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A primeira BoaventuradeSousaSantos década Ciro Gomes do século Eduardo Galeano em dez José Dirceu entrevistas José Saramago

Mais artigos e análises de: Idelber Avelar, Julinho Bittencourt, Marcio Pochmann, Miguel do Rosário, Mouzar Benedito, Pedro Alexandre Sanches,Túlio Vianna e Vange Leonel

1519-8952

no 102 R$ 8,90

ISSN

Mano Brown Marilena Chauí Raúl Reyes Sebastião Salgado Yasser Arafat


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6 O alvorecer da periferia 10 Os intelectuais e o Brasil 14 Entrevista Marilena Chauí 17 Entrevista Sebastião Salgado 22 26 Informe Sebrae José Saramago 30 Entrevista Mano Brown

Entrevista Boaventura de Sousa Santos Entrevista Eduardo Galeano O Direito em uma década Entrevista Ciro Gomes Entrevista José Dirceu Os mortos da intolerância religiosa Entrevista Yasser Arafat Entrevista Raúl Reyes Cartas

34 33 42 44 48 52 54 58 5

Diversidade

13

Mundo do Trabalho

25

Toques Musicais

61

Penúltimas Palavras

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Há dez anos, do mesmo lado O atento leitor já deve ter percebido na capa que esta é a edição comemorativa

dos 10 anos da Fórum. Por isso, está um pouco diferente. Em primeiro lugar, mais

robusta. Ao invés de 52 páginas, tem 64. Além disso, menos inédita e mais histórica. Traz uma seleção das dez entrevistas que consideramos as mais importantes desta década, com uma contextualização daqueles que as realizaram. Cada uma das entrevistas remete a um momento histórico.

A começar pela primeira, de Mano Brown, que de algum jeito tem potencial tanto

para nos fazer pensar sobre o que era o Brasil de 2001 como qual era a expectativa

que tínhamos do País. Por outro lado, é simbólica do ponto de vista da importância que a periferia tinha há dez anos e da importância que tem hoje. Tanto por conta

da visibilidade alcançada por projetos de cultura, como pela ascendência social de 35 milhões de brasileiros.

Depois, há três entrevistas que, de alguma forma, abordam o contexto do governo

Lula, incluindo sua principal crise, a do mensalão. As de José Dirceu e de Ciro Gomes tratam fundamentalmente disso, mas a da filósofa Marilena Chauí também pode ser incluída neste rol, porque suas reflexões se concentram em uma avaliação sobre o que foi o primeiro mandato do ex-presidente.

As entrevistas realizadas com Yasser Arafat e Raúl Reyes (líder morto das Farc) são im-

portantes não só pela relevância dos personagens, mas pelo contexto em que aconteceram. Em ambos os casos, nossos repórteres estiveram com esses líderes pouco antes de suas mortes. Em relação a Reyes, Fórum foi o último veículo a entrevistá-lo.

Afora essas, completam a edição mais quatro entrevistas. As de Saramago, Boaventura de Sousa Santos, Eduardo Galeano e Sebastião Salgado. Quatro intelectuais comprometidos com o seu tempo. Sendo que os três primeiros tiveram alguma vinculação

com o Fórum Social Mundial, que de alguma forma é o pai e a mãe desta publicação. Por isso, nesta edição, renovamos o nosso compromisso da edição número 1. Naquele número, a frase que fechava o editorial era:

“Há lados. Enquanto houver. Um. O valor das coisas. Não às coisas do valor. Gente.” Permanecemos do mesmo lado. Selo FSC

Publicação da Editora Publisher Brasil. Editor: Renato Rovai. Editor executivo: Glauco Faria. Edtora de arte: Carmem Machado. Colaboradores desta edição: Anselmo Massad, Eduardo Maretti, Frédi Vasconcelos, Idelber Avelar, Jacques Gomes Filho, Julinho Bittencourt, Marcio Pochmann, Miguel do Rosário, Mouzar Benedito, Nicolau Soares, Pedro Alexandre Sanches, Rita Freire, Túlio Vianna, Vange Leonel. Capa: Thiago Balbi. Revisão: Denise Gomide. Estagiários: Camila Cassino e Carolina Rovai. Administrativo: Ligia Lima e Pâmela dos Santos. Representante comercial em Brasília: Joaquim Barroncas (61) 9972.0741. Publisher Brasil: Rua Senador César Lacerda Vergueiro, 73, Vila Madalena, São Paulo, SP, CEP 05435-060. Contatos com a redação: (11) 3813.1836, e-mail: redacao@revistaforum.com.br. Para assinar Fórum: assine@revistaforum. com.br, http://assine.revistaforum.com.br. Portal: www.revistaforum.com.br. Impressão e CtP: Bangraf. Distribuição: Fernando Chinaglia. Fórum Outro Mundo em Debate é uma revista inspirada no Fórum Social Mundial. Não é sua publicação oficial. A divulgação dos artigos publicados é autorizada. Agrade­cemos a citação da fonte. Matérias e artigos assinados são de responsabilidade de seus autores. Circulação desta edição: 12/9/2011 a 11/10/2011 Conselho Editorial: Adalberto Wodianer Marcondes (Agência Envolverde), Alipio Freire (jornalista), Artur Henrique dos Santos (CUT), Beatriz da Silva Cerqueira (Coordenadora do Sind-UTE/MG ), Cândido Castro Machado (Sindicato dos Bancários de Santa Cruz), Cândido Grzybowski (Ibase), Carlos Ramiro (Apeoesp), Claiton Mello (FBB), Eduardo Guimarães (Movimento dos Sem Mídia), Gustavo Petta (Conselho Nacional da Juventude), João Felício (CUT), Jorge Nazareno (Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco), Lúcia Stumpf (Coordenação dos Movimentos Sociais), Luiz Antonio Barbagli (Sinpro-SP), Luiz Gonzaga Belluzzo (economista e professor da Unicamp), Marcio Pochmann (economista e professor da Unicamp), Maria Aparecida Perez (educadora), Moacir Gadotti (Instituto Paulo Freire), Paul Singer (economista e professor da USP), Paulo Henrique Santos Fonseca (Sindicato dos Bancários de BH), Ricardo Patah (Sindicato dos Comerciários de São Paulo), Roberto Franklin de Leão (CNTE/CUT), Rodrigo Savazoni (Intervozes), Sérgio Haddad (Ação Educativa), Sergio Vaz (Cooperifa), Sueli Carneiro (Geledés), Vagner Freitas de Moraes (Contraf/CUT) e Wladimir Pomar (Instituto de Coope­ração Internacional).

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Um outro mapa para o Brasil Bem, caríssimos, apesar de não ser economista, adoro números. Usados com honestidade intelectual, os números revelam fatos graves de uma forma crua e brutal, coisa que os melhores discursos às vezes não conseguem fazer. Lendo esses números, vocês verão porque a elite belenense (aquela que, até hoje, não conseguiu nem limpar o Ver-o-Peso) precisa apelar ao melodrama para defender a perpetuação de nossa miséria. O que esses números demonstram e qual o seu impacto no cotidiano de cada um de nós, discutiremos adiante em outros posts. Prometo que vamos dissecar juntos essas informações. Ali, estão contidas as razões que explicam a necessidade de nos libertarmos dessa elite que comanda (nas esferas pública e privada) de forma tão irresponsável os destinos de um território rico, que abriga um povo tão sofrido. Precisamos dizer que não precisa ser assim. Acreditem quando digo que a melhor arma que temos para ganhar os votos dos paraenses é a absoluta racionalidade embutida nesses números. Antes que “eles” comecem a me torrar a paciência, esclareço que esses números foram apurados pelo Instituto de Desenvolvimento Econômico, Social e Ambiental do Estado do Pará (Idesp), órgão do governo do estado, sem a participação de qualquer técnico ligado aos futuros estados do Carajás e Tapajós e estão disponíveis no site do instituto. Boa leitura a todos. Número de Habitantes: Pará - 4,5 milhões, Carajás - 1,5 milhão, Tapajós 1,2 milhão. Crescimento Demográfico (na última década): Pará – 2,2, Carajás – 3,5, Tapajós – 1,2. Nas três últimas décadas, o crescimento da população manteve-se estável no Pará e no Tapajós. Já no Carajás, a população cresceu 9,4% nos anos 80 e 3,5% nas décadas de 90 e 2000. No total, nas três ultimas décadas, o Pará teve crescimento de 6%; Tapajós, 3.8%; e Carajás, 16%. Densidade Demográfica: Pará - 22 habitantes/km² Carajás - 5 habitantes/km² Tapajós - 2 habitantes/ km². Extensão Territorial: Pará - 220 mil km2, Carajás - 296 mil km2, Tapajós 733 mil km². Taxa de Homicídios (por 100 mil habitantes): Pará (2002) – 7,3, Carajás - 31, Tapajós – 7,9. Pará (2006) – 13,7, Carajás – 40,5, Tapajós – 8,9.

Pará (2009) – 19,4, Carajás – 55,3, Tapajós – 15,8. A Organização Mundial de Saúde considera aceitável taxas abaixo de 10 homicídios por grupos de 100 mil habitantes. Empregos Formais: Pará - 668 mil (70,2%), Carajás - 185.300 (19,5%), Tapajós - 98.345 (10,3). O Pará detém 61% dos empregos na indústria e 74% no setor de serviços. Estabelecimentos Industriais: Pará – 3.925, Carajás – 1.463, Tapajós – 845. Estabelecimentos Comerciais/Serviços: Pará – 23.600, Carajás -7.900, Tapajós – 5.300. Nota - Das 50 mil empresas que existem hoje, 29.476 ficarão no Pará. Produto Interno Bruto: Pará - 56% (32 trilhões de reais), Carajás - 33% (19 trilhões de reais), Tapajós - 11% (6 trilhões de reais). Hospitais: Pará – 58%, Carajás – 22%, Tapajós – 20%. Escolas: Pará - 6.991 estabelecimentos, Carajás - 1.993 estabelecimentos, Tapajós - 2.580 estabelecimentos. Gastos públicos com educação (em 2010): Pará - 1 bilhão e 500 mil reais, Carajás - 20 milhões de reais, Tapajós - 30 milhões de reais. Gastos públicos com saúde (em 2010): Pará - 805 milhões de reais, Carajás - 92 milhões de reais, Tapajós - 130 milhões de reais. Gastos públicos com segurança (em 2010): Pará - 265 milhões de reais, Carajás - 13 milhões de reais, Tapajós 10 milhões de reais.

Se você quer saber como a gente sustenta boa parte da qualidade da revista que você lê, dê uma olhada nestas logomarcas

Wilson Rebelo

Feminicídio: a morte de mulheres em razão de gênero I Vale ainda citar o feminicídio, que, na minha opinião, é institucionalizado pelo Estado da China tal qual muito bem retrata a Xinran em seus livros. Parabéns pela crítica! Xênia Mello

Feminicídio: a morte de mulheres em razão de gênero II O interessante é que, quando mostramos a disparidade no número de mortes de homens e mulheres, como no caso do Massacre de Realengo, estamos vendo o que não existe. Foi apenas um caso isolado.

Essas entidades nos apoiam de diferentes maneiras, mas principalmente com assinaturas coletivas da revista. Se você faz parte de uma entidade que acredita na importância de construir veículos independentes, nos procure, solicite uma tabela e paute na sua diretoria o debate para colocar seu nome aqui, entre os que apoiam a Fórum. Fone: (11) 3813-1836 ou comercial@publisherbrasil.com.br.

Anne

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As palavras cortantes do Mano Primeiro entrevistado da Fórum, o líder do Racionais MC’s era uma das vozes que começava a mostrar a força e a criatividade da periferia brasileira: “Ajo como um preto deveria agir. Digo ‘não’ pras coisas que todo mundo acha que eu devia dizer sim” por Renato Rovai

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le tem pelo menos 12 anos de rap. E 31 de periferia. Pedro Paulo Soares Pereira é um sobrevivente do inferno. Preto, pobre e mesmo sem ser craque de bola ou pagodeiro, Mano Brown ficou notório - como ele mesmo diz. A força das suas palavras e de seu protesto dão o tom do trabalho do Racionais MC´s, grupo que não aparece no Gugu, Xuxa, Faustão e que tais, mas, mesmo assim, vende centenas de milhares de CDs. Aliás, mais de 1 milhão deles. Brown é hoje um dos poucos berros ouvidos na periferia brasileira. Durão no jeito e no portar-se, não faz discurso bonitinho. E não se acha o bambambã por ter espaço para expor seus pensamentos. Ao contrário, com clareza, diz que a imprensa fala dos Racionais por achar o grupo excêntrico: um bando de pobres e pretos que falam umas coisas diferentes. Sem dó, rasga o verbo, dá porrada e chuta na canela quando é necessário. Nesta entrevista exclusiva para a Fórum, Browm revela sua profissão de fé evangélica e, ao mesmo tempo, diz que pegaria em armas para fazer a revolução. De resto, em meio a um ou outro palavrão, traduz a agonia da maioria. Boa nitroglicerina pura, caro leitor.

Todo mundo quer ter. E aí o ladrão tem mais respeito que o trabalhador. Até pra sociedade. Por isso, a molecada, filho daquele pai que já sofreu pra caralho, que não tem nada, que mora no barraco, não quer viver igual ao pai... não quer morrer no anonimato. Ele quer ser alguém. Quer ser notório. Quer ser notado. Quer seu espaço. Ele não é ninguém pro governo, não é ninguém pro patrão dele, não é ninguém pra mulher dele, não é ninguém pros vizinhos dele, não é ninguém. Mais um. Aliás, mais um não, ninguém. E aí quem faz o crime é notório, é alguém. O mundo é violento. O sistema é violento. Hoje o que manda é o ter. Quem não tem não é. É isso que o mundo é. Quem tem é, quem não tem não é. Se você pode consumir, você é. Senão, você não é. As pessoas veem muita televisão, o que

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O povo brasileiro

O brasileiro é pacífico. Ele tem que se organizar. Não vejo chance de uma revolta do pobre. O pobre é muito alienado. Fraco na raiz, não só na condição do dinheiro, mas de interesses. Não vê o porquê, não confia. O brasileiro não confia muito no Brasil, não confia na melhora, não confia no vizinho. Não há sentimento de união. Não tem esse povo brasileiro que o pessoal fala. Tem um monte de gente. O Brasil não tem um povo. O que é o brasileiro? Todos os movimentos são de classe média, dos que estudaram, que aprenderam a diferenciar as coisas. O pobre não consegue chegar no estudo. Quando estuda quer sair, porque não aguenta.

O MST

Revolucionário. Uma arma. Tinha que ter gente pra segurar arma. Mas o movimento pode quebrar também. Ainda tem gente na periferia que enxerga os caras como vilão. Periferia é alienada demais.

Violência, paz e consumo

Qual das violências? A do revólver? Há vários lados a analisar. Um, é o do desemprego. A tendência é só piorar, ainda mais com tanta competição. Tem muita arma na rua. Falta comida, mas não falta arma. É o circo do cão. Hoje tem um monte de coisas “bala” pra comprar, mas falta dinheiro. Isso desperta mais cobiça ainda. Por outro lado, tem o dinheiro.

é vendido na televisão. Você quer ser o cara da TV. Compre o Startac, se você não tem, é vacilão. Falam isso pra você. Compra a calça tal, se você não tem é prego. Ninguém quer ser prego nem vacilão. Tem que estar a pampa no dia a dia, senão as minas te veem como um prego. Você tem que ter e vai ter como? Esse discurso de paz é furado. Toda tentativa pela paz vale. Eu não quero dar a impressão de que sou pessimista. A última coisa que você quer é um cara pessimista do seu lado. Mas é uma coisa pra pensar.

Alienação e bandidagem no 1 - 2001

foto da capa: Jesus Carlos / Imagenlatina

E é o que eles estão conseguindo. O crime é alienado. Os criminosos na periferia não são políticos, não têm ideologia. São alienados. É


Back2Black Festival / Divulgação

Mano Brown e um dos maiores erros de edição da Fórum A primeira vez a gente nunca esquece. Como se diz no Twitter: #fato. A escolha de Mano Brown para ser o primeiro entrevistado da Fórum não se deu por acaso nem com facilidade. Muito pelo contrário. Brown não é de muito falar. Naquela época, menos ainda do que hoje. Foi uma batalha seduzi-lo para ser o entrevistado da primeira edição. E a colaboração do jornalista Ademir Assunção para que isso acontecesse foi fundamental. A escolha de Brown foi simbólica. Nosso objetivo, desde o primeiro momento, era trabalhar com o “Lado B” da informação. Com os temas da periferia do mundo, da cultura, das cidades... Com os debates que não se tornavam notícia no universo midiático tradicional. E que só eram e são explorados pelos seus estereótipos. A nosso ver, Brown simbolizava um pouco disso que imaginávamos. E uma conversa com ele permitiria extrair frases fortes e contundentes. Tudo aconteceu como prevíamos. A entrevista realizada lá no Jardim Ângela foi interessante e reveladora. Mas na hora de fechar a capa, escolhemos a matéria sobre a Amazônia. Que nos pareceu um tema mais global. Nos primeiros dias que a revista chegou às bancas, percebemos a bobagem que tínhamos feito. As pessoas ligavam para a editora querendo comprar a revista que tinha a entrevista do Mano Brown. E a gente mordia os lábios de raiva. Renato Rovai

ouro, puta, motel, roupa de marca, carro de playboy. Não têm ideologia, têm merda. Eu vivo na periferia, eu vejo o que é. Eu vejo os moleques começando. Tem movimentos isolados, aqui e ali, tá pintando, mas é difícil.

Dignidade

É ganhar respeito e ter seu espaço. Eu sou um homem, não sou uma peça, um móvel. Mas eu vejo que aqui as pessoas são tratadas como móvel velho. Tem muita gente na boca pra tentar seu espaço. É essa a impressão que dá. Se morrer, não tem luto de uma semana. Morreu, já era. Tamo aí. É frieza.

Drogas

Elas não desestruturam só a periferia. O que existe em toda periferia é tráfico. Droga é problema geral. Se bobear, até o presidente dá uns pegas. Mas rico, se passar mal, vai pra clínica. Na periferia, não, a guerra do tráfico da droga mata. Sem a droga, a periferia já é desestruturada. Isso é só um baratinho a mais pra ajudar.

Ser humano Cada ser humano é um país como o nosso... capitalista. Ninguém quer ser igual. Ninguém quer ser igual a ninguém. Na periferia também.

A polícia

A polícia não reprime, representa, faz teatro. A polícia não repreende nada. É mais um trabalhador que está enganando o patrão, que nesse caso é o povo. Eu vou lá, dar um rolê pra aqueles lados, se eu catar um otário-vacilão, eu mando. Se a bocada tiver dinheiro e der pra eu catar um cara, eu cato; se não tiver nada também se dane, não é meu filho. É desse jeito. Esse espírito do vamos combater o crime para o bem da população não existe. Não tem nada disso. Ele nada mais é que um criminoso com farda. Os que nós vemos aqui, todos são iguais. Agora o que dá nojo é que ele é um cara que muitas vezes sabe das coisas. Mas lá na polícia, dentro da corporação, não sobra ninguém. Uma vez eu estava numa delegacia e vi um policial chegando pra falar com o comandante dele. Aí o comandante berrou: “Volta

pra trás, cadê seu chapéu?” O cara parou e o comandante mandou: “Eu te chamei pra você entrar aqui? Volta pra trás, pra lá, mais pra lá”. O cara fez o que ele mandou e voltou. Não deu outra, o comandante: “De novo, volta, pede licença e agora você vem.” Mandou ele voltar três ou quatro vezes. Agora solta aquele cara na rua e você é o primeiro otário a trombar com ele numa favela. Na hora ele pensa: “Vou tirar a neurose é nesse aqui”.

PT

Eu tô ouvindo falar que o Lula vai virar um cara mais liberal. Não pode liberar nada. Ou ele representa o sofredor ou não é ninguém. Tem que ser radical. O Lula tem de ser homem de aço. Tem que ser de aço, não pode envergar. É aí que se trata de política.

Movimento Zapatista e armas

Sou mal informado sobre isso. Todo movimento que é pra defender os que sofrem sou a favor. Que seja da partilha, pra defender os oprimidos. Tô dentro. Não sou contra pegar setembro de 2011

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em armas. A periferia já tá armada. Só que na periferia é tudo alienado. Eles só conseguem enxergar o inimigo aqui no meio deles. Mas o inimigo não está perto de nós. Quem está perto de nós somos nós mesmos. Eles estão muito longe.

Racionais

Uma minoria tá ligada no que a gente fala. Uns 20%, e já é uma grande coisa. A maioria tá na onda. Curte Racionais, axé, forró. Mesmo porque, se na periferia todo mundo fosse do jeito que a gente pensa, todo mundo tocava rap. E não é assim. Eu tenho noção de que é muito pouco, mas só que é desse jeito mesmo. Eu nunca imaginei que fosse molinho, macio, não é fácil mesmo. Tá na guerra é pra morrer ou matar. Você até volta pra casa vitorioso, mas às vezes sem um braço. Agora, a mídia e muitas pessoas veem a gente como atração de circo, a mulher barbada, o homem que engole espada. Os “maluco” é preto, do Capão (Redondo) e até que nem é tão burro. Tá todo mundo acostumado a ver Chico Buarque, Jorge Ben, Gilberto Gil, os caras intelectuais cantando. Aí, de uma hora pra outra, aparecem uns malucos de periferia cantando rap, falando uns barato. Os caras não tão acostumados a ver sair pessoas da periferia com essas ideias. É mais como se fosse um barato excêntrico. Eu acho que o Racionais é excêntrico. Tem vários excêntricos que já pintaram.

O negro no Brasil

O movimento negro, nos últimos 20 anos, é o rap. No Brasil, depois do Zumbi vem o rap. O rap fez o movimento negro, trabalhou sobre o povo negro. O moleque lá na casa do caralho, preto, que tinha vergonha de ser preto, hoje usa a camisa 100% negro. O rap levantou o orgulho dele. O Malcom X me fez entender coisas que estavam do meu lado e eu não entendia. O preto foi tirado dum continente com uma cultura totalmente diferente e jogado num sistema europeu. O Brasil vem de um sistema europeu. Tudo feito no espelho da cultura do europeu. Só que nós não somos europeus, temos um outro estilo de vida, outro tudo. Talvez nunca a gente se adapte à cultura europeia. Enquanto tiver preto vai ter gueto, vai ter gangue, vai ter um líder, alguém reclamando, uma música muito louca, um cara que joga pra caralho. Enquanto tiver preto e branco, não vai ser unido. Dá pra conviver, em prol duma fita, mas não é igual nunca.

A educação branca

O ensinado no Brasil é pro branco, não pro preto. Cada um gosta de coisas diferentes.

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Eu fui descobrir que preto tem uma glândula debaixo do braço que faz suar mais e ter um cheiro forte há pouco tempo. Por que ninguém nunca falou disso? Quantas pessoas não sofrem por causa disso? Por que não foi explicado? Da mesma forma que branco pega câncer de pele muito mais que preto. Por que não falam isso? Nunca falaram isso. A cultura europeia vê o negro como coadjuvante, só na sombra. A maioria dos pretos que entram nas escolas de branco e vira doutor fica chato pra caramba. Ele não é o preto verdadeiro. E também não é branco. É igual um branco querer ser igual a nós. É chato pra caralho. Ele tá sendo um barato que ele não é. Não tá no sangue. Ele vira um ser qualquer. Cada um é o que é. O branco veio da Europa, o japonês veio da Ásia, o hindu é hindu, não adianta querer que ele seja igual a nós, lutar capoeira, o cara não é. O sonho dos países de maioria branca é fazer os pretos serem eles. Igual esse cara que morreu agora, esse doutor da USP, o Milton Santos. Ele era cabuloso, preto mesmo, porque ele não tentou ser branco. Ele sabia que a vida é assim, foi pra França e nem por isso deixou de ser preto. Agora a maioria fica igual ao branco. E fica um bagulho estranho.

Sonho

Quero viver, quero ser homem, continuar sendo homem e morrer como homem. Tenho vários sonhos, mas não sou muito louco pra estar com vários sonhos. Quero viver a vida e vamos ver. Queria ver uns camaradas bem. Os camaradas com filho, com trampo, a mãe deles com saúde, eles felizes. É um barato individual meu: os meus camaradas. Sonho coletivo: eu quero a justiça, só que, pra você pensar em todo mundo, tem que pensar em você primeiro, ver como tá ao seu redor, quem tá do seu lado. Como seus camaradas vivem. Aí você vai vendo, a 10 metros, a 1 quilômetro, na outra cidade. Não adianta querer todo mundo bem e os camaradas do seu lado estarem mal. Eu tento analisar o que tá perto de mim, porque eu sempre tentei ver muito o público. Desde que eu comecei a cantar, as pessoas falam que o Racionais é um grupo que defende os pobres. Não, a gente fala de nós. São coisas que acontecem com a gente, com gente nossa, e acabam influenciando e tendo a ver com a vida de muitas pessoas. Todo mundo acha que eu tenho que falar em prol de um grande número de pessoas, só que eu falo do que tá do meu lado. Os problemas dos camaradas. Eu quero que todo mundo da quebrada, da região, viva bem. Só que cada um tem um sonho diferente do outro. Não adianta querer que todo mundo estude. Vai ter cara que não

é de escola. Tem cara que estuda pra caralho e não é feliz. Tem mil fitas.

Estados Unidos e Cuba?

Eu acho que Cuba é que nem o Mano Brown. Só sobrou ele. Sou boi de corte. Falam que eu falo muito, que eu tiro todo mundo, que eu vou arrumar uma pá de inimigo. De repente você vê: opa, tô sozinho. Cuba é mais ou menos assim. E tem o Fidel... Quem garante que o próximo vai ser que nem ele? Ou que de repente vai ir logo abrindo as pernas pros americanos, já mete uma pá de McDonald´s e acaba tudo. Vira história. Enquanto ele tá vivo, ele é o cara. E Cuba é Cuba. Agora, quanto aos Estados Unidos, se o mundo for acabar, vai começar por lá... Agora, uma pá de bagulho que vem de lá é da hora. Tudo que é chique é americano. Não dá pra negar. A pior burrice é criticar o que é da hora e fingir que não é. O Brasil também é um país da hora, só não sabe, não descobriu. A culpa é do nosso governo, que é igual puta que perde status. Não bate bem. O que falta ao Brasil é um governante à altura pra defender o interesse do país. O governo americano defende o interesse dele. Independente de quem é presidente, eles querem ganhar.

Novas tecnologias

Eu tô atrasado nisso, não sei mexer no computador. Nunca mexi num computador na minha vida. Não sei nada, e também não me interessa. Eu não tenho celular, não sei mexer no computador. Sou um cara rústico. Nasci rústico e vou morrer rústico. Não consigo viver que nem o Caetano Veloso, fazendo uns trabalhos no computador. Não sei. Tem umas tábuas velhas onde eu escrevo até hoje. No caderno erro, rasgo, apago. E vou usar até morrer, não vou mudar. Isso só estragou o mundo. Não curto, se precisasse tanto eu usava, e eu não uso. Eu sou um cara meio romântico, eu gosto das coisas meio antigas mesmo. Música antiga, gosto de camaradagem, de carro velho cheio de gente dentro tomando cerveja, ouvindo um som louco. Hoje em dia, isso perdeu o valor, os carros tão cada vez menores, cada vez mais individuais. Uma forma de reagir a essa opressão econômica não é não se adaptar a essas coisas? Não gastar uma puta grana num relógio? Não sei se eu tô me negando ou se eu não consegui me adaptar. Às vezes, eu penso que tô me negando, mas outras vezes eu acho que eu não consegui me adaptar. Mas eu tô feliz.

Fidelidade e traição

Ser verdadeiro é felicidade. Ter meus amigos do meu lado. Saber que meus amigos gostam de mim. O que mata a alma é a traição. Às


vezes, você pega uma pessoa e quer que ela seja igual a você, e ela até fica, mas uma hora ela se mostra. Você passar como otário é a pior coisa. Confiar demais, gostar mesmo da pessoa e descobrir que ela nunca gostou de você. Isso é um barato que ninguém escapa.

Choro e mãe

Faz tempo que não choro. Já chorei. Mas faz tempo. Rolou da última vez numa situação estranha. Pensamento louco, nada a ver. Mas eu não faço papel, eu sou durão. Tem que ser durão. Minha mãe é durona. Mais durona que todo mundo que tá aqui. Ela veio da Bahia com 12 anos, porque tretou com o pai dela e nunca mais voltou. Ela não sabe ler, não sabe escrever. E ela sabe que eu sou duro. Eu tô sempre emburrado. A gente fala que eu sou emburrado por causa dela. Ela é dura, não é amarga, faz os bagulhos sem dó. Eu sou assim também. Eu sou um cara duro, mas não sou mau. Sem amarelar. Não sou mole.

Ser ruim

Ser ruim é o cara que não perdoa. O cara que troca uma amizade pra conseguir alguma coisa por dinheiro.

Classes e conflitos sociais Eu não li muitos livros. Tem muito discurso pronto. Todo mundo fala a mesma coisa da opressão. O pobre é coitadinho e o rico é filho da puta. Na verdade, quem tá por baixo sempre é coitado. Só que tá do jeito que o diabo gosta. O sistema funciona de uma maneira que pobre não tem a mínima condição de ter justiça sem ter derramamento de sangue. Só Deus, mas aí vou ter que ir pro lado da religião... Todos os países que têm uma condição razoável de vida tiveram derramamento de sangue.

Religião

Eu frequento uma igreja evangélica pentecostal aqui da quebrada. Eu já simpatizei com o candomblé. Agora, quando minha família ia ao candomblé, não tinha nem pra comer. O candomblé mexe com coisa que não é da alçada do ser humano. Eu acho que existe uma força maior. Acredito em Deus, que Jesus existiu mesmo, que ele fez o que falam. Não que eu vá seguir pessoas. Se eu tentar me espelhar num crente, vou me danar. Tem que ir pela palavra, não num ser humano que é igual a mim. Todo mundo quer analisar a

religião pelas pessoas. Você pode encontrar pessoas boas e pessoas más numa igreja. Você não pode seguir o homem, mas a palavra. Se fosse pra seguir o homem não existiria Deus e essas coisas. Como pode existir a criatura? Precisa de criador. É outro assunto.

Fama

Você começa a se ver de outro jeito. Eu tô sempre procurando ser cada vez mais verdadeiro. Não me empolgar com elogio de ninguém, não ser nada além do que eu sou.

Pelé

Um barato que dá muito Ibope é falar do Pelé. Ele é um jogador de futebol. Ele soube ser preto do jeito dele. Ele fez a cara dos pretos do jeito dele. Por si só ele representa os pretos. Lógico que se ele falasse causaria impacto.

Não à mídia

Ajo como um preto deveria agir. Digo “não” pras coisas que todo mundo acha que eu devia dizer sim. Nós não precisamos disso aí. F Colaborou o jornalista Ademir Assunção

Referência em quê? O governo Eduardo Campos decidiu deixar uma parte significativa do povo pernambucano sem educação. Convivemos com mais de 1 milhão de analfabetos, quase 2 milhões de analfabetos funcionais, mais de 120 mil estudantes abandonaram a escola em 2009 e as matrículas da educação básica, na rede estadual de ensino, sofreu redução de 964.010 estudantes, em 2006, para 848.961 estudantes, em 2010. Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística indicam que 219 mil pessoas de 4 a 17 anos de idade no estado estão fora da escola. O relatório do Tribunal de Contas apresenta que houve redução na taxa de alfabetização das crianças até 8 anos de idade, de 75,3%, em 2008, para 74,4%, em 2009. O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira, do Ministério da Educação, mostra que houve redução de 2.790 matrículas na Educação de Jovens e Adultos de 2009 para 2010. As despesas orçamentárias com a educação declinaram de 11,61%, em 2008, para 11,28%, em 2009. A aplicação das receitas na manutenção e desenvolvimento do ensino foi reduzida ao longo dos anos: 26,03%, em 2006; 26,02%, em 2007; 25,84%, em 2008, e 25,65%, em 2009. O mesmo fato ocorreu com o comprometimento dos recursos do Fundeb com a folha salarial dos professores: 97,68%, em 2006; 89,89%, em 2007; 84,13%, em 2008, e 68,42%, em 2009, fator que contribui para manter Pernambuco na situação vergonhosa de pagar o pior salário do Brasil ao professor. Apesar da ampla movimentação dos trabalhadores e das trabalhadoras em educação de Pernambuco, coordenada pela direção do sindicato, no período 2007-2010, com 46 assembleias, dois Congressos, encontros estaduais, seminários, muitos debates, 92 dias de paralisação das atividades, organizando e mobilizando a categoria para pressionar e cobrar as promessas de campanha do governador de Pernambuco. O governo não atende as nossas reivindicações, mantendo a política educacional com foco na minoria dos estudantes da rede que frequentam as 60 escolas de tempo integral, no universo de 1.212 escolas da rede estadual de ensino. Paga aos professores gratificação com valores que alcançam o dobro do salário-base.

Continua pagando o pior salário do País aos professores com formação de nível superior, achatando a carreira e utilizando o bônus de desempenho educacional, pago uma vez por ano aos/às trabalhadores/as em educação das escolas que alcançam, no mínimo, 50% da metas impostas pelo Instituto de Desenvolvimento Gerencial (INDG), como política de valorização salarial. Alertamos o Brasil sobre a propaganda distorcida divulgada pelo governo de Pernambuco sobre o desempenho da educação básica e a elevação da autoestima dos/as trabalhadores/as em educação. As escolas de tempo integral só representam 5,4% da rede, logo, o tratamento diferenciado que recebem não pode ser parâmetro para avaliar toda a rede, claro, tratamento diferenciado terá resultados diferenciados. Como o direito à educação é para todos, rejeitamos políticas educacionais voltadas para uma parte dos estudantes. A vida dos/as trabalhadores/as em educação não tem sido fácil. No dia a dia da escola, os problemas continuam, por exemplo, diários de classe extremamente burocráticos, que consomem bastante tempo para o seu preenchimento. A situação se agrava para os professores que, para suprir o baixo salário, possuem dois vínculos empregatícios, principalmente se lecionam determinados componentes curriculares, levando-os a ter um grande número de alunos e diários. A cobrança tem sido desproporcional às condições oferecidas. A terceirização dos serviços de apoio escolar é outro fator que prejudica o bom andamento da educação básica no nosso estado.

Professor Heleno Araújo Filho Presidente do SINTEPE Secretário de Assuntos Educacionais da CNTE

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A periferia e a sua primavera de Praga As periferias do Brasil são hoje marcadamente diferentes do que eram há dez anos e, em muitos sentidos, para melhor

por Pedro Alexandre Sanches

“O

brasileiro não confia muito no Brasil, não confia na melhora, não confia no vizinho. Não há sentimento de união”, afirmava Mano Brown na Fórum número 1, dez anos atrás. “Qual das violências? A do revólver? Há vários lados a analisar. Um, é o do desemprego. A tendência é só piorar”, perguntava e respondia, noutro trecho, o líder dos Racionais MC’s e de todo o rap brasileiro. Não é possível dizer que Brown estava errado em seus conceitos, até porque, sabendo disto ou não, ele era um dos homens que trabalhavam, em 2001 e desde muito tempo antes, para modificar a realidade que suas palavras expunham e denunciavam. Ainda que o desemprego tenha diminuído de lá para cá, tampouco é possível dizer que vivamos num mar de rosas no Brasil de 2011. Mas que as previsões do rapper estavam erradas até certo ponto, ah, elas estavam. As periferias do Brasil são hoje marcadamente diferentes do que eram naquele tempo e, em muitos sentidos, para melhor. E há inúmeros depoimentos a corroborar essa evidência. “Vou fazer um filme agora, O Jeito Favela de Ser Feliz. É sobre como a favela é feliz no seu cotidiano”, conta Preto Zezé, um ex-lavador de carros, que hoje é presidente nacional da Cufa, a Central Única das Favelas. Cearense de Fortaleza, ele mora na cidade natal, e isso por si só é um sinal de mudança: a Cufa não acredita que seu presidente precise residir numa das capitais antes fatídicas do Brasil, Rio de Janeiro ou São Paulo. Zezé desenvolve sua tese: “A felicidade aumentou muito na favela, Ave Maria! Eu estava conversando com um amigão do Psol aqui de Fortaleza, que foi candidato a prefeito. Ele dizia: ‘As pessoas estão mais tristes, deprimidas’. Eu falei: ‘Só se for no seu condomínio, cara!’.” Zezé, que também é rapper

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e prepara estreias como cineasta e escritor, é uma das várias personalidades egressas das periferias que apontam a importância crucial do hip-hop – logo, do trabalho de Mano Brown e correlatos – como marco de partida para essa mudança de sintonia. Outro é o poeta Sérgio Vaz, que há dez anos ajuda a modificar o estado de espírito de comunidades como a Chácara Santana, na zona sul paulistana, com os saraus da Cooperifa, que também há exatos dez anos fazem circular poesia produzida para e pelos cidadãos periféricos de São Paulo. “No começo, eu escrevia poesia de protesto. Com a abertura política, os caras falaram que esse negócio de escrever poesia falando do governo estava fora de moda. Falei: ‘Porra, me fodi, porque só sei escrever sobre isso’”, ele lembra. “E aí veio o hip-hop. Pô, então, as coisas não melhoraram tanto quanto o jornal e a novela dizem. Eu, que pensava em escrever como Chico Buarque, pensei: ‘Pô, minha turma não é o Chico Buarque. Eu estava vendo a banda passar quando o fim de semana no Parque Santo Antônio me pegou à toa na vida’.” A referência aqui é ao rap “Fim de semana no parque”, lançado em 1993 pelos Racionais. “A gente nunca imaginou que o nosso bairro ia estar numa música”, Sérgio evoca, rindo. “A gente está acostumado a ouvir falar de Ipanema, Leblon, ‘dia de luz, festa de sol, e o barquinho a deslizar no macio azul do mar’, que é a realidade da classe média. De repente, você ouve alguém falando do seu bairro. O RZO fala de Pirituba, vem o Sabotage e fala do Brooklin. Peraí, a gente mora aqui. E aí começou todo mundo a falar dos seus bairros, e começou a dar um ar de pertencimento. Quem tem que sentir vergonha da favela é o governo, não é?” Se em setores do chamado “centro” o hiphop era e é visto com reservas e desdém, Sérgio dá a exata dimensão de como as letras e batidas do rap caíam nos ouvidos das comunidades, que passaram a produzi-las: “Muitos caras foram ouvir falar de Zumbi dos Palma-

res, Martin Luther King, Malcolm X ou Steve Biko pela primeira vez através de uma música de rap, não na escola. A partir daí, a bússola se inverteu um pouco, um lugar que tinha tudo pra dar errado começa a dar certo... Hoje, há moleques frequentando a universidade, fazendo cursos de cinema, fotografia, noites do sarau da Cooperifa com 300 pessoas pra ouvir e falar poesia. E tudo isso aconteceu por causa do desprezo da classe dominante, que nem sabe o que a gente está fazendo.” O rap é vetor notável desse fenômeno, mas não é o único. Na década que passou, esse modelo de orgulho e autonomia proliferou por diversas periferias do Brasil. A paraense Gaby Amarantos, cantora e compositora de tecnobrega, fala em alto e bom som de sua origem indígena, paraense e, mais especificamente, de filha de Jurunas, bairro pobre de Belém. Em diversos estados do Nordeste, pedreiros, motoristas, empregadas domésticas e zeladores de edifícios de classes média ou alta abandonam seus empregos para cantar e/ou trabalhar na movimentada indústria do novo forró. No Rio, funkeiras inventam um feminismo de características próprias e originais, e a Cidade de Deus vira sede disseminadora de literatura, funk carioca, cinema, hip-hop e ativismo social – pelo e pela militância na Cufa, MV Bill vira herói de sua comunidade, invertendo paradigmas negativos seculares. “Quando eu morava na Piraporinha, nos anos 1970, a gente tinha que mentir que morava no Socorro ou em Santo Amaro pra conseguir emprego. Na TV, era época do Gil Gomes, esses caras que a cada semana pegavam um bairro pra satanizar, e esse bairro ficava judiado”, lembra Sérgio. “Hoje tem Datena, eles continuam lá, só que o alcance que têm é muito menor. Hoje, a juventude não para pra assistir Datena. O vício da TV é uma coisa dos mais velhos. A geração nova, da internet, sabe que tem coisa muito mais interessante acontecendo no YouTube.” Outro caso exemplar é o de Heliópolis, na


Sérgio Vaz

Apresentação de dança que fez parte da Mostra Cooperifa, na zona sul de São Paulo

zona sul paulistana, hoje mais citada na mídia por conta de sua orquestra sinfônica que por relatos de violência nas páginas policiais. Numa noite em que o bairro é visitado pelo repórter, há oito festas ocorrendo simultaneamente, todas elas gratuitas, incluindo festas de funk e forró ao ar livre, show do sambista Almir Guineto e a Balada Black, assim definida por seu organizador e DJ, Reginaldo Gonçalves: “Cerca de 800 jovens participam e seguem à risca algumas regras, como não consumir qualquer tipo de bebida alcoólica ou drogas. A balada é produzida e fiscalizada pelos próprios jovens, que, além de mostrar que têm como se divertir de cara limpa, promovem a valorização da comunidade e o respeito às diversas tribos, através dos diferentes estilos musicais que tocamos.” Patrocinado mais ou menos invisivelmente pela cervejaria Ambev, o projeto desincentivador do consumo de álcool antes dos 18 anos se chama Jovens Alconscientes. É uma iniciativa da Unas, Associação de Moradores de Heliópolis, da qual Reginaldo é diretor. Ele também dirige a Rádio Comunitária Heliópolis, experiência bem-sucedida (e, de início, bastante perseguida pelos poderes oficiais) de mídia alternativa e cidadã, uma das muitas que têm ajudado habitantes das periferias a prescindir de informações tendenciosas oferecidas pela “grande” mídia – os locutores, moradores da comunidade, são estudantes universitários. O sistema todo foi alçado à condição de Ponto de Cultura, na gestão anterior do Ministério da Cultura. As cotas nas universidades, por sinal, são outro elemento notável de transformação – mais uma vez, sob fortes resistências da sociedade dita de “centro”. “O cara da periferia faz uma faculdade inferior e, mesmo assim, o

outro cara está com raiva dele”, ironiza Sérgio. “É aquele que come três refeições e está incomodado com quem come uma. Agora os caras estão comendo! Se soubessem que o cara que come uma refeição não tem tanta vontade de morder o que come três... ‘Reacionário’ é mesmo a palavra, eu não consigo entender o ódio que o cara tem de alguém que faz uma coisa diferente da dele.” Reginaldo avalia, de dentro, as mudanças em sua comunidade: “Vejo que Heliópolis avançou muito nesses dez anos. Na minha infância e adolescência, não tínhamos praticamente nenhuma opção de lazer ou cursos de formação, ou de profissionalização. As nossas referências infelizmente vinham das ruas. Não tínhamos referências positivas. Os jovens de hoje têm muitas opções, o acesso à informação é fácil e temos vários exemplos de pessoas que moram em nossa comunidade e hoje são referências positivas para nossa juventude.” A profusão de lan houses, democratizando até certo ponto o ciberespaço nas comunidades é citada indiretamente na ponderação de Reginaldo: “Hoje temos mais acesso à informação por meio da internet e de outras mídias. Mas infelizmente, por outro lado, em alguns pontos ainda não tivemos muitos avanços, como a questão da educação de qualidade.” Sérgio também faz o balanço entre o que melhorou e o que não: “Algumas coisas mudaram, algumas continuam as mesmas. Às vezes, muda-se alguma coisa pra não se mudar coisa alguma. A educação ainda é falha, não por culpa dos professores, mas porque a escola está a mil e os alunos estão a milhão. O sistema de saúde ainda é muito falho, a segurança é muito falha. O que mudou pras pessoas é a condição financeira, que melhorou um pouco, é inegável.”

