109 ano11 abril 2012
A ofensiva evangélica Como os setores mais conservadores das igrejas vêm conquistando um espaço cada vez maior no cenário político nacional
Os rastros dos crimes de maio de 2006
1519-8952
no 109 R$ 8,90
É preciso acabar com o foro privilegiado
ISSN
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abril de 2012
Os evangélicos na arena política EUA e os teocratas
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Maio de 2006: crimes impunes
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As expectativas para a Rio+20
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Um Estado presente Clacso A rede das redes
As eleições na França
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Pachamama e as forças produtivas
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Fogo contra os mapuches no Chile
40 Os saltimbancos mamulengos 44 A verdade sobre a ditadura 46 O que mudou com a Fundação Casa
Cartas
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Diversidade
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Direito
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Mundo do trabalho
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Nossa Estante
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Toques Musicais
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Penúltimas Palavras
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As igrejas e os direitos de todos Nesta edição, Fórum trata de uma questão que vem ganhando cada vez mais relevância: a influência de religiosos no cenário político. Alas mais conservadoras têm conseguido barrar avanços que seriam importantes para a sociedade, como a educação voltada
para o combate à homofobia, que faz vítimas todos os dias no Brasil, colaborando para perpetuar também a contínua negação de direitos básicos a homossexuais.
É direito das igrejas participarem das discussões como importantes atores sociais que são, mas também é preciso observar os direitos consagrados pela Constituição, que
assegura igualdade a todos. A mesma Carta também explicita o caráter laico do Estado
brasileiro. Algo que inclusive se relaciona com a garantia da pluralidade religiosa, já que só a laicidade estatal faz com que não existam privilégios a esta ou àquela denominação, como no passado, quando o catolicismo era a religião oficial do Brasil.
Mas como descreve a matéria de capa, atribuir apenas aos religiosos a não efetivação de direitos de homossexuais ou a quase ausência de um debate sobre e legalização do aborto não é justo. Não só porque há adeptos de igrejas que não corroboram as
opiniões mais conservadoras, como também porque há muitos leigos, nos governos,
parlamentos e mesmo na sociedade civil que se omitem quando temas considerados polêmicos e atinentes à moral vem à baila. Temem perder prestígio e/ou votos, e se calam diante da injustiça que deveriam combater.
Trata-se de um silêncio que faz perdurar a desigualdade entre os cidadãos, deixando o palco de debates para os ruidosos que parecem falar sozinhos.
A luta pela efetivação de direitos a todos, sem distinção ou discriminação, deve ser uma meta trabalhada em conjunto por aqueles que acreditam na realização plena da democracia em nosso País. E, no período eleitoral que se aproxima, deveria ser também um compromisso a se exigir dos homens públicos.
Selo FSC
Publicação da Editora Publisher Brasil. Editor: Renato Rovai. Editor executivo: Glauco Faria. Edtora de arte: Carmem Machado. Colaboradores desta edição: Cynthia Semíramis, Douglas Estevam, Emir Sader, Gisele Brito, Idelber Avelar, Julinho Bittencourt, Leonardo Fuhrmann, Mario Henrique de Oliveira, Mouzar Benedito, Nina Fideles, Pedro Venceslau, Rodrigo Savazoni, Sofía Argüello Pazmiño, Túlio Vianna, Vange Leonel e Victor Farinelli. Foto de capa: David Ribeiro Revisão: Denise Gomide e Luis G. Fragoso. Estagiários: Camila Cassino e Carolina Rovai. Administrativo: Ligia Lima e Pâmela dos Santos. Representante comercial em Brasília: Joaquim Barroncas (61) 9972.0741. Publisher Brasil: Rua Senador César Lacerda Vergueiro, 73, Vila Madalena, São Paulo, SP, CEP 05435-060. Contatos com a redação: (11) 3813.1836, e-mail: redacao@revistaforum. com.br. Para assinar Fórum: assine@revistaforum.com.br, http://assine.revistaforum.com.br. Portal: www.revistaforum.com.br. Impressão e CtP: Bangraf. Distribuição: Fernando Chinaglia. Fórum Outro Mundo em Debate é uma revista inspirada no Fórum Social Mundial. Não é sua publicação oficial. A divulgação dos artigos publicados é autorizada. Agradecemos a citação da fonte. Matérias e artigos assinados são de responsabilidade de seus autores. Circulação desta edição: 10/04/2012 a 9/05/2012 Conselho Editorial: Adalberto Wodianer Marcondes (Agência Envolverde), Alipio Freire (jornalista), Artur Henrique dos Santos (CUT), Beatriz da Silva Cerqueira (Coordenadora do Sind-UTE/MG ), Cândido Castro Machado (Sindicato dos Bancários de Santa Cruz), Cândido Grzybowski (Ibase), Carlos Ramiro (Apeoesp), Claiton Mello (FBB), Eduardo Guimarães (Movimento dos Sem Mídia), Gustavo Petta (Conselho Nacional da Juventude), João Felício (CUT), Jorge Nazareno (Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco), Lúcia Stumpf (Coordenação dos Movimentos Sociais), Luiz Antonio Barbagli (Sinpro-SP), Luiz Gonzaga Belluzzo (economista e professor da Unicamp), Marcio Pochmann (economista e professor da Unicamp), Maria Aparecida Perez (educadora), Moacir Gadotti (Instituto Paulo Freire), Paul Singer (economista e professor da USP), Paulo Henrique Santos Fonseca (Sindicato dos Bancários de BH), Ricardo Patah (Sindicato dos Comerciários de São Paulo), Roberto Franklin de Leão (CNTE/CUT), Rodrigo Savazoni (Intervozes), Sérgio Haddad (Ação Educativa), Sergio Vaz (Cooperifa), Sueli Carneiro (Geledés), Vagner Freitas de Moraes (Contraf/CUT) e Wladimir Pomar (Instituto de Cooperação Internacional). abril de 2012
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Edição 106 Leio a Fórum com certa frequência, maior parte das vezes pelo website. O editorial é muito bom e a qualidade, excelente. Na edição 106, entretanto, fiz questão de comprar o exemplar impresso (que sai muito antes) por estampar na capa uma das pessoas que considero de grande importância para a sociedade, mas também como aprendizado que podemos obter de suas ações: Pablo Neruda. Além da reportagem ser sobre um ícone da literatura, relata fatos acontecidos no Chile. Para mim, dos nossos países vizinhos, o Chile é o que mais atrai minha atenção, pela luta que seu povo tem travado ao longo da história, e com mais força nos últimos anos, contra governos estabelecidos de forma autoritária ou pouco democrática, segundo o processo eleitoral atual. Eles muito ensinam a nós, brasileiros. A brilhante reportagem sobre a suposta verdadeira causa da morte de Pablo Neruda estava fantástica e traz à tona detalhes não antes aprofundados e pesquisados. Apesar desse fim ser possível para muitos, e de certa forma ter me deixado triste com a real possibilidade, o estudo dessa possibilidade, com os argumentos postos, me deixa aliviado de que, enfim, esse fato esteja sendo elucidado. André Dantas
O direito ao próprio corpo (edição 106) Texto perfeito! Como podem querer pessoas responsáveis se nem autonomia sobre elas mesmas é possível? Vamos mudar isso! Sylvio Deutsch
Educação para uma nova sociedade (edição 107) Gosto de ler artigos que colocam a educação como dependente de soluções sociais e econômicas, e não como panaceia para esses problemas. Com abundância de dados, assim, melhor ainda. É uma perspectiva pouco assumida, no geral se considera a educação como a única responsável pelos problemas e pela
solução das questões socioeconômicas. Muito bom!
Se você quer saber como a gente sustenta boa parte da qualidade da revista que você lê, dê uma olhada nestas logomarcas
Isabela
Jornada de 12 horas semanais (página eletrônica) Essa armadilha do emprego parcial é um desastre para as mulheres, sobretudo as jovens: piores salários são “compensados” com múltiplos empregos e acumulação de jornadas de trabalho. Um horror. A ideia ingênua de conciliar trabalho e vida pessoal sem transformar esse contexto de superexploração capitalista e precarização das condições de trabalho deu no que deu na Europa: a mulherada se mata de trabalhar (mulheres pobres, jovens e migrantes são as mais penalizadas!) e continuam com a carga pesada dos cuidados e da reprodução da vida. Áurea
Toques Musicais (edição 107) Desculpe, Julinho, mas eu não incluiria Zezé di Camargo & Luciano na lista de nomes talentosos. Eles, assim como Wando, Alexandre Pires, Leandro Lehart, DJ Marlboro, Chitãozinho & Xororó e tantos outros também corresponderam à breguice que nos indigna hoje. Eles também eram medíocres, mas hoje são vistos como “geniais”. Zezé di Camargo & Luciano e Chitãozinho & Xororó, assim como Daniel, Leonardo e outros, eram nomes que já deturpavam, nos anos 80-90, a música caipira, com fórmulas claramente comerciais. Eles eram o “sertanejo universitário” da época, risível na ocasião. Mas hoje a coisa piorou tanto que eles agora são vistos como “música de raiz”. A grande preocupação é que, daqui a 20 anos, nossos mestres serão Michel Teló, Mr. Catra, MC Créu, Valesca Popozuda, Leva Nóiz, Tiririca e outros. Até lá, a “música popular” será reduzida a urros e grunhidos, e qualquer um que for além disso é “genial expressão da gente simples”. É bom tomarmos cuidado com a mediocrização cultural. O Brasil está virando uma terra de cego, e qualquer medíocre vira mestre por conta da sua visão cultural míope.
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poder
Quando Deus pauta a política
A ascensão e o fortalecimento dos evangélicos na arena política se relacionam mais com a defesa de interesses corporativos de algumas igrejas do que a valores propriamente religiosos
por Glauco Faria
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bleia de Deus, que desencorajavam seus fieis ao pregar que eles não deveriam se envolver com partidos, movimentos sociais, sindicatos e organizações similares. Mas, para garantir seu espaço na elaboração da nova Constituição, lideranças da própria Assembleia de Deus, do Evangelho Quadrangular e da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD, que nunca sustentou o discurso antipolítico) passaram a se organizar com fins eleitorais. Paul Freston, em seu livro Evangélicos na política brasileira: história ambígua e desafio ético, conta que, em janeiro de 1985, na Convenção Geral das Assembleias de Deus do Brasil, políticos evangélicos de outras igrejas, como Íris Rezende, pediram à igreja que se envolvesse nas eleições para o novo Congresso. Naquele mesmo ano, em um encontro
realizado em abril, os assembleianos apresentaram candidatos recrutados em suas fileiras, sendo que, em quatro estados, apoiaram outros candidatos pentecostais. A tática eleitoral, hoje muito conhecida dos brasileiros em geral, foi a do medo, como descreve Freston, que entrevistou o presidente da Convenção Geral das Assembleias de Deus do Brasil, José Wellington Bezerra da Costa. Segundo o religioso, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) “estava com um esquema armado para estabelecer a religião católica como a única religião oficial”. Em Recife, houve a distribuição de panfletos nos quais se insinuava que a futura Constituição iria proibir reuniões religiosas em logradouros públicos. As lideranças da Assembleia de Deus também faziam questão de lembrar que a nova Cons-
João Campos (PSDB-GO), líder da Frente Parlamentar Evangélica, e outros deputados em culto realizado na Câmara às quartas David Ribeiro / Ag. Câmara
os últimos meses, os evangélicos têm aparecido cada vez mais no cenário político e nas manchetes dos noticiários, ostentando grande capacidade de interferir nas decisões políticas e causando arrepios a muitos que consideram o Estado laico ameaçado. As vitórias do segmento ficaram evidentes em episódios como o recuo do Ministério da Educação na distribuição de kits para combater a homofobia nas escolas, a não veiculação de um vídeo de combate à aids voltado para o público LGBT, os inúmeros obstáculos interpostos ao PLC 122 – que criminaliza a homofobia – no Congresso Nacional e mesmo a rocambolesca postura do governo e de seus representantes no Parlamento no item da Lei Geral da Copa, que previa a liberação de bebidas nos estádios. Outro momento constrangedor para o governo federal se deu quando Gilberto Carvalho, secretário-geral da Presidência, se reuniu com representantes da Frente Parlamentar Evangélica para, entre outros pontos, pedir desculpas por declarações em que teria criticado os religiosos durante o Fórum Social Temático de Porto Alegre. A impressão geral, e que inteligentemente os próprios líderes evangélicos fazem questão de reforçar, é que o governo e grande parte do Congresso se dobram diante das pressões do setor. Mas qual a natureza desse poder dos evangélicos? Tratase de uma força superestimada ou é fruto de uma articulação de interesses que vem se tornando mais sólida nos últimos anos? Para entender o papel desempenhado pelos evangélicos na política, é preciso resgatar as eleições para a Assembleia Nacional Constituinte, em 1986. Até aquele ponto, pentecostais e neopentecostais não se organizavam para garantir sua participação na política institucional. Alguns chegavam a repelir tal possibilidade: foi o caso dos dirigentes da Assem-
tituição poderia estabelecer pontos como a legalização do aborto, a liberação das drogas e o casamento de homossexuais. Ali, já se notava o potencial eleitoral da igreja: dos 18 indicados, 13 foram eleitos, além de um suplente. Na legislatura anterior, a igreja tinha apenas um deputado. No total, os evangélicos chegaram a ocupar 33 cadeiras no Congresso Nacional, pautando debates de cunho moral na Casa, como ressaltam Alvaro de O. Senra e Denise S. Rodrigues no artigo “Irmão vota em Irmão!”, publicado na revista Espaço Acadêmico. “Nessa conjuntura, criaram-se condições para que uma agenda política conservadora, de inspiração religiosa, pusesse na pauta dos debates e votações do Legislativo temas controversos, como a possibilidade de financiamento público para o ‘tratamento’ de homossexuais que desejassem ‘reverter’ para a condição de heterossexualidade.” Sem fazer qualquer separação entre a esfera política e a moralidade privada, os parlamentares se entrincheiraram em trabalhos como os da subcomissão da Família, do Menor e do Idoso, manifestando-se contra a igualdade de direitos para homossexuais, o aborto, a descriminalização das drogas, e defendendo a censura nos meios de comunicação. Mas a atuação não se limitava a temas relativos à moral. Os interesses corporativos das igrejas foram defendidos de uma forma bastante usual dentro das práticas do Parlamento: a fisiologia. Além de marcar presença na Subcomissão da Ciência, Tecnologia e Comunicação, o grupo obteve benefícios: em troca do apoio dado à emenda que concedia um ano a mais de mandato ao presidente Sarney (de autoria do deputado Matheus Iensen, do PMDB-PR, da Assembleia de Deus, que controlava emissoras de rádio e uma gravadora evangélica); alguns membros parlamentares ligados às igrejas foram agraciados com concessões de rádio e televisão. Valdemar Figueiredo Filho, autor de Coronelismo Eletrônico Evangélico, destaca que, no período de 1985 a 1988, foram dadas 946 concessões de rádio e 82 concessões de televisão, sendo que 539 (52%) foram distribuídas entre janeiro e outubro de 1988, últimos Da lista de 91 parlamentares que meses da Constituinte, ganharam concessões, quando se debatia a du- 84 (92,3%) votaram ração do mandato do a favor do mandato presidente José Sar- de cinco anos para ney. Na prática, a área Sarney. Como muitos parlamentares recebede comunicação seria a ram as concessões em principal área de atua- nomes de terceiros, o ção dos parlamentares rol de beneficiados é evangélicos. “Os inte- maior do que o oficial.
resses na representação política estão relacionados às estruturas midiáticas de que os grupos religiosos dispõem. É o que de fato justifica a formação de uma bancada parlamentar”, argumenta Figueiredo Filho. A Assembleia Constituinte representou um verdadeiro divisor de águas na representação política evangélica. Segundo Leonildo Silveira Campos, foi ali que houve uma diferenciação entre “políticos evangélicos” e “políticos de Cristo”. O primeiro grupo, disperso, cuja origem remete à República Velha, não era composto por representantes dos interesses corporativos de suas igrejas e se inspirava nos ideais liberais dos norte-americanos. Já o segundo grupo passa ao largo de ideologias ou programas partidários, representando, prioritariamente, as demandas de suas organizações religiosas. Nesse sentido, a fraqueza do sistema partidário brasileiro favorece a inserção dos “políticos de Cristo”, que se distribuem por diferentes partidos, de acordo com as negociações com dirigentes e maiores possibilidades eleitorais em cada local. Um advento recente, o surgimento de uma nova classe média, seria também mais uma oportunidade para algumas instituições religiosas ganharem poder político. “Temos a emergência, no Brasil, de uma classe C, que é conservadora e vinculada ao consumo e à família. A palavra de ordem é sucesso, e não mobilização social. O perfil de liderança que se alimenta dessa situação é um líder carismático, que fala ‘Deus está comigo’, e é esse tipo de liderança que está surgindo, é o discurso do sucesso do indivíduo aumentando sua eficácia”, sustenta o sociólogo Rudá Ricci. “Como não temos um sistema de representação que se enraíza nessa classe C, tais lideranças ganham força. Vem aumentando a relação daqueles que professam alguma fé com a materialidade, usando a religião como fator de ascensão social.” O sociólogo Pedro Ribeiro de Oliveira também observa que a fragilidade dos partidos é um fator que favorece o fortalecimento desses grupos religiosos na arena política. “O Estado é o campo próprio das políticas públicas, e é legítimo que igrejas e outros organismos da sociedade queiram influenciar o rumo dessas políticas. O problema é quando as igrejas – e outros organismos da sociedade – se comportam como se fossem partidos políticos e usam sua capacidade de influir nas eleições para reivindicar privilégios diante do Estado”, argumenta. “Um Estado respaldado por partidos políticos fortes – como pretende o projeto cidadão de Reforma do Estado – pode resistir a tais pressões. Um Estado despolitizado,
porém, é frágil diante de pressões indevidas. Infelizmente, é este o nosso caso.”
Impérios midiáticos
“Essas igrejas nascem no espaço da comunicação, a liturgia é de comunicação de massa, seja eletrônica ou televisiva, tem um timing que é distinto das igrejas protestante e católica tradicionais.” Valdemar Figueiredo Filho se refere às igrejas pentecostais e neopentecostais, que representariam, na classificação proposta por Campos, os “políticos de Cristo”. Aliás, é necessário que se faça uma diferenciação: a participação dos evangélicos na população vem crescendo, de 9%, em 1990, para 15,4%, em 2000, segundo o Censo do IBGE. Mas quem alavanca o crescimento são os pentecostais e neopentecostais, enquanto denominações tradicionais do protestantismo se encontram estagnadas ou em declínio. E, para crescer e se consolidar, o investimento, econômico e político, na área de comunicação é crucial. Levantamento feito por Figueiredo Filho com dados da Anatel e da Abert, em março de 2006, mostra que 25,18% das emissoras de rádio FM das capitais brasileiras são evangélicas, sendo que 69,11% destas pertencem ao campo pentecostal, com domínio da Igreja Universal do Reino de Deus, que detém 24 emissoras. Já entre as AM, a proporção é de 20,55%, sendo que a Assembleia de Deus possui nove emissoras. Segundo o cientista político, “o rádio configura o dizer e o fazer dos atores políticos que representam esses grupos evangélicos”. E há mais dados sistematizados por ele para confirmar isso. Em 2003, a Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara tinha 51 membros titulares, sendo que 16 contrariavam a norma que proibía parlamentares de serem sócios ou diretores de empresas concessionárias. Esses 16 representavam 37 empresas concessionárias: 31 emissoras de rádio e seis de televisão, sendo que quatro faziam parte da Frente Parlamentar Evangélica (FPE), instalada oficialmente em 2003, e eram concessionários de 21 das 37 emissoras. Dentre os grupos midiático-religiosos, sem dúvida o que mais se destaca é a Universal. Nem tanto pelo número de fieis, já que, conforme o Censo de 2000 do IBGE, ela tem nas suas fileiras 1,23% da população, ficando muito atrás da Assembleia de Deus (4,95%), da Igreja Batista (1,86%), da Congregação Cristã do Brasil (1,46%) e mesmo dos espíritas (1,33%). Mas é da sua característica empresarial, com ênfase na comunicação, que emana sua força. “Levando-se em conta os grupos de abril de 2012
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Bandeiras do conservadorismo não unem necessariamente todos os membros da Frente Parlamentar Evangélica
David Ribeiro / Ag. Câmara
comunicação, a Universal é a mais forte, e com isso tem um poder político que se sobrepõe a outros grupos”, comenta Figueiredo Filho. “A Universal é uma grande empresa que usa o imaginário da população e tem uma alta elaboração. Ela não se instalou nos moldes tradicionais, é um teatro e um mercado, que trabalha com produtos. Cada semana ela lança um produto novo, como qualquer empresa que sabe qual é seu público-alvo; existe uma corrente dos 70 pastores, outra para os empresários, para quem tem problemas financeiros...”, enumera Saulo de Tarso Cerqueira Baptista, autor de Cultura política brasileira, práticas pentecostais e neopentecostais. Ele ressalta que a igreja, assim como outras vertentes religiosas, não atrai apenas os seus fieis, mas, justamente por conta desses “produtos”, também chama a atenção de pessoas que professam outra fé e eventualmente frequentam um templo da IURD ou assistem a seus programas televisivos e radiofônicos em busca de cura ou de uma graça. A organização religiosa, proprietária da Rede Record, uma das maiores redes de comunicação do País, sabe diferenciar os objetivos de cada um de seus negócios. Enquanto na sua grade de programação restringe os programas religiosos à madrugada, aluga espaços no horário nobre em outras redes. O exemplo de sucesso da organização comandada por Edir Macedo ainda teria estimulado outras denominações pentecostais a seguir o seu exemplo de inserção na política institucional, algo em que foi pioneira. “Algumas igrejas, como a Assembleia de Deus, foram praticamente arrastadas para esse campo, porque estavam perdendo terreno. Entrevistei um dirigente da Assembleia, que foi eleito vereador, e ele dizia: ‘Não sou político, mas é uma exigência dos pastores novos porque estávamos perdendo para a Universal’”, conta Cerqueira Baptista. “Considero que
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o fortalecimento político [dos evangélicos] se deu mais pela presença mais significativa e intensa nos partidos. Hoje, o PRB e o PSC têm grupos evangélicos/pentecostais em suas lideranças e em cargos-chave do partido. Há uns 20 anos que o bispo Rodrigues, ex-líder político da IURD, entendeu a importância da estrutura partidária e, de dentro, passou a atuar, no PL naquela época. Para ele, esse era um ponto central”, explica Alexandre Brasil Fonseca, doutor em Sociologia pela USP. “A TV, chamada de quarto poder no Brasil, representa uma série de elementos e ocupa papel importante no processo de legitimação de grupos evangélicos. A propriedade de emissoras de rádio e TV é um ponto importante, principalmente quando vão além da pregação religiosa, caso em que a IURD tem sido exemplar. Fora isso, o fato de alguém ter muito tempo de TV para pregações religiosas não representa, a priori, garantia de eleição para nada. O R.R. Soares [líder da Igreja da Graça] é um bom exemplo, ele foi candidato várias vezes a deputado e nunca se elegeu. Recentemente, conseguiu emplacar o irmão como deputado.” O poder exercido de forma centralizada na Universal não a favoreceu apenas no mundo dos negócios de comunicação, mas também lhe dá um cacife eleitoral que não é proporcional à sua representação entre os evangélicos, superando as demais igrejas do segmento. Conforme Cerqueira Baptista, a igreja mantém seus representantes no Parlamento como “qualquer outro empregado da corporação”. Os fiéis das igrejas evangélicas, em geral, têm um grau de exposição à autoridade religiosa muito maior do que aqueles que seguem outras religiões, como destaca o sociólogo Eduardo Lopes Cabral Maia, autor do artigo “Os evangélicos e a política”, publicado na Revista dos Pós-Graduandos em Sociologia Política da UFSC. De acordo com ele, aproximadamente 82,65% dos evangélicos
vão ao culto uma ou mais vezes por semana, enquanto entre os católicos apenas 35,71% têm esse alto grau de exposição. Também entre eles há o menor número de fieis com baixo grau de exposição (9,69%). Essa maior participação dos evangélicos em cultos e atividades pode sugerir uma maior influência do discurso apresentado pelas igrejas e suas lideranças, incluindo-se aí os destinados a demonstrar que o voto no candidato da igreja é o melhor voto para o fiel/eleitor.
