105 ano11 dezembro 2011
A História não tem fim
issn
1519-8952
no 105 R$ 8,90
Universidades não precisam de polícia A pior tragédia climática brasileira um ano depois
Idelber Avelar e as ocupações que derrubaram os mitos do pensamento político Ladislau Dowbor revela como funciona a rede das corporações, o 1% que afeta a estabilidade mundial Renato Rovai fala sobre as múltiplas formas dos movimentos 2.0
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O poder das corporações em rede Teses sobre as ocupações de 2011 As formas múltiplas dos movimentos 2.0 Universidades não precisam de polícia O Brasil e a desigualdade de gênero Clacso Um ano da pior tragédia climática do país A comunidade após a prisão de Nem O impacto das tecnologias sociais O que pode mudar no governo Evo Morales As desigualdades na América Latina Eles venderam mais que os Beatles
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Cartas
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Espaço Solidário
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Direito
18
Diversidade
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Mundo do Trabalho
37
Toques Musicais
48
Penúltimas Palavras
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A mudança passa pela indignação Na década de 1990, o filósofo e economista Francis Fukuyama alcançou fama, que foi
além dos ambientes acadêmicos, ao decretar o fim da História, que teria como “vencedores” o neoliberalismo e a democracia burguesa, o regime, em tese, mais perfeito de
todos os tempos. Desde então, o mundo tem desmentido a tese, que foi bem-aceita na
ocasião, e a tal História, senhora que caminha devagar, nos dizeres de Eduardo Galeano, parece hoje ter pressa.
As insuficiências do regime democrático estão mais do que nunca expostas. E os três
textos de capa desta edição mostram isso. A festejada globalização econômica conse-
guiu unir interesses de várias partes do mundo, e o poder financeiro, ao mesmo tempo que expandiu suas garras, concentrou-se ainda mais nas mãos de poucos. Bem menos
do que 1% da população detém o poder real, e essas pessoas não passam por qualquer tipo de escrutínio popular ou são votadas.
É contra esses e o sistema que os sustenta que muitos começam a se levantar. O mal-
estar que afeta a todos vem de longa data, desde a época em que Fukuyama parecia ter
razão aos olhos de muitos, e pôde ser visto nas manifestações de Seattle e traduzido na ideia que inspirou o Fórum Social Mundial. Hoje, a indignação que soprou do mundo
árabe criou raízes na Europa em crise e chegou à América, e promete não parar por aí. Se as novas tecnologias serviram para que as finanças penetrassem na alma de cada
Estado no planeta, são elas também que hoje servem de fio condutor deste anseio por mudança que brota em quase todo canto, tomando forma em manifestações de rua,
acampamentos e protestos. Trata-se de um cenário que nos obriga à reflexão sobre o quanto a democracia é de fato efetiva ou se, hoje, não serve em muitas ocasiões ape-
nas como legitimação do poder de uma parcela ínfima da população. Poder, é bom que se diga novamente, que não foi delegado, mas sim usurpado à força pela mão não tão invisível do mercado.
O primeiro passo para a mudança é não aceitar ou se resignar diante de um estado de coisas que está longe de ser “natural”. É isso que todos os que se manifestam querem passar ao mundo. E é com eles que Fórum vai. Selo FSC
Publicação da Editora Publisher Brasil. Editor: Renato Rovai. Editor executivo: Glauco Faria. Edtora de arte: Carmem Machado. Colaboradores desta edição: Adriana Delorenzo, Cynthia Semíramis, Idelber Avelar, Julinho Bittencourt, Ladislau Dowbor, Lídia Amorim, Moriti Neto, Mouzar Benedito, Pedro Alexandre Sanches, Pedro Venceslau, Túlio Vianna, Vange Leonel e Victor Farinelli. Ilustração de capa: Thiago Balbi. Revisão: Denise Gomide e Luis G. Fragoso. Estagiários: Camila Cassino e Carolina Rovai. Administrativo: Ligia Lima e Pâmela dos Santos. Representante comercial em Brasília: Joaquim Barroncas (61) 9972.0741. Publisher Brasil: Rua Senador César Lacerda Vergueiro, 73, Vila Madalena, São Paulo, SP, CEP 05435-060. Contatos com a redação: (11) 3813.1836, e-mail: redacao@revistaforum.com.br. Para assinar Fórum: assine@revistaforum.com. br, http://assine.revistaforum.com.br. Portal: www.revistaforum.com.br. Impressão e CtP: Bangraf. Distribuição: Fernando Chinaglia. Fórum Outro Mundo em Debate é uma revista inspirada no Fórum Social Mundial. Não é sua publicação oficial. A divulgação dos artigos publicados é autorizada. Agradecemos a citação da fonte. Matérias e artigos assinados são de responsabilidade de seus autores. Circulação desta edição: 10/12/2011 a 9/1/2012 Conselho Editorial: Adalberto Wodianer Marcondes (Agência Envolverde), Alipio Freire (jornalista), Artur Henrique dos Santos (CUT), Beatriz da Silva Cerqueira (Coordenadora do Sind-UTE/MG ), Cândido Castro Machado (Sindicato dos Bancários de Santa Cruz), Cândido Grzybowski (Ibase), Carlos Ramiro (Apeoesp), Claiton Mello (FBB), Eduardo Guimarães (Movimento dos Sem Mídia), Gustavo Petta (Conselho Nacional da Juventude), João Felício (CUT), Jorge Nazareno (Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco), Lúcia Stumpf (Coordenação dos Movimentos Sociais), Luiz Antonio Barbagli (Sinpro-SP), Luiz Gonzaga Belluzzo (economista e professor da Unicamp), Marcio Pochmann (economista e professor da Unicamp), Maria Aparecida Perez (educadora), Moacir Gadotti (Instituto Paulo Freire), Paul Singer (economista e professor da USP), Paulo Henrique Santos Fonseca (Sindicato dos Bancários de BH), Ricardo Patah (Sindicato dos Comerciários de São Paulo), Roberto Franklin de Leão (CNTE/CUT), Rodrigo Savazoni (Intervozes), Sérgio Haddad (Ação Educativa), Sergio Vaz (Cooperifa), Sueli Carneiro (Geledés), Vagner Freitas de Moraes (Contraf/CUT) e Wladimir Pomar (Instituto de Cooperação Internacional). dezembro de 2011
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Que não se roube a Salvador Allende seu último gesto (edição 103) Prezado Idelber, sempre tive Allende como um dos meus ídolos latinoamericanos, como um dos maiores políticos socialistas do nosso continente. Mas, recentemente, lendo Zizek, que está acima de qualquer suspeita, a meu ver, sobre seu posicionamento político, encontrei em diversos textos dele grandes restrições a Allende, dizendo que ele estaria limitado ideologicamente e que a esquerda sempre teve certeza que, de uma maneira ou de outra, seu projeto não daria certo e ele viria a cair. Isto me deixou realmente confuso. Zizek é o maior pensador que conheço e eu o respeito muito. Mas achei suas críticas a Allende um tanto quanto severas e, talvez, até fatalistas. Gostaria de saber sua opinião a respeito. Acha mesmo que Allende estaria “condenado” a fracassar, fosse Nixon, fosse outro presidente mais liberal como Clinton? Luiz Droubi
Se comer trufas de licor, não dirija (edição 103) É o que venho defendendo há muito tempo. A lei atual não foi feita pra pegar apenas o motorista embriagado que coloca em risco a integridade física alheia... isso pra não mencionar a (descarada) finalidade arrecadatória. A divulgação de blitze nas redes sociais nada mais é que um mecanismo de defesa da coletividade contra uma imposição legal totalmente desproporcional e irrazoável, que pretende tratar igualmente tanto o motorista bêbado e periculoso quanto o cidadão que saiu pra jantar com a noiva, namorada, amante, ficante, etc., tomou uma ou duas taças de vinho mas tem totais condições de guiar seu veículo até em casa. Que se puna, exemplarmente, o primeiro, mas não o segundo. A solução adotada é simples: ao
invés de se cortar o galho ruim, se derruba a árvore inteira. Ainda não há condições de segurança suficientes pra esperar uma (escassa) condução coletiva durante a noite/ madrugada. Até porque o efetivo policial agora está em boa parte mobilizado nas blitze de trânsito. De outro lado, a tarifa do táxi é bastante cara para a maioria da população. Ou seja, o Poder Público impôs a obrigação negativa, mas não forneceu os meios de cumpri-la a contento. Enquanto o cenário for este, pode ter certeza, haverá recalcitrância para o cumprimento da lei.
Se você quer saber como a gente sustenta boa parte da qualidade da revista que você lê, dê uma olhada nestas logomarcas
Rubens Augusto
Acampa Sampa completa um mês sob o Viaduto do Chá (página eletrônica) Ótima matéria. Em relação ao movimento, ele é importante para tentarmos alcançar uma sociedade mais justa e igualitária, porém me preocupa a fala da Julia “Ainda não sabemos, mas é difícil conseguir repercussão da maneira que a gente quer”, afinal o que querem? realmente mudar algo na sociedade em que vivemos ou aparecer na televisão? é complicado, pois já sabemos que estes assuntos não interessam a “grande mídia”, mas se olharmos a mídia alternativa ( que neste caso torna-se principal) há cobertura e atenção ao caso, mas ainda sim parecem não estar muito satisfeitos. Angelina Miranda
A cortina de fumaça na segurança da USP (página eletrônica) Texto muito bom. O paralelo com Maquiavel me ajudou muito a entender os estudantes e seus movimentos. Bem diferente de outros textos por aí e da atitude dos estudantes, que já sai chamando todo mundo de fascista, mente-fechada e fantoche da Veja. Obrigado por aclarar minha visão sem me agredir.
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Felipe
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Campanha contra agrotóxicos: barreiras e possibilidades No II Seminário Nacional da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida, que ocorreu entre 7 e 9 de novembro, o tema da produção e utilização desenfreada de substâncias nocivas à saúde e ao meio ambiente na agricultura foi abordado de forma conjuntural – com ênfases política e histórica. No evento, o uso de agrotóxicos se mostrou relacionado ao capitalismo e à luta de classes, já que, como elemento de forte ação mercantil na atividade agrícola, a aplicação de produtos com alto índice de toxicidade visa simplesmente ao lucro e não à qualidade dos alimentos que chegam à população. São muitas as barreiras a serem rompidas pela campanha contra os agrotóxicos: o debate público sobre a lei de iniciativa popular da economia solidária, o acesso às mídias para dialogar com a sociedade, necessidade de pesquisas de respaldo, trabalho com bases dos movimentos sociais, trabalho junto ao Congresso Nacional e concretização das alternativas no campo da agroecologia e da economia solidária. Para reforçar essas pautas, durante o seminário, no dia 8 de novembro, ocorreu ato político em Brasília (DF) num importante momento para a confirmação de alianças com parlamentares e movimentos sociais que são solidários e parceiros da campanha. A deputada federal Luci Choinacki (PT-SC) reforçou a proximidade com as ideias da campanha. “Sempre trabalhei na roça sem veneno. Porque agrotóxico, se mata bicho, mata gente. As denúncias sobre o impacto dos agrotóxicos na saúde das pessoas é um grito
Conferência do Desenvolvimento debate democratização da economia A 2ª Conferência do Desenvolvimento (Code), do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), ocorrida em Brasília (DF), entre os dias 23 e 25 de novembro, teve como objetivo o debate nacional sobre desenvolvimento. Contando com mais de mil palestrantes, o evento foi aberto à participação de estudantes, profissionais, agentes públicos, estudiosos, pesquisadores, especialistas, professores e legisladores. No dia de abertura, já no Painel I de debates, mediado pelo diretor de Estudos e Políticas Sociais do Ipea, Jorge Abrahão, com o tema “Proteção social, garantia de direitos e geração de oportunidades”, assistido por aproximadamente 600 pessoas, a economia solidária foi assunto em pauta. O secretário Nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego, professor Paul Singer, um dos debatedores do painel, destacou as relações entre a economia solidária e as ações de políticas públicas. “O projeto da presidenta Dilma Rousseff, de erradicar a pobreza extrema no Brasil, por meio do programa Brasil Sem Miséria (programa federal constituído por convênios com os estados e municípios), fará com que o país deixe de ser reconhecido pela enorme desigualdade social”, enfatizou.
divulgação solidária
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de alerta para mudar o padrão de produção, concentração de riqueza e poder”, destacou. Outro parlamentar, o deputado federal Marcon (PT-RS), que é assentado em Nova Santa Rita, no Rio Grande do Sul, também ressaltou a necessidade de fortalecer alternativas ao atual modelo. “Devemos focar em aspectos como a atuação para a conscientização do consumidor e o avanço da legislação para a criação de barreiras contra o uso dos agrotóxicos”, disse. Mesmo com obstáculos a superar, há, no Brasil, um amplo espaço para desenvolver a campanha. O número de denúncias dos impactos de agrotóxicos nas áreas rurais, a incidência de casos de câncer – refletindo na saúde humana os males do modelo de produção – e o fato de o país ser o maior consumidor das substâncias no planeta, com registro de mais de 1 milhão de toneladas utilizadas anualmente, são itens que conferem amplitude ao tema. A integração necessária para que as populações excluídas do ciclo produtivo vivam com dignidade foi destacada por Singer. “Muitos pobres estão em condições de pobreza absoluta por hereditariedade, como as populações que vivem em quilombos e indígenas integrados inadequadamente à sociedade capitalista”, argumentou.
Democracia na economia Segundo Paul Singer, o aspecto essencial para que a pobreza extrema seja erradicada é a plenitude democrática. “A essência da democracia é a igualdade, que hoje é praticada em muitos meios, mas não na economia. É preciso levar a democracia para a economia, para a educação e todas as atividades coletivas sociais do país, pois só numa sociedade absolutamente democrática a pobreza extrema será finalmente intolerada”, salientou. O secretário também mencionou a urgência da soma de forças entre classes para garantir um desenvolvimento de qualidade, o que passa pela eliminação da pobreza. “Queremos criar condições para que nunca mais tenhamos pobres extremos no Brasil. Precisamos aproveitar a inteligência dessas pessoas e somar ao esforço da parte não pobre da população para que possamos resolver a questão de forma permanente, por meio da inclusão produtiva”, disse.
eLZa fiÚZa / abr
A Fórum dedica este espaço à divu lgação de iniciativas ligadas à economia solidária. Se você parti cipa ou promove algum tipo de empreendimento relacionado ao comércio justo e solidário, entre em contato conosco para divulgá-l o.
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marceLLo casaL jr. / abr
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global
A rede do poder corporativo mundial A estrutura da rede de controle das corporações transnacionais impacta a competição de mercado mundial e a estabilidade financeira. Uma pesquisa mostra, pela primeira vez, sua arquitetura, junto com o controle que possui cada ator global
por lAdISlAu doWbor* “There is a big difference between suspecting the existence of a fact and in empirically demonstrating it” 1
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odos temos acompanhado, por décadas a fio, as notícias sobre grandes empresas, comprando umas as outras, formando grupos cada vez maiores para se tornarem mais competitivas no ambiente cada vez mais agressivo do mercado. Mas o processo, naturalmente, tem limites. Em geral, nas principais cadeias produtivas, a corrida termina quando sobram poucas empresas, que, em vez de guerrear, descobrem que é mais conveniente se articularem e trabalharem juntas, para o bem delas e dos seus acionistas. Não necessariamente, como é óbvio, para o bem da sociedade. Controlar de forma organizada uma cadeia produtiva gera naturalmente um grande poder econômico, político e cultural. Econômico, por meio do imenso fluxo de recursos – maior do que o PIB de numerosos países –, político, por intermédio da apropriação de grande parte dos aparelhos de Estado, e cultural, pelo fato de a mídia de massa mundial criar, por meio de pesadíssimas campanhas publicitárias – financiadas pelas empresas, que incluem os custos nos preços de venda –, uma cultura de consumo e dinâmicas comportamentais que lhes interessam e que geram boa parte do desastre planetário que enfrentamos.
1 Há uma grande diferença entre suspeitar da existência de um fato demonstrá-lo empiricamente” – Vitali, Glattfelder e Battiston – http://j-node.blogspot.com/2011/10/network-of-globalcorporate-control.html.
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Uma característica básica do poder corporativo é o amplo desconhecimento que se tem ao seu respeito. As Nações Unidas tinham um departamento, United Nations Center for Transnational Corporations (UNCTC), que publicava, nos anos 1990, um excelente relatório anual sobre as corporações transnacionais. Com a formação da Organização Mundial do Comércio, simplesmente fecharam o UNCTC e descontinuaram as publicações. Assim, o que é provavelmente o principal núcleo organizado de poder do planeta, deixou simplesmente de ser estudado, à exceção de pesquisas pontuais dispersas pelas instituições acadêmicas e fragmentadas por países. O documento mais significativo que hoje temos sobre as corporações é o excelente documentário A Corporação (The Corporation), estudo científico de primeira linha, que em duas horas e 12 capítulos mostra como funcionam, como se organizam, e que impactos geram. Outro documentário excelente, Trabalho Interno (Inside Job), que levou o Oscar de 2011, mostra como funciona o segmento financeiro do poder corporativo, mas limitado essencialmente a mostrar como a presente crise financeira foi gerada. Temos também o clássico do setor, Quando as Corporações Regem o Mundo (When Corporations Rule the World), de David Korten. Trabalhos desse tipo nos permitem entender a lógica, geram a base do conhecimento disponível. Mas nos faz imensa falta a pesquisa sistemática sobre como as corporações funcionam, como se tomam as decisões, quem as toma, com que legitimidade. O fato é que
ignoramos quase tudo do principal vetor de nológica (ETH)2 vem, pela primeira vez pesquisas com Joseph Stiglitz, ex-economista poder mundial – as corporações. nessa escala, iluminar a área com dados chefe do Banco Mundial. O presente artigo, É natural e saudável que tenhamos todos concretos. A metodologia é muito interes- com dez páginas, é curto para uma pesquisa uma grande preocupação em não inventar- sante. Selecionaram 43 mil corporações no desse porte, mas é acompanhado de 26 pámos conspirações diabólicas, maquinações banco de dados Orbis 2007, de 30 milhões ginas de metodologia, de maneira a deixar maldosas. Mas ao vermos como nos prin- de empresas, e passaram a estudar como transparentes todos os procedimentos. E em cipais setores as atividades se reduziram se relacionam: o peso econômico de cada nenhum momento tiram conclusões políticas no topo a poucas empresas extremamente entidade, a sua rede de conexões, os fluxos apressadas: limitam-se a expor de maneira poderosas, começamos a enmuito sistemática o mapa do tender que se trata, sim, de popoder que resulta do trabalho e Os dados não só confirmam como agravam as afirder político. Agindo no espaço apontam as implicações. mações dos movimentos de protesto, que se referem planetário, e na ausência de goA pesquisa é de difícil leitura verno mundial, manejam granpara leigos, pela matemática enao 1% que brinca com os recursos dos outros 99%. de poder sem nenhum controle volvida. Por conta da importânCom efeito, menos de 1% das empresas consegue significativo. cia que representa para a comA pesquisa do Instituto Fepreensão de como se organiza controlar 40% de toda a rede deral Suíço de Pesquisa Teco poder corporativo do planeta, resolvemos expor da maneira financeiros, e quais empresas têm partici- mais clara possível os principais aportes, ao Dois documentários fundamentais: A Corporação, pações que permitem controle indireto. Em mesmo tempo em que disponibilizamos no que mostra os impactos gerados pelos grandes termos estatísticos, resulta um sistema em fim do texto o link do artigo completo. conglomerados, e... O que resulta da pesquisa é claro: “A esforma de bow-tie, ou “gravata borboleta”, trutura da rede de controle das corporações onde temos um grupo de corporações no “nó” e ramificações para um lado que apon- transnacionais impacta a competição de tam para corporações que o “nó” controla, e mercado mundial e a estabilidade financeira. ramificações para outro que apontam para Até agora, apenas pequenas amostras nacionais foram estudadas e não havia metodoloas empresas que têm participações no “nó”. A inovação é que a pesquisa aqui apresen- gia apropriada para avaliar globalmente o tada realizou esse trabalho para o conjunto controle. Apresentamos a primeira pesquidas principais corporações do planeta e ex- sa da arquitetura da rede internacional de pandiu a metodologia de forma a ir traçando propriedade, junto com a computação do o mapa de controles do conjunto, incluindo a controle que possui cada ator global. Descoescada de poder que as corporações menores brimos que as corporações transnacionais às vezes detêm, ao controlarem um pequeno formam uma gigantesca estrutura em forma grupo de empresas, que, por sua vez, contro- de gravata borboleta (bow-tie) e que uma la uma série de outras empresas e assim por grande parte do controle flui para um núcleo diante. O que temos aqui é exatamente o que (core) pequeno e fortemente articulado de o título da pesquisa apresenta, “a rede do con- instituições financeiras. Esse núcleo pode ... Trabalho Interno, que narra como ser visto como uma “superentidade” (super trole corporativo global”. funciona o segmento corporativo no entity), o que levanta questões importantes Em termos ideológicos, o estudo está acimercado financeiro ma de qualquer suspeita. Antes de tudo, é im- tanto para pesquisadores como para os que portante mencionar que o ETH [Instituto de traçam políticas.” Para demostrar como esse travamento Tecnologia e Ciência] de Zurique faz parte da nata da pesquisa tecnológica no planeta, em acontece, os autores analisam a estrutura geral colocado em segundo lugar depois do mundial do controle corporativo. O controle MIT dos Estados Unidos. Os pesquisadores é aqui definido como participação dos atodo ETH detêm 31 prêmios Nobel, a começar res econômicos nas ações, correspondendo por Albert Einstein. A equipe que trabalhou “às oportunidades de ver os seus interesses no artigo entende tudo de mapeamento de re- predominarem na estratégia de negócios da des e da arquitetura de poder que dele resul- empresa”. Ao desenhar o conjunto da teia de ta. Stefano Battiston, um dos autores, assina participações, chega-se à noção de controle em rede. Esta noção define o montante total de valor econômico sobre o qual um agente 2 S. Vitali, J.B Glattfelder e S. Battiston – The Network, of Global Corporate Control - Chair of Systems Design, ETH Zurich tem influência. – corresponding author sbattiston@ethz.ch – O texto completo O modelo analisa o rendimento operafoi disponibilizado em arXiv em pré-publicação, e publicado pelo PloS One em 26 de outubro de 2011. http://www.plosone.org/arcional e o valor econômico das corporações, ticle/related/info%3Adoi%2F10.1371%2Fjournal.pone.0025995 detalha as tomadas mútuas de participa;jsessionid=31396C5427EB79733EE5C27DAFBFCD97.ambra02 A ampla discussão internacional gerada, com respostas dos aução em ações (mutual cross-shareholdings) tores da pesquisa, pode ser acompanhada em http://j-node.bloidentificando as unidades mais fortemente gspot.com/2011/10/network-of-global-corporate-control.html dezembro de 2011
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No gráfico, as conexões financeiras internacionais. Em vermelho, grupos europeus; em azul, norte-americanos; outros países, em verde
conectadas dentro da rede. “Esse tipo de estruturas, até hoje observado apenas em pequenas amostras, tem explicações tais como estratégias de proteção contra tomadas de controle (anti-takeover strategies), redução de custos de transação, compartilhamento de riscos, aumento de confiança e de grupos de interesse. Seja qual for a sua origem, no entanto, ele fragiliza a competição de mercado[...] Como resultado, cerca de três quartos da propriedade das firmas no núcleo ficam nas mãos de firmas do próprio núcleo. Em outras palavras, trata-se de um grupo fortemente estruturado (tightly-nit) de corporações que cumulativamente detém a maior parte das participações umas nas outras.” Esse mapeamento leva, por sua vez, à análise da concentração do controle. À primeira vista, sendo firmas abertas com ações no mercado, imagina-se um grau relativamente distribuído também do poder de controle. O estudo procurou identificar “o quão concentrado é esse controle e quem são os que detêm maior controle no topo”. Isso é uma inovação relativa aos numerosos estudos anteriores, que mediram a concentração de riqueza e de renda. Segundo os autores, não há estimativas quantitativas anteriores sobre o controle. O cálculo consistiu em identificar qual a fração de atores no topo
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que detém mais de 80% do controle de toda a rede. Os resultados são impactantes: “Descobrimos que apenas 737 dos principais atores (top-holders) acumulam 80% do controle sobre o valor de todas as ETNs[...] Isso significa que o controle em rede (network control) é distribuído de maneira muito mais desigual do que a riqueza. Em particular, os atores no topo detêm um controle dez vezes maior do que o que poderia se esperar baseado na sua riqueza.” Combinando o poder de controle dos atores no topo (top ranked actors) com as suas interconexões, “descobrimos que, apesar de sua pequena dimensão, o núcleo detém coletivamente uma ampla fração do controle total da rede. No detalhe, quase 4/10 do controle sobre o valor econômico das ETNs do mundo, através de uma teia complicada de relações de propriedade, está nas mãos de um grupo de 147 ETNs do núcleo, que detém quase pleno controle sobre si mesmo. Os atores do topo dentro do núcleo podem assim ser considerados como uma “superentidade” na rede global das corporações. Um fato adicional relevante neste ponto é que três quartos do núcleo são intermediários financeiros.” Isso é um exemplo de apenas algumas conexões financeiras internacionais do gráfico acima. Em vermelho, grupos europeus;
em azul, norte-americanos; outros países, em verde. A dominância dos dois primeiros é evidente, e muito ligada à crise financeira atual. Somente uma pequena parte dos links é aqui mostrada (fonte Vitali, Glattfelder e Fattiston, http://j-node.blogspot.com/2011/10/
network-of-global-corporate-control.html).