Mais uma vez, o poeta da Cooperifa traça um paralelo entre épocas distintas: “Nos anos 1980, pra ir até o Bexiga assistir um cineclube ou dar um rolê, a gente atravessava a cidade. Pra voltar, tinha que esperar o primeiro ônibus passar às 5, 6 horas da manhã. Hoje, um jovem aqui da nossa quebrada não precisa ir pra lugar algum pra ir ao cinema. Nós temos Cinema na Laje, Cine Becos, Cine Escadão, Cine Viela, Cine Palmarino. Se ele quiser ouvir e falar poesia, tem 50 saraus espalhados por aí. Tem grupos de teatro se apresentando em espaços como praças, escolas. Estamos vivendo a nossa Primavera de Praga, a nossa bossa nova, a nossa tropicália. E o que está sendo bacana é que é a nossa primeira vez, e a primeira vez cê tá ligado como funciona, né?” Como funciona, Sérgio? “É muito mais forte. A gente nunca teve uma literatura que nos representasse, uma música que nos representasse além do samba. No máximo o cara ia pro centro e voltava famoso pra quebrada. Hoje, não, o cara quer ser reconhecido na quebrada dele, é um artista-cidadão.” Chame-se bossa negra [como chamava Elza Soares, 50 anos atrás], pretropicália, Cooperifa ou o que for o fenômeno, ele bate às nossas portas em 2011 – e a cegueira da “grande” mídia em percebê-lo é mais um sinal a legitimar a primavera. De volta ao começo, talvez as formulações de Mano Brown dez anos atrás fossem algo descrentes num futuro para os seus. Dez anos depois, o artista-cidadão Mano Brown continua em sua quebrada, mantém-se dentro de seus princípios. E assiste ao seu redor às transformações que suas palavras, mesmo eventualmente pessimistas, ajudaram bravamente a construir. F setembro de 2011

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10 anos de conquistas P

thiag bi o bal

ara este número de décimo aniversário da Fórum, Renato Rovai pediu que eu fizesse um balanço: será que as coisas melhoraram para a comunidade LGBT brasileira? A resposta, segundo a pesquisa “Diversidade Sexual e Homofobia no Brasil” (Fundação Perseu Abramo, 2009), é “sim”. A maioria de gays e lésbicas (88%) acredita que a situação de homossexuais e bissexuais melhorou nos últimos 20 anos. Eu, que passei a adolescência frequentando guetos homossexuais (sim, vivíamos em guetos muito mais sufocantes que os de agora), acredito também que as coisas melhoraram para nós. Um bom indicador do quanto avançamos na conquista de direitos está no aumento de decisões judiciais, normatizações e leis pró-LGBTs. Desde 2001, quando a Assembleia Legislativa de São Paulo aprovou uma lei penalizando práticas discriminatórias, várias medidas foram tomadas diante das demandas de gays, lésbicas, bissexuais e travestis. Em 2003, o Conselho Nacional de Imigração passou a conceder vistos de permanência para estrangeiros homossexuais “casados” com brasileiros. Quando o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul permitiu o registro de uniões homoafetivas, em 2004, pudemos perceber que o Judiciário caminharia sempre mais adiante que o Congresso Nacional (sempre conservador em questões LGBT). Essa percepção se comprovou quando o STF, agora em 2011, considerou a união homoafetiva uma entidade familiar. Eis um grande passo para a legalização do chamado “casamento gay”. O fato é que decisões favoráveis a LGBTs só fizeram aumentar nos últimos anos. Basta uma consulta ao site da dra. Maria Berenice Dias (www.direitohomoafetivo.com.br). Os movimentos homossexuais também mudaram nesta última década. A Parada do Orgulho LGBT de São Paulo ganhou rele-

vância e é o evento turístico que mais gera dividendos para o município. Há dez anos, insistíamos na importância da visibilidade de LGBTs: era preciso sair às ruas, mostrar a cara, sair do armário, aparecer na mídia etc. Hoje, até porque nos tornarmos mais visíveis, o foco é o combate à homofobia. Não quero dizer, com isso, que não lutávamos contra a homofobia antes e que não damos importância à visibilidade hoje. Acontece que a maior exposição de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais nas ruas e na mídia vem provocando a reação de grupos homofóbicos. Não é raro ouvirmos frases odiosas como “gays já têm direitos demais”, “eles querem privilégios” ou “eles estão muito saidinhos”. Essas afirmações mostram o quanto a conquista de direitos (iguais, e não especiais) irrita homofóbicos. A presença de LGBTs nas ruas, à luz do dia, parece despertar o ódio de quem quer nos ver, novamente, trancados em guetos. Sempre houve crimes homofóbicos. Mas agora eles são mais noticiados, graças à velocidade da informação, à democratização da web e a alguma sensibilidade da mídia convencional. Será que esses crimes aumentaram em razão da maior visibilidade de LGBTs? Será que a homofobia manifesta tem a ver com a onda conservadora que se ergue em várias praias? Não sei. Só sei que o machismo está na raiz da homofobia. É preciso injetar boas doses de feminismo nas veias da sociedade. E falo de todos nós. Há muito machismo nas organizações de esquerda ou progressistas. Há muita misoginia dentro do movimento LGBT. Se a última década marcou conquistas significativas, a verdade é que o trabalho mal começou. Avanti popolo! F Twitter: @vleonel E-mail: vangeleonel@uol.com.br

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Os intelectuais no pós-lulismo

Em virtude do enorme grau de concentração e homogeneidade política da mídia brasileira, as figuras que nela falam como intelectuais tendem a ser as mesmas

por Idelber Avelar

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ção dos adversários que usou pejorativamente, como neologismo para se referir a eles, o termo “intelectuais”, que até então não tinha circulação em francês. Desde então, a palavra se firmou para, nesse sentido estrito, definir aqueles sujeitos sociais que, trabalhando com o pensamento, intervêm para além das suas especialidades particulares, de forma pública, em temas que dizem respeito à pólis como um todo. Seu grande modelo, durante o século XX, também foi francês, Jean-Paul Sartre, mas as últimas décadas nos deram vários indícios de esgotamento do modelo humanista e orgânico do intelectual sartriano, questionado duramente a partir da explosão anárquica e horizontal de Maio de 1968. No Brasil, como em outros países da América Latina, a reforma universitária impôs uma tecnificação e uma compartimentalização que limitaram

Luciano tasso

á dez anos, nascia a revista Fórum. Há dez anos, os ataques terroristas a Nova Iorque e Washington – embora não diferentes moralmente de incontáveis ataques realizados pelo terrorismo de Estado ocidental no mundo árabe – inauguravam um momento histórico distinto, caracterizado pelo declínio da aura de invencibilidade dos Estados Unidos e pela lógica perversa da guerra sem fim. Na América Latina, a eleição de Hugo Chávez, três anos antes, e de Lula, um ano depois, dava início à guinada à esquerda que caracterizou a década no continente. Nos ataques de 11 de setembro de 2001, apareceram em tempo real para o grande público, pela primeira vez, testemunhos pessoais compilados em ferramentas de publicação on-line, que então começavam a serem conhecidas como “blogs”. Coincidentemente, a década termina com enormes protestos populares no mundo árabe, em Israel, Chile, Inglaterra e Espanha, para os quais as novas tecnologias cumpriram papel central. Onde estão os intelectuais que pensaram esta década? Onde é que o pensamento tem se encontrado com a práxis? O termo “intelectual” é usado em vários sentidos, alguns deles, inclusive, pejorativos. Em seu sentido estrito, ele remete ao “caso Dreyfus”, na França. O jornal L’Aurore publicou, em 13 de janeiro de 1898, uma carta aberta do então já renomado escritor Émile Zola, dirigida ao presidente da República, com o título que se tornaria célebre: J’accuse (Eu acuso). O texto era um potente ataque ao processo militar que havia injustamente condenado o oficial judeu Alfred Dreyfus por crime de traição. Evocando a verdade e a justiça, denunciando o antissemitismo do caso, lembrando a França dos direitos do homem, a carta de Zola criou uma mobilização sem precedentes entre artistas e escritores, que logo publicaram textos em apoio a Dreyfus. Foi a retalia-

a possibilidade de que a universidade produzisse intelectuais com condições e disposição de intervir publicamente, para além das suas áreas de especialização. Privilegiou-se aqui a produção de um outro espécimen, o técnico, que tem em relação ao intelectual uma diferença marcante: o técnico jamais apresenta suas opções como resultado de escolhas políticas, e sim de uma racionalidade instrumental lógica. O técnico, portanto, não se coloca na posição de ter que assumir as consequências políticas do que preconiza, já que todo o processo de escolha é situado numa arena supostamente externa à políti-


ca. Seu grande modelo brasileiro, nas últimas décadas, foram os economistas do tucanato, que apresentaram a privatização, a desregulamentação dos mercados e a descapitalização do Estado como produtos de uma escolha puramente racional, técnica, que seguia uma inexorabilidade científica. Foi preciso que um outro modelo se impusesse para que ficasse claro quão ideológicas eram aquelas escolhas. Mas ao longo dos anos 1990, os economistas da privatização não se apresentavam, e não eram percebidos por grande parte da população, como representantes de um projeto político. Falavam em nome da ciência. Em virtude do enorme grau de concentração e homogeneidade política da mídia brasileira, as figuras que nela falam como intelectuais tendem a ser, em geral, as mesmas. O leque dos chamados a opinar é notavelmente estreito: sobre ações afirmativas, se escutará Yvonne Maggie ou Demétrio Magnoli (de nenhuma produção acadêmica séria sobre o tema) dizendo que elas “racializam” a sociedade; sobre qualquer episódio da história moderna do Brasil, aguarde a entrevista com Marco Antonio Villa. E assim por diante, com a lista completa disponível num texto anterior que publiquei aqui na Fórum (“Acadêmicos Amestrados”, edição 80). Há exceções que desafiam o coro, como mostram as recentes contratações de José Miguel Wisnik, pelo O Globo, e de Vladimir Safatle, pela Folha de S.Paulo. Mas, em geral, a intelectualidade que fala na mídia brasileira é bastante homogênea. A partir de 2003 e, em especial, do final de 2005, que marca a recuperação do presidente Lula do episódio do mensalão e o aparecimento mais nítido de indicadores do sucesso socioeconômico do governo, a reação da intelectualidade alinhada com o lulismo centrou todo o seu poder de fogo na crítica da mídia. Dada a virulência com que os conglomerados de mídia brasileiros atacaram o lulismo com moralidade seletiva e, em muitos casos, com pura e simples falsificação (como na montagem publicada pela Folha como se fosse a ficha do Dops de Dilma), essa reação era esperável, mas ela também solapou severamente a capacidade dessa intelligentsia de produzir pensamento crítico sobre o Brasil. A proliferação do termo “PiG”, que se fundamenta numa teoria de mídia patentemente ultrapassada, favoreceu atos de leitura seletiva que confundiam com golpismo qualquer crítica ao governo, mesmo as legítimas (como muitas críticas ambientalistas ou as restrições às nomeações ao STF, ou o lamentável compadrio com Ricardo Teixeira na gestão do futebol). Daí foi

um pulo para declarações em que, mesmo confessando ignorância sobre um tema, o intelectual alinhado descartava, por exemplo, com o argumento de que o tema não tinha transcendência. São os momentos em que o intelectual abdica dessa condição para se transformar em puro apparatchik. Talvez o grande legado dos últimos anos, para a renovação do papel do intelectual no Brasil, tenha sido a experiência dos Pontos de Cultura do Ministério de Gilberto Gil e Juca Ferreira. Mais de 4 mil centros produtores e difusores de cultura, em todo o território nacional, revolucionaram a concepção que regia a relação entre a esquerda e as culturas populares no Executivo. Em vez de “levar” um produto cultural ao povo, os Pontos de Cultura potencializaram expressões já

jogo da oposição de direita. Estão aí os recados do mundo contemporâneo: Wikileaks, revoluções árabes, M-15 espanhol, revoltas de consumidores excluídos em Londres, o radicalizado movimento estudantil no Chile, as surpreendentes manifestações de massa em Israel. Quais serão os pensadores ativistas brasileiros que entenderão que a simples manutenção do atual paradigma não será suficiente por muito tempo mais? Quem será capaz de articular pontes entre o ambientalismo e o combate à desigualdade social, de tal forma que a nova classe C seja permeável à urgente mensagem de que fazer hidrelétricas e exportar soja até a água e o solo acabarem não é exatamente um bom plano? Quais serão os intelectuais que entenderão o recado das comunidades digitais, da disseminação

desenvolvidas pelas próprias comunidades, valorizando-as. Quando, por exemplo, os índios ashaninkas, da aldeia Apiwtxa, no Acre, produzem um filme como A gente luta mas come fruta (2006), mostrando o trabalho de manejo agroflorestal e a luta contra os madeireiros, e depois passam a ser uma das primeiras 30 aldeias contempladas como Pontos de Cultura indígenas (2009), é toda uma formação de intelectuais não tradicionais que vai se gerando por disseminação descentralizada. Infelizmente, como a Fórum tem debatido à exaustão nos últimos meses, a restauração conservadora no Ministério da Cultura de Dilma, retomado pelo Ecade, pelo lobby dos direitos autorais e da propriedade intelectual e pela “classe artística” tradicional, tem causado um dano considerável a esse legado. Ele sobrevive no ativismo, mas foi completamente desalojado do aparato estatal, e não há perspectiva de que ele encontre grandes brechas ali num futuro próximo. O brutal retrocesso no Ministério da Cultura, a intensificação do paradigma desenvolvimentista herdado de Lula, com a consequente destruição ambiental (da qual a Usina Belo Monte é o maior, mas nem de longe o único exemplo) e a timidez do governo na regulamentação das telecomunicações são só alguns indicadores de que a intelectualidade de esquerda terá que ter jogo de cintura para se descolar do governismo sempre que necessário, sem fazer, evidentemente, o

do comum na internet, do potencial político da troca, cópia e circulação infinita de arquivos? Quais serão os acadêmicos que saberão romper os muros da universidade e vincular suas pesquisas específicas com os interesses gerais em conflito na pólis? As tarefas que se apresentam para a intelectualidade de esquerda são enormes, e repetir a eterna cantilena de atacar e corrigir as distorções de Globo e Folha não é o caminho para enfrentálas. Embora a luta pela democratização das comunicações continue sendo uma das mais urgentes entre essas mesmas tarefas. Obs.: Como preparação para esta coluna, fiz em meu Twitter (@iavelar) uma breve enquete: quais são os intelectuais que, na última década, o ajudaram a pensar, entender e planejar o Brasil? Deixo para o leitor da Fórum uma seleção dos mais votados, como convite a que se conheçam suas obras. Em primeiro lugar, o meu próprio voto: Maria Rita Kehl, José Miguel Wisnik, Eduardo Viveiros de Castro, Luiz Antonio Simas, Vladimir Safatle, Nei Lopes, Gilberto Gil, Luiz Felipe de Alencastro, Raquel Rolnik, Maria da Conceição Tavares, Márcio Pochmann, Tostão e Lorenzo Mammi. Outros bem votados foram: Roberto DaMatta, Luiz Fernando Veríssimo, Jessé de Souza, Rodrigo Naves, Marcos Nobre, Alexandre Nodari, Raúl Antelo, Marilena Chauí, Pádua Fernandes, Ronaldo Lemos, Sérgio Amadeu, João Reis, Ana Maria Gonçalves, Luiz Costa Lima e Francisco Foot Hardman. F

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É preciso democratizar o Estado Marilena Chauí, em 2006, criticava a estrutura criada pela classe dominante no Brasil e defendia a prioridade da reforma política Por Glauco Faria e Renato Rovai

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onversando com a filósofa Marilena Chauí percebe-se algo que já é evidente em suas obras: não se trata de uma intelectual qualquer. Fala de fato aquilo que pensa e não tem medo de assumir posições difíceis quando o momento é adverso. Foi assim recentemente quando, em meio à crise vivida pelo governo Lula, virou “saco de pancadas” de muitos, principalmente da mídia conservadora que chegou a aventar um dito “silêncio” irreal. Mas isso não a abalou. Continua na esquerda, no PT, e acredita na refundação do partido que ajudou a construir. Repudia o acordo feito com o PSDB, que evitou uma devassa no governo FHC e prega, como tarefa urgente para o país, a

reforma política para a “democratização do Estado brasileiro, que tem uma forma completamente oligárquica e autoritária”. Na entrevista a seguir, a filósofa fala sobre estrutura partidária, direita e esquerda e o que se pode esperar de um eventual segundo governo de Lula.

no 42 - setembro de 2006

Fórum – Levando em consideração que estamos em meio ao processo eleitoral, a senhora pode iniciar esta entrevista fazendo uma reflexão a respeito da reforma política?

foto da capa: Gerardo Lazzari

Marilena Chauí – A reforma política é questão prioritária, e digo isso porque aconteceram dois momentos decisivos na história brasileira que transformaram a forma das nossas instituições políticas e fizeram-nas ser como

são hoje. O primeiro instante abordei em Leituras da Crise, livro da Editora Perseu Abramo. Trata-se da reforma realizada por Geisel e Golbery. Naquele momento, se faz um arranjo político de maneira a garantir mais poderes à

Uma pauta ainda atual Durante a dita crise do “mensalão”, em 2005, parte dos jornalistas e da oposição ao governo Lula criticava o fato de diversos intelectuais de esquerda e simpatizantes do PT terem supostamente se calado diante do quadro de crise política, que deixava boa parte da militância sem ação. Aproveitando o gancho e promovendo a ruptura do tal silêncio (que não existiu de fato), Adauto Novaes organizou o Seminário O Silêncio dos Intelectuais naquele mesmo ano, evento que faria parte de uma trilogia para discutir cultura e pensamento em tempos de incerteza. A filósofa e professora da Universidade de São Paulo Marilena Chauí abriu o ciclo de debates, e sua fala editada foi um dos destaques da edição comemorativa de 5 anos da revista Fórum. Ali, ela comentava sobre o momento que o País vivia: “Para obter e identificação do consumidor com o produto, o marketing reproduz a imagem do político enquanto pessoa privada: características corporais, preferências sexuais, culinárias, literárias, esportivas, hábitos cotidianos, vida em família, bichinhos de estimação. A privatização das figuras do político e do cidadão privatiza o espaço público. Com isso, a avaliação ética dos governos não possui critérios próprios de uma ética pública, e se torna uma avaliação de virtudes e vícios pessoais dos governantes, e a corrupção é atribuída ao mau-caráter dos dirigentes, e não às instituições públicas. Temos o narcisismo completo.”

Desde aquele momento, buscamos uma entrevista com a professora. A ocasião de consegui-la surgiu quando foi lançado o livro Simulacro e Poder - Uma Análise da Mídia, pela Editora Perseu Abramo. Conseguimos a entrevista em agosto de 2006, a tempo de ilustrarmos a capa de outra edição de aniversário, de seis anos da revista. Na conversa, que durou aproximadamente duas horas, Marilena Chauí teceu críticas à forma de se fazer política adotada pelos partidos no Brasil e defendeu a prioridade de se debater e implementar uma reforma política para a “democratização do Estado brasileiro, que tem uma forma completamente oligárquica e autoritária”. Tal reforma teria como primeiro alvo desmontar a estrutura partidária montada pelo general Golbery do Couto e Silva e que vigeria até os dias atuais. Mas, além disso, tratava-se “da mudança da representação e da reforma partidária, do modo de expressão do Legislativo e do Judiciário, da relação entre cada partido e a aliança que ele realiza e sua expressão nos projetos e programas sociais. Isto tudo implica também uma mudança no nível do aparelho estatal”. A reforma política ainda está na pauta. E, não só por isso, vale ler o que diz Chauí. Glauco Faria

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Fórum – Mas a crise de 2005 teve como ponto central a questão da corrupção, a senhora então parece apontar que isso está relacionado à forma de organização política do país?

Marilena – Não se pode fazer do combate à corrupção um combate moral. É verdade que têm aqueles que não se deixam corromper, mas a verdadeira corrupção se dá por conta da forma como está estruturada a instituição, que produz como ação possível dela a corrupção. Então, quando penso a reforma política, tenho que tratar da mudança da

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representação e da reforma partidária, do modo de expressão do Legislativo e do Judiciário, da relação entre cada partido e a aliança que ele realiza e sua expressão nos projetos e programas sociais. Isto tudo implica também uma mudança no nível do aparelho estatal. É bem verdade que o governo Lula recompôs muito do aparelho estatal, mas há ainda outro problema para além da decomposição a que foi submetido no governo FHC. Na medida em que o Estado brasileiro foi montado pela classe dominante brasileira, ele é regulado juridicamente por um conjunto de leis, pareceres, resoluções, decretos e portarias que é a concepção que essa classe tem da política, do Estado e do que deve ser um governo. Há uma muralha jurídica que impede um partido de esquerda realizar metade de suas propostas. Quando estávamos na prefeitura [Marilena Chauí foi secretária de Cultura no governo de Luiza Erundina em São Paulo], cada proposta que vinha de uma das secretarias ou da prefeita e que tinham relação com a questão social encontrava uma barreira no setor jurídico, que explica por que, do ponto de vista da lei, não se podia realizar aquilo. Então, a primeira resposta que se tem do ponto de vista jurídico é sempre um “não pode”. E vai desde o “não pode” de uma gravidade imensa até o “não pode” folclórico. Não pode uma atividade cultural com os deficientes mentais, porque isso é uma coisa para a Secretaria de Saúde. E a Secretaria de Saúde não pode fazer oficinas com os deficientes mentais porque isso é uma coisa da Secretaria de Cultura. Além dessa coisa ridícula, deste “não pode” ridículo, há o “não pode” para valer. Não pode mexer na iluminação da cidade, na rede de esgoto, não pode intervir no plano diretor, não pode fazer a tarifa zero... E assim vai, ou seja, não há como realizar um projeto de esquerda. Um programa de governo de esquerda é minado, destruído cotidianamente pela estrutura do Estado. Sendo assim, reforma política também tem que ter em mente a democratização do Estado brasileiro, que tem uma forma completamente oligárquica e autoritária. Não basta o conjunto de propostas que a Constituição tem, fruto do trabalho dos movimentos populares, é preciso vontade política e um poder político capaz de desenvolver a democratização do Estado.

Fórum – O presidente Lula no início do seu mandato não optou por um certo “bom-mocismo” na relação com o status quo? Será que ele não pode repetir esse caminho caso seja reeleito?

Marilena – Infelizmente ele optou pela transição. E eu fui contra isso. Achei um absurdo

fotos: Gerardo lazzari

Arena em relação ao MDB. E o resultado incide particularmente no problema da representação. Por conta disso, a forma da representação no Brasil, ainda hoje, está toda determinada por uma visão de poder do final da ditadura. Mesmo com o processo de democratização do país, não se tocou naquilo que, do ponto de vista da operação da política, foi a chave do poder ditatorial. Então, quando me refiro à necessidade da reforma política, o primeiro alvo é desmontar a estrutura partidária montada pelo general Golbery do Couto e Silva. O segundo instante é o que acontece com o Estado brasileiro durante o governo Fernando Henrique, que, entre outras metas, teve as de desconstruir, desinstitucionalizar e desconstitucionalizar o país pela demolição do aparelho estatal. Aí temos um campo minado. Como é que se vai efetivamente governar, legislar, representar e operar a presença do Estado na área social e na definição do perfil econômico do país se, por conta da forma como se estrutura a representação, o governante não pode contar com base legislativa? A noção do voto proporcional, a aritimetização da representação, a falsa proporcionalidade e a desconsideração dos mecanismos efetivos dessa representação tornam impossível um partido político que ganhe no Executivo governar o país. E os governantes convivem em escala menor com esse problema no plano do estado e no plano municipal. O resultado disso é a falsa aliança, na medida em que, para que ela existisse efetivamente, seria necessário definir um projeto político e um programa de governo que representasse as posições sociais, econômicas e políticas dos aliados. E isso não tem acontecido no Brasil. Nem mesmo na aliança do PFL com o PSDB ou na do PT com o PL, que foi uma brincadeira. Isso significa que o atual modelo também compromete o partido como instituição, porque ele não consegue exprimir- -se em termos nacionais e não tem condições de realizar no governo a expressão do seu projeto político-partidário. Isso é uma catástrofe, e vale para todos os partidos.

[A] reforma política também tem que ter em mente a democratização do Estado brasileiro, que tem uma forma completamente oligárquica e autoritária

aquela coisa de bolo de noiva [nome do local onde se instalou a equipe de transição do governo Lula]. Muitas vezes, escrevi sobre o risco de pensar o início do governo como uma transição. Não se podia fazer com a política neoliberal do FHC uma transição, teria que ter havido uma ruptura. O que você chama de “bom-mocismo” foi efetivamente não mexer na política econômica que estava implantada e não fazer aquilo que, ao meu entender, teria sido indispensável e que teria evitado o que aconteceu em 2005. Deveria ter sido feita uma devassa naquele governo. Não se fez a devassa, não se propôs a ruptura com o poder econômico e se aceitou como forma de iniciar o percurso a transição.

Fórum – A senhora tentou argumentar contra isso, conversar com outros acadêmicos, com gente do PT a respeito de suas posições contra esse modelo de transição?

Marilena – Fizemos reuniões de intelectuais com o Paulo Vanuchi, fizemos uma primeira reunião lá no Banco do Brasil, com o Lula, Palocci, todos. E houve uma longuíssima arenga


do Palocci, do Zé Dirceu etc., explicando porque seria daquele jeito. Um grupo, do qual faziam parte o Chico de Oliveira e o Fabio Konder Comparato, disse então, “Tchau e bênção”. Outro grupo se mortificou, comeu as unhas e foi para casa. E alguns, como eu, ficaram lá para ser saco de pancadas do país. Para poder justificar ao país o injustificável, viramos saco de pancadas. Mas, à época, pensava o seguinte: “É por um desejo infantilmente esquerdista que não quero que seja assim. Preciso ser racional, realista, e entender os limites que a realidade impõe ao nosso desejo...”.

Fórum – O argumento a favor do caminho de uma transição era convincente?

Marilena – Sim, era uma coisinha depois da outra. Tudo o que eles explicavam tinha uma certa lógica, um caminho. Houve momentos em que havia até cronograma. Coisas como, no mês tal será assim, no outro, assado e nós ficamos completamente convencidos de que o cronograma tinha sentido [risos]. A sorte do Lula é que ele tinha um outro conjunto de ministros e de quadros no setor social fazendo, dentro dos limites que a estrutura estatal permite, uma mudança profunda. Fórum – Nesse contexto, como a senhora explica o PSDB? Qual é o projeto político-partidário deles?

Marilena – É preciso levar em conta que o PSDB nasce contra o quercismo. Sai de dentro do PMDB contra o Quércia e com um discurso moralista, mas, na prática, a saída teve a ver com o fato de o grupo que o organizou ter perdido poder no PMDB. Ou seja, o Quércia tinha ganho a parada e esse grupo resolveu sair. A saída também precisa ser entendida sob a mesma lógica da não entrada desse grupo no PT. Por que esse grupo não entrou no PT? Ouvi deles que não iam entrar porque não aceitavam ser conduzidos por um macacão azul. É literal. Diziam: “Não vamos ser conduzidos por um macacão azul.” A criação do PSDB se dá por falta de alternativa. E por que decidem se assumir como social-democratas? Ainda é preciso levar em conta o que tinha acontecido com a social-democracia que os levou a se denominar assim. A socialdemocracia era o New Labor e a Terceira Via, portanto um compromisso claro com a política neoliberal. A aliança que se deu com o PFL, embora deva ser explicada com base em todos os defeitos que é o horror da nossa estrutura partidária e a forma da representação que temos, não é gratuita. Foi a escolha de um aliado que não tem programa. O programa do PFL é manter as coisas como estão

para ver como é que fica, ele tem como meta a manutenção do poder que vem desde o período colonial. Por isso, insisto, essa aliança não foi casual. Foi a aliança da ausência de programa e projeto de um grupo que tinha por objetivo a permanência de certas formas de poder econômico e político, com o programa da Terceira Via, que é perfeitamente compatível com a hegemonia neoliberal e com a perspectiva oligárquica do PFL.

Fórum – E o Fernando Henrique foi o grande intelectual desse processo?

Marilena – Sem dúvida. Ele é uma inteligência fervorante. Em 1981, estava escrevendo Democracia e Socialismo e fui estudar um pouco o que se dizia do Brasil e, particularmente, o que os sociólogos diziam. E a diferença entre os escritos dele e os dos outros me deixou impressionada. Era de uma inteligência extraordinária. Ele é a alma dessa concepção, não tenho a menor dúvida. Por um lado, o que estava na cabeça dele era dar a si próprio um destino. Para ser rei, ele teria que se dar um destino. Mas também, além de assegurar a si um destino, tinha por objetivo realizar aquilo que todos os escritos dele, como sociólogo, sugeriam. E uma coisa nuclear nos escritos dele é a ideia de modernidade. E o que é a modernização nessa concepção? É fazer o país se equiparar aos países do capitalismo desenvolvido. Se estivermos up-to-date com o que os países de capitalismo central estão realizando, então estamos realizando algo moderno. Ora, o que eles realizavam era o neoliberalismo, mas com viés da Terceira Via. A busca dessa modernidade definiu a política do PSDB. Ou seja, não é verdade o “esqueçam o que eu escrevi”. Um dos polos fundamentais da escrita sociológica do Fernando Henrique é a paixão pela modernidade, que o leva, no momento em que vai fazer política, a realizála com aquilo que era entendido naquele momento como modernizador. O segundo elemento, se você toma a tese sobre os escravos, todos os textos sobre a teoria da dependência, ele explica o Brasil acom base em um critério. Esse critério envolve o Estado, o capital nacional e o capital internacional. Ou seja, a análise exclui a classe trabalhadora. Não tem classe trabalhadora. O trabalhador não é sujeito histórico, não é sujeito político. É o que aparece na tese de doutorado dele sobre os escravos, tidos como instrumentos passivos da vontade do senhor. As revoltas, as rebeliões, as formas de compromisso que assumem com os senhores, todo o trabalho dos escravos para se constituir em um novo sujeito foi ignorado.

Fórum – Mas com toda essa trajetória do Fernando Henrique e do próprio PSDB, por que o PT cogitou uma aliança com os tucanos para as eleições de 1994?

Marilena – Essa aproximação quase ocorreu várias vezes. E está programada uma nova aproximação. Ouvi dizer que vai haver tentativas nesse sentido.

Fórum – Sim, mas na questão da visão do Estado, do papel do capital nacional na economia, por exemplo, posições majoritárias do PT às vezes encontram mais sintonia com posições de setores da direita clássica do que com setores do PSDB. Nesse sentido, gostaria que a senhora tratasse um pouco dessa questão de esquerda e direita.

Marilena – Deixe-me começar com uma frase que considero maravilhosa, uma frase de um filósofo francês chamado Alain. É um pseudônimo. Ele diz que todo aquele que afirma não existir direita e esquerda, não haver oposição entre direita e esquerda, é uma pessoa de direita. Este é o pensamento de direita. A pergunta que você me faz é uma pergunta típica de esquerda. Mas vamos tratar um pouco mais da aproximação do PT com o PSDB. Com a história de cada um desses partidos, a inserção política deles e os projetos que apresentam e defendem para a sociedade, não dá para afirmar que estão no mesmo espectro político. E não daria para supor que eles poderiam se aliar. Esses partidos não estão no mesmo espectro, embora o ex-ministro Palocci tenha feito o possível para que a resposta fosse sim. Isso significa que, mesmo em uma perspectiva em que a relação com a política macroeconômica seja a mesma, há o conflito e a separação no campo da definição das políticas sociais. Mesmo que efetivamente se pudesse separar uma política de outra, haveria conflito. Nós vimos, pelo o que está acontecendo no governo Lula, que a fachada da macroeconomia é uma coisa e a política verdadeira é outra, e passa por outro lugar. Se houver uma tentativa de aproximação, ela vai se estabelecer por aí. Pode-se tentar estabelecer um acordo na chamada macroeconomia, mas haverá um desacordo nas políticas sociais. Um segundo elemento que permite esse acordo é a ideia de que aquilo que, na perspectiva de esquerda, se torna a questão dos direitos econômicos e dos direitos sociais e políticos, possa ser produzido na linguagem do PSDB como modernidade. Quer dizer, a constituição da cidadania pode ser considerada um projeto moderno, há várias maneiras, em um nível partidário do discurso, que permitiriam uma aliança. Se você não fizer setembro de 2011

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a análise a fundo para ver o que cada um desses termos significa, pode simplesmente apresentá-los quase como slogans. E aí dá para juntar os dois partidos. Fórum – Parece que a senhoa acredita que isso vai acontecer?

Marilena – Não sei se vai acontecer. Mas diria que vão tentar.

Fórum – Mas, por exemplo, no que diz respeito à concepção do Estado, o entendimento majoritário nesses partidos parece ser absolutamente distinto.

Marilena – Total. O que estou dizendo é que os focos dos verdadeiros conflitos não serão tratados. Os pontos que aparecerão, porque são slogans e porque podem adequar-se perfeitamente um ao outro, serão usados para justificar uma aliança.

Fórum – Mudando de partidos, qual a sua análise a respeito do Psol? O que lhe pareceu o discurso da senadora Heloísa Helena em entrevista ao Jornal Nacional, ao dizer que “no programa de partido se trata de objetivos estratégicos do partido. Não tem nada a ver com programa de governo”?

Marilena – Não vi o Jornal Nacional, mas se ela falou isso, ela é uma gracinha, né? Porque ela saiu do PT exatamente por causa dessa diferença entre o programa do partido e o programa de governo. Fórum – Até que ponto as diferenças entre os partidos são profundas de fato ou os projetos pessoais é que prevalecem?

Marilena – É uma tristeza... Isso acontece porque não se tem uma verdadeira reforma política que assegure a existência de partidos e uma história partidária. Esse é um dos elementos. Agora, em relação ao Psol, acho o seu surgimento perfeitamente compreensível diante dos vários problemas do governo do PT. Sem dúvida nenhuma se pode e se deve fazer uma crítica a esse governo pela esquerda. Pode-se fazer uma crítica à esquerda permanecendo no partido ou mais à esquerda ainda saindo dele. Então, qual é o problema que vejo no Psol? Até o nascimento do PT, os partidos de esquerda que surgiram no Brasil, incluindo o PCzão, sempre foram de intelectuais. O que para a esquerda é muito problemático, na medida em que se ela é verdadeiramente de esquerda, se é marxista, a mudança que fará precisa da participação da classe operária. O Psol reata com essa história de um partido de esquerda formado por intelectuais e, no máximo,

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pela classe média. Isso não invalida a existência do Psol e as críticas que ele faz, mas coloca um problema. Como é que ele pode apresentar-se como um partido de esquerda e marxista se não é constituído pela classe operária? Acho que é um problema insolúvel. Agora, quando levo em conta a ida para o Psol de alguns petistas, faço distinções. Por exemplo, considero a ida do Plínio de Arruda Sampaio completamente diferente da do Chico de Oliveira ou do Paulo Arantes. O Chico de Oliveira e o Paulo Arantes fizeram uma crítica ao governo no primeiro dia. Na hora que saiu a Carta aos Brasileiros, iniciaram a crítica. Ora, o Plínio fez a crítica no interior do partido e lutou pela refundação; quando viu que sua proposta foi derrotada, nem sequer esperou o resultado final desse conflito e se retirou com todo o grupo dele, alterando o rumo que a refundação poderia tomar. A saída do Plínio, foi a meu ver, algo grave do ponto de vista do comportamento político.

Fórum – A senhora diz que o PT precisa mudar, mas essa mudança virá? Se vier a acontecer, o que pode vir desse processo?

Marilena – Não será um retorno às origens, até porque 2007 não poderá ser um retorno a 1980. Mas é possível refazer as formas de organização anterior da sociedade, é possível repensar, por exemplo, as ONGs. Entre outras coisas, penso que as ONGs foram elementos muito destrutivos da história do PT. Porque uma coisa é um movimento social, outra coisa é uma ONG. Muitos dos movimentos sociais petistas transformaram-se em ONGs para sobreviver. E por quê? Porque se passou a ter uma estrutura hierárquica, burocrática, profissionalizada se definindo como partido e todo o resto ficou de fora. Os movimentos sociais tornaram-se incapazes de intervir em tomadas de decisão, em deliberações e em propostas de políticas nessa hierarquia autoritária, centralizada e profissional. Então, o que aconteceu? Esses movimentos, para não perderem as bases sociais que possuíam, se transformaram em ONGs. Mas a ONG, no fundo, é uma organização parasitária e opera, no fim das contas, como grupo de lobby. Ou seja, não tem de maneira nenhuma uma natureza política ativa, transformadora, que o movimento social tem. Uma das coisas que imagino que vá acontecer é o desmanchar de muitas ONGs e o retorno de movimentos sociais e populares como a base constitutiva do PT. Penso também que teremos força para desmontar a estrutura de organização e direção que predominou e levou à crise de 2005.