A relação com os governos
Na primeira eleição presidencial em que os “políticos de Cristo” já eram um grupo com força relevante, em 1989, Fernando Collor de Mello foi o ungido por muitos segmentos evangélicos, contando com manifestações públicas de apoio de líderes da Igreja Quadrangular, Assembleia de Deus e Igreja Universal. No segundo turno, Lula, o então candidato petista, foi “demonizado” pelo jornal da igreja de Edir Macedo. Como afirma Cerqueira Baptista, boatos davam conta de que o “comunista ateu” proibiria cultos em espaços públicos, e os templos seriam transformados em escolas. Outros reclamavam da proximidade do PT com os católicos e viam em Collor uma oportunidade de “equilibrar o jogo”. A diferença que definiu a eleição em favor do postulante do PRN ficou em torno de 4 milhões de votos. “O Robinson Cavalcanti, bispo anglicano, era amigo do Frei Betto, e apareceu uma vez no horário eleitoral. Na época, o [Luiz] Gushiken era responsável pelo diálogo com o setor religioso, e ele sabe tanto de campo religioso como eu sei de sânscrito. Foi feita uma frente evangélica aqui [Pará], mas havia grandes dificuldades, porque quando ia conversar com o pessoal da campanha, eles não tinham a mínima noção de conversar. Se o PT tivesse humildade...”, conta. Mas Collor deu muito menos do que se esperava, e logo os evangélicos começaram a reclamar. Ainda assim, foram os parlamentares que mais hesitaram a votar a favor do impeachment do presidente, como anotou o jornalista Jânio de Freitas na Folha de S. Paulo, um dia após o impedimento de Collor, deixando mostras de uma relação pouco republicana com o governo. “O Planalto só notou que o impeachment passaria à 1 hora de ontem, quando soube que a bancada dos evangélicos fechara com a oposição.” FHC também teve o apoio da maioria dos líderes evangélicos para sua eleição em 1994, mas a relação não foi tranquila, em especial com a Universal. Cerqueira Baptista resgata o fato de os membros da igreja acharem que
o governo beneficiava a Rede Globo, que a “perseguia”. “A TV Globo ainda tem o poder de divulgação, mas nós temos o poder de mobilização. Senhores políticos, não venham bater às nossas portas à época das eleições, porque vocês vão ganhar também um verdadeiro não”, ameaçava pela imprensa o pastor Ronaldo Didini. Em 1994, Mario Covas, candidato a governador de São Paulo, havia recebido apoio por escrito na Folha Universal, assim como o candidato ao Senado José Serra, que, com Covas, chegou a participar de uma cerimônia da Universal, em que ambos foram chamados ao púlpito por Didini e apresentados como candidatos da Igreja Universal. As fiscalizações da Receita Federal e da Previdência eram o que mais incomodava a IURD – elas ocorriam em frequência bem maior do que ocorria com a Globo, segundo seus líderes, e ainda seria beneficiada com aportes do BNDES, o que não ocorria com a Record. Em 1998, FHC não teve o apoio da Universal, que, mais tarde, articulou com o PL a aliança que levou Lula à Presidência em 2002. “Bom, eu vim para cá, me aproximei do PT, me aproximei do Genoino, do Zé Dirceu, de todos os líderes do PT e... houve uma distensão, não é? Eles desconfiavam da gente, tinham ódio da gente, a gente desconfiava e tinha ódio deles. Esse ódio acabou e começou a haver uma aproximação”, relatou o bispo Carlos Rodrigues, uma das principais lideranças da Igreja e do PL em depoimento a Cerqueira Baptista em junho de 2004. “Mas hoje os evangélicos como grupo, como segmento, não têm nenhuma representação no governo Lula. Isso não tem, não é?”, reclamava Rodrigues, acusando ainda a Igreja Católica de ter derrubado Benedita da Silva, supostamente uma representante dos evangélicos (embora em sua ação parlamentar raramente tivesse se alinhado nas questões morais) da pasta da Ação Social (antecessora do Ministério do Desenvolvimento Social), para colocar Patrus Ananias. Rodrigues, que liderava com mão de ferro a bancada da Universal no Congresso, cairia após o escândalo do mensalão. E hoje, como é a relação com o governo Dilma? “Existem sinais de que [a Frente Parlamentar Evangélica] está mais forte, mais próxima de influenciar o governo. A escolha do senador Marcelo Crivella para o Ministério da Pesca é um sinal importante para se avaliar. Apesar de pequena, não é uma pasta tão irrelevante, ainda mais se considerarmos que foi ocupada no governo Lula por José Fritsch, militante da Pastoral Católica”, destaca Cerqueira Baptista. “Nesse sentido, ao se colocar o Crivella, sinaliza-se uma perda
de espaço católico e uma ampliação, ao menos simbólica, de espaço para os neopentecostais. A Frente Parlamentar Evangélica não considera que Crivella a represente, até pela própria natureza dos evangélicos e por constituírem um conjunto de tradições e igrejas diferentes, mas para eles é melhor um Crivella do que um católico.” “O que temos atualmente se relaciona mais por características do Estado brasileiro, em que temos uma grande importância das relações pessoais nos processos (questão bem retratada no trabalho de Marcos Otavio Bezerra). Vejo que isso tem um peso maior do que propriamente o valor do religioso na sociedade contemporânea”, analisa Alexandre Brasil Fonseca. “A nomeação do Crivella como ministro só foi possível em decorrência de um partido que atua com o governo do PT desde o primeiro mandato de Lula e nesse sentido é que se concretiza a decisão. O simples fato de ele ser ‘representante evangélico’ não seria suficiente para tanto e mesmo os líderes da Frente Parlamentar Evangélica foram rápidos em afirmar a ‘não representação’ de Crivella em relação ao segmento.” Nesse ambiente de fortalecimento de alas conservadoras no Congresso, como ficariam discussões cruciais como a igualdade de direitos para os homossexuais e o direito ao aborto, por exemplo? “A bandeira moral, quando se torna uma bandeira política, quase sempre funciona como uma camuflagem de interesses que não querem se explicitar, como são os interesses corporativos (interesses particulares, da própria entidade) ou a defesa de políticas sem respaldo social (isto é, políticas conservadoras que mantêm privilégios de pequenos grupos)”, alerta Pedro Ribeiro de Oliveira. “Veja dois casos típicos: a defesa do ensino religioso confessional nas escolas públicas (garantia de emprego a professores indicados pelas autoridades eclesiásticas) e a oposição à descriminalização do aborto (arma eleitoral contra partidos liberais e de esquerda).” Algo importante de se ressaltar é que as bandeiras do conservadorismo não unem necessariamente todos os membros da Frente Parlamentar Evangélica, mas conseguem agregar outros setores do Parlamento e conta com a omissão (devidamente calculada em termos de risco eleitoral) de outros. “Algo que a imprensa nunca soube trabalhar é a ação de uma ‘frente subterrânea’ católica. Subterrânea porque não mostra a cara dela, e se trata de um grupo maior do que o evangélico. A Frente Parlamentar Evangélica tem estatuto, se manifesta, é visível e é possível saber o par-
tido de cada um e o que ele faz. Mas, na frente parlamentar católica, é mais difícil, porque não fazem questão de assumir, e em muitas causas, como nessas questões do kit anti-homofobia, eles se unem”, aponta Cerqueira Baptista. Para Rudá Ricci, o processo eleitoral de 2010, quando temas morais vieram à tona no fim do primeiro turno e no segundo do pleito presidencial, fortaleceu esses grupos. “Na eleição presidencial, pela primeira vez os neopentecostais perceberam que poderiam se aliar a alas ultraconservadoras da Igreja Católica, e essa somatória dá um contingente muito razoável”, acredita. A união entre evangélicos e católicos em torno das questões morais, dobradinha que já se evidencia na pré-campanha de algumas cidades do Brasil, combina dois tipos de estratégia diferentes e pode potencializar ainda mais o seu alcance. “Esse ponto é o mais complicado, pois amplia em muito a escala dessas ações. A relação dos católicos com o Estado se dá desde sempre, e os evangélicos têm se caracterizado por fazer um barulho maior. Unir essas duas estratégias, como [Gilles] Kepel salientou no livro A revanche de Deus, passa por ações ‘pelo alto’ e ‘por baixo’, representando uma potencialização de ações e posturas”, reflete Brasil Fonseca. “Isso pode ser visto no episódio do ensino religioso no Rio de Janeiro. O projeto de um parlamentar ligado à Renovação Carismática [da Igreja Católica] atuou em consonância com o casal Garotinho”, lembra. “Evidente que essas bandeiras unem setores conservadores católicos e evangélicos, mas se trata de uma coalizão de interesses, e não uma aliança estratégica diante de um imperativo ético”, pondera Ribeiro de Oliveira. Para ele, é necessário amplificar algumas discussões para toda a sociedade, o que seria uma forma de superar os obstáculos interpostos pelos mais conservadores. “A estratégia das igrejas – pelo menos no caso da Igreja Católica romana – consistia em definir esses temas como essencialmente morais, de modo a impedir que fossem incluídos na pauta política. Foi a pressão de movimentos sociais – notadamente feministas e gays – que trouxe esses temas para a agenda política”, lembra. “Agora, a estratégia é outra: já que o debate é inevitável, trata-se de mantê-lo restrito ao âmbito das autoridades eclesiásticas, como se elas de fato representassem o consenso de suas igrejas. Trazer esses temas para um debate amplo e honesto, na sociedade, só trará benefícios para o Estado e para as próprias igrejas – que serão levadas a formar a convicção de seus adeptos.” F abril de 2012
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A emergência das forças teocratas nos EUA A experiência norte-americana dos últimos 30 anos mostra que a maioria da população não é composta de homofóbicos e misóginos convictos, mas o preconceito prospera quando a dinâmica das seguidas concessões impede o debate aberto
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um momento em que o Brasil atravessa uma assustadora onda teocrata, com níveis inéditos de violência homofóbica, uma enxurrada de projetos de lei inconstitucionais, em clara violação do Artigo 19 da Carta Magna, e sucessivas concessões do governo ao neopentecostalismo mais reacionário, vale a pena revisitar a ascensão recente da direita religiosa nos Estados Unidos. Trata-se de uma história bem diferente da brasileira, sem dúvida, mas talvez ela contenha alguma lição. Das sete eleições presidenciais realizadas nos EUA entre 1980 e 2004, os republicanos venceram cinco. A direita religiosa foi peça chave em cada uma dessas cinco vitórias. Mais importante ainda: a atuação do neoevangelismo e a recusa do Partido Democrata em combatê-lo de frente foram decisivas no movimento do centro político dos EUA na direção da direita. Posições acerca de temas econômicos e culturais que, até os anos 1970, teriam sido consideradas de um conservadorismo extremista passaram a transitar pelo discurso político como se fossem centristas e razoáveis. A emergência de um discurso que, em termos latino-americanos ou europeus, chamaríamos de esquerda, era uma possibilidade nos EUA até aquele momento (à raiz da grande mobilização dos anos 1960), mas ela foi soterrada com a eleição de Ronald Reagan em 1980 e só voltaria a dar sinais de vida 30 anos depois, com o “Ocupar Wall Street”. De certa forma, a hegemonia republicana não foi interrompida por Clinton ou Obama, na medida em que seus governos foram adaptações democratas do programa republicano (lembre-se, por exemplo, que foi Clinton quem desmantelou o sistema de Bem-Estar Social e foi Obama quem legalizou o assassinato extrajudicial de cidadãos acusados de “terrorismo”). Muitos fatores contribuíram para essa longa hegemonia conservadora, mas a atuação da direita neopentecostal foi decisiva. Somente a partir da eleição de Reagan se unifica o tripé reacionário que constituiria a
nova face do Partido Republicano. Esses três segmentos do conservadorismo eram, até então, relativamente independentes entre si, e nem todos possuíam vida partidária ativa. A partir da década de 1980, eles se unem e formam um bloco temível: falo daquilo que, nos EUA, chamamos de conservadores econômicos (defensores do “livre mercado” e do Estado mínimo, que passam por uma trajetória de aproximação crescente a um fundamentalismo à la Ayn Rand), os falcões da política externa (representantes da indústria bélica e proponentes de um destino manifesto dos EUA de controle sobre o resto do planeta) e os conservadores sociais, que se mobilizam em torno de bandeiras como a proibição do aborto e do casamento gay, o ensino do criacionismo nas escolas e a promoção de abstinência sexual. A direita neopentecostal é o grande motor deste último grupo, até o ponto em que o rótulo “conservadores sociais” se tornou, nos EUA, uma espécie de segundo nome para designar os teocratas. O apoio incondicional a Israel tem sido um dos eixos da aliança entre os três setores. Pode parecer paradoxal à primeira vista, mas o sionismo mais extremista nos EUA não tem sua base na comunidade judaica, e sim no cristianismo neopentecostal. Os que mais se mobilizam na promoção e financiamento da colonização ilegal na Palestina são os chamados cristãos renascidos, que creem que aqueles que não se reconciliarem com Cristo na sua segunda vinda à Terra estão condenados ao inferno. Note-se que se trata de um ensinamento fundamentalmente antissemita. Mas a acusação de antissemitismo, claro, nunca é feita a esses grupos, já que seu apoio a Israel é incondicional. A “resolução” desse bizarro paradoxo se dá através da doutrina do chamado “dispensacionalismo”, que preconiza que o controle completo de toda a Palestina pelo Estado de Israel é um pré--requisito para a segunda vinda do Messias. Um dos equívocos mais comuns na compreensão dos teocratas ocidentais de hoje em dia é acreditar que eles são um mero resquício, uma sobrevivência medieval ou pré-moderna, fadada a desaparecer quando as sociedades se secularizarem por completo. Nada é mais falso. Trata-se de uma operação especificamente moderna, com raízes no colonialismo inglês do século XIX e muito ancorada nas novas tecnologias. Pat Robertson, por exemplo, um dos principais líderes da direita religiosa dos EUA, construiu seu império como evangelista televisivo, começando com o estabelecimento do Christian Broadcasting Network (CBN), em 1960, uma intensa campanha para a compra de recepto-
res de TV a cabo entre neopentecostais nos anos 1960, a fundação do Canal da Família nos anos 1970 e a explosão de programas de TV evangélicos nos anos 1980. Nessa mesma década, Robertson se consolidaria como arrecadador para os contras da Nicarágua e parceiro de Ronald Reagan na confecção da aliança que selou o pacto entre falcões da política externa, conservadores sociais e conservadores econômicos. Em 1983, justamente na convenção da Associação Nacional de Evangélicos, Ronald Reagan faria o pronunciamento que ficou conhecido como “o discurso do império do mal”, em que a União Soviética era definida nesses termos, já puramente morais, e não políticos. Desde a campanha presidencial de Richard Nixon em 1968, fortemente ancorada nos medos dos brancos sulistas ante os avanços da legislação dos direitos civis (e decisiva na perda da longa hegemonia que o Partido Democrata, o partido da escravidão, sempre possuíra no Sul), a direita cristã acumulou uma série de vitórias organizativas. Entre os grupos de direita religiosa formados nos anos 1970 e 1980 se contam: o Fórum Águia (1972), a Causa Cristã Americana (1974), o Foco na Família (1977), a Voz Cristã (1978), especificamente treinada para arregimentar evangélicos em eleições, a Maioria Moral (1979), do ultrareacionário Jerry Falwell, a Washington para Jesus (1980), instrumento de congregação dos cristãos de direita na campanha de Ronald Reagan, o Conselho de Pesquisa da Família (1983) e, finalmente, a Coalizão Cristã (1987), de Pat Robertson, talvez a mais poderosa voz da direita evangélica nos EUA. Se tivermos que definir qual o recurso retórico mais utilizado por esse segmento ao longo dos anos, diríamos que foi a metonímia, em que a parte é tomada pelo todo (ou, aqui no caso, deliberadamente confundida com ele). A expressão “maioria moral”, por exemplo, não poderia ser mais enganosa. As visões representadas por esse grupo estão quilômetros à direita do que poderia ser considerado o centro e a maioria do espectro político dos EUA. A maioria dos cidadãos dos EUA defende, por exemplo, o direito ao aborto. Sessenta e sete por cento concordam que a Constituição “exige uma clara separação entre Igreja e Estado”. A Coalizão Cristã não representa, portanto, nem mesmo as visões dominantes entre os cristãos dos Estados Unidos. Mas quando se fala em “cristãos” na política dos EUA, pensa-se neles. A atividade dos grupos da direita evangélica, combinada com a superexposição midiática e a recusa do Partido Democrata a enfrentá-los politicamente, acaba colocando-os na posição permanente de fazer
chantagens e ameaças, e vai criando essa imagem distorcida do corpo político. O resultado é que o centro do espectro nunca está à direita o suficiente, pois os grupos teocratas, incentivados pela falta de uma resposta contundente dos liberais seculares, vão acumulando conquistas e abocanhando mais território. Nesse aspecto, o processo guarda uma semelhança assustadora com o que se vive hoje no Brasil. O excelente site www.theocracywatch.org mapeia a lista de matérias sobre as quais os teocratas intervêm com regularidade nos EUA . É uma iniciativa que, aliás, deveria ser replicada no Brasil, combinando-se o ótimo trabalho que já fazem os blogs Comer de Matula (http:// comerdematula.blogspot.com), Fiscais de Fiofó (http://fiscaisdefiofo.ligahumanista.org/) e Eleições Hoje (http://www.eleicoeshoje.com. br). No caso do ensino fundamental e médio, a estratégia da direita cristã tem sido promover candidatos aos conselhos das escolas ao mesmo tempo em que retira seus filhos das escolas públicas. Robert Thoburn, um dos reconstrucionistas mais influentes em política educacional, afirmou claramente: “O seu objetivo, uma vez eleito para o conselho, deve ser afundar o navio”. Dois dos projetos documentados em vários textos da direita cristã (e abraçados por um pré-candidato republicano à Presidência este ano, Rick Perry) são a abolição do Ministério da Educação e a derrubada da decisão de 1962 da Suprema Corte, que declarou inconstitucional que o Estado patrocine orações nas escolas públicas como parte do currículo. Na batalha para conferir legitimidade ao criacionismo nas escolas, como se ele fosse ciência legítima, o Instituto Discovery tem sido até mais influente que os grupos fanáticos como a Coalizão Cristã. Ele aposta na estratégia de “lecionar a controvérsia” – como se houvesse uma controvérsia real entre cientistas acerca da evolução ou o criacionismo. Esse marco, que confere ao fanatismo religioso uma cara moderada e razoável, se encarna na chamada teoria do design inteligente, que é simplesmente o criacionismo com pretensões e retórica pseudocientífica, que faz uso de um procedimento básico de qualquer ciência – a dúvida – para desqualificar pesquisa já comprovada e sugerir que o fenômeno estudado não é explicável sem a hipótese de uma “inteligência” (outro nome para a divindade) por trás dele. Nenhuma análise da direita religiosa dos EUA está completa sem menção ao fato de que se trata, em vários sentidos, de uma guerra contra as mulheres. De certa forma, a própria emergência da direita cristã é, em sua totalidade, uma tentativa de reverter a decisão da Suprema Corte conhecida como Roe v. Wade, de 1973, que cancelou várias restrições esabril de 2012
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taduais e federais ao aborto. De lá para cá, e especialmente durante o governo Bush, uma série de limitações voltaram a ser impostas ao aborto, que continua (não se sabe até quando) legal nos EUA. Em novembro de 2003, rodeado por legisladores homens – não havia uma única mulher –, George W. Bush assinou a proibição do “aborto por nascimento parcial”, que é uma técnica para interromper a gravidez avançada, de 20 a 26 semanas. Em 2004, o “Ato sobre as Vítimas não Nascidas de Violência” conferia o estatuto de pessoa humana ao feto – exatamente o que se tenta agora no Brasil com o chamado Estatuto do Nascituro. A medida, na prática, conferia fundamento jurídico para uma futura revogação de Roe v. Wade. O grupo de defesa dos direitos das mulheres, Naral, contabilizou, desde 1995, 335 medidas antiescolha, promulgadas num contexto em que é cada vez mais difícil para um médico realizar abortos e cada vez mais arriscado para uma mulher visitar as clínicas, dada a intensa pressão, com frequência acompanhada de agressões, com que os grupos antiescolha têm se manifestado.
Mas a grande vitória dos teocratas dos EUA não foi assinada por nenhum dos George Bush nem por Ronald Reagan. Isso é o mais incrível. A maior conquista teocrata nos EUA dos últimos 30 anos foi assinada por Bill Clinton, e é conhecida como “Ato de Defesa do Casamento”, a inacreditável Lei de 21 de setembro de 1996, que define o casamento como a união de um homem e uma mulher. Concebida, evidentemente, como um ataque direto a gays e lésbicas, o ato estipula que nenhum estado dos EUA será obrigado a reconhecer um casamento entre pessoas do mesmo sexo realizado em outro estado. A seção 3, posteriormente declarada inconstitucional por duas cortes de Massachusetts (mas ainda sob recurso), determinava o não reconhecimento federal de qualquer casamento entre pessoas do mesmo sexo para efeitos de herança, seguridade social, planos de saúde ou declarações de imposto de renda. O voto na Câmara dos Deputados foi um massacre: 342 a 67. No Senado, outra goleada: 85 a 14. Bill Clinton assinou essa monstruosidade como parte de uma estratégia de “conciliação” com os teocratas.
Pesquisa, atrás de pesquisa, demonstravam que a população dos EUA não se importava com isso e, quando lhe era perguntado, declarava-se majoritariamente contra essa explícita restrição aos direitos de gays e lésbicas. Qualquer análise sociológica e estatística minimamente competente mostrava que o ato era uma estratégia de republicanos desesperados com a popularidade de Clinton e dispostos a mobilizar uma franja fanática do eleitorado. A estratégia democrata de recusar o debate aberto, de não encarar a polêmica, só rendeu, no final das contas, mais dividendos para a teocracia cristã, sempre pronta a empurrar os limites do possível para a direita. A experiência norte-americana dos últimos 30 anos mostra claramente: a maioria da população não é composta de homofóbicos e misóginos convictos, mas a homofobia e a misoginia prosperam quando a dinâmica das seguidas concessões impede o debate aberto. Que o governo federal entenda isso, antes que o PT perca definitivamente a autoridade moral para falar em direitos humanos. F
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A atomia Sáfica Djuna Barnes cutucou várias onças com sua vara curta. Quando escreveu seu pequeno pastiche Ladies Almanack em 1928, tirando com a cara de várias de suas amigas lésbicas, magoou boa parte delas. Décadas depois, seu Almanack é considerado sexista por alguns críticos, e radicalmente feminista por outros. O livro descreve o amor lesbiano com todos seus podres e delícias, e nunca foi traduzido ou publicado no Brasil. Admiradora de Barnes, estou prestes a finalizar a tradução do livro. Aqui, um capítulo do hermético almanaque.
ABRIL
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ota-se uma Melancolia aguda nas que já trilharam Milhas nessa Matéria, embora uma Paixonite leve, alegrinha e dançante, pareça alimentá-las nos primeiríssimos Estágios; Pensamento curto; Atenção zero; uma Tendência para saltitar, trepar e saltar e desviar o Olho em direção a toda e qualquer manifestação de Garota em Destempero semelhante. Segue-se um Arrepio e uma Inquietude à Noite, recontando Listas infindáveis de Objetos desimportantes como Paralelepípedos, (Barretinas, estivesse em Londres!), Campanários, Amoras em Cestas, Etiquetas em Vestidos, Cascos em Cavalos e Estrelas no Céu. Em seis a oito Semanas, isso dá lugar a uma Sobriedade que inclui pensamentos de Transmigração, Levitação, Miopia e Definhamento. O Olho pinga, o Fôlego falha, o Baço dilata e a Epiglote ergue
e desaba com o Coração deglutindo continuamente. Então, as Veias saltam, os Nervos repuxam, as Palmas das Mãos umedecem, os Pés paralisam, os Intestinos travam e, assim como antigamente, quando encontrávamos germes na Urina de Pessoas com Hidrofobia terminal, nas Águas destas observa-se a Figura de Vênus em marcha, completamente Paramentada, não maior que uma Semente de Cominho, um Tridente em Punho e uma Varejeira na Mão esquerda. Dizem que fulana, nos Estertores da Morte, atravessou uma Escola de Piranhas sentada num Carro de Concha, emitindo Fogo e consumindo-se em ódio até que o Corpo do Fluido em seu Penico se transformasse numa Flama, lembrando um Brandy ardente, e finalmente correu para a Botica e tornou-se, em menos de um segundo, uma Brasa carbonizada e incandescente. Seja como for, há aquelas que suportam a Enfermidade, e estas emitem Sinais tão dissimilares a Ponto em que a Classificação torna-se quase impossível; uma Anatomia completa precisaria ser redigida para contemplar mesmo a menor Nervura dos Males, Mágoas e Agonias.