Os números em si são muito impressionantes, estão gerando impacto no mundo científico e vão repercutir inevitavelmente no mundo político. Os dados não só confirmam como agravam as afirmações dos movimentos de protesto, que se referem ao 1% que brinca com os recursos dos outros 99%. O New Scientist reproduz o comentário de um dos pesquisadores, Glattfelder, que resume a questão: “Com efeito, menos de 1% das empresas consegue controlar 40% de toda a rede.” E a maioria são instituições financeiras, entre as quais Barclays Bank, JPMorgan Chase&Co, Goldman Sachs e semelhantes.3 Algumas implicações são bastante evidentes. Assim, ainda que na avaliação do New Scientist as empresas comprem umas as outras por razões de negócios, e não para do-
3 New Scientist (em português) http://www.inovacaotecnologica.com.br/noticias/noticia.php?artigo=rede-capitalistadomina-mundo&id=010150111022&mid=50 e original inglês http://www.newscientist.com/article/mg21228354.500revealed--the-capitalist-network-that-runs-the-world. html?DCMP=OTC-rss&nsref=online-news.
minar o mundo, não ver a conexão entre esta concentração de poder econômico e o poder político constitui evidente prova de miopia. Quando numerosos países, a partir dos anos Reagan e Thatcher, reduziram os impostos sobre os ricos, lançando as bases da trágica desigualdade planetária atual, não houve dúvidas quanto ao poder político por trás das iniciativas. A lei recentemente aprovada nos Estados Unidos, que libera totalmente o financiamento de campanhas eleitorais por corporações, tem implicações igualmente evidentes. O desmantelamento das leis que obrigavam as instituições financeiras a fornecer informações e que regulavam as suas atividades passa a ter origens claras. Outra conclusão importante refere-se à fragilidade sistêmica que geramos na economia mundial. Quando há milhões de empresas, há concorrência real, ninguém consegue “fazer” o mercado, ditar os preços, e muito menos ditar o uso dos recursos públicos. Esses desequilíbrios se ajustam com inúmeras alterações pontuais, assegurando certa resiliência sistêmica. Com a escalada atual do poder corporativo, as oscilações adquirem outra dimensão. Por exemplo, com os derivativos em crise, boa parte dos capitais especulativos se reorientou para commodities, levando a fortes aumentos de preços, frequentemente atribuídos de maneira simplista ao aumento da demanda da China por matérias primas. A evolução recente dos preços de petróleo, em particular, está diretamente conectada a essas estruturas de poder.4 Os autores trazem também implicações para o controle dos trustes, já que essas políticas operam apenas no plano nacional: “Instituições antitruste ao redor do mundo acompanham de perto estruturas complexas de propriedade dentro das suas fronteiras nacionais. O fato de séries de dados internacionais, bem como métodos de estudo de redes amplas, terem se tornado acessíveis apenas recentemente, pode explicar como esta descoberta não tenha sido notada durante tanto tempo.” Em termos claros, essas corporações atuam no mundo, enquanto as instâncias reguladoras estão fragmentadas em 194 países, sem contar a colaboração dos paraísos fiscais. Outra implicação é a instabilidade financeira sistêmica gerada. Estamos acostumados a dizer que os grandes grupos financeiros são grandes demais para quebrar. Ao ver como estão interconectados, a imagem 4 O aumento do risco sistêmico nos grandes sistemas integrados é estudado por Stiglitz em Risk and Global Economic Architecture, 2010, http://www.nber.org/papers/w15718.pdf.
muda, é o sistema que é grande e poderoso demais para que não sejamos todos obrigados a manter os seus privilégios. “Trabalhos recentes têm mostrado que quando uma rede financeira é muito densamente conectada fica sujeita ao risco sistêmico. Com efeito, enquanto em bons tempos a rede parece robusta, em tempos ruins as empresas entram em desespero simultaneamente. Esta característica de ‘dois gumes’ foi constatada durante o recente caos financeiro.” Ponto-chave: os autores apontam para o efeito de poder do sistema financeiro sobre as outras áreas corporativas. “De acordo com alguns argumentos teóricos, em geral, as instituições financeiras não investem em participações acionárias para exercer controle. No entanto, há também evidência empírica do oposto. Os nossos resultados mostram que, globalmente, os atores do topo estão, no mínimo, em posição de exercer considerável controle, seja formalmente (por exemplo, votando em reuniões de acionistas ou de conselhos de administração) ou por meio de negociações informais.” Finalmente, os autores abordam a questão óbvia do clube dos super-ricos: “Do ponto de vista empírico, uma estrutura em ‘gravata borboleta’ com um núcleo muito pequeno e influente constitui uma nova observação no estudo de redes complexas. Supomos que possa estar presente em outros tipos de redes onde mecanismos de “ricos-ficam-maisricos” (rich-get-richer) funcionam... O fato de o núcleo estar tão densamente conectado poderia ser visto como uma generalização do fenômeno de clube dos ricos (rich-club phenomenon).” A presença esmagadora dos grupos europeus e americanos neste universo, sem dúvida, também ajuda nas articulações e acentua os desequilíbrios. Conclusões gerais a serem tiradas? Não faltam na internet comentários de que o fato de serem poucos não significa grande coisa. Na minha análise, é óbvio que se trata, sim, de um clube de ricos, e de muito ricos, que se apropriam de recursos produzidos pela sociedade em proporções inteiramente desproporcionais relativamente ao que produzem. Trata-se também de pessoas
que controlam a aplicação de gigantescos recursos, muito mais do que a sua capacidade de gestão e de aplicação racional. Um efeito mais amplo é a tendência de uma dominação geral dos sistemas especulativos sobre os sistemas produtivos. As empresas efetivamente produtoras de bens e serviços úteis à sociedade teriam todo interesse em contribuir para um sistema mais inteligente de alocação de recursos, pois são, em boa parte, vítimas indiretas do processo. Nesse sentido, a pesquisa do ETH aponta para uma deformação estrutural do sistema, que terá, em algum momento, de ser enfrentada. E em relação ao que tanto preocupa as pessoas, a conspiração? A grande realidade que sobressai da pesquisa é que nenhuma conspiração é necessária. Ao estarem articulados em rede, e com um número tão diminuto de pessoas no topo, não há nada que não se resolva no campo de golfe no fim de semana. Esta rede de contatos pessoais é de enorme relevância. Mas, sobretudo, os interesses são comuns, e não é necessária nenhuma conspiração para que os defendam solidariamente, como na batalha já mencionada para se reduzir os impostos que pagam os muito ricos ou para se evitar taxação sobre transações financeiras, ou ainda para evitar o controle dos paraísos fiscais. O caos financeiro planetário, em última instância, tem uma base muito articulada (tight-nit) de poucos atores. No pânico mundial gerado pela crise, debatem-se as políticas de austeridade, as dívidas públicas, a irresponsabilidade dos governos, deixando na sombra o ator principal: as instituições de intermediação financeira. No início do pânico da crise financeira, em 2008, a publicação do FMI Finance & Development estampou na capa, em letras garrafais, a pergunta “Who’s in charge?”, insinuando que ninguém está coordenando nada. Para o bem ou para o mal, a pergunta está respondida. F Ladislau Dowbor é professor da PUC-SP nas áreas de economia e administração, e consultor de várias agências das Nações Unidas. Autor de Democracia Econômica e numerosos estudos disponíveis online em http://dowbor.org ou http://www.dowbor. org/wp - Contato ladislau@dowbor.org
Link para a resenha do New Scientist traduzida para o português no site Inovação Tecnológica: http://www.inovacaotecnologica.com.br/noticias/noticia.php?artigo=rede-capitalista-dominamundo&id=010150111022&mid=50. Link para a resenha em inglês no site New Scientist: http://www.newscientist.com/article/ mg21228354.500-revealed--the-capitalist-network-that-runs-the-world.html?DCMP=OTCrss&nsref=online-news. dezembro de 2011
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Sete teses sobre as ocupações de 2011* Os movimentos surgidos em todo o planeta no último ano trazem reflexões e derrubam mitos, nos quais boa parte do pensamento político se apoiou recentemente
por Idelber Avelar
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m ano atrás, quem imaginaria que uma multidão insistente e pacífica, sem quaisquer laços com a Irmandade Muçulmana, retornaria à Praça Tahrir uma e outra vez, durante semanas, até derrubar o ditador egípcio Hosni Mubarak? Quem teria previsto que um movimento de ocupação popular, de contornos antineoliberais e, em alguns momentos, anticapitalistas, varreria os EUA de Leste a Oeste, deixando estupefatos e sem reação tanto os dois partidos políticos como os comentaristas da mídia corporativa? Quem suporia que a profundidade da crise e a mobilização popular derrubariam primeiros-ministros europeus, como na Grécia e na Itália? Quem imaginaria 2011? uma vez as teleologias da História. A última vez que ouvimos falar que a História havia chegado a seu ponto final foi nos anos 1990. Francis Fukuyama tomou a queda do muro de Berlim como comprovação de que a teleologia da História – ou seja, a concepção que a entende como dirigindo-se a um fim preestabelecido – havia se realizado, com a vitória definitiva do capitalismo liberal, que então só necessitaria de ajustes em seu interior, sem qualquer outra ameaça externa. Não foi uma revolução socialista, mas um
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dezembro de 2011
Luciano Tasso
1. As ocupações de 2011 enterram mais
atentado terrorista em Nova Iorque que se encarregou de pôr a pá de cal nessa celebração otimista. A década que se seguiu ao atentado foi marcada pelo conceito de guerra sem fim: os EUA tentaram rearticular sua hegemonia em declínio por meio da construção de um inimigo onipresente, virtual e despersonalizado, e nessa toada viveu-se a década 2001-2011. Quando mais parecia que o binômio “imperialismo dos EUA x fundamentalismo islamista” se manteria como a polarização definidora da política mundial, emergem em todo o mundo árabe ocupações populares sem relação com o islamismo e, no Ocidente, sem qualquer relação com o morno antagonismo que opõe liberais ou social-democratas aos conservadores da direita. As ocupações de 2011 reafirmam a condição inacabada da História, sua natureza radicalmente pendente, seu caráter de puro devir.
2. As ocupações de 2011 apontam sinais de falência generalizada dos partidos políticos. Talvez não haja fio unificador mais visível em todas as revoltas (Tunísia, Egito, EUA, Grécia, Portugal, Espanha, Itália, Inglaterra, Bahrein, Iêmen, Síria, Argélia etc.) que seu caráter autônomo em relação às coletividades políticas já sancionadas, nos casos europeu e estadunidense, pelas democracias representativas, ou, no caso do mundo árabe, pelas autocracias militares ou monárquicas. Aqui, a Espanha é emblemática: sob um governo social-democrata, liderado por José Luis Zapatero, um primeiro-ministro de considerável prestígio no exterior, uma multidão de indignados fez ouvir em claro e bom som a mensagem de que nem PP, o Partido Popular, de direita e franquista, nem o Psoe, o Partido Socialista Operário Espanhol de Zapatero, a representava. Não se trata só de que esses movimentos são independentes dos partidos. Trata-se de uma ruptura muito mais profunda, por meio da qual as multidões (des)organizadas denunciam a perda da capacidade desses partidos de representarem os desejos políticos reais que se articulam na pólis. As ocupações não se levantam apenas contra as ditaduras e o autoritarismo no mundo árabe, e o arrocho salarial e a financeirização da vida, no Ocidente, mas também, em ambos os espaços, contra as estruturas supostamente representativas da política. Nesse contexto, não faz sentido responsabilizar os indignados da Espanha pela vitória do PP nas últimas eleições, posto que seria bastante difícil encontrar grande diferença entre a política econômica aplicada por Zapatero e aquela imposta anteriormente por Aznar.
3. As ocupações de 2011 são uma crítica da representação e resgatam uma memória dos oprimidos: a democracia direta. A autonomia popular reunida na Plaza del Sol, em Liberty Plaza e em dezenas de outras praças públicas ao redor do Ocidente, denuncia o caráter não democrático da democracia liberal. A financeirização do mundo também molda os partidos políticos, e nenhum exemplo é mais eloquente que os EUA: 80% dos cidadãos estadunidenses desaprovam o Congresso de seu país, mas não podem renová-lo, porque a legislação eleitoral é construída de tal forma que só os Partidos Democrata e Republicano sobrevivem — ambos, o segundo um pouco mais, cativos dos interesses do grande capital e, muito especialmente, do capital financeiro. As ocupações de 2011 mostram que a falência da democracia representativa é filha da financeirização do mundo. A disseminada desilusão com a administração Obama, por exemplo, não deu lugar a um crescimento do Partido Republicano nem à formação de um terceiro partido (há dezenas de “terceiros partidos” nos EUA, sem possibilidade de participação no processo político real). Essa desilusão deu lugar ao “Ocupar Wall Street”. A resistência do movimento às regras estabelecidas no jogo eleitoral e a preferência pela construção da democracia direta lembra muito mais a Comuna de Paris ou Maio de 1968 que qualquer outro movimento acoplado à maquinaria de representação política da democracia institucional. Em assembleias, passeatas, nos comoventes microfones humanos do Ocupar Wall Street (saída encontrada para contornar a proibição de microfones nas praças), nas oficinas solidárias oferecidas pelos ocupantes, encontra-se em gestação outro conceito de democracia, cujo atributo principal, sem dúvida, é este: ele se reinventa permanentemente. Ninguém sabe no que vai dar. 4.
As ocupações de 2011 demonstram que nenhuma luta popular genuína pode se limitar hoje a fronteiras nacionais. A quebra do capitalismo europeu transforma o aparato eleitoral de suas nações em pouco mais que uma escolha do comissário que irá obedecer às ordens do capital financeiro. Num contexto de integração monetária continental e integração comercial global, em que a manipulação de títulos de dívida e o fluxo de capitais são capazes de derrubar uma economia europeia em questão de dias, desapareceu a diferença entre governos conservadores e sociais-democratas, pois prati-
Nas ocupações de 2011, por boas razões, têm sido minoritárias as vozes que acreditam numa rearticulação da potência autônoma da multidão com o aparato político nacional
camente desapareceu a margem de manobra destes últimos. Os social-democratas e os socialistas podem ainda manter uma retórica mais progressista, alguma memória de sua época de representantes da classe trabalhadora e a disposição a um “diálogo” (sempre infrutífero) não vistas na direita, mas o resultado final, especialmente na política econômica, é o mesmo. Nas ocupações de 2011, por boas razões, têm sido minoritárias as vozes que acreditam numa rearticulação da potência autônoma da multidão com o aparato político nacional. Talvez desde a I Internacional Comunista ou, no máximo, a onda de revoluções abortadas na Europa durante o período da III Internacional, não se sentia tão nitidamente a necessidade de um processo revolucionário global, que escape do dilema entre ceder às limitações impostas pelo capital ao Estado-Nação e abdicar de tomar o poder para permanecer na pura negação. A saída para esse dilema, como todas as outras questões estratégicas que acossam as ocupações, continua pendente, com resolução não vislumbrada. Mas é nítida a consciência de que qualquer adequação aos limites do Estado-Nação não satisfará a energia transformadora já desatada.
5. As ocupações de 2011 enterram de vez
o mito da democracia liberal tolerante com o dissenso. O exemplo definitivo aqui são os EUA, justamente porque o “Ocupar Wall Street”, ao contrário, por exemplo, da revolta de excluídos na Inglaterra, tem sido um movimento pacífico. Mesmo assim, a repressão policial tem se manifestado de forma assombrosa. Em meados de novembro, correu o mundo a imagem de um policial de Davis, na Califórnia, lançando spray de pimenta sobre um grupo de estudantes sentados de braços dados na área central do campus. O policial tinha o semblante de dezembro de 2011
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6. As ocupações de 2011 realçam o papel
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das novas tecnologias e o caráter insubstituível da rebelião presencial. Já se transformou em senso comum a ideia de que as novas tecnologias digitais e redes como o Facebook e o Twitter cumprem papel central nas novas revoltas. Isso é correto, evidentemente. Na rebelião de consumidores excluídos na Inglaterra, todo o agendamento de levantes se deu pelo comunicador do Blackberry (BBM), enquanto que, nos EUA e no Egito, o Twitter e o Facebook multiplicavam os canais de circulação do protesto. Não se trata simplesmente de que novas tecnologias se transformam em veículos de comunicação comparáveis ao telefone ou ao
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telégrafo, privilegiados em outras eras. Os novos trabalhadores são, eles mesmos, peças de um capitalismo cognitivo, no qual a produção de lucro passa pelo valor imaterial da mercadoria produzida: patentes, propriedade intelectual, dívida sem materialidade sob a forma de puros títulos, teologia do copyright. Eis aí os termos decisivos através dos quais se articula a dominação capitalista hoje. Ou seja, o próprio capitalismo financeiro contra o qual se rebelam as multidões de 2011 tem como atributo a imaterialidade reproduzível das formas de comunicação usadas pelos manifestantes. É exatamente por isso que nada é mais ingênuo que celebrar as novas tecnologias digitais como instrumentos emancipatórios em si. Foi a rebelião presencial que desatou, tanto nos EUA como na Inglaterra e no Egito, a repressão aos fluxos digitais, com cancelamento de contas, bloqueio de circuitos e censura a mensagens subversivas. Justamente porque as ágoras digitais e físicas não estão separadas – ou seja, porque elas compõem a teia do capitalismo cognitivo – não tem sentido tecer loas ao poder liberador das novas tecnologias, sem reconhecer que o inimigo acusou o golpe precisamente porque o povo revoltoso ocupou a praça. Nenhuma ocupação da praça acontecerá sem fluxo de energia revolucionária digital. Nenhum trabalho de rede substituirá a ocupação da praça.
7.
As ocupações de 2011 revelam que a luta pelo cancelamento da dívida está para o capitalismo cognitivo assim como a luta pelo salário estava para o capitalismo industrial. Essa tese do autonomista italiano Gigi Roggero vai, me parece, ao centro da questão. Em todas as revoltas do mundo ocidental, tanto nos EUA como na Europa, as multidões rebeladas vão se dan-
do conta de que nenhum aumento salarial ou mesmo garantia de emprego significará muito num contexto em que a manipulação dos títulos da dívida e a especulação com os capitais migrantes têm o poder de colocar toda uma economia nacional de joelhos. Passamos do que Michel Foucault chamou de sociedade disciplinar – aquele momento moderno no qual grandes aparatos (igreja, escola, fábrica, exército, hospital, prisão) constituíam um sujeito sob perene vigilância – àquilo que Gilles Deleuze chamaria de sociedade do controle, na qual a dominação já se dá através de formas móveis, imateriais, virtuais, em constante deslocamento, para as quais o modelo já não é a prisão (embora esta continue a cumprir o seu papel), mas a corporação. O capitalismo da era da sociedade disciplinar se baseou na produção e na propriedade. No capitalismo da sociedade de controle, a produção já foi exportada para alhures (China, Tailândia, Terceiro Mundo), enquanto o capital se dedica a vender serviços e comprar ações. A sociedade disciplinar era o espaço do sujeito vigiado. A sociedade de controle é o espaço do sujeito endividado. A chamada crise das hipotecas nos EUA não foi o resultado de um erro tangencial ou lateral ao sistema. Foi a expressão da lógica mais profunda, desse sistema, que só pode se reproduzir através da teia da dívida imaterial, impagável. Por isso, as massas autônomas, de Madri a Nova Iorque, do Cairo a Atenas, vão se dando conta, no interior da luta, de que se reafirma um princípio revolucionário por excelência: não se pode mudar nada sem, antes, mudar tudo. Esse axioma marxista é, hoje, mais verdadeiro que na época de Marx. F
* Agradeço a Giuseppe Cocco, Bruno Cava e Alexandre Nodari pelas referências bibliográficas e pela interlocução na preparação deste artigo.
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11 5524.1936 (São Paulo) • 31 3494.9099 (atendimento nacional)
www. arquivar.com.br • sp1@arquivar.com.br dezembro de 2011
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quem dedetiza uma nuvem de insetos. Em Seattle, a jovem Jennifer Fox foi espancada por policiais até sofrer um aborto. Ainda em Seattle, uma senhora de 84 anos, Dorli Rainey, recebeu jatos de spray de pimenta na cara até não conseguir se mover sem ajuda de companheiros de ocupação. Em Nova Iorque, a polícia deliberadamente orientou os manifestantes a se dirigirem à Ponte do Brooklyn para ali prendê-los. O acampamento da Liberty Plaza foi acossado por faróis da polícia durante semanas, piscando ao longo da noite para impedi-los de dormir. Veteranos de guerra foram espancados pela polícia de Boston ao se interporem entre ela e os manifestantes, tentando defendê-los de uma desocupação que violava grosseiramente a Primeira Emenda da Constituição. São centenas de presos em todo o país, todos eles cidadãos pacíficos que exerciam um direito previsto em lei. Só com grande ingenuidade ou má-fé seria possível defender hoje a ideia de que a Primeira Emenda significa algo quando se trata de mobilização popular anticapitalista nos EUA.
poder mundial
Nos movimentos 2.0, as formas são múltiplas Ocuppy Wall Street, 15-M, Revolução no Egito, jornalismo e ativismo, crise das representações partidárias. Há algo novo que não começou agora, mas que parece ficar cada vez mais forte por Renato Rovai
Osvaldo gago / flickr
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esde janeiro de 1994, quando o Exército Zapatista de Libertação Nacional divulgou sua Primeira Declaração da Selva Lacondona pela rede mundial de computadores, começou a se constituir uma outra esfera pública. A internet ainda vivia seus primeiros momentos, e os grupos e listas de debates eram os principais mecanismos de divulgação daquele movimento que nasceu no mesmo dia em que EUA, México e Canadá assinavam um acordo de livre comércio, o Nafta. Mesmo assim, foi tamanha a força da rede para tornar os zapatistas conhecidos em várias partes do mundo que a sua principal liderança, o subcomandante Marcos, se tornou, para alguns, o primeiro super-herói da internet. Para que isso acontecesse naqueles primeiros momentos, foi fundamental a ação de jornalistas independentes mexicanos e mesmo de outros países da América Latina. Eram colaboradores do La Jornada, do Página 12 e de outros veículos independentes que postavam as mensagens dos zapatistas na rede. E não o próprio subcomandante Marcos, como o folclore político da época fazia crer. Ainda na década de 1990, mais precisamente em novembro de 1999, outro movimento também atraiu muita atenção, tanto pela sua força organizativa quanto pela maneira como conseguiu romper o cerco da mídia tradicional comercial. Os protestos durante a cúpula da OMC na cidade de Seattle, nos EUA, se tornaram um marco das manifestações que viriam a ser denominadas pelos veículos tradicionais de comunicação de antiglobalização, mas, na verdade, não questionavam a globalização da sociedade, e sim a globalização econômica pelo viés neoliberal.