Fórum – O que é mais deletério nesta estrutura?

Marilena – Que ela opera por um sistema de representação em que a direção se apresenta como se fosse o partido e, ao mesmo tempo, tenta passar a ilusão de um partido democrático por meio da realização de congressos, encontros e convenções. Só que a estrutura disso é completamente burocrática e definida pela direção. Ou seja, quem vai ser delegado, quem não vai ser delegado, quais questões vão ser discutidas e não vão ser discutidas, em que momento a discussão se fará. Há um simulacro de democracia partidária quando, na verdade, o que você tem é o funcionamento embaixo de um enorme aparelho burocrático. Fórum – A senhora apontaria o ex-deputado José Dirceu como um dos responsáveis pela burocratização do partido?

Marilena – Ele é uma das cabeças desse processo, mas não condeno o Zé Dirceu por causa disso. Porque foi assim que o Zé Dirceu aprendeu a fazer política e foi assim que ele foi treinado e exercitado a fazer política. Considero natural que, quando ele ganhou as posições de direção, fizesse assim. O problema é que nós deixamos que isso acontecesse. O meu problema não é a figura do Zé Dirceu, o meu problema é a nossa inércia e nossa facilidade para deixar que uma certa concepção de partido, que nega a sua história nascente, pudesse se realizar. O Zé Dirceu foi muito coerente, realizou aquilo que considerava ser o correto em um partido de esquerda. O problema foi a base petista, a militância, os dirigentes dos núcleos, ter deixado isso acontecer. Logo, nós não tivemos uma verdadeira discussão, uma verdadeira luta e um verdadeiro conflito dentro do partido, para que isso não fosse vitorioso. A gente foi se acomodando e deixando acontecer e achando que coisas importantes poderiam ser feitas à margem da estrutura partidária. Sem levarmos em conta que, ao fazer isso, estávamos mais uma vez repetindo duas histórias péssimas: a história dos partidos comunistas e a história dos partidos políticos do Brasil, em que o partido é uma máquina que funciona para determinados fins e a política verdadeira, transformadora, se dá fora dele. Fórum – O presidente Lula sempre teve voz ativa dentro do partido, por mais que alguns setores da mídia o apontassem como fantoche de outras lideranças. Ou seja, ele também tem responsabilidade nesse processo?

Marilena – Ah, sem dúvida...


Fórum – Sua esperança é que, se reeleito, o segundo mandato do presidente Lula seja um pouco mais à esquerda do que foi o primeiro, mas será que o presidente Lula estaria disposto a enfrentar o que é necessário para que isso possa vir a acontecer?

Marilena – Vou saber disso na segunda-feira [28/8], porque os intelectuais vão ter uma conversa com ele. Uma das coisas que vou perguntar é isto: “Até onde vamos, presidente?”. Fórum – O Lula costuma ser honesto intelectualmente quando confrontado com esse tipo de questionamento nessas reuniões?

Marilena – Costuma, ele é muito desabrido, não esconde nada. O que ele tem é uma impaciência enorme, isso tem. Quando a gente começa a discutir muito, ele pede para ir mais rápido para a conclusão, para que a gente possa debater. Quando estávamos no Instituto da Cidadania, debatíamos sobre todos os temas, e o Lula ia religiosamente a todas as reuniões, mas, depois de a gente falar por uns 40 minutos, percebia-se pelo olhar dele que mal se aguentava na cadeira, até que ele dizia: “Podemos chegar à conclusão para iniciar o debate?” E aí a gente encurtava a discussão para poder conversar com ele. Mas ele escuta. E isso é uma das características mais interessantes dele. Escuta, entende e não diz nada para você na hora. Mas depois, numa outra circunstância, percebe-se o quanto ele incorporou, trabalhou aquilo, interpretou. Ele é um animal político impressionante. Ele escuta, o que não quer dizer que, no momento em que ele está escutando, ceda. Escuta, às vezes faz de conta que não escutou, mas trabalha aquilo. O Lula é muito inteligente. Alguns traços da personalidade dele foram muito importantes na crise do ano passado.

Fórum – No auge da crise, muita gente duvidava que ele pudesse ser candidato à reeleição. Se fosse outra personalidade, mesmo que pertencesse aos quadros do PT, será que conseguiria terminar o mandato em meio àquilo tudo?

Marilena – Acho que não. Para entender isso, vou voltar aos anos de 1980, 1981. Durante a discussão da fundação do PT e depois, bem no início, criou-se uma escola de quadros, que era para formar as lideranças sindicais. Participei desse projeto com o Francisco Weffort, o José Álvaro Moisés e outros intelectuais. O Lula estava lá, toda a gente, todo o grupo dos operários do ABC estava lá. As discussões eram muito acaloradas. Num certo dia, houve um longo debate, e honestamente não me lembro mais

qual era questão, mas recordo-me do ritmo que tomou. Alguns queriam que aquilo fosse resolvido de hoje para amanhã, outros queriam que a solução fosse naquele dia mesmo, e não amanhã. E alguns defendiam que se desse na semana que vem. O Lula, então, fez a seguinte observação, que guardo até hoje: “Vocês [para os intelectuais] parecem não levar em consideração aquilo que é próprio da classe trabalhadora. Nós temos muita paciência, nós temos uma paciência histórica, a gente sabe que de hoje para amanhã tem uma noite no meio, e essa noite pode fazer com que de hoje para amanhã tudo tenha mudado. A gente precisa ter muita paciência, ir muito devagar.” Nunca me esqueci disso, porque na hora eu pensei: “É isso mesmo”. Intelectual de classe média é imediatista e acha que as coisas acontecem da noite para o dia. Quem tem a história de classe junto com ele e vem dessa história de fato precisa ter construído o que construiu com uma enorme paciência. Acho que foi isso que o Lula mostrou durante o ano de 2005. Ele falou pouco, e aguardou. Houve vezes em que eu teria preferido que ele falasse, fizesse outras demissões mais depressa, enfim, aspirava por um ritmo diferente e por um discurso mais amplo e mais constante, mas acho que ele sabia o que estava fazendo. Ele tinha presente aquilo que nós de fora não tínhamos, porque nós temos tudo isso muito fragmentado. Ele tinha as realizações do governo e sabia que os resultados disso apareceriam. E que era preciso aguardar que aparecessem de uma forma que a população os percebesse. E, em vez de ele tentar suscitar através do discurso uma adesão da população a ele, fez o contrário. Teve paciência, esperou que a população aderisse ao governo e, por isso, aderisse a ele. Acho isso de uma sabedoria política gigantesca. Fórum – Em relação à política social do governo, ao Bolsa Família, o que mais se diz pela mídia é que é demagogia, populismo, chavismo, mensalinho. O que essa interpretação lhe parece?

Marilena – Primeiro, é preciso perguntar a esse pessoal o que eles têm contra o Chávez. Eles precisam explicitar o que têm contra. Depois, acho importantíssimo dizer que tudo aquilo que no Brasil opera no sentido da dimensão da desigualdade econômica e social é considerado populista, paternalista, demagógico, atrasado. Seria interessante perguntar a esse pessoal o que é uma política social moderna. Se essas pessoas que

O meu problema não é a figura do Zé Dirceu, mas sim a nossa inércia e a nossa facilidade para deixar que uma certa concepção de partido, que nega a sua história nascente, pudesse se realizar

criticam explicitassem o que é uma política social moderna e como é que se realiza uma política social moderna com pleno emprego e distribuição de renda, calo a boca. Mas eles não têm como responder, a não ser com malthusianismo social, ou seja, uma parte que tem que desaparecer, tem que acabar, tem que morrer, seleção natural.

Fórum – Tratando de novo e velho, é possível um projeto político de uma esquerda moderna?

Marilena – Não, porque, se for de esquerda, não abrirá mão de dizer que a exploração está ligada à mais-valia e que a mais-valia quem produz é a classe trabalhadora, não tem jeito. Por isso, um projeto como a Terceira Via é a maldição da esquerda, porque é projeto de capitalismo de face humana. Agora, acho que a esquerda modernizou muita coisa, conseguiu introduzir a questão feminina, o tema da juventude, a questão dos direitos humanos, uma quantidade muito grande de temas e questões que não faziam parte do repertório nacional. F setembro de 2011

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Eu conto histórias O fotógrafo Sebastião Salgado já retratou a vida de todas as partes do planeta, flagrando situações de miséria e desencanto. No entanto, nesta entrevista especial para Fórum, concedida em 2002, ele demonstrava esperança em um Brasil que poderia nascer a partir dali

Sebastião Salgado, nove anos depois O repórter pode ter talento, uma grande pauta, a melhor das intenções e se empenhar para fazer uma entrevista exclusiva importante. Mas tudo isso, sem um pouco de sorte, pode não resultar em nada. A entrevista que fiz com o fotógrafo Sebastião Salgado, em novembro de 2002, foi dessas que a sorte ajudou a acontecer. Como se sabe, Salgado é um “cidadão do mundo”, viaja muito, está sempre desenvolvendo projetos. Portanto, é bastante difícil encontrá-lo em Vitória (ES) assim de bate-pronto, a poucos dias do prazo combinado para a entrega da matéria. Quando liguei à sua casa na capital capixaba, fiquei surpreso com a facilidade em encontrálo. Mas foi por pouco: na ocasião, ele estava justamente na véspera de mais uma viagem a Paris, onde está baseada a Amazonas images, agência que ele e sua esposa, Lélia Wanick Salgado, fundaram em 1994. “Moro meio em Paris, meio aqui” [em Vitória], disse-me Sebastião Salgado no dia em que, pelo telefone, fiz a entrevista a seguir, cerca de um mês depois da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva presidente do Brasil. Na ocasião, o fotógrafo tinha grandes expectativas em relação ao governo Lula, prestes a se iniciar. Nove anos depois daquela entrevista, o Brasil já reelegeu Lula em 2006, consagrou a gigantesca liderança do metalúrgico barbudo com a histórica eleição da primeira mulher presidente, no ano passado, e é hoje outro país, que, a duras penas, vai diminuindo as ainda graves desigualdades e cuja influência e liderança se espraia não só pela América, mas pelo mundo inteiro. Eduardo Maretti

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no 8 - 2002

foto da capa: Sebastião Salgado

por Eduardo Maretti

É

comum ouvir que a um dado momento de sua vida (em 1973), num lance aparentemente casual, ele trocou a economia pela câmera. Não é bem assim. Sebastião Salgado reconhece que sua obra fotográfica é o trabalho de um contador de histórias. Mas suas preocupações não se dissociam do ideário do homem que fez doutorado em economia pela Universidade de Paris, concluído em 1971. Ao discorrer sobre suas esperanças de que o Brasil, com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, esteja iniciando um processo histórico que indique a direção de uma verdadeira democracia pela redistribuição de renda, não deixa de enfatizar a lógica perversa que move

o setor agrícola brasileiro, segundo ele o grande problema do país: “Temos que exportar soja, e para exportar temos que produzir em agribusiness, que destruiu grande parte do cerrado brasileiro para produzir soja.” Ao contrário do que reza a cartilha do economês atualmente em voga, Salgado contesta: “O agribussiness é retrógrado”. Sua obra fotográfica é extensa: trabalhou para as agências Sygma (1974-1975), Gamma (1975-1979) e Magnum (1979- 1994). De suas milhares de fotos de povos indígenas da América Latina, populações em êxodo e trabalhadores humilhados resultaram os livros Outras Américas, Trabalhadores (esgotado) e Êxodos, todos pela Companhia das Letras. Sebastião Ribeiro Salgado nasceu em Aimorés (MG), em 1944. Mora “meio em Paris, meio aqui”, mas seu trabalho exige deslocamentos permanentes pelo planeta. Nesta entrevista exclusiva, concedida por telefone de Vitória (ES), na véspera de mais um de seus muitos embarques a Paris, no final de novembro, explica por que está otimista com os rumos apontados pelas eleições de 2002.

Lula e a esperança

Vejo com muito boas perspectivas a eleição do Lula. Inclusive, foi muito interessante, porque quando ele se elegeu, eu estava nos Estados Unidos, participando de um fórum de fundações progressistas chamado Bioneers, que reúne pessoas ligadas às questões ambiental e social. Apesar de a gente ter uma crítica muito forte em relação à posição oficial do governo norte-americano, existe grande quantidade de norte-americanos seriamente preocupados com o problema de distribuição de renda no mundo, com o problema social, o problema da posição do governo deles em relação ao resto do mun-


do. A expectativa, a esperança é muito grande, porque, na realidade, é o governo que foi melhor eleito de todas as esquerdas do mundo, o que acontecer aqui vai ter influência, necessariamente, na América inteira. E hoje há uma expectativa, de todo mundo que está preocupado com a justiça social, de que a gente possa, talvez não ter uma solução já nos quatro anos próximos, mas pelo menos começar a visualizar em que direção podemos ir numa perspectiva melhor para este País. Isso, para mim, dá muita esperança. Não é só uma questão para a esquerda, é para o país como um todo. Uma questão para o mercado, para os investidores e, claro, de uma outra maneira de viver do nosso povo. É a primeira vez na história do Brasil que temos um presidente eleito que não vem das elites, porque mesmo um presidente originário da esquerda, como no caso de Fernando Henrique Cardoso, que é alguém que respeito, que tem uma formação brilhante, que poderia ter feito um governo colossal, mas é uma pessoa que vem das elites, com certa deformação de classe. Esse homem que chega ao poder hoje [referindo- se a Lula] já foi proletário, passou dificuldades imensas, sofreu toda a pressão do sistema, sabe onde é que dói.

O fotógrafo contador de histórias

Quando fiz as fotografias do atentado ao presidente Reagan [março de 1981], já era fotógrafo da Magnum, a maior agência de fotografias do mundo. Na realidade, sempre fui contador de histórias. Minhas histórias sempre foram ligadas ao momento histórico. Fui um dos fotógrafos que mais publicou sobre a Bósnia, porque estava trabalhando com refugiados, e a história principal na Bósnia era de deslocamento de população. No caso do atentado a Ronald Reagan, foi muito especial, estava fazendo uma reportagem pontual, o balanço dos cem primeiros dias dele como presidente dos Estados Unidos. Toda a história aconteceu um pouco por acaso; e eu estava lá, claro, na hora do atentado. Mas não posso dizer que na minha vida fui um fotógrafo de atualidade, que trabalhei em jornalismo puro e duro. Sempre trabalhei em histórias, e elas vão se anexando umas às outras, formando assim a maneira de viver do fotógrafo.

Distribuição de renda

Quando se toma o PIB brasileiro e se divide pela população, tem-se uma renda per capita considerável. Em Moçambique e Zambia, é em torno de 200 dólares; no Brasil, é próxima de 2 mil dólares. O nosso problema é a divisão de renda. Nesse ponto, Lula terá

Temos um setor de serviços colossal. Um sistema comercial interessante, um sistema de empresas brasileiras prestando serviços no mundo inteiro. O nosso grande problema está no setor agrícola, que ainda tem características feudais

um apoio internacional enorme. Os mercados do Norte estão saturados, e nosso país oferece ainda uma perspectiva de desenvolvimento muito grande. Temos um setor secundário bastante importante, e com grande agressividade comercial, capaz de produzir aviões, navios, automóveis etc. Temos um setor de serviços colossal. Um sistema comercial interessante, um sistema de empresas brasileiras prestando serviços no mundo inteiro. O nosso grande problema está no setor agrícola, que ainda tem características feudais. Existe um engano que as pessoas cometem no Brasil, imaginando que os EUA e os países da Europa, pelo fato de tradicionalmente serem conservadores, irão apoiar as forças de direita do nosso país. De forma alguma vão apoiar, porque a direita tradicional no Brasil é concentradora de renda. Então, se a futura política governamental for no sentido de uma redistribuição de renda, Lula vai ter apoio. Durante a visita ao Brasil do senhor James Wolfensohn, presidente do Banco Mundial, no final de novembro 2002, todo seu discurso foi em torno da luta contra a pobreza. E a luta contra a pobreza é necessariamente pela redistribuição de renda.

O agribusiness é retrógrado

Tomando como exemplo o agribusiness no Brasil, muitos dizem que é interessante para o país, que é moderno, e que é nessa direção que temos de ir. Eu não creio. Na Europa, nunca se foi nessa direção. Mesmo nos EUA não se foi nessa direção. Os EUA, na Segunda Guerra Mundial, quando impuseram uma reforma agrária na Itália, foi no sentido da participação familiar. Também no Japão atuaram para acabar com um feudalismo que existia, no sentido de uma redistribuição de renda. Possivelmente teremos que modificar essa ideia imposta aqui no Brasil, já há alguns anos, de que o interessante é o agribusiness das propriedades gigantes, difíceis de gerir.

As tecnologias agrícolas evoluem muito rápido, ficando quase impossível atualizá-las nas propriedades gigantes, como foi o caso dos Kolkozes na União Soviética. Porém, a evolução tecnológica e as exigências de mercado encontram plena adaptação dinâmica nas pequenas propriedades, como é o caso da Califórnia. Essa mobilidade é que vamos ter de encontrar. Temos um rebanho bovino que é o maior do mundo, deve estar em torno de 170 milhões de cabeças. Temos mais gado no Brasil do que população. O Brasil, de 1970 até agora, deve ter mais do que dobrado o seu rebanho. Se tomarmos um preço médio em dólares, a arroba de boi para o quinquê­nio de 1970 a 1975 foi superior a 40 dólares; hoje, essa média é inferior a 20 dólares. A oferta brutal de carne não encontrou demanda no interior do país e não existe mercado internacional para o produto. O mundo inteiro produz carne em excesso. Essa monocultura do capim, parte do agribusiness, destruiu de maneira brutal boa parte de nossos ecossistemas de Mata Atlântica e no Amazonas. Depois, entrou a soja. Não somos consumidores tradicionais do produto. O Brasil é hoje o segundo maior produtor do mundo. Essa produção é realizada normalmente em enormes propriedades utilizando como mão de obra, principalmente, boias-frias, um quase trabalho escravo, e devastando o meio ambiente [cerrado de Minas Gerais e Mato Grosso]. É um produto, da forma que foi desenvolvido no Brasil, que responde, na sua maioria, a uma lógica de exportação e concentração de renda. O mais recente desenvolvimento de “café do cerrado” é outra marca do agribusiness na direção da concentração de renda, da utilização de trabalho semiescravo, da destruição do ecossistema e da exportação. Para mim, o agribusiness é uma direção retrógrada da agricultura, ao contrário do que sempre se apresentou no Brasil. Nos discursos de todos os candidatos à presidência [inclusive Lula), muito ouvimos falar da necessidade que temos de exportar. Pouco se comentou das necessidades de ampliar a renda familiar. Porque o modelo que o Brasil tem é inteiramente baseado nas exportações, não no consumo interno. Tudo aqui dentro está voltado para a entrada de divisas necessárias a um modelo econômico deformado.

Agricultura familiar

A minha grande esperança é que a gente vá em direção a um modelo de agricultura familiar. Milhões de pessoas participando setembro de 2011

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do sistema produtivo, recebendo renda e sendo integradas como cidadãos no sistema de mercado, consumindo educação, saúde, infraestrutura, cultura e também bens de consumo. E isso vai fazer viver a indústria e os serviços, e fazer rodar o país. Porque só assim criaremos um mercado participativo, com efeito multiplicador para a indústria, serviços e setor público, que contará com maior entrada de impostos para investimentos sociais e na infraestrutura. Nesse momento, tenho certeza absoluta de que a pressão da violência que existe hoje nas grandes cidades brasileiras vai reduzirse, porque as cidades menores, no momento em que passarem a participar de um sistema de geração de renda, começarão a criar empregos nas farmácias, nas lojas de tecido, nas lojas de bicicleta, nas lojas de rádio. Vamos precisar de mão de obra nos sistemas de limpeza pública, na saúde pública, na criação de infraestrutura. A exemplo do que já ocorreu em municípios com forte concentração de assentamentos de reforma agrária, o número de pessoas que havia imigrado para as grandes cidades começou a retornar com o aumento da oferta de empregos das pequenas cidades.

Culturas particulares dos povos

Em viagem recente ao Rio de Janeiro, relembrando com Lélia [companheira de Sebastião Salgado e produtora gráfica de seus

Jefferson Rudy / Folhapress

trabalhos] de quando estudávamos sobre os acidentes geográficos em torno desta cidade, tais como o Dedo de Deus, os Dois Irmãos, considerávamos isso como dados da mais alta importância na geografia, e até sentíamos um tremorzinho quando víamos uma dessas referências. Hoje não temos mais essas sensações, houve uma padronização, uma harmonização de tudo; claro, por meio de um sistema informativo incrível, de um brutal acesso às informações. Mas a questão que me coloco é: Como é que vamos voltar atrás, será que tem jeito? Será que isso não é uma opção, que foi feita de uma parte, imposta de outra? Trabalho muito no mundo inteiro. As primeiras vezes que fui à Índia, todos os homens usavam calça branca amarrada na cintura com um blusão que chegava até o joelho, indumentária muito elegante. As mulheres todas de sári. Hoje, parte das mulheres ainda continua usando sáris, mas os homens já estão todos de jeans e camisa, exceto durante as festividades, ou ainda muito no interior do país. Nós podemos sair desse sistema? Essa questão já prova uma parte do sofrimento que nós estamos tendo com a pressão de padronização. Talvez a gente pudesse, num país como o nosso, fazer outra globalização, um pouco mais humanizada. Não acredito que o governo Lula vá poder sair do sistema global, do qual o Brasil faz parte, e teve que fazer parte. Não podia fazer caminho separado. Mesmo países como a Índia e a China, que não aceitam a pressão do FMI, estão todos também padronizados, talvez com margem pouco melhor de manobra, mas no que diz respeito aos hábitos e costumes, sofrem do mesmo problema. Se nós mesmos respeitássemos a nossa singularidade cultural, seguramente viveríamos mais em conformidade com nossa autoestima. Mesmo na música, o Brasil, que foi tão forte em música popular, perdeu muito de sua influência. Os lançamentos nacionais muitas vezes são pressionados por um sistema global que informa, massacra e indica o que é importante. É como se a gente não tivesse identidade cultural.

“Talvez a gente pudesse, num país como o nosso, fazer outra globalização, um pouco mais humanizada”

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Essa ideia de que os museus pertencem a uma superestrutura, à classe dominante, e que só se discute em meios sociais muito sofisticados, acho isso um erro profundo. Tínhamos que difundir essa ideia da cultura para a maioria

A questão do Fome Zero Tenho uma posição muito especial em relação a isso. É um caso emergencial. É necessário encontrar rapidamente a solução, porém, se for só isso, é muito pouco. Como dar um tapa na água, aquele movimento na superfície que acaba logo. Os representantes do novo governo estão solicitando a instituições internacionais, como o Banco Mundial, recursos para o programa Fome Zero. Acho que isso de forma alguma deveria ser feito, isso é uma responsabilidade nossa, dos brasileiros. Daria uma sugestão: criar um imposto emergencial de solidariedade, pago proporcionalmente a cada nível de renda. É nossa emergência, cabe a nós encontrarmos a solução. Mas, além da emergência, temos que encontrar a solução para uma redistribuição de renda, primordial para o nosso País.

A arte e a transformação social

Para mim, sinceramente, a cultura não pode ser dissociada do mundo no qual vive. Acho que tem de ter um comprometimento. Não estou dizendo um comprometimento militante, mas tem que servir para informar, para integrar. Acho que essa ideia que foi difundida aqui no Brasil de uma cultura puramente elitista tem que mudar. A referência teria que passar do “crítico de arte” para a “maioria da população”. Inclusive essa ideia de que os museus pertencem a uma superestrutura, à classe dominante, e que só se discute em meios sociais muito sofisticados, acho isso um erro profundo. Tínhamos que difundir essa ideia da cultura para a maioria. O que são os museus? São nossas referências, referências da nossa história, do passado de todos nós. Os bens materiais acabam, as carruagens acabaram, os automóveis acabarão, os bens de consumos cotidianos desaparecerão. O que fica? Um pouco de literatura, de pintura, de música, isso é que é a nossa história, que é a história da humanidade, a verdadeira história, e de todos nós, não só de uma elite dominante. F


Padrão de trabalho pós-neoliberal N

a passagem para o século XXI, o Brasil alterou profundamente o padrão de trabalho da totalidade de sua mão de obra. Por padrão de trabalho entende-se a dinâmica de geração dos empregos segundo faixa de remuneração, isto é, o sentido geral de evolução do nível ocupacional e do rendimento recebido pelo conjunto dos trabalhadores. No capitalismo, o nível geral de emprego da mão de obra termina sendo determinado por diversas variáveis, especialmente pela dinâmica macroeconômica, que estabelece as condições gerais de uso e remuneração do trabalho. Em síntese, o perfil dos rendimentos e a dinâmica da ocupação definem o padrão de trabalho da mão de obra. No caso brasileiro, percebe-se , entre as décadas de 1990 e 2000, o padrão de trabalho pelo diferencial de geração quantitativa e qualitativa do emprego da mão de obra. Na década de 1990, não somente prevaleceu o menor ritmo na geração de postos de trabalhos como o diferencial perfil de remuneração paga aos ocupados. Isso porque foram abertos 11 milhões de novos postos de trabalho nos anos 1990, sendo 53,6% do total sem remuneração. Na faixa de renda de até 1,5 salário mínimo, houve a redução líquida de 300 mil postos de trabalho. Esse padrão de emprego da mão de obra diferenciou-se significativamente do verificado na década de 2010. No primeiro decênio do século XXI houve forte dinamismo nas ocupações geradas e no perfil remuneratório. Do total líquido de 21 milhões de postos de trabalho criados, 94,8% foram com rendimento de até 1,5 salário mínimo mensal. Nas ocupações sem remuneração (por conta própria, autônomo, trabalho independente, de cooperativa, aprendiz, estagiário, entre outras) houve a redução líquida de 1,1 milhão de postos de trabalho, enquanto

na faixa de cinco salários mínimos mensais a queda total atingiu 4,3 milhões de ocupações. Em síntese, houve avanço das ocupações na base da pirâmide social. O registro de dois diferentes padrões de trabalho verificados na virada do século XX implicou conformar diferenciadamente o perfil remuneratório da mão de obra ocupada no Brasil. Nos anos de 1990, por exemplo, 34,3% do ocupados possuíam remuneração de até 1,5 salário mínimo mensal, enquanto na década de 2000 eram 47,8% na mesma faixa de remuneração. Os trabalhadores sem remuneração mantiveram-se estabilizados na faixa abaixo de 12% nos dois anos selecionados, embora os postos de trabalho com rendimento acima de cinco salários mínimos mensais tenham passado de 16,7% para 7,5% do total das ocupações. Na década de 2000, o sentido das ocupações segundo remuneração alterou-se profundamente. De um lado, a forte expansão dos postos de trabalho com rendimento de até 1,5 salário mínimo mensal, foi acompanhado da redução das vagas tanto sem remuneração como de maior rendimento. Assim, os ocupados de até 1,5 salário mínimo mensal aproximaram-se da metade do total das ocupações existentes em 2009, o que contribuiu para a redução da desigualdade entre as diferentes faixas de rendimento do trabalho. Em virtude desse movimento mais recente de modificação na dinâmica remuneratória das ocupações, percebe-se a concentração dos postos de trabalho abertos na base da pirâmide social. A força do conjunto dos rendimentos dos trabalhadores de salário de base impulsionou a modificação significativa na estrutura da massa de remuneração do conjunto dos ocupados brasileiros. Em 2009, por exemplo, os ocupados com até 1,5 salário mínimo

Brasil: evolução do saldo líquido das ocupações geradas segundo faixa de remuneração (em milhões)

24 20 16 12 8

5,9

0

6,1 1,4

-0,3

-1,1

-4 -8

11,0

4,0

4

21,0

19,9

sem remuneração até 1,5 sm 1,5 a 3 sm mais de 3 sm total

anos 1990

Fonte: IBGE/Pnad (elaboração própria)

anos 2000

-3,9

absorviam 24,5% do total da remuneração do trabalho no país, enquanto em 1989 recebiam 22,3% do conjunto dos rendimentos. Para os ocupados que recebem mais de cinco salários mínimos, a participação no total das remunerações do País era de 35,3% em 2009 ante 45,2% em 1989. Em 1999, a composição dos rendimentos do trabalho registrou menor peso para os ocupados com até 1,5 salário mínimo mensal e mais participação daqueles com cinco salários mínimos e mais, quando comparada à do ano de 2009. Tendo em vista a importância do emprego de baixa remuneração, que constitui a base da pirâmide distributiva do conjunto dos rendimentos do trabalho, ou seja, 47,8% do total da força de trabalho ocupada e 24,5% das remunerações do País, nota-se que a sua evolução recente encontra-se diretamente relacionada às transformações mais gerais da economia e da sociedade brasileira. Esse segmento social em especial não poderia estar associado ao conceito de classe média ascendente, tendo em vista as peculiaridades das ocupações e remuneração, conforme a literatura recente parece fazer crer. O debate a respeito da definição de classe social no capitalismo, em particular classe média, assume maior complexidade, para o qual pressupõe maior profundidade e investigação. De acordo com a literatura internacional, esse segmento deveria ser mais bem considerado na categoria analítica de trabalhadores de baixa renda, pois se trata fundamentalmente de ocupados de salário de base. A sua presença, em maior ou menor expressão, revela o padrão de trabalho existente e, por consequência, o modelo de expansão macroeconômica do País. Na maior parte dos casos, a categoria dos trabalhadores de baixa renda está relacionada com as ocupações que se encontram no entorno do salário mínimo oficial, cujo valor real determina a presença – em maior ou menor medida – de trabalhadores pobres e sua relação com o nível de consumo. Após a regressão neoliberal, o Brasil passou a conviver com outro padrão de trabalho. Ainda que mais positivo, o sentido geral da ocupação e remuneração pós-neoliberal pressupõe avanços maiores a serem constituídos por um projeto nacional de desenvolvimento superior. F

Marcio Pochmann é professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas. Presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

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Marco Legal

Lei Geral consolida pequenos negócios Perto de completar 5 anos, legislação vai passar por aperfeiçoamentos para ampliar o teto de faturamento e incluir novas categorias

Impacto na arrecadação

Dados da Receita Federal mostram impactos positivos do Simples Nacional também nas contas públicas. Na União, a arrecadação de impostos incluídos no sistema cresceu 341%, subindo de R$ 6 bilhões para R$ 26,6 bilhões entre 2007 e 2010. No mesmo período, houve um crescimento de 253% na arrecadação do ICMS, que alcançou R$ 6,2 bilhões. Também foi registrado expressivo aumento de 375% no recolhimento de ISS, com R$ 2,5 bilhões arrecadados no período. No governo federal, o acesso dos micro e pequenos negócios às compras governamentais saltou de R$ 2,9 bilhões, em 2002, para R$ 15,97 bilhões, em 2010, segundo dados do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (Mpog). São números com enorme potencial de crescimento, uma vez que apenas 20% das empresas desse porte fornecem ao mercado público, cujas vendas respondem por somente 4% do faturamento, segundo sondagem feita pelo Sebrae com 4,2 mil empresários.

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Arquivo ASN

E

m vigor desde dezembro de 2006, a Lei Geral da Micro e Pequena Empresa (Lei Complementar 123/06) estabeleceu um ambiente legal que favorece o crescimento dos pequenos negócios. A legislação, que completa 5 anos em dezembro deste ano, contabiliza avanços, especialmente no Simples Nacional e no incentivo à formalização do empreendedor individual. O acesso dos pequenos negócios às compras governamentais também cresceu, principalmente no governo federal, e a regulamentação da lei vem sendo ampliada. Sistema especial de tributação dos pequenos negócios em vigor desde julho de 2007, o Simples Nacional unificou o recolhimento de seis impostos federais mais o ICMS e o ISS. Todos são pagos num único boleto e em uma só data. Houve redução da tributação e foi criada uma tabela de recolhimento de impostos de forma gradativa. Podem aderir ao Simples Nacional empresas com receita bruta anual de até R$ 2,4 milhões. Hoje, são mais de 5,2 milhões de empresas inscritas no sistema, número três vezes superior aos registros do extinto Simples Federal. Essas empresas representam 87% do total de micro e pequenas empresas do País. “Isso resulta da simplificação de procedimentos e da redução da carga tributária”, avalia o secretário-executivo do Comitê Gestor do Simples Nacional, Silas Santiago. O empresário Telmo Kottwitz, de Cascavel (PR), registrou suas duas empresas no Simples e não tem do que reclamar. Um dos negócios, a microempresa de bordados, teve redução de 26% no pagamento de tributos desde a sua inscrição, em 2006. Já a empresa de pequeno porte do ramo de vendas de máquinas de costura, que aderiu ao Simples Nacional em 2007, registrou 11,5% de redução na carga tributária nesse período. O empresário aplicou os recursos economizados na capacitação de pessoal e em tecnologia. Entre 2008 e 2009, a microempresa de bordados registrou aumento acumulado de 76,10% no faturamento, enquanto as receitas do pequeno negócio de máquinas cresceram 50,43%. “O Simples Nacional é um instrumento facilitador da performace empreendedora do empresário brasileiro”, garante.

Empresas locais podem fornecer alimentos de melhor qualidade para a merenda escolar

Projeto de Lei amplia limites de faturamento anual Empreendedor Individual: limite passará de R$ 36 mil para R$ 60 mil Microempresa: limite passará de R$ 240 mil para R$ 360 mil Pequena empresa: teto passará de R$ 2,4 milhões para R$ 3,6 milhões

Regulamentação

A Lei Geral está total ou parcialmente regulamentada na maioria dos estados e em 3.227 dos 5.564 municípios do País. Mas continua em processo de aperfeiçoamento, por meio de Lei Complementar em tramitação no Congresso Nacional. Dono de uma banca de bijuterias na Feira dos Importados, em Brasília, o primeiro empreendedor individual do país, Adalberto Oliveira dos Santos, garante: com a formalização, conseguiu crédito, ampliou estoques, aumentou o faturamento em quase 30% e se prepara para migrar para microempresa. “Estou trabalhando para isso, meu objetivo é crescer”, diz. Na avaliação do gerente de Políticas Públicas do Sebrae, Bruno Quick, a Lei Geral e seus benefícios são incontáveis, mas é preciso conquistar sua efetiva aplicação e colocar em prática os capítulos da lei que tratam do acesso ao crédito e à inovação tecnológica. Bruno Quick ainda aponta os aperfeiçoamentos previstos no Projeto de Lei Complementar, entre eles, a ampliação do teto de faturamento anual de R$ 36 mil para R$ 60 mil para o empreendedor individual e de R$ 2,4 milhões para R$ 3,6 milhões para empresas de pequeno porte. O projeto também permite a inclusão de novas categorias no Simples Nacional, cria o parcelamento de débitos, estabelece critérios para substituição e antecipação tributária de ICMS e desonera as empresas exportadoras.


Empreendedor Individual

Limite de faturamento para empreendedores individuais será ampliado para R$ 60 mil. 1,3 milhão de autônomos já se formalizaram

E

mpreendedores brasileiros tiveram motivos para comemorar no último dia 9 de agosto. Em solenidade no Palácio do Planalto, a presidenta Dilma Rousseff assinou projeto de lei complementar ampliando de R$ 36 mil para R$ 60 mil a faixa de faturamento anual para o empreendedor individual (EI). Essa alteração da Lei Geral, que será votada no Congresso, “irá permitir que mais pessoas tenham acesso à formalização e ao crédito”, disse a presidenta. O aumento de 67% no teto de faturamento irá ampliar a adesão ao sistema simplificado de formalização de negócios, que já atraiu mais de 1,3 milhão de pessoas em dois anos. É o caso do empreendedor individual André Freire Naves, o mágico tio André, de Brasília (DF). “Tenho nota fiscal, posso atender a empresas, tenho previdência e os benefícios da lei. Minha carreira deu uma levantada boa depois que me registrei”, diz. Como ele, centenas de milhares de brasileiros alcançaram essas e outras vantagens do programa Empreendedor Individual. Formalizar-se por meio do EI é fazer um bom negócio. O registro na categoria traz uma série de benefícios, proporciona segurança, dá perspectiva de crescimento pessoal e profissional e, sobretudo, confere cidadania. Com o objetivo de ampliar o alcance desse programa, o Sebrae, governos e outros parceiros se mobilizam para que, antes do final do ano, o número chegue a um 1,5 milhão. “O empreendedorismo é uma alternativa concreta de emprego e renda, como já perceberam esses novos empresários. A inserção no mercado formal traz benefícios não apenas para esses brasileiros, mas para a economia como um todo”, diz o presidente do Sebrae Nacional, Luiz Barretto. Mas não basta formalizar. O Sebrae aposta na capacitação desse público, para que ele atue de maneira competitiva e se mantenha no mercado. “A formalização é apenas o primeiro passo. O foco do Sebrae é dar sustentabilidade aos negócios. Faremos isso buscando ativamente o empreendedor, indo até ele para oferecer conhecimento em gestão, planejamento e inovação”, completa. Profissionais de 467 categorias podem se registrar como empreendedores individuais. Ao legalizar seu negócio, o empreendedor individual ainda pode gerar emprego, contratando um funcionário. “O Brasil vive um processo vigoroso de formalização. Trata-se de uma das mais importantes reformas microeconômicas dos últimos anos, representando uma mudança significativa no ambiente de negócios, pois o país reverteu a tendência de duas décadas de aumento da informalidade”, afirma o diretor-técnico do Sebrae Nacional, Carlos Alberto dos Santos. O Projeto de Lei Complementar nº 591/2010 também facilita os procedimentos para dar baixa no negócio e dispensa a declaração anual do empreendedor individual. As pequenas empresas também serão beneficiadas com a ampliação do teto máximo de faturamento de R$ 2,4 milhões para R$ 3,6 milhões, além de estímulos para exportação e possibilidades de parcelamento de débitos em até 60 meses com o Simples Nacional.

Rodrigo Moreira

O sonho do próprio negócio vira realidade O motoboy pernambucano Jaezer Medeiros quer transformar seu negócio em microempresa e ampliar as atividades para o interior do estado

Esforço intensivo

Para estimular a formalização, o Sebrae realiza a Semana do Empreendedor Individual em todo o País. Nas três primeiras edições, conseguiu a marca de mais de 120 mil formalizações. Na primeira semana, em outubro de 2010, foram 46 mil formalizações; na segunda, em novembro de 2010, mais 28,8 mil; na terceira, entre 27 de junho e 2 de julho deste ano, 47.430 empreendedores individuais se cadastraram nas mais de cem tendas montadas nas capitais e no interior do Brasil.

Horizontes mais amplos

A costureira Maria de Araújo, de 54 anos, formalizou-se na cidade de Ceilândia (DF), na 3ª Semana do Empreendedor Individual. Maria trabalha na própria casa, onde faz consertos e costura peças sob encomenda. Levou 20 anos de atividades para chegar à formalização. Com pouco tempo nessa situação, já enxerga horizontes mais amplos. “Não sabia que era tão fácil e acessível me registrar. Legalizada, consigo descontos na hora de comprar tecidos”, diz a empreendedora. A costureira, que passou a dispor do Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) e da possibilidade de emitir notas fiscais, planeja fazer cursos no Sebrae para aprimorar a gestão do seu negócio. Depois de formalizar um profissional, é necessário capacitá-lo para que ele atue no mercado de forma sustentável e consiga crescer. O Sebrae para o Empreendedor Individual (SEI), lançado em 30 de junho, tem a finalidade de levar conhecimentos sobre a gestão de um negócio aos empreendedores individuais. O SEI divide-se em sete soluções educacionais: SEI Vender, SEI Comprar, SEI Controlar Meu Dinheiro, SEI Planejar, SEI Administrar, SEI Empreender e SEI Unir Forças para Melhorar. Funciona por meio de oficinas de curta duração, cartilhas e kits educativos. Uma novidade é o envio de mensagens por celular, uma linha direta com o empreendedor individual.