Outras possuem Temperamento quase imaculado salvo a Vaidade. Estas são vistas trançando Heras em seus Cabelos ou atirando um Ramo de Louros em direção aos Templos, enquanto entoam “Eu sou Eu!”, não se dignando a ver qualquer Problema a menos que alguém reclame “E daí?”, o que provoca nelas tal fúria que mesmo as Roupas das suas Companheiras correm perigo e suas Fisionomias, tão alteradas pelo Orgulho inútil, fazem com que elas se pareçam, em não menor grau, com a Loba despossuída de sua Ninhada. Outras são ainda de uma Tintura diferente, sempre doces e meigas, e sentem muito Prazer fazendo Oferendas e Dádivas e cobrindo de Rosas a chegada de suas Adoradas. Nestas percebe-se o Olho límpido, a Boca sorridente, os Cabelos sedosos de Criança, a bonne mine, o Temperamento elevado, o Coração forte e a Coragem que leva a Loucuras. Pode-se contar com estas em todas as Horas e, quando mortas, são enterradas com a aparência de um Relógio bom que nunca adiantou ou atrasou, mas que badalou a hora exata para a duração da Mortalidade e é apenas silenciado e removido porque o Senhor sacou suas Tesouras e lhe cortou o Pêndulo. (Djuna Barnes, Ladies Almanack, 1928) Twitter: @vleonel E-mail: vangeleonel@uol.com.br
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direitos humanos
Os rastros de maio de 2006 Nelson Antoine / FotoArena / Folhapress
Ainda impunes, os 493 assassinatos ocorridos naquele período mostram que métodos utilizados na época da ditadura militar continuam atuais. E o poder público se omite diante da injustiça
Imagens de vítimas dos ataques de maio de 2006, em evento organizado pela associação Mães de Maio
por Gisele Brito
“Q
uando li aquilo, eu comecei a entender o arquivamento dos casos, do caso do meu filho. Foi muito duro. Uma carta dos promotores do Fórum da capital, cheia de carimbos, com 58 assinaturas, dizendo que sentiam muito pelos agentes perdidos e parabenizando o comando por ter restabelecido a ordem.” A carta, citada de cor por Débora Maria da Silva, dizia que os promotores paulistas “reconheciam a eficiência” da polícia e a preocupação da corporação em “restabelecer a ordem pública violada, defendendo intransigentemente a população do nosso estado”. Débora, de 52 anos, é mãe de uma das 493 pessoas mortas entre 12 e 20 de maio de 2006, a maioria durante o período classificado na carta como um re-
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torno da ordem. Mas, para Débora e outras mães que estão no grupo que ela coordena, e para diversas entidades de defesa dos direitos humanos, a suposta defesa “intransigente” da população, na verdade, foi o maior extermínio ocorrido no Brasil no século XXI. Um revide bárbaro executado por agentes de segurança do estado de São Paulo, que permanece impune seis anos depois. Aquele maio a que Débora se refere entrou para a história de São Paulo. O noticiário foi tomado de imagens de rebeliões simultâneas em presídios, ônibus queimados, batalhões de polícia metralhados e informações sobre a morte de agentes de segurança, entre eles agentes penitenciários, bombeiros, guardas, policiais militares e civis. O caos se espalhou pela capital paulista. Supostos toques de recolher fizeram
com que lojas e empresas fechassem mais cedo. No dia 15, segunda-feira após aquele fim de semana do Dia das Mães, 5 mil dos 15 mil ônibus da frota paulistana deixaram de circular, segundo o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana – São Paulo (Condepe). Às 18 horas, as ruas da maior cidade do país já estavam praticamente vazias em razão do medo que tomou conta da população. Nas primeiras 48 horas da onda de violência, 40 agentes públicos foram assassinados, segundo relatório da Justiça Global e da Clínica Internacional de Direitos Humanos da Faculdade de Direito de Harvard. Até 20 de maio, seriam 43. Na época, a versão oficial divulgada para explicar os acontecimentos informava que membros do PCC, o Primeiro Comando da Capital, estavam promovendo os ataques
em reação à transferência de presídio de alguns de seus principais líderes, entre eles Marcos Willians Herbas Camacho, conhecido como Marcola. Cinco anos depois, o estudo da Justiça Global e da Faculdade de Harvard apontou que, na verdade, as razões para os ataques foram a revolta contra esquemas de corrupção de policiais que extorquiam famílias de membros do PCC e o sequestro do enteado de Marcola, realizado por policiais. Justamente por isso, o título do relatório é “São Paulo sob Achaque”, denunciando um esquema de corrupção e extorsão praticadas por agentes públicos, que deveriam cumprir a função de defender o Estado de Direito. Os atentados contra agentes de segurança promovidos pelo PCC só teriam cessado depois de um encontro, na tarde do dia 15, entre Marcola e uma advogada e ex-delegada da Polícia Civil, que dizia ter influência sobre a facção. A reunião foi articulada pelo governo do estado, que inclusive providenciou um jato da Polícia Militar para transportar a advogada, como indica o relatório da Justiça Global. No entanto, um acordo entre o governo e a facção criminosa foi veementemente negado pelas autoridades. Mas assim como a maioria dos civis mortos entre 12 e 20 de maio de 2006, o filho de Débora não morreu no período em que predominaram as ações atribuídas ao PCC. Os relatórios mostram que a morte de civis se intensificou a partir do dia 15, quando as ações da facção já arrefeciam, chegando à chocante marca de 493 pessoas. Parte delas ocorreu em supostos confrontos com a polícia, em muitos casos com indícios de adulteração e forja de provas. Houve também casos de pessoas vítimas de grupos de extermínio, perpetrados por homens encapuzados em carros escuros, em que também havia sinais da participação de policiais. “Foi como se uma nuvem assassina tivesse passado pelo estado”, relembra o médico Henrique Carlos Gonçalves, membro do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp). O Cremesp teve um papel fundamental para a compreensão dos fatos ocorridos naquele período. Ao tomar conhecimento da violência que se propagava, o conselho se uniu à comissão independente montada pelo Condepe, composta por diversos órgãos de defesa dos direitos humanos, e acompanhou as necrópsias nos Institutos Médicos Legais (IML). “Havia uma grande preocupação em relação às necrópsias que davam entrada. Até por antecedentes históricos – a ditadura, mortes no Carandiru –, a perícia médica legal foi considerada suspeita de falta de imparcia-
lidade. Isso nos chamou a atenção porque a perícia é um ato médico”, explica Gonçalves. Os laudos eram checados em tempo real. “Recebíamos um rascunho da necrópsia para garantir que não houvesse supressão ou colocação. Só o que o perito viu ali”, relata. “Aquela imensidão de cadáveres, parecia uma guerra. Foi muito marcante para mim. Era trágico, brutal com a vida humana, um enorme desrespeito às leis e cidadania. Para mim, aquela visão só se compara com o acidente da TAM [de 2007], mas com uma característica mais degradante em função de todo o processo de violência”, lembra o médico. A imagem que marcou o médico para sempre é chocante, mas sua atuação valeu a pena. Graças ao trabalho feito pelo órgão nos IMLs, foi possível constatar que 60% dos 493 corpos registrados no período receberam pelo menos um tiro na cabeça. Quase 13% dos tiros encontrados em todos os baleados foram dados à curta distância ou à queima-roupa. Em 14,4% dos casos, os tiros atingiram o abdômen; em 30,5%, o tórax e em 27,5%, a cabeça ou pescoço, regiões consideradas de alta letalidade. Um relatório feito em 2008 pelo Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro chamou atenção, ainda, para o fato de que 27% das vítimas apresentavam pelo menos um disparo na região posterior da cabeça, “região de altíssima letalidade e muito difícil de ser atingida em um confronto genuíno”. E 57% dos cadáveres teriam recebido pelo menos um disparo pelas costas. Diante dessas evidências, Gonçalves não tem dúvidas: “Dá pra dizer que foram execuções. Tiros de cima para baixo, nas costas, em gente ajoelhada. Foi uma guerra não divulgada, porque na guerra você não fere, não prende porque vai te dar trabalho. Na guerra a intenção é matar, eliminar. E foi isso que ficou caracterizado”, afirma.
Impunidade
Edivaldo Soares de Andrade, filho de Helenita, foi morto na frente do portão de sua casa enquanto conversava com vizinhos, no Parque Bristol, zona sul de São Paulo. Na época, Dona Helenita contou à Fórum que assistia à TV e tinha acabado de se emocionar com a notícia das mortes de policiais, quando ouviu tiros na rua. Seus dois filhos foram baleados com outras duas pessoas. Apenas um deles sobreviveu. Os atiradores estavam encapuzados, mas há indícios de que eram policiais. “Que proteção a gente tem? Só de Deus”, declarou à Fórum em 2006. Hoje, com o inquérito arquivado, ela
diz não ter esperança de ver o caso solucionado. “Eu não acredito, não. Quem viu tem medo de falar”, desabafa. Segundo o defensor público Antônio José Maffezzoli Leite, o caso de Helenita e das outras mães ouvidas pela reportagem não são exceção. Todos foram arquivados. O inquérito do homicídio de Edson Rogério Silva dos Santos, filho de Débora, mencionada no começo da matéria, também foi. O rapaz, de 29 anos, trabalhava como gari na Baixada Santista, e tinha ido com um amigo a um posto de gasolina abastecer uma moto quando um grupo de policiais os abordou, questionando se eles estavam armados. Conforme relatos contados a Débora, Edson respondeu que era trabalhador, e um dos oficiais teria dito: “Morreu, você é ladrão.” Os policiais o agrediram, mas foram embora. Edson foi para outro posto buscar gasolina, quando então foi assassinado com um tiro no coração e um em cada pulmão. Minutos depois, uma viatura chegou ao local do crime, mas Edson não resistiu e morreu. Débora diz ter implorado aos delegados que cuidaram do inquérito para que as imagens das câmeras de vigilância do posto fossem apreendidas, o que levou meses para ser feito – e só aconteceu quando as filmagens do dia já haviam sido apagadas. Por seu próprio esforço, ela conseguiu demonstrar falhas nas investigações oficiais e provar que os policiais que chegaram à cena do crime logo em seguida tinham apresentado versões contraditórias sobre o que os motivou a ir até lá. Ela desconfia que os homens que discutiram com seu filho, os que o mataram e os que supostamente o socorreram são as mesmas pessoas. A participação de policiais e de grupos parapoliciais foi reconhecida pelo promotor que cuidou do inquérito de Edson, e ela conseguiu uma indenização do Estado, que reconheceu as falhas na investigação, mas a autoria do crime é até hoje desconhecida, e o caso permanece arquivado. Débora é coordenadora das Mães de Maio, grupo que reúne mães de vítimas dos crimes de maio e luta para que a justiça seja feita. “Eu sou uma mulher amputada. Sou um lixo humano. Tiraram meu filho de mim. A única coisa que me sustenta é a luta”, conta. Antes da morte de Edson, Débora não era engajada em nenhuma causa, mas a perda do filho mudou sua vida. “Eu queria mostrar que a ditadura não acabou. Ela continua até hoje. Mais dura, mais violenta. Em uma semana se matou mais de 400 pessoas, fora as outras que a gente não sabe. A ditadura durou 21 anos e matou menos gente. Nos crimes de maio, eles mataram trabalhadores empoabril de 2012
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brecidos, estudantes. A periferia está agonizando. O pobre está sendo exterminado no Brasil. A população está sendo exterminada.” Depois do episódio, Débora ficou doente, deprimida e se afastou do resto da família, mas abriu seus horizontes para a necessidade de lutar. “Esse negócio de paz... Não existe paz se não houver justiça. Eu digo que quem vai para a cadeia é o crime desorganizado, porque o crime organizado está blindado, protegido pelas instituições. Debaixo do capuz que mata está o Estado.”
A história se repete
Quatro anos depois dos crimes de maio, outros eventos com as mesmas características acometeram a Baixada Santista. Pelo menos 26 jovens foram mortos. Entre eles estava Marcos Paulo Soares Canuto, filho de Flávia Gonzaga. O garoto de 18 anos foi a
uma festa de aniversário na periferia de São Vicente e, ao voltar para casa, foi abordado por homens encapuzados. Segundo testemunhas, que não quiseram prestar depoimento à polícia por medo de represálias, um dos homens chegou a dizer que haviam pegado a pessoa errada, ao que o outro respondeu: “Está na chuva é para morrer”. Marcos Paulo foi alvejado por dez tiros. O amigo que o acompanhava, por sete. “O meu filho não era bandido – e mesmo que fosse. Não existe pena de morte no Brasil. Mas as pessoas ficam sempre perguntando o que ele estava fazendo naquele bairro àquela hora, porque nós não moramos na periferia. Quer dizer, você não pode ter um amigo em outro bairro? Só porque ele está em um bairro afastado, pobre, ele é bandido?”, questiona. “Ou seja, quem mora lá é marginalizado. A gente vê que a maioria dos mortos é preto,
“Estou esperando ela chegar até hoje” Depoimento de Márcia Aparecida de Almeida Silva Ferreira, mãe de Talita Cristine de Almeida Silva, morta aos 20 anos no Guarujá, em 14 de maio “Era dia das mães. Estava todo mundo bebendo, farreando na casa do meu sogro. Minha filha estava na casa da avó. Aí eu disse que estava mal, angustiada, e meu marido e eu voltamos para casa. Quando chegamos, tinham tocado fogo em um ônibus aqui perto. E depois tentaram invadir a casa de um policial que morava na vizinhança. Liguei para a minha mãe para ela impedir que a Talita voltasse para casa. Depois de 15 minutos a menina chegou em casa, brava porque eu tinha assustado a avó. Aí ficamos no portão conversando. Os olhos dela brilhavam, a pele estava limpinha. Estava toda brilhosa. Eu comentei que ela estava linda. Ela se levantou, me deu um beijo e brincou. ‘Sou filha da Márcia, sou gostosa’. Aí um rapaz da frente chamou ela. Ele queria um celular emprestado. Ela pediu para o irmão ir buscar. Nós entramos e ela ficou lá. De repente, eu escutei os cinco pipocos. Parecia que era dentro de casa. Na hora, eu botei a mão na cabeça e gritei: ‘Minha filha!’ Quando olhei, vi meu marido gritando com a mão na cabeça no meio da rua. Ele só disse que ela e o vizinho tinham tomado um tiro de raspão. Só depois minha filha mais velha disse que ela não ia voltar. Ela levou dois tiros na cabeça. Eu entrei em desespero. Quase enlouqueci. Disseram na rua que um policial viu tudo e só deu um tiro para cima, aí eu reclamei com ele: ‘Só atirou para cima por quê? Era seu colega?’. Depois disso, ele foi embora do bairro. Os outros vizinhos que viram os homens também foram embora do bairro. Eles estavam de capuz, mas só cobriam os olhos e foram reconhecidos pelo rapaz que estava com a Talita. Ele chegou a gritar, antes de ser baleado: ‘Pai, é o fulano!’ Mas ninguém quer falar sobre isso, todos estão com medo. Todos os que viram foram embora do bairro. Ninguém fez nada. Arquivaram o caso. Meu marido foi tentar ver o inquérito e brigaram com ele: ‘O que você quer com isso depois de todo esse tempo?’ Eu quero que seja investigado. Minha filha não era vadia, não era suja. Mesmo que fosse, não merecia isso. Eu só quero justiça. Eu não sou mais a mesma mulher. Eu não tenho mais paz, não tenho mais sossego. O que eu sinto não desejo para mulher nenhuma. A menina trabalhava. Cuidou de mim quando eu estava doente. Era amada por todos. Ela era muito amada. Isso destruiu minha família. Mas eu quero limpar o nome dela. A gente sabe que ela não devia nada para ninguém. Ela tinha trabalho. Tinha 20 anos, mas era uma criança. Eu estou esperando ela chegar até hoje para pôr ela na cama.”
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pobre. Os ataques de abril [de 2010] só cessaram quando o Consulado Americano pediu para que os turistas não viessem para Santos porque estava perigoso. Daí, os prefeitos e o próprio governador disseram que a situação estava sob controle e que os problemas só estavam acontecendo na periferia. Ou seja, se você não mora na orla, você não vale nada”, desabafa. Assim como os demais, o processo da morte de Marcos também está arquivado. “Se eu não correr atrás para provar que ele foi morto pela polícia, ele vira estatística, vai ser criminalizado. E ele não é estatística. Ele é meu filho. Metade do sangue que derramou ali era meu.” Débora acredita que os crimes de abril de 2010 não teriam acontecido se os de maio de 2006 tivessem sido solucionados. Rose Nogueira, que era presidente do Condepe naquele mês de maio, também avalia que a impunidade em outros processos de crime e tortura no Brasil está na origem das duas séries de crimes. “Há mais de uma centena de casos que foram registrados como resistência seguida de morte. Como uma pessoa pode estar resistindo com tiros na cabeça, na nuca, nas costas? Esses crimes aconteceram porque os crimes da ditadura e os que aconteceram depois da ditadura não foram punidos. Na ditadura, nós tivemos o esquadrão da morte, que trabalhava para a repressão, e os agentes depois foram condecorados. Os métodos que eles usam hoje são os mesmos da ditadura”, aponta.
Federalização
Débora explica que o movimento busca, desde 2010, a federalização dos crimes arquivados. Esse, de acordo com Maffezzoli, é um mecanismo recente da legislação brasileira, que permite o deslocamento de competência para julgar crimes contra os direitos humanos. Isso pode acontecer quando a Justiça local não tem condições para investigar o caso. Pelas circunstâncias dos eventos de maio e de abril, os movimentos acreditam que a Justiça paulista está dando demonstrações de que não tem interesse em investigar a fundo aquelas mortes. “O ouvidor federal falou para nós que o procurador não ia pedir a federalização porque o estado de São Paulo tinha tecnologia de primeiro mundo para tocar a investigação. Agora, vamos pedir por escrito e denunciar para a OEA [Organização dos Estados Americanos]”, explica Débora. “Eu temo pela minha vida, mas não tenho medo, porque não tenho mais o que perder, o bem maior era meu filho.” F
Fórum nasceu no 1o Fórum Social Mundial, quando a sociedade civil planetária disse “não” ao pensamento único. Desde lá, conta a história que vem sendo construída sem se render à lógica do mercado, pautando-se pelos interesses da sociedade e dos seus movimentos. Por isso, se tornou uma revista diferente. Uma revista que só publica aquilo em que acredita.
Fórum, orgulho de ser diferente
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Teremos que esperar a Rio 2032? Às vésperas da Rio+20, Brasil tenta atrair líderes mundiais para a Conferência e evitar a implosão de seu discurso sustentável teXto e Fotos por pedro Venceslau, de manaus
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o último dia 20 de março, um imenso veleiro com bandeira holandesa, dois mastros de 55 metros, tripulação de 32 pessoas e heliponto estacionou no porto de Manaus, no Rio Negro. Entre os tradicionais barcos de madeira que compõem o cenário, aquele colosso chamava a atenção de quem passava. No seguinte, um bote de ação com motores potentes estacionou na proa com um grupo de jornalistas brasileiros e internacionais, entre eles este repórter. A comitiva foi recebida pela cúpula mundial e brasileira da ONG Greenpeace. Depois de algumas doses de suco feito com frutas locais, o número 1 da organização, o sul-africano Kumi Naidoo, o diretor executivo no Brasil, Marcelo Furtado, e o coordenador na Amazônia, Paulo Adário, conduziram os profissionais da imprensa e mais duas dezenas de líderes ambientais para uma excursão pelo navio Rainbow Warrior. Joia da coroa do Greenpeace, o barco, inaugurado no fim do ano passado, foi o primeiro feito sob medida para os ativistas. Um assessor da ONG conta que o primeiro navio do grupo foi adquirido em 1977 e explodido pelo serviço secreto francês em 1985, quando se preparava para impedir testes nucleares franceses. A missão que começou ali vai terminar em junho, no Rio de Janeiro, durante o maior evento sobre meio ambiente do planeta, a Rio+20. Quando desembarcarem na capital fluminense, os 32 tripulantes se unirão aos representantes de outras ONGs no evento paralelo ao encontro dos chefes de Estado, a Cúpula dos Povos. Quando isso acontecer, eles terão na bagagem uma poderosa ferramenta de constrangimento para o governo brasileiro. Foi no porão do Rainbow Warrior que o motivo da visita foi revelado: coletar 1,4 milhão de assinaturas e levar ao Congresso uma proposta de lei de iniciativa popular, nos moldes da Ficha Limpa, para colocar a taxa de desmatamento
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no Brasil no único nível em que pode ser considerada aceitável: o zero. A ideia é apresentar um contraponto ao projeto elaborado pelo exdeputado federal e hoje ministro do Esporte, Aldo Rebelo (PCdoB-SP), que modificou drasticamente o Código Florestal Brasileiro. Ao fazer isso em pleno Rio de Janeiro durante a Rio+20, o Greenpeace vai criar mais um elemento de pressão sobre a anfitriã da Conferência da ONU, a presidenta Dilma Rousseff. Antes que alguém tivesse tempo de questionar o alcance da iniciativa, diversos vídeos foram apresentados com depoimentos de celebridades, como Camila Pitanga e Marcos Palmeira. Com assinatura da badalada produtora Conspiração Filmes, as vinhetas tinham qualidade visual e conteúdo impecáveis. A produção e os cachês dos comerciais não custaram nada à ONG e serão exibidos em rede nacional de televisão. “Estive com Dilma antes da eleição e faço um apelo do fundo do meu coração: que ela vete o projeto do Código Florestal. A escolha dela é simples: permitir lucros de curto prazo para pouca gente ou tomar medidas de sustentabilidade que beneficiem o povo brasileiro”, disse Kumi Naidoo. “Infelizmente,
O líder indígena Almir Suruí e o sul-africano Kumi Naidoo, nº 1 do Greenpeace: luta comum contra o retrocesso
no debate do Código Florestal, os políticos ignoraram os alertas dos cientistas e os anseios da população. Escreveram um texto que vai contra a preservação florestal. A lei do Desmatamento Zero é a resposta da sociedade civil a esse atropelo”, completou Paulo Adário, diretor da campanha Amazônia do Greenpeace.
“O Brasil vive um retrocesso na questão indígena e ambiental“, diz cacique Suruí
Em 2007, o líder indígena Almir Suruí ganhou os holofotes mundiais ao fechar uma parceria inédita com o Google, que levou a tecnologia às tribos. Dessa forma, os índios puderam guardar em vídeos e fotos a história da aldeia. Mas a parceria foi além: com smartphones e aparelhos GPS, os índios aprenderam a delimitar suas terras para denunciar desmatamentos ilegais. No ano passado, Suruí foi escolhido pela revista americana Fast Company um dos cem líderes mais criativos do mundo nos negócios. “A esperança do mundo na Rio+20 está na ação do Brasil. O país precisa se preparar não apenas logisticamente, mas também com propostas para o futuro” disse o cacique à Fórum. Durante o evento, seu discurso será duro com o governo brasileiro. “O papel de Dilma em relação aos povos indígenas é péssimo. Belo Monte foi feita de qualquer jeito. Para presidir o Brasil é preciso respeitar as diferenças.” Para Suruí, o novo Código Florestal brasileiro representa uma ameaça às tribos. “O Código Florestal vai dar incentivo ao desmatamento. E as terras indígenas estão nas regiões que serão mais afetadas.”
Quase simultaneamente à apresentação do projeto pela ONG, em outro extremo de Manaus, no lendário Hotel Tropical, líderes políticos, celebridades e empresários de todo o mundo faziam a abertura do 3° Fórum Mundial de Sustentabilidade. Entre os convidados, estava o ex-presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso. Um dia antes do fim do encontro, Kumi Naidoo, Paulo Adário e Marcelo Furtado subiram discretamente até a suíte presidencial, onde foram recebidos por FHC. Sem a presença da imprensa, o ex-presidente sentou-se com o grupo em uma mesa redonda e, depois de alguns minutos de conversa, colocou seu nome no topo do abaixo-assinado que vai se tornar projeto de lei. No dia seguinte, o Rainbow Warrior deixou Manaus e seguiu seu trajeto, que inclui Santarém, Belém, São Luís, Recife, Salvador e Santos. A iniciativa do Greenpeace exemplifica o dilema vivido pelo governo brasileiro às vésperas da Rio+20. Enquanto luta contra o esvaziamento do evento, a presidenta Dilma enfrenta uma mobilização intensa do lobby do agronegócio pelo recrudescimento do projeto do Código Florestal. Some-se a esse quadro a insatisfação da base aliada, e temos um perigoso cenário para as pretensões brasileiras de emergir como liderança global da sustentabilidade. Por ora, a palavra de ordem do governo é otimismo. “O Brasil chegará à Rio+20 podendo anunciar a criação de 1 milhão de novos empregos. Depois da frustração de Copenhague, estamos otimistas que a Rio+20 trará resultados. E o Brasil será protagonista”, disse à Fórum o senador Eduardo Braga (PMDB-AM), líder do governo no Senado. A pretensão do Palácio do Planalto tem lastro histórico. Na Conferência de 1992, eram os países desenvolvidos os donos da pauta. Passadas duas décadas, os Brics ganharam força.