Os indignados espanhóis teriam se inspirado no livro Indignez Vous, best-seller na Europa
Aquele movimento que viria a ser conhecido como a A Batalha de Seattle levou às ruas dessa cidade estadunidense aproximadamente cem mil pessoas, desde ativistas de causas ambientais a sindicalistas, e impediu a realização daquela cúpula. Naquele evento surgia o Indymedia (Centro de Mídia Independente), a primeira experiência de construção de cobertura jornalística colaborativa de um evento, que viria a se tornar um site com versões em mais de uma centena de países. O Indymedia nasceu da indignação dos ativistas que consideravam as coberturas dos meios comerciais de comunicação distorcidas e contrárias às suas causas. O projeto original consistia num site para publicação livre, no qual jornalistas e colaboradores de veículos de comunicação alternativos poderiam publicar seus textos, fotos e vídeos durante os protestos. O acordo é que deve-
riam fazê-lo em copyleft – contraposição ao copyright –, que permite a reprodução de textos desde que citada a fonte. No entanto, durante os protestos, o Indymedia foi utilizado não só por jornalistas. E os relatos dos que participaram do movimento foram fundamentais para que o site tivesse sucesso na cobertura da Batalha de Seattle. Segundo divulgado no próprio site, a iniciativa teve 1,5 milhão de acessos naquele episódio. Outro importante movimento para o qual a internet foi fundamental, tanto do ponto de vista organizativo como de difusão de informação, foi o Fórum Social Mundial. Em janeiro de 2001, 20 mil pessoas de 117 países se deslocaram para a cidade de Porto Alegre (RS) para discutir alternativas à globalização neoliberal. Ou para debater o “Outro Mundo Possível”, que viria a se tornar o slogan do movimento. dezembro de 2011
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djbones / flickr
Os protestos durante a cúpula da OMC, em Seattle, se tornaram um marco das manifestações anti-globalização
O FSM, naquela sua primeira edição, se realizou exatamente na mesma data do Fórum Econômico Mundial. A intenção dos seus promotores era a de se fazer um contraponto às propostas dos que se reuniam nos Alpes suíços, mais especificamente na cidade de Davos. Durante toda a articulação do evento de Porto Alegre, porém, poucos veículos tradicionais deram algum destaque à iniciativa. O único jornal com relevância internacional a tratar do assunto foi o Le Monde Diplomatique. Na imprensa brasileira, apenas notas de rodapé. Quando o evento começou, jornalistas desinformados chegavam a Porto Alegre sem a menor ideia do que aquilo significava. E, mesmo durante o evento, a cobertura da imprensa comercial tradicional brasileira foi caricata. As reportagens abordavam assuntos como a cachaça Che Guevara ou a manifestação de pelados no acampamento da juventude. O curioso é que daquele 1º FSM participaram 1.870 jornalistas credenciados, quase todos vinculados a veículos independentes e alternativos, que, entre outras iniciativas, criaram a Ciranda da Informação, que permitia (e ainda permite) a publicação de fotos, matérias e produções jornalísticas, desde que também associadas à prática do copyleft. Em modelo colaborativo, as reportagens iam sendo traduzidas para outras línguas e republicadas em diversos veículos mundo afora, permitindo não só que informações do Fórum Social Mundial pudessem ser divulgadas com maior visibilidade como também estimulando a constituição de uma rede informal de veículos independentes e contra-hegemônicos. E foi naquele primeiro FSM que nasceu a Fórum. Esses acontecimentos foram fundadores do ativismo jornalístico nas redes digitais.
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Mas é bom que se diga que o jornalismo ativista não nasceu na rede. Pascoal Serrano, editor e fundador do site Rebelion, acaba de lançar um livro na Espanha cujo título é Contra la Neutralidad. Serrano retoma os trabalhos de John Reed, Ryszard Kapúscinki, Rodolfo Walsh, Edgar Snow e Roberto Capa, para defender sua tese de que o jornalismo não pode ser indiferente. Que não pode ser um debate sobre formato e formas de apresentação. E que os trabalhos e a história desses jornalistas e do fotógrafo Roberto Capa comprovam o quanto a suposta neutralidade não é algo a ser perseguido do ponto de vista profissional. O debate sobre jornalismo e ativismo ganhou novos contornos neste 2011 com os movimentos 2.0. Ou seja, com a entrada em cena de um novo tipo de movimento social, que saiu da rede para invadir as ruas. Nos últimos anos, houve uma ampliação significativa da circulação de informação contra-hegemômica. E isso levou a mídia tradicional comercial a diminuir sua capacidade de pautar a sociedade, ao mesmo tempo em que modificou o fazer jornalístico. Hoje não é necessário participar de empresas verticalizadas para atuar como produtor de informação. Vive-se um momento de passagem da mídia de massa para um tipo de organização mais horizontal, que permite um jornalismo mais autoral e independente, muito mais transparente e posicionado. O Occupy Wall Street, o 15 M da Espanha e a Revolução no Egito foram três movimentos que certamente entrarão para a história desta nova fase em que a circulação de informação independente e posicionada é parte do movimento. Ela não produz o movimento. Mas contribui para a sua construção e significação.
A ação dos ativistas digitais no Egito, por exemplo, foi articulada pelo Facebook, rede social que, dadas as suas características, permite a participação de ampla camada da sociedade. Diferentemente do Twitter, mais utilizado por aqueles que estão em busca de informação, o Facebook se tornou a plataforma de toda a família. É um álbum de fotos, uma agenda de amigos, um lugar de recados e também um espaço para se exercer o voyeurismo. E mesmo quando as pessoas só entram no Facebook para saber o que está acontecendo na vida dos outros, às vezes se deparam com histórias que as levam a uma causa comum. Foi o que aconteceu no Egito, quando as fotos de Khalled Said, jovem que foi violentamente torturado e assassinado por postar um vídeo de violência policial no Facebook, vieram à tona no mesmo Facebook. No caso do movimento Occupy Wall Street o que pouca gente sabe é que as manifestações foram impulsionadas pela revista canadense Adbusters, veículo anticonsumista, mantido por leitores e cuja tiragem é de 120 mil exemplares. Foi uma nota publicada em 13 de julho que lançou o desafio para que ativistas ocupassem Wall Street no dia 17 de setembro: “Chegou a hora de agir contra o maior corruptor da nossa democracia: Wall Street, a Gomorra financeira da América. Em 17 de setembro, nós queremos ver 20 mil pessoas como um tsunami invadindo a baixa de Manhattan, montando tendas, cozinhas, barricadas pacíficas e ocupando Wall Street por alguns meses. Uma vez lá, vamos repetir incessantemente uma demanda simples em uma pluralidade de vozes. [...] É hora de democracia, não de corporotucracia. Estamos condenados sem ela.” 1 A ação do Ocuppy Wall Street se multiplicou em diversas partes dos EUA e do mundo. E mesmo no Brasil, cidades como São Paulo e Rio de Janeiro aderiram ao movimento. E em todos os lugares onde barracas ocupam espaços públicos, a informação tem sido a arma principal do movimento. Uma Carta Aberta do Occupy Dallas (veja box), publicada no blogue do movimento, é ilustrativa dessa ação pela informação, por um novo modus operandi do que talvez venha a ser a constituição de um novo jornalismo público, sobre o qual pretendo tratar num texto futuro. A carta de Dallas segue com uma série de recomendações à polícia local e, em vários outros momentos, alerta para o fato de que os manifestantes estavam orientados a produzir informação que seria utilizada contra 1 Íntegra no endereço: http://www.adbusters.org/blogs/ adbusters-blog/occupywallstreet.html.
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a repressão policial e contra a manipulação midiática. As ruas nas redes. As redes como parte das ruas. Nos movimentos de protesto 2.0 não se pensa em ruas sem rede. Ambas são a mesmíssima coisa para os militantes. E suas ações são pensadas como combinação da tomada de todos os espaços produzindo o máximo de informação que contribua para o sucesso da ação. No 15-M da Espanha, que levou milhares de jovens a diferentes praças do país, em especial à do Sol, em Madri, e a da Cataluña, em Barcelona, o papel do ativismo jornalístico também não foi menor. Os indignados espanhóis teriam se inspirado no livro Indignez Vous, de Stéphane Hessel, que vendeu alguns milhares de exemplares em toda a Europa. O livro, sem tradução no Brasil, é um manifesto à indignação contra o sistema e se tornou um clássico muito em decorrência da história do seu autor. Hessel, 92 anos, escapou duas vezes dos campos de concentração na Segunda Guerra Mundial, contribuiu para a redação da Declaração Universal dos Direitos do Homem em 1948, foi embaixador de França e hoje é um mundialista-ecologista. O livro se tornou um best-seller por conta da divulgação que teve nos veículos independentes e nas redes.
Occupy Wall Street: as estruturas de poder da sociedade não serão modificadas com base na lógica tradicional
Os protestos se iniciaram em 15 de maio (por isso 15-M), e como a repressão foi grande, os manifestantes criaram no dia 18 um link para transmissão ao vivo via Ustream, com o objetivo de constranger a ação policial. Foi daí em diante que a solidariedade ao movimento se espalhou pelo mundo, e os veículos de comunicação tradicional passaram a tratar do assunto com a dimensão aproxi-
Segunda carta aberta do Occupy Dallas à Polícia 7/11/2011, Occupy Dallas Ao Departamento de Polícia de Dallas, Texas Aos cuidados do Tenente Anthony W. Williams Depois de examinar vídeos e de conversar com membros de sua organização policial, vimos que o senhor era o oficial que comandava a operação policial contra nossa passeata de ontem, que começou na praça Bank of America. Esperávamos que lá estivesse um comandante de operação policial contra cidadãos desarmados capaz de manter o equilíbrio emocional. O que vimos foram vídeos em que o senhor aparece pessoalmente algemando manifestantes. Por isso, essa carta aberta dirigida ao Departamento de Polícia de Dallas vai endereçada ao senhor. Primeiro, oferecemos alguns fatos, para seu conhecimento. Não somos uma revolução violenta. Estamos tentando evitar uma revolução violenta. (…) Ontem, vários policiais comandados pelo senhor escolheram nos atacar com violência. Há vídeos gravados em que se veem cidadãos empurrados por policiais, das calçadas públicas onde caminhavam, para o meio da rua. Um policial protegido por escudo antitumultos, com um cassetete elétrico, espancava cidadãos que se manifestavam. Empurrados para o meio da rua e cercados por meia dúzia de policiais, muitos manifestantes foram atacados com sprays de pimenta por uma policial feminina que carregava uma câmera. Essa policial pode ser vista na fotografia que acompanha essa carta, em nossa página na internet: vê-se que ela, escondida atrás de um carro, segura a pistola lança-pimenta e a câmera. Via-se também bem claramente que vários policiais à paisana andavam pela rua, com câmeras, filmando rostos. Estamos solicitando, nos termos do Freedom of Information Act, que os filmes feitos por esses policiais não identificados como policiais nos sejam entregues, para que integrem o dossiê que está sendo preparado, com outras provas da ação ilegal da polícia em outras cidades dos EUA. Preocupam-nos, de modo especial, as ações da policial Jay Hollis, crachá de identificação #6896. Em vídeo filmado por manifestantes, essa policial aparece puxando uma pessoa de cima de uma mureta de mais de um metro de altura, e jogando-a ao chão. Questionada mais tarde por manifestantes, sobre por que atacara um manifestante, a policial Jay Hollis respondeu, dando de ombros: “Ele pediu para descer.” Em vários desses vídeos, pode-se ver que o senhor estava próximo da cena, observando-a.
mada do que ele merecia. Claro que sempre tratando os manifestantes como um bando de rebeldes sem causa. Aliás, neste sentido da crítica, direita e esquerda tradicional se confundem. Ambos desqualificam os movimentos 2.0 pelos mesmos caminhos: a suposta ausência de propostas. A questão que se coloca é que tanto o fazer político quanto o jornalístico estão em plena transformação nesses primeiros anos de uso da internet. A internet e as suas novas possibilidades de interação, em geral mais horizontais, levam o novo cidadão que atua nas redes a não aceitar a centralidade e a verticalidade como algo natural. Essa nova cultura coloca em xeque o sistema de organização dos partidos políticos e a dinâmica dos veículos de comunicação tradicionais. Não são os novos movimentos e suas formas que não apresentam saídas. São as formas tradicionais de fazer política e de querer organizar a agenda pela comunicação que estão em crise. Os movimentos políticos de 2011 não aconteceram para apresentar respostas a essas questões. Mas para gritar que não se modificará as estruturas de poder da sociedade fazendo o jogo com base na lógica tradicional. Mas reinventando o jogo. Que se joga não apenas na disputa dos espaços tradicionais da política partidária e nem só nos veículos comerciais de comunicação. O ano de 2011 não foi um ano comum. E é muito provável que venha a ser o ano da saída da adolescência de um movimento que mistura política, redes, circulação de informação e outras formas de ativismo, que se iniciou lá em 1994 como zapatistas e foi testando formas até descobrir que suas formas são múltiplas e disformes. F dezembro de 2011
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A universidade não precisa de polícia S
empre que ocorre um crime grave em uma comunidade, a consequência imediata é um pânico social. A reação instintiva é buscar hipóteses que, caso estivessem implementadas, poderiam ter evitado o crime. É assim na reunião de condomínio após o arrombamento no prédio e é assim também, com a devida ampliação exponencial, nas reportagens da mídia após atentados terroristas. Todos buscam soluções mágicas para evitar, a todo custo, que a situação se repita. E é também logo após esses crimes de grande repercussão que todos se tornam mais dispostos a trocar parte de suas liberdades individuais por um aumento na vigilância que supostamente lhes garantiria maior segurança. Um porteiro para o prédio, nunca antes aventado, passa a ser defendido na assembleia de condomínio como panaceia para o problema, ainda que isso implique um aumento de gastos. E leis que dão maiores poderes à polícia são facilmente aprovadas nos parlamentos, ainda que direitos fundamentais de todos os cidadãos tenham que ser cerceados. A velha barganha de se trocar liberdade por segurança, que tanto tem alimentado o autoritarismo ao longo da história.
Nas universidades, não é diferente. O lamentável episódio do homicídio do estudante Felipe Ramos de Paiva no campus da Universidade de São Paulo (USP), em maio deste ano, tornou-se o argumento decisivo dos que defendem a presença da
Polícia Militar não só na Cidade Universitária da USP, mas também nos campi de várias
outras universidades públicas do país. E, na ânsia de legitimar a presença da polícia nas universidades, esquecem-se de que a Polícia Militar estava no campus em horário próximo ao crime, mas não foi capaz de evitá-lo. Pior: esquecem-se de que não é atribuição da Polícia Militar fazer a segurança dos campi universitários.
Desvio de função
A USP, assim como grande parte das universidades públicas brasileiras, é uma autar-
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As universidades públicas, ao contrário das ruas e praças, não são espaços de uso comum do povo e têm seus estatutos e regimentos específicos. A Polícia Militar, por não estar sujeita às normas universitárias, não é o órgão competente para fazer a segurança interna dos campi
quia. E dentre as atribuições constitucionais das Polícias Militares não está a de fazer a segurança de autarquias. A imensa extensão de muitos campi universitários, em especial o da USP, poderia levar à falsa percepção de que se trata de locais públicos como outros quaisquer e, portanto, sujeitos ao policiamento da PM, mas isso não é verdade. Nem todo bem público é acessível a qualquer pessoa. Há os bens públicos de uso comum que podem ser usados por qualquer pessoa do povo, como ruas, praças, estradas etc., mas há também os bens públicos de uso especial, que são destinados a uma determinada atividade pública específica, como, por exemplo, os prédios das repartições públicas e das universidades. Cabe à Polícia Militar realizar o policiamento ostensivo em locais de uso comum, mas os prédios e terrenos das autarquias são propriedades de uso especial e, como tais, estão sujeitos à responsabilidade dos chefes destas autarquias. É por isso que não se vê PMs fazendo a segurança dos prédios do Banco Central do Brasil, do Incra, do INSS e do Colégio Pedro II. A segurança dos prédios das autarquias deve ser organizada e paga pela própria autarquia com os recursos de seu orçamento. Isso porque as autarquias possuem autonomia administrativa, e os policiais militares, não sendo funcionários do órgão, ficariam na absurda situação jurídica de serem servidores públicos em serviço no prédio da autarquia sem estarem sujeitos às ordens do chefe da casa. Os órgãos públicos, sejam eles quais forem, estão concebidos a partir de uma organização hierárquica, que pressupõe um comando único. A presença de policiais militares em serviço em uma autarquia pode gerar situações absurdas nas quais as ordens do chefe da autarquia são desrespeitadas, já que os policiais não se subordinam ao seu comando. Um caso paradigmático, ocorrido em abril de 2008 na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ilustra bem o problema de se ter uma polícia não sujeita ao estatuto e ao regimento da universidade em serviço no campus. Alunos do Instituto de Geociências (IGC) da UFMG promoviam a exibição do documentário Grass (1999), que trata da descriminalização da maconha, quando foram interrompidos pela Polícia Militar, que proibiu a execução do filme com o surreal argumento de tratar-se de apologia às drogas. No caso em questão, a ação da polícia foi lamentavelmente solicitada pela
própria direção da faculdade e, portanto, não houve um conflito de orientações. Em tese, porém, seria perfeitamente possível imaginar uma situação na qual a polícia desejasse proibir a exibição do documentário sobre a legalização das drogas (ou um seminário ou qualquer outra atividade acadêmica) e a direção da faculdade autorizasse a atividade. Então, ter-se-ia a absurda situação de servidores públicos armados dentro da universidade, desrespeitando as ordens de quem tem, por determinação constitucional, autonomia universitária.
Guarda universitária
A presença da Polícia Militar nos campi das universidades públicas brasileiras é uma aberração jurídica que só pode ser superada com a criação das guardas universitárias ou do seu fortalecimento onde ela já existe, como é o caso da USP. As guardas universitárias são de responsabilidade única e exclusiva dos órgãos de direção da universidade, e eventuais abusos podem ser muito mais facilmente prevenidos e solucionados internamente. Claro que nada impede que, como em qualquer autarquia, a Polícia Militar seja chamada, caso necessário, a comparecer ao local para reprimir um crime que esteja ocorrendo. A segurança cotidiana da autarquia, porém, deve ser realizada por uma guarda interna, que deverá ser treinada tal como qualquer segurança de universidades particulares. Se é possível às universidades particulares fazerem a segurança de seus campi sem a necessidade da presença da Polícia Militar, também é perfeitamente possível que as universidades públicas assim o façam. É bem verdade que os campi das universidades públicas, em regra, são bem maiores e mais complexos que os da maioria das particulares, mas seu orçamento também é maior, e parte dele precisa ser destinado à garantia da segurança interna. Isso não quer dizer também que os universitários terão imunidade para usarem drogas dentro do campus, o que parece ser a preocupação prioritária dos moralistas de plantão. A lei penal vale dentro e fora dos prédios das autarquias, e caso pratiquem qualquer crime, poderão ser responsabilizados por eles. Quem deve decidir, porém, se a prioridade da guarda universitária é prevenir homicídios e estupros ou combater o uso de drogas é a direção da universidade, por meio de seus órgãos colegiados representativos de professores, alunos e funcionários. Ao
abrir as portas do campus para a PM, deixase ao arbítrio da própria polícia decidir quais crimes desejam prevenir prioritariamente. Na ausência de recursos para se evitar todos os crimes e na ânsia por combater o uso de drogas, a PM pode acabar deixando de combater os crimes em razão dos quais foi convidada a entrar no campus, que são justamente aqueles que colocam em risco a vida e a integridade corporal da comunidade acadêmica. Já a guarda universitária, como qualquer outro serviço de segurança, deve ser concebida para proteger prioritariamente a integridade física e o patrimônio das pessoas que frequentam o local. Se eventualmente flagrarem outro tipo de crime sendo praticado, podem e devem agir, até porque, na maioria das vezes, tais crimes também constituem infrações disciplinares previstas nas normas internas da universidade. Mas quem deve pautar as prioridades da guarda universitária é a própria comunidade acadêmica, por meio de seus representantes nos órgãos de direção. Evidentemente, haverá gasto de dinheiro público para organizar e equipar as guardas universitárias. É preciso lembrar, porém, que a presença da Polícia Militar nos campi também custa dinheiro aos cofres públicos e ainda tem o inconveniente de retirar os policiais que deveriam estar velando pela segurança de pessoas que transitam por bens de uso comum para realizarem serviço típico de seguranças em autarquias, que atendem apenas uma parcela limitada da população. É preciso que se compreenda que uma coisa é serviço de segurança de instituição de ensino e outra é policiamento de locais de uso comum do povo. Situações distintas precisam de profissionais com treinamentos diversos e, principalmente, subordinados a autoridades diversas, para cumprirem bem seus papéis. Procurar resolver os problemas de segurança nos campi universitários por meio de convênios com a Polícia Militar nada mais é que o famigerado “jeitinho brasileiro”, cuja inconstitucionalidade já teria sido alardeada, não fosse o discurso conservador que insiste obsessivamente em levar a Polícia Militar para dentro dos campi mais com objetivos moralizantes de combate às drogas de que como solução para os efetivos problemas internos de segurança universitária. F TÚLIO VIANNA, professor da Faculdade de Direito da UFMG.
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mulher
Brasil: campeão da América do Sul em desigualdade de gênero por Cynthia Semíramis
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ecentemente, o Fórum Econômico Mundial divulgou o relatório e ranking 2011 do Global Gender Gap, que mede o índice mundial de desigualdade de gênero. Dos 134 países estudados, o Brasil ocupa atualmente o 82º lugar. Como em 2010 estávamos em 85º lugar, esta melhora no ranking seria um motivo para comemoração. No entanto, não há motivo para isso. Desde 2006, quando foi feito o primeiro estudo, que classificou o Brasil como 67º no ranking dos países mais igualitários, o que se viu foi a queda nessa posição: 74º (2007), 73º (2008), 81º (2009), 85º (2010). Mesmo nos momentos em que houve uma recuperação mínima no índice, nota-se uma grande distância em relação ao resultado de 2006. É importante ressaltar que o resultado atual (82º lugar) coloca o Brasil em último lugar da América do Sul. Ou seja, por mais que o Brasil seja considerado uma potência econômica e política na região, está pior que os países vizinhos quando se trata de garantir a igualdade entre homens e mulheres.
Entendendo o Global Gender Gap
O Global Gender Gap é uma análise de dados obtidos em outras pesquisas, que procura identificar disparidade de gênero nos paí ses. No relatório de 2006, foram analisados dados de 115 países. Esse número cresceu com o passar dos anos e desde 2009 são 134 os países estudados. A pesquisa é feita por meio da análise da participação de homens e mulheres em quatro áreas temáticas consideradas fundamentais: participação econômica, educação, saúde e poder político. Cada uma dessas áreas é estudada através de variáveis obtidas por
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Mesmo sendo considerado uma potência econômica e política na região, o país está pior que vizinhos quando se trata de garantir a igualdade entre homens e mulheres meio de pesquisas de diversas instituições internacionais. O Global Gender Gap utiliza pesquisas feitas pela Organização Internacional do Trabalho, Fórum Econômico Mundial, Unesco, CIA, Organização Mundial de Saúde e União Interparlamentar. Obviamente, não se trata de um sistema perfeito de análise. Muitas outras pesquisas e variáveis poderiam ser utilizadas, envolvendo questões de raça, classe, juventude e maternidade/paternidade, e que certamente trariam um resultado mais matizado em relação à igualdade de gênero. Mas, a partir dos resultados atuais, já é possível, mesmo para um leigo, concluir que falta muito para o Brasil ter igualdade de gênero, e inclusive perceber onde estão alguns problemas graves nessa questão.
Saúde
O Brasil sempre ocupou a primeira colocação no ranking do Global Gender Gap quando a área temática é a saúde. Porém, antes de nos alegrarmos com esse resultado, é importante saber que as variáveis para a área de saúde são bem simples: expectativa de vida e proporção de nascimentos entre homens e mulheres. Certamente, se fossem utilizadas outras variáveis como mortalidade infantil ou expectativa de vida em relação à raça, e até mesmo o impacto de políticas para a redução da pobreza, os resultados seriam bem diferentes. É interessante observar que, ao longo dos anos, a expectativa de vida masculina vem se aproximando da feminina. Se antes a
expectativa era de 62 anos para mulheres e 57 para homens, atualmente a expectativa é de 66 anos para mulheres, e 62 para homens. Isso pode ser resultado direto das políticas públicas e do cuidado universal com a saúde feito pelo SUS.
Educação
Esta é outra área temática cujos critérios são bem simples, mas reveladores: compara a alfabetização, escolaridade primária, secundária e em nível superior, de homens e mulheres. É importante lembrar que mulheres serem escolarizadas é uma situação bastante recente. No início do século XX, as mulheres eram em regra analfabetas, pois não se considerava necessário que aprendessem mais do que que limpar uma casa, costurar, cozinhar e cuidar das crianças – questões que não eram ensinadas nas escolas. Diversos fatores, inclusive a pressão das feministas, fizeram com que as mulheres tivessem o direito de serem escolarizadas. O resultado é que as mulheres entraram no século XXI com mais anos de estudo e maior escolaridade que os homens. Inclusive isso fica nítido no Global Gender Gap: as mulheres brasileiras ultrapassaram os homens nos estudos de terceiro grau. Os índices brasileiros são altos, especialmente em relação ao acesso à educação. No entanto, o Brasil vem caindo no ranking: estava em 32º lugar em 2009, e agora está em 66º. O motivo é a desproporção em relação à educação primária e secundária: nos últimos anos a proporção de meninas estudando é menor do que a de meninos.