Passo adiante

Formalizar-se como empreendedor individual significa dar um grande passo para crescer nos negócios e na vida. Essa é a perspectiva vislumbrada pela maioria dos empreendedores formalizados. O baiano Fabiano Barros apostou no Empreendedor Individual como uma grande mudança. Em primeiro lugar, abriu mão dos R$ 68 que recebia do Bolsa Família, do governo federal, para se formalizar, durante a segunda Semana do Empreendedor Individual, em novembro de 2010. Fabiano é dono de uma loja de recarga de cartuchos e manutenção de computadores em Salvador. “Minha meta é crescer”, afirma o empresário, que vê na possibilidade de participar de licitações uma grande vantagem.

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Complexo do Alemão

Empresários do Complexo do Alemão recebem apoio do Sebrae nas comunidades e investem no crescimento de suas empresas

C

omputador aberto, três celulares, agenda repleta. Concentrado, André Luís Ramos vai lidando com as pendências. Como editor de jornal, checa o andamento das matérias, discute com o diagramador as soluções para as 12 páginas e ainda negocia anúncios. O acúmulo de funções é comum na vida de empreendedores de negócios de pequeno porte, e ele parece adaptado a esta rotina. Com 24 anos, saboreia o prazer de trabalhar pela primeira vez no próprio escritório e ver a consolidação crescente do projeto que concebeu. Com tiragem entre 5 mil e 8 mil exemplares, o “Plantador Fiel” começou a circular gratuitamente no Complexo do Alemão, conjunto de 13 favelas na zona norte do Rio de Janeiro, em dezembro do ano passado, menos de um mês depois da ocupação policial que expulsou os traficantes. No entanto, o que confere particularidade à trajetória desse jovem empresário não são apenas as conquistas, mas as armadilhas das quais escapou. Sem sinal de autocomiseração, André fala da sua condição de exmorador de rua, ex-empregado do tráfico e ex-presidiário, e vivendo em uma das áreas mais violentas do Rio. “É fácil se envolver com o crime, porque existe a ilusão de que o dinheiro vem fácil. Trabalhava como vapor (pequeno vendedor de droga), e, assim que enchia o bolso com R$ 1 mil, ia para o shopping comprar roupas e tênis de marca. Depois, sem nada para fazer, escola ou trabalho, só existe o agora. A sorte é que fui preso, senão acho que já estaria morto”, relata. No Instituto Padre Severino, centro de reclusão para menores infratores, ficou dos 15 aos 17 anos. Lá, aprendeu a dominar programas como edição de imagem e diagramação e, pela primeira vez, vislumbrou um futuro promissor. Mas a ideia só começou a se concretizar com a pacificação do Complexo. A atuação formal permitiu uma parceria com uma gráfica, que, em troca de anúncios, cedeu o escritório onde André montou o negócio. “Só trabalhava para empresas, não tinha nem nome na porta porque não queria chamar atenção para os meus equipamentos, que são caros. Perdi vários clientes de outros pontos da cidade por conta do meu endereço”, conta Anderson Fragoso, da gráfica Draw Color. O empresário assiste otimista às mudanças que a pacificação produziu. Com a vinda de novas empresas e obras por toda parte, se sentiu mais seguro para investir. Já comprou uma máquina de recorte, outra para aplicação de ilhoses e uma terceira de impressão, para trabalhos maiores. “A compra dos equipamentos e a reforma são um investimento grande, mas vale a pena”, ressalta. Nas comunidades pacificadas já foram registrados cerca de mil Empreendedores Individuais, de um total de 60 mil formalizados na cidade do Rio. Até agora, já foram instaladas as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) em 18 morros cariocas. Para atender ao interesse crescente, foi criado no ano passado o projeto Sebrae nas Comunidades, que permite esclarecer dúvidas e conhecer em detalhes os benefícios da formalização.

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André Telles

Pacificação estimula negócios no Rio de Janeiro Clarice, o leque de produtos e perspectivas promissoras com seu negócio

“Com a mercadoria nas sacolas, só podia ir à casa de conhecidos. Na loja, todo mundo vai poder entrar e também vou vender com cartão”

Viver na legalidade

Clarice Eugênia da Silva foi a primeira moradora do Complexo do Alemão a ser formalizada em 12 de dezembro, durante o evento Empresa Bacana, parceria da prefeitura com o Sebrae no Rio de Janeiro. O número do Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica foi entregue pelo prefeito Eduardo Paes. “Nem sabia que ia acontecer aquilo tudo. Mas via a chance de viver na legalidade”, explica. Clarice já trabalhou como agente de saúde, técnica de enfermagem e começou a faculdade de Turismo. Pretende voltar a estudar, mas abandonou as demais atividades “por falta de vocação.” Vendedora nata, aos 31 anos Clarice quer mudar de patamar e parar de ser sacoleira, como define. Fala com entusiasmo da loja que vai abrir e discute com precisão o tamanho das prateleiras com o vidraceiro. Clarice afirma que, depois da inauguração da loja, vai investir na qualificação. “Conheço os cursos do Sebrae. Estou muito interessada, porque quero entender tudo da minha empresa. Antes, não tinha a ideia de crescer”, afirma.

Inovação como diferencial

Ganhar espaço no mercado sempre foi uma preocupação de Isaías dos Santos Ferreira. Com um serviço de carro de som, aprendeu por experiência que cada evento exige um cuidado específico. “Em passeatas e atos públicos, por exemplo, o som tem que ser mais alto e mais direcionado do que em festas e procissões”, explica. Baseado nessa percepção, ele desenvolveu um sistema simples, mas engenhoso. A plataforma, montada na carroceria do carro, permite que as caixas possam ser remanejadas. “Meus concorrentes trabalham com a caixa fixa e o som sempre fica igual. O meu, sempre atende às exigências de cada ocasião”, orgulha-se. A formalização foi outro passo acertado e livrou o dono da Isaías Sound de muita dor de cabeça, que, quando não conseguia emitir Recibo de Pagamento de Autônomo (RPA), comprava nota fiscal. Empreendedores e amigos, o empresário de som Isaías e o editor André decidiram criar um banco de empreendedores. A ideia, que começou a ser colocada em prática no final do primeiro semestre, é cadastrar quem faz o que, conferir visibilidade aos produtos e serviços e criar um blogue para abrir um canal de comunicação mais rápido e integrado. “As grandes empresas que estão chegando precisam saber o que pode ser encontrado aqui”, enfatiza. Com a formalização, Isaías aumentou número de clientes e faturamento.


Territórios da Cidadania

Sebrae vai investir R$ 180 milhões nos Territórios da Cidadania, beneficiando 800 mil empresas e empreendedores individuais

Eduardo Eigner/MDA

Alternativas se multiplicam nas regiões carentes Ações nos Territórios da Cidadania estimulam a agricultura familiar e a comercialização da produção

A

Formalização e fortalecimento

O Territórios da Cidadania foi lançado pelo governo federal em 2008, com o envolvimento de 22 ministérios. O objetivo era trabalhar em três eixos: inclusão produtiva, infraestrutura e acesso à cidadania. A participação do Sebrae, inicialmente em 55 dos 120 territórios, logo se mostrou gratificante: “Conseguimos chegar a comunidades mais distantes e carentes, onde nunca tínhamos chegado, e onde faltava todo tipo de informação e apoio técnico para a inclusão produtiva. O resultado foi a formalização de um sem-número de negócios e o fortalecimento do tecido econômico”, resume o gerente da unidade de Desenvolvimento Territorial do Sebrae Nacional, André Spínola. Foi o que aconteceu em Santa Terezinha, no território da Grande Dourados, onde mora dona Maria Alves. A ideia de aproveitar as goiabas que os maridos descartavam na hora de vender na feira de Itaporã rendeu um fruto especial: a Associação de Mulheres Rurais Empreendedoras de Santa Terezinha, dedicadas à produção de doces, sorvetes e outros alimentos à base de goiaba. Além de evitar o desperdício, o novo negócio orientado pelo Sebrae ganhou as mercearias do município e de Dourados. E a produção tem sido comercializada em exposições e feiras em várias partes do País e vem turbinando a renda familiar.

Ciclo virtuoso

“É um ciclo absurdamente virtuoso”, entusiasma-se André Spínola, explicando o resultado do empreendedorismo e do crescimento dos negócios locais, que acabam aumentando a renda da população, gerando empregos formais e fazendo com que o dinheiro passe a girar dentro da própria comunidade. O desafio agora é fazer com que esse ciclo virtuoso beneficie todos os 120 territórios da cidadania, atingindo um público de cerca de 800 mil

Moraes Neto

goiaba que acabava apodrecendo no quintal de dona Maria Alves Costa, madura demais para ser vendida na feira de Itaporã (MS), virou doce, geleia e polpa, e faz uma diferença e tanto na renda da família toda. As cinco pousadas do vilarejo de São Miguel do Gostoso (RN) foram multiplicadas para 26, e hoje são disputadas por turistas estrangeiros, para alegria de Ruiz Mazurek, um dos donos da Pousada Casa de Taipa. Assim como dona Maria e Ruiz, milhares de novos empresários de micro e pequenas empresas estão sendo beneficiados com o programa Sebrae nos Territórios da Cidadania. Um programa que leva atendimento e consultoria técnica às regiões mais carentes do País, fomentando o empreendedorismo, a formalização da economia e o desenvolvimento regional. Na segunda etapa do programa, que começou em 2011 e vai até 2013, vão ser investidos R$ 180 milhões.

A transformação de São Miguel do Gostoso (RN) em polo turístico beneficiou negócios como a Pousada Casa de Taipa

empresas ou empreendedores individuais, com atendimentos coletivos, por meio de consultorias, palestras, feiras, oficinas e rodadas de negócios, além de atendimentos individuais, com foco no programa Negócio a Negócio. A implementação da Lei Geral da Micro e Pequena Empresa é outra prioridade. E, além do agronegócio, a meta é promover também as áreas de comércio, indústria e serviços. Ruiz Mazurek que o diga. O executivo, que deixou a direção de uma multinacional em São Paulo para abrir uma pousada numa praia paradisíaca do Rio Grande do Norte, precisou do apoio do Sebrae para mergulhar no mundo do micronegócio. Foi com os técnicos do Sebrae que ele aprendeu a organizar o modelo de gestão e a traçar o planejamento estratégico para a empresa; foi deles que recebeu orientações simples e decisivas para o sucesso da pousada, como a adaptação de espaços para pessoas com necessidades especiais. No ano passado, Mazurek e os sócios receberam o prêmio de melhor microempresa do Rio Grande do Norte no setor de turismo. “Não dá para atirar no escuro na hora de empreender; é preciso ter o pé no chão”, pondera Mazurek, realizado com a vida em São Miguel do Gostoso, um dos municípios do território de Mato Grande, que atrai turistas do mundo inteiro por causa dos ventos favoráveis a esportes radicais. Uma vocação impulsionada pelo Sebrae e que transformou a vila de pescadores num polo turístico. Há cinco anos, havia cem leitos à disposição dos turistas; hoje, são mais de 550. Sem falar nos restaurantes e nos pequenos negócios que se multiplicaram, impulsionando a economia local.

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Saramago e nossos moinhos de vento No FSM, o prêmio Nobel de Literatura, falecido em 2010, trazia reflexões e questionamentos em todas as suas participações no evento de Porto Alegre edição: Renato Rovai

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asceu na aldeia ribatejana de Azinhaga, conselho de Golegã, no dia 16 de novembro de 1922, embora o registro oficial mencione o dia 18. Seus pais emigraram para Lisboa quando ele ainda não perfizera 3 anos de idade. Toda a sua vida tem decorrido na capital, embora até o princípio da idade madura tivessem sido numerosas e, às vezes, prolongadas, as suas estadas na aldeia natal. Fez estudos secundários (liceal e técnico) que não pôde continuar por dificuldades econômicas. No seu primeiro emprego, foi serralheiro mecânico, tendo depois exercido diversas outras profissões: desenhista, funcionário da saúde e da previdência social, editor, tradutor, jornalista. Publicou o seu primeiro livro, um romance (Terra do Pecado), em 1947, tendo estado depois sem publicar até 1966. Trabalhou durante 12 anos em uma editora, onde exerceu funções de direção literária e produção. Colaborou como crítico literário na revista Seara Nova. Em 1972 e 1973, fez parte da redação do jornal Diário de Lisboa, no qual foi comentador político, tendo também coordenado, durante alguns meses, o suplemento cultural daquele vespertino. Pertenceu à primeira Direção da Associação Portuguesa de Escritores. Entre abril e novembro de 1975, foi diretor-adjunto do Diário de Notícias. Desde 1976, vive exclusivamente do seu trabalho literário. O perfil acima é do site oficial do escritor José Saramago. E como o atento leitor deve ter percebido, foi preservado o texto no original, assim como prefere o autor perfilado, que não permite a adaptação dos seus livros de um português para outro. Nessa quinta edição do Fórum Social Mundial, Saramago esteve em dois debates distintos, discutindo mais a utopia em Dom Quixote,

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no 24 - março de 2005

foto da capa: Gerardo Lazzari

em um deles, e mais a democracia e seus limites na atualidade, em outro. Também deu uma entrevista coletiva. A revista Fórum participou de todos esses eventos, gravando as intervenções do maior escritor vivo da língua portuguesa. O que o leitor tem a seguir é uma edição desses três momentos. Há cortes e edição das falas, infelizmente. Os cortes, porque há limites de páginas. E uma ou outra pequena adaptação, porque, sem elas, se perderia o contexto em certos trechos. Acreditamos que, mesmo assim, para você leitor, valeu a pena.

Uma nova visão do conceito de utopia

Tenho uma má notícia para lhes dar. A má notícia que tenho a vos dar, sobretudo depois de ter escutado os nossos amigos que falaram antes de mim, é que eu não sou utopista. E a pior notícia ainda é que considero a utopia, ou o conceito de utopia, não só inútil como tam-

bém tão negativo como a ideia de que, quando morrermos, todos, vamos ao paraíso. A utopia, segundo se diz, começou com Thomas Moore, com seu livro A Utopia, publicado em 1516. E aí se coloca o nascimento de uma palavra, de uma ideia, mas poderíamos ir muito mais atrás. Poderíamos ir a Platão. No fundo, a utopia nasce sem nome, e talvez seja o que está ainda a atrapalhar aqui, tudo isso, seja o nome. Porque, a rigor, tudo o que foi dito antes poderia ter sido dito com igual rigor, com igual propriedade, com igual pertinência, sem a intenção da palavra utopia. Demonstrarei, ou pelo menos tentarei demonstrar mais adiante, por que há uma questão que é indissociável, da utopia, ou do pensamento utópico, ou do anseio do ser humano por melhorar a vida, e não só no sentido material de melhorá-la, mas também numa outra dimensão: na dimensão espiritual, na dimensão ética, na dimensão moral. Está indissociavelmente ligado, e parece que não, à revitalização e, se quiserem, à reinvenção da democracia. Mas vamos primeiramente a Dom Quixote. Mas, antes de falar de Dom Quixote, queria dizer que os 5 bilhões de pessoas que vivem na miséria, conforme nos declarou Ignacio Ramonet [que havia falado na palestra antes de Saramago], na palavra utopia não significam rigorosamente nada. Os 5 bilhões de pessoas que vivem na miséria, esses a quem se referiu Ignacio Ramonet, no conceito da palavra, nas sílabas, no som de utopia, repito, não significam nada. E também não significarão muito depois de que tenham suas necessidades essenciais satisfeitas, que passem também a usar ou a divulgar, ou a utilizar um discurso mais ou menos emotivo da palavra utopia, como se isso viesse a acrescentar algo àquilo que foi conquistado com trabalho, com luta.


A essência de Quixote Costuma se dizer, e o próprio Cervantes o diz, que Dom Quixote, por tanto ler e por tanto imaginar, enlouqueceu. Não ele, mas um senhor que se chamava Alonso Quijano, quando era, quando tinha razão; a razão esta que vos apresento, de cabeça, Dom Quixote chamavase Alonso Quijano. É claro que, depois de ter enlouquecido, não contente com o nome que tinha, que era o nome corrente, e para dignificar-se, uma vez que entrara, hipoteticamente, em uma ordem de cavalaria onde ele era o único representante, teve de escolher outro nome — Dom Quixote. E assim entrou na imortalidade. Diz-se que ele enlouqueceu. Mas há talvez uma outra maneira de interpretar as coisas. Imaginemos que Alonso Quijano, tenho que dizer que lamento muito que Cervantes não nos tenha falado mais desse homem anterior a Dom Quixote que se chamava simplesmente Alonso Quijano, estava mais ou menos como cada um de nós: farto da vida que levava. Conhecemos todos aqueles casos em que a pessoa está em casa e diz: “Vou comprar cigarros”, e nunca mais volta. Esse é o caso da pessoa que estava farta da vida que levava e decidiu-se ir por uma porta não muito leal, não muito digna e disse: “Vou comprar cigarros”, e nunca mais voltou. No tempo de Cervantes, era difícil, creio mesmo que seria impossível, que alguém que tivesse decidido mudar de vida de uma maneira tão radical quanto essa, que consiste na mudança de vida de Alonso Quijano para transformar-se em Quixote, conseguisse só pelo fato de dizer: “Eu quero mudar de vida”. Porque ninguém, enfim, no pequeno meio em que ele vivia, ninguém entenderia. Então, o melhor é dizer “estou louco”. E a partir

do momento em que alguém diz ou se comporta como louco, tudo lhe é permitido, porque é louco. E esse é o grande truque de Alonso Quijano, que se declara louco, sem o ser. E, no final, Dom Quixote resolve voltar a ser Alonso Quijano. O itinerário de uma falsa loucura, que acaba por regressar aonde principiou à humilde razão humana, com a qual temos de viver e com a qual temos de trabalhar.

Os discursos dos políticos

As palavras são umas desgraçadas e podemos fazer delas tudo aquilo que quisermos. Por isso, um político português que esteve aqui há poucos dias disse que política é a arte do possível. Pois eu disse há alguns anos que política é a arte de não se dizer a verdade. Sabemos que os políticos, em grande parte, mesmo quando não fazem um discurso para esconder, para não dizer a verdade, fazem um discurso que comumente falseia, deturpa, condiciona e manipula.

Utopia é o discurso do não existente

Quando eu vos digo que não sou um utopista e que até admiti, com toda franqueza, que me desagrada o discurso sobre a utopia, é porque o discurso sobre a utopia é o discurso sobre o não existente. Toda gente sabe que a utopia é um lugar que está em um lugar qualquer e que, portanto, não se sabe, não se conhece o destino, também não se sabe o caminho para lá chegar. Também não se saberá quando. Mas o pior de tudo é o equívoco tremendo em que caímos, todos, quando falamos de utopia, que é o seguinte: a utopia, no fundo, no fundo, em termos práticos, significa que

O livre pensar e as palavras

O Fórum Social Mundial voltava a Porto Alegre, em 2005, depois de ter passado por Mumbai, na Índia, no ano anterior. E há ainda quem diga que aquela foi a edição mais bem organizada e impactante da história do FSM. Eram muitas atividades acontecendo no cais do Porto. Na verdade, mais de uma centena de tendas espalhadas e organizadas por eixos temáticos. Entre as muitas personalidades presentes, José Saramago. Ele participaria de uns três eventos, sendo que, no que deveria atrair mais pessoas, discutiria a utopia em Dom Quixote. Decidimos que, em vez de buscar uma entrevista com o escritor português, iríamos fazer algo que já havíamos realizado com sucesso em outra edição do Fórum com a guatemalteca Rigoberta Menchú. Acompanharíamos Saramago em todos os eventos e participaríamos da sua entrevista coletiva. Depois, organizaríamos o resultado num estilo que, na redação, chamamos de “entrevista Fórum”, um texto em que dividimos as declarações ipsis literis da personagem em foco em trechos, divididos por intertítulos. O resultado, sem falsas modéstias, organizou de forma bastante honesta o pensamento do escritor sobre aquele momento histórico. Tanto que, na prova da Fuvest de 2010 (o vestibular para ingresso na Universidade de São Paulo), uma das questões que discutiam a globalização tinha como texto para discutir o tema um trecho da matéria que segue. Renato Rovai

eu, que necessito de umas tantas coisas, quer como pessoa, quer como membro de uma coletividade, de uma sociedade, mas que sou consciente de que não se pode ter agora, porque os inimigos são mais poderosos, porque me faltam os meios, porque a fruta não está madura e, portanto, digo, ponto. Isso que não pode ser agora, tem de sê-lo um dia. Hitler também dizia que o regime nacional-socialista era para durar 2 mil anos, e aqui está outra utopia. E vivemos utopias como vivemos há séculos de mitos, de crenças, vivemos de coisas que não têm nada que ver com a razão. Basta ver a multiplicação das igrejas, das seitas, de tudo isso, que não têm nada para dar, mas que têm tudo para prometer. E essas são formas de utopias. O grande equívoco que temos é imaginar que aquilo que nós precisamos hoje, mas que não podemos ter por faltar-nos meios de todo tipo, devemos colocar para ter em um futuro. Isso se esquece de um pormenor muito simples: vamos imaginar que aquilo que nós desejaremos ou desejaríamos ou desejamos ou estamos desejando agora mesmo, seja talvez realizável no ano 2043. Vamos imaginar isso... Não, não, de 2043 estamos muito perto, vamos imaginar que precisamos de mais 100 ou 150 anos para que nosso desejo seja possível de realização. Quem é que nos garante que as pessoas que então estarão no mundo, os vivos de então, descendentes nossos, daqui a 150 anos, porque nenhum de nós estará vivo para ver, quem é que nos garante que eles estarão interessados naquilo a que nós agora estamos interessados? Quem é que nos garante isso? O dia de amanhã é a nossa utopia. É com o trabalho do hoje que se constrói não já a utopia de amanhã, porque esta, a utopia, já vemos que não é tão modesta; em questões da noção de tempo, sempre se projeta não se sabe quando, não se sabe donde, com essa pequena vida que temos e com a nossa relativa esperança de que amanhã ainda estaremos todos vivos, é com o trabalho do hoje que este amanhã será. E é com o trabalho do que está passando aqui no Fórum Social Mundial que o dia de amanhã poderá sofrer, perceber, captar alguma transformação.

O que é a esquerda?

Em vez de discutir a utopia, se há uma coisa que a esquerda está mais necessitada é de uma revisão rigorosa e criteriosa dos conceitos. Pois, como eu disse antes, as palavras são umas desgraçadas, não podem resistir. A palavra é uma coisa que está ali para ser utilizada quando nos parece. E o pior de tudo setembro de 2011

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é que se pode usar a mesma palavra para dizer coisas não só diferentes, como muitas vezes frontalmente contrárias. Por isso é que eu digo que nós, a esquerda, deveríamos nos dedicar a rever o conceito de esquerda. O que é esquerda hoje? Donde está? Donde está? Está aqui? Está aqui? Claro que sim, claro que sim que está aqui. Mas, na esfera política, muita gente fala da esquerda, como, para voltar a uma frase muita conhecida, invocar o santo nome de Deus em vão.

A democracia amputada

Eu tinha dito que iria propor tirar a palavra utopia do dicionário. Mas, enfim, não vou a tanto, não vou a tanto, deixe ela lá estar. Deixe ela estar, até porque ela está quieta. O que eu queria dizer, amigos, é que há uma outra questão que tem de ser urgentemente revista. Tudo se discute neste mundo, menos uma única coisa que não se discute. Não se discute a democracia. A democracia está aí, como se fosse uma espécie de santa no altar, de quem já não se espera milagres, mas de quem está aí como uma referência. Uma referência é a democracia. E não se repara que a democracia em que vivemos é uma democracia sequestrada, condicionada, amputada. Porque o poder do cidadão, o poder de cada um de nós, limita-se, na esfera política, a tirar um governo de que não gosta e a pôr outro de que talvez venha a se gostar. Nada mais. Mas as grandes decisões são tomadas em uma outra grande esfera, e todos sabemos qual é. As grandes organizações financeiras internacionais, os FMIs, a Organização Mundial do Comércio, os bancos mundiais, tudo isso. Nenhum desses organismos é democrático. E, portanto, como é que podemos falar em democracia se aqueles que efetivamente governam o mundo não são eleitos democraticamente pelo povo? Quem é que escolhe os representantes dos países nessas organizações? Os povos? Não. Donde está, então, a democracia?

O governo Lula

Minha opinião é numa frase muito curta. Se ele só está a fazer aquilo que pode, não é mal. Mal seria se estivesse a fazer aquilo que não deveria. Caso vocês que estão aqui, e que são brasileiros e que assistem todos os dias o desenrolar das políticas do governo Lula, creem efetivamente, com as limitações que sempre se põem no mundo, que se está governando por instituições financeiras e pelo grande capital, pela indústria armamentista, do petróleo, todas essas coisas. Bem, é nessa realidade que os governos vivem, mesmo que tenham as melhores in-

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Portanto, como é que podemos falar em democracia se aqueles que efetivamente governam o mundo não são eleitos democraticamente pelo povo? Quem é que escolhe os representantes dos países nessas organizações? Os povos? Não Abbas Yari / Wikimedia

tenções deste mundo. Portanto, digo que se está a fazer aquilo que pode, eu não me queixo. Se está a fazer algo que não deveria, disso só vocês podem ser juízes, uma vez que vivem aqui. Agora me parece que está a acontecer algo que é comum: há expectativas, há eleições que fazem nascer grandes expectativas, e a de Lula, no mundo, foi uma delas. Aliás, é uma tentação nossa pensar que em um momento acontece alguma coisa que vai decidir tudo daí para diante. Depois não acontece, pois se sabe que tudo é relativo, que tudo tem de encaixar umas coisas nas outras. De qualquer forma, a eleição do Lula despertou expectativas não só no Brasil e na América Latina, mas em todo o mundo, que correspondiam às promessas eleitorais feitas. Depois caímos outra vez na mesma fatalidade, as promessas não se cumprem. Há uma boa quantidade de razões, ou mais razões, para explicar por que não se cumprem. Normalmente aguenta-se o choque e continua-se a viver, mas pode acontecer que aqueles que esperaram que as expectativas fossem cumpridas e creem que não foram, ou que não foram na medida em que queriam que fossem, protestem. Eu vi ontem, na imprensa, o que o presidente Lula disse sobre os protestos, manifestações que foram feitas, disse que são filhos do PT, que quando crescerem voltarão à casa mãe. Eu diria ao presidente Lula que o paternalismo é uma atitude que não convém a ninguém e nem a ele dizer. O que pode acontecer é que o protesto se faça com um radicalismo desproporcional em relação à causa, esse é outro aspecto que deve ser considerado. Pode acontecer que haja um motivo para protestar, mas que a expressão desse protesto seja de tal forma radical, que tenhamos de reconhecer a desproporção do manifesto e sua causa. Enfim,

mas quem é que vai agora fazer um juízo do que está equilibrado e o que não está.

As universidades

Sou a pessoa menos indicada para falar do papel das academias e da universidade. Em primeiro lugar, porque nunca passei por uma universidade. Agora passo muitas vezes, porque já me fizeram 30 ou mais doutoramentos honoris causa, não sou autodidata, fui fazer mecânica, aprendi a trabalhar com as mãos numa escola profissional e, portanto, a universidade é aquela coisa que está ali e até hoje eu nunca estudei. Não sei se ganhei ou perdi com isso. O pior que se pode notar, não em todas as universidades, mas em demasiadas, é essa espécie de processo endogâmico de reprodução. Quando digo reprodução não é que os professores reproduzam professores, é uma espécie de consciência exacerbada da impotência, não da universidade, mas do universitário. Há uma espécie de hierarquia, de elite universitária, que até do ponto de vista profissional é preparadíssima, faz o seu trabalho, mas às vezes sabem por que o fazem, mas não para quem fazem. Acho que a universidade deveria abrir suas portas para quem está fora poder entrar, ter aulas, isso sim é que é utópico. Agora a universidade tem de abrir suas portas e ver o que se passa aqui fora, a universidade não pode ser uma espécie de Sancto Sanctorum, em que só se entra na graça de Deus. Por exemplo, todo esse debate que se está a fazer aqui no Fórum deveria ser um debate vivo dentro das universidades. Isso que está aqui devia transladar-se. Por exemplo, aqui falamos muito do estado da democracia, por que as universidades não estabelecem debate sobre a democracia? São eles que podem decidir se podem e querem fazer isso.


Abortos intelectuais Também tenho uma história que creio que vão apreciar. Estava há poucos meses em um encontro de prêmios Nobel em Barcelona. Lá estavam 12 pessoas que receberam prêmios de literatura, Física, Medicina, enfim... Houve um debate sobre o papel do ensino superior, e fomos surpreendidos pela intervenção de uma dessas pessoas que, depois de uma introdução um pouco confusa, pois não era possível saber onde queria chegar, e chegou, é que não deveríamos esquecer a importância do Criacionismo. Se é certo que a ciência propõe uma interpretação evolucionista do universo, também é verdade que nos textos bíblicos, no Gênesis, há muito o que levar em conta. Então propunha uma fusão entre o Evolucionismo e o Criacionismo. Olhamos para ele aterrados, porque aquele senhor é prêmio Nobel, tem uma responsabilidade intelectual pública e é norte-americano. Provavelmente viria de um daqueles estados, que não são poucos, em que se ensina o Criacionismo como doutrina pseudocientífica, do nascimento de tudo quanto. Ele justificava que os sete dias da criação não deveriam ser interpretados como sete dias, são sete períodos, então, tem de haver uma leitura do Criacionismo que se encaixe com o evolucionismo. Isso que parece uma história louca inventada por mim, agora mesmo, mas é pura realidade... Diante disso, o que devemos fazer com as universidades se algumas delas são capazes de gerar abortos intelectuais desse tipo?

O direito e a liberdade de comunicação

Eu creio que não se pode nem se deve refazer a felicidade das pessoas sem a participação delas, muito menos contra elas. Esse, provavelmente, foi o pecado mortal dos socialismos praticados no último século. Não se pode, mesmo que a sociedade funcione perfeitamente, ignorar o ser humano. Eu não vejo nenhuma incompatibilidade entre a satisfação das necessidades básicas e a liberdade. Dissentir é algo que não se pode reprimir em nenhum lugar, porque se está a eliminar-se algo fundamental, que é a capacidade de cada um expressar aquilo que tem o que dizer. O controle dos meios de comunicação, qualquer controle, leva a riscos. E temos a prova. Os meios de comunicação mundiais estão praticamente controlados, e hoje não é possível um jornal independente, e se houver, morre ao fim de uma semana por não ter publicidade nem pessoas em estado de quase santidade que vão sacrificar seu futuro em um

jornal que não lhes vai pagar o que deveria e, ainda por cima, em um emprego precário. Isso leva à extrema manipulação do jornalista camaleônico, que muda de opinião conforme o jornal, a rádio ou a TV em que trabalha. Se perguntarmos sua opinião, talvez nem saberia dizer sua opinião, mas terá a opinião que tiver o meio de comunicação em que trabalha. Se isso é verdade no atual sistema, seria também no outro. A pergunta é essa: Como formei a minha opinião, com que dados? Quando vamos analisar, descobrimos que a opinião não é nossa, ou é dificilmente nossa. Principalmente porque as notícias vêm de um jornal feito de um modo que não pode ser feito.

Os direitos humanos

O século XXI será o século em que ganharemos ou perderemos a batalha dos direitos humanos. Essa frase foi proferida na declaração de 1948, em Nova Iorque, nas Nações Unidas. Em 1998, quando comemoramos improváveis 50 anos dessa carta, simpósios, artigos e ensaios foram escritos sobre o tema. Nas semanas que antecederam a data, foi o tema único nos órgãos de comunicação. A humanidade não só não progrediu na aplicação dos direitos humanos, como em muitos aspectos andou para trás. Em 2048, quando se voltar a falar sobre direitos humanos, acredito que esteja ainda pior. Por que estará pior? Quem manda no mundo? O mercado, o lucro, a ganância. Se os partidos que governam se submetem aos poderes econômicos, a quem serve o poder político? Apenas para adaptar legislações nacionais e ser vigia de manifestações de protesto? As multinacionais mandam no mundo. Que democracia é essa? Prefiro chamar a isso de “ditadura do capitalismo”. Quero lembrar aos senhores que não há memória de uma greve em uma fábrica de armas sequer. É uma democracia de aparências.

Globalização e direitos trabalhistas

Quero falar de questões que tocam a Europa e talvez não toque diretamente vossos países hoje, mas decerto tocarão em breve. A Constituição europeia foi discutida e aprovada no parlamento europeu e vai agora ser votada nos Parlamentos nacionais. O primeiro país é a Espanha. Há uma questão de direitos humanos e de direito ao trabalho em xeque. No artigo 205 da constituição. Se aprovado, a Europa se despreocupa de aspiração ao pleno emprego. O artigo 203 prevê a esterelidade laboral, com maior flexibilidade. Ser humano nos úl-

timos 20 anos deixou de ser cidadão para ser consumidor, cliente. Se essa diretiva for aprovada, e decerto que vai ser, uma empresa polaca, ou polonesa, como vocês dizem no Brasil, pode construir uma fábrica na Espanha, contratar com salários polacos, e ela só terá de responder à legislação nacional da Polônia, cujo governo será o responsável pela fiscalização. Se uma empresa da Estônia oferecer trabalho temporário em outro país, não pode haver intervenção dos governos nacionais.

Salto do Fórum

O FSM corre o risco, e perdoem-me por atirar água fria na fervura do natural entusiasmo, de ser uma festa, uma espécie de lugar sagrado. Como se Porto Alegre fosse uma Meca, para onde os fiéis, que somos nós, fôssemos e atirássemos pedras ao diabo, que não está em Meca e nem aqui. Por favor, não quero que o Fórum seja um partido político, mas que tenha algumas posições para aparecer na mídia e não só algo bonito uma vez por ano. Para cumprir objetivos que o fez nascer, é preciso formular algo que se opõe ao que acontece no mundo. Do contrário, corre-se o risco de sofrer com um processo de laminagem, em que se perde espessura até que se rompa por ser tão fino. Não sei se tenho razão, mas que se declare uma voz consensual, não voz única. Esse Fórum é o momento para um salto qualitativo, porque em quantidade somos mais que suficientes.

A polêmica sobre Cuba

Não estamos de acordo com o que considero equivocado à humanidade. O direito de dissentir não pode ser negado a ninguém. O governo cubano reconhece esse direito quando liberta alguns dos dissidentes. É claro que o lado conservador da mídia quis achar que eu tinha mudado de opinião e, finalmente, visto a verdadeira natureza do regime de Fidel Castro. Mesmo ele disse que eu estava mal informado, o que, aliás, é curioso. Quando concordamos, estamos bem informados, e quando discordamos, estamos mal informados. Mas, como se diz, o sangue não chegou ao rio. Minha relação com o povo continua, tanto que em maio vou para a Feira do Livro de Cuba. Este, que não é inimigo de Cuba, reivindica o direito de dizer o que pensa. A revolução nem sempre é justa e os seres humanos são falíveis. Desde a revolução, Cuba fez dizer ao mundo formas de lutar por outro mundo possível. F

Colaboraram na reportagem: Frédi Vasconcelos e Anselmo Massad. setembro de 2011

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A hora dos movimentos sociais Uma das personalidades mais atuantes nas edições do Fórum Social Mundial, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos analisava, em 2009, as possibilidades do recém-eleito Barack Obama e via no enfrentamento à crise global uma importante oportunidade para a sociedade civil de todo o mundo por Rita Freire Fórum – O senhor costuma sempre passar uma parte do ano nos Estados Unidos. Comemorou a eleição de Barack Obama ou chegou a se emocionar com a festa dos estadunidenses?

Boaventura de Sousa Santos – É evidente que, pela minha formação marxista, não estou acostumado a que os homens individualmente transformem a história, e tenho

reservas em relação a esperar demasiado de uma pessoa quando o sistema que a elegeu praticamente se mantém o mesmo. Mas, dito isso, não há dúvida para uma pessoa que, para lembrar José Martí, vive nas entranhas do monstro, onde este sentimento de crítica à orientação imperialista agravou-se extraordinariamente durante o governo Bush,

O sociólogo e as muitas crises

Eu e o fotógrafo André Veloso encontramos o sociólogo Boaventura de Sousa Santos em sua sala na Universidade de Wisconsin-Madison, alguns dias após as celebrações da vitória do primeiro presidente negro dos Estados Unidos, Barack Obama, em 2008. Mesmo sem a ilusão de que Obama viesse a modificar a obsessão imperialista da Casa Branca, havia sentimentos e fatos novos no cenário mundial em torno de sua eleição: o alívio com o fim da era Bush, marcada pelo terror de Estado contra o terrorismo, a expectativa quanto ao futuro do próprio capitalismo, chacoalhado com a crise financeira que se irradiava dos EUA para o mundo, e o orgulho afrodiaspórico com a chegada de uma família negra ao comando da potência, compartilhado por defensores dos direitos civis e da diversidade no mundo todo. Boaventura, e nós também, que vimos a tremenda vibração popular que tomou as ruas de Illinois e o Grant Park de Chicago, onde Obama fez seu primeiro discurso após contabilizado o voto da vitória, compartilhávamos a expectativa reinante sobre o significado desses acontecimentos. A filha de André, Lara Rosa, com seus 2 anos de idade e falando apenas português, aprendera a gritar “yes, we can” no colo do pai ao ouvir pessoas a caminho do parque fazendo o mesmo. A entrevista com Boaventura tinha um motivo especial. Estávamos a poucos meses da realização do Fórum Social Mundial em Belém, que ocorreria em janeiro de 2009, colocando foco, de um lado, nos desafios e ensinamentos dos povos da floresta, anfitriões do evento, e de outro, no debate das alternativas para as muitas crises em curso: econômica, financeira, energética, ambiental e das relações humanas com seu futuro. Era importante refletir sobre a turbulência no coração do império e também oferecer subsídios, por meio da imprensa alternativa, para os debates que viriam. O FSM seria precedido do I Fórum Mundial de Mídia Livre, uma aposta de que a transformações pela frente se dariam pelo compartilhamento da informação e dos meios, independentes da grande mídia, e a revista Fórum decidiu ouvir Boaventura para a ediçao que circularia no FSM. Sociólogo e um dos fundadores do processo FSM, Boaventura reside seis meses do ano em Portugal, outros seis, nos Estados Unidos,e procurava identificar naquele momento as responsabilidades do movimento social, especialmente a de não baixar a guarda diante da vitória “simbólica”. Obama tinha promessas a cumprir, como fechar Guantánamo e retirar as tropas do Iraque, mas já se anunciava o reforço das tropas no Afeganistão. Boaventura enxergava uma Europa no contrapé da história, devido à xenofobia, confiava em um maior alinhamento regional na América Latina e na África e explicava a dificuldade de caracterizar a crise: “Tudo leva a crer que pelo menos nos próximos anos ... teremos uma recessão. É preciso lembrar que a recessão de 1929 só chegou ao bolso das famílias em 1933”, alertou. Rita Freire

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que a vitória do Obama foi um acontecimento muito especial. Aliás, especial não apenas para os EUA, como para o mundo. Em 2009, um presidente negro vai entrar em uma Casa Branca que foi construída por escravos. Há 40 anos, em alguns estados nos quais ele ganhou eleitoralmente, branco não podia casar com preto. Sua mulher descende de escravos e vai entrar para a Casa Branca como primeira-dama. É uma grande transformação simbólica, um grande ato de política simbólica, e não uma vitória qualquer. Um ativista dos direitos civis nos anos 1960 e 1970, ao ver a vitória de Obama, me disse: “Durante todos os anos, tenho me considerado um afro-americano, mas, a partir de hoje, tenho a impressão de que eu sou simplesmente um americano.” É uma transformação simbólica de identidade. Depois que a autoestima dos americanos foi completamente corrompida pela incompetência, avareza, belicismo inconsequente e absolutamente frustrante, essa transformação é importante para os Estados Unidos. Foram guerras ilegais e agressivas, que não resolveram nenhum dos problemas apontados, exceto aquele objetivo nunca confessado, que era assegurar o controle da produção de petróleo no Oriente Médio. Apesar de terem sido grande referência para muita gente no mundo, já que a globalização cultural é também a americanização por meio da grande indústria do entretenimento, a imagem dos EUA degradou-se extraordinariamente, a tal ponto que os americanos às vezes tinham vergonha de visitar alguns países, uma situação absolutamente inaudita para eles. É evidente que, desse ponto de vista a eleição do Obama permitiu o orgulho de outra vez serem americanos.


no 70 - janeiro de 2009

foto da capa: Robinson Estrásulas/RBS/Ag.O Globo

Isso pode ser bom e pode ser mau. Pode trazer de volta o triunfalismo e o sensacionalismo, porque foram capazes de fazer o provável pior presidente dos EUA, Bush, mas também de eleger um negro num país que teve uma situação de escravatura e discriminação racial tão fortes. Fórum – E para além dos Estados Unidos?