“Rascunho Zero”. Presença idem?
Vinte anos depois de Fernando Collor de Mello transformar a Conferência da ONU do Rio, em 1992, na vitrine de sua rápida passagem pelo governo, Dilma luta contra o tempo para evitar o esvaziamento da Rio+20. Com a crise europeia dominando a agenda e os Estados Unidos em aquecimento para as eleições presidenciais, teme-se no Palácio do Planalto que os principais chefes de Estado enviem representantes do segundo ou terceiro escalão e que o evento termine sem nenhuma articulação concreta – ou seja, prazos e metas. Dilma convidou pessoalmente vários chefes de Estado para a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, que ocorrerá em 20, 21 e 22 de junho no Rio de Janeiro. Ligou para Vladimir Putin, primei-
ro-ministro russo; para o rei Juan Carlos, da Espanha, e falou pessoalmente com a chanceler alemã, Angela Merkel, em Hannover. Não adiantou. Nenhum dos três confirmou presença, embora o rei tenha garantido a participação de seu primeiro-ministro no evento. Em visita ao Brasil no final de março, quando esteve no Fórum Mundial de Sustentabilidade, em Manaus, o ex-primeiro ministro da França, Dominique de Villepin, se mostrou cético. “Em meio à crise, vamos enfrentar dificuldades em chegar a decisões comuns. Nas eleições da Europa, a pauta ambiental ficou fora dos debates. Foi assim na França, Espanha e Alemanha.” Até o fechamento dessa reportagem, 80 chefes de Estado haviam confirmado participação no evento. O número é alto, mas não constam da lista os pesos pesados. Segundo o embaixador Luis Alberto Figueiredo, secretário executivo da Comissão Nacional para Rio+20, a presença de Barack Obama “pode acontecer”, mas ela ainda é uma incógnita. Sem a presença dos líderes, a Rio+20 corre o risco de produzir apenas uma carta de intenções. Esse seria o pior cenário para o Brasil, que defende aprovação de metas de desenvolvimento sustentável aplicadas a todos os países, não só aos em desenvolvimento. Em mais de uma ocasião, o secretário-geral da Rio+20, Sha Zukang, mostrou-se preocupado que a crise econômica internacional e as eleições em países como os EUA comprometam as negociações. O ponto de partida dos debates será um documento elaborado pela ONU chamado “Rascunho Zero”, que tem sido duramente criticado pela superficialidade. No Fórum de
Manaus, o coordenador executivo da Rio+20, o francês Brice Lalonde, explicou que o “Rascunho” foi elaborado com sugestões enviadas pelos 193 Estados-membros da ONU. “Se os países não estão felizes com esse documento, deveriam ter enviado sugestões melhores.” Questionado sobre o fantasma do esvaziamento do evento, Lalonde se diz otimista. “A presença de chefes de Estado na Rio+20 vai superar a Rio +92. Seria difícil para os líderes mundiais não comparecerem ao evento.” Para a alegria dos parlamentares presentes, entre eles, o líder do governo no Senado, Eduardo Braga (PMDB-AM), Lalonde afirmou que a Rio+20 será a consagração definitiva do “Bolsa Família”. “O mundo precisa assumir programas concretos para a erradicação da pobreza e adotar o exemplo do Bolsa Família.” Mais tarde, em conversas com jornalistas, FHC se esquivou. “O combate à pobreza é outra coisa. O foco tem que ser o meio ambiente.” O sul-africano Kumi Naidoo se mostrou cético em relação ao sucesso da Rio+20. “Se formos brutalmente honestos, diremos que nossos líderes foram sonâmbulos. Vemos 350 mil vítimas por ano por causa das mudanças climáticas. A Rio+20 tem poucas chances de reverter esse quadro.” Entre os organizadores da Conferência, já existe uma espécie de plano B. Se nada de concreto for definido, os chefes de Estado serão pressionados a pelo menos fortalecer o combalido Programa das Nações Unidas para Meio Ambiente (Pnuma). Sucateado, o organismo ganharia mais recursos e status político mundial. Se isso acontecer, restaria esperar pela Conferência Rio 2032. F
“Projeto Desmatamento Zero é resposta ao Código Florestal” Fórum – Seria melhor adiar a votação do Código Florestal?
Marcelo Furtado, diretor executivo do Greenpeace no Brasil – O adiamento é apenas um indicativo de que a proposta não fala de floresta, e sim do agronegócio. Pior que isso. O Código Florestal não fala de um agronegócio moderno, que concilia sustentabilidade com produção de alimentos, mas sim de um agronegócio retrógrado. A nossa resposta é essa lei de iniciativa popular, a Lei do Desmatamento Zero. Fórum – Se ficar para junho, o debate sobre o Código não corre risco de cair no esquecimento?
Furtado – A sociedade brasileira vai usar no futuro o Código como um ícone sobre o que vai acontecer com a sustentabilidade no Brasil. A presidenta Dilma tem no colo um dilema indicativo claro do que a sociedade brasileira quer: 80% do país disse que não concorda com o desmatamento Fórum – O autor do projeto, ex-deputado e ministro Aldo Rebelo (PCdoB-SP) costuma criticar organizações estrangeiras que atuam no Brasil, como o Greenpeace. O que diria a ele?
Furtado – Nós comemoramos 20 anos no Brasil defendendo um país verde limpo. Aldo Rebelo, que gosta muito de História, devia estudar mais. A sociedade brasileira é interligada com os desafios mundiais. O Brasil pode liderar esse debate ou se juntar ao atraso. F abril de 2012
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Em defesa do Estado Negar a importância do poder estatal pode representar o esvaziamento do debate político
por Cynthia Semíramis
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e vez em quando, surgem teorias e práticas que pregam a diminuição do poder do Estado. Foi o caso, alguns anos atrás, da ascensão das ideias neoliberais, calcadas na intervenção estatal mínima na economia. Atualmente, é possível identificar discursos defendendo outra forma de diminuição do Estado, desta vez, desprezando a instituição política do Estado em favor de outras instituições. Tem sido cada vez mais comum ouvir ou ler frases como “o Estado tem poder demais” e “precisamos fortalecer outras instituições”. Em parte, essas afirmações derivam do desencanto com a política partidária, seja por receio de corrupção, seja por não encontrar nela apoio a questões importantes para determinados grupos, como a defesa de povos indígenas, questões ambientais, combate ao racismo, ao machismo e à homofobia. Mas tais ideias também derivam da ignorância em relação ao poder estatal e das instituições que estão querendo valorizar. Negar a importância do Estado como instituição que define as regras que devem ser seguidas por toda a sociedade significa também esvaziar o debate político. E, pior ainda, negar toda a construção histórica em torno de direitos humanos em nome de instituições que, em sua maioria, violam direitos.
O conservadorismo das instituições não estatais
Um dos problemas em relação a ampliar o poder das demais instituições é imaginar que elas são semelhantes ao Estado, tanto em sua história como estrutura. Assim, diminuir o poder estatal significaria simplesmente transferi-lo para outra instituição mais adequada aos próprios valores. Porém, as instituições não são intercambiáveis entre si: elas são diferentes em sua essência, e atuam em esferas diferentes. O que têm em comum é o poder calcado nos costumes e na moral, procurando induzir as pessoas a agir
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de determinada forma. Religião, família, escola são algumas das instituições com maior poder em nossa sociedade. Nessas instituições, as regras a respeito de qual ação é permitida ou proibida são bastante rígidas e claras, baseando-se na tradição e nos costumes. O efeito dessas regras é bastante conservador. Procura-se manter as tradições mesmo que, para isso, a vontade dos indivíduos deva ser anulada. A liberdade sexual e de costumes, o combate ao racismo, os direitos de homossexuais, mulheres e crianças ainda são vistos com desconfiança por essas instituições, e há uma pressão constante para se voltar às tradições. As mudanças de costumes são lentas, e muitas vezes só acontecem porque o Estado interfere, criando leis que alteram a dinâmica da instituição. A criação de uma lei para punir atos racistas tornou o racismo socialmente inaceitável e criticado. A proibição do trabalho infantil fez com que crianças passassem a ser vistas como sujeitos de direito e pudessem estudar em vez de serem submetidas a trabalho incompatível com sua idade. A aprovação do divórcio e posterior equiparação da união estável ao casamento tirou milhões de casais da clandestinidade, reconhecendo filhos e ampliando direitos como pensão em caso de morte.
Construindo o Estado
O Estado é uma instituição que foi historicamente construída para se sobrepor às demais instituições. Criado como alternativa ao poder religioso medieval e como forma de unificar sistemas jurídicos e políticos bastante diversificados, passou pelo fortalecimento da figura do monarca, chegando ao Absolutismo, marcado pela frase de Luis XIV, “O Estado sou eu”. Essa visão foi duramente criticada pelo Iluminismo e completamente subvertida com as Revoluções Burguesas. A ascensão da burguesia fez com que fosse modificada também a lógica do Estado, reduzindo o poder da religião a ponto de se
falar em Estado laico e reduzindo o poder do monarca e da nobreza, a ponto de se desenvolverem técnicas de ampliação da participação popular e implantar a república. Foram criadas novas leis, recusando privilégios da aristocracia e incorporando valores burgueses em relação à propriedade e à democracia. Apesar disso, inicialmente foram mantidos vários dos costumes das demais instituições sociais, especialmente as regras da religião cristã em relação à família, mantendo as mulheres subjugadas aos homens – e foi necessária uma luta dentro da lógica dessas novas leis para quebrar esse tipo de discriminação. Isso só foi possível porque há a possibilidade de questionar e modificar costumes antigos por meio de lei, diminuindo o poder de outras instituições para ampliar discursos de reivindicação de participação política, direitos humanos e proteção a grupos discriminados. O Estado moderno se diferencia das demais instituições por ter criado uma série de regras que limitam o seu poder e permitem o seu controle, impedindo ou procurando evitar que esse poder seja usado contra a sociedade. Existem a tripartição de poderes e um sistema de balanceamento no qual se procura evitar a concentração de poderes na mão de apenas uma pessoa – como era o caso do monarca no Absolutismo. Quem faz as leis não é a mesma pessoa ou o mesmo grupo que julga os conflitos causados pela lei. As regras devem ser leis claras e com a preocupação de evitar conflitos sociais. E o Estado tem um poder que as demais instituições não têm: o poder de coerção, que consiste não só no monopólio do uso legítimo da força, mas na capacidade de poder forçar a pessoa a agir de determinada forma. Tem também o poder de criar e abolir crimes. Tem o direito de prender a pessoa que comete um crime, limitando seu direito de ir e vir. Tem o poder de obrigar as pessoas a pagar impostos, e a sofrer multa e sanções caso não façam o pagamento. E tem
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o poder de obrigar crianças a irem para a escola em vez de trabalhar, além da capacidade de punir quem desrespeitar a lei e empregar crianças. O Estado tem o poder de mudar a sociedade, reconhecendo identidades historicamente discriminadas (como mulheres, pessoas negras e homossexuais), garantindo direitos a elas e lhes concedendo uma liberdade que elas não tinham em outras instituições. É importante lembrar que o Estado interfere na vida privada para impedir que as outras instituições pratiquem costumes que violem a lei, tais como manter uma pessoa em cárcere privado, torturá-la ou espancá-la por não ter seguido as regras dessas instituições.
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Os problemas de desvalorizar o Estado Abandonar a luta política e optar por desvalorizar o Estado significa a negação de um processo de conquista de direitos de grupos historicamente discriminados. As mulheres só obtiveram direitos porque argumentaram pela igualdade com base nas regras do Estado moderno; de outra forma, estariam ainda sendo proibidas de estudar, porque a instituição família e a maioria das instituições religiosas consideram que mulheres não precisam de educação quando sua função é ser apenas mães e esposas. Da mesma forma, se hoje o racismo é combatido, o casamento não é mais perpétuo e pessoas homossexuais têm
seus direitos civis reconhecidos, isso se deve à compreensão do papel do Estado nas sociedades modernas: ele possibilitou a construção de um discurso para reivindicar direitos e impedir que fossem restringidos por causa das regras de uma ou outra instituição. O que deveria ser o foco das demandas atuais é a ampliação desses discursos para encaixá-los no Estado democrático de direito. Afinal, o poder estatal permite estimular direitos sociais e forçar a mudança de costumes de forma bem mais efetiva do que se utilizando de outras instituições. Campanhas educativas são importantes, mas de impacto bem mais lento do que a obrigação de cumprir a lei. Outra questão importante é que, ao abandonar a pressão para mudanças nas políticas estatais, abre-se espaço para que grupos que não sejam pluralistas ocupem esse lugar. É possível ter um retrocesso nas políticas de Estado, pois tais instituições irão impor as regras de sua instituição a toda a população, e não haverá pressão popular para impedi-las, posto que optaram por sair do debate político. Se é uma instituição religiosa, o que se tem é a violação do Estado laico. E esse é um ponto delicado: não há liberdade para as pessoas se elas são obrigadas a seguir as regras de um grupo específico ao qual não pertencem. Não se deve obrigar um protestante a seguir a doutrina espírita nem um candomblecista a seguir a doutrina católica, nem um reconstrucionista helênico a seguir a doutrina judaica. E não cabe ao Estado obrigar ninguém a seguir as regras de uma determinada religião, mesmo que seja a religião da maioria: a minoria deve ser respeitada e não pode ser indiretamente forçada a obedecer as regras de instituição alheia. Pelo contrário: cabe ao Estado proteger a religião da minoria, impedindo que seus praticantes sejam perseguidos e impossibilitados de realizar seus cultos. Para um Estado que tem poder demais, é possível controlá-lo de modo a impedir uma ditadura: pelo voto, pelo Judiciário, pela mídia, por pressão de ativistas (e a internet tem sido bem utilizada para articular ações), por interferência direta em políticas públicas. Nesse caso, a sociedade se defende contra os excessos do Estado. Porém, se a opção for pela transferência de parte desse poder a outras instituições, não haverá Estado para impedir o massacre do indivíduo discriminado em nome de regras medievais que violam direitos humanos. Para defender a sociedade, há momentos em que é necessário defender o Estado para preservar o Estado laico e para garantir a autonomia das pessoas e o respeito aos direitos humanos. F abril de 2012
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Extinguir o foro privilegiado A Constituição garante foro privilegiado para uma infinidade de autoridades brasileiras a pretexto de evitar condenações injustas. Na prática, porém, o privilégio tornou-se um obstáculo praticamente intransponível à condenação dos corruptos de alto escalão
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origem etimológica da palavra “privilégio” é bastante sugestiva. No latim, o adjetivo privus designava a esfera privada em oposição ao publicus, enquanto legis era o genitivo singular de lex: lei. Privilegium, em bom português é, portanto, uma lei privada; um verdadeiro estado de exceção particular, que torna o “privilegiado” alguém privado da lei ou, mais precisamente, dos rigores dela. O foro privilegiado tradicionalmente se justificava pelos títulos de nobreza do beneficiado. Se a premissa é que nobres e povo são diferentes, não haveria sentido que o mesmo juiz que julgasse um popular também pudesse julgar um barão. Na república, porém, onde todos são iguais perante a lei, a própria ideia de um foro privilegiado já se mostraria incoerente, daí porque se criou o eufemismo com o qual muitos juristas e políticos procuram legitimar a existência de um foro privilegiado até hoje: a “prerrogativa de função”. A prerrogativa de função é essencialmente um foro privilegiado que se justifica não mais no azulado do sangue ou em um título vitalício de nobreza, mas no estado transitório de alguém do povo que ocupa um cargo azul da república. O privilégio vitalício se torna transitório e vinculado ao exercício de um cargo importante. Sua justificativa não é mais o fato de algumas pessoas serem melhores que outras, mas de alguns cargos públicos, por questões estratégicas, necessitarem de uma blindagem especial para evitar o uso político do processo penal. A lista de privilegiados elencada na Constituição brasileira é possivelmente a maior do mundo. Em muitos países, o presidente da República e os chefes dos demais Poderes são beneficiados com a prerrogativa de função, tendo em vista a enorme visibilidade do cargo. Somente no Brasil, porém, autoridades tão diversas quanto governadores, deputados, senadores, ministros, membros dos
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Tribunais de Contas, comandantes das forças armadas e – pasmem – até mesmo prefeitos e deputados estaduais têm foro privilegiado. Alegam os defensores da prerrogativa de função que autoridades do alto escalão precisam ser julgadas por juízes experientes, que estariam menos sujeitos a pressões externas. Na prática, entretanto, essa premissa se mostra completamente falsa, pois o processo penal brasileiro garante a todos os réus condenados a possibilidade de recorrerem para os Tribunais de Justiça e, posteriormente, para os Tribunais Superiores, para que possam ter seus casos reexaminados por juízes mais experientes. Ainda que não houvesse o foro privilegiado, a palavra final sobre a condenação ou absolvição dessas au-
toridades seria mesmo do Supremo Tribunal Federal (STF), pois esse tipo de réu é sempre assistido por ótimos advogados, que não têm maiores dificuldades em levar a questão a julgamento pelo STF, até pela repercussão política dos fatos. A discussão sobre o foro privilegiado não é uma discussão sobre quem irá julgar o réu definitivamente, mas sim sobre quem irá presidir a fase de coleta de provas. Em qualquer processo, o juiz leva meses e até anos ouvindo partes, testemunhas, determinando a elaboração de provas periciais e coletando todas as demais provas necessárias para o esclarecimento do fato. Esta fase, chamada de instrução probatória, é indiscutivelmente a mais demorada do processo. Finda a instrução, cabe ao juiz estudar as provas produzidas e julgar o caso. A fase do julgamento, em si, é relativamente rápida, pois só depende da disponibilidade de tempo do magistrado para examinar as provas e redigir sua decisão.
Quando há recursos, o tribunal não refaz a fase da coleta de provas, mas tão somente examina as provas produzidas e julga se a decisão do juiz foi acertada ou não. E é justamente por não ter participado da produção das provas que os magistrados do tribunal, em princípio, estão mais distanciados emocionalmente dos fatos e têm condições de decidir com maior imparcialidade. Daí a enorme importância do princípio do duplo grau de jurisdição, que garante ao acusado a possibilidade de recorrer de sua condenação para um tribunal que não participou da fase da coleta de provas e de ter seu caso julgado ao menos duas vezes. Do ponto de vista estritamente jurídico, o foro privilegiado seria uma enorme desvantagem para o acusado, pois se no julgamento pelo juiz de primeira instância ele sempre poderá recorrer para ter decisões mais favoráveis em outros tribunais, no julgamento com foro privilegiado, muitas vezes a decisão é definitiva, já que, quando a competência é do STF, não há um órgão superior para o qual se possa recorrer. Na prática, porém, o foro privilegiado é sinônimo de blindagem e de impunidade, pois a morosidade na coleta de provas torna inviável qualquer condenação. Em 2007, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) realizou a pesquisa “Juízes contra a Corrupção” e constatou que das 130 ações penais que tramitaram no STF, por conta do foro privilegiado, entre 1988 e 2007, nenhuma resultou em condenação. Das 483 que tramitaram no Superior Tribunal de Justiça (STJ), houve condenação em apenas cinco casos. O foro privilegiado propicia a impunidade, pois coloca os tribunais para trabalhar justamente na parte mais demorada do processo, isto é, na coleta de provas. Tribunais são órgãos do Judiciário concebidos para examinar recursos em processos nos quais as provas já foram colhidas e não dispõem da infraestrutura e de funcionários treinados para coletar provas em tempo hábil para o julgamento, o que acaba resultando na prescrição ou em uma deficiente coleta de provas. A função declarada do foro privilegiado é garantir um julgamento justo por um juiz mais experiente, mas, na prática, sua função manifesta é garantir uma blindagem das autoridades de alto escalão por meio de um procedimento tão burocrático e inviável que resultará quase inevitavelmente em extinção da punibilidade por prescrição ou absolvição por falta de provas. O senso comum forense
sabe muito bem que casos de tamanha gravidade acabarão sempre sendo julgados em definitivo pelo STF, para onde os advogados dos acusados irão inevitavelmente recorrer. A diferença é que a instrução probatória seria muito mais ágil se as provas fossem colhidas em primeira instância. Alegam os defensores do foro privilegiado que, mesmo que as condenações de primeira instância não sejam definitivas, seriam por si só suficientes para macular a imagem honrada dessas autoridades, colocando em risco suas carreiras públicas, no que, de fato, têm toda razão. Juízes muitas vezes erram, e julgamentos precipitados infelizmente podem destruir carreiras e, consequentemente, vidas. É preciso lembrar, no entanto, que pedreiros, faxineiros e lavradores são condenados injustamente todos os dias, perdem seus empregos e seus amigos por conta do estigma que lhes é atribuído e também têm suas vidas destruídas. O foro privilegiado não soluciona os erros do Judiciário, apenas impede que algumas autoridades estejam sujeitas a eles, não porque isso possa causar alguma instabilidade política, mas porque essas autoridades são consideradas como uma espécie de nobreza além do bem e do mal. Em uma república digna do nome, ministros, senadores ou governadores também estarão sujeitos aos mesmos erros dos mesmos juízes que, com seus equívocos, destroem a vida de cidadãos comuns do povo. A tutela de reputações individuais não é suficiente para legitimar a existência de um foro privilegiado. Em casos particularmente específicos, como por exemplo, o cargo de presidente da República, uma condenação criminal contra o chefe do Poder Executivo poderia gerar uma instabilidade política de repercussões gigantescas para o País. Por conta desta tutela da ordem política nacional (e não da honra do indivíduo que exerce o cargo de presidente), justifica-se a existência de um foro privilegiado. Nos casos de condenações de prefeitos, governadores, ministros, senadores e deputados, só para citar alguns cargos, haveria, contudo, muito pouco ou mesmo nenhum abalo da ordem política nacional. A prática tem demonstrado que, em casos como esse, os acusados são afastados de seus cargos muito antes de um julgamento definitivo, que, quando ocorre, muitas vezes desperta pouco interesse da grande mídia. A prerrogativa de função em uma república só pode e deve existir para garantir a
ordem política do Estado, e nunca para melhor garantir a reputação dos titulares desses cargos. Do contrário, estar-se-ia retomando o velho modelo do juiz comum para julgar o povo e do juiz extremamente qualificado para julgar os barões, partindo da falácia de que a honra de um cidadão do povo tem menor valor que a honra de um nobre. Para tentar sanar essa excrescência jurídica completamente incompatível com os ideais republicanos, tramita no Senado a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 81/2007, de autoria do senador Gerson Camata (PMDB-ES), que está aguardando designação de relator na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) desde 14 de janeiro de 2011, em uma demonstração explícita de falta de interesse político de se votar a matéria. Diante da letargia do Senado, o deputado federal Rubens Bueno (PPS-PR) propôs este ano a PEC nº 142/2012, com o mesmo objetivo, de pôr fim ao foro privilegiado. Se não houver, porém, uma efetiva mobilização popular em torno do tema, dificilmente será votada e aprovada, pois não é crível que deputados e senadores cortem seus próprios privilégios de forma espontânea. A construção da república no Brasil ainda é uma tarefa inacabada. Nossa cultura aristocrática está por todas as partes, desde as placas pretas dos carros de luxo até os títulos de doutor usados como pronome de tratamento. E está também no foro privilegiado. É lamentável que os atuais “barões”, “condes” e “duques”, eleitos pelo voto popular ou indicados pelo presidente da República, insistam em se apropriar da res publica e defender seus privilégios como garantias necessárias para o exercício do cargo. O povo, porém, não pode nem deve aguardar passivamente o dia em que essa nobreza irá abdicar por conta própria de seus privilégios, pois o mais provável é que esse dia nunca chegue. Os princípios republicanos não foram um presente concedido pelos nobres aos plebeus. Foram conquistas. E é preciso conquistar também o fim do privilégio de foro, pois a principal causa da impunidade dos corruptos de alto escalão é esta blindagem que hoje lhes é concedida. Somente quando ministros e lavradores forem julgados pelos mesmos juízes poderemos começar a construir uma república digna do nome. F TÚLIO VIANNA, professor da Faculdade de Direito da UFMG.
