonial em ara’puka; assim também como nos ensinam a corporalizar dispositivos de comunicação extra verbal entre eles e nós encarnados. Sendo assim, esse texto é uma lança atirada no tempo afim de conjurar uma narrativa entre três desses dispositivos: o Maracá (ou a Maraca), o Maracatu Rural e o Caracaxá – sendo o primeiro utilizado em toda Abya Yala; e os demais concebidos, produzidos e manejados em territórios pernambucanos – zona da mata norte e periferia da região metropolitana do Recife, respectivamente. Intenciono explanar, sobretudo, como essas três tecnologias emergem em diferentes contextos, mas que carregam em si um denominador comum, trazendo em suas particularidades a potência de uma força-guia. 1. Texto primeiramente publicado na 15ª edição da revista Outros Críticos, podendo ser acessado através do seguinte link: Revista Outros Críticos - Edição 15 - Políticas do som e imagem by Outros Críticos - issuu
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TRABALHO A partir do final do século XX, no chamado período de redemocratização do Brasil, alguns povos indígenas de Pernambuco tivemos o território demarcado, processo que teve início com o povo Pankararu em 1987. Hoje 11 etnias são reconhecidas no estado e pelo Estado, sendo elas Xukuru, Kambiwá, Kapinawá, Tuxá, Fulni-ô, Pankará, Pankararu, Pankaiwka, Pipipã, Atikum e Truká, distribuídas em sua maioria no agreste e sertão do estado. Apesar de todo o suporte histórico e antropológico utilizado na luta pelas demarcações de terra e reconhecimento dos povos desde então, um dos aspectos centrais da Retomada Indígena do Nordeste é a força da espiritualidade evocada e conservada no seio de nossas comunidades através do Toré. Em termos antropológicos, o Toré seria uma dança-ritual que se estrutura principalmente no Nordeste, geralmente componente do culto à Jurema Sagrada. Toré como pisada firme na terra, demarcação guiada pelo seu instrumento-bússola: o Maracá. Do tupi-antigo mbara’ká, é um instrumento idiofone produzido tradicionalmente com cabaça, coité ou coco, onde sementes são colocadas em seu núcleo, produzindo, uma vez acionados através do manejo da haste de madeira que atravessa sua parte central, sons mais graves ou agudos, dependendo de sua composição. Conhecido também como chocalho – uma “tradução” do termo para o português brasileiro – o Maracá é peça estruturante na ciência da Jurema Sagrada, um dos primordiais instrumentos de evocação e de compasso que leva e traz mensagens, cura e proteção através do corpo que o manipula. Sendo o principal culto indígena do Nordeste, tendo sua origem marcada desde antes da colonização, a Jurema Sagrada pode variar de acordo com a região na qual ele é desenvolvido – desde as aldeias, às áreas rurais, chegando até as periferias dos grandes centros urbanos. Tornando-se coluna fundamental para entendermos a presença e resistência indígena no nordeste, mesmo em áreas que não existem povos reconhecidos pelo Estado ou etnias autodeclaradas, como na Zona da Mata Norte de Pernambuco. Região que é constituída por solo massapê, a Zona da Mata Norte foi, e ainda é, por conta de sua composição territorial, uma das áreas de maior produção de açúcar no Brasil. Desde o ciclo da cana-de-açúcar (século XVI), a terra que antes comportava grandes áreas de matas nativas, passou a ser reconfigurada compulsoriamente pela massiva construção de engenhos – escravizando e expulsando a população indígena que ali já habitava. Com o passar dos séculos, as inúmeras insurreições indígenas contra a política que tinha se instaurado, fez com que os engenhos entrassem em decadência pela ausência de mãos-de-obra, momento no qual se intensificou o tráfico de povos africanos escravizados para a região. Diante desse cenário em constante reconfiguração, para além da incessante perseguição, nossos anciões, anciãs e líderes foram assassinados(as) ou migraram por sobrevivência, ações impostas que avolumaram o projeto de extermínio de nossa cultura, costume, língua e fazeres em nosso próprio território, transformando-nos em ‘caboclos’ – o indígena sem-terra, sem reconhecimento, sem identidade coletiva (etnia).