Essa disparidade gera problemas a longo prazo, pois a escolarização primária, além de ser requisito para iniciar a secundária, é fator importante para aumentar oportunidades e romper o ciclo de pobreza (que atinge majoritariamente mulheres). Se as meninas não estão na escola primária, é importante identificar por que não estão estudando, e políticas públicas precisam ser colocadas em prática imediatamente para evitar que essa falha na formação educacional as impeça de estudar e gere desigualdade na vida adulta.
muito a ser feito para melhorar a situação econômica das mulheres brasileiras, há ao menos uma boa notícia: a desproporção em relação aos salários anuais de mulheres e homens existe e é bastante acentuada, mas vem diminuindo. Está longe de haver paridade de salários, mas a diferença de mais de R$ 6 mil entre salários de homens e mulheres em 2006 atualmente está em cerca de R$ 5 mil. Nota-se ainda que tem havido o aumento na renda das mulheres, sem diminuição da renda masculina. Pode parecer pouco, mas, a cada vez que essa distância diminui, sem perda de salário para ambos os sexos, é um bom passo em direção à igualdade de gênero e à diminuição da pobreza.
Participação econômica
Poder político
Os critérios do Global Gender Gap para o poder político são bem simples: percentual de mulheres no Parlamento, percentual de mulheres nos ministérios e número de anos nos quais houve uma mulher como chefe de Estado ou de governo. Em todos esses critérios o Brasil está entre os piores do mundo, ocupando a 114ª posição no ranking político. Os dados do ranking estão atualizados apenas no que se refere a termos uma presidenta. Em relação a ministérios e poder legislativo os dados se referem a 2010: eram apenas 9% de mulheres no Parlamento, e 7% de mulheres ocupando ministérios no governo Lula. Dilma Rousseff está no poder há um ano, com um ministério composto por cerca de 25% de mulheres. Mas isso não é suficiente para melhorar o
O alto grau de escolarização das mulheres não têm se refletido no poder político
Marcelo Casal Jr. / ABr
Os critérios do Global Gender Gap para análise econômica são a participação na força de trabalho, a igualdade de salários para trabalho igual, a renda auferida, a proporção de legisladoras, cargos de gerência e de alto escalão, e a proporção de mulheres trabalhando em cargos técnicos. Em relação a esse ranking específico, o Brasil já esteve no 59º lugar, caiu para 75º em 2009, e agora encontra-se no 68º. Porém, esses índices variam para cada um dos critérios adotados. A igualdade em cargos técnicos está em 1º lugar no ranking, enquanto a igualdade de salários vem caindo ano após ano no ranking: em 2008 o Brasil estava em 100º lugar, e em 2011 encontra-se em 124º. Lembrando-se que, dentre os 134 países avaliados pelo relatório, o Brasil está nos últimos lugares quando se trata do pagamento de salário igual para trabalho igual. Cargos de gerência, legisladoras e alto escalão ainda estão restritos a 36% das mulheres, enquanto que há igualdade nos cargos técnicos. Fica evidente, assim, o teto de vidro que impede as mulheres de ascender profissionalmente. Levando-se em conta que as mulheres têm mais escolaridade que os homens, é importante identificar por que há, ainda, essa disparidade no acesso a altos cargos. A participação das mulheres na força de trabalho ainda é menor que a dos homens, seus rendimentos também são menores que os dos homens, e sua taxa de desemprego é maior do que a dos homens. Essa desigualdade é bastante complicada quando lembramos que pelo menos um terço das famílias brasileiras é mantida economicamente apenas por mulheres. Se mulheres não têm acesso ao mercado de trabalho formal, têm salários 2/3 menores que os dos homens e taxa de desemprego maior, fica nítida a demanda por igualdade de gênero e políticas públicas específicas para modificar essa situação e evitar a perpetuação do ciclo de pobreza. Apesar de esses dados indicarem que há
quadro de participação política, pois a presença feminina no Legislativo ainda é ínfima: segundo o Cfemea, as mulheres foram eleitas para 8,77% das cadeiras da Câmara dos Deputados e 13,28% do Senado Federal (eram 14,81% na legislatura anterior). Porém, o número de mulheres senadoras certamente é menor, tendo em vista que Ideli Salvatti e Gleisi Hoffmann, ao se se tornarem ministras do governo Dilma Rousseff, abriram espaço para seus suplentes, que são homens. O alto grau de escolarização das mulheres e a ascensão cada vez maior no mercado de trabalho não têm se refletido no poder político, que continua predominantemente masculino. É importante ampliar essa discussão, de forma a encontrar alternativas para empoderar as mulheres, possibilitando seu acesso também ao poder político. Por fim, o Global Gender Gap deixa bastante claro que é impossível haver igualdade de gênero sem que haja também igualdade política, para que as próprias mulheres decidam como as leis e políticas públicas devem solucionar os problemas de seu cotidiano, ao invés de terem essas situações mediadas por homens, que atualmente são os detentores do poder político. O Brasil tem um bom índice educacional (com falhas), tem um bom índice de saúde (certamente com falhas). No entanto, o poder econômico e especialmente o poder político ainda são inacessíveis para a maioria das mulheres. É necessário mudar isso para que a situação das mulheres melhore, proporcionando uma efetiva igualdade de gênero. F
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Cadernos do Pensamento Crítico Latino-Americano
Os avatares do pensamento 1 crítico, hoje por hoje por Eduardo Grüner*
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que significa a expressão “pensamento crítico” nos dias de hoje? De que maneiras essa noção – que outrora identificávamos facilmente com nomes como o de Sartre, o dos membros da Escola de Frankfurt, o de Fanon ou o de certos pensadores “comprometidos” da América Latina ou do Terceiro Mundo – transformou-se (e alguns opinam que desapareceu) juntamente com as profundas transformações (mas serão realmente tão profundas?) que o mundo sofreu nas últimas décadas, desde a “queda do muro (de Berlim)” até a das Torres Gêmeas (e todas as suas consequências), passando pela reconversão tecnológico-financeira do capitalismo e da chamada “globalização”? E, mais exatamente, o que tudo isso quer dizer hoje e aqui? O que é um pensamento crítico propriamente latino-americano? De que maneira ele se assemelha a – e se diferencia de – outras formas “regionais” (europeias e inclusive “eurocêntricas”, por exemplo) do pensamento crítico? Não seremos os primeiros nem os últimos a fazer essas perguntas nem a esclarecer que no restante deste texto não se encontrarão respostas para elas, e sim mais perguntas sobre essas perguntas. E não porque nos agrade alguma ética – ou estética – da incerteza, mas sim porque fazer uma reconsideração das desventuras do pensamento “crítico” hoje demanda uma disposição, antes de qualquer coisa, interrogativa, sem que isso nos impeça de modo algum de fazer certas afirmações, por vezes duras.
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Vamos começar identificando o que temos de um lado, o “lado” daquilo que em outra época teríamos chamado de o fundamento material. Está o que Istvan Mészàros chamou de processo sociometabólico do capital (e não somente do capitalismo, já que a lógica desse processo pode tanto anteceder como sobreviver aos regimes sociopolíticos que se identificam com ela): um processo que incluía os denominados “socialismos realmente existentes”, e que certamente vai muito além da economia, para colonizar a totalidade do “mundo da vida” até seus recônditos mais íntimos, sob a lógica matricial do fetichismo da mercadoria, essa verdadeira metafísica do capital (Mészàros, 2002). Esse processo sociometabólico entrou em sua fase de crise terminal. E, como veremos, essa não é uma afirmação irresponsavelmente otimista, muito menos pessimista. É simplesmente a constatação de que aquele processo sociometabólico chegou ao seu limite. E isso ocorreu sem que ainda se tenha conseguido articular – tanto em termos teóricos como de práxis social-histórica e político-cultural – um 1
texto do presente Caderno é um fragmento de Grüner, Eduardo “Los avatares del O pensamiento crítico, hoy por hoy” em Grüner, E. (Compilador) Nuestra América y el pensar crítico: fragmentos del pensamiento crítico de Latinoamérica y el Caribe. Buenos Aires, CLACSO, 2011. Disponível em www.biblioteca.clacso.edu.ar.
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modelo contra-hegemônico viável de substituição do laço social articulado nos últimos 500 anos sobre o fundamento da “religião da mercadoria”. Dessa religião que, embora de maneira “weberiana” se possa pensar que teve sua própria condição de emergência “espiritual” em algum (ou em todos, cada qual a sua maneira) dos grandes monoteísmos universais, é a religião que em toda a história teve um impacto mais profundo no funcionamento “objetivo”, inconsciente, de todas e de cada uma das práticas humanas. Esta é a radical diferença específica entre a religião do capital e qualquer outra religião: o fato de que, como diria Foucault sobre o poder (e de que outra coisa estamos falando, senão do poder?) não se limita a impedir, a reprimir, a enquadrar ou a dominar os sujeitos, mas os produz, de maneira análoga a como Horkheimer e Adorno, nas páginas célebres de A indústria cultural – um conceito que para eles tinha um alcance filosófico, inclusive ontológico, descomunal, assim como o de mais valia ou fetichismo tinha para Marx – em que teorizam os modos pelos quais a racionalidade instrumental não apenas cria “objetos”, mas sim sujeitos para esses objetos (Horkheimer e Adorno, 1997). É uma religião, portanto, para a qual não há (nem pode haver, porque sua lógica intrínseca nem sequer contempla essa possibilidade) ateísmos, agnosticismos, heresias, debates de seita: todas essas coisas estão, por definição, dentro do templo, porque não se trata nela da fé ou da crença – ou da falta delas –, mas disso que agora é chamado de biopoder: sucintamente, a própria organização da vida (e da morte) humana sob o sociometabolismo do capital, e para a qual se diz que “não há alternativa” (é possível pedir maior fundamentalismo do que este?). E é uma religião que não apela mais sequer à persuasão ou ao consenso ideologicamente construído, porque só lhe interessam as condutas reprodutivas, “proativas”, do sociometabolismo – como se tivesse seguido perversamente aquela lição irônica de Pascal, que recomendava nunca tentar persuadir um agnóstico, mas simplesmente obrigá-lo a entrar na igreja, ficar de pé diante do altar e rezar, porque então “logo irá crer” (e, de fato, que outro remédio há para o pobre agnóstico? Se ele já chegou até ali, será impossível ser como antes. Como dissera Borges: “Não abra essa porta, porque você já está dentro”). Uma religião que, portanto, não reclama sequer obediência, já que não contempla outra opção: atuar, viver, dentro do sociometabolismo do capital, já é obedecer. […]
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Do outro lado, a reflexão filosófico-cultural das últimas duas décadas tem abandonado progressivamente o terreno do Político, esse terreno no qual ainda podia se esperar a criação de alguma alternativa ao capital (que já não era a dos “socialismos reais”, cujo maior mal
entendido, por não estarem atentos ou serem impotentes para fazer essa distinção, foi acreditar que sair do capitalismo era suficiente para conseguir escapar da “jaula de ferro” do capital): terreno absolutamente imprescindível para a própria sobrevivência da humanidade, se é que se aceita a premissa de que o capital não é “reformável”. Não estamos dizendo simplesmente que Marx tenha sido abandonado: diga-se desde já que esse “abandono” nos parece lamentável, apesar das muitas “correções” que o próprio Marx não somente necessitaria, mas que o mesmo demandaria (outra coisa são nossos “marxismos” mais ou menos oficiais, que acreditam, ainda no fim de suas múltiplas e insistentes crises, estar ainda em plena posse de um conjunto de verdades acabadas: eles são, portanto e por definição, incorrigíveis). Finalmente, ainda não temos – bom seria se tivéssemos – uma teoria crítica do capital que possa pelo menos competir com a de Marx pelo posto do que Sartre chamava de “o horizonte insuperável do nosso tempo”. E isso não é algo do qual devamos nos orgulhar. […] E sabe-se que o pensamento, mesmo o mais pretensamente “crítico”, entra em pânico diante da margem do absolutamente real, que não parece mais reconhecer a existência de nenhuma possível mediação. Como afirma León Rozitchner, quando o mundo não sabe o que fazer, a filosofia não sabe o que pensar. Essa é uma frase que recupera, de modo sucinto e exato, a diferença decisiva introduzida pelos dois únicos pensadores (seria preciso dizer: “pensadores-atores”) da modernidade europeia, Marx e Freud, que – sejam quaisquer que tenham sido seus “erros” – nunca conceberam sequer a possibilidade, não digamos mais de pertinência, de uma teoria “pura”: toda teoria, para eles, é, saiba ou não seu autor, uma teoria da prática – da prática, para completar, social: como indica claramente Sartre, a filosofia contém sempre um “momento” político, no sentido mais amplo e mais estrito de uma tentativa de organização, no plano do discurso e do pensamento, do aparente caos das forças sociais que estruturam o real (Sartre, 1964). Aqui nos ocuparemos, principalmente, daquilo que se costuma chamar de “pensamento”: de sua especificidade frequentemente irredutível de maneira especular a mero “reflexo” da práxis social; inclusive das maneiras pelas quais por vezes o pensamento pode antecipar, ou outras vezes resultar em um excesso ou um “suplemento” com relação às práticas sociais. Mas sempre será necessário levar em conta a relação entre ambos, uma relação em muitos momentos desconhecida e ainda incognoscível, essa relação que dá sentido etimológico à canônica expressão de “autonomia relativa” (em outras palavras, autonomia em relação a) do pensamento e do discurso: essa relação, nós sabemos, também pode ser de ausência ou de “forclusão”; mas está ali, deslocada, “metonimizada” em algum imaginário por meio do qual, cedo ou tarde, o real “retorna do reprimido”. Para retornar, portanto, a enorme dificuldade do pensamento chamado “crítico”, hoje parece que esse retorno está acontecendo em uma velocidade tão vertiginosa e dramática que, de fato, “o mundo não sabe o que fazer”, e “a filosofia não sabe o que pensar”. Fato que também devemos ao capital, desde o princípio. O regime, a lógica, a “ontologia” própria do capital é por excelência despolitizadora: desde pelo menos Hobbes, o triunfo da “sociedade civil”, ou seja, da “economia política”, é o exílio do político – não dizemos do Estado que, como Marx advertiu perfeitamente, é a funcionalidade autônoma da economia política. A modernidade, essa lógica cultural do capitalismo antecipado, gira sobre a redução do político à política, ou seja, à técnica, ou seja, à economia política.
Em Hobbes, pelo menos essa operação ainda constituía um problema, para o qual deveria se encontrar uma solução. A partir de Locke, fica eliminada a pergunta; a “sociedade” se dá por feita (a astúcia do “duplo contrato” permite que sua constituição já não seja problemática), e a política é pouco mais do que seu apêndice administrativo. Naturalmente não temos a pretensão soberba de sermos os únicos a terem chamado atenção para essa dificuldade. De fato são muitos os que – principalmente e com toda lógica nos círculos intelectuais “periféricos” – manifestam sua inquietação, seu desassossego ou sua angústia por essa impotência da teoria crítica. Talvez – é apenas uma ocorrência súbita – o problema seja exatamente o inverso: é uma onipotência herdada (“iluminista”, para chamá-la de alguma maneira) do pensamento dos “intelectuais” que agora, por contraste, faz parecer impotência o que talvez seja – e não é que seja pouca coisa – uma (como chamá-la?) deslocação. Nesse sentido, queremos dizer que o sociometabolismo do capital engoliu a própria “máquina de pensar” produtora de teoria crítica. Não estamos nos referindo aos “traidores”, aos “vendidos”, aos “conversos” ou aos “arrependidos” que sonham – e normalmente são frustrados em suas aspirações – em colocar o capital do seu lado (e não é essa a mais irrisória e patética das soberbas? Como se o capital precisasse deles ou se importasse minimamente com seu pensamento! Já não estamos em tempos dos “ideólogos”, e o capital não mais requer racionalizações nem justificativas que, na situação atual, são completamente inverossímeis: o capital simplesmente segue em frente; e é exatamente por isso que a crítica mais importante hoje é a que possamos fazer entre nós, os que dizemos estar “do mesmo lado”): esses idiotas inúteis sempre existirão, e não têm nenhuma importância. […] De qualquer modo, o que é esse O Político, que deveria ser repensado? Como sequer começar a defini-lo? Digamos sobre ele pelo menos isto: implica, no mínimo, o duplo esforço de, em primeiro lugar, alterar os modos de pensamento do sociometabolismo do capital para fazer des-naturalizáveis suas evidências: “não há alternativa” deve se converter em uma verdade apenas para os personificadores do capital; e em segundo lugar, portanto, é preciso imaginar o funcionamento real das possíveis alternativas, dessa retomada do “laço social” sobre outro metabolismo. Essa última é a tarefa mais difícil: para aspirar algum nível de eficácia, tal imaginário requer um diálogo permanente – e nesse diálogo é necessária uma também permanente redefinição – com as forças sociais capazes de colocá-lo em prática; e, como dizíamos, o nível de deleite identificante das massas com o capital (que não é alterado substantivamente pelas muitas e heroicas formas de resistência aos “erros e excessos” da exploração) é estranhamente poderoso: nenhum “sistema” anterior havia conseguido se introduzir de maneira tão indelével na gramática libidinal dos sujeitos sociais, de modo que todos, hoje, falamos e pensamos na língua do capital. E como se sabe, não é um trabalho simples inventar uma nova língua. Para completar, não temos, por assim dizer, antecedentes sintáticos, um “código” sobre o qual podemos minimamente nos apoiar. Acreditamos que uma vez o tivemos – com todas as críticas e a reservas correspondentes a uma vontade extradogmática – nisso que se chamava, muito vagamente, de “revolução”. Mas as revoluções realmente existentes, as que realmente foram feitas (repito, com todo o heroísmo inegável dos casos particulares-históricos), da maneira que foi possível e aquém de nossas ilusões purificadoras, nunca conseguidezembro de 2011
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essa “revolução” na qual estivemos pensando não tem por que ser a única possível. E não está escrito que esses “novos-velhos” sujeitos – muito em particular indígenas e afro-americanos, que ocupam esse singular lugar sem lugar, que luta hoje para recuperar sua historicidade diferencial canibalizada pela história dos vencedores – não possam conceber e construir novas formas de articulação com o proletariado. Mas os mecanismos, as formas de práxis, os próprios objetivos e a teoria dessa outra “revolução” terão de ser reconcebidos. Portanto, é preciso inventar essa “nova língua” sem código prévio (não é tarefa de todo impossível: certas formas da arte o fizeram muitas vezes; o problema é que, desde o Renascimento até hoje, essas formas ficaram sempre ocultas no sociometabolismo do capital: agora é preciso ir buscá-las no Museu). A “revolução”, nos diversos sentidos nos quais a (mal) entendemos, já não é o significante que poderá nos inspirar. Talvez, e com alguma razão, não queiramos – como havia proposto Freud – renunciar à palavra, sabendo que esse é o primeiro passo em direção à renúncia da coisa. Mas, então, é preciso voltar a pensar a “coisa”. É outra maneira de dizer: voltar a pensar O Político. Sejamos impertinentes: não é o que está sendo feito. Pelo menos não é o que estamos fazendo aqueles de nós que passamos por “intelectuais críticos” (já deveríamos estar cansados de saber: não basta anunciar-se como “crítico” para que a palavra tenha efeito). Os que continuam pensando naquela “revolução”, infelizmente não contam mais: não se trata apenas de não serem mais empecilho algum para o capital, mas de distraírem aqueles que querem sê-lo da verdadeira tarefa; aqueles que queiram pensar à frente sobre esses hipotéticos “empecilhos”. […] Como citar este documento: Grüner, Eduardo. “Los avatares del pensamiento crítico, hoy por hoy” em Cuadernos del Pensamiento Crítico Latinoamericano Nº 47. CLACSO, outubro de 2011. Publicado em La Jornada do México, Página 12 da Argentina e Le Monde Diplomatique da Bolívia, do Chile e da Espanha.
* Sociólogo, ensaísta, crítico cultural. Professor de Antropologia da Arte (Faculdade de Filosofia e Letras, UBA) e de Teoria Política II (Faculdade de Ciências Sociais, UBA). Ex-diretor e atual membro do Comitê Acadêmico do Instituto de Estudos de América Latina e do Caribe (UBA).
Os Cadernos de Pensamento Crítico Latino-Americano constituem uma iniciativa do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO) para a divulgação de alguns dos principais autores do pensamento social crítico da América Latina e do Caribe. São publicados mensalmente nos jornais La Jornada do México e Página 12 da Argentina e nos Le Monde Diplomatique da Bolívia, Chile, Colômbia, Espanha, Peru e Venezuela. No Brasil, os Cadernos do Pensamento Crítico são publicados em parceria com a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO) na Revista Fórum.
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ram gerar essa nova língua (com exceção, talvez, como ocorreu sob o stalinismo, sob o regime entre medíocre e sinistro da NeoLíngua orwelliana): porque identificaram o político com a política, porque acreditaram que bastava, por exemplo, mudar o regime jurídico de propriedade privada pelo de propriedade estatal, ficando enredadas no sociometabolismo do capital. Não perceberam que o “Estado moderno” – que não pode ser considerado como mero e “superestrutural” instrumento –, sob qualquer de suas formas múltiplas e maleáveis, é uma parte constitutiva e íntima – e não uma “superestrutura” em relação de exterioridade – do capital. Mais além do capitalismo não significa mais além do capital: nos estados burocráticos-autoritários dos “socialismos reais” as “estruturas de comando” deste último permaneceram inalteradas em sua essência e, pior ainda, como consequência do isolamento, sem opções para seu necessário e explícito autoritarismo, também às vezes, como sabemos, precipitado no Terror de Estado: “Stalin” (as aspas dão a esse nome seu valor emblemático) foi uma função do capital. Como o foi, sem dúvida, “Hitler”. Mas com essa diferença qualitativa – não nos deixaremos encurralar na teoria dos dois demônios do totalitarismo: há um único totalitarismo, e é o do capital; de Marx, não era evidente que se deduzisse “Stalin”; de “Hitler”, só poderia sair Hitler. “Stalin”, portanto, é a máxima astúcia da razão do capital. De qualquer maneira, é preciso ser sincero: hoje em dia, ninguém acredita seriamente na “revolução”; pelo menos no sentido “clássico-moderno” que teve esse conceito a partir de sua invenção pela Revolução Francesa. Se a social-democracia a abandonou há um longo século, certa micro-partidocracia de esquerda “revolucionária” – que continua chamando a si mesma assim por inércia: na verdade é um tipo de marginalismo luddita que deixou há muito tempo de ler Marx, Lênin ou Trotsky; não que tenha deixado de ler a “realidade”, porque mantém a palavra na ponta da língua, mas a modo de desagrado significante flutuante em busca de seu significado. A classe operária internacional – a que resta – há muito tem justificado a irônica expressão adorniana de um “marxismo sem proletariado”: está ocupada demais em sobreviver de alguma maneira, ou sufocada demais pelo peso do que outrora chamávamos de “burocracia sindical”, ou farta demais (e com razão) de ser apenas um monumento de mármore erguido em memória do sujeito histórico. Os “novos sujeitos sociais” (muitos deles nada resplandecentes em seu em si, mas descobertos nas últimas décadas como para si) – as mulheres, os sujeitos “étnicos”, os “povos originários”, os “verdes”, os grevistas, os desempregados, os “globalofóbicos”, os fórum-social-mundialistas, os gays e lésbicas, os transexuais, os “intervencionistas urbanos”, os squatters e até os hackers e os “consumidores” – podem ser, em muitos casos, muito e “bem-vindamente” radicais, decididamente simpáticos e expressivos da diversidade e multiplicidade sociocultural, assim como da crise de uma política (ou políticas) impotente(s) para representá-los ou de multidões inclassificáveis e amorfamente inarticuláveis etc. Inclusive, como os indígenas – é o caso recente da Bolívia e parcialmente do Equador – podem se aproximar da casa de governo. Mas sejamos realistas e vejamos o possível: nenhum deles, nem uma hipotética articulação unificadora entre todos, questiona de maneira decididamente revolucionária o sociometabolismo do capital. Aqui é preciso se render à evidência, mesmo a mais empiricamente “científica”: em um sentido estritamente “marxiano”, se a mola fundamental do capitalismo é a fórmula mais valia/exploração/alienação do trabalho, a “revolução” na qual estivemos pensando será feita pelo proletariado, ou é melhor pensarmos em outra coisa. Logicamente,
CLACSO é uma rede de 300 instituições, que realizam atividades de pesquisa, docência e formação no campo das ciências sociais em 28 países (www.clacso.org).
FLACSO é um organismo internacional, intergovernamental, autônomo, fundado em 1957, pela Unesco, que atua hoje 17 Estados Latino-Americanos (www.flacso.org.br).