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O Estado e o armário. Cidadanias 1 sexuais no Equador e na Bolívia por Sofía Argüello Pazmiño*
O
presente trabalho é um estudo comparativo entre o Equador e a Bolívia na última década e meia (1990-2007), em contextos sociais e políticos de “novas” formações estatais, nos quais são produzidas mudanças substanciais nas agendas de governo, na configuração de “novos” atores sociais e “novas” lutas de representação política e agendas econômicas. Tais contextos reconfiguram, reconstroem e resignificam os imaginários e as representações sobre as identidades sexuais, tanto no nível do Estado quanto no das interações cotidianas e, além disso, produzem modos de ação coletivos dos grupos GLBT organizados, que se articulam ou separam nos contextos discursivos e nas práticas dos Estados. Entretanto, esses contextos não podem ser lidos exclusivamente com base na conjuntura de ambos os países (por exemplo, dos recentes governos esquerdistas de Rafael Correa e Evo Morales). As maneiras como os grupos sexualmente diversos articulam suas demandas com o Estado, as políticas estatais específicas, as formas de ação coletiva, os repertórios de ação, as lutas pelas hegemonias etc., podem (devem) ser interpretadas por meio de um olhar genealógico, que implica compreender a problemática com base em ancoragens temporais de médio e longo prazos. Em outras palavras, é necessário realizar uma arqueologia dos cenários históricos de conformação das cidadanias sexuais, o que, nesses casos de análise, implica ainda desentrelaçar os discursos e as agendas que classificam, com base no estigma do neoliberalismo, qual tipo de cidadão se requer.
Perspectivas feministas para o estudo do Estado
Os artigos de Georgina Waylen, “Gender, feminism and the state: an overview” (1998), e de Wendy Brown, “Finding the man in the state” (1995), nos oferecem algumas linhas analítico-teóricas sobre como, com base no feminismo, pode-se entender o Estado. Nas linhas seguintes, tentarei esboçar algumas ideias importantes sobre os textos, mas de maneira articulada, de modo que possamos refletir sobre as magnitudes, limitações e propostas feministas em relação ao Estado, que nos permitirão, além do mais, relacioná-lo ao armário. O texto de Georgina Waylen nos localiza no debate que se desenvolve no transcurso do livro Gender, Politics and the State (1998). Por essa razão, um dos objetivos do texto é “trazer o Estado de volta ao primeiro plano” (“Bring the State Back In”) com base em perspectivas e análises feministas. O texto de Wendy Brown, por sua vez, tenta fazer uma genealogia da tradição do pensamento feminista do Estado com base em quatro diferentes modalidades do Estado norte-americano contemporâneo. Para abordar as categorias de análise que cruzam os âmbitos teóricos e interpretativos de Waylen e Brown, gostaria de propor pelo menos duas perguntas para guiar nossa reflexão: Como as autoras veem a teorização feminista em relação ao Estado? Como o Estado tem sido teorizado? Diante desses questionamentos, tenho interesse em propor pelo menos três categorias analítico-conceituais por meio das quais as
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autoras reposicionam a relação gênero-Estado. Como parte de um exercício metodológico, registro de forma sistemática os três eixos de reflexão, o que não significa, de forma alguma, que eles estejam separados entre si. Na verdade, corroborando a preocupação das autoras de não continuar entendendo esses conceitos como algo em si mesmo – proponho pensá-los com uma visão constantemente articulada, dinâmica, inter-relacionada. A primeira categoria remete à compreensão sobre o conceito de gênero. Waylen recorre a Joan Scott para entender o gênero como “a via primária de significações das relações de poder”. Nesse sentido, deseja entender a relação entre as ações das mulheres e as instituições, e aposta em abandonar a rígida dicotomia estrutura-agência. A ideia de fundo é que as relações de gênero estão, em parte, constituídas pelo Estado. A segunda categoria remete à noção de poder. Ambas as autoras insistem em entender o poder como não unilateral, mas como uma rede. Isto é, elas entendem o poder do Estado por meio de uma visão foucaultiana da biopolítica, do biopoder. Finalmente, a própria categoria do Estado: as autoras criticam a ideia de sua centralidade, de vê-lo como algo fixo, unitário, como uma coisa em si, como uma entidade. Waylen (1998:7) atenta para a “natureza não homogênea” do Estado. Devemos encará-lo como um lugar de luta, de forma histórica e por meio de circunstâncias particulares. O Estado tem um papel muito importante na criação de formas particulares de relações e desigualdades de gênero. Ele constrói e regulariza as relações de gênero e as relações entre homens e mulheres. O Estado constrói sujeitos generizados. Nesse contexto, o Estado está em um terreno irregular e fraturado (Álvarez em Waylen, 1998:6). Brown considera o Estado como um conjunto multifacetado de relações de poder e um veículo de dominação massiva. “O Estado não é uma coisa, um sistema ou um sujeito, mas um significativo terreno de poderes e técnicas, um conjunto de discursos, regras e práticas coabitadas em limitações, frequentemente uma relação contraditória” (Brown, 1995:174; tradução nossa). Waylen realiza uma breve análise de como os feminismos se aproximaram para compreender o Estado. As primeiras tentativas de teorizar o Estado com base no feminismo têm origem nos anos 1970 e 1980. A maioria dos trabalhos centra o foco na democracia liberal, com tendências gerais e análises macroteóricas. As feministas socialistas, por sua vez, propõem que a subordinação da mulher sustenta o capital por meio da reprodução da força trabalhista a partir da família. Finalmente, muitas posturas de feministas radicais pensam o Estado como inerentemente patriarcal. O Estado institucionaliza os interesses masculinos (Mackinnon em Waylen, 1998:5) por meio da lei, por exemplo. Entretanto, afirma Waylen, não é possível entender o Estado como uma entidade de subordinação das mulheres. É preciso entender as diferentes formações do Estado, e não encará-lo como algo homogêneo. É preciso compreender e distinguir os diferentes 1 Neste Caderno CLACSO, apresentamos uma versão editada do artigo de Sofía Argüello Pazmiño, o qual é parte integrante do livro Las deudas abiertas en América Latina, disponível na Série Digital da Coleção de Bolsas de Pesquisa: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/becas/LasDeudasAbiertas
grupos de instituições, agências e discursos a partir de histórias particulares e conjunturas políticas. Waylen fará uma crítica a esses enfoques na medida em que devem ser vistos a partir de orientações comparativas das diferenças de gênero existentes nos diferentes sistemas de bem-estar do Estado. Wendy Brown, por sua vez, registra três fatores da dominação masculina e do poder do Estado. A teoria feminista do Estado requer simultaneamente articulação, desconstrução e relacionar os múltiplos ramos de poder compostos por ambos: masculinidade e Estado. Não existe um Estado masculino por si só. É preciso, portanto, uma análise genealógica para compreender os diferentes modelos sociais, econômicos e políticos de dominação inseridos na cotidiana constituição e regulação dos sujeitos.
Proliferação de atores no Equador e na Bolívia no início do ano 2000
As conquistas legais que tinham sido alcançadas nos anos 1990 no Equador (tais como a despenalização da homossexualidade e a Lei antidiscriminação por orientação sexual) transformam-se em um detonador para a explosão de grupos e agendas GLBT. Após o processo de despenalização da homossexualidade, por exemplo, tem início no Equador uma campanha de projetos para combater o vírus HIV, patrocinada, principalmente, por agências internacionais. Entretanto, no início do ano 2000, é possível observar uma intensa presença de grupos e organizações que vão se formando e se fortalecendo nos processos de trabalho que se desencadearam desde 1994. Um desses detonadores pode ser entendido como a diferença de identidades e projetos organizacionais dos grupos GLBT. Lentamente, os grupos foram transpondo a identidade dos homens gays e passaram a construir demandas paralelas aos projetos contra o vírus. Enquanto isso, tanto a despenalização como a lei antidiscriminação tornaram público o debate das diversidades sexuais, o que supôs a visibilidade dos grupos, suas problemáticas e suas propostas nos meios de comunicação. Porém, sobretudo, foram gerados novos atores, ou melhor, os atores que vinham caminhando com o processo GLBT se fragmentaram e as demandas se proliferaram, mas principalmente proliferaram-se as atuações. O primeiro momento de configuração das agendas GLBT no Equador está estreitamente ligado às propostas para gerar mudanças legais e de reconhecimento a partir dos espaços institucionais do Estado, isto é, basicamente, modificar a Constituição Política do país. Entretanto, e após ter avançado com essas mudanças fundamentais, os repertórios de ação coletiva e os atores sociais se fragmentam e se diversificam. Por um lado, evidencia-se a diversidade das identidades sexuais; por outro, manifestam-se alguns protagonismos pessoais e institucionais no interior da organização que até então representava os grupos GLBT, a Fedaeps. Essa criação de grupos e espaços e de todos esses “movimentos” gerou também uma ruptura que estava muito relacionada ao protagonismo, que tinha a ver com a quem pertenciam o discurso, os recursos, os meios, as ações. Para mim, o período entre os anos 2000 e 2001 foi um tempo muito difícil. A partir de 2000 e 2001, muitas pessoas começaram a processar o que aconteceu entre 1996 e 2000, pois era preciso refletir e entender os fatos; era necessário internalizá-los. Muitas pessoas se davam conta, naquele momento, de que eram cidadãs, de que tinham alguns privilégios (porque, para mim, é um privilégio, falando de discriminação de orientação sexual). Era como destampar uma Caixa de Pandora (Patrício Brabomalo, entrevista, abril de 2005).
É importante chamar a atenção para a conformação de outros espaços e outras agendas dos grupos GLBT no Equador. Esses novos atores que querem ser inseridos em alguma organização procuram espaços que lhes permitam sair da clandestinidade e repensar sua própria identidade sexual. Lembremo-nos de que as primeiras ações que surgiram nos processos prévios à despenalização e à Assembleia de 1998 foram protagonizadas, por um lado, por atores ativistas concretos que congregavam e negociavam com outros atores estratégicos. Por outro lado, os que mostraram “a cara”, principalmente após a prisão coletiva no Bar Abanico, foram os travestis e transgêneros, que foram o rosto público da população homossexual de então, a partir da organização Coccinelli. Após esses acontecimentos, a explosão de organizações se apresenta como um articulador importante. O “espaço próprio” gera um lugar comum de ação. Os grupos GLBT enfrentam suas próprias diferenças internas. O que inicialmente poderia unir homens gays não uniria mulheres lésbicas ou travestis. A construção de repertórios de ação específicos marca uma linha de diferenciação desses novos processos fragmentados. Por exemplo, os grupos de mulheres lésbicas são promovidos a partir de reuniões iniciais para comemoração de aniversários, passando por campeonatos esportivos de futebol, até a realização de encontros nacionais de mulheres lésbicas. Além disso, também sempre se diferenciavam os repertórios de ação visíveis (que são expostos publicamente) dos (in)visíveis (que servem para “recrutar” mulheres). É preciso registrar, portanto, que a construção de identificações sexuais foi um processo ambíguo, ambivalente, confuso, em constante tensão. Tínhamos muitos outros processos a serem alcançados e desenvolvidos. Justamente nessa conjuntura, entre 2000 e 2001, surge a Fundação Causana, com o objetivo de pensar e empreender outros processos que não fossem os desenvolvidos nos anos anteriores. Eu, por exemplo, vinha de processos sociais e comunitários, enquanto outros companheiros vinham de dentro da arte, da cultura, de suas profissões, do criativo etc. Patricio, Vicky e eu também vínhamos da Fedaeps, mas queríamos criar algo diferente. Abrimos o primeiro grupo de estudos acadêmicos com a FLACSO, pois pensávamos que deveríamos entrar naquele espaço e dizer à academia o que estava acontecendo, e que deveríamos começar a falar na academia sobre esses temas. O mais importante, porém, é que, com a Causana, não começamos somente a trabalhar o tema dos gays ligados à aids, mas abrimos uma imensa proposta de trabalho com mulheres lésbicas. A importância dessa mudança é que já eram muitas as mulheres públicas, as ativistas que trabalhavam nos processos políticos, mas quem sempre mostrava o rosto? Os homens gays. É por isso que decidimos formar um grupo apenas de mulheres que não se ligou inicialmente ao movimento histórico de mulheres, mas ao processo GLBT (Letícia Rojas, entrevista, junho de 2007).
A explosão de grupos de diversidade sexual na Bolívia
Como no Equador, a Bolívia também viveu uma explosão de formação de grupos de diversidade sexual que visibilizavam não apenas os grupos de homens gays, mas também o surgimento de grupos de lésbicas, travestis, transformistas, drag queens. Essa explosão de agrupamentos marcava também a visibilidade de outras identidades sexuais que não entravam no cenário das primeiras trajetórias da constituição desses grupos. Por um lado, deixavam de ser somente os homens gays aqueles que se reuniam e propunham agendas; por outro, o discurso HIV-aids – com foco em temas como risco, vulnerabilidade, epidemia abril de 2012
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ou prevenção – deixou de ser a palestra de trabalho dessas organizações. O discurso assumiu uma reviravolta importante: a da prevenção e da “preservatização” às agendas que incluíam direitos. Em um trabalho realizado em 2002, Jimmy Tellería afirma: “Na Bolívia, atualmente, estamos no processo de consolidação de um movimento emergente das diversidades sexuais no campo dos direitos. Podemos verificar essa formação se prestamos atenção às demandas por direitos dos atores sociais específicos das diversidades sexuais (comunidades gays, lésbicas, transexuais, drag queen, atuação transformista hiper-realista, travestis etc.), os quais se articulam por meio de processos concretos de visibilização pública e institucional, coordenação e realização de alianças estratégicas com organizações e instituições governamentais e não-governamentais” (Tellería, 2002: 16). Tal “consolidação de um movimento emergente das diversidades sexuais” está marcada também pelas diferentes agendas que convergem e se distanciam segundo as propostas políticas que defendem. Nesse contexto, nascem grupos como La Familia Galán, a Associação para o Desenvolvimento Integral da mulher Simbiosis (que trabalha com mulheres lésbicas ou grupos de travestis), e se reconfiguram processos como a organização Libertad, que muda sua agenda da prevenção do HIV para a temática dos direitos. A partir deste trecho, quero pontuar duas experiências que, de uma ou outra maneira, identificam-se com a(s) diversidade(s) sexual(is) e que me parecem relevantes para este trabalho de pesquisa, à medida que politizam a identidade sexual com base em parâmetros que rompem, inclusive, as fórmulas normativas com as quais trabalhavam algumas organizações GLBT na Bolívia: a constituição de La familia Galán e o grupo Mujeres Creando. Considero que ambas as experiências permitem pontuar dinâmicas de politização identitária, agendas políticas e repertórios de ação que se confrontam tanto com: a) os imaginários normativos sobre a sexualidade, os quais são construídos diariamente; b) com os próprios conflitos internos que se dão dentro de cada processo; c) com as relações que dali são geradas com as políticas de Estado. Na Bolívia, não é possível desconhecer o surgimento e o trabalho do grupo Mujeres Creando (Mulheres criando). Incluir esse grupo é fundamental na medida em que ele surge na primeira metade da década de 1980 como grupo de pressão contra as medidas neoliberais implementadas na Bolívia em 1985. Desde então, o grupo tem sido um ícone de introversão sobre vários eixos temáticos que incluíram, entre muitos tópicos, a reflexão sobre o(s) feminismo(s) latino-americano(s), a ci-
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Os Cadernos de Pensamento Crítico Latino-Americano constituem uma iniciativa do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO) para a divulgação de alguns dos principais autores do pensamento social crítico da América Latina e do Caribe. São publicados mensalmente nos jornais La Jornada do México e Página 12 da Argentina e nos Le Monde Diplomatique da Bolívia, Chile, Colômbia, Espanha, Peru e Venezuela. No Brasil, os Cadernos do Pensamento Crítico são publicados em parceria com a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO) na Revista Fórum. CLACSO é uma rede de 300 instituições, que realizam atividades de pesquisa, docência e formação no campo das ciências sociais em 28 países (www.clacso.org). FLACSO é um organismo internacional, intergovernamental, autônomo, fundado em 1957, pela Unesco, que atua hoje 17 Estados Latino-Americanos (www.flacso.org.br).
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dadania das mulheres, as ações contra o neoliberalismo, os repertórios de ação coletiva que incluem seus famosos grafites e performances públicas etc. Percorrer 20 anos de sua trajetória requer, como já se fez em vários trabalhos, parar detalhadamente para “escrever sobre elas”. Essa tarefa é também complicada por causa do sentido crítico a partir do qual a produção do conhecimento sobre suas propostas, projetos e discursos políticos é vista pela “academia”. Entretanto, quero situar o processo de Mujeres Creando no ano 2000 e recuperar as tensões de sua ruptura como geradoras de novos processos e mudanças. Por que me ater aos conflitos? Por um lado, porque estou certa de que nos ajudam a compreender: a) que inclusive as políticas das identidades, fundamentadas em discursos libertadores e críticos, se ressignificam e dão lugar a novos processos de ação coletiva, a outros espaços de significações e a transformações de atores que modificam a cultura política; b) porque permitem analisar, inclusive, as formas como se institucionalizam suas agendas críticas. Por outro lado, porque acredito que é preciso visibilizar essas tensões organizativas na medida em que se tornam um espaço de reconhecimento de “novos” atores e propostas, muitos dos quais não se deixam ver pelo encobrimento de mitos e essencialismos que costumamos construir – nós, pesquisadores (as) – sobre os processos e os atores sociais. O grupo Mujeres Creando é articulado, a princípio, com uma proposta anarquista contra as políticas neoliberais aplicadas na Bolívia. Entretanto, a força de sua proposta reside no fato de que consegue inserir discursos e práticas feministas em suas ações. Isso é, sem dúvida, um ponto fundamental do trabalho do Mujeres Creando, pois associa uma agenda feminista às suas críticas dirigidas ao Estado e às políticas neoliberais. Julieta Paredes e Maria Galindo, fundadoras do grupo, identificavam-se publicamente como mulheres feministas lésbicas e como um casal, mas sempre interpelaram as desigualdades estruturais fundamentadas na economia política e no sistema patriarcal opressor. Entretanto, no início do ano 2000, Julieta Paredes e Maria Galindo se separaram, e com elas também se separou o grupo Mujeres Creando. É preciso considerar esse fato, pois uma parte da fração deixa de ser visível e são geradas não apenas disputas entre as diferentes partes, mas também a falta de conhecimento das ações empreendidas por uma das frações.