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Restando conosco apenas a fé nas forças vitais da natureza, muitas vezes sincretizadas pela catequização constante de nossos corpos-territórios, surgimos dos canaviais em Maracatu Rural, onde se materializa no corpo a ancestralidade que sempre esteve presente através da força da Jurema, do Angico, do Junco, do Vajucá, do Manacá, da Aroeira e do Catucá. Tendo como personagem central o caboclo-de-lança, o Maracatu tem sua etimologia derivada também do tupi-antigo de mbara’ká-tu, expressão que se aproxima da confluência das expressões mbara’ká e katu – significando “chocalho bom”. O Maracatu Rural ou de Baque Solto torna-se uma das mais enigmáticas expressões culturais de Pernambuco desde sua formação no início do século XX – logo após a lei regida pelo Estado brasileiro para desarticular todos os aldeamentos indígenas do Nordeste, que posteriormente gerou a declaração oficial de nossa suposta extinção no território nordestino, em meados do século XIX. Apesar de sua origem não possuir uma data exata, muito menos um local específico ou única autoria, o Maracatu Rural surge a partir de encontros dos cortadores de cana nas festanças dos finais de semana. Muitas vezes rechaçados pela sociedade civil, principalmente por ter em sua narrativa práticas que iam de encontro à moral e ética cristãs – mas também pela força profana, simbólica, visual e sonora que o compasso marcado dos caboclos produzia – o Maracatu passou por grandes transformações que lhes foram impostas, a fim de lhe enquadrar numa manifestação folclórica. Não obstante, e para além de uma coincidência, também nos meados do século XX, nas zonas periféricas do litoral de Pernambuco - constituída majoritariamente por pessoas interioranas, da Mata Norte e Sul do Estado - surgem as Tribos de Caboclinhos, evocando uma festa do “passado” indígena através de instrumentos, vestimentas e ritualísticas que também vão ao encontro da Jurema Sagrada como a matriz guia. Os Caboclinhos têm como um dos principais dispositivos o Caracaxá – também conhecido como Maraca-de-guerra – instrumento idiofone, assim como o Maracá, constituído de metal por cinco núcleos afunilados e espelhados, três em uma extremidade e dois na outra. O Caracaxá é manejado em par, um em cada mão, marcando a cadência dos passos das Tribos. PARTIDA Agora já é cedo do outro dia, chego até aqui com dores nos ombros, sintoma do tempo que passou sobre mim. Folheio meu caderno e vejo as inúmeras anotações e os rabiscos feitos no processo de construção desse texto e lembro do que preciso não dizer. Enquanto acendo pela última vez a xanduca, olho pela janela e recordo daquela manhã de sábado de carnaval nos anos 2000, quando pulei da cama com medo do som do Caboclo-de-lança. O som estridente cortava o dia que se negava a amanhecer no território de Caraúba, enquanto os três caboclos desciam a estrada de terra na frente de casa como se guardassem um segredo incontestável. Todo mundo parou o que estava fazendo e em silêncio observou aquela passagem que me arrepiava todos os pelos e me alagava os olhos. Os anos passaram e a imagem permaneceu.
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Medo ou memória do trauma? Ou lembrança do método? Aqui escrevo para dimensionar a ferida colonial que separa o Maracá, do Maracatu e do Caracaxá: quando corpos encantados se negaram a desaparecer e retomaram mesmo sob uma vestimenta de caboclo; envultados sob uma identidade indígena negada. Escrevo porque também é necessário criar vida através dessa língua e desse espaço-tempo; escrevo para retomar o futuro onde saúdo os umbigos-sementes que me sustentam. Narro em primeira pessoa contando história uma vez que as memórias me fazem companhia desde que vô caboclo veio até mim e apertou a minha mão, enquanto o cheiro e a névoa do tabaco ludibriavam a imagem que via refletida no espelho. A-ra-cá são fragmentos silábicos em comum nas palavras Maracá, Maracatu e Caracaxá. Aracá é parte que une e guarda dentro de si as memórias e os segredos dos encantados-guias; Aracá é o permanente okê do mês de setembro. Aracá é partícula de tempo.