Boaventura – Essa eleição também é importante para a Europa, que tem uma certa arrogância em relação aos EUA. Mas o que aconteceu nos Estados Unidos não podia acontecer lá. A Alemanha tem 800 mil cidadãos turcos, em uma população de imigrantes por volta de 3 milhões. A França também tem muitos imigrantes com cidadania. Mas, quando olhamos para seus parlamentos, a composição é quase totalmente branca. Na Inglaterra, de 600 membros da Casa dos Comuns, 15 pessoas não são brancas. Dá-me a impressão de que a Europa se vê em um contrapé da história, porque os EUA são capazes de eleger um presidente que não tem a história a que os europeus se habituaram como sendo as suas próprias, sobretudo depois do que temos visto com a xenofobia, as leis de imigração, os Berlusconi e Sarkozy que têm transformado a Europa em uma fortaleza, a se defender sobretudo dos imigrantes, e que tenta evitar a todo custo que eles possam se estabilizar com suas famílias, que suas culturas possam enriquecer a cultura do continente. Não podemos minimizar, em termos políticos, o significado da vitória de Obama. É evidente que ela ocorre no pior período dos Estados Unidos, e talvez só por isso tenha sido possível. Não só por causa das guerras que não se podem ganhar e que foram erra-

das desde o primeiro momento, mas da crise financeira, que vai ter certamente as mesmas dimensões da Grande Depressão. Nesse momento de declínio, entra um homem de uma etnia que não é a eurocêntrica que sempre dominou os EUA. Ele pode ter algum êxito e ser a afirmação que a diversidade deste país enriquece politicamente. E, se as coisas correrem mal, tenho certeza de que muitos racistas deste país – que não deixou de ser racista no dia 4 de novembro – vão dizer que as coisas não deram certo porque um negro não deu conta da situação Ele já trouxe inovações extraordinárias de campanha, que foram uma vitória para a democracia liberal. Não para a democracia participativa, como a defendemos, mas com alguma virtualidade desta. Um novo conceito entrou no vocabulário político, que são os netroots, pessoas que contribuíram com seu dinheiro, percorrendo bairro a bairro, exatamente uma estratégia das organizações comunitárias, e que o levaram ao poder. Num cenário otimista, se esses grupos não se desarmarem, continuarem ligados, mantiverem a sua rede, sua lista, poderão e deverão cobrar o presidente por promessas que, sem essa cobrança, ele não viria a cumprir. E essa energia não terminaria nas eleições. É uma suspensão histórica, que acontece em determinados momentos. Como eu disse, é a realidade que foi almoçar, e vamos ver como regressa do almoço. E ela está a regressar

Fórum – Há sinais de algum movimento organizado já cobrando Obama, como por exemplo o chamado feito na imprensa estadunidense pelo movimento das Liberdades Civis, para que já no primeiro dia o presidente tome algumas medidas para sinalizar a disposição de mudança, entre elas, a de fechar Guantánamo. Que medidas tomadas no início poderão indicar o rumo que terá esse governo?

Boaventura – Se eles [os ativistas] continua­ rem e puderem sustentar a pressão sobre ele, ou obviamente pode sucumbir às forças de centro e de cima. De alguma forma, aconteceu nos EUA algo comparável ao que aconteceu com o Lula, quando alguém de um grupo discriminado, um metalúrgico, chegou à Presidência do Brasil. De alguma maneira os movimentos sociais, com exceção talvez do MST, se desarmaram um pouco no primeiro momento, porque tinham um amigo no Planalto. Não pode acontecer isso nos Estados Unidos. Os movimentos não podem se desarmar, e muito especificamente o movimento negro e o movimento dos direitos civis, que são muito grandes.

Política simbólica é algo que tem efeitos reais imediatos, mas que não afeta o sistema no seu núcleo duro. Fechar Guantánamo é uma coisa que se pode fazer, não é tão difícil. São 255 detidos, dos quais Bush havia dito que não levaria a tribunal mais de 80, e, segundo grupos de direitos humanos, não serão 24. São todas pessoas detidas ilegalmente e, se não há nenhuma razão para estarem lá, por que não soltá-los? Por outro lado, há os que devem ser julgados. O próprio Obama já disse que as comissões militares são tribunais fantoches, uma farsa de Justiça, e, portanto, devem ser julgados em tribunal convencional. Pode ser um sistema novo, porque no tribunal vão ser mostradas muitas provas consideradas secretas, e se considera que isso afeta a segurança dos Estados Unidos. Isso naturalmente cria uma fricção dentro do próprio grupo de Obama. Mas fechar Guantánamo não é tão difícil. É preciso coragem para tirá-los de lá e pensar como poderão regressar aos seus países de origem. Em alguns casos, não poderão. E aí, com toda a franqueza, por que os EUA não os podem aceitar se não há nada contra eles? Não cometeram nenhum crime como aquele caso escandaloso dos 17 chineses que foram detidos porque foram encontrados no Afeganistão, sem nada a ver com terrorismo. Foi um ato de autoritarismo da pior espécie, quase primitivo. Há uma possibilidade de Obama responder positivamente a essa demanda e é fácil acabar com Guantánamo porque é um tumor cancerígeno instalado dentro de Cuba.

Fórum – Com a celebração da vitória de Obama, o senhor disse que a realidade foi almoçar, mas já estava voltando. Acho que a parte da realidade que já voltou tem a ver com as finanças mundiais. Pergunto qual a expressão correta: estamos vivendo uma crise ou um colapso do sistema?

Boaventura – Assistimos de fato a um colapso de uma parte, exatamente do sistema financeiro que existiu até agora. Dá-me a impressão que o neoliberalismo se autodestruiu. Se calhar, nem foi derrubado pelos movimentos sociais que têm lutado contra os paraísos fiscais ou defendendo a taxa Tobin. Tantas coisas que têm sido promovidas pelos movimentos sociais para pôr fim a este capitalismo de cassino que funcionou nos últimos 30 anos, e ele se autodestruiu. Como Marx disse, o limite do capitalismo é o próprio capital, que tem uma ambição tão grande por acumulação que acaba por destruir as fontes que poderiam lhe dar sustentabilidade, portanto, entra regularmente em crise. A crise significa o colapso do sistema financeiro, mas não é uma crise final setembro de 2011

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ção tem de vir da Europa e dos EUA, penso que eles precisam ser pressionados pelo resto do mundo, porque é fora dos EUA e da Europa que hoje estão as energias transformadoras do sistema. O Brasil, por exemplo, está numa posição diferente, embora se houver uma recessão na China vai se refletir no Brasil. Agora, a arrogância unilateral dos EUA, a arrogância unilateral das organizações multilaterais, que são multilaterais apenas no nome, esta terminou. Portanto, vamos ver como as coisas vão se posicionar e que janelas de oportunidades existem para algumas questões nos movimentos sociais. Por exemplo, para a Via Campesina, é muito importante eliminar o capital especulativo na área de soberania alimentar. No momento, há aqui alguma oportunidade quando as estruturas hegemônicas estão um pouco fragilizadas. Mas não sabemos até que ponto.

Fórum – O presidente Lula, na discussão em Washington sobre a solução para a crise internacional, fala em concluir a rodada de Doha, e isso soa um pouco estranho aos movimentos sociais depois de tanta luta para desgastar a OMC, que hoje realmente não tem mais o papel que pretendia. O que o senhor pensa disso?

Boaventura – O Brasil é a ambiguidade dos países semiperiféricos, tem uma capacidade de manobra que lhe dá uma certa arrogância neste momento. Nota-se na área da biotecnologia, porque o Brasil tem uma grande diversidade, mas tem também uma indústria biotecnológica que quer produzir e, portanto, as suas posições na área do patenteamento da biodiversidade são muito ambíguas. A diplomacia brasileira é que tem sido muito boa em muitos níveis. O desgaste dos Estados Unidos e do sisandré veloso

do capitalismo, é um realinhamento que se vai dar, mas não sabemos com que perfil. É difícil caracterizar essa crise. Tudo leva a crer que, pelo menos nos próximos anos, se não houver uma política agressiva de promoção de emprego, teremos uma recessão. É preciso lembrar que a recessão de 1929 só chegou ao bolso das famílias em 1933, levou tempo, porque o sistema tem uma certa inércia. Mas não estamos em 1929, e penso que existem muitos mecanismos internacionais que não existiam antes e que agora estão a forçar o controle da crise. Uma reivindicação dos movimentos sociais é acabar com o Banco Mundial, FMI e OMC, e que se volte o sistema para as Nações Unidas e a Unctad e instituições onde a Assembleia da ONU tenha um papel mais democrático. O FMI foi autorizado agora a analisar a situação dos Estados Unidos, mas é ridículo, eles não vão se deixar analisar pelo FMI, como não vão se deixar analisar pelas organizações dos direitos humanos quando as violações são óbvias neste país. Um dos papéis fundamentais vai ser jogado pelos países que, desde o primeiro Fórum, dizemos que só se eles se unissem, teríamos uma mudança no sistema. Os grandes países periféricos, de desenvolvimento intermediário, e com uma população grande, que são o Brasil, Índia, África do Sul e talvez a China; se estes países se unissem, este sistema hipócrita que impõe o liberalismo a todos, menos na Europa e nos EUA, acabaria. Para esses países, é uma janela de oportunidade para impor outras regras. Os próprios chineses estão muito divididos, porque investiram demasiado nos EUA, ao contrário do Brasil e da África do Sul, e estão muito mais dependentes do futuro da economia norte-americana. A última coisa que podem querer é o aprofundamento da crise. Lula deixa muito claro não pode tolerar o alinhamento total com os EUA, pelo contrário, fez um alinhamento em termos econômicos, de promoção neoliberal, mas politicamente escolheu uma certa solidariedade com os países irmãos na América Latina. Esse regionalismo a emergir na região é muito evidente também na África, com a proposta de uma unidade monetária como na Europa, e também na Ásia há sinais de um certo regionalismo que atenda mais às necessidades dos países. Se assim for, poderíamos ter relações menos imperialistas e mais difusas em função de o mundo ser mais partilhado por estes grandes regionalismos que podem enfrentar Europa e EUA. Eu, ao contrário dos que pensam que a solu-

Eu, ao contrário dos que pensam que a solução tem de vir da Europa e dos EUA, penso que eles precisam ser pressionados pelo resto do mundo, porque é fora que hoje estão as energias transformadoras do sistema

tema que até agora era imposto na Organização Mundial de Comércio (OMC), e contra o qual o Brasil lutava ao questionar o protecionismo na Europa e nos EUA, criou novas possibilidades para o que esse grupo vinha colocando dentro da OMC. O que temos de ver é se o que é bom para o Brasil é também para os países do Quarto Mundo, os periféricos, que não estão nesta fatia intermediária do rendimento mundial. Estou falando da África e de muitos países da América Latina, da Ásia e de muitos outros que são dependentes em relação a estes países, como a Tailândia é em relação à China. Eu ainda temo que esse regime seja tão viciado que as potências intermediárias, como no caso brasileiro, quando têm alguma capacidade de manobra, comportem-se como virtuais potências hegemônicas. Aqui, o distanciamento de um Chávez é muito salutar. Ou nós temos uma lógica não capitalista, uma lógica outra, ou não vamos a lado nenhum. E o Brasil não tem tido de modo nenhum essa posição, pelo contrário: faz desalinhamento político, mas alinhamento econômico. O que funcionou até agora porque coincidiu com o grande boom da China, que resolveu muitos problemas brasileiros, se não contarmos com os indígenas e camponeses que estão sofrendo com o alargamento da fronteira agrícola e a destruição da Amazônia, que ocorre no Pará e no Mato Grosso do Sul. Mas isso obviamente permitiu ao Brasil o que até agora não tinha tido, que é uma certa autonomia em relação ao FMI e,


penso que algumas alianças poderiam ser feitas com organizações e mesmo com partidos dentro do establishment que percebem que suas soluções não funcionaram.

Fórum – Então vou citar uma fala de Chomsky, que não vê nessa crise o ocaso da economia dos EUA e que também não vê sinal de alternativas construídas pelo movimento para um momento destes, em um artigo bem recente. Em sendo verdade, isso significa que o processo do FSM falhou ao afirmar a possibilidade de outro mundo?

Boaventura – Estamos provavelmente em um processo de transformação que é quase simétrico a esse outro que nós estamos analisando. Desde o final de 1989, quando tivemos a queda do Muro de Berlim, aquelas alternativas socialistas, pelo menos as que haviam sido desenhadas ao longo do século XX, entraram em crise. Muita gente pensou que era só a revolução e o socialismo que estavam em crise, mas que o reformismo social-democrata, pelo contrário, teria sua vingança e o seu momento de apogeu. Longe disso. Quando morreu a revolução, morreu também o reformismo socialdemocrata. O capitalismo livre de qualquer ligações e regulações keynesianas dos Estados tentou libertar-se dos direitos laborais e da regulamentação, e foram esses anos que nós tivemos. No fundo, a busca do Fórum Social Mundial por uma sociedade alternativa começou de uma crise que agora atinge esse sistema. Começou no final da década de 1980, e foi um período de rejeição e de um grande inconformismo com a situação de desigualdade social dos últimos anos. E também de uma maturidade que ajuda a florescer um sentimento muito vago de que não temos alternativas. Isso que a gente diz que um outro mundo é possível, é um “outro mundo” porque não sabemos qual é este mundo. Para muitos movimentos, falar do socialismo é um erro. Se vamos para a África ou para a

Ásia vão nos dizer que o socialismo é uma armadilha eurocêntrica como qualquer outra. Não sou tão negativo como Chomsky, e é curioso que um intelectual por quem temos um grande respeito possua essa ambiguidade que vem do movimento anarquista. Por um lado, fazem uma luta por todos os movimentos de base e uma desconfiança total dos Estados terroristas, mas todos os Estados o são, a começar pelos Estados Unidos. São grandes críticos desse sistema, mas ao mesmo tempo são maximalistas. Se quisermos uma revolução ou uma alternativa verdadeiramente pós-capitalista, não imagino que isso seja possível sem termos um Estado que seja efetivamente democrático e popular. Nunca uma ditadura de um partido único. Mas enquanto não tivermos um governo mundial, democrático, que seria o sonho do movimento social internacionalizado, mas que está como uma possibilidade utópica, nós, os movimentos sociais em níveis regional e internacional, poderíamos ter interlocutores fortes com quem se possa promover políticas fortes. E não conheço nenhuma instância que garanta direitos senão os Estados. Vamos entrar no domínio das religiões e da filantropia? Francamente, não é uma solução socialista. Eu acho que o movimento de esquerda deixou-se desarmar extraordinariamente nos últimos anos, exatamente porque aquela alternativa não era possível, o marxismo deixou de estar na moda, deixou de estar na agenda, de estar nas universidades, nos movimentos sociais. Curiosamente está voltando, porque a situação financeira veio a provar que Marx tinha muita razão na análise que fazia da sociedade capitalista. O marxismo regressa, mas só pode regressar parcialmente, como uma análise lúcida das crises do capitalismo e, portanto, de que é preciso uma sociedade pós-capitalista. Mas uma sociedade assim não pode ser aquela nos termos em que previu. F

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portanto, houve um segundo Grito do Ipiranga: “Nós podemos ditar nossa política”. Mas a burguesia nacional, altamente transnacionalizada desde a ditadura, não mudou com a democratização, está totalmente vinculada a esse sistema e, quando tem qualquer margem de manobra para ter os seus lucros, não vai querer mais mexer no sistema e nem nesta ideia de que não se pode ter tratado de comércio sem direitos sociais e econômicos e sem uma outra política ambiental. Porque há uma crise econômica, energética e climática. Não podemos usar a lógica economicista do neoliberalismo, temos de usar uma lógica mais ampla, e o Brasil está relativamente atrasado porque entrou naquela onda do agrocombustível, que se chama no Brasil biocombustível, mas que é um nome errado, porque não é energia renovável e é extremamente destruidor da soberania elementar. Energia renovável são os ventos, o Sol e as ondas. O Brasil não tem mostrado muito interesse nisso, mas sim nos combustíveis fósseis e no agrodiesel. Como vai se comportar, neste momento, que vai trazer as questões climáticas para o centro das discussões, mesmo nos EUA? Foi um erro do Lula desvincular-se de algumas outras políticas ambientais que estavam em curso para uma aliança com os EUA, não se dando conta de que seria de curta duração porque não é uma energia renovável. No domínio energético e no climático, não vejo o Brasil muito bem equipado para uma resposta inovadora, porque não foi por aí que a diplomacia se orientou. Mas vamos ver porque não acredito muito naquilo que os governos podem fazer, mas no que os movimentos podem pressionar. Penso que o FSM pode assumir uma liderança maior, com espaço aberto. Se os movimentos sociais estivessem preparados com propostas muito concretas do que pode ser feito, neste momento de suspensão do sistema mundial devido à crise e ao novo governo dos EUA,

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O caçador de vozes O escritor uruguaio Eduardo Galeano, presente em várias edições do Fórum Social Mundial, falou em entrevista concedida em 2005 sobre o destino dos países latino-americanos que buscavam achar um rumo distante do neoliberalismo. E decretou: o único pecado que não deve ser cometido é o pecado contra a esperança por Glauco Faria e Nicolau Soares

O

ano é 1996. O escritor uruguaio Eduardo Galeano estava em um encontro em Chiapas, México, com integrantes do movimento zapatista, entre os quais o próprio subcomandante Marcos. Em meio a conversas e debates, algo o perturbava. Aquele não era um dia qualquer. No entanto, o que tirava o sossego de Galeano não eram os focos de tensão entre os rebeldes e o governo, nem algum acontecimento no cenário político internacional, mas uma partida de futebol. Tratava-se da final do torneio de futebol masculino nas Olimpíadas de Atlanta entre as seleções de Argentina e Nigéria. Como assistir ao jogo em meio à extensa programação do dia? Em um intervalo entre

uma reunião e outra, o uruguaio não se conteve. Fingiu ir ao banheiro e saiu escondido para o hotel onde estava hospedado. Quando voltou, perguntaram-lhe: “Eduardo, onde estavas?” Disfarçou e deu uma desculpa qualquer. “Nunca tive coragem de admitir que fugi para ver o jogo.” O futebol é tema recorrente de comparações e de histórias de Galeano, que fez essa confidência à Fórum em meio à sua participação no I Festival Latino-Americano de Música Camponesa, realizado em Curitiba em novembro do ano passado. Na ocasião, o escritor falou a milhares de integrantes do Movimento dos Sem-Terra, o MST. O uruguaio, que conseguiu tocar milhões de leitores com o clássico As Veias Abertas

História, uma senhora que caminha devagar Foi há mais de seis anos que, com o companheiro Glauco Faria, nos pusemos, de ônibus, rumo ao I Festival Latino-Americano de Música Camponesa, em Curitiba, para entrevistar o jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano. Missão importante para alguém que conviveu desde pequeno com o mapa vermelho no fundo branco da capa de As Veias Abertas da América Latina, presença marcante nas estantes de meus pais. O escritor se revela um boa-praça, fã inveterado de futebol, de papo fácil e bom humor – atributo não tão comum entre lideranças de esquerda. A entrevista continua atual, ainda que a conjuntura tenha mudado. É o caso da exaltação da diversidade feita por Galeano, fundamental em momento de acirramento da xenofobia: “O melhor do mundo é a quantidade de mundos que ele contém.” Alguns pontos parecem proféticos, como a defesa da ação conjunta da América Latina, que se concretiza em parte na Unasul, organismo por meio do qual os governos da região articulam pela primeira vez uma reação organizada contra a crise internacional. E, no contexto da atual crise – financeira, econômica, social, ideológica –, o pedido de Galeano por paciência é o que chama mais atenção: “A história é uma senhora que caminha devagar. É preciso ter paciência. O resultado dessa articulação de vozes não aparece em um ou nem mesmo em dez anos. Estão despertando energias que pareciam estar dormindo ou até mortas. Essa articulação é lenta, mas imprescindível para o futuro dos movimentos sociais. Na solidão, estamos mortos.” Foi muito bom fazer a entrevista. Que renda uma boa leitura. Nicolau Soares

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no 23 - fevereiro de 2005

foto da capa: Andres Stapff / Reuters

da América Latina, seduz os espectadores que acompanham suas palestras. Com um português impecável e uma serenidade inabalável, recorre a histórias e parábolas para ilustrar suas contundentes críticas ao modelo neoliberal e aos rumos da esquerda e dos países do continente latino-americano. Mas, em cada trecho de sua fala, faz questão de deixar uma palavra de esperança e reafirmação de valores caros aos movimentos progressistas. Durante sua estada no evento, Fórum acompanhou os passos do escritor, e traz abaixo os principais trechos de sua entrevista exclusiva, assim como da palestra que realizou no evento. Apesar de ser sábado e ter jogo do Campeonato Brasileiro na televisão, dessa vez, Galeano não escapou.

Ser de esquerda

É difícil fazer um catálogo dos ideais de esquerda. Eu diria que são os mais ligados às ideias da liberdade, da comunhão com a natureza, da preservação da vida, não só humana, mas da vida do planeta, que é nossa casa. E é a certeza de que fazemos parte de um arco-íris de diversas cores e que o racismo está


nos deixando cegos para essa maravilha que é a diversidade humana e da vida no mundo. Porque o melhor do mundo é a quantidade de mundos que ele contém. Essas seriam algumas coisas básicas. Ocorre hoje a ressurreição dos laços solidários, não digo mortos, mas muito feridos, quebrados, a partir da imposição de uma escala de valores fundada na salvação pessoal, na ideia de que o outro é um competidor e um inimigo, não um companheiro. Que é uma ameaça, e não uma promessa. Acredito, como um homem de esquerda, que alguém sempre tem alguma coisa para dizer que valha a pena escutar. Os trinta e poucos anos transcorridos desde que escrevi As Veias Abertas da América Latina indicam que alguns desses valores já não têm a força que antes tinham. Por exemplo, nos anos 70, ninguém discutia que a pobreza era filha da injustiça. Era a esquerda quem denunciava, mas ninguém discutia. O centro aprovava e a direita não discutia, calava a boca. Agora, é uma minoria que continua acreditando nisso. Para a maioria dos opinion makers, os fabricantes de opinião do mundo, a pobreza é o castigo que a ineficiência merece. Isso é uma mudança de valores radical.

Boas notícias

É muito difícil perceber que projetos e ideias são interessantes, mas eles existem. Há casos como o plebiscito da água, que me parece uma coisa digna de contágio, merece ser imitada por outros países. Mas não tenho muita esperança, porque o Uruguai já fez um outro plebiscito, em 1992, sobre a privatização das empresas públicas, em que 72% da população votou contra e ninguém imitou isso, que é um exercício de democracia elementar. Quando você está tomando uma medida que vai afetar o destino de várias gerações, como é a privatização dos recursos essenciais de um país, é necessário consultar a população. Mas além dessas coisas, que são muito concretas, palpáveis, é difícil fazer uma lista das boas notícias. Mas elas existem o tempo todo, às vezes em uma escala local que não tem a menor repercussão, mas que é verdadeira.

Efeito Lewinsky

O governador Requião, em um almoço, me dizia que nenhum jornal brasileiro publicou nenhuma linha sobre o plebiscito da água que ocorreu no Uruguai. E foi um fato muito importante, não por ter acontecido no meu país, não vou fazer patriotadas bobas, mas porque foi o primeiro país a fazer uma consulta pública sobre o uso de um recurso

natural perecível como é a água. Foram 65% dos uruguaios a favor de uma emenda constitucional que garante que a água continuará sendo propriedade pública, e não um negócio privado. Isso não apareceu nos jornais, não era notícia. Há um controle mundial nos meios de comunicação, que já é hora de ser quebrado. Uso como exemplo o ano de 1998, quando o mundo ficou condenado a ler, escutar e assistir, dia após dia, às notícias do romance entre o presidente do planeta e aquela gordinha voraz, Monica Lewinsky. Você tomava café da manhã com ela, almoçava com ela, jantava com ela... Um ano inteiro. Um dia, estava na Europa e abri um jornal que era puro Monica Lewinsky. E aí, perdida, havia uma notícia, na última coluna da página sete, dizendo que as três organizações ecológicas mais importantes do mundo haviam se juntado em Londres para divulgar um relatório seriíssimo que revelava que, em meio século, o mundo tinha perdido um terço de seus recursos naturais. Isso não teve a menor importância. Um terço dos recursos é fácil de dizer, mas se você pensa na dimensão desse crime gigantesco... O mundo tinha perdido em 50 anos um terço de seus recursos e não tinha espaço para isso no jornal, porque estavam ocupados com a outra história.

O processo do Fórum

Percebo uma multiplicação da energia criativa na sociedade civil da América Latina a partir do primeiro FSM, um maior dinamismo. Existe uma contradição entre o tempo da história e o tempo da vida dos homens. Cada pessoa quer ver os resultados das coisas, o que é compreensível, um desejo humano. Mas a história é uma senhora que caminha devagar. É preciso ter paciência. O resultado dessa articulação de vozes não aparece em um ou nem mesmo em dez anos. Estão despertando energias que pareciam estar dormindo ou até mortas. Essa articulação é lenta, mas imprescindível para o futuro dos movimentos sociais. Na solidão, estamos mortos. A esquerda está tentando um caminho novo, novas experiências políticas. Essas novidades aparecem em todos os setores, não só nas eleições. É interessante ver que [Hugo] Chávez, demonizadíssimo por toda a grande mídia, ganha nove eleições limpas. Estamos falando de um tirano muito especial que ganhou nove eleições – todas mais transparentes que as dos EUA. No Uruguai, a esquerda ganhou, mostrando que o trabalho rende frutos, não é só água jogada no mar. Foi um trabalho iniciado em 1971, casa por casa.

O Fórum abriu um grande espaço de encontro, e essa é sua importância: ter conseguido que os dedos ganhassem consciência de que fora da mão não servem para nada

O FSM e os pequenos Com o passar do tempo, valorizo cada vez mais as pequenas escalas, as pequenas dimensões, e desconfio cada vez mais da espetacularização das grandes notícias. Eu digo isso para revelar a grandeza escondida nas coisas pequenas e denunciar a mesquinharia das coisas grandes. O Fórum Social Mundial tem essa característica do espetáculo, mas é diferente, porque é nascido da insólita e jamais vista tentativa de juntar todas essas pequenas forças desconhecidas que existiam espalhadas. Ele tem sido um grande passo adiante na direção correta de juntar os dispersos, revincular os desvinculados, de salvar-nos da solidão. Nesse sentido, acho que o mundo tem avançado muito, de uma maneira silenciosa, não estrepitosa, mas certa. E que não corresponde exigir resultados imediatos, pois são processos muito longos, complexos, que caminham devagar e crescem desde o pé, como pedia o cantor uruguaio e meu amigo muito querido Alfredo Zitarosa, porque senão as coisas não duram. O Fórum abriu um grande espaço de encontro, e essa é sua importância: ter conseguido que os dedos ganhassem consciência de que fora da mão não servem para nada. A ida para a Índia parece ter sido uma experiência positiva, pois abriu toda uma metade do mundo que estava meio em sombra, não aparecia muito, e permitiu a expressão de forças que estavam latentes. Mas não sei o que acontecerá. Em geral, não sou um bom profeta. Sobretudo no que mais me interessa na vida, que é o futebol [risos].

500 anos de solidão

A América Latina é uma região do planeta dentro da qual existem energias de mudança muito lindas e também energias do sistema colonial que vêm se perpetuando já há mais de cinco séculos e que são muito poderosas. Estas últimas têm um poder econômico e cultural imenso e boa parte do poder político. São essas as forças que estão nos treinando desde sempre para a certeza de nossa imposetembro de 2011

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tência. Para a certeza de que a realidade é intocável, de que o que é, é porque foi e continuará sendo. De que amanhã é outro nome de hoje. Isso é um fatalismo herdado e tem muito tempo de vida: cinco séculos. Não é fácil lutar contra isso. Vamos inventar a vida, vamos imaginar o futuro. Vamos cometer a loucura de acreditar que essa terra pode ser outra. De que essa região nossa não está condenada pelos deuses nem pelos diabos à pena perpétua de solidão e desgraça. Mas isso não é fácil.

Elogio ou acusação

Como sempre, há essa tensão criativa entre as forças da inércia dos sistemas tradicionais e as forças novas que surgem. O problema é que, às vezes, as forças novas adotam os valores das que combatem sem perceber. Por exemplo, toda uma escala de valores que acredita no sucesso como uma fonte de valor. Então, essas forças de mudança começam uma corrida louca para parecer com seu inimigo, para fazer a coisa de tal maneira que seu inimigo lhe aplauda. Às vezes me dizem: “Você é muito bom”. Mas eu procuro ver quem é que está falando, porque, dependendo, pode ser uma acusação gravíssima.

O pecado contra a esperança

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Uruguai hipotecado

O governo da Frente Ampla, que está nascendo agora, é o resultado do desenvolvimento de um movimento popular que jamais falou que iria ganhar o governo para fazer o socialismo. Seria irreal prometer isso. O que se prometeu foram coisas mais moderadas, modestas, que são as mais ou menos realizáveis, que eu espero que sejam realizáveis em um país quebrado, desesperançado como é o Uruguai. A primeira prioridade é lutar contra a pobreza. A segunda, resgatar os filhos perdidos de um Jose Francisco Pinton/Wikimedia

A vitória da esquerda nas eleições uruguaias foi, para nós, um acontecimento incrível. Parece milagre. A esquerda obteve a metade mais um dos votos contra um monopólio compartilhado de dois partidos tradicionais que exerciam o poder desde a fundação dos tempos, desde Adão e Eva ou antes. Parece milagre, mas não é. É o resultado de um trabalho paciente, feito dia após dia, porta por porta, consciência após consciência. A vitória da Frente Ampla foi

crescendo desde o pé. E foi celebrada numa noite inesquecível. Aquele domingo foi absolutamente inesquecível. Eu nunca tinha visto, sentido, vivido tanta alegria no meu país. Foi uma ressurreição da alegria, que parecia morta, mas estava apenas dormindo. Lá pelas quatro da manhã, o povo nas ruas, aquela explosão incessante das melhores coisas, um amigo me comentou: “Quero que essa noite não acabe nunca.” E essa frase, que é lindíssima, não se refere só à noite da celebração, mas também a tudo que aquela noite estava encarnando, simbolizando. O que ele queria dizer verdadeiramente, mesmo sem saber, era: “Eu quero que essa alegria, essa esperança, não seja jamais traída”. Porque tinha razão o meu mestre Carlo Quijano quando, há muitos anos, comecei a fazer jornalismo ainda quase criança com ele, no semanário Marte. Ele me dizia: “Qualquer um que lhe olhe nos olhos já vê claramente sua vocação de pecado. Você é um pecador de nascença, e eu não tenho nada contra. Peque sim. Mas tem um pecado que não tem redenção, que não merece perdão. É o pecado contra a esperança.” Essa é a imensa responsabilidade da esquerda em meu país. Não trair nunca essa boa energia de vida que foi vitoriosa nas eleições.

país que perdeu a população jovem, condenada ao exílio econômico, expulsa pelo sistema de poder. E a terceira, vinculada com as outras duas, é buscar um desenvolvimento econômico que não contradiga a soberania nacional sobre os recursos básicos e que permita a criação de fontes de emprego. O problema do Uruguai é que o país foi convertido pela estrutura dominante em um banco. O banco quebrou, e assim estamos. A esquerda recebe um país hipotecado, com compromissos de dívida externa terríveis, pesadíssimos. Esse é o drama latino-americano em geral, é uma soberania condicionada. Você é independente até um certo ponto. Porque depois, quem decide são os credores. É o resultado de viver em um estado de dívida perpétua, pagando para se endividar mais e mais.

Lula

Não pretendo explicar para o brasileiro como são as coisas aqui. Não sou de vender gelo a esquimós. Estou aqui aprendendo, perguntando. No caso do governo Lula, há uma distância entre as expectativas e a realidade. É um problema da esquerda no mundo, a perda de identidade. Ela passa a não se diferenciar do que combate. Em nome do realismo, se sacrificam alguns princípios fundamentais do movimento socialista, ou como queira chamá-lo, já que teve muitos nomes. Lembro de ver, quando era jovem, um filme dos irmãos Marx. Groucho estava conduzindo um trem, e não havia mais lenha. Então, ele começou a destruir os vagões com um machado, para alimentar a caldeira. Conseguiu chegar até a estação, mas apenas com a locomotiva. Chegou um trem sem trem. Esse é o perigo que corre a esquerda. Não é inevitável, mas é um perigo.

Projeção internacional do Brasil

O que eu resgataria do governo de Lula é a projeção internacional, essa vontade de fazer uma frente unida dos países que vivem situa-

Lembro de ver, quando era jovem, um filme dos irmãos Marx. Groucho estava conduzindo um trem, e não havia mais lenha. Então, ele começou a destruir os vagões com um machado, para alimentar a caldeira. Conseguiu chegar até a estação, mas apenas com a locomotiva. Chegou um trem sem trem. Esse é o perigo que corre a esquerda. Não é inevitável, mas é um perigo


ções semelhantes, que têm problemas semelhantes e um destino comum a conquistar. Que têm essa urgência imediata da restauração da dignidade ferida na negociação financeira, comercial e cultural. Sem essa união, não tem possibilidade. Nenhum país tem. O Brasil pode achar que tem, pela sua dimensão imensa. Mas a situação é a mesma. Por maior que o Brasil seja, não tem a possibilidade de se salvar na solidão. Já está na hora do Sul do mundo recuperar aquela energia perdida dos velhos tempos, há 40, 50 anos, quando se faziam aquelas conferências do Terceiro Mundo, que era um mundo independente dos dois blocos, capitalista e comunista. Era a emergência de uma terceira possibilidade e chegou a ter muita força, mas depois se perdeu na névoa do tempo. E também os organismos que existiam para defender o preço dos produtos básicos, que morreram todos, exceto a Opep. Já é hora de acabar com a impunidade dos poderosos nos grandes mercados, financeiros e comerciais, e no panorama cultural mundial também. Eles são os donos de nossos sonhos, de nossas opiniões, das informações que recebemos ou não, de acordo com a vontade de quem manda. Já é hora de recuperar isso tudo.

União é a chave

Para poder fazer frente a essa negação da esperança, é preciso concretizar uma política conjunta do Uruguai com o Brasil e a Argentina. Aí está a chave de tudo. Cito esses dois porque, no caso do Uruguai, são os vizinhos mais diretos, mas deveria envolver toda a área do Cone Sul. Fazer uma política conjunta do Mercosul ampliado, como for possível. A ideia de que você pode se salvar sozinho não tem mais nenhuma relação com a realidade dos dias de hoje. Sozinhos, estamos fritos. A solidão nos condena ao fracasso.

Os EUA e o medo

A propósito das outras eleições, que aconteceram dois dias depois das nossas, em um outro país, um pouco maior que o Uruguai, e que ocupa um pouco mais de espaço na mídia universal, elas consagraram o presidente do planeta, senhor George W. Bush. Na eleição do Uruguai, que não teve nenhuma repercussão neste mundo que confunde a grandeza com o tamanho grande dos países e das pessoas, foi uma vitória contra o medo. Na campanha política, a direita tentou aterrorizar a população dizendo que a Frente Ampla era uma conjunção de forças dirigida por tupamaros, sequestradores, estupradores, ladrões e assassinos. Eu vi pela televisão o discurso final do vice-presidente do partido Colorado, que é o par-

Para mim, escrever é uma força enorme. E me dá uma alegria imensa também. No fim, quando consigo sentir que essas palavras são bastante parecidas com o desejo de dizer, fico com a certeza de que a condição para não ser mudo é não ser surdo

tido do governo atual. Ele lançou uma terrível advertência: se a esquerda ganhar, todos os uruguaios seriam obrigados a se vestir iguaizinhos, como os chineses na época do Mao. Sobre o plebiscito das águas, também uma campanha de terror, anunciando o pior. Águas envenenadas, sujeira, cheiro fétido, o fim dos esgotos, um panorama terrível, apocalíptico. E o pessoal não deu bola, a população votou contra o medo. Acho que nas eleições dos EUA o medo ganhou. Uns dias antes das eleições, as pesquisas apontavam uma preocupante paridade entre Bush e Kerry. E aí, apareceu, não sei como, deve ser a divina providência, esse personagem que parece tirado do carnaval uruguaio, com aquela barba longa, que responde pelo nome de Bin Laden. Ele aparece para assustar o mundo, anunciando que vai comer todos os nenês crus, que vai fazer todos os desastres. Dois apocalipses, três apocalipses, 15 mil torres de Nova Iorque. Magnificamente, Bush subiu quatro pontos em um dia só nas pesquisas de opinião, graças à ajuda proporcionada por esse que me parece um chefe de boy-scout [escoteiro]. O lema do boy-scout é always ready, ou sempre alerta. Ele está sempre pronto. Acode cada vez que o sistema do medo necessita do grande assustador, esse alto funcionário da ditadura universal do medo. O medo é importantíssimo não só porque pode eleger um presidente, como aconteceu aí com essa extorsão contínua, essa histeria do terrorismo que avança, das forças do mal, o Diabo que está aí perto, cheirando a enxofre, com chifre e rabo. Mas também para o poder militar. Que seria desta estrutura militar que hoje manda no mundo, dos 2,5 bilhões de dólares que são a cada dia destinados à indústria da morte, às despesas militares, sem o medo? Se não houvesse pessoas ou máquinas, como fabricar os demônios para justificar a existência da estrutura militar? E é a mesma coisa em relação à mídia. O medo vende muito bem.

Tecelão Meu último livro se chama Bocas do Tempo, e são textos curtos, num estilo levemente parecido com o do Livro dos Abraços. São 333 histórias, mas isso não foi deliberado, foi o número que encontrei quando fiz o índice. É um número bom, dá sorte. Mas uma quantidade imensa de histórias ficou fora, porque quem escreve, tece. A palavra texto vem do latim textum, que significa tecido. Ou seja, quem escreve está tecendo, é um trabalho têxtil. Você trabalha com fios e cores, que são as palavras, as frases, os relatos. Eles vão se encontrando, e há alguns fios que são lindíssimos, mas que não coincidem, não combinam. Então, com dor na alma, ficam de fora. Foram oito anos de trabalho para esse livro, umas histórias simples, mas que de simples não tem nada. Quanto maior é a sensação que o leitor percebe de transparência, mais complicado é o trabalho que essa aparente simplicidade contém. Para mim, escrever é uma força enorme. E me dá uma alegria imensa também. No fim, quando consigo sentir que essas palavras são bastante parecidas com o desejo de dizer, fico com a certeza de que a condição para não ser mudo é não ser surdo. Ou seja, só é capaz de dizer quem é capaz de escutar. Sou um caçador de vozes e de histórias. É a realidade que me conta as coisas que acho que vale a pena que sejam contagiadas.