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Os esquecidos da Região Serrana texto e fotos por Pedro Venceslau
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ntre a noite do último dia 11 de janeiro e a manhã do dia seguinte, um temporal de proporções épicas atingiu a região serrana do estado do Rio de Janeiro. Em 24 horas, choveu o previsto para o mês inteiro. Nos dias seguintes, as imagens da catástrofe e o número de mortos não deixaram dúvidas: aquela foi a maior tragédia climática da história do Brasil. Entre deslizamentos de terra e enchentes, morreram oficialmente 800 pessoas. Outras 400 estão desaparecidas e pelo menos 30 mil sobreviventes ficaram desalojados ou desabrigados. Segundo moradores, o número de mortos é muito maior, uma vez que, em meio ao caos, muita gente simplesmente abandonou os corpos de familiares e não registrou ocorrência. Semanas depois, doenças como leptospirose tomaram de assalto os moradores. Diante do cenário de terra arrasada, representantes dos governos federal e estadual se mobilizaram e prometeram investir o que fosse preciso para reerguer as cidades de Nova Friburgo, Teresópolis, Petrópolis, Sumidouro, São José do Vale do Rio Preto, Bom Jardim e Areal. Quase um ano depois, às vésperas de outro verão chuvoso, Fórum visitou a região para saber o que feito e como estão vivendo os sobreviventes da tragédia.
“Vocês estão medindo minha casa pela metade”
O caminho até o ponto final do Vale do Cuiabá, em Itaipava, distrito de Petrópolis, é longo. São pelo menos 30 minutos de ônibus entre o centro petropolitano e Itaipava, onde fica a fábrica de cerveja de mesmo nome, e outros 40 até a região que foi devastada pelas chuvas de janeiro. O lugar é famoso por abrigar mansões luxuosas de políticos e capitães da indústria fluminense, haras e pousadas chiques. Moradores contam que, semanas depois
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Moradores se desesperam ao menor sinal de chuva, desabrigados sofrem com desinformação, obras andam em ritmo lento e corrupção draga recursos da reconstrução. Quase um ano depois, Fórum conta histórias desoladoras da região que protagonizou a pior tragédia climática brasileira
O cenário em muitas cidades da região é pontuado por casas condenadas e terrenos baldios onde antes havia prédios e casas
da catástrofe, donos de haras ofereceram polpudas recompensas para quem encontrasse pedaços dos cavalos perdidos entre os escombros. Só assim eles poderiam receber os seguros pagos pelos animais. Entre as muitas mortes que ocorreram ali, as que mais comoveram a opinião pública foram oito familiares do economista Erik Conolly de Carvalho, executivo do Icatu. Ele perdeu três filhos, os pais, a irmã, o cunhado e o sobrinho. A casa em que estava o grupo pertencia a Ângela Gouvêa Vieira, cunhada de Eduardo Gouvêa Vieira,
presidente da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan). Moradora da região desde que nasceu, há 67 anos, a aposentada Edilma Vieira desenha no ar um mapa imaginário do Vale do Cuiabá e mostra onde estava a casa com a família Conolly. “Só sei que era gente importante. Quando os repórteres chegavam aqui, iam direto para lá”. Edilma, que escapou da morte por um triz, depois de fugir por uma janela do segundo andar, perdeu 22 parentes naquela fatídica noite de janeiro. “As seis casas da
nossa família estavam nesse terreno, que foi uma herança”, diz a aposentada, apontando para um descampado coberto de terra. Ela conversa comigo enquanto um grupo de funcionários da Defesa Civil e da secretaria de Assistência Social do Rio de Janeiro inspeciona casas condenadas e terrenos de moradores que pleiteiam indenização. Em um amplo terreno ao lado das terras da família de dona Edilma, o caseiro José Fonseca bate boca com os representantes do governo, que medem com fita métrica o local onde ficava sua casa. “Vocês estão medindo minha casa pela metade. Ela ia até ali, na beira do rio...”. Ele então abre uma bolsa, tira um álbum de fotos e passa a mostrar imagens da construção que demorou vinte anos para terminar. “Se vocês marcarem errado aí, vou receber menos de indenização. Minha casa estava acabada, prontinha”. José está inconformado porque funcionários do governo demoliram o que sobrou da casa sem avisá-lo. “Tinha um monte de telha, maçanetas e outros materiais que eu podia ter vendido”. Assim como todos os presentes na hora da inspeção, Fonseca não tem ideia de quando, ou mesmo se vai receber uma casa nova ou indenização do governo, como foi prometido com pompa e circunstância pelo governador Sérgio Cabral no calor dos acontecimentos. Apesar de receberam um aluguel social do governo de até R$ 500, os moradores reclamam que nenhuma das casas prometidas há quase um ano foi construída. A maneira como agem os representantes do governo também é motivo de revolta. As casas que sobreviveram à tragédia, mas são consideradas condenadas por técnicos, são pintadas com um “X” vermelho. Perto dali, no leito do Rio Santo Antônio, uma cena inusitada causou revolta e gerou polêmica em Petrópolis. Em um terreno que fora devastado pelas chuvas, uma grande casa com piscina está sendo construída com autorização do Instituto Estadual do Ambiente (Inea). “Tragédias por causa da chuva sempre aconteceram em Petrópolis, mas nunca chamaram tanta atenção da opinião pública como essa. A diferença é que, agora, as casas da classe média e dos ricos foram atingidas”, sustenta o ex-vereador petropolitano Marcos Novaes (PV), que disputou a prefeitura da cidade na última eleição.
Solução é sair de casa
Dez meses depois da tragédia, qualquer sinal de chuva causa pânico nos moradores de Nova Friburgo. Quando a água começa a cair um pouco mais forte, mães correm para buscar os filhos nas escolas, comerciantes
fecham as portas e o medo se instala no rosto das pessoas. Em Friburgo, os sinais das chuvas de janeiro ainda são visíveis no centro da cidade, que é cortada por um rio. Na Praça do Suspiro, o teleférico, que era a grande atração turística do local, está do mesmo jeito que estava em 12 janeiro. As cadeiras ainda estão lá, como em um trem fantasma abandonado. Em toda cidade, placas oficiais anunciam obras que nunca foram feitas. Chove muito enquanto caminho pelo bairro de Lagoinha. No trajeto, o cenário é pontuado por casas condenadas e terrenos baldios onde antes havia prédios e casas. Tirando a lama que foi removida do meio da rua, pouca coisa mudou desde a tragédia. Um morador explica que o rio que corta o bairro e passa perigosamente perto de sua casa não existia. “Surgiu depois da chuva. Nunca vieram consertar”. Mas é em Córrego Dantas que se observa o cenário mais desolador: lama por todo lado, esgoto a céu aberto, entulho, casas condenadas... “Fico muito assustado quando chove porque meu bairro pelo rio Conego. Até hoje não fizeram absolutamente nada no meu bairro. Nenhum tijolo foi colocado”, reclama o recepcionista Wellington Serafim, que vive há dez anos na cidade. “Nos dias depois da tragédia achei que a reconstrução seria rápida. Vieram fuzileiros, montaram hospitais de campanha e tudo mais. Mas até hoje não fizeram nenhuma casa popular. Se vier uma chuva parecida, vai acontecer tudo de novo ou pior. A estrutura está toda abalada”, conclui. De fato, poucas intervenções urbanas foram realizadas no período, e o ritmo das obras em andamento é lento. Técnicos são unânimes em dizer que não há mais tempo de fazer nada além de preparar um esquema de retirada das famílias de áreas de risco em caso de chuva forte. “As primeiras habitações só ficarão prontas no verão de 2013. Fizemos análises de investimentos e concluímos que não foi investido quase nada em Defesa Civil e contenção de encostas”, afirma o deputado estadual Luiz Paulo Correa da Rocha (PSDB), presidente da CPI da Região Serrana. Ele aponta para o caos político da região, onde dois prefeitos, o
Dez meses depois da tragédia, qualquer sinal de chuva causa pânico nos moradores de Nova Friburgo. Quando a água começa a cair um pouco mais forte, mães correm para buscar os filhos nas escolas, comerciantes fecham as portas e o medo se instala no rosto das pessoas
José Fonseca: inconformado porque funcionários do governo demoliram o que sobrou da casa sem avisá-lo
de Nova Friburgo e o de Teresópolis, foram cassados, entre outros motivos, por desvios de verbas emergenciais. Mas pontua que falta organização ao governo estadual. “A CPI não achou informações centralizadas sobre o que está sendo feito. As demandas caíram na rotina das secretárias. O ideal era que a operação toda ficasse em um centro”. Um secretário municipal da Região Serrana que cuida da interface com o governo estadual nos projetos de reconstrução conversou longamente com a reportagem, mas pediu que seu nome fosse preservado. Ele concorda com a avaliação do presidente da dezembro de 2011
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CPI e vai além. “Além de o processo estar dividido em muitas secretarias, o estado não divide responsabilidades com as prefeituras. O governador não abre mão do poder político das obras. Ocorre que a máquina do estado é paquidérmica”. Ele cita um exemplo. “Colocaram duas dragas e três caminhões para fazer a dragagem em um trecho de rio, mas mandaram despejar a terra a 30 quilômetros de distância. Resultado: os caminhões são enchidos rapidamente e demoram horas para ir, despejar a terra e voltar. As dragas ficam paradas quase o dia inteiro. O cara que tomou essa decisão está no Rio de Janeiro e não conhece a região”. Ele diz, ainda, que ficará feliz se o estado conseguir construir 380 das 1,5 mil casas prometidas na sua cidade até 2013. Detalhe: todos os prefeitos da Região Serrana são aliados do governador Sérgio Cabral. O governo se defende dizendo que investiu R$ 678 milhões no programa de recuperação da Região Serrana em um pacote que inclui a construção de 6.840 residências, 69 pontes e a contenção de 37 encostas. Em entrevista para o site do Jornal do Brasil, realizada em agosto, o subsecretário de Obras do Rio de Janeiro justificou a demora das obras dizendo que “subimos e descemos duas vezes o Everest da burocracia”. Já o Instituto Estadual de Meio Ambiente, responsável por obras de barragens e macrodrenagem que somam R$ 220 milhões, alega que a Caixa Econômica exigiu um projeto detalhado para liberar o recurso. “O governador Sérgio Cabral sabe que é mais caro responder do que prevenir. Há dez anos, metade dos municípios do Rio tinha Defesa Civil. Hoje todas as 92 cidades têm”, afirma o coronel Sérgio Simões, secretário de Defesa Civil do Rio Janeiro. Ele conta que o governo equipou as cidades da Região Serrana com um sistema de alarme sonoro com mensagens de voz prégravadas que serão acionadas em caso de chuva forte. “Investimos R$ 4 milhões nesse equipamento. O governo também está se instrumentalizando. Compramos uma pick up Mitsubishi 4X4 para cada Defesa Civil municipal, um carro anfíbio e novas aeronaves.”
Pelo ralo
Além da lentidão do governo estadual, as cidades da Região Serrana sofrem com o caos político local. Grande parte dos recursos enviados pelo governo federal para ajudar na reconstrução das cidades escorreu pelo ralo da mais mesquinha corrupção. Relatórios do Tribunal de Contas da União (TCU) e da Controladoria Geral da União apontaram irregu-
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Além da lentidão do governo estadual, as cidades da Região Serrana sofrem com o caos político local
Em Nova Friburgo, nada menos que R$ 10 milhões vindos de Brasília evaporaram. O Ministério Público Federal instaurou dez inquéritos civis públicos na cidade. Em Teresópolis, o MP revelou um esquema entre empreiteiras e autoridades, que cobrava até 50% de propina na execução de obras
laridades em contratos sem licitação assinados pelas prefeituras e governo do estado. Em Nova Friburgo, nada menos que R$ 10 milhões vindos de Brasília evaporaram. O Ministério Público Federal instaurou dez inquéritos civis públicos na cidade. Em Teresópolis, o MP revelou um esquema entre empreiteiras e autoridades, que cobrava até 50% de propina na execução de obras. Em Nova Friburgo, o TCU mostrou que a prestação de contas enviada pela prefeitura estava cheio de buracos. Nenhuma das prefeituras das cidades atingidas conseguiu fazer uma prestação de contas decente. O Ministério da Integração Nacional enviou R$ 30 milhões para serem divididos entre os municípios. No dia 2 novembro, os vereadores de Teresópolis cassaram o prefeito Jorge Mario Sedlacek, que foi eleito pelo PT, mas acabou
expulso da legenda. Seu vice, Roberto Pinto, morreu de infarte dois dias depois de assumir o cargo. Quem está no poder hoje é o presidente da Câmara dos Vereadores, Arlei de Oliveira, do PMDB. Em Friburgo, o prefeito Demerval Barboza Neto, do PTdoB, e seu secretário municipal de governo, José Ricardo Carvalho de Lima, foram afastados do cargo por determinação da Justiça Federal. Eles são acusados de desvios de verbas, superfaturamento e fraudes na contratação de empresas. Assim como em Teresópolis, eles se aproveitaram do caráter emergencial das obras. Antes de deixar a Região Serrana, assisti a uma reunião da CPI municipal das chuvas na Câmara dos Vereadores de Nova Friburgo. Apenas sete pessoas, entre elas quatro jornalistas locais, acompanhavam o depoimento do secretário José Ricardo Carvalho. Sentado ao lado de seu advogado, ele tentava convencer os vereadores da mesa diretora que o dinheiro desapareceu por causa do caos da chuva. “As circunstâncias eram muito precárias. Havia dificuldade na oferta de serviço. Não era todo mundo que tinha confiança de receber ou queria arriscar seus equipamentos. Não havia internet. Quando a equipe dizia que a empresa era idônea, eu assinava”. À medida que as perguntas se tornaram mais específicas e passaram a citar nominalmente contratos, valores e erros de procedimento, o advogado passou a bater boca com os depoentes. Formou-se então um grande teatro. Enquanto isso, assessores observavam pela janela a chuva que caía cada vez mais forte... F
Claro que é Óbvio –B
oa tarde, eu poderia falar com a dona Maria? – É ela. É a respeito de quê? – Eu sou da Óbvio.com e gostaria de estar oferecendo à senhora um upgrade para 10 mega sem custo algum. – Vocês vão dobrar minha velocidade na internet sem nenhum custo? – Exatamente. – Olha, não preciso de mais velocidade, será que vocês poderiam manter os 5 mega e diminuir o custo do meu plano? – Olha, dona Maria... Não existe essa possibilidade de diminuição de custos. Ou a senhora mantém o plano de 5 mega ou aceita nossa promoção de 10 mega sem custos adicionais. – Isso é completamente ilógico, mas, enfim, autorizo o upgrade. – Pois não, dona Maria. Eu vou estar passando a ligação para o setor de agendamento. – Agendamento? O upgrade não é automático?
– Não senhora, teremos que estar trocando seu modem. Um técnico irá até sua residência. – Ok. – Só um minutinho... (depois de 3 minutos musicais de espera telefônica) – Dona Maria? – Sim, sou eu. – Eu sou da Agendar, empresa que presta serviços de agendamento para a Óbvio.com. Para que dia a senhora quer o técnico? – O mais rápido possível. Amanhã? – Um minutinho, vou estar verificando a disponibilidade... (depois de mais 3 minutos de música de espera) – Dona Maria, para amanhã não temos, pode ser na quarta-feira? – Sim, a que horas? – Entre 9 da manhã e 5 da tarde. – Mas não dá pra marcar uma hora mais específica?
Thiago baLbi
– Infelizmente não temos como fazer isso. Mas a senhora pode estar ligando diretamente na Instalcom, que presta serviços de instalação para a Óbvio.com para ver se eles agendam um horário mais específico. – Ok, obrigada, vou tentar lá.
– Alô, é da Instalcom? – Sim, em que posso ajudar? – Eu gostaria de agendar um técnico para instalar meu novo modem da Óbvio.com – A senhora está com problema no aparelho? – Não. Eu preciso trocá-lo para fazer o upgrade para 10 mega. – Ah! A senhora já tem cabo ótico instalado? – Não, por quê? – É que esse novo modem com velocidade de 10 mega só com fibra ótica, minha senhora. – E vocês não instalam a fibra? – Não, isso tem que ver com o Passa Fio, empresa que instala a fibra ótica. – E como é que eu falo com o Passa Fio? – No caso a senhora terá que estar ligando de volta para a Obvio.com.
– Alô, é da Óbvio.com? – Sim, em que podemos ajudá-la? – Eu gostaria de solicitar uma instalação da fibra ótica para o novo modem de 10 mega. – Pois não, vou transferir a senhora para o Passa Fio. Um minutinho... (após 5 minutos de música de espera) – Dona Maria? – Sim? – Aqui é do Passa Fio. O conduíte da senhora tem tamanho suficiente para que passemos a fibra ótica? – Como é que eu vou saber? – É só medir o diâmetro do orifício. – O tamanho do orifício... Olha, quer saber? Cansei disso tudo. Não quero upgrade, fibra ótica, modem novo, passa fio... Não quero mais nada! – Como? – Esquece, você não tem culpa, eu não tenho culpa. Essa privataria, essa burocracia é que acaba com a gente. É muito conduíte para pouco orifício. F Twitter: @vleonel E-mail: vangeleonel@uol.com.br
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Fórum vai até o Vidigal e mostra um retrato do cenário local, que tenta se adaptar a uma nova realidade e ainda espera por um futuro melhor
A vida depois da prisão de Nem texto e fotoS por pedro venCeSlAu
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osé Valdir Correia Cavalcanti levou um susto quando voltou para casa no Vidigal um dia depois da ocupação do morro pelas forças de segurança do governo do Rio de Janeiro, em meados de novembro. Quatorze meses depois de ser expulso de lá por soldados do traficante Antonio Francisco Bonfim Lopes, o Nem, e ir morar em Jacarepaguá, ele encontrou outra mobília e até uma televisão nova na sala. Localizada no “Arvrão”, o ponto mais alto do morro e de onde se tem uma vista deslumbrante da cidade, a casa serviu de abrigo para “Cabeção”, um dos gerentes do tráfico, no período em que José esteve fora. “Esse lugar é estratégico. Se o Nem não tivesse sido preso, aqui seria o quartel-general contra a polícia”, contou o produtor de uma rede de TV que preparava o lugar para uma gravação. Mas com a notícia da queda do jovem “czar” do Vidigal e da Rocinha, a cúpula da organização ADA (Amigos dos Amigos) preferiu fugir e o proprietário sentiu-se seguro para
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pegar de volta o que era seu. Na comunidade do Vidigal, José Cavalcanti é mais conhecido como “Zé do Rádio”. Ele ficou famoso entre os moradores há dez anos depois de ser eleito locutor de uma rádio comunitária que presta serviços à população. Em 2008, tomou coragem e aproveitou seu prestígio para marcar uma audiência com Nem. “Fui recebido pela mulher dele, que me levou até a sala da casa e me serviu um suco. Fiquei impressionado com o luxo do lugar. O Nem chegou e foi atencioso. Então eu disse que há 20 anos não havia eleições para a Associação dos Moradores da Vila do Vidigal (AMVV) e que eu gostaria de organizar o processo”, conta. Bem articulado, Zé argumentou que a eleição passaria uma mensagem para a opinião pública e a população: existe democracia no Vidigal. Deu certo. Poucos meses depois, Zé do Rádio derrotaria outros nove candidatos e seria eleito o legítimo presidente da Associação dos Moradores do Vidigal. “No começo, o Nem atendia muitos pedidos meus. Moradores vinham até a Associação pedir ajuda para evitar a morte de parentes condenados pelo tráfico. Eu levava a demanda e dava certo”.
Outra função de Zé do Rádio era servir como interlocutor entre o poder de fato (o tráfico) e o poder público. Em todas as favelas do Rio dominadas pelo crime organizado, os dirigentes das associações de moradores são os responsáveis pela manutenção do acordo tácito que garante a “paz” nos territórios governados pelo poder paralelo. Com o tempo, porém, Nem passou a exigir cada vez mais do presidente da associação do Vidigal. Zé do Rádio tentou se equilibrar como pôde entre os dois mundos. Se por um lado não era louco de se rebelar contra Nem, por outro, não queria ser apenas um fantoche. Foi então que o “capo” perdeu a paciência. “Foram na minha casa, colocaram uma arma na minha cabeça e me mandaram assinar documentos renunciando à presidência da Associação. Depois, me mandaram sair do Vidigal”.