foto: Ziel Karapotó
foto: Mitsy Queiroz
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foto: Priscila Nascimento
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Moisés Patrício I foto: Marcelo Salvador
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Arte do forumdoc.bh.2021 – 25 anos! Aceita? e Amarra-ação, de Moisés Patrício por GLAURA CARDOSO VALE
Fui apresentada a Moisés Patrício pelo poeta e jornalista Wir Caetano já há alguns anos. Desde então, acompanho seu trabalho que, a meu ver, afirma-se nos afetos positivos e na coexistência de mundos pela e com a arte que inclui sua religiosidade (o Candomblé) e sua tarefa como educador. Os dois trabalhos que compõem a arte do forumdoc.bh.2021 fazem parte de um método continuado de recolha que se assemelha ao gesto do trapeiro, central no pensamento de Walter Benjamin. Ao recolher objetos perdidos ou dispensados pelas ruas dos grandes centros urbanos, o artista os oferece, seja em forma de pergunta, Aceita?, ou de assemblages, Amarra-ação. Em Aceita?, o objeto ofertado e a pergunta são uma interrupção no fluxo dessa corrida incessante do dedo indicador na tela dos dispositivos. Ali, a palma da mão aberta e a pergunta oferecem a pausa necessária para nos conectarmos, a partir do presente, com o passado e o futuro das imagens. Já Amarra-ação, trabalho realizado desde 2019, do qual fomos agraciados com duas obras produzidas especialmente para estes 25 anos, como sua descrição indica, são emaranhados de linhas em cores variadas e papelão, método de trabalho que consiste em gestos circulares e repetitivos resultado de caminhadas matinais, encontros, viagens e ritos afro-religiosos. Lidando com vestígios do mundo contemporâneo, com fragmentos ou objetos dispensados, bem como com elementos do que constitui as culturas popular e religiosa latino-americanas e afrodiaspóricas, Moisés Patrício nos permite percorrer também a memória afetiva e nos endereça uma proposta cujas práticas de cuidado são essenciais para atravessarmos tempos tão difíceis e superarmos estruturas – e narrativas – que insistem em fazer desaparecer os povos. Para o projeto gráfico, convidamos Marco Chagas, design e ilustrador, que permitiu o desdobramento desses dois trabalhos em nosso material impresso e digital, vetorizando linhas e buscando nas variações de azul um acolhimento para as obras do artista. O forumdoc.bh, desde sua 1ª edição em 1997, convida artistas ou propõe intervenção estabelecendo um diálogo com as artes visuais, projeto idealizado por um de seus fundadores, Paulo Maia, em conversa com Júnia Torres e demais integrantes
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da equipe. Já passaram pelo festival: Pedro Moraleida (1997 e 1998), José Bento (1999), Dona Terezinha (2000), Arthur Omar (2001), Solange Pessoa (2002), Sara Ramo (2003), Cinthia Marcelle (2004), Cristiano Rennó (2005), Sylvia Amélia (2006), Thiago Rocha Pitta (2007), Pedro Motta (2008), Marilá Dardot (2009), Zé Antoninho e Donizete Maxakali (2010), Sueli Maxakali (2011), Rafa Barros/concepção (2012), Paulo Nazareth (2013), Maurício Yekuana (2014), Ailton Krenak (2015), Ana C. Bahia e Paulo Maia/concepção (2016), Warley Desali (2017), Dalton Paula (2018), Denilson Baniwa (2019), Ge Viana (2020) e, nesta edição, Moisés Patrício (2021).
Sobre o artista Moisés Patrício nasceu em São Paulo, em 1984, onde reside e trabalha com fotografia, vídeo, performance, rituais e instalações de obras que lidam com elementos da cultura latina e afrobrasileira. Entre as exposições das quais participou, destacam-se: Histórias Afro-Atlânticas, MASP e Instituto Tomie Ohtake (São Paulo, 2018); Bienal de Dakar no Museum of African Arts (Senegal, 2016); “A Nova Mão Afro Brasileira” no Museu Afro Brasil (São Paulo, 2014); “Papel de Seda” no Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos – IPN Museu Memorial (Rio de Janeiro, 2014); “Metrópole: Experiência Paulistana”, Estação Pinacoteca, curadoria Tadeu Chiarelli, São Paulo; “OSSO Exposição-apelo ao amplo direito de defesa de Rafael Braga”, curadoria de Paulo Miyada, no Instituto Tomie Ohtake (São Paulo, 2017); e “A pureza é um mito: o monocromático na arte contemporânea” na Galeria Nara Roesler, curadoria de Michael Asbury. Desde 2006, realiza ações coletivas em espaços culturais na cidade de São Paulo.
Sobre os trabalhos Aceita? Série de fotografias realizadas desde 2014 para as redes sociais, Aceita? traz cerca de 1500 imagens em que a palma da mão esquerda de Patrício se estende para oferecer objetos encontrados nas ruas de São Paulo, palavras e gestos relacionados às situações que experimenta diariamente na cidade. A escolha pelo retrato da mão e do gesto de oferenda (fundamental no candomblé) serve de crítica à herança racista e escravocrata, que reduz o papel da população negra ao de mão de obra. De forte carga simbólica e social, na medida em que recuperam e devolvem à circulação aquilo que foi considerado descartável pela sociedade, as fotoperformances refletem sobre o caráter excludente de espaços urbanos e circuitos de arte.