Abraçado aos vencidos

Não sou um homem que tem ídolos, não idolatro ninguém. O mais próximo que tenho de um ídolo é um jogador de futebol, um cara que me acompanha quando escrevo, já que tenho um pôster dele no meu escritório. Era um inimigo, pois jogou no Peñarol e sou torcedor do Nacional. Fui conquistado por ele, pelo que fazia e por sua personalidade. Seu nome era Obdulio Varela e foi o herói de um episódio que os brasileiros chamam, com certo exagero, de “nosso Hiroshima”, a final da Copa de 1950, quando o Uruguai ganhou, contra todas as possibilidades, do Brasil. Após a partida, os jogadores foram festejar esta impossibilidade. Mas ele fugiu do hotel e foi beber em um boteco do Rio. Ele me disse que o que havia nas arquibancadas era uma besta, um monstro de 200 mil cabeças. “Eu os odiava”, contou. Depois, tomou uma, duas, três cervejas e via as pessoas, uma a uma, tristes, chorando. E pensou: “Como eu fiz isso com essa gente tão boa?”. E todos atribuíam a vitória a ele, “foi o Obdulio”, diziam. Por isso, o admiro, ele não se acusou, não comemorou e passou a noite inteira abraçado aos vencidos. F setembro de 2011

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Dez alterações do Direito Vale a pena olhar para trás e constatar que, apesar da onda mundial de retrocessos jurídicos em nome do combate ao terrorismo, conquistamos inúmeros direitos no Brasil e nossa democracia se fortaleceu

N

ão importa o que digam os calendários. O milênio só começou mesmo em 11 de setembro de 2001. As repercussões políticas, sociais e jurídicas dos atentados terroristas nos EUA marcaram decisivamente a década que se seguiu. A Lei Patriota estadunidense (USA PATRIOT Act), de 2001, deu a tônica legislativa da década nos países ricos. O medo tornou-se o motopropulsor de leis que restringiam direitos em nome de uma suposta segurança pública. E criar medo para vender segurança sempre foi a principal estratégia do autoritarismo. Naquele mesmo mês de setembro de 2001, eu me tornara mestre em Direito pela UFMG, com uma dissertação sobre um tema bastante inusitado para a época: crimes informáticos. O Brasil contava naquele ano com apenas 6 milhões de usuários de internet (hoje somos mais de 80 milhões) e a mídia corporativa pautava as grandes discussões nacionais. A informação era fornecida de cima para baixo por uns poucos donos da verdade, e as críticas às manipulações de notícias dificilmente transpassavam os limites das praças e dos bares. Foi também naquele mês de setembro de 2001 que o primeiro número da revista Fórum chegou às mãos de seus leitores, inspirada no sucesso da primeira edição do Fórum Social Mundial, realizado em janeiro de 2001, em Porto Alegre (RS). Dez anos depois, vale a pena olhar para trás e constatar que, apesar da onda mundial de retrocessos jurídicos em nome do combate ao terrorismo, conquistamos inúmeros direitos no Brasil e nossa democracia se fortaleceu. Seria tentador afirmar que houve uma “evolução” do Direito neste período, se a história não nos houvesse ensinado que os direitos não evoluem, mas apenas se modificam. Nada – absolutamente nada – nos garante que o direito de amanhã será melhor ou mais democrático do que o de hoje. Os atos institucionais da ditadura militar não foram uma evolução da Constituição de 1946 e o Direito nazista não foi uma evolução da Constituição de Weimar. Os direitos não evo-

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luem, mas se conquistam e se perdem ao longo da história, de acordo com a política do momento. Não há garantias, não há segurança, não há certezas. A luta por direitos é permanente; não há tréguas. Relembremos algumas das principais alterações no Direito brasileiro da década.

Novo Código Civil

O atual Código Civil brasileiro entrou em vigor em 11 de janeiro de 2003, substituindo o antigo código de 1916. O novo código procurou adaptar a legislação civil à realidade social do nosso tempo: reduziu a maioridade civil de 21 para 18 anos (art. 5º), extinguiu a figura do chefe de família (art. 1.511), acabou com a possibilidade de anular o casamento caso a mulher não fosse virgem (art. 1.557), permitiu que os maridos adotassem o sobrenome das esposas (art. 1.565, §1º) e o pátrio poder passou a ser chamado de “poder familiar” (art. 1.630).

Crimes sexuais

O Código Penal brasileiro também foi modificado ao longo da década para tentar superar o histórico tratamento desigual dado a homens e mulheres. O crime de assédio sexual (art. 216) foi acrescentado em 2001 (Lei 10.224), prevendo pena para os empregadores que constranjam suas funcionárias a com eles manterem relação sexual.

resquícios de um tempo em que o Direito Penal foi usado para regular a sexualidade alheia. Por fim, mais recentemente, em 2009, a Lei 12.015 trouxe inúmeras inovações no tratamento dado aos crimes sexuais. Acabou-se com a distinção entre os crimes de estupro (sexo vaginal forçado) e atentado violento ao pudor (outro ato libidinoso forçado) e, hoje, tanto homens quanto mulheres, quando forçados ao sexo vaginal, anal, oral ou outro ato libidinoso de gravidade semelhante, são considerados vítimas do mesmo crime de estupro (art. 213).

Lei Maria da Penha

A Lei 11.340 de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, trouxe inúmeras inovações no tratamento dado à violência contra a mulher no Brasil. As medidas protetivas de urgência passaram a ser adotadas com o fim de impedir a continuidade das agressões e foram criados Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Infelizmente, em função da cultura machista arraigada no Judiciário brasileiro, muitos juízes passaram a considerar a Lei Maria da Penha inconstitucional, com o pueril argumento de que dá tratamento desigual a homens e mulheres. Claro que é um argumento falacioso, pois não há como se falar em inconstitucionalidade quando o tratamento desigual, por parte da lei, visa a reduzir uma desigual-

Infelizmente, em função da cultura machista arraigada no Judi­ ciário brasileiro, muitos juízes passaram a considerar a Lei Maria da Penha inconstitucional, com o pueril argumento de que dá tratamento desigual a homens e mulheres

O conceito moralista de mulher honesta (virgens e casadas monogâmicas), presente até então nos arts. 215 e 216, foi expurgado pela Lei 11.106/2005, que deu tratamento igual a todas as mulheres independentemente de sua vida sexual. A mesma lei revogou também os crimes de sedução (art. 217), rapto consensual (art. 220) e adultério (art. 240),

dade social histórica. A igualdade jurídica consiste em tratar desigualmente os desiguais com o fim de reduzir essas desigualdades.

TV Justiça

A TV Justiça, criada em 2002 pela Lei 10.461, revolucionou o relacionamento do povo com o Supremo Tribunal Federal. De-


que marcaram a década cisões de extrema importância para o País, que até então eram debatidas tecnicamente por um pequeno grupo de ministros e advogados, passaram a ser assistidas ao vivo por qualquer pessoa do povo, sem qualquer formação jurídica. O Judiciário é o único Poder da República que precisa manifestar publicamente as razões de suas decisões. E a TV Justiça tem levado ao conhecimento de qualquer pessoa do povo essas razões e funcionado como um instrumento extremamente democrático de controle destas decisões. É certo, porém, que muitos ministros acabam se deixando levar pelos holofotes e praticando um populismo judicial, muitas vezes em detrimento dos princípios fundamentais da Constituição, mas esse é um preço a se pagar pela democratização do Judiciário.

Reforma do Judiciário

A Emenda Constitucional nº 45 entrou em vigor em dezembro de 2004 e trouxe inúmeras alterações relativas ao Poder Judiciário brasileiro, dentre as quais se destaca a criação do Conselho Nacional de Justiça (art. 92, I-A), composto por 15 membros, que têm por função o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário (art. 103-B, §4º). A Constituição passou a exigir também três anos de atividade jurídica (art. 93,I) para o ingresso na carreira da magistratura e tornou obrigatório os cursos de formação para juízes (art.93, IV). Finalmente, a Emenda 45 criou a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal editar as polêmicas “súmulas vinculantes” (art. 103-A) que restringem a autonomia de julgamento dos magistrados, mas inibem recursos repetitivos sobre matérias já decididas pelo STF.

Informatização judicial

A Lei 11.419 de 2006 estabeleceu uma série de normas visando a informatizar os processos judiciais brasileiros. Foram criados os Diários da Justiça Eletrônicos, tornando mais rápida e prática a comunicação do Poder Judiciário com os advogados. Espera-se que, num futuro não muito distante, os processos possam tramitar na sua totalidade por meio eletrônico. Além de uma

maior agilidade na tramitação dos processos, a informatização judicial garante maior segurança no armazenamento dos dados, evitando que processos “desapareçam” e que fóruns inteiros sejam queimados em incêndios criminosos. A iniciativa foi recebida com restrições por advogados não familiarizados com as novas tecnologias, mas aos poucos vem sendo incorporada ao cotidiano forense.

ProUni

O direito à educação, desde 1988, estava garantido no art. 6º da nossa Constituição, mas, até a década anterior, a universidade ainda era inacessível para a maioria absoluta

Casamento homoafetivo Uma das principais conquistas de direito da década não veio do Poder Legislativo, mas do Poder Judiciário. Na ausência de uma lei que regularizasse a união de homossexuais, o Supremo Tribunal Federal decidiu, no julgamento da ADI 4.277, que a Lei da União Estável (Lei 9.278/96) também deve ser aplicada aos casais homossexuais. Tendo em vista que o art. 8º da lei dispõe que os conviventes poderão requerer a conversão da união estável em casamento a qualquer tempo, alguns casais homossexuais já conseguiram converter suas uniões estáveis em casamento. Uma verdadeira revolução no Direito de Família.

Espera-se que, num futuro não muito distante, os processos possam tramitar na sua totalidade por meio eletrônico. Além de uma maior agilidade na tramitação dos processos, a informatização judicial garante maior segurança no armazenamento dos dados

dos brasileiros pobres. O Programa Universidade Para Todos, instituído pela Medida Provisória nº 213 de 2004 e convertido na Lei 11.096/2005, revolucionou a educação superior no Brasil, concedendo bolsas de estudo integrais e parciais em faculdades particulares. Tão importante quanto enunciar direitos em uma constituição é torná-los efetivos por meio de iniciativas concretas no sentido de fazer cumprir o disposto na Carta Magna.

Drogas

A Lei 11.343 de 2006 revogou a antiga lei de drogas do tempo da ditadura militar (Lei 6.368/76) e acabou com a pena de prisão para os usuários de drogas no Brasil, que hoje somente são punidos com penas de advertência, prestação de serviços e medidas educativas (art. 28). Em contrapartida, aumentou a pena mínima do crime de tráfico de drogas de três para cinco anos (art.33), insistindo na notoriamente ineficaz política de repressão penal às drogas. A nova lei também insistiu no modelo anterior, que não faz qualquer distinção de penas para o tráfico de drogas pesadas (heroína, cocaína, crack etc.) e drogas leves (maconha, lança-perfume etc.), punindo todos com a mesma pena.

Liberdade de manifestação de pensamento A liberdade de manifestação de pensamento foi objeto de decisões importantes no STF durante toda a década. A primeira delas se deu no julgamento do HC 82.424 em setembro de 2003, quando o STF entendeu que caracterizava racismo a publicação de livros com revisionismo histórico antissemita. No conflito entre os direitos constitucionais à livre manifestação de pensamento e à igualdade, a balança do STF pendeu no caso para o lado da igualdade. A difícil decisão ainda hoje é bastante controversa. Em 2009, o STF julgou inconstitucional a Lei de Imprensa (Lei 5.250/67) na ADPF 130 e a obrigatoriedade do diploma de jornalismo para exercício da profissão no Recurso Extraordinário 511.961. Em ambos os casos, o STF buscou garantir ao máximo o direito à liberdade de manifestação de pensamento. Finalmente, em junho de 2011, o STF considerou plenamente lícita a Marcha da Maconha, que havia sido proibida em várias cidades do País sob o esdrúxulo argumento de que seria apologia ao crime. Mais uma vez, a liberdade de pensamento foi garantida pelo STF.. F setembro de 2011

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“Não tem outro Lula” Em agosto de 2005, Ciro Gomes falava sobre a crise política, que chegava no ápice, e alertava: se forçar a barra agora, esquerda só ganha eleições novamente daqui a três gerações por Renato Rovai

O

ministro da Integração Nacional Ciro Gomes atendeu a revista Fórum em seu gabinete, na quinta-feira, dia 29 de julho, das 14h às 16h. No contexto atual, destacar o exato momento da fala passa a ser um dado importante. O cenário político tem se alterado com enorme rapidez, e muito pode ter acontecido entre o momento da conversa com o ministro e a hora em que essa entrevista estiver sendo lida por você, leitor. Um exemplo é o depoimento do ex-ministro José Dirceu na Comissão de Ética do Congresso, ocorrido no intervalo dessas duas ações. Vamos à entrevista:

Fórum – Ministro, vamos direto ao mais quente, como o senhor está vendo o atual momento político?

Ciro Gomes – Com um misto que vai oscilando da preocupação à esperança. Às vezes, essa preocupação vai para o limite extremo e, em outras, a esperança aumenta bastante. O que está acontecendo, potencialmente, não é pouco grave. Temos um escândalo que pode ficar confinado à apuração da responsabilidade das pessoas, afinal de contas, é o que as civilizações mais equilibradas, mais corretas, fazem. Mas, no nosso caso, temos uma ameaça potencial de que esse escândalo possa migrar para comprometer instituições e valores. O que tenho procurado dizer é que as instituições em si não são corruptas. O partido político não é corrupto, seja qual for. Eventualmente, as pessoas podem ser corruptas. Então, qual é a minha preocupação? O PT, parte por boa-fé, parte por inexperiência, parte por certa arrogância, sinalizou, do pós-ditadura para cá, um discurso moralista. Este discurso presumia que o PT possuía o monopólio da ética, e mais do que afirmava, deixava o conjunto da sociedade acreditar na possibilidade de que, ao emergir ao poder, realizaria um governo de anjos. Ora, aparentemente, e não quero fazer prejulgamentos, algumas pessoas do PT, com respon-

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sabilidades maiores, médias ou menores, no momento em que estou lhe falando, fizeram uma bobagem. É o que parece. Se isso for na linha do que o próprio PT está fazendo, quando afasta preventivamente sua direção e estabelece os procedimentos devidos para que a impunidade não seja o prêmio deste malfeito, isso pode ser, e é o que me dá esperança, uma coisa muito positiva. Emergirá daí, sob o ponto de vista do PT, um partido muito mais maduro, mais democrático, mais sincero em relação à população brasileira. E também emergirá daí, para a sociedade, uma ideia muito forte de que a impunidade não é mais o prêmio dos malfeitos. Entretanto, como isto tudo não é neutro, nós temos outras precariedades nas jovens instituições democráticas brasileiras, e temo por outras coisas. O senador César Borges, do PFL da Bahia, por exemplo, foi ao TSE [Tribunal Superior Eleitoral] pedir, formalmente, a cassação do registro do PT. Isso é só uma caricatura daquilo que, no geral, temo. Chamei a atenção desse exemplo caricato, mas isso pode ser desdobrado no comportamento de muitos políticos no Brasil. É um senso de conveniência, de oportunismo, de exploração epidérmica dessa justa indignação da população, excitada pela televisão por horas a fio de uma cobertura. Sempre fui um crítico de certos aspectos do PT, mas faço essa análise não como militante, mas como brasileiro, como alguém que estuda as questões do país. Quem protegeu o Brasil dessa deterioração que levou a Argentina à lona, que espantou governantes recém-constituídos na Bolívia e no Equador e que gerou o clima que há na Venezuela, enfim, essa instabilidade crônica no nosso espaço, é e foi o PT. No Brasil, essas tensões referiram-se à democracia, à política, às suas linguagens, às suas instituições, ao seu calendário, tudo por causa do PT. Levada à última consequência, essa absurda iniciativa, que é só caricata de um conjunto de iniciativas outras, de pedir a cassação do registro do PT, estaria subtraindo do

Brasil este caminho. E traríamos para dentro do Brasil essa “ingovernabilidade” que é característica hoje na América Latina. E o mais grave é que setores de ultraesquerda fazem o serviço desses setores ou incautos, ou ultrarreacionários que estão na vida brasileira. Fórum – O senhor considera que essas duas pontas estão apostando, inclusive, nesse cenário de caos?

Ciro – Eu não sou dos que veem golpe em gestação no Brasil. Tenho até certo ponto de vista privilegiado para entender que há. O que há é um plano para fazer do presidente Lula um “tetraplégico político”. Isso é uma expressão um pouco indelicada com pessoas que tiveram essa desdita, mas é só para fazer uma figura forte, como eu imagino que seja. O plano é fazer o presidente Lula ficar “tetraplégico” no Palácio. Para, das duas uma, abatendo a psicologia do presidente e ele imaginar não ser candidato ou, ele tendo

no 29 - agosto de 2005

foto da capa: David Rego Jr.


Um projeto político em jogo O Brasil desta década de 2001 a 2011 é o Brasil da era Lula, mesmo tendo começado sob a batuta do sociólogo Fernando Henrique, que teve seu segundo mandato encerrado em 31 de dezembro de 2002. Mas, no meio deste período, em 6 de junho de 2005, uma entrevista do então deputado federal e presidente do PTB Roberto Jefferson balançou a República. Ele denunciou à Folha de S. Paulo que o tesoureiro do PT na ocasião, Delúbio Soares, pagava mesada aos deputados para votarem nos projetos do governo. O episódio viria a ser conhecido como o “mensalão”. A entrevista com Ciro Gomes foi feita no olho deste furacão que levou à cassação de alguns deputados, à renúncia de outros, à queda de ministros e à mudança total da direção do PT. Fui a Brasília naquele mês de julho para “sentir o cheiro” da crise de perto. O clima era de desolação. Os mais otimistas arriscavam dizer que, se tudo desse certo, Lula conseguiria acabar aquele mandato. Outros achavam difícil segurar o impeachment. O sentimento reinante, porém, era de que o presidente (vejam como são as coisas) não estava preparado para o desafio de governar o Brasil. Dentre as muitas pessoas com as quais conversei, uma fez uma análise diferente do episódio. Foi o então ministro do Trabalho, Ricardo Berzoini, que, depois de ponderar as saídas para a crise, me disse que deveria entrevistar o então ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes. Na sua opinião, Ciro estava com um discurso “justo” sobre aquele momento. Fui direto de um gabinete para o outro. Ao chegar, encontrei um político não só disposto a falar, mas com “sangue nos olhos”. Ficamos conversando por mais de duas horas, talvez três. Foi uma longa entrevista, em que o ministro fez uma análise do processo histórico brasileiro que colocava aquela crise num outro patamar. Ciro, que não era petista, como o ex-vice presidente José de Alencar, defendeu o governo e o projeto político que estava em jogo, como poucos naquele momento. Esta entrevista não é história só por isso, mas também por isso. Renato Rovai

a fibra que tem, sendo de luta como é, mantendo-se candidato, ser derrotável, que até o presente momento, eles imaginam que não é. Esse é o plano, mas o problema é que o agir em direção a esse plano está pautado por figuras menores da vida brasileira. Das crises todas que já participei e testemunhei, essa é a primeira vez que vejo figurinhas intelectuais, morais e políticas dando o tom. Figurinhas na própria grande imprensa dando o tom. Não é que não tenha que apurar, tem que apurar. Não é que não tenha que punir, tem que punir. Mas determinados princípios, determinados cuidados, determinados zelos, com as instituições, com o dia seguinte do país, com determinadas prudências, determinadas cautelas com o aonde se quer chegar, isso eu vejo pouco. Vamos apurar e punir, mas não vamos forçar uma barra nem permitir que a sociedade descreia de certas referências centrais. Fórum – O senhor considera que essa crise, de algum modo, pode abrir um novo momento para o campo progressista construir um outro tipo de diálogo?

Ciro – A bola está quicando no nosso campo. A agenda agora é de dissenso, de falta de referência teórica. A agenda agora é qual é o modelo de desenvolvimento que nós queremos para o país, qual é a economia política que o Brasil precisa. E aí a confusão é absoluta. Não há nem um espaço, nem um método para

discutir, quanto mais mérito. Esse é o nosso problema. Hoje nós estamos administrando com números todos eles muito melhores do que os nossos precedentes. Dá para defender os resultados atuais da economia. Nossa vulnerabilidade externa é a menor dos últimos oito ou dez anos. Os nossos desempenhos de comércio exterior são recordes na história. Nossas contas externas são as mais sadias dos últimos oito ou dez anos. Agora, a questão básica não é essa, a questão é modelar. Se nós descontarmos esses momentos, essas conjunturas e olharmos em perspectiva, desde quando o Brasil, para sair do desespero da hiperinflanção, da superinflação, adotou essa modelagem, num primeiro momento, muito mais como transição, não era um modelo assumido organicamente, refletido, debatido, amadurecido pela sociedade. Juntou-se uma meia dúzia de ferramentas que não precisam interagir com mudanças institucionais mais profundas, nem com o Congresso, para debelar a inflação. Daí em diante, tem sido uma bola de neve. Mas já é possível fazer um balanço. Na década, o Brasil teve o menor crescimento econômico médio da sua história. Nós erodimos. Deixamos de fazer coisas essenciais. As energias são, e na minha opinião não por acaso, drenadas para isso, para a conjuntura, para a desordem do dia, para a novela do dia. Não vou relativizar, acho que governar é assobiar e chupar cana mesmo.

Mas Congresso, vou brincar aqui, tem que “congressar”. Tem que trazer a agenda para o país. O governo tem a obrigação de apoiar, tem, até compreensivamente, certas razões para certas perplexidades, mas tem que governar. É árido, mas agora começa a surgir um novo “petismo” na acepção pior que há nessa expressão. Eu volto a dizer, o PT é essencial para a democracia brasileira, é essencial para dar ao Brasil um caminho diferente dessa “ingovernabilidade”. Mas nessa acepção que estou querendo dizer, está surgindo um novo “petismo” daqueles que querem bancar de esquerdista de goela. O máximo de agenda que eles têm é essa agenda que o PT já teve de “fora o FMI”. Até desconhecem que o Brasil, pela primeira vez em nove anos, está fora do FMI. Agora, o FMI está na nossa alma. Nós não precisamos mais do FMI porque ele entrou na nossa alma. E essa discussão não será feita com grito, nem com simplificações grosseiras, nem com pseudo-heroísmos. Não quero dizer que não haja muita integridade em cada uma dessas pessoas. Não tenho a menor dúvida da integridade da senadora Heloísa Helena, das suas melhores intenções. Mas, assim, digo morbidamente que gostaria que o Brasil não fosse um país, fosse um laboratório. E a gente traria certas pessoas e diria: “Toma conta aí, põe suas ideias na prática. Qual é tua relação de forças na sociedade?”. A esquerda sempre calculou isso. Para aonde é que vão os grupos? É com o lúmpen que nós vamos fazer mudanças radicais? O lúmpen, para quem leu a orelha de livro de qualquer pensamento de esquerda, não é revolucionário, é reacionário. Quando exercita sua revolta é sempre sob o ponto de vista individual. Já a pequena burguesia tem uma atitude oscilante, se está em uma situação de emprego e renda, tem uma atitude conservadora. [...]

Fórum – Ministro, essa crítica mais desqualificada interessa a alguns setores, o senhor poderia nomear alguns deles?

Ciro – Sim. Vamos lá, vou do menor para o maior. Cada brasileiro da política já sofreu uma injustiça do PT. Então, e conheço os ramos e as pessoas, é indisfarçável ali que o calor é também vontade de se vingar daquela injustiça, daquela coisa. Veja o Jorge Bornhausen, que sofreu o diabo, sendo um homem conservador etc., mas o tenho na conta de um homem digno. Sofreu o diabo de suspeições, sem provas, na CPI do Banestado. É um dos mais violentos hoje. Por outro lado, veja a Heloísa Helena. Ela começa as inquirições dos petistas que vão lá dizendo: “Você lembra quando me expulsou...”. Ela nem persetembro de 2011

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Fórum – Essa crise conseguiu impor ao presidente, ao governo, a impossibilidade de tocar no modelo econômico?

Ciro – Eu não digo que impôs. O presidente está na inteireza da sua autoridade. O que há é uma derivação preciosa de energias, de tempo, de avaliação ou de aptidão a risco. Mas é preciso registrar que, quando o presidente Lula estava sendo ameaçado pela minha candidatura a presidente da República nas simulações de segundo turno, o PT lançou um documento, que eu li, chamado “Carta aos Brasileiros”. Naquele documento, o presidente impôs os limites que iam balizar sua assunção no poder, uma vez ganhando, e isso fez parte do contrato dele com a sociedade brasileira. Naquela data, o PT e muita

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Marcello casal jr. / abr

cebe. É humano, é legítimo, é compreensível. Então, do menor interesse, é que cada um quer dar um tapinha para se vingar por um dia ter sofrido uma injustiça, uma leviandade de um petista. A primeira linha é essa. É também assim quando as multidões se enfurecem. Elas não querem linchar uma pessoa, cada um só quer dar um tapinha. Depois tem uma linha mais orgânica, mais organizada, pensada, por onde passam frenéticos entendimentos. O apartamento do senhor Fernando Henrique Cardoso é um ponto de encontro dessas pessoas. E esse setor quer fazer o presidente Lula ficar “tetraplégico”. Também é indisfarçável a ação orgânica do PFL da Bahia, mas o projeto não é golpe, é deixar o presidente Lula “tetraplégico politicamente”. Então identifico, não sei se já no limite da minha paranoia e talvez porque já me acostumei a não ver tatu em cima de toco, sem saber que tatu não sobe em toco sem que alguém o tenha botado ali, não tem quem me diga que não haja um grupo interessado em derivar todas as energias políticas do governo, as suas atenções para administrar essa crise como blindagem para não se discutir a política econômica, não se discutir os absurdos dessa modelagem no que diz respeito a essa questão da política econômica. Deixa lhe dar um dado, que talvez não devesse mencionar, mas li numa revista, que não consigo me lembrar agora qual, na mesma semana que explode a crise, uma página que basicamente passou despercebida. Ali se dizia que, em função das dificuldades, da queda dos indicadores do sistema econômico, começavam as discussões sobre meta de inflação, câmbio, sobre isso, sobre aquilo, pá, pá, pá e tal. E a revista dizia que isso não era certo, que não devia ser feito, não tinha cabimento... entende?

Essa é a nossa oportunidade histórica e seremos muito gravemente cobrados se não fizermos o que precisa ser feito. Não tem outro Lula no universo. Forçar uma barra agora, pela esquerda, só porque estamos todos inquietos com as contradições, sejam elas de natureza econômica, ética, de qual natureza for, é só cuspir para cima

gente do partido que hoje fala em traição e tal, leu aquele documento e não disse nada.

Fórum – Não seria melhor dizer que foi um contrato com setores da sociedade brasileira?

Ciro – Não, fez parte do contrato com a sociedade, com os 52 milhões. Tudo bem, o povão lá de uma favela de Olinda pode não ter entendido bem, mas os políticos que estavam com o Lula entenderam porque sabem ler. Outro dia vi uma entrevista do [Fernando] Gabeira, meu amigo, que respeito, dizendo “eles foram para a rua, prometeram, não sei o quê, não sei o quê”. Disse “eles”, como se ele não estivesse junto. Eu quis muito que ele estivesse comigo, mas ele estava com o Lula. Não dá para fazer assim, quem é de esquerda, quem é progressista, tem um compromisso com a sua biografia, mas não pode pôr o compromisso com a sua biografia acima do compromisso com a história, com o coletivo, com a nossa nação, com o nosso povo. É disso que estou tratando. Isso também é ético. É ético não meter a mão em dinheiro, não sei o quê e tal, mas é ético também não ficar mentindo para as pessoas, não simplificar coisas que você sabe que não são simples. Às vezes é por ignorância que você está simplificando. Quem sabe e

deserta nas primeiras dificuldades também não está tendo uma atitude progressista. Ou a gente esqueceu a história brasileira? Nós esquecemos? Certos grupos de esquerda fizeram o que, quando o João Goulart, confuso, sem rumo, num mundo apartado pelo preto ou branco da Guerra Fria, quis se socorrer no campo da esquerda? O campo da esquerda fez o quê? Foi puxar a corda para além do que a correlação de forças permitia. Aquilo, na minha opinião, mais cedo ou mais tarde, ia acontecer, mas certas atitudes de autorreferidos progressistas precipitaram. Mas agora não vão fazer... Fórum – Será que não, ministro?

Ciro – Não, não vão fazer. Porque o povo brasileiro é muito vulnerável, por um ângulo, mas tem uma sabedoria que ainda não consegui entender direito, impressionante. É incrível como o povo tem cumprido seu papel. Audaciosamente vou sustentar a seguinte tese: o povo não errou nenhuma vez. Aí você pode me perguntar, nem na sua eleição? Nem na minha. Mas o mais complicado da minha provocação é o Collor. Porque, depois que o Collor virou o que virou, todo mundo simplifica a abordagem. Mas, na data em que o Collor se constituiu, talvez até por negação,


do jeito que foi embalado pelos mediadores da mídia, da política, do poder econômico, para o conjunto da sociedade, ele representava um valor correto para aquela data. Uma mudança de valores, uma ruptura, uma outra geração, uma vontade de deixar o passado para trás e olhar para o futuro. E foi isso o que o povo escolheu. Claro que, depois, revelou-se falso. Mas não porque o povo escolheu errado. O povo escolheu certo, o errado estava na embalagem. E, só para registrar, se elegeu sem o meu voto e o meu apoio. Fórum – O senhor tem, ao menos internamente no governo, manifestado suas diferenças com a política econômica. Que outro modelo o senhor propõe ou o governo deveria propor?

Ciro – Antes de o governo decidir qualquer coisa, é preciso criar correlação de forças, organizar os conceitos. Porque, de um lado, você tem um consenso com uma força prepotente que basicamente empalma todos os centros de poderes reais no mundo. A elite brasileira, inteira, está contaminada por esse consenso. E frações dela esquizofrenicamente. Porque quem produz na agricultura está enlouquecido com essa mistura de câmbio, juro etc. e tal. Percebe que tem alguma coisa errada. Mas na hora em que você disser “vamos mudar”, se não tiver isso dialeticamente amadurecido, esses setores tomam uma atitude reacionária. A indústria brasileira percebe que tem uma coisa centralmente errada para ela. Percebem, por essa mistura de câmbio, de juro, de infraestrutura depauperada, que tem alguma coisa errada. Mas se você disser “vamos mudar”, sem que isso esteja amadurecido dialeticamente, conceito estabelecido, eles ficam contra. Preferem que deixe assim, todo mundo já se adaptou, já sabe se virar. É claro que as estatísticas de falências e concordatas dos últimos oito anos foram as maiores da história do país. Agora não, agora desaceleram essas estatísticas.Falta o lócus, o método e a humildade dos setores progressistas, porque agora nós temos a hegemonia política. Essa é a nossa oportunidade histórica e seremos muito gravemente cobrados se não fizermos o que precisa ser feito. Não tem outro Lula no universo. Pelo o que ele é e pelo o que representa. Não tem outro Lula. Forçar uma barra agora, pela esquerda, só porque estamos todos inquietos com as contradições, sejam elas de natureza econômica, ética, de qual natureza for, é só cuspir para cima. Sabe quando a esquerda vai ganhar de novo as eleições no Brasil? Só daqui a três gerações de políticos. Não tem outro Lula.

Por isso que eu, mesmo não concordando com algumas coisas, acho que o foro é aqui. Tudo o que quero dizer, digo. Não quero ser o dono da verdade, não posso ser o dono da verdade, mas digo o que penso e nas instâncias corretas. Agora, sei que quem tem que amadurecer a correlação de forças, dimensionar o risco, ponderar a velocidade, ver a hora de pôr o pé no freio, no acelerador, é ele, o presidente da República. Nessa desgraça que temos, que é o presidencialismo, é sempre o presidente, e só ele, que tem que ajuizar isso. E nós, que porventura não tivermos as nossas boas ideias postas em prática, precisamos ter paciência, humildade, senso histórico. Ou, se preferirem, paciência revolucionária. Não sendo atendidos, mesmo que estejamos frustrados, colaborar para destruir uma coisa dessas é um equívoco histórico. Uma pessoa que se diz de esquerda e pratica isso, na minha opinião, não é de esquerda. [...] Fórum – O senhor disse que se fosse presidente poderia ter sido “impichado”. Então, um outro candidato que fosse eleito e não tivesse a base social de Lula ou talvez a até exagerada prudência dele na área econômica seria ainda mais vulnerável que ele?

Ciro – Além dos 52 milhões de votos, dessa representatividade, o presidente tem essa virtude da paciência, da serenidade que muitas vezes, por diversos setores mais agressivos da esquerda, é entendido como transigência. Eu, hoje, como observador da realidade brasileira, vejo como uma virtude essencial. Se não tiver essa prudência, essa paciência, querendo mudar, pode pôr tudo a perder. Hoje tenho convicção disso. É essencial observar a correlação de forças na sociedade brasileira. É um milagre que já não tenham desmoralizado o presidente Lula com este “abafa” que está aí.

Fórum – O senhor responsabiliza o ex-presidente FHC por muito dessa cultura política de demolir projetos, propostas que difiram do atual modelo econômico?

Ciro – Quem deu organicidade a essa perversão no Brasil, que já havia sido iniciada nos primeiros passos do governo Collor, foi, e não há como mudar isso para a história, o senhor Fernando Henrique Cardoso. Repare bem, de 1500, quando aportou Pedro Álvares Cabral, à posse do senhor Fernando Henrique, em janeiro de 1995, nós tínhamos construído uma dívida que correspondia, naquela data, a algo aproximado a 30% de um ano de produção nossa riqueza, do nosso PIB. Naquela data, nós tínhamos uma carga tributária de

27% desse mesmo PIB e tínhamos ativos de algumas empresas brasileiras que, vendida só a parte vendável, vamos dizer assim, pagavam 80% da dívida. Telebras, Eletrobras e Vale do Rio Doce pagavam 80% da dívida naquela data. O país tinha superávit na balança comercial e na Previdência. E, oito anos depois, não 500, só oito, o Brasil tinha uma carga tributária de 36% do PIB, uma dívida pública de 58% do PIB e o senhor Fernando Henrique havia privatizado, internacionalizando, portanto, fundando nossa vulnerabilidade externa, 100 bilhões de dólares. Fórum – O desastre Fernando Henrique é maior que o desastre Collor?

Ciro – É sem precedentes na história brasileira. Não digo isso porque não gosto dele, não. São números e quero discuti-los. Mas tem outras coisas. Se pegarmos, por exemplo, o desastre cambial, o Brasil quebrou três vezes com o senhor Fernando Henrique. Três vezes nós fomos à lona. Numa delas, passada a reeleição, ele tinha assinado um memorando – o governo, não ele – com o FMI, com a maior ajuda em todos os tempos, 45 bilhões de dólares, em que não faltou a presença do presidente Clinton forçando essa barra. Isso é o que eles não querem que eu fale. Ele tinha assinado no governo um memorando, que faz parte do acordo, assumindo o compromisso de não mudar a taxa de câmbio. Sabe o que ocorreu? Passou a reeleição, princípio de 1999, e eles disseram que o mercado atropelou o câmbio. Devagar com o andor... Naquela data, e vou falar por dia para que não pairem dúvidas. Dias 1, 2, 3, 4, de uma semana o sistema financeiro todo comprando dólar. Fim de semana. Dia 1 da semana seguinte, o sistema financeiro todo comprando dólar. Dia 2, daquela semana, o sistema financeiro todo vende dólar para o Banco do Brasil, menos os bancos Marka e FonteCindam. Todo o prejuízo cambial foi passado para o setor público brasileiro. Em um único dia. Pode ter sido uma coincidência. Só quem errou foram Marka e FonteCindam. Providência do dia 4 daquela semana: indenizaram o Marka e o FonteCindam com dinheiro público. Foi isso o que aconteceu, é disso que se trata, por isso fico comovido com certos fragmentos do nosso pensamento progressista. Não prestam atenção, ficam nas simplificações, não vamos mudar o paraíso para a terra. E a dialética? E a correlação de forças? E os prazos? E o esquema de alianças? E o esquema tático? Começamos por qual caminho? Então, cadê a discussão? F setembro de 2011

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O país está vivendo um estado de sítio às avessas Às vésperas da votação que definiria sua cassação, José Dirceu relembrou sua trajetória política e fez uma análise daquele momento político, naquela que foi sua mais longa entrevista após sair do governo Lula

no 33 - dezembro de 2005

foto da capa: Eduardo Maretti

por Renato Rovai, Frédi Vasconcelos, Glauco Faria e Eduardo Maretti

federal José Dirceu nem parecia que estava em meio a um furacão que definiria seu futuro político. Durante a uma hora e meia em que falou, fez críticas diretas e indiretas a membros do partido e do governo, foi muito duro com a oposição, mas deixou claro uma de suas principais características: a lealdade a um projeto político que julga maior do que suas próprias pretensões pessoais. Certo ou errado, Dirceu fez questão de lembrar que não deixará a vida pública, seja qual for o seu destino, incerto até o fechamento desta edição. Confira abaixo trechos de uma entrevista exclusiva e histórica, que perpassa muitos dos importantes momentos das últimas décadas da vida política brasileira.

D

Fórum – Com base na experiência desses últimos cem dias, avaliando o que o senhor viveu no Congresso de Ibiúna, ou na Maria Antônia, no confronto com o Mackenzie, existe alguma relação simbólica desses dias de hoje com os daqueles?

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José Dirceu – Na década de 1960, vivíamos uma ditadura militar e éramos uma geração, como já disse, que fez uma revolução cultural e política, e chegamos a um nível de resistência contra a ditadura que poderia tê-la derrubado, porque começou a haver o apoio sindical, operário e da classe média. Tanto é que a ditadura perdeu as eleições em 1966 em Minas Gerais e no Rio de Janeiro. Depois, vem a luta pela democracia, os movimentos estudantis voltam às ruas em 1976 com o DCE da USP, tem a campanha da Anistia e surge o movimento sindical e o operário, produto do desenvolvimento do capitalismo

omingo, 11 horas da manhã. Poucos minutos depois do horário marcado, 10h30, José Dirceu volta de uma caminhada matinal com a esposa Maria Rita e nos encontra na recepção do prédio de apartamentos funcionais onde mora em Brasília. Desculpa-se pelo pequeno atraso e nos convida para subir. Em casa, despreocupado, descalço e à vontade, antes de o gravador ser ligado e de a entrevista oficialmente iniciar, fala sobre amenidades e comenta algumas das últimas capas de Fórum. Ao se deparar com uma onde Cássia Eller era o destaque, relembra: “Era uma figura. Uma vez, a encontrei num voo e ela, sem a menor sem-cerimônia, começou a falar comigo com intimidade. Abriu a conversa com um: ‘Porra Zé, você em um voo comercial?’” Ri ao recordar. O deputado setembro de 2011

depois de 1964. Aparecem novos atores na vida brasileira, como as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Aliás, é preciso lembrar que a Igreja apoiou o golpe militar. As CEBs e mais o movimento sindical do ABC, junto com grandes categorias de prestação de serviços como bancários e outros, com adesão das classes médias, fizeram com que os políticos tradicionais ficassem em um impasse. Eles pensaram que Tancredo Neves ia conduzir um projeto de desenvolvimento nacional para retomar o fio da História, porque o MDB é de certa forma uma continuidade das lutas de 1950 e 1960. Mas aí surgem o PT e o PSDB depois. E não podemos esquecer que o PSDB é uma costela do PMDB e do PFL, não adianta eles quererem renegar. É uma parcela inclusive do quercismo, grande parte dos que são destaques no PSDB participou dos governos Quércia e Fleury. Eles estão no poder desde 1982. No governo Figueiredo, a hegemonia já era de muitos setores do PFL que estão hoje aliados aos tucanos. Eles querem esconder isso da sociedade. Nós nunca escondemos que nos aliamos ao PMDB, portanto, a uma parte importante do establishment desses anos. Quando fizemos aliança com o PL, PTB e PP também, mas tem que ser com transparência, não adianta ficar escondendo da sociedade. Agora estamos travando um outro tipo de luta. Vou falar com sinceridade: não dou nenhuma importância para o Roberto Jefferson e para as denúncias de corrupção nos Correios. Isso foi um pretexto, uma espoleta. Eles tentaram com o caso Waldomiro Diniz, sabiam que não iriam derrotar o governo


em 2006. Já tinham perdido na preliminar, acreditando que não íamos conseguir governar. Achavam que iríamos ganhar a eleição e recorrer a eles pra fazer maioria, dar governabilidade institucional. Segundo, disseram que não íamos fazer a transição econômica. Terceiro, que não íamos conseguir gerir a máquina pública. E, por fim, tinham certeza que iam nos derrotar na disputa política que começaram. E qual foi essa disputa política? “São ineficientes, estão aparelhando o Estado, os programas sociais não funcionam, os investimentos não aparecem...”. Achavam que o Lula não ia ter capacidade de ser presidente da República. A questão da política externa acorda a oposição de um sonho em que nós éramos incompetentes, e quando fazemos maioria na Câmara e no Senado e começamos a aprovar as reformas e coordenamos um projeto de desenvolvimento. Aí, eles mudaram a qualidade da oposição. Passaram a querer desestabilizar o governo. Quando fazem todo o processo com o Henrique Meirelles – e todo mundo esqueceu o que eles fizeram com ele –, gente, o Meirelles foi eleito deputado pelo PSDB, é um homem da banca internacional, não é qualquer um. Foi presidente do Bank Boston internacional. O que fizeram com ele? Publicaram o contrato de casamento dele. Ninguém deu importância

pra isso, mas eu dei. Falei para o presidente, três vezes no primeiro e no segundo semestre de 2004. Pedi conversa com ele com o testemunho do Gilberto Carvalho. “Se o senhor continuar com minoria no Senado e na Câmara, vão fazer uma CPI, qualquer CPI com o objetivo de desestabilizar o governo, desmoralizar, e o tema geralmente é corrupção.” Eu já estava fora da articulação política, não era responsabilidade minha, saí em janeiro daquele ano, antes do caso Waldomiro Diniz, embora toda a mídia tenha dito que saí por conta do caso. Saí porque pedi pra sair, me dei conta de que o presidente queria que eu saísse. Fórum – Problema pessoal?