Como conclusão: a cidadania sexual nos governos de esquerda
O trabalho de campo para esta pesquisa foi realizado por mim em dois momentos-chave das conjunturas políticas e sociais do Equador e da Bolívia. Trata-se dos processos pré-Assembleia constituinte, no caso equatoriano, e do processo final da Assembleia, no caso boliviano. Esses processos, diferentemente de outros, eram vividos por cada país em uma atmosfera na qual circulavam os discursos dos “novos” governos de esquerda na América Latina, principalmente nesses dois países. Dias antes de partir para La Paz, em junho de 2007, tive a oportunidade de estar na pré-assembleia constituinte de mulheres15 e na mesa de debates sobre diversidade sexual organizada pela Senplades16,, no Equador. Poucos dias após minha chegada a La Paz, participei da reunião do conselho municipal para defender a cidade como capital boliviana, e pude ver os últimos dias de vida da Assembleia. Foi nesses contextos específicos que realizei minha pesquisa. Não quero ater-me em abordar cada detalhe do que significa a inclusão/exclusão dos direitos dos grupos GLBT em ambos os países nessas conjunturas. Na verdade, poderia estender-me em exemplos e
detalhes da relação entre o armário e a formação destes novos Estados de esquerda no Equador e na Bolívia. No caso boliviano, por exemplo, poderíamos observar cenários como os seguintes: desde os grafites de rua do Mujeres Creando, que pintam nas paredes de La Paz frases como “Eva não vai sair da costela de Evo” ou “Não há nada mais parecido com um machista de direita do que um Alvarozinho de esquerda”, passando pela prisão de duas pessoas em 6 de agosto de 2007 (dia em que se comemoram os 182 anos da criação da Bolívia e o fim da Assembleia) por terem chamado de “bicha” o vice-presidente Garcia Linera, até a presença de um ativista transformista (drag queen) no Vice-Ministério de Cultura do governo de Morales. No Equador, por outro lado, poderíamos observar a presença de vários ativistas GLBT nas listas para a eleição de congressistas ou as propagandas televisivas da coligação dos Partidos Socialista e Pachacutik, na qual apareciam corpos seminus e casais homossexuais (lésbicas) em demonstrações de carinho. Poderíamos também mencionar a formação de uma grande coligação dos grupos GLBT cujas linhas de trabalho não estavam centradas apenas na Assembleia Constituinte. Por último, seria importante mencionar um interessante slogan promovido durante a celebração dos 10 anos da despenalização da homossexualidade: “Há dez anos a homossexualidade foi despenalizada. Hoje queremos penalizar a homofobia.” Dias depois desses fatos e das declarações, dois ativistas foram violentados em sua própria casa. Entretanto, além de interpretar esses eventos carregados de sentidos, queria situar minha análise nas estruturas mais amplas que englobam os discursos de esquerda dos governos de Rafael Correa e Evo Morales, e que marcam substancialmente um sistema de inclusão/exclusão que determina, por um lado, quem são os cidadãos e, por outro, quais são os espaços de ação e reconhecimento que possuem as identidades sexuais. A pergunta seria, então: De que forma é construída a cidadania sexual nos governos de esquerda do Equador e da Bolívia? A interpelação é interessante na medida em que os discursos de ambos os governos se acentuam nas noções de inclusão social que rompe (ou tenta romper) com as velhas práticas políticas sustentadas no sistema econômico neoliberal. Não é à toa que uma das propostas da campanha e do governo de Rafael Correa tenha sido (e seja) terminar com a “longa e escura noite neoliberal” ou que as ações iniciais do governo de Evo Morales tenham sido nacionalizar os recursos naturais, principalmente o gás natural. Em linhas gerais, gostaria de observar como, no caso equatoriano, o governo “progressista” de Rafael Correa e sua Revolução Cidadã constrói um cidadão homogêneo, indiferenciado. E a partir do caso boliviano, como é perceptível que os discursos incluídos se fundamentam principalmente no eixo étnico, politizando a cidadania de um sujeito historicamente excluído. É por meio dessas representações de cidadania que deveríamos analisar o que ocorre com as agendas e os atores coletivos dos grupos GLBT. É fundamental diferenciar as cidadanias? É primordial sobrepor a identidade étnica sobre outros processos e atores sociais? Não pretendo que esta parte conclusiva do texto seja um exercício “valorativo” sobre os alcances e limitações das implicações que essas propostas comportam. Acredito que o importante é localizar este novo processo de formação dos Estados equatoriano e boliviano como uma proposta de transformação não apenas institucional, mas também da cultura política. Para compreender essas armadilhas – que pareceriam deter os processos de construção das cidadanias sexuais – devemos compre-
ender novamente e estarmos atentos, como observa Waylen, à “natureza heterogênea” do Estado. Isto implica compreender os campos de lutas que estão em jogo com relação a ele, os ciclos sociais marcados também por conjunturas específicas, a visibilidade e lugubridade dos atores sociais e os sentidos e significados que orientam suas ações. Entender que os processos sociais não estão marcados por processos evolutivos, mas por jogos e lutas inesperados que emergem de diferentes espaços do exercício do poder. A Revolução Cidadã de Rafael Correa não negocia – como parte das reformas sociais e políticas – com os direitos específicos de grupos que ativam (ou ativaram) suas identidades como espaço de politização. Em um de seus órgãos de imprensa, Correa mencionou, por exemplo, que não será preciso promover e fortalecer uma lei de maternidade gratuita (introduzida na Constituição de 1998) para as mulheres do Equador, pois o que se espera e se precisa é ter um serviço de saúde universal que seja capaz de sustentar uma política social orientada para todos(as). Na Bolívia, a Assembleia Constituinte estava formada majoritariamente por representantes do Movimento ao Socialismo (MAS); vários indígenas ocuparam não somente uma cadeira na Assembleia, mas também no Congresso. Finalmente, gostaria de deixar uma observação sobre a importância de realizar este breve percurso sobre a relação entre o armário e o Estado, descrevendo as disposições e posições das cidadanias sexuais no Equador e na Bolívia. Retomando Abrams, “o argumento que explica a formação do Estado se desenvolve da seguinte maneira: nenhuma forma histórica ou contemporânea de governo pode ser entendida 1) em termos de seu próprio regime discursivo ou repertório de imagens; 2) sem se pesquisar a genealogia histórica, a origem (e transmutação) de tais termos como formas; 3) sem uma consciência da “perspectiva exterior”, como a “aprendizagem a partir do exterior”, que é tão evidente, seja como a positividade ou a negatividade das imposições de imperativos políticos-culturais; e 4) de forma que sejam silenciados os traços sexistas e racistas da sujeição organizada politicamente” (Abrams, Philip apud Joseph et al., 2002:26). Os cenários políticos e sociais no Equador e na Bolívia são conflitivos. Estão marcados por tensões regionais, por rachaduras das agendas neoliberais, pela construção de mudanças substanciais que implicam propor políticas sociais aos grupos historicamente excluídos, pela debilitação das classes políticas “tradicionais”. Nesses contextos de ação e de conflito, as estratégias dos atores coletivos se adequam, mudam e se transformam. Não retrocedem. As cidadanias sexuais já não precisam imperiosamente voltar a ser formadas para despenalizar a homossexualidade ou realizar campanhas de “preservatização” focadas em riscos. As cidadanias sexuais tomam outro caminho: já não precisamente o da vitimização ou o da “guetorização”. Em algum momento, a fragmentação de coletivos, para repensar a partir de sua particularidade ou para trabalhar conjuntamente com as agências de desenvolvimento, foi oportuna e inevitável. Mas parece que hoje se vive outro momento: o da construção de novos Estados no Equador e na Bolívia, onde, apesar de ainda se viver cotidianamente fortes atitudes de homofobia, é possível construir espaços para a ação política, nos quais a fragmentação e a diferenciação (necessária para politizar as identidades e para incluir direitos específicos quando essas identidades são invisíveis) compreendam as agendas de vários grupos. F
*Socióloga. Mestre em Ciências Sociais com especialização em Estudos de Gênero, FLACSO, Equador. Doutoranda em Ciências Sociais com especialização em Sociologia, Colégio do México. abril de 2012
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A aliança necessária Construir pontes entre os tradicionais e sólidos movimentos sociais e as emergentes formas interconectadas de ação social é fundamental para o fortalecimento das lutas por uma sociedade mais livre e justa por rodriGo saVazoni
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relação entre os movimentos so“As mobilizações do mundo árabe não mundial – a revista semanal Time elegeu os ciais e as novas tecnologias de têm nada a ver com as mobilizações da ju- manifestantes os “homens do ano” - e trouxeinformação e comunicação pode ventude do Chile. São coisas diferentes, que ram a relação entre política e tecnologia para ser analisada por múltiplos ânguusam os mesmos instrumentos. No Chile, por o centro do picadeiro – com especial atenção los. Pode-se abordar a resistência exemplo, há um espaço concreto que levou para o desempenho dos sites de redes sociais. de parte dos movimentos tradicionais em se milhões de jovens para a rua, que é a falta de Para avançarmos na compreensão desrelacionar com essas ferramentas. Pode-se um projeto político de educação gratuito e sa questão, façamos uma pausa teórica. também enfocar os movimentos emergenpúblico. A juventude árabe foi às ruas contra tes que, baseados no potencial técnico, or– I – a ditadura e a repressão de Estados dominaganizam novas formas de ação. Pode-se, por Artigo Novas Dimensões da Política: prodos por 30 a 40 anos”, analisa Rodrigues. “As outro lado, como é o objetivo deste texto, mobilizações dos países desenvolvidos são tocolos e códigos na esfera pública interconecabordar a necessária aproximação entre esdiferentes. São ações contra o sistema capi- tada1, de Sérgio Amadeu da Silveira, é fundases mundos, na perspectiva de vislumbrar a talista. Há os jovens pobres da classe traba- mental para compreendermos o contexto conformação de uma ampla aliança em favor lhadora, que estão desempregados, e há uma político em que estamos inseridos e as dida transformação social. pequena burguesia jovem que é muito bem ferentes formas possíveis de relação entre a No Festival #CulturaDigitalBr, encontro internet e os movimentos sociais. Nesse traresolvida, mas é contra esse modelo.” dos ativistas interconectados realizado em Para Rodrigues, o sentido principal das balho, o sociólogo, pesquisador da Universidezembro de 2011, essa junção de forças foi ocupações (Occupy) de praças é a formação dade Federal do ABC, distingue as lutas “na tônica. O mesmo pode ser dito do Fórum Sopolítica de quem participa. “Fora isso, não rede” (1) das lutas “da rede” (2). A primeira cial Mundial – que este ano ocorreu em Porto altera nada a vida real”, diz. “Podemos ter forma (1) de disputa política utiliza a rede Alegre em sua versão temática e descentraocupações em todas as praças do mundo; se como arena: espaço de batalha. São as lutas lizada –, onde em vários debates discutiu-se não mexer no aspecto central do capital, que que já ocorriam (como pela reforma agrária qual papel a internet e as tecnologias podem é a propriedade privada, não vai confrontar ou o feminismo) transpostas para esse novo desempenhar na organização da luta social as estruturas de poder. O MST, quando está (des)território. As lutas da rede (2), por sua contemporânea, discussão que vez, são aquelas que estabeocorreu em especial no evento lecem batalhas em defesa do Conexões Globais. arranjo inovador da internet, O MST, talvez o principal símbolo do que Silveira Sem dúvida, os acontecimencujos protocolos de comando e tos de 2011, da Primavera Árabe chama de movimentos “na rede”, não se ilude com controle, criados pelos hackers, ao Occupy Wall Street, passando o potencial tecnológico nem tampouco o descarta têm na navegação anônima e pelos levantes que na Europa na liberdade sua essência. Um não cessam – a Grécia é a bola da bom exemplo desse campo sevez –, ampliaram o interesse de riam os Anonymous ou mesmo todas as partes em avaliar a força e os limites acampado na beira da pista, não altera estru- movimentos como o brasileiro MegaNão. dessa nova onda global de protestos potenciaA essas duas formas de luta poderíamos, turas. Agora, seria bom que a juventude oculizados pela cibernética. passe todas as praças, principalmente para a talvez, somar uma terceira (3), que são os moPara João Paulo Rodrigues, da direção propaganda das ideias e a formação política vimentos à “imagem e semelhança da rede”. nacional do Movimento dos Trabalhadores de quem participa. Ainda assim, a ocupação Esses seriam, conforme descreve Naomi Klein Rurais Sem Terra (MST), organização que, da propriedade privada e a greve ainda são em seu já clássico livro Sem logo – A tirania revela seu integrante, sistematicamente tem os principais instrumentos de luta da classe das marcas em um planeta vendido, organifeito análises dessa conjuntura em transizações que atuam nas ruas moldadas “à imatrabalhadora”, avalia. ção, 2011 não representa um novo ciclo de O que a visão de Rodrigues comprova é gem e semelhança da internet”. Ou seja, não ascensão da luta de classes, mas sim uma que as análises sobre as características das só fazem da rede instrumento de suas causas, confluência de mobilizações. Para o movimobilizações do ano passado podem ser dis- mas são transformadas estruturalmente pela mento, essas manifestações precisam ser tintas, mas ao menos em dois aspectos sua analisadas em suas diferenças, pois, apesar leitura ecoa a de outros analistas: os levantes 1 http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010444782009000300008&script=sci_arttext de combinadas, são desiguais. foram ações de extremo impacto no sistema
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possibilidade de diálogo constante e formas distribuídas de deliberação. Diferentemente dos movimentos “da rede”, são grupos que não têm como finalidade única sua luta pela internet livre, embora essa seja uma temática cada vez mais transversal e unitária. As organizações espanholas em torno do Democracia Real Ya seriam um bom exemplo dessa terceira categoria, pois são um coletivo de coletivos e indivíduos, articulados em rede e de forma descentralizada, cujo objeto de ação é a denúncia radical da democracia liberal que vigora na Espanha. O Democracia Real Ya também tem se destacado pelo desenvolvimento de inúmeras ferramentas desenvolvidas em software livre para a mobilização social e a disputa de ideias na esfera pública. Uma dessas é a Lorea (http://www.lorea. org), que se constitui uma rede federada e descentralizada para a organização das entidades que participam das lutas iniciadas com o 15M (os protestos que tomaram as praças espanholas a partir de 15 de maio de 2011). As características e funcionalidades da Lorea vêm sendo debatidas em assembleias virtuais em um canal do IRC (Internet Relay Chat) – uma sala de bate-papo aberta e livre, que não registra os “rastros” dos usuários especialmente criada para essa finalidade. Ou seja, a tecnologia é criada e aperfeiçoada de forma democrática.
– II –
O MST, talvez o principal símbolo do que Silveira chama de movimentos “na rede”, não se ilude com o potencial tecnológico nem tampouco o descarta. Em conversa telefônica, Rodrigues revela que jamais falou em público sobre o assunto, o que se contrapõe ao fato de que internamente o movimento tem feito análises constantes sobre esses deslocamentos em curso. Para ele, as novas tecnologias e a internet servem fundamentalmente a dois propósitos: (1) comunicação com a sociedade e (2) mobilização social, principalmente da juventude. Sobre o primeiro aspecto, Rodrigues avalia que nenhum movimento social avança sem apoio amplo da sociedade. Normalmente, organizações que enfrentam o capitalismo recebem tratamento pejorativo por parte dos meios de comunicação de massa. No caso do MST, um estudo realizado pelo Coletivo Intervozes, intitulado Vozes Silenciadas, dedica-se justamente a demonstrar esse desequilíbrio editorial no tratamento à organização camponesa pelos jornais O Globo, O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo, pelas revistas Veja, Época e IstoÉ e pelas emissoras Rede Globo e
Record. Para ele, a forma de romper com esse cinturão informacional é investir nas redes sociais e na comunicação direta com os cidadãos, sem descartar também outras formas de comunicação alternativa como as rádios comunitárias, jornais e revistas da mídia livre, entre outros agentes contra-hegemônicos. Em relação ao trabalho de mobilização, Rodrigues avalia que as redes sociais e as aplicações de internet cumprem um papel muito importante. São “ferramentas” que contribuem, mas, por si só, não garantem a organização. “Você não consegue ter um núcleo de base no Facebook ou um acampamento no Twitter”, afirma. “Nós não acreditamos na tese que o processo de organização social e luta política se dá por autoproclamação. Atrás do instrumento tem de ter um organismo político. Tem que ter núcleo, organização, direção. Tem de ter um coletivo que convoque o movimento. As redes sociais não vão resolver o problema das classes trabalhadoras. Mas são aliadas importantes na consolidação de nossas lutas.” Silveira relembra, citando Alberto J. Azevedo, líder do Projeto Security Experts Team, que hashtags não derrubam governos. Mobilizações pela rede têm efeito na opinião pública, e muitas delas visam a chamar a atenção das pessoas para uma reivindicação ou problema. É uma posição semelhante à de Rodrigues, para quem não se pode criar o senso comum de que a internet, por si só, organiza as classes trabalhadoras. “Ela é um instrumento das diferentes classes. Ela pode ser usada pela direita, pela esquerda, pela CIA, pelos Estados Unidos. As mudanças virão de organismos vivos, de operários, camponeses, da juventude pobre, das mulheres marginalizadas. No entanto, se a esquerda não usar, a direita vai tomar conta desse instrumento”, alerta o membro da direção nacional do MST.
– III –
Levemos em consideração a análise do MST. Ela nos basta por ora. Seguindo a divisão de que a internet é fundamental para a (1) comunicação com a sociedade e (2) a mobilização e articulação da juventude, há uma série de tecnologias que vêm crescendo e ganhando projeção. Para se comunicar com a sociedade, as organizações da sociedade precisam utilizar ferramentas corporativas como Facebook, Twitter, YouTube ou Orkut, pois elas são as grandes concentradoras de atenção. No entanto, criados para produzir valor econômico com base nos dados gerados pelos usuários, esses sites produzem um paradoxo: por um abril de 2012
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tâneas ou organizadas? Ações emergentes, construídas de baixo para cima, ou ações de impacto, construídas clandestinamente e compartilhadas de cima para baixo? Essas são questões táticas que tradicionalmente opõem as esquerdas. Com a emergência dos movimentos interconectados, ganharam novo impulso. Não são, porém, questões novas. Rodrigues relembra que debates como esse acompanharam a fundação do MST e opuseram, ao menos taticamente, o movimento em relação aos partidos tradicionais de esquerda, de origem comunista. “O MST tem feito um exercício permanente de, em vez de fortalecer o centralismo, fortalecer o democrático”, diz Rodrigues, estabelecendo uma crítica organizacional ao chamado centralismo democrático, forma de ação política de origem leninista que exige dos militantes a defesa das posições do coletivo, mesmo quando não concordam com elas. “A internet ajuda justamente para fortalecer esse processo de abertura”, avalia. “Não queremos uma estrutura centralizada, em que uns mandam e os outros obedecem”. Ouvindo Rodrigues, fica claro que não serão as tecnologias a aproximar novos e velhos movimentos, mas sentimentos comuns, como a vontade de mudar as estruturas sociais, presente como força motriz da ação de camponeses, negros, mulheres, gays, lésbicas, jovens, crianças, hackers etc. Aos artefatos, caberá a função de permitir que essa diversidade se visualize no mesmo campo de batalha, atuando como forças grávidas de um outro mundo possível. Se isso ocorrer, talvez tenhamos a chance de vencer a infâmia. E se essas tecnologias ainda não existem, é nosso papel criá-las. Todos juntos: velhos e novos, dotados ou não de expertise técnica. Pois assim se organiza a inteligência coletiva. F
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lado, consistem em um elemento fundamenAtualmente, a Avaaz possui cerca de 13 tal para a explosão do uso da web – propor- milhões de usuários, de mais de 190 países cionando inclusive impactos políticos inesti- registrados em sua base de dados. Sua equipe, máveis, como na massificação das ideias dos que possui um representante no Brasil, é forprotestos na Tunísia e no Egito; por outro, mada por mais de 50 integrantes que atuam aprofundam o movimento de cercamento em rede, de vários países do planeta. As camàs reais liberdades que marcaram a internet panhas de mobilização da Avaaz são construdesde a sua criação, justamente por se base- ídas por esses coordenadores, em interface arem em um modelo de negócios que viola a com militantes e ativistas “na rede” e “da rede”. privacidade e funciona como uma draga dos No Brasil, a Avaaz teve papel central no fortadados pessoais dos usuários. lecimento e na ampliação da campanha contra Não à toa, iniciativas como a supracita- a construção da Usina de Belo Monte e na luta da Lorea, o Diáspora (http://joindiaspora. pela aprovação da Lei da Ficha Limpa, para cicom), um sistema de redes sociais baseado tar apenas dois casos bastante conhecidos. na ideia de que os dados devem pertencer aos usuários Ferramentas criadas pelos ativistas para a ou a recém-anunciada promobilização de causas públicas podem atingir posta do Global Square, o site de rede social do movimento um amplo público e ser um efetivo instrumento Occupy Wall Street, buscam de transformação social oferecer alternativas para os usuários compartilharem seus textos, áudios e vídeos. A questão é: Em destaque, recentemente, podemos facomo tornar essas propostas abertas e livres lar do envolvimento da organização nas ações atraentes para o grande público, que já está pela democratização da comunicação, em eshabituado e inserido nas grandes redes so- pecial em defesa da banda larga de qualidaciais disponíveis na internet? de, quando foi feita uma campanha contra a No caso das mobilizações, há um fenôme- companhia telefônica Oi, que, nos bastidores, no que conseguiu atingir grandes públicos, tentava anular uma resolução da agência recom uma proposta simples e ousada, e que guladora de telecomunicações, a Anatel, sopreserva a abertura. Trata-se da Avaaz, cujo bre a qualidade das conexões à rede mundial objetivo, como descrito em seu site (http:// de computadores. Recupero o exemplo da www.avaaz.org) é levar a voz da sociedade Avaaz com uma única finalidade: demonstrar civil para a política formal. Criada em 2007, que ferramentas criadas pelos ativistas para a Avaaz é uma plataforma voltada à cons- a mobilização de causas públicas podem atintrução de campanhas públicas em prol de gir um amplo público e ser um efetivo instrucausas sociais. Por trás dessa inciativa está mento de transformação social. outro projeto bastante relevante no mundo – IV – da política em rede: a Move.On, uma orgaMas como construir a aliança necessária nização estadunidense que trabalha pelo fortalecimento e pela radicalização da demo- entre as forças políticas contemporâneas? cracia por meio da difusão de tecnologias de O que está em debate? Centralização contra descentralização? Formas de ação esponinformação e comunicação.
Desenvolvimento e subdesenvolvimento no mundo pós-neoliberal N a segunda metade do século XVIII, o aparecimento da primeira Revolução Industrial deu início à transição da sociedade agrária. As bases da nova sociedade urbano-industrial impuseram significativos ganhos de produtividade no trabalho, decorrentes da emergência do novo padrão de produção e do consumo associado ao uso intensivo de carbono. Com isso, a expansão da base material da economia foi tornando possível elevar o padrão de bem-estar social por meio de grandes lutas sociais e políticas, como no caso de modalidades emancipatórias na condição de trabalho pela sobrevivência. Diante da elevação da expectativa média de vida para mais de 50 anos de idade, houve importante redução da carga horária de trabalho dos segmentos sociais ativos e proteção aos riscos do trabalho penoso. Por meio da captura de parte do excedente econômico gerado pela sociedade urbano--industrial, responsável pela expansão do fundo público, tornou-se possível viabilizar o financiamento da inatividade de crianças, adolescentes e idosos por meio de uma garantia generalizada de serviços (saúde, transporte e educação públicos), bens (alimentação, saneamento e moradia) e rendas (bolsas e subsídios). Uma vez concluída a formação para o trabalho (até os 15 anos de idade), tinha início o exercício do trabalho durante 30 a 35 anos, com contribuição ao fundo público capaz de permitir a imediata passagem para a inatividade (sistema de aposentadoria e pensão que legava viver sem mais depender do mercado de trabalho). Isso se tornou mais evidente desde o final do século XIX, com o avanço da Segunda Revolução Tecnológica, que, simultaneamente à ocorrência da Depressão entre 1873 e 1896, abriu lugar à nova disputa entre nações emergentes pela sucessão da liderança inglesa. Alemanha e Estados Unidos despontaram com o protagonismo da industrialização retardatária, com ganhos de 100 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0
produtividade superiores a todos os demais países. A solução final, todavia, ocorreu mais tarde, após a realização de duas grandes guerras mundiais, em que a Alemanha foi derrotada sucessivamente. No contexto da Guerra Fria (1947–1991), mesmo com a presença da União Soviética, os Estados Unidos estabeleceram seu modo de vida (american way of life) como forma de dominação global. Mas a crise da produção em 1973 logo passou a apontar os limites do americanismo, concomitantemente ao impulso emergente das economias da Alemanha e do Japão. A contrareforma neoliberal do final da década de 1970 permitiu aos EUA retomar com mais força sua hegemonia por meio do reposicionamento do Japão à condição secundária (longa estagnação na década de 1990), da reacomodação da Alemanha no quadro das exigências de sua reunificação e consolidação da União Europeia e, ainda, do estrangulamento das experiências de socialismo real (desarticulação da União Soviética). A condução da política neoliberal estadunidense pós-crise de regulação da década de 1970 se mostrou suficiente para se antepor ao fervor japonês e alemão, bem como levar à exaustão a experiência de socialismo soviético. Esse êxito, contudo, foi portador da corrosão das bases produtivas do capitalismo norte-americano, o que fez repetir, guardadas as proporções, a trajetória inglesa do final do século XIX, de contaminação pelo vírus da improdutividade da financeirização da riqueza. Paralelamente, parte da Ásia confirmou, por intermédio de experiências nacionais, a constituição de uma nova fronteira de expansão, as novas fontes de dinamismo do capitalismo global. Justamente China e Índia, que foram, em especial, os dois grandes territórios do planeta que perderam em função do avanço da hegemonia inglesa e estadunidense na primeira e segunda Revolução Industrial e Tecnológica, voltaram a se tornar emergentes
Evolução da repartição do Produto Interno Bruto no mundo (em %) Países não desenvolvidos agrarismo
1000
1500
urbano-industrial
1820
1870
Fonte: Maddison, 2008; * projeção (elaboração própria)
1913
Países desenvolvidos pós-industrial
1950
1973
2007
2030*
diante da implantação de experiências associadas ao planejamento central e vigor do Estado. Reformas realizadas desde a década de 1980 foram tornando esses países referências à expansão capitalista, com crescente deslocamento da produção industrial ocidental para a Ásia, concomitantemente ao avanço da Terceira Revolução Industrial e Tecnológica. Por outro lado, a América Latina, África e parcela dos países da Europa Oriental foram os maiores perdedores durante quase três décadas de hegemonia das políticas neoliberais. A despeito disso, o Brasil, só mais recentemente, ressurgiu como alternativa em disputa na recuperação econômica para além do centro capitalista mundial. No contexto da sucessão de crises econômicas e financeiras mundiais após 1973, alguns poucos países fora do eixo das economias desenvolvidas apresentaram-se em condições de liderar um novo ciclo de expansão produtiva. Essa possibilidade histórica encontra-se aberta ao mundo diante do curso da transição da sociedade urbano-industrial. Na sociedade pós-industrial em construção, o conhecimento pode se tornar um dos principais ativos da propulsão do desenvolvimento, cujo avanço da produtividade pertence ao comando do processo de desmaterialização das economias. Sob estas condições, depositam-se as possibilidades adicionais da maior libertação do homem do trabalho pela sobrevivência, por meio da postergação do ingresso no mercado de trabalho para depois do cumprimento do ensino superior e da oferta educacional ao longo da vida. O excesso da produção, não mais a escassez, parece expressar a sociedade ancorada no trabalho imaterial e no conhecimento, o que possibilita gestar um novo padrão de produção e consumo que não mais protagoniza a degradação ambiental. A sustentação do meio ambiente ganha importância com a necessidade de mudança do atual modelo de produção e consumo, estimulado pelo processo maior de desmaterialização das economias modernas. Nada, contudo, está definido. Há tendências que podem ser confirmadas à medida que os sujeitos históricos apresentam-se capazes de construir seus próprios caminhos, orientados pela consolidação da liderança econômica, social e ambiental no atual cenário mundial pós-neoliberal em disputa. F
MARCIO POCHMANN é professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas. Presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
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américa latina
O fogo chileno contra a terra mapuche por Victor Farinelli, de Santiago
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urante a madrugada de 24 de janeiro, enquanto o Brasil ainda assistia perplexo às consequências da violenta desocupação da favela do Pinheirinho, a aproximadamente 5 mil quilômetros dali, numa aldeia mapuche na região da Araucania, no Sul do Chile, ocorria uma ofensiva policial com o mesmo abuso de poder, mas sem câmeras por perto e com pouca repercussão por parte dos meios de comunicação daquele país. Era a terceira invasão dos carabineros (polícia militarizada chilena) sofrida pela aldeia mapuche José Guiñón somente neste ano. E não seria a última – outras oito foram registradas até o fechamento desta edição –, todas elas com ataques à bala, com bombas de gás lacrimogêneo, agressões a moradores, incluindo mulheres e crianças, detenções arbitrárias e pânico generalizado. A primeira invasão, ocorrida 15 dias antes, também teve pouca divulgação da mídia até que, 48 horas depois do ocorrido, um vídeo feito por celular teve enorme sucesso nas redes sociais, registrando como os carabineros agrediam e apontavam uma arma de fogo a uma mulher grávida e a outra que carregava um bebê (que estava sendo detida), o que obrigou os meios de comunicação a quebrar o silêncio que se mantinha sobre o evento. Segundo Carola Marileo, líder da aldeia José Guiñón, nas duas primeiras ações eles não tinham sequer um mandado que justificasse a ação. “Apenas chegaram disparando, atirando bombas de gás e rindo, sem pedir nossos documentos, sem se preocupar se no local havia mulheres e crianças, e sempre de madrugada. A partir da terceira, começaram a vir com mandados de busca, mas com o mesmo tipo de procedimento.” O conflito mapuche não se explica em poucas páginas de revista, devido ao extenso contexto histórico. Mas um primeiro dado importante para entender essa com-
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Dois grandes incêndios acirram um conflito histórico entre o governo chileno e as comunidades indígenas mapuches da região de Araucania, cujo principal combustível tem sido, uma vez mais, as tentativas de colocar sobre os povos originários o rótulo de terroristas plexidade é que os mapuches araucanos foram o único povo indígena reconhecido como nação autônoma pela Coroa Espanhola durante o período colonial, deferência que nunca foi ratificada pelos presidentes da República chilena independente – incluindo os mais progressistas, como Pedro Aguirre Cerda e Salvador Allende. A luta
pela autonomia nunca foi abandonada, mas tem perdido importância desde a ditadura de Pinochet, quando a prioridade passou a ser a luta pela sobrevivência e pela preservação da sua cultura. Isso ajuda a compreender os fatores que levaram a violência de volta à Araucania, terra sagrada dos mapuches transandinos.