Amarra-ação A obra Amarra-ação, realizada desde 2019, é composta por assemblages que reúnem pequenos pedaços de papelão e linha de costura geralmente industrializados, ligados ao consumo e à cultura de massa. Em movimento de recriação simbólica
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da diáspora africana, transportando materiais e técnicas tradicionais para a arte contemporânea, o método de trabalho consiste em gestos circulares e repetitivos, caminhadas matinais, encontros, viagens, ritos afrorreligiosos. Durante as caminhadas pelas cidades de Nova Iorque, Ouidah – Benin, Marrocos e São Paulo, Moisés Patrício produziu os objetos-rituais com linha de costura de diversas cores, com as quais borda sua cartografia e mumifica os pequenos papelões beges encontrados no caminho. A obra é composta por 180 pequenas peças feitas no período de fevereiro a maio de 2019 e por outras peças realizadas posteriormente. A obra carrega a experiência, o hálito, a respiração do artista, condensando sua história pessoal e a capacidade de transcender as mazelas da escravidão na atualidade. A distribuição das cores nos papelões que solicitam o horizonte tem algo dos centros de acumulação de energia espiritual dos locais onde as obras foram produzidas.
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Lista de filmes | List of film A Arca Dos Zo’é A Festa Da Moça A Vida é Sempre um Mistério Afetadas Ano 2020 Aracá Coroação da Nossa Senhora das Travestis Corumbiara Day In The Life Deus tem AIDS Edna Eu Já Fui Seu Irmão Exercício de Arquivo #2 Kanau’kyba Latcho Drom Lembrar Daquilo Que Esqueci Martírio Mermaids, Or Aiden In Wonderland Mestre Gê e o Estado da Arte Nas giras do vento Ngupelngamarrunu. Night Time Go Non, Je Ne Regrette Rien (No Regret) Nossos Espíritos Seguem Chegando - Nhe’ẽ Kuery Jogueru Teri O Elixir Olhos de Erê Pérola (work in progress) Pi’õnhitsi – Mulheres Xavante Sem Nome Piripkura Recado do Bedengó Rolê - História dos Rolezinhos Serras da Desordem Tava, a Casa de Pedra The Jealous One The Riot When The Dogs Talked Windjarrameru, The Stealing C*nt$ Wutharr, Saltwater Dreams Yãkwá, O Banquete Dos Espíritos Yaõkwa, Imagem e Memória Yãy Tu Nūnãhã Payexop - Encontro De Pajés
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Lista de diretoras e diretores | List of director Abiniel João Nascimento Altair Paixão Andrea Tonacci Ariel Ortega (Kuaray Poty) Bruno Huyer Bruno Jorge Calvin da Cas Furtado Castiel Vitorino Brasileiro César Guimarães Coletivo Olhares (Im)possíveis Divino Tserewahú Dominique Tilkin Gallois Edna Lúcia de F L Toledo Elizabeth A. Povinelli Ernesto de Carvalho Fábio Leal Gustavo Caboco Gustavo Vinagre Idylla Silmarovi JEAN Joanna Ladeira Luan Manzo Lucas Campolina Mariana Oliva Marina Sandim Marlon T. Riggs Patricia Ferreira (Yxapy) Paula Kimo Pedro Aspahan Portugal Braga Renata Terra Rodrigo Carizu Sueli Maxakali Vina Amorim Tony Gatlif Tiago Campos Torres Tita Vincent Carelli Virgínia Valadão Vladimir Seixas Zi Reis
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25º FESTIVAL DO FILME DOCUMENTÁRIO E ETNOGRÁFICO FÓRUM DE ANTROPOLOGIA E CINEMA
Organização geral | Filmes de Quintal Andreza Vieira, Arthur Medrado, Carla Italiano, Cláudia Mesquita, Cora Lima, Daniel Ribeiro Duarte, Glaura Cardoso Vale, Júnia Torres, Luísa Lanna, Milene Migliano, Paulo Maia, Renata Otto, Roberto Romero, Ruben Caixeta Coordenação de produção Carla Italiano “No princípio só existiam filmes Karrabing”: Retrospectiva Karrabing Film Collective curadoria e produção Paulo Maia Roberto Romero Mostra Desaparecimento e reaparecimento dos povos e das imagens 35 anos de VNA e 25 de forumdoc.bh curadoria e produção Cláudia Mesquita Junia Torres Luísa Lanna Renata Otto Ruben Caixeta de Queiroz Mostra Comunidades de cuidado: fabulações, enfrentamentos e éticas de cura curadoria e produção Arthur Medrado Carla Italiano Cora Lima Milene Migliano colaboração Glaura Cardoso Vale, Roberto Romero