Dirceu – Uma mistura de coisas. O personagem é difícil. Está ficando claro isso...

Fórum – Quando o senhor fez essa análise, qual a reação do presidente?

Dirceu – Ele concordou. A corrupção na administração pública federal existe, precisa ser combatida, e nós combatemos. O caso do IRB e dos Correios é um exemplo. No fundo, o Roberto Jefferson queria capturar órgãos públicos, e eu não deixava. Essa é a disputa minha com ele. Ele queria nomear diretor financeiro, além do diretor administrativo, cheguei e falei: “Não, quem nomear isso, controla”.

Perguntas (ainda) não respondidas Era domingo de manhã quando os quatro jornalistas que assinam esta entrevista entraram no apartamento funcional do ainda deputado federal José Dirceu, para a entrevista que seria publicada na edição de novembro de 2005. A poucos dias da cassação do seu mandato, Dirceu tinha esperança na sua defesa e repetia, como faz até hoje, que não existia nenhuma prova contra ele no que ficou conhecido como o “escândalo do mensalão”. Começamos falando de sua trajetória política, sobre a ditadura e outras questões, para não ficarmos restritos ao escândalo. Dirceu foi se soltando, lembrando do golpe militar de 1964, da luta pelas reformas de base e de outros momentos históricos. Quando o assunto chegou ao “mensalão”, ficou claramente incomodado com as perguntas mais duras, mas não baixou a guarda. Falou da estratégia da oposição para derrubar o governo Lula, que pagava mais por suas qualidades do que pelos erros etc. À época, mostravase disposto a ir à guerra, mesmo que fosse como simples militante do PT. Hoje, relendo a entrevista, duas coisas saltam aos olhos. Primeiro, que estávamos no “olho do furacão”, sem saber ainda qual seria o desfecho da crise, se CPI, “impeachment de Lula” etc. E

que esta entrevista ajudou a desvendar muito do que viria depois. O colunista da Folha de S.Paulo, Elio Gaspari, por exemplo, escreveu que “[...] a entrevista, dada aos repórteres Renato Rovai, Frédi Vasconcelos, Glauco Faria e Eduardo Maretti, é a melhor peça produzida por uma cabeça petista desde que a crise começou. Quando não convence, revela [...]”. Sim, revelava muito do que ocorria, mas também ajudou a deixar mais exposto o papel da grande mídia na crise. Não demorou para que O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e outros veículos extraíssem frases da entrevista de contexto e publicassem em manchetes de primeira página. Como a que Dirceu teria dito que o governo tinha acabado. Não adiantou o entrevistado, o editor da revista e os repórteres afirmarem que a frase estava sendo usada fora de contexto. A grande imprensa não estava interessada na informação correta. Passado todo esse tempo, é bom reler o texto original sem as paixões do momento. Por fim, como a entrevista original foi publicada em sete páginas, alguns trechos foram extraídos para esta publicação, incluindo a primeira parte, em que Zé Dirceu conta sua trajetória política antes do governo. Frédi Vasconcelos

Fórum – O senhor sabia com quem estava lidando?

Dirceu – Sempre soube. Mas só tratava de relações institucionais com ele. O Roberto Jeferson nunca me chamou de Zé, Zé Dirceu, nunca teve nenhuma relação pessoal comigo. A segunda questão são os nomes. Ele apresentava um nome, eu dizia não; segundo nome, não; terceiro, não; até chegar em um nome que ele não queria e era um pouco o que nós queríamos. O caso do Lídio Duarte, do IRB, é um exemplo típico. O Roberto Jefferson foi tentar obrigar o Lídio a operar junto, e ele se recusou. Ou o caso de Furnas, em que o Jefferson queria tirar o Dimas. Isso tem origem no deslocamento do PTB no governo, porque o partido tinha o ministério do Turismo e a Infraero, mas houve um rompimento entre o Carlos Wilson e o PTB, e o partido ficou sub-representado no governo. Isso foi um erro, porque se o partido está bem representado, acaba esse tipo de problema. Tanto que surge a crise no terceiro escalão, com coisas que nós sempre combatemos. Tanto que entreguei na CPI um relatório de mais de cem páginas com todas as denúncias que chegaram à Casa Civil, e eu mandei apurar. Nunca deixei de apurar. E o Roberto Jefferson achava que o caso dos Correios a gente ia abafar, na mídia e na Polícia Federal. Quando ele viu que o governo, pelo contrário, determinou que a PF investigasse, que a Corregedoria Geral investigasse, aí... Fórum – Ele diz que o senhor colocou arapongas atrás dele.

Dirceu – Por prevenção, nunca quis ter nenhuma relação com a Abin. Até pelo cargo de chefe da Casa Civil poderia ter, mas nunca quis porque percebi que, desde o começo, a direita e quem faz oposição ia tentar me enredar nisso. A Folha de S.Paulo fez uma matéria absolutamente mentirosa, fantasiosa. Luiz Gushiken nunca se interessou por isso, nem eu, e o jornal fez uma matéria enorme dizendo que nós estávamos disputando o controle da Abin. Falei: “presidente, isso é um sinal, quero ficar longe disso.” Depois a matéria caiu no esquecimento, mas está lá. Nunca conversei com o Gushiken a respeito disso. A Abin, sob comando do general Jorge Félix, começou uma mudança importantíssima, se abriu pras universidades, pra sociedade civil, está passando todos os arquivos dela para o arquivo público. Então isso foi um pretexto, como foi pretexto o esquema Marcos Valério-Delúbio Soares pa ra fazer uma campanha e dizer que o PT e o governo são corruptos, quando todos sabem que não é verdade. Se o governo Lula fosse um gosetembro de 2011

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dizem que não temos quadros e experiên­cia, porque a direita é assim.

Fotos: Eduardo Maretti

Fórum – A esquerda perdeu a vitalidade?

Cometi muitos [erros] e já falei de vários aqui, mas não tem o maior erro político. Hoje, acho que minha relação com a mídia não foi adequada. Por falta de tempo, personalidade, achar que ia aparentar um poder maior do que tinha verno de negócios, o Delúbio não teria ido buscar 55 milhões de reais no Banco Rural e no BMG pelas empresas de Marcos Valério. Todo mundo sabe disso. Todos conhecem como se arrecada recursos no país. Como o PSDB e o PFL levantaram recursos nesses anos? Fazendo grandes negócios, privatização... Fórum – Sob esse aspecto, amplos setores do PT esperavam que houvesse uma devassa nas privatizações, e não houve. Existe também a questão do Daniel Dantas.

Dirceu – Quem derrubou o Dantas foi ele mesmo. Ele é filho do Citigroup, a Previ fez um acordo com o Citigroup. Vamos abrir os olhos. Quando estava no governo, não falava isso; como estou fora, serei bem claro. A Previ tem suas razões, tem seus direitos, é um fundo de pensão e tem que atender os interesses de seus associados e dos outros fundos que participam, não estou entrando em valoração moral nem política. O desenlace do caso Daniel Dantas é pífio. A Previ se associou com o criador dele, o Citigroup, que rompeu com o Dantas e acabou tudo. É preciso saber por que o Citigroup fez isso. Quanto à devassa, não teríamos maioria no Congresso, nem teríamos estabilizado a economia porque abriríamos uma luta política. Para que nós fizéssemos as apurações, teríamos que fazer uma CPI. O Ministério Público e a Polícia Federal estão investigando, o problema não é esse, a sociedade tem

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conhecimento dos escândalos da era FHC. Na verdade, o governo Fernando Henrique nunca deixou instalar uma CPI. Se tivesse uma CPI no governo FHC, talvez ela tivesse se transformado em um processo de impeachment, e ele disse isso em vários jornais e revistas da época. Peguei uma por uma pra ler no Conselho de Ética porque se algum tucano dissesse que não era verdade, eu ia mostrar. Tem entrevista dele dizendo: “não faço CPI, CPI é pra desestabilizar governo, pra fazer meu impeachment”. “Não deixo, faço tudo pra não ter.” Quando ele perdia no Congresso, derrubava na Comissão de Constituição e Justiça; quando perdeu na CCJ, derrubou no Supremo. Foi certo não fazer uma devassa no governo FHC. Nós temos que lembrar o seguinte: o Lula foi eleito presidente da República, mas é minoritário no Congresso, a esquerda não tem 120 deputados e 20 senadores. Somos minoria na sociedade, foi dada uma maioria para o Lula e somos ínfima minoria no poder econômico do país, quase nada no verdadeiro poder do país. A mídia, nós não temos. Uma pessoa que vem de fora do país toma um choque com certas avaliações que setores da esquerda e da intelectualidade fazem do governo Lula. Vocês queriam que o Lula fizesse o quê, como disse o [Antonio] Negri, por exemplo. Ele me chamava a atenção pra isso, dizendo que estava estarrecido. Depois, o seguinte: não nos deixaram governar nos últimos 40 anos e agora

Dirceu – A vitória do Lula cria uma nova situação para a esquerda. Pessoas tanto do PT como de fora não souberam compreender isso. Isso não significa não fazer luta, não pressionar, não fazer greve, não fazer ocupação, não combater as políticas de que se discorda, não estou falando isso, mas depois da experiência do Allende, do Jango, dos sandinistas, inclusive na Europa, já temos experiência suficiente pra saber o que significa a frase que um manifestante chileno exibia em um cartaz: “É um governo de merda, mas é o meu governo.” Ou seja, primeiro, vamos tentar o governo; segundo, vamos disputar o governo internamente; terceiro, vamos mobilizar a sociedade contra as políticas que consideramos conservadoras; quarto, vamos criar alternativas para o governo avançar. Faltou da nossa parte – é um dos cinco, seis grandes erros que costumo apontar – mais empenho nesse diálogo e nessa relação. Na verdade, nunca ficou muito claro que a gente fazia isso no governo, e o partido acabou não fazendo também. E faltou também, da parte dos movimentos, buscar mais os governos. Fórum – O senhor não acha que se tivesse ficado na presidência do partido e articulado essa relação com movimentos sociais e a sociedade civil, o PT e no governo não ganhariam mais? E o José Genoino poderia ter disputado o parlamento, por exemplo, não teria sido melhor?

Dirceu – Talvez sim. Se eu tivesse ficado no partido e o Genoino, em vez de ser candidato a governador, fosse a deputado e se tornasse presidente da Câmara, talvez o governo tivesse mais condições... Mas eu queria governar. Passei 40 anos lutando pra depois não ir para o governo? A coisa mais certa que fiz foi ir para o governo e a coisa mais certa que fiz foi sair do governo, embora devesse ter saído antes, no fim de 2004 e ou em março, abril de 2005. Fórum – O senhor não caiu (do governo) também por uma questão de apetite pelo poder? Acusam o senhor de stalinista, concentrador de poder.

Dirceu – Isso não tem nada a ver. Nunca fui stalinista, é um mito que criaram. Como a Folha queria dizer que eu era o “sombra” no começo do governo. Como sou o “sombra”? Fui eleito deputado estadual, federal três vezes, candidato a governador, presidente do PT três vezes – uma vez por eleição direta –, fui eleito presidente de centro acadêmico na


rua, com bomba de gás lacrimogênio, cavalaria. Fui presidente da UEE com repressão em todas as escolas. Sempre tive presença na vida pública do País. Clandestino? Uma bobagem, milhares de pessoas viveram clandestinas no país e dão à minha clandestinidade uma importância que ela não tem. Vivi no Paraná cinco anos, e daí? Era clandestino, mas era uma pessoa pública. Toda cidade me conhecia, nunca fui “sombra” de ninguém, nem do Lula eu sou. O país sabe que minha relação com o Lula é de lealdade, mas de total autonomia e independência. Aliás, o Lula, e isso é uma qualidade dele, me delegou autoridade na presidência do PT e nunca interferiu na minha presidência – até em demasia. E repeti isso com o Genoino. Considero que foi um acerto no sentido de fortalecê-lo, mas foi um erro ter saído do partido. Nós abandonamos o enfrentamento. Quando digo “nós”, é relativo a mim, porque é o que sempre fiz, e vários setores do partido e do governo puxaram minha orelha por isso, enfrentar o PSDB, enfrentar o debate, não levar desaforo pra casa, não deixar nada sem resposta. Se você observar os 30 meses que fiquei no governo, enfrentei o debate político, a questão da mobilização e os grandes temas que estavam em discussão no governo. Eu não me omiti. Mas não foi a postura geral nossa. Fórum – Mas o senhor não chegou a ter poder demais no governo?

Dirceu – A direita sempre quis me tirar do governo. Pelas minhas ideias, pela minha história, pelo que representei no PT, na campanha e na vitória do Lula. Mas não porque sou centralizador e tinha poder demais. Sim pelo papel que tinha de enfrentá-los, de fazer as coisas funcionarem. Eu sobrevivi. Não é pouca a experiência que tenho, e falo sem falsa modéstia, porque não atribuo isso às minhas qualidades, mas porque passei por muitas fases da história brasileira e aprendi muita coisa. Tudo no PT ganhei depois de seis, oito meses, um ano, um ano e meio de debate e discussão, e nunca passamos de 54%, 56%. Então é mentira que sou stalinista. Esse discurso que o Raul Pont faz e muita gente até do Campo Majoritário assimila, que não tinha democracia no PT e que agora vai haver, que as tendências não eram representadas etc... Mentira. Tem proporcionalidade direta, absoluta... Eles que me levem pra debater isso no Encontro Nacional do PT, que eles vão ouvir. Qual a tese que defendi no partido e falei “é isso aqui e está aprovado”? É pau puro e a mídia contra mim, raríssimas vezes a mídia ficou a favor das teses que defendia no PT. A política

de alianças virou fisiologismo; antes, o PT era estreito e não fazia alianças, o dia que comecei a defender, a mídia toda falou que era fisiologismo. O programa antes era esquerdista, depois virou o programa do FHC, neoliberal. Nunca tive moleza. Nunca tive tempo bom. (...)

Fórum – Qual teria sido seu maior erro político?

Dirceu – Cometi muitos e já falei de vários aqui, mas não tem o maior erro político. Hoje, acho que minha relação com a mídia não foi adequada. Por falta de tempo, personalidade, achar que ia aparentar um poder maior do que tinha. Não foi boa minha relação com a mídia. Mas quero lembrar que não estou sendo cassado. É o governo e o PT. É uma ilusão achar que estou sendo cassado, não tenho essa importância. Fórum – O senhor acha que no momento em que for cassado vai haver um próximo?

Dirceu – Eu sou só um símbolo. Na verdade, não sobrou nada no governo. Luiz Gushiken, Gilberto Carvalho, Antonio Palocci, José Dirceu; no PT, o presidente da Câmara, o líder do governo, José Genoino... Eles querem criminalizar o PT, a esquerda não pode governar, como disse o Thales Alvarenga, que falou que isso. Ou seja, é mais uma prova de que a esquerda não sabe governar, são ignorantes, corruptos. Outro lado é caracterizar o governo Lula como corrupto, eles não querem o debate, porque perdem. Por mais que esse governo tenha problemas, que não tenha avançado em questões importantes, é o melhor governo que o Brasil teve desde 1985. Comparado com FHC, ganhamos de longe a disputa política. Vamos lembrar que o golpe de 1964 foi dado contra a corrupção e depois contra a subversão. E vimos o que foi corrupção na ditadura militar. Como sabemos o que foi corrupção nos oito anos de governo FHC. Quero ser investigado, o governo Lula também, porque onde houver corrupção, tem que punir as pessoas. Quero saber se provam que o presidente, o PT, os ministros, o núcleo do governo têm relação. O PT tem que responder, e estamos respondendo, pelos empréstimos, pelo caixa 2, pelo movimento que fizemos de levantar recursos no BMG, nas empresas do Valério. Eles não provaram nada até agora de dinheiro de estatal, de superfaturamento, de contrato fictício. Esse negócio da Visanet não está concluído ainda. Fora isso, eles não têm nada. Fórum – Mas como explicar o uso do esquema do PSDB em Minas, com o Marcos Valério?

Dirceu – O Delúbio Soares tem que explicar. Não conhecia o Marcos Valério, não tinha re-

lação com ele. Só foi recebido acompanhando o Banco Rural e a Usiminas na Casa Civil, e ele fala isso explicitamente. Depois, ainda foi falar que eu era inimigo dele. Não era inimigo, só nunca tive relação com ele, sabia que era publicitário, que trabalhava com o governo, tinha relações com o Delúbio e o PT.

Fórum – Como uma pessoa consegue entrar no PT e fazer um estrago desses?

Dirceu – Pelo que já foi apurado pela Comissão de Ética do PT, o Delúbio já foi expulso por isso e o Genoino renunciou à presidência. Os mecanismos de controle e de fiscalização não foram respeitados no partido. Quando eu era presidente, isso não acontecia. É uma questão que o PT já julgou, senão o Delúbio não teria sido expulso. Votei contra a expulsão, votei pela suspensão de três anos para esperar acabar toda essa crise, todo o processo pra ver com mais clareza o que aconteceu realmente. Quero repetir: denúncias de corrupção na administração pública federal e descoberta de caixa dois no PT são dois pretextos de um grande movimento que a direita, o PSDB e o PFL, a esquerda como o Psol, o PPS, o Gabeira empalmaram para acabar com a experiência de um governo de esquerda no Brasil. Fórum – Mas o governo Lula não está indo devagar nesse sentido de ser um governo de esquerda? O Palocci não retardou um pouco isso?

Dirceu – É uma opção que o presidente fez. Ele é assim, fez uma opção pela segurança e pela estabilidade. Fórum – O senhor não faria assim?

Dirceu – Eu faço, fazia, o que o presidente decidia. Eu não era presidente, era ministro, tanto é que ele me demitiu quando precisou. O Palocci quer um segundo ajuste, está pedindo abertura comercial, CPMF fixa, ainda que com alíquota decaindo, 5% de superávit, despesa corrente fixa, BC independente... A minha avaliação é que isso é inviável para um governo forte, um governo com maioria, ainda mais com um governo que está enfrentando um processo de desestabilização, com a oposição saindo dos marcos democráticos. Quando a oposição introduz a violência na vida política brasileira, falando que vai surrar o presidente, e ninguém criticou, todos apoiaram, quando o Bornhausen fala da “raça”, quando falam que o presidente é bandidão e o Fernando Henrique cala, o Tasso Jereissati cala, os governadores calam, significa que eles querem derrubar o governo. Ou nós levamos ao pé da letra o que eles estão falando ou somos um bando de imbecis. F setembro de 2011

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­A guerra entre Íblis e Lúcifer por Miguel do Rosário*

“E

u liberto a terra e aprisiono os céus. Eu me jogo ao chão para permanecer fiel à luz, para fazer do mundo um lugar ambíguo, fascinante, dinâmico e perigoso. Para anunciar que irei além dele. O sangue dos deuses continua fresco em minhas roupas. O grito de uma gaivota ecoa em minhas páginas. Deixem-me simplesmente empacotar minhas palavras, e partir.” Essas palavras dramáticas, excerto de um poema intitulado “No limite do Mundo”, foram escritas por Adonis, um dos maiores poetas árabes vivos. Servem de mote para este breve ensaio sobre as mudanças no mundo árabe ocorridas na última década. Que mudanças são dignas de nota? Podemos começar observando que não foram exatamente os céus que foram aprisionados, mas sim quatro aviões; nem terra alguma foi libertada; um portão se abriu, todavia, dando fuga aos piores demônios do inferno cristão e do inferno islâmico. O céu estava terrivelmente belo em Nova Iorque, pronto para receber 2.996 almas, a maioria das quais não se dirigiu ao paraíso – eram infiéis. O demônio do Islã se chama Íblis, é o correlato do Lúcifer cristão. Nesses últimos dez anos, ambos travaram uma sangrenta disputa para saber quem receberia mais condenados. É com orgulho que nós cristãos podemos afirmar que vencemos. Se Íblis faturou 3 mil infiéis no 11 de setembro, Lúci-

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Gravura de Gustave Doré

O demônio do Islã se chama Íblis, é o correlato do Lúcifer cristão. Nesses últimos dez anos, ambos travaram uma sangrenta disputa para saber quem receberia mais condenados. Se Íblis faturou 3 mil infiéis no 11 de setembro, Lúcifer arrebanhou quase um milhão de almas de 2001 aos dias de hoje fer arrebanhou quase um milhão de almas de 2001 aos dias de hoje. E, desde Dante, sabemos muito bem o que acontece aos muçulmanos depois da morte. A diferença é que hoje acontece em vida mesmo. “Chi poria mai pur con parole sciolte dicer del sangue e de le piaghe a pieno ch’i’ ora vidi, per narrar più volte?” “Quem, mesmo em prosa, poderia falar do sangue, e das feridas horripilantes que eu ali via?”

Dante narra, então, a tortura infligida a Maomé, levado para o oitavo círculo do inferno (dos semeadores de intriga e discórdia), cujo corpo é sistematicamente mutilado por um demônio. A cena, presente no capítulo 28 do Inferno, parece descrever o cenário de um café em Bagdá após um atentado terrorista: “Às pernas o intestino lhe escorria; a mostra estavam nele, o coração e a bolsa que o alimento recebia.”

Depois da mutilação, porém, as feridas se fecham, preparando o corpo do condenado para receber outro golpe. Não parece a história recente do Iraque? Não se pode falar de árabes, e da visão que

temos de sua cultura, sem mencionar Edward Said, sobretudo a sua obra Orientalismo, clássico dos clássicos sobre o imperialismo cultural do Ocidente. É realmente muito triste que o grande intelectual palestino, que estudou e lecionou nas maiores universidades americanas (Harvard, Yale e Columbia), tenha morrido antes de assistir a queda de Mubarak. Said faz um levantamento minucioso e erudito de tudo o que o Ocidente escreveu sobre os árabes nos últimos mil anos. E constata que o imperialismo europeu, e depois o americano, fundamentou-se também no domínio da cultura, sobretudo a partir da chegada de Napoleão ao Egito. O ditador francês entra no Cairo levando um comitê de “sábios”, encarregados de registrar e estudar tudo que encontravam. Desde então, surge na Europa a figura do “orientalista”, com ênfase, durante muito tempo, no Oriente próximo, ou seja, no mundo árabe muçulmano. No prefácio para a edição de 2003 de Orientalismo, Said lamenta que o debate internacional sobre o mundo árabe tenha se empobrecido assustadoramente nos últimos anos; o mais grave é que ele parece ter sido empobrecido deliberadamente pelos falcões de guerra. “Parece-me inteiramente expressivo do momento em que estamos vivendo o fato de que, ao pronunciar seu dis-


curso linha-dura de 26 de agosto de 2002, sobre a necessidade imperativa de atacar o Iraque, o vice-presidente Cheney tenha citado, como seu único ‘especialista’ em Oriente Médio – favorável à intervenção militar no Iraque –, um acadêmico árabe que, como consultor remunerado pela mídia de massas, repete todas as noites pela televisão seu ódio pelo próprio povo e sua renúncia ao próprio passado.” Said, todavia, também faz algumas críticas aos árabes: “Nos países árabes e muçulmanos, a situação não chega a ser muito melhor. […] a região escorregou para um antiamericanismo fácil, que mostra pouco entendimento do que os Estados Unidos efetivamente são como sociedade.” A conclusão de Said é que, “o humanismo é a única possibilidade de resistência”, sendo que “somos favorecidos pelo campo democrático fantasticamente animador do ciberespaço, aberto para todos os usuários de maneiras jamais sonhadas pelas gerações anteriores”. O intelectual, portanto, meio que prevê a “primavera árabe”, a qual, aliás, parece ter se convertido num verão infernal, a julgar pelos acontecimentos recentes na Líbia e na Síria. Lendo o blogue Syria Comment, de Joshua Landis, diretor do Centro de Estudos do Oriente Médio e professor na Universidade de Oklahoma, não há como deixar de pensar naqueles orientalistas citados por Said em seu livro, com suas sociedades, centros, fundações, voltadas para o estudo das coisas árabes e que foram todas, sem exceção, instrumentalizadas para servir ao imperialismo europeu. Entrevistado por uma TV americana, Landis afirma que os árabes, “num certo sentido, abraçaram as ideias de George Bush sobre liberdade e democracia”. O blogue de Landis é o mais lido nos EUA sobre o Oriente Médio: Como reagir a esse tipo de sofisma idiota? Folheando o livro de Said, encontro uma citação de Shakeaspare (é uma fala do Bobo, no Rei Lear), que pode nos trazer um pouco de humor: “Eles mandam que eu seja açoitado por falar a verdade, tu mandas que eu seja açoitado por mentir; e, às vezes, sou açoitado por ficar calado.” Os árabes, por vezes, vivem o pior dos mundos. Se apoiam a ditadura, sofrem com sua brutalidade; se apoiam a democracia, são acusados de conspirar ao lado dos americanos; e, às vezes, apanham simplesmente porque não apoiam nem uma coisa, nem outra. Enfim, falar dos árabes é algo extremamente arriscado, sobretudo após ler Orientalismo, de Said, porque somos expostos a nossos próprios preconceitos e manias. A

pior das manias é a arrogância de achar que conhecemos muito bem o Oriente Médio apenas porque lemos os artigos de Pepe Escobar. Voltemos, portanto, à poesia de Adonis. “Eu convoco anjos e ambulâncias – eu me transformo em água e escorro para a piscina de minhas tristezas, ou me torno num horizonte e escalo os cimos do desejo. Eu sei que nós morremos apenas uma vez – e renascemos a toda hora. E sei que a morte somente é útil se a gente a atravessar. Eu sei que o imediato é esta rosa, essa mulher, e que uma face humana está do outro lado do céu.”

Os árabes, por vezes, vivem o pior dos mundos. Se apoiam a ditadura, sofrem com sua brutalidade; se apoiam a democracia, são acusados de conspirar ao lado dos americanos; e, às vezes, apanham simplesmente porque não apoiam nem uma coisa, nem outra

Esta “face humana do outro lado do céu” é justamente o que procurava Said nos compêndios eruditos que os europeus escreviam sobre o Oriente Médio ao longo dos últimos 200 anos. Said sonda centenas de livros tentando encontrar quem visse os árabes não mais como árabes, mas como seres humanos. Quem visse a cultura árabe não como um objeto de estudo que, como tal, deva permanecer estática, como um modelo vivo a quem ordenamos que não se mexa para que possamos retratá-lo à perfeição. Said defende a cultura árabe como uma entidade viva, dinâmica, em movimento constante. Evoluindo às vezes, regredindo, pausando aqui e avançando enlouquecidamente acolá. Said defende a individualidade única de cada árabe, na contramão das generalizações esquemáticas e simplórias que as mentes mais brilhantes e eruditas costumavam fazer. É interessante observar como Said não questiona a genialidade, o esforço e o talento dos estudiosos europeus que souberam apreender e decifrar línguas mortas, realizar escavações arqueológicas e pesquisar a história do Oriente desde seus primórdios, além da competência inegável na construção de ferrovias, portos, canais, pontes, indústrias e lavouras. A sua acusação é contra o tratamento frio e esquemático a uma cultura

tão viva. Ele percebe, então, que às potências imperialistas não interessava que essas culturas adquirissem consciência de sua força, dinamismo e vivacidade. Não havia nada de errado com os árabes. Ao contrário, eles haviam constituído, na Alta Idade Média (séculos VIII e IX), um dos maiores impérios do mundo, estendendo-se da Espanha à China. Houve um momento em que o mundo árabe formou um crescente império ameaçador ao redor da Europa, prestes a sorvê-la com a sua força militar e cultural. As primeiras universidades europeias, em Córdoba, foram fundadas por árabes, os quais, durante séculos, protegeram os tesouros da civilização helênica, entre eles a obra de Aristóteles. Nos últimos dez anos, os árabes viveram as revoluções tecnológicas com o mesmo entusiasmo e interesse demonstrado por qualquer outro povo. Os egípcios criaram blogues, alguns passaram a fazer ativismo político na rede, e todos usaram a internet para ampliar seu conhecimento sobre o mundo. O Ocidente, por sua vez, pode conhecer melhor os árabes. Podemos, por exemplo, conhecer a poesia do palestino Mahmoud Darwish, outro que Said aponta como um dos dois maiores poetas árabes contemporâneos: “Meu céu está cinza. Coce minhas costas. E desfaça meus cachos, você mesmo, estranho. E me diga o que se passa em sua cabeça. Diga-me coisas simples, diga-me o que uma mulher gostaria de ouvir. […] Diga-me o que Adão disse em segredo para si mesmo. […] Fale que duas pessoas, como eu e você, podem suportar toda essa semelhança entre a névoa e a miragem, e retornar em segurança. Meu céu está cinza; o que você pensa quando o céu se acinzenta?” (Trecho do poema “Dois pássaros estranhos no mesmo galho”)

Nos últimos dez anos, portanto, os árabes não passaram todo o tempo voltados para Meca, rezando. Eles também escreveram poemas, amadureceram ideais democráticos, derrubaram torres gêmeas, derrubaram ditadores – e se tornaram os maiores compradores mundiais de frango brasileiro. De qualquer forma, devemos ficar de olho aberto, pois há trechos no Alcorão que mais parecem memorandos do Pentágono: “[...] se eles lutarem contigo, mate-os de uma vez. Essa é recompensa para aqueles de pouca fé” (2.191 ). F

*Miguel do Rosário escreve para o blogue Óleo do Diabo. setembro de 2011

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Yasser Arafat , a agonia de um líder enclausurado Em confinamento, Arafat, mesmo com a saúde bastante abalada, falou sobre a situação imposta aos palestinos, os avanços e descumprimentos de acordos por parte de Israel, e reafirmou sua esperança em um futuro de paz na região

no 17 - 2004

foto da capa: Anselmo Massad

por Anselmo Massad

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esde 26 de novembro de 2001, um chefe de Estado permanece confinado e não pode sair para nada. Não é figura de linguagem. Naquele dia, o exército israelense cercou o local onde o presidente da Autoridade Nacional Palestina eleito em janeiro de 1996, Yasser Arafat, estava e de lá ele não saiu mais. Hoje, mesmo sem o cerco, permanece preso e é apontado abertamente por autoridades israelenses, incluindo o primeiro-ministro Ariel Sharon, como alvo de assassinatos seletivos . Israel não negocia com ele. A Muqata, escritório de Arafat, era um

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setembro de 2011

complexo grande, mas agora só restam dois prédios para seus seguranças e assessores. Ele recebe todas as visitas em uma mesma sala, no terceiro andar. Ao lado dela, dois cômodos servem de quarto para assessores e seguranças do presidente durante a noite, com duas camas sem lençol por quarto. As janelas do terceiro andar estão lacradas com placas de metal. Nos outros andares, sacos de areia formam barricadas nas janelas com pequenas frestas suficientes apenas para o cano de uma arma, permitindo alguma reação em um eventual novo cerco. Do lado de fora, escombros e restos de construção formam um cenário de pós-bombardeio. Ferragens contorcidas, pilhas de detritos, rombos em paredes, carros destruídos amontoados, tudo isso é mantido também para dificultar o acesso. Na entrada do prédio onde Arafat despacha e faz suas reuniões, três soldados controlam a entrada. Ao redor da sala de encontro, uma dúzia de guardas fica de plantão, monitorando câmeras instaladas nos arredores do local. Em uma de nossas visitas à Muqata, próximo à entrada, cerca de 40 soldados perfilados em treinamento militar podiam ser vistos. A Palestina não pode ter exército e nem a polícia pode andar armada. Mas os seguranças de Arafat carregam fuzis automáticos, comprados clandestinamente.

Vestem-se de verde e cuidam precariamente da proteção do líder. Nada que impeça helicópteros Apache ou caças F-16 de promoverem os tais assassinatos seletivos (realizados extrajudicialmente). Diferentemente do que pregam o governo Sharon e alguns “especialistas” no conflito, Arafat é reconhecido como líder e admirado pela quase totalidade do povo palestino, incluindo militantes e seguidores de movimentos extremistas, mesmo discordando da opção dele pela paz e convivência amigável entre dois Estados. Por isso, matá-lo seria suicidar qualquer possibilidade de paz na região. Ele é o único interlocutor com respaldo de diversos setores da sociedade palestina. Para entrar na Muqata, a senha é ser de confiança. Não há nem detectores de metal ou revista apurada. A confusão reina e a tensão é permanente, o que provoca pequenas e frequentes discussões entre os guardas. Arafat está preso, mas isso não significa que haja soldados israelenses guardando as redondezas. Mas caso ouse desafiar a ordem e sair do prédio, sabe que estará se condenando à morte. Por isso, sua pele está mais clara do que nunca e a saúde, abalada. Suas mãos tremem continuamente. Era em torno das 21h45, quarta-feira, 21 de abril, quando, convidados pela embaixada da


Palestina no Brasil, os repórteres chegaram a Muqata para uma entrevista. Era o terceiro encontro com Arafat. O primeiro, havia sido domingo – na cerimônia em que ele, ao lado de 20 membros do Parlamento da Autoridade Nacional Palestina, recebeu as condolências pela morte de Abdul Aziz Rantissi, líder do Hamas, assassinado na cidade de Gaza dois dias antes por um míssil disparado por um Apache israelense. O segundo, foi numa reunião formal com a delegação de deputados. A entrevista ocorreu no mesmo local onde Arafat trabalha. É uma sala de quatro por 10 ou 12 metros, que tem uma ampla mesa de madeira com 20 lugares e presentes das várias delegações e visitas empilhados num canto, aparentemente sem muita ordem. Uma campainha anuncia cada pessoa que entra na sala, geralmente para entregar recados ao presidente. Em seu uniforme verde-oliva, ele sempre prende broches. Neste último encontro, duas dezenas deles celebravam as embaixadas palestinas na Grécia, nos EUA e em Israel, e homenageavam a União Europeia e outros parceiros, como ONGs, por exemplo. Arafat senta-se à cabeceira, a poucos centímetros da parede. À sua esquerda, parcialmente embrulhada por panos, uma sub-metralhadora descansa não muito escondida, ao alcance da mão. Seguranças não se afastam mais do que três metros dele. Arafat convida os repórteres e amigos, para jantar. A toalha não é comprida o suficiente para cobrir toda a mesa, o que permite que parte da pilha de documentos e relatórios a que ele se dedica permaneça ao seu lado. No cardápio, pão árabe e coalhada, grãode-bico refogado, queijos, doce de gergelim, verduras e legumes, tudo em pratos de louça branca. Não há talheres nem pratos individuais, exceto para Arafat. Bem-humorado, ele manda “presentes” aos jornalistas. Pedaços de legumes e pão com uma pasta específica. É uma receita especial, feita para ele, com sementes moídas ao mel. Seu prato preferido. Arafat sorri muito, elogia o Brasil e cita pirâmides construídas por índios. Não se importa em que países estejam atualmente localizadas, pois despreza as fronteiras atuais: “Estava tratando do povo histórico que ali vivia.” Estabelece relações entre o Norte da África e as Américas e sustenta que os africanos integravam as tripulações das grandes navegações europeias e podem ter ajudado na “segunda descoberta”, do novo mundo. Os pratos e a toalha são retirados e a entrevista começa. Arafat, os repórteres da Fórum e de dois jornais brasileiros, o embaixador da Pa-

lestina no Brasil e um assessor são os únicos presentes na sala, além de um fotógrafo oficial. Os óculos só são tirados quando as máquinas fotográficas aparecem; na sequê­ncia, ele ajeita o inseparável Kaffiyeh (turbante branco com listras pretas). Toda a conversa é em inglês – ainda que às vezes recorra aos assessores para entender melhor as perguntas e encontrar termos específicos. Arafat insiste em citar exemplos e diz que as vítimas da política israelense são também cristãos palestinos, para mostrar que não se trata de repressão a extremistas islâmicos, mas um massacre contra todo o povo palestino. Bem disposto, por várias vezes joga o corpo para traz, equilibrando a cadeira apenas nas pernas traseiras, gesticulando com a mão direita e deixando a esquerda parada. Após menos de 30 minutos da entrevista, um dos assessores, em árabe, aconselha Arafat a dispensar os jornalistas, por achar que as perguntas estão duras demais, pró-Israel. Arafat mantém-se tranquilo, mas não deixa de se irritar para responder algumas questões. Em seu ritmo pausado, não permitia interrupções dos repórteres. Nos cerca de 50 minutos da entrevista que segue, Arafat fala da situação imposta aos palestinos, dos avanços e descumprimentos de Israel, e lembra do que já fez por Israel ao reconhecer o Estado em 1988 e convencer outros 60 países a segui-lo. Dias depois da conversa, um assessor divulgou a informação de que a Autoridade Palestina poderia deixar de reconhecer Israel caso as ameaças de morte a Arafat não fossem retiradas.

Pior do que o Apartheid

A ministra das relações exteriores da África do Sul visitou a região e disse que o que viu aqui nunca ocorreu lá ou em nenhum país da África. Um famoso cientista israelense [Mordechai Vanunu] que trabalhou na bomba atômica foi libertado hoje [dia 21 de abril]. Na prisão, ele se converteu ao cristianismo. Ele

É preciso construir pontes, não muros de separação. O muro confiscou 58% da nossa terra, destruindo nossas melhores áreas para agricultura. Visitem Qalqilia, onde 64% das nossas oliveiras foram cortadas

disse: “O que estamos fazendo aos palestinos, nunca aconteceu em nenhum lugar do mundo.” E não apenas isso. Os EUA atacaram Bagdá por causa do urânio. Há relatórios de grupos americanos [International Action Center – IAC] e holandeses [Laka Foundation] que denunciam o uso de urânio enriquecido por Israel. Com as armas de urânio enriquecido, o número de casos de câncer já se iguala ao das cidades de Hiroshima e Nagasaki, no Japão. E, pior, aumentou o índice de infertilidade de nossas mulheres. Nossas famílias se orgulham de ter filhos.

Massacre

Nenhum povo no mundo perdeu tanto quanto nós. São 72 mil pessoas entre mortos e feridos: 31% eram menores de 16 anos e 38% dos feridos foram mutilados. As barreiras de controle [checkpoints] impedem mulheres grávidas de ir ao hospital, muitas deram à luz ali mesmo, e duas mães e três recém-nascidos morreram por falta de cuidados. Ambulâncias da Cruz Vermelha foram atingidas, e mesmo carros da própria ONU que iam a Gaza prestar ajuda aos refugiados. Estudantes e professores não podem ir às escolas e a ajuda internacional não consegue chegar. Quem pode acreditar nisso? O que enfrentamos, nenhum povo sofreu. O que ocorre comigo ocorre com cada palestino. Minha casa foi bombardeada e eu estou preso nela, não posso sair. Fazem isso porque sabem quem é o negociador número 1.