Um contexto inflamável
Izquierda en Ñuñoa / flickr
No verão de 2006, enquanto o país via eufórico a inédita eleição de sua primeira mulher presidenta, Michelle Bachelet, os chilenos também deparavam com uma série de incidentes que estava longe de ser alguma novidade, pois já havia acontecido outras vezes naquela mesma década e se repetiria nos verões posteriores. Uma onda de incêndios simultâneos de grandes proporções, sempre em regiões florestais pré-cordilheiranas, sobretudo na zona Centro-Sul do país. O fenômeno não é nada incomum, devido à pouquíssima quantidade de chuvas durante a estação, o que torna o ambiente mais seco e propício a transformar uma despretensiosa fogueira numa grande queimada incontrolável. A daquele ano foi tratada apenas como um problema ambiental. A temporada de incêndios de 2012 começou na semana anterior ao réveillon, com um incêndio no Parque Nacional Torres del Paine, o maior e mais conhecido da Patagônia chilena. O incidente teria sido provocado por um turista israelense (que negou a autoria do atentado), e tornou-se um novo foco de críticas ao governo de Sebastián Piñera, devido à demora da reação das equipes de
proteção florestal, o que resultou em mais de 20 mil hectares consumidos pelas chamas. No último dia do ano velho, enquanto o país lamentava o ainda incontrolável incidente nas Torres del Paine, um grupo (até agora não identificado) invadiu uma propriedade da empresa madeireira Masisa, na região da Araucania, e destruiu um helicóptero da empresa que, entre outras tarefas, costumava ajudar nos trabalhos de combate a incêndios na região. No local, foram encontrados folhetos relacionados à Comunidade Mapuche Arauco Malleco (conhecida pela sigla CAM), embora a mesma jamais tenha assumido publicamente a autoria do atentado. No primeiro dia do ano-novo, um novo incêndio, na cidade de Quillón, na zona Centro-Sul do país, se alastrou por quase 40 mil hectares, matando duas pessoas e destruindo algumas casas em setores residenciais suburbanos. Novamente, o governo foi questionado pela falta de estrutura para combater os diferentes incidentes. Até que, na primeira quinta-feira do ano (5/1), uma terceira queimada, ocorrida na cidade araucana de Carahue – numa zona próxima a onde aconteceu o atentado ao helicóptero, na semana anterior –, atingiu o pátio de outra madeireira instalada na região, a Mininco. O fogo não destruiu tantos hectares (menos de 5 mil) quanto os anteriores, mas terminou com a vida de sete bombeiros, que foram cercados por um anel de chamas que se formou ao redor do depósito da empresa. A noite anterior à da morte dos bombeiros foi marcada por uma marcha em Santiago, em frente ao Palácio de La Moneda, de grupos ligados à luta pela autonomia mapuche, com o apoio de diferentes movimentos sociais, para homenagear o estudante Matías Catrileo, considerado herói pelo povo mapuche, no quarto aniversário de sua morte. Ele foi alvejado por uma rajada de balas da metralhadora do carabinero Walter Ramírez, que o atingiram pelas costas – a sentença dada a Ramírez pelo assassinato de Catrileo foi de três anos de liberdade vigiada, decretada pela Corte Suprema de Justiça do Chile em dezembro, semanas antes da marcha. A manifestação, como nas marchas estudantis de 2011, terminou em confronto com a polícia, e uma moto policial foi queimada. Protesto contra a utilização da Lei Antiterrorista, que permite detenções arbitrárias, a supressão da presunção de inocência e o uso de provas exclusivas da acusação
O uso da Lei Antiterrorista Diante desse panorama, o presidente Sebastián Piñera, enfrentando um cenário pouco diferente do que outros mandatários haviam enfrentado em temporadas anteriores, emitiu uma declaração bastante inoportuna, sobretudo para um presidente cuja popularidade é inferior à quarta parte dos cidadãos. Insinuou que alguns dos incêndios noticiados naqueles dias eram propositais e teriam sido obra de terroristas, sem fazer referências mais específicas, mas garantindo que o governo possuía provas para confirmar o que ele dizia, e que seriam apresentadas no seu devido momento. Simultaneamente, Rodrigo Hinzpeter, o ministro do Interior (principal cargo do Executivo chileno depois da Presidência; ele exerce, ademais, a função de vice-presidente), ao respaldar as declarações de Piñera, preferiu citar nomes, e desatar a polêmica. Em visita a Carahue, Hinzpeter afirmou que o Executivo iniciaria investigações para descobrir a responsabilidade da Comunidade Arauco Malleco (CAM), uma das maiores da Nação mapuche, na origem do incêndio que afetou aquela região. Afirmou também que estaria sendo averiguada a participação dos mapuches no incidente de Quillón. No anúncio das investigações contra os mapuches, Hinzpeter também determinou que seria aplicada a chamada Lei Antiterrorista, figura jurídica criada durante a ditadura de Pinochet para legitimar a repressão, mas que ainda vigora, como ainda é vigente no país a Constituição imposta pela ditadura, em 1980. Entre outras coisas, a Lei Antiterrorista permite detenções arbitrárias, a supressão da presunção de inocência e o uso de provas exclusivas da acusação, o que significa que a defesa não pode ter acesso à parte do processo, e o réu pode ser condenado sem ter como se defender. Na remota hipótese da sentença inocentar o réu, a lei também impede o mesmo de processar o Estado por danos morais. A resposta dos indígenas veio horas depois, por meio de uma das mais jovens e reconhecidas porta-vozes da comunidade, a estudante Natividad Llanquilleo. “Nossa cultura repudia como crime hediondo qualquer ação do homem contra a terra, quem fez isso vive sob uma lógica que nada tem a ver com a filosofia mapuche.” Ainda naquela semana, o ministro admitiu que suas conclusões se baseavam no atentado ao helicóptero supostamente assumido pela CAM (alusão baseada apenas nos folhetos, pois os líderes jamais assumiram oficialmente a autoria daquela ação) e nos distúrbios da marcha mapuche, no dia abril de 2012
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anterior à morte dos bombeiros em Carahue. Hinzpeter alegou que “o povo elegeu este governo para que ele atue contra os responsáveis e faça as conjecturas necessárias para não deixar a impunidade prevalecer”. O uso da Lei Antiterrorista contra as comunidades mapuches tampouco pode ser considerado uma novidade no Chile, e menos ainda como uma exclusividade dos governos de direita. Além do ditador Pinochet, todos os presidentes que o precederam (dois democratas cristãos e dois socialistas) também a utilizaram, alguns mais de uma vez, geralmente em conflitos entre as comunidades e grandes latifundiários donos de propriedades próximas a aldeias. Na última vez que a lei havia sido invocada, em 2008, durante o governo da socialista Bachelet, um dos condenados foi o principal líder da CAM, o cacique Hector Llaitul.
No entanto, os mapuches mudaram a estratégia diante do novo embate judicial. O advogado mapuche Lautaro Loncón acusou Hinzpeter de discriminação contra seu povo, alegando que as conjecturas do ministro visavam a caracterizar como terrorismo a luta das comunidades indígenas por autonomia. “O processo apresentado pelo ministro não dá nomes aos supostos autores dos incêndios; portanto, aos olhos da opinião pública, ele está dizendo que todos os mapuches são terroristas, e isso configura racismo.” A manobra obteve um êxito parcial. A Corte de Apelações de Santiago obrigou o governo a apresentar as provas que mantinha ocultas, o que facilitou o trabalho da defesa. Diante do material entregue, o tribunal absolveu Hinzpeter da acusação de discriminação, mas concluiu que, embora não se tenha caracterizado racismo, tampouco as provas
que possuía eram suficientes para sustentar a tese de vinculação da CAM com os incêndios em Carahue e Quillón. Foi a primeira vez, no Chile, que uma comunidade mapuche, diante da aplicação da Lei Antiterrorista, conseguiu se livrar da condenação.
Endurecimento do governo
Apesar da baixa probabilidade de se perder uma causa utilizando a Lei Antiterrorista, o ministério do Interior, comandado por Rodrigo Hinzpeter (advogado de formação), colecionava sua terceira derrota ao ver frustrada sua ação contra a CAM. Já havia perdido antes as causas contra um grupo de militantes anarquistas acusados de planejar atentados a bomba em Santiago, e contra um turista paquistanês detido por, supostamente, colocar um envelope com antraz na caixa de correio da Embaixada dos Estados Unidos no
“Lutar é a maneira que temos Patrícia Troncoso, ex-presa política, esteve em visita ao Brasil para divulgar a luta indígena no Chile
por Mario Henrique de Oliveira
O
povo mapuche carrega consigo um histórico de resistência. Nunca se inclinaram aos colonizadores espanhóis e, durante mais de 300 anos, travaram inúmeras batalhas contra aqueles que pretendiam usurpar suas terras. Venceram e perderam diversos conflitos, e foram derrotados apenas em 1881, quando o Chile já era independente. Logo, suas terras foram anexadas ao território chileno. Desde então, o povo que representa o maior grupo indígena do Chile luta para ter de volta suas terras, que passaram de 10 milhões de hectares para apenas 300 mil. Durante os anos de conflito, 75% da população mapuche foi assassinada. Hoje, eles são cerca de 6% da população chilena. Patrícia Troncoso, uma mapuche ex-presa política, esteve em visita ao Brasil durante o mês de março e conversou com a reportagem da Fórum. Ela é uma das fundadoras da Coordenadoria Arauco-Malleco, a CAM, organização que luta pela soberania das terras mapuches ao seu povo. É dela também a mais longa greve de fome feita no Chile, tendo ficado sem se alimentar por 112 dias.
Fórum – Como começou a usurpação das terras mapuches em favor de propriedades privadas?
Patrícia Troncoso – Primeiramente, gostaria de dizer que este concei-
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to de “propriedade privada” foi trazido pelos europeus e enfiado goela abaixo. Para nós, a terra é e sempre será do povo, ela não tem dono. Nosso povo sempre teve um histórico de luta, de resistência. Não aceitamos que nos tirem de nossas terras, e o problema inicial foi esse. Quando fomos submetidos às leis do Chile, eles fizeram o seguinte com nossas terras, vou exemplificar. Se uma família tinha um terreno de 100 mil hectares, mas habitava somente 10% dessa área, os 90% restantes o governo tomava e fazia o que bem entendia. A redução de nosso espaço começou assim
Fórum – Sempre foi assim com todos os governos? O de Salvador Allende não deu assistência à luta indígena?
Troncoso – A mim pouco importa a distinção que fazem, de direita ou de esquerda. Nosso povo vem sido sistematicamente perseguido pelos governantes, mas, é verdade, Allende nos ajudou, talvez tenha sido o único a fazer algo pelos mapuches. O que posso dizer dele é que era com certeza um democrata com grande senso moral e social. Ele iniciou um projeto de reforma agrária no país que chegou a devolver para nós algumas de nossas terras, mas aí veio o golpe de Pinochet. Fórum – E como foi o governo de Pinochet para vocês?
Troncoso – Terrível. Voltou a ser o que era antes e ainda pior. Deu início a um projeto chamado contrarreforma, que invertia todo o processo da reforma agrária que Allende tinha conseguido fazer. Ele não apenas tomou de volta as terras que havíamos reconquistado como as “devolveu” a grandes empresas e latifundiários com algum acréscimo, ou seja, nos roubou ainda mais terra. Foi ele também o responsável por criar a Lei Antiterrorista, com base na qual nos acusam até hoje, com a desculpa de ataque às propriedades privadas. Eles criminalizam um ato nosso que é legitimo.
Chile. Ambos os casos ocorreram em 2010, embora a absolvição aos anarquistas tenha se dado somente em 2011. Como era de se esperar, Piñera optou, como havia feito nas derrotas anteriores, por respaldar o ministro, considerado, desde a sua época de candidato, seu principal homem de confiança. O presidente chileno também deu apoio ao ministro em agosto do ano passado, quando os carabineros (que estão sob a responsabilidade do Ministério do Interior) mataram um estudante menor de idade, atingido no peito por uma bala durante um panelaço contra a repressão policial utilizada contra o movimento estudantil. Curiosamente, sempre que se viu acuado, o ministro reagiu endurecendo sua postura e a do governo. A invasão à aldeia José Guiñón, mencionada no começo da matéria, foi a terceira do ano em número absoluto, mas somen-
te a primeira após a vitória mapuche contra a Lei Antiterrorista. Carola Marileo, líder da comunidade, acredita que “o forte sentimento de vingança das autoridades policiais e de governo sempre foi um dos principais inimigos do povo mapuche”, e diz que o ministro Hinzpeter não é o primeiro a atuar dessa forma com as comunidades indígenas araucanas. “Nos governos da Concertación [aliança de centro-esquerda que governou o país entre 1990 e 2010, da ditadura de Pinochet até o atual governo de Piñera] acontecia o mesmo: sempre que uma decisão judicial favoreceu minimamente o povo mapuche, a resposta da autoridade foi mais violência”, comentou a indígena. Outro fato curioso com relação à terceira invasão foi o fato de ela ter ocorrido horas depois da partida de uma delegação de líderes do movimento estudantil, que foram demonstrar sua solidariedade com a comunida-
de. Coincidentemente, três das oito invasões realizadas posteriormente se deram também após visitas de entidades de Direitos Humanos e ONGs, que foram manifestar seu apoio ou levar mantimentos e medicamentos. Apesar de não haver registros de mortes nos ataques realizados pelos carabineros contra os mapuches neste ano, organizações ligadas aos Direitos Humanos, como a Comissão de Ética contra a Tortura, representada pelo médico pediatra José Venturelli, emitiram notas denunciando mais de 20 detenções arbitrárias de membros de diferentes comunidades mapuches, muitos deles menores de idade, e alguns em que se observou sinais de tortura que teria sido aplicada aos indígenas, comprovada por fotos e vídeos feitos através de aparelhos celulares. O clima deverá continuar quente em 2012 na Araucania, mesmo durante o inverno tradicionalmente rigoroso na região. F
de expressar nosso amor” Fórum – No Chile há o Conadi, Corporação Nacional para o Desenvolvimento Indígena, um órgão que teoricamente serviria para dar apoio à causa dos índios no país – algo como a Funai, no Brasil. Ele funciona?
Troncoso – Não. Infelizmente é apenas mais um instrumento de perseguição aos indígenas. Hoje temos em nosso país diversos políticos que parecem trabalhar com apenas um propósito, perseguir o povo mapuche. Por esses e outros motivos é que fundamos a Arauco-Malleco. Para lutarmos por nossos direitos. Nosso voto hoje serve apenas para escolhermos quem será nosso carcereiro. Fórum – Como tem se dado a luta mapuche atualmente?
Troncoso – Fazemos pequenos piquetes, e não podemos negar alguns atos como sabotar cercas de propriedades e coisas assim. Sempre levantamos a bandeira da recuperação de terra, mas sofremos perseguição também da mídia, que sempre amplifica demais nossos atos, negativamente é claro. Mas nossa maior forma de resistência é ficar nas terras que nos sobraram, dessas não saímos de maneira alguma. Até porque, se nos deslocarmos para as grandes cidades, só iremos formar grandes bolsões de pobreza e viveríamos marginalizados. Não nos dão emprego. Então, temos que ficar e fortalecer a luta nas nossas terras. Lutar é, hoje, a maneira que temos de expressar nosso amor por aquela terra. Fórum – Aqui entramos na questão da lei que é usada atualmente contra vocês, a Antiterrorista, de Pinochet. Por que se utilizar de algo de uma época que foi duramente criticada por todo o mundo?
Troncoso – Porque os governos atuam em favor apenas dos ricos. No início da Arauco Malleco, conseguimos recuperar cerca de 30 mil hectares de terra, então, os que detêm o dinheiro e que foram afetados por nossas ações começaram a apelar ao governo para que usasse essa lei, que defende a propriedade privada. Tem sido assim desde então.
Essa lei é desumana. Permite que o governo prenda alguém preventivamente por até dois anos, sem informar do que está sendo acusado. Não dão acesso aos advogados de defesa às informações do processo. É feito tudo às “escuras”, chamam até testemunhas secretas, que vão aos tribunais com os rostos encobertos. Ninguém sabe quem são essas pessoas.
Fórum – O presidente Sebastian Piñera chegou a anunciar, em 2010, que iria assinar um projeto para alterar essa lei. Algo foi feito?
Troncoso – Nada. Continuam usando dos mesmos artifícios, inclusive com tortura. Fórum – Como no seu caso, não?
Troncoso – Exatamente. Em 2002, fui acusada cinco vezes com base na Lei Antiterrorista em uma pena total que chegava a 50 anos [Patrícia foi acusada de incendiar um prédio da empresa Florestal Miminco, que produz madeira em território que seria mapuche]. Não sei se felizmente ou infelizmente, só fui condenada por uma acusação e uma pena de dez anos. Em janeiro de 2008, quando estava realizando minha terceira greve de fome, que foi a mais longa, fui amarrada à força em uma cama e, contra minha vontade, alimentada de maneira intravenosa. Fórum – Qual é a perspectiva dos mapuches para o futuro?
Troncoso – Um mapuche nasce lutando. E vai ser assim sempre. Hoje nossos jovens estão se preparando melhor intelectualmente para a luta, para ter mais recursos para defender seu povo. Mas ainda esbarramos no sistema educacional chileno, que é precário. Há escolas para ricos e para pobres. As escolas rurais servem hoje apenas para produzir mão de obra barata para as grandes indústrias. Não querem que o jovem questione, formule opiniões. Mas seguiremos lutando, sempre. Pelo amor à terra, às nossas raízes. F abril de 2012
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velho mundo
O jogo incerto das eleições francesas
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A
s próximas eleições presidenciais francesas serão realizadas num dos cenários mais complexos da Europa nos últimos 30 anos. A crise econômica internacional coloca o projeto de União Europeia numa situação de impasse, obrigando os países-membros a se confrontarem com as exigências do complexo modelo de integração continental. A partir da crise de 2007, a questão financeira agravou as contradições desse processo. Para assegurar as metas de equilíbrio fiscal exigidas pelas intituições da União Europeia, os países do Velho Continente estão colocando em risco grande parte das políticas públicas que configuravam o Estado de Bem-Estar social europeu. As consequências da crise sobre a França e as formas de superá-la são temas centrais na disputa. Os programas e propostas apresentados estão condicionados por essa questão. Adotado em março desse ano, o Pacto Orçamentário Europeu obriga os paí ses a adotarem o compromisso de reduzir seus déficits públicos a um patamar inferior a 3% do PIB, sob pena de sanções. O Partido Socialista fala de renegociação do tratado europeu, sem, no entanto, deixar de assumir as exigências de redução do déficit e a adoção de uma política de rigor fiscal. Em 2007, ano em que o atual presidente Nicolas Sarkozy foi eleito, o déficit público estava em 2,7% do PIB. Dois anos depois, chegava a 7,5%, para fechar o ano de 2011, depois de uma série de reajustes, em 5,4%. No final de janeiro, Sarkozy anunciava novas medidas para reduzir o déficit: redução dos impostos sobre trabalho e aumento do imposto sobre o consumo. Candidato à reeleição, Sarkozy tem adotado um discurso protecionista, de defesa dos produtos europeus em detrimento das importações, como forma de incentivar a indústria europeia e ajudar a França a enfrentar a crise. Mas a disputa não se resume so-
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Em lenta recuperação, Sarkozy já ameaça o favoritismo socialista. Frente de esquerda e extrema-direita correm por fora, em um pleito que costuma reservar surpresas
por Douglas Estevam, de Paris
Nicolas Sarkozy, Marine Le Pen, François Hollande e Jean-Luc Mélenchon: a corrida pelo 2º turno está entre os quatro
mente aos projetos que consigam responder às contradições do processo de integração europeia e aos limites de desenvolvimento da própria França. Um rearranjo dos campos políticos em disputa também está se processando. A construção de alianças e a questão da imigração são fatores que podem ser decisivos quanto aos resultados.
Uma complexa correlação de forças
O primeiro turno das eleições estava pre visto para 22 de abril. Em razão do atentado contra uma escola judia em Toulouse, que resultou na morte de três crianças e um adulto (até o fechamento desta edição), cogitava-se uma suspensão das eleições. Dez candidaturas se confrontarão oficialmente neste ano. A disputa se concentra principalmente entre o atual presidente, Nicolas
Sarkozy, da União por um Movimento Popular (UMP), e o candidato do Partido Socialista (PS), François Hollande. São as mesmas forças políticas que se confrontaram na eleição de 2007, quando Sarkozy levou vantagem sobre a candidata socialista Ségolène Royal. Pesquisas de intenção de voto apontavam, já em 2010, uma vitória do Partido Socialista nas eleições de 2012, tamanho o desgaste que o presidente francês atravessava na ocasião. A oposição sempre soube que a disputa seria difícil. Em meados de março, pela primeira vez, pesquisas realizadas pelo Instituto Francês de Opinião Pública (Ifop) apontavam uma vantagem de Sarkozy no primeiro turno, com 27,5% das intenções de voto, embora o canditado socialista continuasse como favorito no segundo turno, previsto para 6 de maio, com 54% das intenções de voto. Os dois candidatos sabem da complexidade da disputa e dos limites de suas forças po-
vitória num dos restaurantes mais caros de Paris com empresários, milionários e influentes representantes da grande imprensa, ou exibindo de maneira excessiva bens pessoais, o estilo assumido desagradou inclusive parte de seu próprio eleitorado. Reações violentas em ocasiões públicas, como quando disse a um jornalista: “Cale a boca, pobre idiota”, resultaram em uma antipatia ainda maior. As medidas adotadas no seu governo tiveram uma rejeição popular sem precedentes na história recente francesa. Em 2008, apresentou um programa propondo uma reforma do Estado, com o objetivo de reduzir custos das políticas públicas. Entre 2007 e 2009, as leis Pécresse e Darkos promoveram cortes orçamentários, precarização e demisPlace au Peuple / flickr
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líticas, nenhuma delas se configurando como uma maioria ou como um campo de referência hegemônico no país. Um dos elementos de complicação do cenário se impôs em 2002, quando pela primeira vez na história da França um partido de extrema-direita, a Frente Nacional (FN), chegou ao segundo turno das eleições presidenciais, eliminando o PS da disputa. Embora enfraquecida, a FN recuperou terreno, e sua candidata atual, Marine Le Pen, chegou a figurar como a terceira força política do país, com 17,5% das intenções de voto, segundo a mesma pesquisa Ifop. No entanto, é crescente a parcela do eleitorado que vem se interessando pela candidatura de Jean-Luc Mélenchon, da Frente de Esquerda, que tem feito uma das melhores campanhas
nária, que financiou a campanha de Sarkozy, recebeu dos cofres públicos mais de 30 milhões de euros em 2009, em função das medidas do chamado bouclier fiscal, que limitava a cobrança de impostos dos mais ricos. No mesmo ano, aproximadamente 1.170 pessoas teriam recebido uma média de 360 mil euros dos cofres públicos, segundo infomou o jornal Le Monde. Em meio a isso, na política internacional, Sarkozy promoveu a aproximação com os EUA, levando a França a aderir à Otan e a enviar tropas ao Afeganistão, pondo fim a uma posição de autonomia há muito defendida por governos anteriores. Foi se apoiando na crise econômica internacional que o presidente francês começou a reconstruir sua imagem, apresentando-se como o mais indicado para conduzir o país nesse período de turbulência. No segundo semestre de 2008, Sarkozy presidiu o Conselho da União Europeia, intensificando as medidas para conter as imigrações. No final de 2010, assumindo a presidencia do G20, falou em “moralizar o capitalismo”, defendendo medidas como “banir os paraísos fiscais” e ”taxar as transações financeiras”.