Cidadania custa caro
Decidi ir a pé do bar Jobi, no Leblon, até a entrada do Vidigal. Depois de 20 minutos costeando o mar a passos largos pela ave-
nida Niemeyer, cheguei à entrada do morro recém-pacificado. A primeira imagem foi emblemática. Um exército de vendedores uniformizados de pacotes da Sky circulava nervosamente entre soldados fortemente armados tentando convencer moradores a comprar o “pacote UPP”, uma promoção criada especialmente para moradores de áreas “pacificadas”. Antes da ocupação, era o tráfico que geria o negócio. Por meio de gambiarras, os homens de Nem ofereciam pacotes de 120 canais por R$ 20 mensais. “Agora vou ter que pagar R$ 70 e ainda ficar sem os filmes...”, lamentava uma moradora que, resignada, preenchia a papelada de um dos vendedores. Ela e todos os moradores estão pagando um preço alto pela cidadania. Segundo o Sebrae-RJ, nada menos que 5.800 dos 6.500 negócios da favela, de botecos a salões de beleza, estão na informalidade. Com a ocupação, o Sebrae começou uma campanha para trazer os empreendimentos para a formalidade. Um dia depois da ocupação, boa parte dos moto-taxistas que cobram R$ 2,50 para subir e descer o morro, sumiu da entrada do Vidigal. Motivo: as motos não tinham documentação nenhuma e, não raro, eram roubadas. Os que estavam em dia com a burocracia, porém, comemoravam o fim do imposto pago ao tráfico para operar. No caminho até o topo do morro, onde está localizado o “Arvrão” e onde conheci Zé do Rádio, cruzei vários turistas estrangeiros fazendo fotos alegremente. Uma argentina contou que seus amigos estavam hospedados em um albergue no próprio Vidigal. “Fica lá no alto, perto do “Arvrão. O dono é um alemão”. Na verdade, já existiam dois albergues no morro muito antes da ocupação da polícia. O “alemão”, chamado “Alto Vidigal Guest House”, era considerado um ponto “hype” de turistas e cariocas ousados que buscavam o pôr-do-sol perfeito. A vista vinha acompanhada de generosos cigarros de maconha comprados em bocas de fumo de Nem nas redondezas. Tudo estranhamente pacífico e seguro. Pouco antes de chegar ao “Arvrão” – onde fica uma óbvia árvore enorme – cruzei com um repórter da Band Rio usando colete à prova de balas e batendo papo com um grupo de policiais do Bope. O tema era a morte de um colega cinegrafista da emissora no dia da invasão. Uma bala de fuzil atravessou o colete. “O pessoal da Globo está usando colete com placa de cerâmica...”, disse um soldado. Outro questiona a informação. “Ué, mas isso não pode... Colete com placa de cerâmica é de uso exclusivo da polícia”. Segue-se então um debate sobre a eficácia dos coletes e o risco de fazer esse tipo de cobertura. Foi o repórter da Band, chamado Che Oliveira, quem me apresentou a Zé do Rá-
Àquela altura, o tema da conversa era a morte do cinegrafista da Band ocorrida poucos dias antes
dio. Mais tarde, fico sabendo pelo colega que além do líder comunitário, outras 11 famílias que viviam em casas consideradas estratégicas pelo tráfico em caso de combate foram expulsas. “Dessas, só duas vão ficar no Vidigal. As outras voltaram para o Nordeste. “É que muitos soldados do Nem não têm ficha na polícia e continuam morando no morro”, conta ele. O próprio Zé do Rádio conta já estar recebendo ameaças. Na volta para a base do morro, paro na sede Associação dos Moradores para tentar conversar com Wanderley Ferreira, o Deley, atual presidente do órgão. Ele é acusado por Zé do Rádio de ter sido colocado por Nem no cargo depois de sua expulsão. Deley não estava. Voltei mais duas vezes e telefonei outras tantas, sem sucesso. Na última tentativa, um diretor da Associação aceitou falar, mas só “informalmente”. Ele negou qualquer relação com Nem, disse que Zé sumiu da comunidade
porque estava “vendendo terrenos que não eram dele” e revelou que ambos – Zé e Delay – têm algo em comum. “São filiados a partidos políticos. O Zé é do PRB e o Delay, do PV”. Zé do Rádio confirma a informação. “Fui candidato a deputado estadual ano passado e tive 700 votos. Não pude fazer campanha e acabei jogando o material que ganhei do Rodrigo Bethlem (que concorreu a deputado federal) no lixo...”. Revela-se então outra faceta do poder paralelo. Políticos só recebem votos nas favelas do tráfico se selarem alianças com moradores. Em geral, o acordo tem que passar pelo crivo dos traficantes. Daqui para frente, tudo será diferente. Por trás do discurso triunfalista do governo sobre as UPPs, existe uma multidão de moradores felizes com a liberdade, mas receosos com o futuro. Por pior que fosse viver sob a gestão do tráfico, havia uma zona de conforto. O livre arbítrio vem acompanhado de muitas contas para pagar... F
E as “celebridades” sobem o morro
Passa um pouco da hora do almoço quando uma caminhonete preta do Bope com quatro mulheres “civis” na garupa estaciona no pé da Rocinha. Enquanto o motorista aguarda ordens para subir, o grupo visivelmente constrangido é fotografado por moradores. “É aquela moça da Globo...Como ela chama mesmo...?”, pergunta uma excitada vendedora de pacotes da Sky. Olhando de perto, reconheço uma delas: a atriz Carla Camurati. Um policial informa, então, que as outras ocupantes são Rita Paes, esposa do secretário de Segurança, Jo�e Beltrame, e duas assessoras. O destino final do grupo é a quadra da Rua 1, onde “até outro dia funcionava uma boca de fumo”. Tudo isso era para dizer que as moças pretendem apresentar ali um balé. Poucas horas depois é a vez da secretária estadual de Esportes e Lazer, Marcia Lins, subir o morro com o Bope. Seu convidado é o ex-tenista Gustavo Kuerten. Depois de simular um bate bola com crianças, o ídolo se posta ao lado da secretária para outro pomposo anúncio: a construção da primeira quadra pública de tênis do Rio será na Rocinha, mais precisamente no Portão Vermelho. Poucos dias depois de ser ocupada pelas forças de “pacificação”, a Rocinha tornou-se a menina dos olhos da elite política e da opinião pública carioca. Candidato a reeleição, o prefeito Eduardo Paes (PMDB) não perde uma chance de capitalizar a ocupação. No dia 21 de novembro, ele anunciou que a comunidade receberá o cartão postal de sua gestão, o “choque de ordem”. Isso significa que as 150 barracas do Largo Boaideiro serão convidadas a se legalizar. Em outra frente, a Light começou a bater de casa em casa oferecendo geladeiras novas - e que consomem um quarto da energia - aos moradores. A má notícia é que 50 funcionários da companhia deflagraram operação para acabar com cerca de 6 mil “gatos” de ligação clandestina de eletricidade. A previsão oficial é que toda rede elétrica seja substituída até 2013. Para os moradores, isso significa mais uma conta para pagar. dezembro de 2011
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tecnologias sociais
O reconhecimento de boas práticas Prêmio Fundação Banco do Brasil tem recorde de inscrições de iniciativas de grande impacto local por Adriana Delorenzo
A
cias também foram à capital federal para a cerimônia de premiação, quando foram conhecidas as nove tecnologias sociais vencedoras desta que foi a sexta edição do concurso da Fundação. Numa sala de um hotel em Brasília, no dia anterior à grande festa, a riqueza da diversidade do território brasileiro se afirmava como uma grande arma contra a pobreza e a desigualdade. Esse, segundo o presidente da FBB, Jorge Streit, é o sentido de incentivar essas atividades chamadas de tecnologias sociais. “Se existe um tipo de tecnologia que pode contribuir para a superação da pobreza é a social”, disse ele. Isoladas, essas atividades podem não mudar o mundo, mas são capazes de gerar
transformações importantes para uma escola, um bairro, uma cidade, uma região. E, quando dá certo, por que não transformar a experiência em política pública? Esse é o grande objetivo. Reaplicar a tecnologia social para o Brasil e o mundo. E, ainda, articulá-las com outras políticas públicas. A Fundação elegeu as tecnologias sociais como carro-chefe de suas ações desde 2003. Além de manter o banco, promover o Prêmio a cada dois anos, e o Concurso Aprender e Ensinar – TS em parceria com a revista Fórum, a FBB fornece ajuda financeira a algumas tecnologias. É o caso da Produção Agroecológica Integrada e Sustentável (PAIS), que junto com o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), do governo federal, pode garantir renda aos produtores e preservação ambiental. Para Streit, as tecnologias sociais são as que mais se enquadram aos princípios da economia solidária e sustentabilidade. Ao contrário da tecnologia de ponta ou proprietária, a TS é livre e voltada para a promoção de impactos locais. Um dos pré-requisitos para ganhar o prêmio da arquivo fbb
s soluções são simples. A vontade de fazê-las dar certo é enorme. Com esse espírito, centenas de iniciativas estão transformando comunidades pelo Brasil afora. O Prêmio Fundação Banco de Brasil de Tecnologias Sociais mostra que essa afirmação é real. Somente na edição de 2011, foram 1.116 inscrições de projetos em andamento. Desses, 264 foram certificados e passaram a integrar o Banco de Tecnologias Sociais (BTS) mantido pela entidade. No final de novembro, os 27 finalistas, selecionados por uma comissão julgadora, estiveram em Brasília para participar de um seminário, onde se discutiu o potencial do que eles estão fazendo. Os representantes dessas experiên-
Isoladas, as tecnologias sociais são capazes de gerar transformações importantes para uma escola, um bairro, uma cidade, uma região
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fundação é ser de domínio público, sem patentes. Seu objetivo não é ter lucros, é resolver o problema e multiplicar a solução. Multiplicação foi o que aconteceu com duas tecnologias sociais premiadas pela fundação em edições anteriores. É o caso da técnica de silagem de colostro, desenvolvida pela veterinária e agricultora Mara Saafeld, no interior do Rio Grande do Sul. O procedimento é simples e permite um aumento na renda dos pequenos produtores de leite. A partir da fermentação do colostro por sete dias numa garrafa pet, esse primeiro leite pode ser utilizado na alimentação dos bezerros por um período mais longo, em vez de ser jogado fora. Além de ser um alimento mais nutritivo, o colostro ainda poluía o ambiente. Presente no encontro que reuniu os finalistas deste ano, Mara contou que antes de vencer o prêmio tentou levar a técnica à universidade, mas seu projeto de pesquisa não foi aceito para virar uma tese de doutorado na área de zootecnia. “Era uma técnica em que ninguém acreditava; depois do prêmio, ganhamos visibilidade e credibilidade”, afirmou ela, atual doutoranda. Segundo o professor da Universidade de Brasília, Ricardo Neder, a pesquisa das tecnologias sociais nas universidades não tem recebido o mesmo incentivo que as tecnologias “de ponta”. Ele defende que os órgãos educacionais, como a Comissão de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior (Capes), incorporem mais professores e pesquisadores que se dediquem ao assunto. “Os critérios de seleção de projetos de pesquisa para financiamento público e de avaliação de pesquisadores não atendem as necessidades do movimento pela tecnologia social, considerado problema local pouco interessante para a ciência e tecnologia universal”, afirmou. O professor ainda destacou que a Lei de Inovação (10.973/04), que trata sobre incentivos e pesquisa científica e tecnológica, prioriza parcerias entre universidades e empresas, deixando de fora as entidades civis, movimentos sociais e terceiro setor. Estudo realizado entre as 555 tecnologias sociais que compunham o Banco da FBB mostrou que a maior parte delas (65%) era desenvolvida por entidades civis ou cooperativas; 15% eram mantidas por instituições de ensino público ou privada e o sistema “S” (Sesi, Senai, etc); 15% por órgãos governamentais; e apenas 5% por empresas. Após revisitar todos esses projetos, que integravam o banco desde a primeira edição do Prêmio, foi
arquivo fbb
Incentivo e pesquisa
constatado que 119 iniciativas não estão mais em andamento. Por isso, Neder defende que o fomento continuado às TS é um ponto-chave para a sua manutenção. Ele ainda acredita que sociedades com fins lucrativos não deveriam receber recursos públicos e doações. Apesar das dificuldades enfrentadas no dia a dia, as TS vêm crescendo. Em 2011, o número de inscritos ao Prêmio foi recorde. Como alerta Streit, muitas vezes as tecnologias não são necessariamente um artefato, mas uma metodologia, desenvolvida com a interação da comunidade. Um bom exemplo de uma metodologia criada com base nos princípios da TS é a técnica de ensino da Matemática para deficientes visuais. O professor de Matemática Rubens Ferronato desenvolveu o método,
quando teve um aluno deficiente visual em uma classe de mais de trinta. Sem saber o que fazer, o professor começou a utilizar uma placa de eucatex e elástico. Deu tão certo que hoje o método é adotado em mais de cinco mil escolas do Brasil. “A inclusão não é apenas ter um aluno com deficiência na sala de aula, é ele poder participar”, afirmou. São muitos os exemplos, inclusive, de pessoas que estão desenvolvendo tecnologia social e desconhecem esse termo e sua filosofia. “Nosso objetivo é reconhecer o trabalho realizado por essas pessoas”, definiu o gerente de Parcerias, Articulações e Tecnologia Social da FBB, Jefferson de Oliveira. Cada uma das nove iniciativas vencedoras de 2011 foi contemplada com R$ 80 mil e recebeu um material de divulgação (vídeo institucional e 2 mil folhetos).
Jorge Streit, presidente da FBB: muitas vezes as TS não são um artefato, mas uma metodologia desenvolvida com a interação da comunidade
Conheça as nove iniciativas vencedoras Norte – Banco Comunitário Muiraquitã (Santarém/PA) O projeto é desenvolvido na Grande Santarém, região que enfrenta dificuldades típicas de bairros periféricos brasileiros. Os idealizadores acreditam na inclusão digital para a transformação dessa realidade. Cada quilo de resíduo vale um muiraquitã, que pode ser usado para a compra de produtos metarreciclados e serviços, como oficinas de informática e software livre.
Nordeste – Bancos de Sementes Comunitários (Teixeira/PB)
Os agricultores da região implantaram roçados comunitários, que fornecem as pri-
meiras sementes para o banco. Cada comunidade estabelece uma forma de gerir o banco de sementes. A cada colheita, os agricultores devolvem o que foi retirado e acrescem um porcentual. A tecnologia resgata sementes crioulas abandonadas pelos sertanejos e garante a segurança alimentar das famílias.
Centro-Oeste – Construção de Habitação em Assentamentos (Campo Grande/MS)
Toda a comunidade participa do mutirão para a construção de casas. Tudo é decidido coletivamente, do projeto à lista de quem terá prioridade. A casa, de 72 m2, é construída com uma técnica que dispensa o emprego de codezembro de 2011
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lunas, com um crédito de R$ 15 mil que cada família recebe do Incra. Com gerenciamento coletivo dos recursos, o dinheiro rende mais.
Sudeste – Ecos do Bem – Educação Ambiental no Território do Bem (Vitória/ES)
seus estudos, cada participante qualifica-se profissionalmente e reduz um dia de pena a cada três trabalhados.
Categoria – TS na Construção de Políticas Públicas para a Erradicação da Pobreza – Horta Comunitária (Maringá/PR)
Por meio de mutirões, os moradores do bairro transformam terrenos baldios em espaços de convivência, preservação e cidadania. Após mapear as áreas críticas, o Mutirão do Bem executa a intervenção, retirando os resíduos e revitalizando a área. Desse esforço, surgiram hortas comunitárias e jardins, onde antes só havia lixo.
Sul – Visão de Liberdade (Maringá/PR)
A prefeitura de Maringá transforma a comunidade em parceira na conservação e aproveitamento de terrenos baldios que se tornam depósitos de lixo e entulho. Por meio de hortas comunitárias agroecológicas, oferece segurança alimentar e geração de renda para as famílias.
A experiência une os deficientes visuais, que enfrentam dificuldades na educação por não terem acesso a diversos conteúdos, e os apenados do sistema prisional. Um grupo de detentos foi qualificado para a produção de material didático em braile, áudio e altorelevo. Enquanto o material auxilia deficientes visuais do Brasil e Portugal a terminar
Reunidas em uma associação, 87 mulheres do assentamento Vale do Amanhecer descobriram no extrativismo e na produção de alimentos à base de castanha uma forma de gerar renda e conviver de forma harmoniosa com a natureza. A cooperativa ajudou
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Categoria – Participação de Mulheres na Gestão de TS – Mulheres da Amazônia (Juruena/MT)
a aumentar em quase sete vezes o valor pago ao extrativista por um quilo de castanha.
Categoria – Direitos da Criança e do Adolescente e Protagonismo Juvenil – Fazendo Minha História (São Paulo/SP)
A tecnologia busca, por meio da literatura, interagir com crianças de abrigos e acolhimento, para que elas possam se expressar e dialogar com sua história de vida. Cada um monta um álbum colorido, no qual registra um pouco de seu passado, seu presente no abrigo e seus sonhos para o futuro.
Categoria – Gestão de Recursos Hídricos – Cisternas nas Escolas (Irece/BA)
No semi-árido baiano, não falta mais água para o consumo dos alunos e para irrigar as hortas escolares, que produzem alimentos orgânicos. Com a instalação de cisternas nas escolas, pela própria comunidade, são captadas as águas da chuva. O sistema ainda é utilizado como recurso pedagógico. F
China e o novo centro dinâmico O sucesso do milagre econômico chinês apresentou ao mundo uma novidade quase não imaginada frente à inconteste hegemonia estadunidense. Seja na evolução do comércio externo ou na presença crescente dos investimentos externos, a China se posiciona de forma cada vez mais sólida como eixo integrador da dinâmica mundial. Antes da crise do capitalismo global, a economia estadunidense apresentava sinais de certa decadência frente ao seu esvaziamento produtivo e da relativa perda de importância do dólar. Mas, a partir de 2008, a perda de influência norte-americana tornouse cada vez mais evidente, sobretudo quando se considera o sucesso transformista chinês. Para piorar, os Estados Unidos passam a apresentar sinais crescentes de subdesenvolvimento, como no caso da concentração de renda. Nas últimas três décadas, por exemplo, o segmento constituído pela faixa do 1% mais rico da população teve a sua renda aumentada em 256%, enquanto o rendimento dos pobres subiu somente 11%. Como resultado disso, os EUA voltaram a deter um padrão de desigualdade de renda somente verificado antes da Depressão de 1929. Diante do descenso estadunidense e do auge chinês, os governos têm a oportunidade de rever estrategicamente o posicionamento de suas economias. Do contrário, a trajetória das relações comerciais e de investimento com a China tende cada vez mais a aprofundar as características históricas já notabilizadas, especialmente durante a antiga ordem internacional estabelecida a partir da Inglaterra. Como a China atual, o Reino
Unido dependia fortemente de produtos primários, enquanto se mantinha como forte produtor e exportador de produtos manufaturados. Ou seja, dava-se o estabelecimento de uma convergência internacional para a produção e exportação de produtos primários e simultânea dependência da dinâmica local à internacionalização dos seus parques produtivos segundo a lógica inglesa. Em geral, a China passa a deter não somente relações comerciais como presença de investimento superiores às dos EUA. Por meio da globalização financeira, não obstante os sinais de certo esvaziamento do seu papel monetário (fim do padrão ouro-dólar nos anos 1970) e de enfraquecimento relativo de sua produção e difusão tecnológica, os Estados Unidos se transformavam praticamente num império unipolar. Tanto assim que prevaleceu a concepção de pensamento único e visão de fim da História, com predomínio da democracia liberal e do livre mercado. Nos dias de hoje, com o esgotamento do movimento de globalização financeira, registrado por várias crises de dimensão internacional, o milagre chinês ascendeu rapidamente. Assim, a expansão da economia do país possibilitou que em apenas dez anos a sua produção fosse triplicada, contrastando com a realidade estadunidense. Somente entre 1999 e 2010, por exemplo, a variação acumulada do Produto Interno Bruto dos Estados Unidos foi equivalente a apenas 1/8 da verificada na China. No mesmo sentido, o país asiático responde cada vez mais por uma maior parcela da produção de manufaturados do mundo;
Evolução da participação relativa no Produto Interno Bruto do mundial dos Estados Unidos e China (Total em PPP = 100%) 24 22 20 18 16 14 12 10 8 6 4
1998
1999
2000
2001
2002
Fonte: FMI (elaboração própria)
2003
2004
*projeção
2005
2006
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em 2009, representou 18% do valor agregado industrial mundial. A participação chinesa no valor adicionado mundial na indústria de transformação de alta tecnologia também saltou de 4%, em 2000, para 18%, em 2009. Atualmente, a China assume a condição de segunda nação mais importante na produção de material de escritório e informática do mundo, na produção de material de rádio, TV e comunicação, e a primeira na produção de veículos automotores e nos investimentos na indústria aeroespacial, de supercomputadores e de núcleos eletrônicos, entre outras posições estratégicas mundiais. Por conta disso, a China deve ultrapassar a posição dos EUA durante a segunda década do século XXI, embora isso não signifique necessariamente o desaparecimento das centralidades dinâmicas das economias pertencentes à União Europeia e aos Estados Unidos, mas o que se destaca é o aparecimento de um mundo multipolar. Além da Ásia – especialmente a China e Índia – há um espaço regional capaz de gerar uma nova centralidade dinâmica no sul do continente americano, com forte importância para a economia brasileira. Em síntese, o Brasil passa a ter maior relevância num novo contexto mundial multipolarizado, bem distinto daquele verificado durante o momento de sua constituição, em que os Estados Unidos exerciam uma centralidade unipolar. Mas o seu reposicionamento deve partir de um olhar de mais longo prazo, uma vez que as alternativas estão postas. O deslocamento do centro dinâmico estabelece oportunidades inequívocas de reforço da pujança econômica brasileira. Mas isso pode ocorrer tanto pelo lado da Fazenda, Mineração e Maquiladora dos Produtos Manufaturados (FAMA), como pela via do encadeamento dos sistemas produtivos a partir de maior agregação do Valor Agregado e Conhecimento (VACO). As alternativas estão postas, com a China presente no novo centro dinâmico mundial. Ao Brasil, cabe uma decisão clara e objetiva em torno do papel que deseja desempenhar neste novo contexto internacional. F MARCIO POCHMANN é professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas. Presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
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américa latina
A Bolívia depois da tempestade Quais foram os custos políticos da marcha que impediu que uma estrada cortasse uma reserva indígena no país e como os movimentos sociais se organizam para pressionar o governo de Evo Morales Por lídIA AmorIm, de lA pAz. fotoS roS AmIlS
E
m La Paz, centenas de pessoas saíram de suas casas e locais de trabalho no dia 19 de outubro. Bandeiras na mão, sacolas com comida, garrafas de água, todos queriam apoiar de algum jeito os dois mil marchistas que estavam chegando. Foi uma chegada triunfal: quando os manifestantes passavam, esgotados, eram recebidos com gritos de felicitação, aplausos, lágrimas de emoção. Até quem era contra o movimento parou para ver. A única coisa impossível era ser indiferente. E mesmo em um país em que marchas e protestos são rotina, esse dia entrou para a história. Quando a VIII Grande Marcha pela Defesa do Território Indígena Parque Nacional Isiboro Sécure, pelos territórios, pela vida, dignidade e direitos dos povos indígenas saiu da cidade de Trinidad no dia 15 de agosto, ninguém imaginava que as coisas tomariam uma di-
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mensão tão grande. Os inúmeros diálogos fracassados com o governo, os bloqueios de camponeses que eram contra a marcha e, finalmente, a agressão policial do dia 25 de setembro provocaram questionamentos e uma crise de gabinete. No meio de tudo isso, os marchistas conquistaram a simpatia do povo boliviano, mas, mesmo assim, a apoteótica recepção em La Paz foi uma surpresa. “Pensamos que íamos ser agredidos”, conta, emocionado, Fernando Vargas, presidente da subcentral do Parque Isiboro Sécure. Adolfo Chávez, dirigente da Confederação dos Povos Indígenas da Bolívia (Cidob), sorriu aliviado. Estufando o peito, seguiu caminhando ao lado do companheiro que levava a bandeira com a flor do patujú, símbolo do Oriente boliviano. “Nos sentimos, não sei como posso dizer, com muito orgulho”, conta Walberto Baraona, diretor de Meio Ambiente do Conamaq.
Quem mais se emocionou com a chegada foram as 96 crianças que marchavam. Os olhinhos curiosos miravam toda a gente que gritava, as mãos agarrando pão e saquinhos de leite com chocolate. Ximena Quispe, 12 anos, sentia a emoção de sua primeira marcha. Ela é filha do dirigente indígena de terras altas da Bolívia, Rafael Quispe. E também já é dirigente: foi nomeada – pelas outras crianças – vicepresidente das crianças da marcha. Mas os manifestantes não foram os únicos surpreendidos pela reação dos habitantes de La Paz. E, graças à pressão popular, o governo decidiu dialogar com os dirigentes, numa reunião tensa, em que a desconfiança pairava no ar como uma névoa. O resultado foi um projeto de lei aprovado às pressas, a Lei 180. Entre outras coisas, o documento cancela a construção da estrada cortando o coração da área protegida e do território in-
Os colonos ou interculturais são grupos que saíram de outras partes do país, como La Paz e a região cocaleira do Chapare de Cochabamba, em busca de novas terras para plantar.
dígena, além de definir que os cocaleiros e colonos que ultrapassaram o limite do parque, conhecido como linha vermelha, devem ser retirados imediatamente do local.
Intangibilidade e conflitos
Lei aprovada, os manifestantes voltaram para casa. Tudo parecia solucionado, e a marcha parecia ter resultado em triunfo. Mas um ponto na lei começou a gerar problemas: a intangibilidade. O terceiro artigo da 180 classifica todo o território como zona intangível. Ou seja, não se pode tocar nada, o que inviabilizaria a vida dos indígenas do lugar, cuja economia está baseada na floresta. Nada de caça. Nada de pesca. Nada de turismo, ainda que se diga sustentável. Os dirigentes se revoltaram. “Isso pode ter sido colocado de boa-fé por quem escreveu o projeto, mas não estava assim antes. O que nós propusemos no nosso projeto de lei foi a intangibilidade de algumas partes, as áreas virgens. Isso está no plano de manejo que fizemos junto com o governo, que levamos quatro anos investigando para fazer. O governo quer se vingar da nossa vitória tornando nossa vida impossível”, considera Fernando Vargas. “Não sugerimos intangibilidade. Foi proposta dos dirigentes”, respondeu publicamente o presidente Morales.
No meio da discussão pela regulamentação da lei, com a intangibilidade deixando um gosto amargo na boca dos marchistas, o governo reativou sua campanha pela construção da estrada. Em todos os eventos em que aparecem publicamente, o presidente Evo Morales e o vice-presidente Álvaro García Linera falam da importância da rodovia. Evo também foi ao TIPNIS, visitou comunidades de colonos e de indígenas, e deixou sua mensagem: “Se querem a estrada, falem com os que marcharam, reclamem para eles. Já não é minha responsabilidade.” No dia 24 de novembro, um grupo com trinta indígenas da região sul do TIPNIS chegou ao palácio de governo, para pedir que fosse anulada a Lei 180 e que se construísse a estrada. Rosa Fabricano, líder da comunidade de Natividad do Retiro deu a mensagem na porta do palácio. “Queremos que se anule a lei, queremos a estrada.” E admitiu: “O governo pagou as passagens para as trinta pessoas”. No dia seguinte, o presidente deixou esperando uma delegação de indígenas marchistas que chegaram a La Paz para trabalhar a regulamentação da lei. “O presidente está fazendo um show. Ele quer que nos enfrentemos entre bolivianos”, acredita Vargas. Logo, os indígenas foram recebidos pelo ministro da Presidência, Carlos Romero, e negociaram a regulamentação da lei. Segundo o acordo, ficam proibidas todas as atividades comerciais, como a venda de madeira e
de couro de jacaré, mas os recursos naturais podem ser utilizados em benefício das comunidades, de acordo com o plano de manejo apresentado às autoridades bolivianas na semana anterior à reunião.