Instalação Inéditos inevitáveis numa experiência sensorial: fragmentos do acervo Vídeo nas Aldeias concepção e projeto expográfico André Hauck coordenação de instalação Renata Otto finalização de imagem Fábio Menezes cartelas Tita Catálogo organização Carla Italiano Glaura Cardoso Vale produção editorial Glaura Cardoso Vale (coordenação) Cora Lima revisão técnica português (seção ensaios e apresentações) Bernardo R. Bethonico (demais conteúdos) Equipe forumdoc.bh Projeto gráfico & diagramação Marco Chagas Arte | fotografias e assemblages Aceita? (desde 2014) e Amarra-ação (desde 2019) Moisés Patrício Executivo financeiro Andreza Vieira
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Gestão financeira Alcione Rezende | Sinergia Gestão de Projetos
Ícaro Melo Isadora Barcelos Tradução simultânea conferência
Produção Executiva Andreza Vieira, Carla Italiano, Junia Torres Consultoria jurídica Lucia Ribeiro Silva e Associados Elaboração de projeto mecanismos de incentivo Andreza Vieira, Carla Italiano, Diana Gebrim, Júnia Torres, Layla Braz Website Gustavo Teodoro | Bango’s Company Mariana Nunes Pedro Aspahan Autoração digital de cópias | Transmissão Fórum de debates Hatari Filmes Julio Cruz Vitor Miranda transmissão manifestação on-line Cris Araújo Flora Maurício Letícia Notini Vinheta Gustavo Caboco Produção de tradução e legendagem Carla Italiano Cora Lima Tradução Beatriz Filgueiras Cátia Maringolo Caroline Ferreira Daniel Ribeiro Duarte Gabriela Albuquerque
Raquel Luciana de Souza Legendagem Gabriela Albuquerque Isadora Barcelos Redes sociais coordenação Milene Migliano design de conteúdo Paula Gobetti | Kabuki Studio Design administração Romana Abreu Edição de vídeos Arthur Medrado Assessoria de imprensa Alessandra Costa Assessoria de Imprensa e Comunicação Acessibilidade Sem Rumo Projetos Audiovisuais Intérpretes LIBRAS Mariana Tupinambá Rosane Lucas Soraia Vieira Filmagem Thiago Nascimento Locação de equipamentos vídeo-instalação EmerSom Plotagem vídeo-instalação Flag Digital
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Contabilidade Manassés Aguilar forumdoc.ufmg Cláudia Mesquita Paulo Maia Ruben Caixeta de Queiroz Palácio da Artes [Gerência de Cinema] Cine Humberto Mauro Gerente Bruno Hilário Suporte Administrativo Roseli Miranda Produção Julio Cruz Mariah Soares Vitor Miranda Projeção Wilson Brant [Gerência de Artes Visuais] Gerente Uiara Azevedo Produção Rafael Oliveira e Renata Fonseca Estagiários Anita Kawasaki e Daniel Loureiro Montagem Wilton Bernardino
ISBN: 978-85-63837-24-0 (impresso) ISBN: 978-85-63837-23-3 (on-line)
associação filmes de quintal Avenida Brasil | 75/sala 06 | Santa Efigênia | CEP 30140-000 | Belo Horizonte-MG | Brasil Telefone: +55 31 3889-1997 | filmesdequintal@gmail.com www.forumdoc.org.br
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Agradecimentos | Acknowledgements Bruno Pinheiro, Wanderley Reis, Diretoria FAFICH/UFMG, Claudiney Ferreira, Kety Nasser, Gabriela Moullin, Francisco Rocha, Alice Lamounier, Ana C. Bahia, Ana Carvalho, Ana Carolina Antunes, Carla Maia, Ewerton Belico, Pedro Portella, Rafael Barros, Pedro Leal, Bruno Hilário, Matheus Antunes, Rogério Lopes, Meiriene Felippetto, Frameline Distribution, Lindsey Hodgson, Julie Ludwig, KG Productions, Léonie Bégé, Olívia Sabino, Fábio Menezes, Tita, Cristina Amaral, Tatiana Carvalho Costa, Marcela Borela, Divino Tserewahú, Yxapy/Patrícia Ferreira, Vanda Lucia Ferreira, a todas as autoras e autores dos ensaios deste catálogo, realizadoras e realizadores que compõem as mostras e sessões especiais.
PATROCÍNIO
APOIO
Programa de Pós-graduação em Antropologia UFMG Programa de Pós-graduação em Comunicação UFMG Vídeo nas Aldeias CO-REALIZAÇÃO
INCENTIVO
REALIZAÇÃO
FMC1204/2020