Muro da vergonha

É preciso construir pontes, não muros de separação. O muro confiscou 58% da nossa terra, destruindo nossas melhores áreas para agricultura. Visitem Qalqilia, onde 64% das nossas oliveiras foram cortadas, muitas dos tempos dos romanos. Não apenas isso. Esse muro perverso em torno de Jerusalém cortou a sagrada e histórica relação entre a Igreja da Natividade, em Belém, e a do Santo Sepulcro, em Jerusalém. Todos os nossos patriarcas fizeram uma manifestação implorando: “Façam o muro se quiserem, mas na entrada de Belém, façam uma porta.” Eles recusaram, e agora vocês podem perguntar como é que na Sexta-Feira Santa eles impediram que todos os nossos cristãos fossem rezar no Santo Sepulcro em Jerusalém. O que isso significa? Quem pode aceitar isso? E impediram que nosso povo fosse rezar na mesquita de Al-Aqsa. Impediram nosso povo de rezar na mesquita de Abraão, em Hebron. E o sítio de Nablus foi destruído. Eles não respeitam nem a própria história. São José, seu pai e seus setembro de 2011

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irmãos viviam lá antes de fugir para o Egito. Destruíram os campos de refugiados em Jenin – que eu chamo agora de Jeningrado – e em Rafah – que chamo de Rafahgrado – e em toda parte. Mas não é só isso. Toda a nossa infra-estrutura foi destruída. Em todo lugar.

Dez anos de retorno à Palestina

Não se esqueçam de que assinei o acordo de paz com meu parceiro [Yitzakh] Rabin na Casa Branca, em Washington, o que havíamos começado em Oslo. Lembrem-se de que o mundo todo estava lá durante a cerimônia da assinatura. Demos um passo muito importante, porque o que foi assinado foi aceito por todos os membros da Conferência de Países Árabes, pelo movimento dos países não alinhados, pela conferência islâmica, pelos africanos. As portas foram abertas para meu parceiro Rabin da China à Indonésia, ao Senegal e assim por diante. Muitos se recusavam categoricamente a reconhecer Israel. É difícil entender o quanto esse passo foi importante para construir a paz na terra da paz, na Terra Santa. A paz não é importante só para nós, mas para o mundo todo. Eles abriram as portas para meu parceiro Rabin em mais de 65 países. Agora, são mais de 130 países que reconhecem Israel como país. Antes não passava de 62 ou 63. O que aconteceu é que o grupo de fanáticos que está no poder em Israel matou meu parceiro Rabin e anda dizendo abertamente que a paz está parada, que o acordo de Oslo está parado.

Tão perto e tão longe

Israel está há 44 meses confiscando recursos de impostos da autoridade palestina. Os acordos assinados com meu falecido amigo Rabin – assassinado por seus irmãos, por firmar o tratado de Oslo –, em Paris, determinam que Israel deve arrecadar os impostos aduaneiros [nas fronteiras terrestres, nos desembarques por água e ar] dos palestinos e os repassar. Tudo ia bem. Até pensamos em fazer um acordo de integração econômica, semelhante ao realizado pelos países baixos [no Benelux que inclui Holanda, Bélgica e Luxemburgo], na Europa, reunindo Jordânia, Palestina e Israel. Até o Líbano estava de acordo. Mas assassinaram Rabin, e o processo de paz parou. O acordo agora é entre Sharon e Bush. Quando chegamos a um acordo, [Ehud] Barak não foi assinar, e deixou todos esperando por três horas e meia.

Planos não cumpridos

É preciso considerar que até mesmo o acordo que firmei com [Ariel] Sharon e [Benjamim] Netanyahu, em Wye River não foi im-

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A maioria dos torpedos atingiram quem? Os homens-bomba são diferentes. Conseguimos impedir muitos deles, e somos completamente contra isso. Não se esqueçam de que, se temos grupos fanáticos, Israel também tem, e é assim no mundo todo plementado, e havia sido assinado por eles que agora estão no poder. Nos entendimentos de George Tennet, [George W.] Bush e [Colin] Powell vieram a mim e a Sharon com propostas. Nós aceitamos os entendimentos, mas eles não. Ou aceitaram teoricamente, sem implementá-los. Não apenas isso: o acordo de Sharm el-Sheikh, feito na presença do presidente Clinton, do presidente [Hosny] Mubarak [do Egito], do rei Hussein [da Jordânia], de Koffi Annan, e de [Javier] Solana da União Europeia, no escritório do presidente [Jacques] Chirac? [Ehud] Barak e eu estávamos de acordo para ir na manhã seguinte a Sharm el-Sheikh assinar na presença do presidente Mubarak. Todas as delegações foram juntas, exceto a de Israel. Depois de três horas e meia, Mubarak recebeu uma nota dizendo que Barak não iria assinar. Havíamos chegado a um acordo. Tivemos os entendimentos de George Tennet, o acordo de Wye River, o de Oslo, o de Paris. E o último, o Mapa do Caminho [Road Map], oferecido pelo Comitê do Quarteto [formado por EUA, União Europeia, Rússia e ONU] e aceito no Conselho de Segurança da ONU, resolução de número 1515 [de 2003]. Agora, como se vê, depois de voltar dos Estados Unidos, presenciamos uma escalada de crimes militares de Israel em toda parte em nossa terra. Hoje, em uma área no norte de Gaza, 14 foram mortos, 57 feridos, e todas as terras de agricultura, as melhores flores – que enviávamos por meio dos israelenses para a Holanda – foram apropriadas pelo exército israelense em menos de 24 horas. Tínhamos um acordo feito por Maratinos, com Lester Crook, chefe dos observadores europeus, com aprovação dos americanos. Outros países também participaram, como os russos. Retiramos palestinos de algumas regiões. Ao mesmo tempo, a contrapartida seria a retirada de Israel de Bayt Lahia [ao Norte da Faixa de Gaza]. Há dez dias, eles voltaram para reocupar a cidade. Todos os dias ocorrem tragédias em Bayt Lahia. Durante mais de um ano, a situação – e

você pode perguntar aos europeus e observadores que lá estavam continuamente – foi muito calma e tudo corria conforme o acordo, pacificamente. E ocuparam de novo.

Terrorismo

[Eleva o tom da voz, que falha como quem tem um nó da garganta.] Vocês estão se esquecendo da ocupação. Os palestinos são o único povo do mundo que vive sob ocupação. Vocês se esqueceram disso? O que fez George Washington na ocupação britânica? Lutou contra ela, resistiu. Os americanos têm de se lembrar. Não estou falando de outros, mas de George Washington. Oferecemos, desde o início, um Estado único e democrático, antes de Oslo. Eles não quiseram. Aceitamos dois países, apenas 22% da Palestina histórica para ser nossa área. E agora estão nos destruindo. Você acha que isso pode promover a paz na área? Definitivamente, não. Não é só para os palestinos, é a Terra Santa para o mundo todo.

Grupos extremistas

Quem estabeleceu o Hamas? Foi Israel para competir com a OLP, ou não? Está claro, foi declarado e mencionado por Rabin e pelo Partido Trabalhista. Apesar disso, não rompemos nossas relações com grupos de paz de Israel. Um importante encontro ocorreu em Alexandria, continuou em Jerusalém e agora em Marrocos, estabelecendo terreno comum entre religiões, muçulmanos, judeus e cristãos. O que isso significa? Que estamos tentando, mas não sozinhos, com grupos de paz de Israel, os altos líderes religiosos e ajuda de todo mundo, mesmo partes dos EUA. Peçamlhes que mostrem um item em que eu estava com os terroristas. Eles estão seguindo isso, porque informei abertamente ao Comitê do Quarteto e aos árabes o que fiz muitas vezes para deter os grupos fanáticos. Ontem, conseguimos evitar dois atentados e hoje, mais outro. Nós estamos usando as próprias mãos para deter as explosões. Por isso, ainda insistimos, se não forem forças, que venham aqui pelo menos observadores internacionais.

Resistência

Tudo isso é trivial. Estão falando de torpedos. Mostrem-me um civil israelense ferido. A maioria dos torpedos atingiram quem? Os homens-bomba são diferentes. Conseguimos impedir muitos deles, e somos completamente contra isso. Não se esqueçam de que, se temos grupos fanáticos, Israel também tem, e é assim no mundo todo: nos EUA, na Europa, na América Latina, na Ásia, nos países árabes. Ou não é?


A causa A paz é tão importante que leva os povos do mundo todo a seguir nesse rumo. Não estamos pedindo paz para nós, mas para um lugar que é de todos. Esquecem-se de que, depois do acordo de Oslo, tivemos a melhor de todas as celebrações dos 2 mil anos do nosso Jesus Cristo no mundo? Foi a última celebração na Igreja da Natividade, 28 presidentes compareceram. Depois disso, eles começaram a explodir tudo. Não me esqueço do que consegui naquela celebração. Tenho muito orgulho do que atingi ao promover o primeiro encontro das 13 igrejas naquela cerimônia. É histórico e não pode ser esquecido, porque é a paz nesta terra de paz. E por que a reunião das três religiões em Alexandria teve sucesso e vai seguir no fim do mês para o Marrocos? Porque a paz na região é importante.

Desengajamento unilateral em Gaza

Se a retirada de Gaza for parte do Mapa do Caminho, podemos aceitar. Vou me referir ao que o próprio Sharon declarou abertamente quando voltou dos EUA. Vai controlar em Gaza as entradas do Egito, do mar, do ar. Não temos o direito de reconstruir nosso porto – para o que temos ajuda da União Europeia –, nem o aeroporto que foi completamente destruído pelos israelenses. Pelo acordo, temos direito a isso e começamos a fazê-lo, tínhamos a aprovação. Rabin e mesmo Netanyahu e Sharon firmaram o acordo de Wye River sobre Hebron. E agora é uma tragédia. Vocês viram a tragédia ali? Quem pode aceitar isso?

Saúde e isolamento

Sabem o que é isso [aponta para um equipamento à sua esquerda, semelhante a um arcondicionado]? É um aparelho para oxigenar o ar, porque o oxigênio aqui não é suficiente. Vocês imaginam o que isso significa. Mas eu continuo trabalhando duro como você pode ver [aponta para as pilhas de relatórios e documentos ao seu redor sorrindo]. É um costume desde o começo.

Camp David

Nos últimos três dias, Barak se recusou a se encontrar com qualquer um, até de sua delegação. E estávamos discutindo uma das questões mais complicadas, o espaço aéreo de Jerusalém. Ele não aceitou e parou. Mesmo assim, continuamos em Sharm el-Sheikh e em Paris, que era uma continuação de Camp David, e chegamos a um acordo. Por que ele não foi implementado, assim como os entendimentos de George Tennet, que era parte de Sharm el-Sheikh e parte de Wye River?

Quem estabeleceu o Hamas? Foi Israel para competir com a OLP, ou não? Está claro, foi declarado e mencionado por Rabin e pelo Partido Trabalhista. Apesar disso, não rompemos nossas relações com grupos de paz de Israel

Enquanto estão distraídos

Intifada

Parceria com os EUA

Em primeiro lugar, não é a primeira intifada. Antes de eu voltar, ocorreram três intifadas. E não se esqueçam de que começou quando Barak permitiu que Sharon visitasse a Mesquita de Al-Aqsa [em Jerusalém]. Dois dias antes, fui à casa de Barak com outros líderes palestinos, para não dar chance a Sharon de visitar a mesquita. A conferência islâmica foi iniciada após a tentativa desse grupo de fanáticos de incendiar parte de outra mesquita, no altar. Barak não nos respondeu nem que sim, nem que não. Ele estava com quatro ministros importantes e líderes dos EUA. E se recusou a responder. Depois de 36 horas, Sharon estava lá e, no dia seguinte, fizeram o massacre contra nosso povo que rezava. Mais de 34 pessoas foram mortas e 87 feridas. O que se esperava das pessoas? Que ficassem caladas? Elas passaram a enfrentar. Estamos enfrentando a ocupação.

Não estamos pedindo a Lua, não pedimos o impossível, só o que foi acordado e assinado. Agora, o papel dos europeus e russos é muito importante. É ano de eleição nos EUA. Os europeus têm de trabalhar com os russos e a ONU, enérgica e rapidamente nos próximos cinco ou seis meses, porque a administração americana estará totalmente envolvida com a campanha eleitoral. É preciso haver uma iniciativa rápida e forte internacionalmente para salvar a paz na terra da paz, a Terra Santa. Onde eu assinei o acordo de Oslo? Os EUA são o diabo? Qual a diferença entre hoje e ontem? Não me esqueço de que o pai, presidente [George] Bush, iniciou a Conferência de Madri para a paz, não só com palestinos e israelenses, mas com todo o Oriente Médio. E seguimos comprometidos com a paz, que foi assinada na Casa Branca. E depois assinamos outras tantas.

Brasil no Conselho de Segurança

O povo brasileiro nos apoia. Lembrem-se de minha breve visita no encontro dos movimentos não alinhados. Não posso me esquecer de minha grande visita ao Brasil. Precisamos de uma pressa contínua para avançar e implementar a paz na terra da paz. Isso não pode ser esquecido pelo Brasil. A cadeira no Conselho de Segurança não apenas representa os brasileiros, mas também o povo palestino. F

Encontro com um chefe-sem-Estado Foi em abril de 2004 que acompanhei uma delegação parlamentar em viagem aos territórios palestinos ocupados. O convite à Fórum foi feito pelo então deputado federal Jamil Murad (PCdoB), hoje vereador em São Paulo, e incluía uma entrevista com Yasser Arafat, líder da Autoridade Nacional Palestina (ANP). De Amã, capital da Jordânia, o grupo partiu por estrada para Ramallah, na Cisjordânia. Por 12 dias, diversas cidades foram percorridas. As paradas frequentes em checkpoints do exército israelense eram dramáticas. Mas, na Faixa de Gaza, o clima era de guerra. Abdul Aziz Rantissi, líder do Hamas, havia sido alvo de um “assassinato seletivo” no dia do nosso desembarque. Ver caças sobrevoando a cidade de Gaza teve menos impacto do que reconhecer a borracha de pneu fundida ao asfalto no ponto exato em que o carro no qual Rantissi trafegava fora atingido por um míssil, disparado de um helicóptero israelense. Arafat vivia isolado fazia três anos. Tinha olhos amarelados, estava pálido e tremiam-lhe as mãos e os lábios. Sentado, em alguns momentos, equilibrava-se sobre dois pés da cadeira inclinada. O braço esquerdo ficava livre, balançando, a um palmo de uma submetralhadora que descansava na parede. Eram os cuidados com a segurança de um chefe-sem-Estado, jurado de morte por uma potência militar regional. Arafat morreria em novembro daquele ano. Passados sete anos, a região assistiu à desocupação “unilateral” da Faixa de Gaza, ao fortalecimento do Hamas, a rachas e reconciliações dos partidos palestinos e à defesa, por parte de um presidente dos Estados Unidos, da criação do Estado Palestino sob fronteiras de 1967. O período também incluiu retrocessos, como o anúncio recente da retomada da expansão de colônias israelenses na Cisjordânia e pouca perspectiva de paz para a região. Anselmo Massad

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Raúl Reyes, a voz das Farc

Morto em março de 2008, o comandante da organização guerrilheira lamentava que tivesse perdido a oportunidade histórica de chegar ao poder

por Jacques Gomes Filho

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le vive na selva colombiana há mais de 30 anos e é considerado um dos 50 homens mais procurados do mundo. Raúl Reyes aprendeu a viver na clandestinidade e, por isso, não abre mão do fuzil M16. Nem quando concede uma entrevista. O porta-voz das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) falou com exclusividade à revista Fórum sobre a saúde de Ingrid Betancourt, sequestrada durante a campanha presidencial de 2002, e a mediação de Hugo Chávez. O comandante enumera as razões de luta da guerrilha mais antiga do continente. E lamenta que a organização tenha perdido a oportunidade histórica de chegar ao poder.

Fórum – Porque é tão difícil convencer as Farc a dar provas de vida dos reféns?

Raúl Reyes – O problema é muito simples.

As Farc priorizam a segurança, tanto dos prisioneiros quanto de seus integrantes. Explico: não vamos expor ninguém para que o governo de [Álvaro] Uribe assassine ao tentar resgatá-los pela força. Tampouco vamos expor os guerrilheiros aos ataques aéreos do Exército. Esta circunstância real da confrontação faz com que tenhamos muito cuidado em enviar gente ao lugar onde eles estão.

Fórum – Mas a demora faz a comunidade internacional questionar o real estado de saúde dos prisioneiros...

Reyes – A comunidade internacional se sentiria muito mais preocupada se essas pessoas morressem por um erro nosso. Lembre-se

A última entrevista Foi no dia 1º de março de 2008 que caiu a ficha do que coloquei em jogo para fazer a matéria. A revista Fórum publicara aquela que viria a ser última entrevista do porta-voz das Farc dois meses antes. Tomei um susto quando o editor do Jornal do SBT me deu a notícia da morte de Raúl Reyes pelo telefone. Eu viajava pelo metrô de Buenos Aires. Tinha tudo para ser um sábado tranquilo. Não foi. Antes mesmo de descer do vagão e pegar o caminho de volta para casa, meus olhos se turvaram. Lembrei de imediato que estive ali, possivelmente no mesmo acampamento bombardeado pela Força Aérea da Colômbia em território equatoriano. Convivi quatro dias com Reyes e os 17 guerrilheiros que morreram naquele ataque. Havia sido o último jornalista a escutá-los. Com as primeiras lágrimas, caiu toda a segurança que sentia até então sempre que lembrava daquela experiência. Apesar dos riscos inerentes à guerra, jamais imaginei que pudesse passar algo de ruim comigo estando ao lado de um dos homens mais procurados do mundo. Ele se escondia na selva havia pelo menos 30 anos. Soube fazê-lo até aquele dia 1º de março. Raúl Reyes foi a primeira das muitas baixas na linha de frente da organização que aconteceriam nos meses seguintes. As Farc, guerrilha mais velha do continente, cumprem 46 anos em 2011 sem ter muito que comemorar. Perderam seus líderes, mortos, e os reféns mais valiosos, resgatados. Viram o tão sonhado status de força beligerante se perder junto com o apoio político e popular. Muita coisa mudou desde então. O conflito armado colombiano, apesar de resistir pulverizado, já não é mais o mesmo. Mas a voz e as ideias de Raúl Reyes continuam registradas nesta última entrevista. O porta-voz da guerrilha assumia que as Farc perderam a chance de chegar ao poder e que, vez por outra, entravam em território brasileiro para escapar do exército da Colômbia. Quatro meses antes de ser surpreendido em seu esconderijo, Raúl Reyes vivia na selva, rodeado de jovens que acreditavam lutar para construir um país socialista. Ele dizia não temer a morte, porque a reconhecia como parceira inseparável de qualquer guerra. Mas jamais deixava de lado seu fuzil M16, que carregava a tiracolo para cima e para baixo pelo acampamento. Jacques Gomes Filho

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no 58 - janeiro de 2008

foto da capa: Jesus Carlos / Imagenlatina

do que aconteceu com os deputados do Vale do Cauca. Morreram 11 deputados. Houve falhas de segurança e, por isso, eles morreram. Antes haviam morrido outros, também numa tentativa do governo de Uribe de resgatá-los à força. Mas admito que houve falha da nossa parte e não queremos que isso se repita, ao contrário. Queremos manter a segurança e a integridade física dos prisioneiros, incluindo a senhora Ingrid Betancourt, os três estadunidenses e cada um dos militares e policiais que estão nas mesmas condições.

Fórum – Em que condições estão Ingrid Betancourt e os três estadunidenses?

Reyes – Estão todos nas mesmas condições. São reféns, mas recebem de nossa organização alimentação – a mesma que comemos todos os guerrilheiros – e também os mesmos medicamentos que utilizamos quando ficamos doentes. Temos enfermeiros, médicos, remédios em nossas fileiras na selva. Recebem toda a atenção, como se fossem mem-


Fórum – O senhor assegura, então, que nas mãos das Farc eles não correm perigo?

Reyes – Por parte das Farc não existe nenhum risco. São reféns, dos quais cuidamos, e respeitamos sua integridade física, suas crenças religiosas e ideológicas. Estamos em um conflito interno, enfrentamos um governo ditatorial, de caráter fascista, que não quer facilitar o intercâmbio humanitário em nenhuma circunstância. Pelo contrário, lança permanentemente operativos militares por terra, pelo ar e pela água buscando os prisioneiros. E, nessa busca, os coloca em perigo, porque os guerrilheiros que cuidam deles estão armados. Qualquer tentativa de resgate coloca os reféns no meio do fogo cruzado.

Fórum – Manter pessoas presas, às vezes por mais de dez anos, não é um método cruel de luta?

Reyes – Não, o que existe é uma resposta. O povo não pode ajoelhar-se diante de um inimigo cruel. Tem que usar todas as armas para se defender dos exploradores. É isso que fazem as Farc: a crueldade vem de quem quer manter nosso povo submetido nessa situação. Agora, na Colômbia, como em outros países do continente, não deveria ser necessária a luta armada se houvesse outras condições. Mas, por aqui, já assassinaram e continuam assassinando a oposição revolucionária. Já morreram mais de 6 mil dirigentes e militantes da União Patriótica [antigo braço partidário das Farc], do Partido Comunista Colombiano, dirigentes sindicais, camponeses, indígenas... Fórum – Por que as Farc insistem em negociar em território desmilitarizado?

Reyes – Não existe nenhuma possibilidade de se reunir com representantes do governo, seja na Colômbia ou em outro país, enquanto não se desmilitarizar os municípios de Pradera e Florida. Porque as Farc não têm a mínima confiança na seriedade, na honestidade e na ética, se é que existe isso, no pensamento de

Uribe. Tem que haver garantia de segurança a nossos porta-vozes e a todos que vão conversar ali. Queremos receber nossos camaradas libertados e entregar os que estão com a gente com segurança. Se o governo dos Estados Unidos quer ver livres os seus cidadãos, o que me parece justo, deve dar a ordem para Uribe desmilitarizar. Imediatamente se realizará um encontro, para começar o acordo que permita a libertação de todos os prisioneiros.

fotos: Jacques Gomes Filho

bros da organização. Mas é preciso entender que eles, como prisioneiros, querem saber das famílias e, sobretudo, recuperar a liberdade, porque sabem do risco que correm. O que Uribe disse até agora, em cinco anos de mandato, é que vai resgatá-los pela força. Eles ouvem as notícias pelo rádio e leem os jornais de vez em quando. Por isso se preocupam e não veem por parte do chefe do governo colombiano, uma atitude solidária com eles, com suas famílias, uma atitude sensata que permita a liberação desses prisioneiros sãos e salvos, que é a proposta feita pelas Farc.

Fórum – O presidente venezuelano Hugo Chávez continua sendo uma opção para mediar as negociações do acordo humanitário?

Reyes – Chávez pode fazer muito para contribuir para que Uribe entenda que a solução para a libertação dos prisioneiros não é pela força. A saída política é a solução idônea, que pode conseguir a liberação de todos os prisioneiros, evitando as mortes, que são produto da intransigência e mesquinhez do governo com a população colombiana. Qualquer ajuda de fora é bem-vinda. Consideramos muito importante a ajuda da França. O apoio dado pelos países não alinhados, como o apoio de Lula, no Brasil, de Kirchner na Argentina e de Rafael Corrêa, no Equador. São expressões de solidariedade com o povo colombiano em benefício da troca de prisioneiros. Quanto mais expressões de solidariedade, melhor.

Fórum – O senhor parabenizou Lula quando foi reeleito. O governo brasileiro continua merecendo os elogios feitos?

Reyes – Reitero meus parabéns. Porque os brasileiros votaram no Lula convencidos de que era o homem que ia redimi-los da política neoliberal e das garras do império. Tomara que Lula possa cumprir e fazer jus a toda essa esperança que o converteu no presidente dos brasileiros. O Brasil é um país muito importante na região por ser um subcontinente, e a política de Estado brasileira tem importância para a gente. Pela informação que tenho, Lula poderia fazer mais. O povo espera muito mais do presidente Lula. Tenho a esperança de que ele possa corresponder e ser verdadeiramente o representante do PT e de todas as forças revolucionárias, progressistas, comunistas e dos sem-terra que votaram por ele. Fórum – Fala-se muito que as Farc têm ações fora da Colômbia. Isso procede?

Reyes – As Farc não realizam nenhuma ação militar fora do seu território. Temos uma política de fronteiras. Para a gente, os países vizinhos com quem compartilhamos fronteiras são nossos irmãos. E fazemos dessas

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fronteiras um berço da paz. Porque, além de tudo, essas regiões fronteiriças são um remanso de pobreza, abandonadas pelos governos. Com o Brasil, temos uma fronteira bem grande, com a Venezuela também, com o Equador, com o Peru... Quase todas elas são formadas por selva e rios, onde vivem pessoas muito pobres, analfabetas em sua maioria, abandonadas. Respeitamos as autoridades constituídas por nossos vizinhos, mas pedimos reciprocidade. Ou seja, que os governos vizinhos da Colômbia não participem de operações militares do governo de Uribe contra o povo em armas das Farc. Fórum – Mas já houve conflitos na fronteira com a cidade brasileira de Tabatinga (AM).

Reyes – Não realizamos operações militares fora do território colombiano. É diferente que cruzem por aí, por alguma emergência, porque é mais fácil chegar a determinado lugar, mas nunca para realizar ações militares. Fórum – Os países da região desencadearam uma corrida armamentista, inclusive o Brasil, que vai duplicar os investimentos nas Forças Armadas em 2008. Isso não é uma ameaça?

Reyes – As Farc não se sentem ameaçadas, porque não estamos em conflito com nenhum desses países. Se o governo do Brasil decidiu melhorar seus armamentos e equipar seu exército, deve ter suas razões para isso. Não tem nada a ver com a luta das Farc que corresponde a um conflito interno, que deve ser resolvido entre os colombianos. Isso não afeta as Farc, porque não estamos em guerra contra nenhum país, nem sequer contra os Estados Unidos. Fórum – Em 43 anos de luta, quais foram os grandes acertos e erros das Farc?

Reyes – O principal acerto das Farc foi ter sido criada como organização de oposição ao regime e converter-se hoje em uma opção de poder para governar a Colômbia. O erro, talvez por causa da guerra, foi não ter chegado ao poder. Porque as guerrilhas, em qualquer parte do mundo, que tenham planos bem definidos como a nossa, querem chegar ao poder e derrubar o regime governante. Em nosso caso, já passou todo esse tempo e não conseguimos ainda. Mas houve um importante desenvolvimento, uma experiência riquíssima. Conseguimos formar um grupo grande de jovens, homens e mulheres com capacidade de fazer qualquer trabalho revolucionário, dirigir organizações guerrilheiras grandes ou pequenas, capazes de aportar os conceitos políticos e ideológicos da or-

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ganização, conhecimentos suficientes sobre as razões das lutas. Isso me dá a certeza de que um dia deixaremos de ser clandestinos e nos lançaremos à luz pública. Estamos satisfeitos por ser uma guerrilha independente, revolucionária, com ideologias e convicções inspiradas na Revolução Cubana, no Che, em Mao Tsé-Tung, em Ho Chi Minh e em nossa própria experiência, que é riquíssima.

Fórum – Mas o senhor acredita que a organização ainda pode chegar ao poder?

Reyes – Sobre isso, não resta a menor dúvida: as Farc continuam lutando pelo poder e vão conseguir de qualquer maneira, seja pela via armada, seja pela via democrática, com acordos políticos. As Farc não fazem a guerra pela guerra. Fomos obrigados pelo Estado colombiano a fazer a guerra para nos defender e conseguir a paz. Todas as ações militares que as Farc realizam não possuem um caráter distinto do político. Porque somos uma organização com uma proposta de governo, uma proposta de Estado. Uma proposta para uma Colômbia diferente da que nos foi imposta pelos comandantes da oligarquia colombiana. As Farc não estão contra as eleições, porque somos uma organização comunista. Mas temos que saber quando poderemos participar de eleições e para quê. Se existe um processo que possibilite nossa participação, podemos participar e contribuir de alguma maneira. Caso contrário, não faz sentido. Porque já tivemos a experiência do genocídio contra a União Patriótica. Fórum – Como seria um governo das Farc?

Reyes – Seria um governo do povo para o povo. Um governo bolivariano, anti-imperialista. Um governo de integração e irmandade com todos os países do mundo, e particularmente com os vizinhos da Colômbia. Um governo que trabalharia pela integração latino-americana, pela Pátria Grande e pelo socialismo. Teríamos que conformar um novo exército, mais bolivariano e que respeite os direitos humanos sem nunca usar as armas contra o povo. Desde 1994, as Farc têm uma proposta para um novo governo: pluralista, patriótico, democrático e de reconciliação nacional. Um governo que abrigue todos os setores: sociais, docentes, estudantis, feministas, camponeses, indígenas, intelectuais, jornalistas etc. Mas também da insurgência revolucionária e dos partidos de esquerda. Se existem setores do Polo Democrático Alternativo (partido de esquerda) que querem estar aí, sejam bem-vindos. Assim como do Partido Liberal, do Partido Conservador, da

“O erro, talvez por causa da guerra, foi não ter chegado ao poder. Porque as guerrilhas, em qualquer parte do mundo, que tenham planos bem definidos como a nossa, querem derrubar o regime governante”

Igreja Católica também. Convidamos os militares patriotas, bolivarianos. Quer dizer que é uma concertação política para um grande acordo nacional, pela paz, pela convivência. Fórum – As Farc mantêm ligação com o narcotráfico?

Reyes – Nenhuma. As Farc só mantêm ligação com os camponeses, que, por não terem garantias de crédito e de assistência do Estado, recorrem à produção de coca. Mas eles não são narcotraficantes. São trabalhadores rurais, que em algumas regiões plantam coca e em outras, a papoula. Quem compra deles esses produtos é que são os narcotraficantes. As Farc têm vínculos com esses trabalhadores rurais, assim como têm vínculos com os plantadores de soja, de milho, de feijão, criadores de gado. Cobramos impostos, não dos camponeses, mas de quem compra deles os produtos. Em troca, não deixamos que os roubem nessas negociações e que paguem o que é justo. Fórum – Os sequestros extorsivos também são outra forma de arrecadação questionável...

Reyes – As Farc não sequestram. O que fazemos é cobrar impostos daqueles que financiam a guerra na Colômbia, como está previsto na Lei 002, aprovada pelo Estado Maior central de nossa organização. Todos que têm patrimônio de mais de US$ 1 milhão têm de pagar 10% do que arrecadam para as Farc. Alguns, pagam voluntariamente; outros, se negam a pagar. E quando não pagam, prendemos até que paguem. Fazemos o mesmo que fazem os governos de todo o mundo com aqueles que não pagam impostos. F


A revolução anunciada A imensa maioria dos equipamentos eletrônicos que temos à disposição hoje já está por aí há tempos. Não há como negar, no entanto, que eles se tornaram muito mais acessíveis e funcionais nos últimos dez anos. Baixar música, assistir vídeo, trocar grandes arquivos era, nos idos de 2001, um trabalho hercúleo. Hoje, basta um clique e um disco inteiro começa a tocar em segundos. Mesmo com toda a evolução, no entanto, a circulação de dados ainda imita, apesar de todos os esforços, a concentração da renda. De acordo com o Ibope, no Brasil, pulamos de algo em torno de seis milhões de usuários da internet em 2001 para pouco menos de 75 milhões agora, em 2011. Destes, cerca de 1,9 milhão usam uma conexão acima de 8 Mb, praticamente concentrados nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo. Há lugares do Amazonas, por exemplo, que ainda dispõem de conexões de 128 Kb. Mesmo assim, não há como ignorar que demos um longo e irreversível salto, com impacto incomensurável em todas as áreas, inclusive na produção cultural e musical. O desenvolvimento desenfreado da informática se deu tanto on line quanto off-line, ou seja, a evolução e acessibilidade a equipamentos e meios de produção cresceram tanto quanto a possibilidade de transmissão de dados, leia-se aí ideias, textos, canções, filmes etc. Na música, por exemplo, a frase que virou clichê foi: “Hoje qualquer um faz um disco”. O compositor e professor Luiz Tatit declarou recentemente que antigamente, durante as suas apresentações, costumava receber um ou dois discos de artistas novos que iam assisti-lo, e hoje recebe dezenas. Uma quantidade que quase não dá conta de ouvir. É fato, e qualquer um que acompanhe o mercado fonográfico percebe isso. Temos bandas, cantores, artistas de toda a sorte aparecendo em vários centros urbanos, de vários gêneros. Qualquer um grava e também divulga o que gravou com um clique. Está, portanto, criado aí um binômio interessante, uma cultura fértil para uma ampla revolução estética. De um lado, os recursos para a realização e, de outro, os meios de divulgação. Por conta disso, já não é de hoje que críticos e especialistas anunciam e anseiam por uma nova estética, uma nova geração de artistas completamente independentes em tudo, donos absolutos de sua obra e, portanto, prenhes de novidades. Contraditoriamente, o que surgiu de novo na última década em termos estéticos é tão ínfimo que quase não dá pra levar em conta. Não se trata da velha cantilena passadista. A cantora Malu Magalhães e o grupo A Banda mais Bonita da Cidade, por exemplo, são fenômenos da rede que, a despeito da qualidade, são quase tão meteóricos quanto qualquer vídeo viral. São dois artistas que, somados a talvez poucos outros, não chegam a causar nem coceira nas expectativas estéticas menos ousadas. Um sobrevoo nos bons discos lançados nesses últimos tempos nos dá uma dimensão mais exata ainda. Apesar da internet, ainda somos os mesmos e ouvimos quase os mesmos artistas, ou, pelo menos, os mesmos gêneros e formatos de antes. A rede talvez nos ajude – e principalmente os artistas – no processo de aproximação. Roberta Sá, Teresa Cristina, Déa Trancoso, Bena Lobo, Dércio Marques, Daniel Taubkin entre tantos outros estão aí pelo Facebook e Twitter, trocando ideias, divulgando as suas músicas e apresentações. Nenhum deles, no entanto, parece ter sido obra e graça da rede, resultado des-

sa excelente e imprescindível ferramenta. A origem de cada um está exatamente onde sempre esteve o nascedouro de todo e qualquer artista, ou seja, nos bares, casas de shows, estúdios etc. Muito menos a sua música é resultado das novas possibilidades tecnológicas. A evolução eletrônica e a tecnológica, ao contrário do que ocorre agora, parecem ter sido determinantes em vários momentos para a formulação das obras. É impossível imaginar a grande expansão e evolução da cultura pop nos EUA e Europa nos anos cinquenta e sessenta sem a participação decisiva dos grandes meios de comunicação e o desenvolvimento de equipamentos eletroeletrônicos. O mesmo pode ser dito dos grupos de rock progressivo e, degraus acima, a experiência de músicos de vanguarda e do Jazz Fusion e tantos outros artistas que surgiram do mercado americano, hoje saturado de novas ideias. Não há, no entanto, pelo menos até agora, em nenhuma parte do mundo, uma nova estética com a evolução da rede e da informática. O tráfego de dados é um elemento a mais, que não influiu ainda em nada ou em quase nada na estrutura da criação musical. Tudo o que nos chega parece vir das mesmas informações de sempre. Na contramão disso, nos últimos dez anos, a grande rede nos trouxe questões fundamentais à coexistência. Colocou artistas e ativistas de todas as partes em sintonia. Graças a ela, sabemos com muito mais clareza hoje quem somos e onde queremos chegar. Discussões fundamentais sobre direitos autorais, propriedade intelectual e democratização do conhecimento nasceram eminentemente por conta dela. A internet, ao que tudo indica, nos possibilitará uma grande intervenção, participação e consequente transformação política. Muito provavelmente, com a ampliação da banda larga aos rincões, a grande e esperada revolução estética se descortine de vez. Assim que os garotos dos locais mais recônditos do Brasil e de tantas outras partes da América Latina, da África e da Ásia tiverem acesso amplo ao seu quinhão de megabytes, com certeza encontraremos a nossa grande obra escondida. Uma obra tão grande quanto a que a hegemonia do Hemisfério Norte nos deu em meados do século passado. Por enquanto, é só promessa.

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Excursões com Aziz Ab’Saber A

primeira crônica que escrevi para esta coluna foi sobre o geógrafo Aziz Ab’Saber, meu professor na USP nos anos brabos. Agora, ele ganhou o prêmio “Intelectual do Ano”, da União Brasileira de Escritores, e quero festejar me lembrando de algumas excursões em que ele nos levava para conhecer o Brasil com olhos de geógrafos, não de meros viajantes. Para concluir o curso de Geografia, tínhamos que ter participado de pelo menos dez excursões de estudos, algumas delas para lugares distantes, num ônibus que não era bem um ônibus, mas uma jardineira pequena, parecida com aquelas que eu viajava no interior de Minas antes de vir para São Paulo, a que demos o apelido de De Martonne, nome de um geógrafo “ultrapassado”, do início do século XX. Viajei com muitos professores bons, aprendi muito com eles, mas com o Aziz tinha uma coisa a mais: ele, no topo da carreira, diretor do Departamento de Geografia, virava também nosso cozinheiro. Íamos duros,

cozinhando em beiras de rios, em viagens que às vezes duravam mais de duas semanas. E quem cozinhava era o Aziz. O Dito, motorista, obedecia cegamente o professor, e isso era um perigo. Se o mandassem entrar numa rua contramão, ele entrava. Uma vez, um grupo foi estudar o cerrado do norte de Goiás e parou em Brasília, para uma reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em que o Aziz daria uma palestra. Todo mundo – menos o motorista, o professor dizia que a vida de todos nós dependia dele não passar mal – comeu no restaurante universitário da UnB. A comida de lá tinha fama de ser ruim, mas era pior do que a fama. Foi uma fila de gente com dor de barriga a noite inteira, na porta do único banheiro de um hotelzinho de Taguatinga. De manhã, todos entraram alegres no De Martone, e a excursão continuou animada. Mas, aos poucos, foi-se fazendo um silêncio... E por fim o professor Aziz falou com o motorista:

Mouzar Benedito, mineiro de Nova Resende, é geógrafo, jornalista e também sócio fundador da Sociedade dos Observadores de Saci (Sosaci).

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– Dito, vai diminuindo a velocidade aos poucos... Ele tinha que falar assim, pois se mandasse o Dito parar ele meteria o pé no freio, e quem ia segurar os intestinos da turma com uma brecada assim? – E quando estiver bem devagar, encoste no acostamento e pare. O Dito fez isso, desceu todo mundo em silêncio, o professor gritou: “Mulher pra lá, homem pra cá” e todos correram para trás das moitas. Isso se repetiu várias vezes. Quando a excursão chegou de volta, perguntei ao Mané Bonilha como tinha sido a viagem e ele respondeu: “Adubamos Goiás inteiro!” Uma vez, fomos a Mato Grosso, estudar os diferentes tipos de cerrado e o arenito das barrancas do rio Paraná. Duros, dormíamos dentro do De Martonne. O professor e algumas meninas dormiam em hotéis. Na volta, paramos no final da tarde perto de Presidente Prudente e jantamos um arroz carreteiro feito pelo Aziz. Chegamos à cidade, o Dito deixou uma turma num hotel e nos levou a uma praça mal iluminada, que era melhor pra gente dormir dentro da jardineira. O problema é que a digestão do arroz carreteiro foi rápida, e lá pelas dez da noite estávamos com fome. Tínhamos usado o dinheiro que restava para comprar dois litros de cachaça. E por isso a fome era maior ainda. Vimos do outro lado da praça uma baita festa numa casa. Era um casamento, com música animada, muita cerveja, peru, frango assado e salgados. Decidimos ir lá. Combinamos: o Ricardinho e a Suemi, que dançam muito bem, iam na frente, dançando, e nós atrás. Se o pessoal não se incomodasse, a gente ficava lá. Se mandassem a gente embora, roubávamos um peru ou um frango assado e sairíamos correndo. O pessoal da festa era hospitaleiro e alegre. Todo mundo parou pra ver o casal dançar. Fizeram até roda. Mas o Ricardinho tinha bebido mais que nós e não entendeu bem o que combinamos. Levou a Suemi dançando até uma mesa, pegou um peru e saiu correndo. Claro que tivemos que sair, sem graça. Fomos pra perto do De Martone e comemos o peru xingando o Ricardinho: “Se você não tivesse roubado o peru, estaríamos lá, comendo de tudo com cerveja”. F


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