Feridas abertas
O conflito provocado pela estrada que cortaria ao meio o parque nacional e o território indígena é apenas a parte superficial de uma ferida muito mais profunda. A questão de terra, do território e da própria dignidade é uma luta antiga dos povos originários de todas as partes do mundo, e na Bolívia não é diferente. “Se não fosse pela marcha de 1990, até hoje os indígenas, princi- À época, a palmente do Oriente boliviano, marcha de inainda seriam considerados in- dígenas, após visíveis nesse país”, considera um mês de caminhada, Antonio Aramayo, diretor da obteve o refundação UNIR Bolivia. conhecimento Para os indígenas originá- de quatro rios da região do TIPNIS – mo- territórios jeños, yuracarés e chimanes ameaçados por empresas – essa luta ainda é uma ferida de exploração aberta. Isso porque a terra e o de recursos território são parte da vida e do naturais. corpo de cada um e ao mesmo tempo do coletivo, e dia após dia tudo isso é violado por colonos e cocaleiros. Mesmo tendo participado do processo que levou Evo Morales ao poder, e tendo muitos dos seus direitos garantidos pela nova Constituição,
Os manifestantes não foram os únicos surpreendidos pela reação dos habitantes de La Paz. E, graças à pressão popular, o governo decidiu dialogar com os dirigentes dezembro de 2011
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aprovada em 2009, essas pessoas não se sentem incluídas na gestão de governo. Mas, embora muitas vezes possa parecer que sim, nessa história não existem bons e maus. Os colonos também têm suas próprias feridas não cicatrizadas. Muitos deles são trabalhadores mineiros realocados que chegaram pela primeira vez ao TIPNIS depois de 1985, quando, pelo decreto 21.060, muitas minas do país foram fechadas e outras inúmeras, privatizadas. Ou seja, são trabalhadores desempregados que foram para o Oriente boliviano em busca de terras para cultivo. Muitos outros colonos também viviam no Ocidente do país, lugar de terras áridas, e, sem ter onde plantar, migraram das regiões altas buscando terras férteis. O choque com os indígenas do Oriente vem de uma visão cultural e de desenvolvimento distintas. “Eles não entendem porque os indígenas têm centenas de hectares e eles só podem ter um pedacinho de tudo isso”, analisa Aramayo. Os mineiros deslocados, os agricultores e cocaleiros que chegaram do Ocidente querem expandir suas atividades, plantar e ter todo o conforto e comodidade oferecidos pelo capitalismo. Nessa perspectiva, precisam de mais terra. E precisam da estrada. Já os indígenas amazônicos do TIPNIS querem garantir o território da coletividade e a sustentabilidade de
Ruptura no Pacto de Unidade Outro golpe duro que o governo sofreu com a marcha dos indígenas do TIPNIS foi o rompimento do Pacto de Unidade, união de diferentes organizações sociais e indígenas e braço forte do governo de Evo Morales, que tinha o objetivo de ampliar a participação social dos bolivianos e impulsionar as reformas profundas propostas por Morales na estrutura do Estado. Com a marcha, se retiraram do Pacto uma parcela de duas das mais fortes instituições do país: a Cidob e o Conamaq. Em novembro, uma reunião tentou reestruturar o pacto, incluindo membros do Conamaq e indígenas do TIPNIS que são a favor da estrada. Entretanto, essa reestruturação seria feita sem incluir as instituições que se retiraram por conta das divergências provocadas pelas manifestações. “O Pacto de Unidade não era para respaldar somente o que faz o governo. Era para indicar caminhos no processo de mudança. Não é só para levantar a mão para receber visitas do Evo Morales. Temos o direito de sugerir planos estratégicos para este governo”, aponta Walberto Baraona, diretor de Meio Ambiente do Conamaq.
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seu ecossistema, para que seus filhos e netos possam ter direito àquilo que lhes deixaram seus ancestrais. Também precisam da estrada, para ter acesso mais fácil a saúde e educação. Querem a estrada. Mas não pelo TIPNIS. “Os de terras altas querem avançar, com sua lógica de progresso, de comércio, e os amazônicos têm outra visão de natureza, eles são extrativistas, coletores”, explica o analista político Carlos Cordero. “Para o indígena e para qualquer outra pessoa que viva ali, a floresta é o lugar que lhe permite estar feliz. Você não tem que comprar uma garrafa de água para matar a sede, e, se tem fome, pode pescar e assar seu peixe. Não tem que se preocupar com o monóxido de carbono que está respirando. Homem e natureza não podem estar separados. E se não fossemos nós, tudo já estaria destruído”, acredita Fernando Vargas. “É necessário entender aos diferentes setores em sua verdadeira dimensão. O próprio governo, apesar das mentiras e da forma equivocada como atuou, também precisa ser compreendido no seu quase desespero para se consolidar”, explica Antonio Aramayo. Isso porque todo o processo para que Evo Morales chegasse ao poder foi difícil, doloroso e levou anos, e, em seu esforço para não retroceder, o presidente busca o apoio de suas bases, das quais os colonos fazem parte. “Estamos falando do principal grupo de apoio, o movimento social que mais apoia o governo, os cocaleiros. Eles têm que expandir a fronteira agrícola. E devem também ganhar maior território para que se consolidem como um setor social economicamente forte, que tenha a possibilidade de influenciar nas decisões econômicas. Além disso, o governo pensa nessa relação com o Brasil, em maneiras de fortalecer essa relação”, analisa Aramayo.
Consequências
Essa busca por agradar as bases e fortalecer uma aliança com o Brasil, que resultou na marcha dos indígenas do TIPNIS, custou caro para o governo boliviano. A imagem internacional de Morales como líder de um governo indígena defensor da “Mãe Terra”, crítico do capitalismo, sofreu um abalo tão grande que esse ano o mandatário nem fez questão de aparecer na Conferência sobre o CIima realizada em Durban, na África. E, na Bolívia, nem se tocou no tema. Não foi só a imagem internacional de Evo que sofreu um arranhão profundo. Internamente, o governo também sofreu desgastes que resultaram em três renúncias ministeriais. O ano de 2011 levou muito da popularidade que o presidente conquistou, mas não
só por causa da marcha. Anunciando o que seria um ano complicado, em 1º de janeiro, o vice-presidente anunciou, num comunicado à nação, que o governo já não ia subvencionar combustíveis, o que fez a gasolina saltar de 3,80 bolivianos para quase 9 bolivianos. Foi o chamado “gazolinaço”. Os preços da cesta básica subiram até o céu, a população boliviana se enfureceu, e o governo voltou atrás em sua decisão. Mas o gazolinaço deixou outras marcas: uma grande desconfiança na população urbana com relação ao governo, principalmente por parte da classe média. E, após a marcha do TIPNIS, essa mesma classe média que um dia simpatizou com Evo Morales se afastou lentamente e se encontra no meio do caminho, à espera de um líder que os conquiste. “As classes médias que estavam à esquerda, que votavam no presidente Morales, se afastaram e se colocaram numa espécie de centro político. Agora, são uma classe eleitoralmente disponível”, analisa Carlos Cordero. O rechaço desse setor e da população boliviana em geral foi evidenciado no dia 16 de outubro, nas eleições judiciais. A Bolívia seria o primeiro país no mundo a eleger democraticamente seus
A marcha de agora tem uma forte ligação com a primeira grande marcha de 1990, mas a configuração política e os objetivos mudaram muito desde então
de respeito, para o ano que vem já temos preparada uma manifestação muito mais forte. O governo que se prepare”. E Fernando Vargas confirma: “Tampouco vamos ficar quietos. Alguma coisa nós vamos fazer. Eu não queria que chegássemos a um enfrentamento assim, entre irmãos. Depois o governo vai falar que é culpa nossa, dos dirigentes. Eu não queria. Mas se o governo quer as coisas assim, o que se pode fazer?”
A continuidade do processo de mudança
juízes, mas as coisas não saíram conforme o planejado. Ainda que os indígenas do TIPNIS tenham decidido interromper temporariamente a marcha no período entre a véspera das eleições e um dia depois do pleito, para não prejudicar o processo democrático, a população usou as urnas para mostrar toda sua insatisfação com o governo. Resultado: quase 50% de votos nulos e brancos. Apesar dos resultados, o MAS garante que as eleições foram legitimas e que não devem ser anuladas. O presidente, ignorando aparentemente a importância de reconquistar a simpatia da classe média, declarou: “O problema é de vocês. Não quiseram votar, e perderam, agora a justiça está nas mãos dos indígenas do país.” Para Antonio Aramayo, “é um desafio que tem custo político, porque a classe média tem influência no país”. Ou seja, esse tipo de provocação pode trazer consequências graves. Na Bolívia, a classe média tem grande influência nos meios de comunicação e em vários setores sociais, e perder esse apoio pode resultar em mais fragilidade política para o governo. “Os grupos mais ativos são os dirigentes, mas os que mudam a balança são as classes médias”, conclui Carlos Cor-
dero, fazendo uma ressalva: nas urnas, quem ganhou foi mesmo Morales. Segundo o analista, os magistrados poderão futuramente dar o aval para que o presidente possa voltar a ser candidato, podendo concorrer em 2014 e ganhar mais cinco anos de mandato. Mas o mais grave de tudo o que está passando nesse momento é a possibilidade de um conflito dentro do TIPNIS, entre os indígenas marchistas, colonos e cocaleiros. “Nesse setor, que se chama polígono sete, estão os cocaleiros, colonos que só cultivam coca. E ali perto estão algumas comunidades indígenas que estão sendo absorvidas pelos colonos, cultural e socialmente. Esses são os indígenas que querem estrada e que vieram a La Paz. E o presidente está praticamente dizendo: ‘briguem entre vocês’”, analisa Aramayo. Os colonos, com o apoio de cocaleiros, indígenas da região sul do parque nacional e até do governador do departamento de Cochabamba, já anunciaram que vão realizar uma marcha com mais de 1.500 pessoas para pedir a construção da estrada e a anulação da Lei 180. Por outro lado, os marchistas também já estão se organizando para tomar decisões. E Adolfo Chávez promete: “se passa essa falta
A marcha de agora tem uma forte ligação com a primeira grande marcha de 1990, mas a configuração política e os objetivos mudaram muito desde então. Àquela altura, as identidades indígenas do país eram ignoradas, marginalizadas e discriminadas. Essa primeira marcha, assim como as seis que vieram depois dela, tinham a intenção de lutar não só por território, como também pelo respeito e reconhecimento das mais de 30 etnias existentes no país. Desde que Evo Morales subiu ao poder, o cenário tem mudado. A Constituição reconhece 36 etnias e lhes garante – pelo menos em teoria – território e dignidade. “Agora já não se está pisando em ovos, há coisas concretas que foram conquistadas. É outro tipo de relacionamento, inclusive com o presidente. Tem que respeitar as leis que existem no país e que foram conquistadas ombro a ombro. Há uma continuidade, mas a diferença é que a primeira tinha um caráter de reinvindicação e essa é a exigência de um posicionamento político mais forte”, explica Antonio Aramayo. O esforço agora é de recuperar um processo que se perdeu no caminho. “Nós, os povos indígenas, estamos nesse desafio de redirecionar o processo. Queremos uma política de Estado, uma economia de Estado, em que o pluralismo legal seja aplicado sempre. As 36 nacionalidades têm que ser parte da reconstrução desse país”, considera Fernando Vargas. Enquanto isso, Ximena Quispe, a garota marchista do início da matéria, conta na escola o que aprendeu esses quase dois meses de convivência com os indígenas amazônicos. E a indígena originária do TIPNIS, Maria Regina Nujo, cuida de seu bebê, que nasceu exatamente no dia 19 de outubro. Dia da chegada da VIII Marcha em La Paz. F dezembro de 2011
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continente
Uruguai, Chile e as desigualdades latino-americanas Modelo econômico chileno, tido como exemplo em tempos idos, produziu um dos países mais desiguais da região. Pesquisador mostra como a condução política fez com que dois vizinhos pudessem ter uma composição social tão distinta
por vICtor fArInellI
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o dia 11 de novembro, aconteceu mais uma rodada das Eliminatórias para a Copa do Mundo de 2014, com destaque para a partida entre Uruguai e Chile. No mítico Estádio Centenário, o primeiro a sediar uma final de Mundial, um dos países menos desiguais do continente recebia um dos que têm a maior taxa de desigualdade. No quesito meramente futebolístico, a Celeste Olímpica goleou o Chile por 4x0. A seleção chilena de futebol poderia servir de metáfora – não perfeita, mas próxima – da imagem que o país projeta, sobretudo no mundo empresarial. Nunca foi exemplo de futebol vistoso, jamais conseguiu um título e seu passado contém episódios dos mais tenebrosos da história do esporte mundial, como o caso Rojas, mas volta e meia é citada como força emergente. Também é – os incidentes deste ano demonstram, sobretudo a manobra para a saída do técnico argentino Marcelo Bielsa, desafeto do presidente Sebastián Piñera – uma das equipes que, atualmente, está mais diretamente atrelada ao poder Executivo nacional, com claros fins políticos. Já a escalação atual do escrete vermelho reflete melhor o que vive boa parte da sociedade chilena. São raros os jogadores figurando entre os mais famosos e bem pagos do mundo, como Alexis Sánchez, contratação estelar do Barcelona; e o palmeirense Valdí-
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via, um dos maiores salários do futebol brasileiro. A grande maioria joga em times de menor expressão da Europa, incluindo alguns que militam nas segundas divisões espanhola e italiana, onde seus salários são dez vezes menores que o de um Valdívia e cem vezes menores que o de Sánchez. Mas não foi o futebol o que inspirou o economista chileno Andrés Zahler, da Universidad Diego Portales (UDP), a fazer um estudo mais detalhado da situação econômica das famílias chilenas. “Foi a partir da repercussão, na imprensa daqui, do fato de o PIB chileno ter superado os USD$ [pesos chilenos] 200 bilhões em 2010, o que nos mantém num patamar em que a renda per capita é comparável a de países como a Hungria. Logo me perguntei se as famílias chilenas possuem renda equivalente à média das famílias húngaras.” Junto a essa inquietação, somaram-se observações a respeito do índice de Gini, que mede a distribuição de renda em cada país, sendo zero mais próximo à equidade e 100 representando o total desequilíbrio. O Gini chileno é de 53 (superior ao do Brasil, que é de 49). Mas Zahler não se satisfez somente com o dado bruto, e resolveu lapidá-lo. Separou as famílias chilenas em dez extratos socioeconômicos e passou a analisar cada um deles e suas diferenças. O extrato
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mais rico da sociedade chilena, que segundo Zahler corresponderia a cerca de 1,5% das famílias do país, conta com uma renda média de aproximadamente USD$ 62 mil, padrão comparável ao de países como Noruega e Estados Unidos. “Claro que aqui estamos falando de um segmento aprofundado, a média entre os seus habitantes não varia tanto quanto a dos países; nesse caso, seria mais adequado comparar com a Noruega, cujo índice de Gini é de 25, enquanto nos Estados Unidos é de 45, e tem aumentado significativamente ano após ano”, explicou o economista. O segundo extrato mais elevado do Chile é o que mais se aproxima à renda média das
famílias da Hungria (Gini de 31), por volta de USD$ 21 mil, mas esse segmento constitui cerca 2,5% da população do país – somado ao primeiro extrato, não configuraria sequer 5% dos chilenos. O terceiro extrato (3% da população), de renda média por volta dos USD$ 14, 5 mil, é o primeiro setor que guarda semelhança com alguns países latino americanos, mais precisamente Argentina e México, cujos respectivos índices de Gini são 46 e 51, não muito melhores que os do Chile. Provavelmente, uma análise mais fragmentada da renda média de argentinos e mexicanos demonstraria o mesmo nível de desigualdade que veremos mais adiante. Entre o quarto e o sétimo extratos estabelecidos por Zahler, a renda média das famílias varia entre USD$ 11 mil (equivalente ao do Brasil e da Costa Rica, Gini de 50) e USD$ 6 mil (como a de El Salvador, Gini de 47). São os setores cujo patamar está mais próximo ao da maioria dos países latinos, incluindo alguns dos mais pobres, e representam, juntos, 23% das famílias chilenas – somados aos três anteriores, configuram
menos de um terço da população do país. No oitavo extrato, segundo o estudo de Zahler, a renda média é de USD$ 4,8 mil (como a da Guatemala, de Gini 48) mas este corresponde a 10% dos chilenos, ou seja, ainda não chegamos aos 50% mais pobres do país. Somente o penúltimo extrato atravessa a linha imaginária que avança até a metade de baixo. Cerca de 15% dos chilenos formaria parte do segmento que tem renda média de aproximadamente USD$ 3,6 mil, comparável com Índia e Filipinas (Gini 36 e 44, respectivamente). Aos demais 45%, quase metade da população, resta o último segmento, o de menores recursos, cuja renda mensal mal alcança os USD$ 2mil, e o que os equipara à média de países como Senegal (Gini 39) e Costa do Marfim (Gini 41).
O crônico Estado ausente Tendo em vista a capacidade de produção de riquezas do Chile, maior exportador mundial de cobre, o economista buscou entre os países vizinhos um parâmetro que pudesse evidenciar a má distribuição dessas riquezas, e encontrou no Uruguai o exemplo ideal. Nenhum dos dois países, segundo o economista, escapa à desigualdade que assola todo o continente, mas o panorama uruguaio não lhe parece tão cruel quanto o chileno. “O Uruguai produz quase quatro vezes menos que o Chile, mas a renda média dos dois países é equivalente, o que em si já demonstra um desequilíbrio menor, e daí a dedução de que a maioria dos uruguaios tem um padrão de vida melhor que a maioria dos chilenos”, analisa Zahler. O Chile sempre figurou entre os mais citados em círculos empresariais e nas análises macroeconômicas como um modelo a seguir no continente, ou no mínimo como o menos equivocado dos modelos da região. Em 2011, as ruas do país trataram de desmentir essa falsa impressão, com o movimento estudantil denunciando a brutal situação de endividamento vivida pela grande maioria das famílias chilenas, devido a um sistema educacional no qual não há gratuidade nem na rede pública, problema que se verifica também no serviço de saúde, além da Previdência Social que, ainda durante a ditadura, foi entregue inteiramente à iniciativa privada. Zahler vê com bons olhos o movimento estudantil que tomou o país – “as mensalidades universitárias chilenas são as mais caras do mundo, quando se faz a comparação com a renda per capita”, argumenta o economista, que não considera que o modelo de desenvolvimento econômico adotado pelo Chile nos últimos anos seja totalmente equivocado. Para ele, houve avanços importantes durante os governos da Concertación (aliança de centro-esquerda que governou o país entre 1990 e 2010), no sentido de frear o neoliberalismo exacerbado da ditadura de Pinochet, embora lamente que eles poderiam ter sido mais ousados, sobretudo no que diz respeito à proteção social. “O conflito estudantil também foi alimentado por aquele indivíduo que, mesmo quando não é afetado pelos problemas do modelo educacional, encontrou nas manifestações uma forma de dizer que se sente indefeso diante de um sistema que dá muito mais vantagens às empresas que aos cidadãos.”
Em forte sintonia com o trabalho de Andrés Zahler estão alguns números divulgados este mês pelo instituto Latinobarómetro (sediado no Chile e dedicado a realizar estudos a respeito da realidade socioeconômica da região latina). A pesquisa anual de medição da opinião pública realizada pelo instituto revela que os chilenos são os mais insatisfeitos do continente com a distribuição de renda em seus país: apenas 6% dos pesquisados a consideram justa ou muito justa. O Uruguai, utilizado por Zahler em seu estudo, está entre os países onde há menos insatisfação a esse respeito, embora somente 27% dos entrevistados tenham respondido positivamente – o país com maior índice de aprovação à distribuição de renda foi o Equador, com 43% de respostas positivas, enquanto o Brasil apontou um grau de satisfação de 15%. Outros indicadores do Latinobarómetro que ressaltam a teoria de Zahler: 62% dos chilenos se consideram muito ou minimamente satisfeitos com sua situação econômica, enquanto ente os uruguaios esse índice foi de 79% (o do Brasil foi de 81%, o mais alto foi o da Costa Rica, com 89%). No Chile, somente 30% consideram que a economia vai melhorar no próximo ano, contra 46% dos uruguaios – os brasileiros, com 64%, foram os latinos que mais demonstraram otimismo com o futuro econômico do país, entre os uruguaios o índice ficou em 46%. Por fim, 54% dos uruguaios consideram seu governo mais próximo dos interesses do povo, em comparação aos interesses das grandes corporações (o melhor índice do continente com respeito a esta pergunta, e o único que supera os 50%), muito mais que os 22% de chilenos que pensam o mesmo a respeito do seu governo e que os 27% de brasileiros. Logo, a versão socioeconômica do duelo entre Uruguai e Chile continua sendo muito mais preocupante que o resultado futebolístico. Os uruguaios, que desfrutam de direitos mais garantidos pelo Estado que os chilenos (como educação, saúde e previdência em sistemas híbridos, onde o Estado assume grande parte do serviço, entregue de forma gratuita), não tiveram um 2011 tão conturbado socialmente, e menos ainda futebolisticamente – os 4 a 0 sobre a seleção chilena consolidou a liderança cisplatina nas Eliminatórias da Copa, o que, somado ao título da Copa América, conquistado em julho, ratificou a Celeste Olímpica como a melhor do continente pelo segundo ano consecutivo. Tanto no futebol quanto na distribuição de renda, os chilenos precisam melhorar. F dezembro de 2011
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música
Entre “monstros” e “produtos” Livro Banda de Milhões revela bastidores da indústria fonográfica por meio da história de controversos empresários de artistas do mercado brasileiro por Pedro Alexandre Sanches
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ra uma vez “a incrível história da banda cujos integrantes (...) venderam (e vendem!!) mais discos que os Beatles”. Bombástico assim se apresenta, na contracapa, o livro Banda de Milhões (ed. Nova Leitura), biografia oficial de uma banda brasileira de rock que caiu no esquecimento no exato instante em que se desmantelou, em 1979. A história tem um quê de fabulosa ao contrário, pois não havia muito na banda que justificasse tamanho sucesso comercial. Formado em São Paulo no início dos anos 1970, o quinteto começou cantando em inglês e se passando por norte-americano ou britânico. Quando passou a cantar em português, ocupou-se mais de covers de Jorge Ben, Chico Buarque, Ivan Lins e Lamartine Babo que de repertório próprio. O palco de glória da banda, como a confirmar a origem paulistana tradicional dos integrantes, era o Clube Militar, nas matinês domingueiras pós-jovem guarda, tipicamente americanizadas. É provável que você nunca tenha ouvido falar do Lee Jackson, ou pense que se trata de um cantor ou grupo gringo. Mas o slogan reproduzido acima diz muito a respeito do que trata essa fábula às avessas. Primeiro, é preciso esclarecer como uma banda brasileira que vendeu mais que os Beatles pode ter caído no esquecimento há décadas, dentro e fora das gravadoras. A malandragem está desvendada no espaço preenchido no primeiro parágrafo deste texto pelo sinal “(...)”: os cinco integrantes do Lee Jackson venderam milhões de discos não como artistas, mas “como executivos”. Por ordem alfabética, os músicos Cláudio Condé, Luiz Carlos Maluly, Marco Bissi, Marcos Maynard e Sérgio Lopes abandonaram
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o Lee Jackson aos poucos, enquanto começavam e galgar cargos nos bastidores de gravadoras multinacionais como PolyGram, CBS, Sony, EMI e Warner, em países como Brasil, México, Chile, Espanha e Estados Unidos. Como presidentes, diretores artísticos, diretores de marketing ou produtores musicais, os cinco fizeram vender a granel discos de Roberto Carlos, Simone, Fagner, Ney Matogrosso, Fábio Jr., Julio Iglesias, A Turma do Balão Mágico, RPM, Kaoma, Djavan, Ricky Martin, Chitãozinho & Xororó, Gabriel o Pensador, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Zizi Possi, É o Tchan, Banda Eva e Ivete Sangalo, Cássia Eller, Terrasamba, Rita Lee, Roberta Miranda, Frank Aguiar, Chico Buarque, Daniel, Leonardo, Paula Fernandes, RBD, Restart… Manoel Poladian, o empresário dos rapazes da banda, não conseguiu catapultálos ao estrelato, mas ficaria conhecido nas décadas seguintes como um dos mais “agressivos” e controversos empresários de artistas do mercado brasileiro, pelo toque de Midas de inflar os lucros de gente na qual encostasse o dedo – caso de fases áureas das carreiras de Gal Costa, RPM, Ney Matogrosso, Rita Lee, Jorge Ben Jor, Titãs, Daniela Mercury… Poladian conheceu Maynard ainda nos anos 1960, no Mackenzie, onde foi seu veterano na faculdade de Direito – o livro não entra nesse mérito, mas se às vésperas do AI5, em outubro de 1968, eles tivessem participado da batalha campal entre estudantes da rua Maria Antônia, estariam no front conservador, do lado oposto ao da esquerdista Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP.
“Agressivo” é um adjetivo que os ex-Lee Jackson usam frequentemente para se referir a eles próprios como executivos, na biografia escrita pelo jornalista e ex-compositor da Jovem Guarda Tom Gomes. Quando falam dos artistas que ajudaram a consagrar, duas designações são recorrentes: “monstro” e “produto”. “Monstro sagrado” é um clichê usado à exaustão para caracterizar artistas de grande talento. Os rapazes deixam de lado o “sagrado”, mas é perturbador o número de vezes que classificam como “monstros” artistas como Bethânia, Caetano, Julio Iglesias etc. Quando o termo “produto” entra em pauta, o jogo fica mais sério. Bissi, Condé, Lopes, Maluly e Maynard representam à imagem e semelhança a última geração de executivos bem-sucedidos da indústria fonográfica multinacional, antes de ela começar a ruir por
seus próprios braços. Na lógica que advogaram e advogam, música e músicos significam menos arte e cultura que objetos comerciais de alta rentabilidade. “Monstro” e “produto” aparecem quase como antípodas, mas significativamente um artista só tem vez junto a esses ex-artistas se concentrar em si as duas “qualidades” simultâneas. Banda de Milhões é um livro às vezes confuso de ler (os trechos referentes a cada personagem são grafados em cores específicas – Bissi é vermelho, Condé é azul, Lopes é laranja, Maluly é marrom, Maynard é verde), mas muito saboroso. Contém, além de seus depoimentos, os de dezenas de artistas e homens de bastidores da indústria musical brasileira e internacional. O volume se aventura, em estilo frugal e casual, por searas que quase sempre os “artistas” por trás das engrenagens do showbizz preferem manter secretas e intocadas. Diz muito, sem se pronunciar explicitamente, sobre a simbiose entre trabalhadores de talento artístico inquestionável (como Caetano, Chico, Bethânia, Roberto, Rita Lee e Ben Jor, para ficar nos mais óbvios) e outros um tanto mais duvidosos (os ex-Lee Jackson). Nem sempre transparente, a simbiose é geradora de sucesso, prestígio e fortuna para ambos os lados. Há passagens às quais o termo “picaretagem” serve como luva. Poladian conta, divertido, de quando levou a banda para se apresentar na Argentina, e a trupe foi recebida no aeroporto de Buenos Aires com cartazes escritos “diretamente da Inglaterra: Lee Jackson”. Diz que ficaram apreensivos com a armação do contratante argentino, mas, bem, os rapazes se passaram por gringos também no Brasil natal, bem mais de uma vez. É Condé em pessoa que narra, por exemplo, suas participações solo no Globo de Ouro, um programa semanal tipo parada de sucessos que a Rede Globo levou ao ar nas décadas de 1970 e 1980. “Eu era sempre convidado para cantar os sucessos em inglês, já que os artistas internacionais que haviam gravado os discos originais, obviamente, não vinham se apresentar no programa”, ele relata. Ou seja, muitos cantores brasileiros se fingiam de gringos (Fábio Jr., por exemplo, era Mark Davis), inclusive em plena tela da Globo, para abastecer o amor do público brasileiro pela música dos colonizadores. Se em 2011 uma celeuma cresce no circuito dito “independente” da música brasileira, entre jovens artistas que aceitam se apresentar sem cachê e outros que se recusam, Banda de Milhões demonstra que a tre-
“Agressivo” é um adjetivo que os ex-Lee Jackson usam frequentemente para se referir a eles próprios como executivos, na biografia escrita pelo jornalista e ex-compositor da Jovem Guarda Tom Gomes
ta sempre correu solta, inclusive no circuito mainstream. Poladian fez acertos com Maynard, então diretor da CBS, para que o astro espanhol Julio Iglesias tocasse de graça no Brasil, apenas a troco de passagem, hospedagem e alimentação. O argumento era que, com a visibilidade alcançada, Iglesias auferiria lucro indireto, vendendo muito mais discos no Brasil. Maynard teve de convencer o cantor a trabalhar de graça, e o mercado local foi inundado por seus discos, que de fato venderam feito água, turbinados pela máquina promocional CBS-Poladian. A mecânica elástica das fábricas de sucessos musicais é revelada em episódios como o de um disco “ao vivo” da cantora mexicana Ana Gabriel, produzido por Max Pierre, ex-diretor artístico de gravadoras como Universal e Som Livre (o braço fonográfico da Globo). “Nós tínhamos desenvolvido uma técnica de gravar ao vivo que deu certo no Brasil e aí Maynard me chamou pra fazer o mesmo no México. Eles não sabiam fazer gravações ‘ao vivo’ como nós no Brasil (risos)”, conta Max. “Fomos pros estúdios da CBS, colocamos o ‘público’, ou seja, o público falso, as operárias da fábrica da Sony, fazendo o papel de plateia.”
Um insatisfeito Caetano e a volta de Bethânia
Após virar o mercado mexicano de ponta cabeça, Maynard voltou ao Brasil, em 1993, para presidir a filial local da PolyGram. Caetano Veloso era um dos artistas descontentes de então, que ameaçava (segundo Maynard) gravar “um disquinho de voz e violão” apenas para cumprir e encerrar contrato. Você raramente fica sabendo disso, mas quando seu ídolo faz um disco ligeiro, tipo “voz e violão”, “ao vivo” ou cheio de músicas repetidas, ele pode estar pensando menos em você que em se desincumbir de um contrato incômodo. Maynard convenceu Caetano a ficar na PolyGram, seduzindo-o com a ideia (influenciada pela experiência mexicana) de um álbum de sucessos latino-americanos românticos em espanhol, que viria a ser Fina Estampa (1994). Ainda segundo o executivo, Paula Lavigne, esposa e empresária de Caetano, adorou a ideia: “Isso vai ser maravilho-
so, Caetano, você vai poder fazer uma carreira internacional”. Um pouco antes, Maynard tinha conseguido reaquecer a carreira comercial de Maria Bethânia por intermédio de um disco de sucessos de Roberto Carlos. As canções que você fez pra mim (1993) se fez acompanhar por fatídica estratégia “agressiva” de marketing: do milhão de exemplares vendidos, 200 mil unidades foram entregues à Coca-Cola, em troca do uso da gravação de “Emoções” no comercial do refrigerante. De quebra, a marca se fortaleceu junto a seus revendedores, já que a Coca-Cola deu Bethânia & Roberto de presente a 150 mil donos de botequins, padarias etc. A inclusão de “Fera Ferida” como tema de abertura e título de uma novela global das oito completou o giro “agressivo” de convencimento do talento inquestionável de Bethânia. “Agressiva” parece ser, também, a interferência dos grandes mercadores de discos no conteúdo “artístico” que intermedeiam. É tabu pouco visitado, e sempre negado pelo lado de lá do balcão. Mas ao menos num caso Maynard assume com discurso triunfante que há, sim, tal tipo direto de interferência. A banda de axé music É o Tchan havia emplacado o hit nacional homônimo e preparava um novo CD. Maynard ouviu e não encontrou um sucesso à altura do “segura o tchan/ amarra o tchan/ segura o tchan, tchan, tchan, tchan, tchan”. O chefão da gravadora foi questionar o produtor do disco, Max Pierre: “Como, agora, eles vêm com a cordinha?! ‘Passa por cima da cordinha, por baixo da cordinha’, isso é uma besteira”. Maynard comunicou ao grupo que o lançamento estava cancelado enquanto não fosse criada mais uma música para o CD, sob um tema específico escolhido a dedo por ele: “Temos que falar agora da preferência nacional. Eu quero uma música que fale da bundinha”. Nascia assim “A dança da bundinha”. A vaidade dos ex-Lee Jackson é exercitada em várias passagens e circunstâncias do livro. Sérgio Lopes conta, empolgado, do dia em que a estrela Mariah Carey o chamou à suíte de seu apartamento, onde fez ao executivo de marketing da Sony “revelações muito íntimas”, “durante umas duas horas”. dezembro de 2011
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Ao final, a cantora pediu sigilo absoluto, que Lopes quebra/não quebra no livro. “Repliquei: ‘Mariah, eu sou um cavalheiro, jamais comentei sobre uma conversa que tive na cama com uma mulher’”, ele diz-não diz. Jabaculê é outro termo-tabu não pronunciado, mas isso não quer dizer que esteja ausente do livro oficial. Lopes discorre sobre o talento e a “sorte” da estrela pop colombiana Shakira. Não menciona um caso polêmico, mas o autor do livro o traz à tona na sequência, lembrando que em 2006 Tutinha, o poderoso-chefão da Jovem Pan, revelou que a Sony lhe pagou US$ 1 milhão para que em-
placasse Shakira em suas emissoras (e, por consequência, no Brasil inteiro). Dono de rádio a rigor independente de qualquer gravadora, ele ganharia US$ 1 para cada cópia vendida pela Sony. E disse que ganhou. Os momentos de autocrítica são menos frequentes que a recorrência de “monstro”, “agressivo” e “produto”, mas acontecem. Um exemplo é o episódio em que Maynard assume o insucesso de sua incursão aos Estados Unidos, em 1992, como presidente da PolyGram US Latin e vice-presidente da gravadora para o cone norte (México e EUA). “O sucesso subiu muito à minha cabeça, naquela hora”, confessa. “Três vezes isso aconteceu na minha vida. Uma, quando estourou o disco do Lee Jackson (…) e eu achei que realmente era uma estrela. E outra, no México. Foi onde meu ego subiu mais. (…) A terceira vez foi quando eu fui pros Estados Unidos. E também foi o pior momento da minha carreira.” Após a breve confissão, ele relata a hostilidade de executivos norte-americanos contra um brasileiro em Miami, e se põe a culpar o mercado norte-americano, sob laivos evidentes de preconceito. “Pra música latina, é um mercado breguíssimo. É o mercado mais brega da música latina. É o lugar onde vivem as pessoas que não tinham como crescer nos seus próprios países e foram tentar a vida nos Estados Unidos. (…) Mexicanos pobres e com pouca cultura.” Maynard jamais faz avaliação semelhante sobre a série de artistas e discos que vendeu aos milhões, nem sobre o público que consumiu tais milhões.
A crise do mercado fonográfico e os “monstros” de fora
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Já em seu final, o livro tem de adentrar terrenos mais pantanosos. A partir da disseminação da pirataria e dos downloads via internet, os ex-Lee Jackson passaram a viver na carne os efeitos de uma até hoje progressiva crise no mercado fonográfico mundial. Condé conta, casualmente, que teve de enfrentar o encolhimento da norte-americana Warner dispensando o vasto elenco sertanejo da gravadora – não parece ter sido uma solução feliz, já que em 2011 é esse o setor mercantil dominante no que resta dos escritórios locais das gravadoras multinacionais. Lopes foi atuar como diretor de marketing digital da EMI, desenvolvendo estratégias “agressivas” (embora uma ou duas décadas atrasadas) para a interface disco-celularcomputador. “Foi um desafio que Sérgio Lopes venceu”, afirma o autor, para dúvida do leitor: qual foi essa vitória?
Maluly, aparentemente o menos “agressivo” dos rapazes, fez carreira nas bordas das gravadoras, como produtor de discos pop-rock dos anos 1980, de RPM, Engenheiros do Hawaii, Metrô, João Penca e seus Miquinhos Amestrados. Hoje, consegue prolongar uma fase produtiva concebendo discos sertanejos de Paula Fernandes, Daniel, Leonardo e outros. O ponto crítico das carreiras de Maynard e Bissi se deu em 2006, quando ambos acabaram demitidos dos cargos de presidentes dos escritórios brasileiro e latino-americano da EMI, respectivamente, em meio a denúncias publicadas pela matriz inglesa, de que a filial brasileira teria praticado “fraude contábil”. A começar por Maynard, uma série de executivos-chefes da EMI em vários países caiu em efeito dominó, chegando até ao presidente mundial, Alain Levy. Um processo de Maynard contra a EMI corre em sigilo judicial. Notório por inflar, nem sempre legitimamente, as vendagens astronômicas de discos ao longo de sua carreira, ele argumenta que agiu dessa maneira na EMI cumprindo ordens dos superiores gringos. Detentora do catálogo dos Beatles originais, a gravadora pretendia se valorizar para adquirir ou ser adquirida por outra exgigante, a Warner. Quem vem explicar a metodologia empregada é Manolo Diaz, um dos executivos mentores dos ex-Lee Jackson. “Eu era presidente da unidade espanhola (da EMI) e fiz o que me foi solicitado. Insisti com grandes cadeias de lojas para que me comprassem grandes quantidades de produtos. (…) Era uma tentativa desesperada e irracional de mostrar que seguíamos tendo uma participação importante no mercado. Graças a esta estratégia, terminamos muito bem o ano fiscal. Mas, no ano seguinte, pagamos pelo pecado. O inevitável aconteceu: as devoluções das lojas foram enormes e um grande prejuízo passou a fazer parte de nossa contabilidade”. É, provavelmente, o único momento do livro em que alguns desses poderosos personagens se colocam em posição subalterna, de cumpridores de ordens alienígenas. É também um flagrante de sinceridade e retrato preciso do momento presente para aqueles que foram roteiristas principais da última fase dourada das gravadoras no Brasil e no mundo. Atrás de Bissi, Condé, Lopes, Maluly e Maynard, sempre estiveram à espreita outros “monstros”, estrangeiros e bem mais assustadores que um Caetano Veloso ou um Roberto Carlos. F
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NO ÚLTIMO 16 DE NOVEMBRO, POR INICIATIVA DO DEPUTADO SOCIALISTA ARGENTINO RAÚL PUY, foi descerrada uma placa na fachada do Hotel Normandie, em Buenos Aires, em homenagem ao músico brasileiro TENÓRIO JR. O hotel, localizado na Rua Rodriguez Peña, 320, quase no cruzamento entre as mitológicas Avenidas Callao e Corrientes, fica na zona boêmia e cultural da cidade. A placa tem os dizeres: “Aqui se hospedou este brilhante músico brasileiro, vítima da ditadura militar argentina”. Quem toma conhecimento do episódio assim, a meia distância de quase 40 anos, pode imaginar que se trata de um passado muito remoto ou ficção, mas não é. Era a década de 1970, e Tenório Jr., conhecido e renomado pianista brasileiro, estava na capital portenha acompanhando a temporada de Toquinho e Vinícius no Teatro Gran Rex. Certa noite, saiu do Hotel Normandie para comprar remédios, e nunca mais apareceu. Era 18 de março de 1976, seis dias antes do golpe militar que destituiu Isabelita Perón do poder. Daquela noite em diante foi empreendido um grande esforço dos seus companheiros e amigos ilustres como o poeta Ferreira Gullar, que estava exilado na Argentina. Foram percorridos hospitais e delegacias de Buenos Aires e arredores, solicitada ajuda da embaixada brasileira, e nada. O paradeiro de Tenorinho, como era conhecido, só foi descoberto dez anos depois. Em 1986, o agente da ditadura argentina e ex-torturador Cláudio Vallejos, que integrava o Serviço de Informação Naval argentino, deu com a língua nos dentes e “vendeu” para a revista Senhor uma entrevista, na qual contava o paradeiro de vários brasileiros desaparecidos naquele país, entre eles, Tenorinho. O pianista, que nunca teve a menor atividade política – fato este que não justifica o descalabro, mas corrobora com a sandice da história –, fora confundido com um ativista político. De acordo com Vallejos, o músico apanhou tanto que, quando foi detectado o engano, não havia mais retorno. Estava tão machucado que o jeito que encontraram foi matá-lo com um tiro para ocultar o erro. Na mesma entrevista, o agente apresenta ainda dois documentos com intervalos de cinco dias. No primeiro deles, de 20 de março de 1976, um certo capitão Acosta – hoje preso na Argentina por liderar o aparato repressivo –, por intermédio do contra-almirante Chamorro, solicita ao colega brasileiro do SNI informações sobre o pianista brasileiro. No outro, de 25 de março de 1976, comunica ao governo do Brasil o falecimento do cidadão brasileiro Francisco Tenório Júnior, passaporte n° 197803, de 35 anos, músico de profissão, residente na cidade do Rio de Janeiro, e disponibiliza o cadáver. Os colegas do governo brasileiro de então, irretocáveis na emenda ao soneto, além de não reclamarem o corpo, nunca avisaram à família do músico sobre o seu paradeiro. Seus familiares só souberam de tudo junto com todo o povo brasileiro, por meio da entrevista de Cláudio Vallejos à revista Senhor, dez anos depois. Tenório Jr. era um brilhante compositor e pianista. Hoje, muito provavelmente teria o mesmo reconhecimento de Sérgio Mendes, Luiz Eça e congêneres. Havia gravado, em 1964, seu único disco, o lindo Embalo, reeditado recentemente pela Dubas Música. Que a placa do deputado Puy sirva para, entre outras coisas, nos lembrar sempre de tudo o que foi criado por ele, da sua linda vida interrompida, dos sonhos que não foram vividos, dos discos que não foram gravados, enfim, do tempo que não foi possível. E que sirva, principalmente, para que não nos esqueçamos jamais desta e de tantas outras histórias. A memória de Tenório Jr., entre tantos outros desaparecidos na América Latina, estará sempre de guarda, ali na rua Rodriguez Peña, para que um tempo assim nunca mais se repita.
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HÁ POUCO MAIS DE UM ANO, O CANTOR E COMPOSITOR GERALDO VANDRÉ deu ao jornalista Geneton Moraes Neto uma longa, completa e elucidativa entrevista. Fazia quase 40 anos que ele se mantinha em um intrigante silêncio. Um silêncio que custou, tanto aos apaixonados por sua música quanto aos envolvidos na longa luta contra a última ditadura militar brasileira, um sem fim de lendas. Logo depois que, em 1968, cantou em coro com o Maracanãzinho lotado a canção “Caminhando”, ele se exilou em Paris, onde gravou um último disco, o estranho e maravilhoso Das terras do Benvirá, e desapareceu de vez da cena para virar lenda. Uns diziam que Vandré havia sido torturado e, por conta disso, estaria louco. Outros, que fora vencido pela amargura imposta pelos militares e por aí afora, num sem-fim de histórias que a sua figura serena e impávida jamais poderia suspeitar. Com respostas curtas e francas, Vandré não foge a nenhuma das perguntas. Age todo o tempo com uma desfaçatez sem fim. Diante da dúvida principal de qual seria a razão para toda a ausência, responde, ainda que não explicitamente, com a pergunta: “Qual seria a razão para não estar ausente?” Quem se dispuser a ouvir as suas premissas com o espírito desarmado poderá ter grandes surpresas. Não faz proselitismo, não fala contra nem a favor de quase nada. A única crítica que quase faz é contra os tropicalistas, através de duas ou três frases sem importância. Diz que ficou fora dos acontecimentos estudando leis (Vandré já era formado em Direito, na época dos festivais). Fala que compôs uma obra sobre a FAB, a Força Aérea Brasileira. Dá a entrevista no Hotel de Trânsito da Aeronáutica, no Rio, com a insígnia da corporação no peito, diz que tem paixão por aviões desde a infância. Na canção da FAB, deverá usar helicópteros como percussão. Ao mesmo tempo, diz que quer terminar um poema sinfônico em língua espanhola e que vai lançá-lo fora do Brasil, pois ninguém mais vive no Brasil, apenas se amontoa. Ao ser perguntado sobre o que viu ou ouviu no nosso País que tenha sido de fato interessante desde o seu regresso, na década de 1970, responde sem pestanejar que foi o Movimento Armorial, encabeçado por Ariano Suassuna, uma coisa de 30 anos atrás. De resto, só cultura de massa, e que os poucos artistas que existem, como Edu Lobo e Chico Buarque, trabalham esporadicamente e têm uma carreira muito segmentada. Não demonstra rancor por nada. Tudo o que aconteceu, aconteceu e pronto. Diante do imponderável, diz com uma lógica desconcertante que ter sido anistiado (Vandré foi exonerado pelo regime militar da carreira de servidor público e, depois, com a anistia, reintegrado) por gravar canções subversivas é um atestado de que teria cometido um crime; do contrário, não teria porque ser anistiado. Ao mesmo tempo, confessa que nunca teve militância política, apenas compunha e cantava canções. No final das contas, o repórter insinua o alheamento, dizendo que Vandré vive num país de um habitante só, ele mesmo. Talvez seja isso. Depois de quatro meses de insistência, o artista finalmente concordou em falar. E se limitou a dizer o óbvio, ou seja, o universo do show business se transformou, para ele, numa pobreza tão grande que a única coisa que resta é ignorá-lo solenemente. E assim tem sido. Ao ser perguntado se o público terá chance de ver Vandré cantando “Disparada” e “Caminhando” novamente, responde: “Isso é profecia, não sou profeta.” Ao final, a única conclusão plausível: Vandré se manteve absolutamente sóbrio num mundo de tolos.
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Yo non soy turista! D
ezembro é um mês difícil pra quem gosta de frequentar bares em São Paulo. As comemorações de fim de ano são infernais. Juntam-se “colegas” de trabalho que, no dia a dia, às vezes nem se conversam, às vezes se sacaneiam, e vão a um bar brindar e entregar presentes de amigo secreto (em alguns lugares, o nome é amigo oculto) entre gritinhos estridentes. Pessoas que não bebem, tomam umas e outras e se tornam o centro do mundo, falando alto, gritando, dando risadas altas por qualquer motivo. E quem é botequeiro normalmente fica sem ambiente nesses lugares. Antes de ser um aposentado, um vagabundo que suga o dinheiro da nação segundo alguns por aí (os 35 anos de pagamento de INSS seriam para quê?), eu tentava sair de férias em dezembro não por gostar do calorão desse mês. Era para escapar das festinhas de fim de ano em São Paulo.
Numa dessas, entra o Gutierrez, meio basco meio catalão. Federico Gutierrez, sogro de um amigo nosso, o Zé Marruais, apesar da diferença de idade, ficou amigo da turma toda, e nós o chamávamos de Don Gutierrez. Chegou a nos acompanhar num acampamento de malucos, onde se tornou nossa salvação, fazendo tortilhas que comíamos aos montes. Uma vez, estávamos saindo de viagem de férias para o Nordeste e ele disse que também sairia de férias dali uns dez dias, e iria encontrar conosco onde estivéssemos. Não acreditamos, mas foi. Naquele tempo não existiam certas facilidades, como os telefones celulares, e a gente não tinha dia certo pra chegar a lugar nenhum nem sabíamos em que hotel – geralmente espeluncas – iríamos ficar. Então, calculamos que, na data da sua saída de férias ,estaríamos em Recife, e marcamos um ponto lá. Combinamos que todos os dias passaríamos pelo Bar Savoy e deixaríamos grudado numa coluna um recado com referências sobre o nosso paradeiro. No dia em que saiu de férias, pegou um ônibus pra Recife. Deixou as roupas num
hotelzinho e foi direto para o Bar Savoy, na Avenida Guararapes. E coincidiu que estávamos mesmo na cidade, o Luizinho, o Pretinho, Marinho, eu e um bando de meninas que namoravam ora um, ora outro. Ele chegou lá, não estávamos no bar, procurou na coluna bem no meio dele e achou um papelzinho colado com durex. E foi atrás da gente. Entrou no grupo e continuamos a viagem juntos. Fomos para João Pessoa. Logo em seguida, chegaram as meninas que namorávamos em Recife. Resolveram continuar nossos namoros. E continuamos namorando ora, uma ora outra. E o Gutierrez junto, sem namorar nenhuma (nem tentou), mas achando tudo muito divertido. Mas havia um problema: ele andava com um bermudão largo, uma camisa cheia de coqueiros, boné, óculos escuros e uma máquina fotográfica pendurada no pescoço, falando portunhol. A gente fazia tudo pra não parecer turista, e ele era o turista típico, numa época que essa categoria não era tão bem-aceita como é hoje. Onde ele passava, com aquele jeitão, tudo dobrava ou triplicava de preço, e ele chiava com o que cobravam: “Pero, yo non soy turista!” Tentamos convencê-lo a não ser tão ostensivo, mas não tinha jeito. Aí, partimos pra sacanagem. Usando a sua máquina, quando se distraía, fotografávamos só besteiras. Eram chinelos na praia, mesas de botecos, troncos de coqueiro, os nossos próprios pés, só bobagens mesmo. E, num certo momento, pedimos que duas meninas se revezassem pulando no pescoço dele e o beijando. Ficou completamente atrapalhado, com aquelas meninas bonitas, de biquínis minúsculos se esfregando nele e o lambendo, mais do que beijando. E, pra piorar, nem imaginou que fotografamos tudo... com a máquina dele. Don Gutierrez só mandou revelar as fotos quando chegou de volta a São Paulo. E só abriu os envelopes quando chegou em casa, para ir vendo as fotos pela primeira vez junto com a dona Angelina, sua mulher. E aí... surpresa! Como explicar aquelas gostosinhas quase nuas grudadas nele? Não teve explicação. E por pouco não teve divórcio. F
MOUZAR BENEDITO, mineiro de Nova Resende, é geógrafo, jornalista e também sócio fundador da Sociedade dos Observadores de Saci (Sosaci).
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