Crise e reorganização socialista
até o momento. Algumas sondagens feitas antes do fechamento desta matéria davam o candidato em terceiro lugar, com 15%. Influenciam ainda na definição da disputa os 13% do eleitorado que votaria no Movimento Democratico (Modem), partido do centrista François Bayrou. Com exceção da candidata ecologista Eva Joly, com 2,5% das intenções, as outras candidaturas tiveram pouca expressão até o momento, gravitando em torno de 0,5% das intenções de voto, como as dos candidatos de extrema-esquerda Philipe Poutou, do Novo Partido Anticapitalista (NPA), e Nathalie Arthaud, da Luta Operária, ou ainda Nicolas Dupont-Aignan, da formação De pé, República, e Jacques Chéminade, de Solidariedade e Progresso.
Desgate e reascensão do sarkozysmo
O mandato de Nicolas Sarkozy à frente da República francesa foi caracterizado por um crescente desgaste. Uma certa forma de ostentação da riqueza, adotada pelo presidente, foi duramente criticada. Comemorando sua
sões no sistema educacional, com o anúncio de 11 mil licenciamentos no secundário. Houve dezenas de manifestações de estudantes e professores universitários, algumas com confrontações com a polícia. Mais de 40 universidades entraram em greve, e mais de uma dezena foi ocupada. As manifestações reuniram mais de 50 mil pessoas. Com o anúncio das medidas de ajuda ao setor financeiro em função da crise, houve ainda, nesse período, dezenas de greves, ocupações de fábricas, sequestros de patrões e, pela primeira vez depois de 1948, uma manifestação unitária das oito centrais sindicais francesas, que reuniu milhões de pessoas. Em 2010, a busca do equilíbrio fiscal foi feita com a reforma de aposentadoria, aumento do tempo de trabalho e de contribuição. Diversos setores entraram em greve: a rede ferroviária, escolas, universidades, transportes públicos, refinarias de petróleo e lixeiros. Mais uma vez, diversas manifestações nacionais, algumas delas reunindo mais de 3 milhões de pessoas. Foi nesse período que veio à tona o caso Bettencout. A milio-
O favoritismo do campo socialista às eleições presidenciais de 2012 se firmou no turbulentos anos de Sarkozy, mas o PS chega ao momento decisivo se recuperando de um desgastante processo interno de reorganização. Desde que foi eliminado, ainda no primeiro turno das eleições presidenciais de 2002, o Partido Socialista luta para se recompor internamente e para definir uma orientação política. Após a saída da cena política de uma de suas principais referências, Lionel Jospin, o partido entrou no que a imprensa francesa – em certos momentos superexplorando o tema – chamou de “guerra de egos”. A reorganização tomou novo rumo em 2008, a partir do polêmico Congresso de Reims. François Hollande, até então secretário-geral do partido, foi sucedido por Martine Aubry, após uma acirrada disputa interna. A vitória da ex-ministra – que havia instituído a jornada de 35 horas semanais por 42 votos de diferença – foi duramente contestada por Ségolène Royal, que chegou a cogitar mover um processo contra Aubry. Teses de matizes diferentes, mas com forte tendência socioliberal, tiveram importante abril de 2012
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peso na disputa. Vitoriosa, Aubry foi a responsável pelo restabelecimento de um certo equilíbrio interno do partido. Passado o congresso, o PS começou a trabalhar sobre sua candidatura presidencial. Marcado por ambiguidades, iniciou-se uma articulação interna para a apresentação de Dominique Strauss-Kahn (DSK) como candidato do PS, relegando o processo das primárias a uma mera formalidade. A proposta ganhava ainda mais força com o crescente desempenho do então presidente do FMI nas pesquisas, apontado como o candidato mais forte numa disputa contra Sarkozy. À frente de uma das mais importantes intituições internacionas, DSK era visto como o candidato mais preparado para conduzir a política econômica no período de crise. Para setores mais críticos ao modelo neoliberal, a escolha representava uma reduzida perspectativa de reorientação da política econômica francesa. O envolvimento de DSK em um suposto caso de estupro, envolvendo uma camareira nos EUA, o tirou de cena. A realização das primárias cidadãs foram um sucesso de participação, com mais de 2,8 milhões de pessoas votando. François Hollande e Martine Aubry, que disputaram o segundo turno, são reconhecidos por certa proximidade numa determinada tradição partidária, marcada pela importância atribuida às reformas fiscais e à defesa da integração europeia. A função do Estado, do serviço público e a questão social são mais presentes em Aubry, considerada como mais à esquerda. Embora criticado por sua pouca experiência na administração pública, o reconhecido domínio de Hollande nos campos das finanças e economia e suas posições sobre a regulação financeira lhe garantiram a vitória.
Extrema direita francesa e a questão da imigração
A FN vem crescendo politicamente principalmente em torno do problema da imigração. Com o país vivendo uma fase de desindustrialização, o Partido Comunista, que representava uma das principais forças políticas do país até os anos 1980, entra em uma irreversível crise e perde grande parte de sua base social. Adotando uma posição cética em relação à União Europeia, a FN faz uma crítica ao liberalismo econômico, defendendo a saída da Zona Euro, a instalação de barreiras financeiras e a nacionalização de setores estratégicos. Mas é na abordagem da questão dos imigrantes que eles atuam com mais força, defendendo o fim de toda imigração, acusada de eliminar pos-
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tos dos trabalhadores franceses e engendrando custos sociais. O partido de extrema direita se tornou referência em largos setores atingidos pelo desemprego, que se mantém em torno de 10% no país. Com a deterioração das condições sociais provocada pela crise, a extrema direta na Europa como um todo, e, particularmente, na França com a FN, voltaram a crescer. Sarkozy começou a projetar-se na vida nacional francesa como ministro do Interior em 2005, no auge das rebeliões nas periferias francesas, quando mais de 10 mil carros foram incendiados. Suas declarações exigindo a expulsão e a punição dos jovens pelos crimes cometidos contaram com 60% de aprovação da população. Em 2010, ele ensaiou novamente a mesma estratégia. Após conflitos decorrentes do assassinato de um jovem pela polícia, ele aproveitou o cenário de violência para apresentar uma série de medidas de repressão policial, perseguição e expulsão de imigrantes. Nessa ocasião, ele adotou também uma série de medidas que visavam à eliminação de mais de 600 acampamentos de ciganos e de romenos na França, que foram reenviados aos seus países de origem.
A Frente de Esquerda
O projeto que vem despertando maior interesse pela sua capacidade de mobilização social durante esta campanha é o representado pela Frente de Esquerda, que agrupa o Partido de Esquerda de Jean-Luc Mélenchon, o Partido Comunista, o Partido Esquerda Unitária, grupos dissidentes do NPA e outras convergências e movimentos sociais. Uma das referências para a constituição da Frente foi o processo similar implementado pelo Die Linke, na Alemanha. A Frente de Esquerda começou sua articulação em 2008. Inicialmente, era uma parceria que procurava agrupar as forças sociais como o PC, setores dissidentes do PS e movimentos sociais que se opuseram ao Tratado Constitucional Europeu, rejeitado pelos franceses no referendo de 2004. O objetivo era articular essas forças na luta contra o Tratado de Lisboa, que substituía o antigo projeto, mas que tinha um cunho tão liberal quanto o primeiro, segundo a avaliação da Frente. A junção foi se consolidando em torno das outras eleições regionais e também com as lutas sociais do período. Uma das questões mais difíceis para a formalização da Frente era a definição do candidato presidencial, pois o PC tinha interesse em apresentar seu candidato. Outra questão era que parte de sua base não acreditava na Frente como uma estratégia política, e alguns apostavam em outras alianças com outras forças. Durante o congresso realizado em 2010,
às vésperas do qual mais de 200 membros deixaram o partido em bloco – entre os quais deputados, prefeitos, vereadores e militantes –, o PC consolidou a aliança com o Partido de Esquerda. Jean-Luc Mélenchon tem se apresentado como a voz mais legítima na crítica ao atual sistema econômico, aos bancos, ao sistema financeiro, e questionando o modelo europeu liberal, defendendo políticas socias e o aumento do salário mínimo. Sua campanha tem conseguido o feito de disputar as bases que a FN vinha recuperando e parte de um eleitorado que a extrema esquerda perdeu ou que as proposições socialistas não convenceram. Num dos maiores comícios organizado pela Frente, em 18 de março, data simbólica do início da Comuna de Paris, Mélenchon defendeu, na histórica Praça da Bastilha, diante de aproximadamente 100 mil pessoas, seu programa político intitulado “Primeiro, o Humano”.
Indefinições
No campo da esquerda, François Hollande tem criticado as medidas de austeridade, proposto taxações de grandes fortunas, a proibição dos produtos financeiros derivados e o “enquadramento” dos bancos, no que ele tem chamado de um “ajuste realista”. Nicolas Sarkozy também intensificou seu discurso na disputa, tentando buscar votos principalmente no eleitorado popular, com seu discurso de protecionismo, defesa do produto europeu, revisão da competição e um forte ataque aos imigrantes, tudo contribuindo para criar “A França Forte”, segundo o slogan de sua campanha. Após a série de ataques ocorrida em Toulose, a candidata Marine Le Pen elevou o tom de suas críticas, chegando a propor um referendo sobre a pena de morte. Nada está definido. As campanhas publicitárias e os debates na TV ainda não começaram. As últimas eleições na França sempre mostraram surpresas em relação ao que mostravam as pesquisas. Até o momento, a maior parte delas aponta o candidato socialista como vencedor. Uma das últimas sondagens realizadas pelo Ipsos-Logica Business Consulting para o Le Monde indicava a liderança de Hollande no primeiro e no segundo turno, mas 40% dos eleitores ainda não tinham se decidido. No segundo turno, 84% do eleitorado de Mélenchon e 41% de François Bayrou votariam em Hollande, enquanto apenas 43% de Marine Le Pen votariam em Sarkozy. As urnas dirão qual caminho a França seguirá. F
Forças produtivas versus Pachamama? aNa Cotta / FlICkR
por emir sader
A
direita partidária está derrotada nos países de governos progressistas na América Latina. Os nomes dos partidos e os personagens mudam, mas se repetem de forma similar na Argentina, no Brasil, no Uruguai, na Bolívia, no Equador, na Venezuela. A oposição concentra sua força nos monopólios privados dos meios de comunicação, com base nos quais trata de influenciar a opinião pública com suas denúncias sobre o governo. Com isso, consegue limitar a capacidade dos governos de difundir suas versões e de consolidar as maiorias políticas que têm conquistado, no plano da consciência social, dos valores. As oposições não conseguem constituir lideranças capazes de disputar com os candidatos governistas, até porque não têm propostas alternativas, oscilando – como fez Serra em 2010 – entre reconhecer os avanços dos governos e ficar deslocados para competir com o candidato do governo, ou desconhecer os avanços e ficar sem apoio popular. Dada essa situação, a construção de alternativas ao neoliberalismo – que chamamos de pós-neoliberalismo – passou a se chocar com oposições de outra ordem, com contradições dentro do próprio campo popular, que elegeu e apoiou esses governos. Os nomes dos conflitos são distintos – Tipnis, na Bolívia; Catamarca, no Peru; Belo Monte, no Brasil; Geleiras, na Argentina, Yasuni, no Equador – mas, essencialmente, trata-se de conflitos entre projetos de desenvolvimento econômico e de defesa do meio ambiente.
O homem teve de se submeter às leis da natureza praticamente ao longo de toda a história. Levantava-se e saía quando havia luz, se recolhia quando ela acabava. As transformações da natureza pelo trabalho humano se identificavam com o progresso e com o bem-estar dos seres humanos. A temática ecológica explora os limites da natureza para as transformações humanas, fundada na dilapidação que foi sendo feita, na busca desenfreada de lucro, por parte das grandes corporações privadas – que são as grandes contaminadoras e devastadoras das reservas naturais. A nova agenda coincide com a passagem ao ciclo longo recessivo do capitalismo, que deslocou o tema do desenvolvimento econômico em favor da questão da estabilidade monetária – e seus anexos, como o ajuste fiscal, a luta contra a inflação etc. Ao mesmo tempo, foram se multiplicando movimentos ecológicos, movimentos indígenas defendendo suas terras, movimentos camponeses, com reivindicações ligadas ao meio ambiente. Na América Latina – continente que detém grande quantidade de recursos naturais e energéticos –, esse tema se colocou de maneira mais aguda, até porque o continente havia sofrido retrocessos graves, com a crise da dívida, as ditaduras militares e os governos neoliberais, que provocaram, entre outros aspectos negativos, processos de desindustrialização. Assim, a exportação de produtos primários – coincidindo com o grande aumento da demanda de produtos
agrícolas e de recursos energéticos – passou a ter um papel estratégico, para que as economias do continente pudessem retomar ciclos de expansão econômica. As economias que mais cresceram – Argentina e Peru – tiveram como essência de sua pauta exportadora os produtos agrícolas (especialmente soja) e minerais. Os conflitos em torno dos temas ambientais passaram a ocupar o centro dos conflitos entre as políticas econômicas e as reivindicações ecológicas. Estas se tornaram mais agudas nos governos – como no Peru – em que houve concessões a grandes corporações internacionais, sem quaisquer preocupações ambientas, assim como nos países em que os movimentos de resistência assumiram posturas preservacionistas intransigentes. Não foi encontrada até aqui nenhuma fórmula geral que permita compatibilizar desenvolvimento econômico e equilíbrio ambiental. Excluídas as propostas de desenvolvimento econômico sem nenhum tipo de regulamentação – caso dos governos de Fujimori, Toledo e Alan Garcia no Peru – e dos movimentos preservacionistas intransigentes – que existem praticamente em todos os países –, a discussão mais importante a ser levada a cabo, em cada caso concreto, é a busca da sustentabilidade econômica, social e ecológica, simultaneamente. Uma discussão que não encontrou ainda um marco teórico que permita sua solução positiva e que provavelmente se prolongará ao longo de toda a segunda década deste século. F abril de 2012
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justiça
De Febem a Fundação Casa por Nina Fideles
Q
uem nunca ouviu falar na Febem? Dentro e fora do estado de São Paulo, a Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor ficou conhecida pelas fugas, rebeliões, denúncias de maus-tratos aos adolescentes, tortura e superlotação. Estava óbvio, e público, o fracasso do projeto. Apenas em 2003, foram registradas 80 rebeliões. Em 2005, foram 53, sendo que 18 delas no Tatuapé, o maior complexo na época, que chegou a abrigar 1,8 mil adolescentes, cerca de 20% dos jovens então detidos no estado. Foram inúmeras as denúncias encaminhadas ao Ministério Público, à Organização dos Estados Americanos (OEA) e a diversas outras entidades de direitos humanos. A Febem ganhou os noticiários nacionais e internacionais, revelando os abusos contra a vida desses adolescentes e as suas reações não menos violentas. A crise desses anos culminou com a mudança da presidência da instituição e em novas orientações de gestão. O nome também mudou. Um projeto de lei foi aprovado em dezembro de 2006 e, desde então, o atendimento aos adolescentes que cumprem medida socioeducativa é feito pela Fundação Casa. O então governador do estado Claudio Lembo ressaltou, na ocasião, que o nome “Casa”, que significa Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente, seria mais apropriado. Mas não era uma questão de semântica. O nome Febem e sua gestão estavam manchados. Em junho de 2005, o presidente Alexandre Moraes foi substituído por Berenice Maria Giannella, após demitir 1.751 funcionários na tentativa de “acabar com a tortura dentro da Febem”. Desses, 540 foram readmitidos após decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, e outros 923 por meio de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF)
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galeria de josé serra / flickr
Mesmo com a mudança de nome e alguns avanços, instituição ainda tem inúmeros problemas para ressocializar jovens infratores
O então governador de São Paulo José Serra fechando simbolicamente a unidade Tatuapé da antiga Febem
em abril de 2007. Os outros ou desistiram da ação, ou estão aposentados. A nova presidenta, no cargo ainda hoje, é procuradora do Estado desde 1987, e foi indicada pelo governador Geraldo Alckmin, em seu segundo mandato. Em sua gestão, tomou uma série de decisões para tentar reverter esse cenário, como a descentralização das unidades, com a construção de novos prédios, e a desativação dos grandes complexos. O megacomplexo Tatuapé foi desativado e, desde 2006, 59 prédios foram construídos. A grande maioria, para abrigar até 56 adolescentes em cada unidade. Mas complexos como os do Brás, com cinco prédios e capacidade para 1,3 mil jovens, Franco da Rocha e Raposo Tavares, por exemplo, continuam ativos. Mas com novo nome, nova presidência e novas unidades, o que realmente mudou na Fundação Casa?
Arte e cultura Hoje, segundo informações da assessoria de imprensa da instituição, cerca de 7.930 jovens cumprem medidas de internação, e outros 570 estão em medidas de internação provisória e em semiliberdade, nas 142 unidades espalhadas pelo estado de São Paulo. Apenas 5% são mulheres, e o perfil desses jovens é o retrato do preconceito no Brasil: a maioria é negra e moradora da periferia de São Paulo e do interior. Uma pesquisa detalhada foi feita pela Febem em 2006, apresentando aspectos econômicos, familiares, escolares e delitos cometidos, e está disponível no site oficial. O perfil do adolescente interno atualizado não é oferecido pela instituição. Na gestão da Fundação Casa, existem quatro gerências da parte pedagógica. É o atendimento na área escolar formal, educação profissional, educação física e esportes, e a arte
e cultura. As atividades de arte e cultura são desenvolvidas em parceria com ONGs como a Ação Educativa e o Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), em São Paulo, duas outras no interior e o Projeto Guri, que atende todo o estado. E as 24 unidades que são as chamadas de gestão compartilhada, em que toda a área pedagógica fica sob a responsabilidade de outras ONGs. Cada jovem tem duas atividades de arte e cultura por semana, totalizando seis horas. Carmen Sílvia, gerente de arte e cultura desde novembro de 2011, acredita que o trabalho na área desenvolve a chance “de ter as expressões artísticas e culturais como forma de elaborar as questões internas dos adolescentes e ampliar sua visão do mundo e o seu olhar crítico sobre ele”. Vistos pela sociedade como infratores, e não como adolescentes comuns, o trabalho com arte e cultura é encarado com certo preconceito por parte da sociedade. “Muita gente acha que é um desperdício de dinheiro, mas é uma possibilidade brilhante. É mexer com conteúdos profundos. Eles fazem coisas lindas, e isso precisa ser divulgado. A sociedade não consegue enxergar suas competências, as coisas boas que esses jovens têm, e ela precisa conseguir ver isso para abrir portas quando eles saírem daqui.” Rodrigo Medeiros, coordenador do projeto com a Fundação Casa na Ação Educativa, conta que a ideia principal do convênio, firmado em 2008 para atender 19 unidades, é propor atividades com foco na cultura da periferia. São 32 educadores, dos quais 30 participam de algum coletivo cultural nas periferias de São Paulo. “Além de os educadores utilizarem nas oficinas a estética da periferia, a gente faz um link com os movimentos sociais da ‘quebrada’, para fazerem uma ação lá dentro. Para que eles saibam que na ‘quebrada’ deles também tem um espaço de cultura. A ideia é pensar na vida do jovem quando ele sair”, explica. As dificuldades de se implantar um programa pedagógico com oficinas e aulas são muitas. A alta rotatividade de jovens impede a continuidade do planejamento, e as questões internas das unidades também são empecilhos no trabalho. Rodrigo aponta que a descentralização das unidades foi um ótimo avanço, porém, existe uma briga interna entre os setores da Pedagogia e da Segurança em todas as unidades, o que acaba emperrando o trabalho. “A Fundação Casa é uma instituição que não dá para generalizar. Tem pessoas que estão a fim de fazer um trabalho muito legal lá dentro e, muitas vezes, esse
pessoal é barrado na questão da segurança. Deveria ser o contrário. A segurança deveria dar suporte para a Pedagogia.”
Espiral do silêncio
E mesmo com tantas mudanças, muita coisa ainda acontece entre os muros da Fundação, e por lá ficam. Guardadas. Em um círculo vicioso de silêncio. Relatos de maus-tratos, alta dosagem de medicamentos e violência são considerados comuns pelas pessoas que lá trabalham ou cumprem pena. Em julho do ano passado, o caso da unidade de Raposo Tavares ganhou espaço na mídia. Adolescentes e familiares, junto com a Associação de Amigos e Familiares de Presos (Amparar), se articularam e organizaram atos públicos pela mudança da diretora da unidade e o fim das práticas de espancamento. Quatro cartas escritas pelos adolescentes serviram para expor o que estava realmente acontecendo dentro da unidade. Surras com pedaços de ferro, paus, má alimentação, espancamentos e até mesmo humilhações de familiares. Segundo Camila Gibin, do Movimento em Defesa da Infância e Juventude, “o caso da Raposo Tavares não é isolado. Foi possível lá porque os familiares chegaram no limite e se mobilizaram. A maioria das famílias têm medo de denunciar porque acham que vão deixar seus filhos mais tempo presos ou que isso vai piorar a vida deles lá dentro”. E a imposição do medo vale também para funcionários que não concordam com as práticas violentas, mas temem represálias e isolamentos. Após as mobilizações, a diretora da unidade saiu, mas Camila afirma que a lógica permanece. “A Fundação Casa vem de uma prática na linha do encarceramento, do aprisionamento. O discurso da ressocialização é uma mentira. O discurso presente é o da punição, do isolamento, da violência, da repressão”, afirma. Os relatos da pedagoga Mariana* expõem mais um pedaço da história. Atuante na Fundação Casa há 11 anos, já esteve em unidades como a do Brás e do Tatuapé. Hoje, trabalha em uma unidade da Grande São Paulo há seis anos**. “Quando atuava no Brás, fui punida por ter uma boa relação com os adolescentes e porque eles confiavam em mim. Fui enviada para o Tatuapé em 2003. Cheguei em um momento horrível. Os meninos não falavam nada, estavam sofrendo muito.” Mariana, além de atuar na Fundação Casa, é professora, e ressalta que não distingue nenhum dos seus educandos. Nunca se esqueceu da primeira vez que presenciou uma cena de violência explícita dentro da unidade. “Um rapaz recebeu o pão e o deu
para outro menino, pois não queria. O funcionário chegou dando vários socos na cara do menino. Simplesmente por isso.” Na unidade onde Mariana atua, os atos de violência são cotidianos e descarados, apoiados inclusive pelo diretor, que, segundo ela, “bate na cara dos meninos”. Por ter uma postura que contesta a direção e os atos abusivos, Mariana tem também sofrido ameaças constantes e não tem tido acesso aos adolescentes. Quando o Ministério Público fez uma visita na unidade, deixou os funcionários desconfiados. Antes de a situação chegar a este estágio, Mariana diz que também havia violência, mas não diariamente. “De dois a três casos por semana. O que eu já acho muito. Mas quem convive nessa realidade acaba achando normal.” Sala de reflexão ou sala da justiça é como os funcionários chamam o local onde levam os meninos para apanhar. Na maioria das vezes, esse local é a sala da coordenação e, em muitas ocasiões, os adolescentes ficam dias sem ver o Sol. É a prática também conhecida como “Tranca”, punição proibida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Os que mais apanham são os que não têm família ou com os pais doentes. “Outro dia, um menino me disse que não conta o que passa para sua mãe, porque ela tem problema cardíaco e, sabendo disso, pode até sofrer um infarto. Tem um lá que apanha todo dia. Ele só anda de cabeça baixa, não fala nada. Outro teve uma cadeira quebrada na barriga. Contou pra todo mundo, e ninguém fez nada.”
Lugar errado
Existem casos de jovens que são medicados excessivamente com remédios de tarja preta. Ano passado, um adolescente morreu e informaram que foi ataque cardíaco, mas há suspeitas de alta dosagem de medicamentos, como conta Camila Gibin. “Nós recebemos muitos relatos de unidades que dopam os meninos. Uma vez, atendi um menino em regime de liberdade assistida, e a unidade encaminhou o medicamento dele. Já na Unidade Básica de Saúde nos informaram que ele não precisava tomar nenhum remédio. Forçavam-no a tomar o remédio para que não causasse nenhum problema, ficasse calmo, porque ele tinha uma postura contestadora, não aceitava os casos de violência.” Na unidade onde a pedagoga Mariana atua, há o caso do Rafael*. Ele está prestes a completar três anos de internação, que é o tempo máximo permitido pelo ECA. “Chegou aqui são e hoje está doente, completamente dopado. O Rafael é superinteligente. Tem vezes que ele não quer tomar o remédio porque abril de 2012
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diz que não consegue mais estudar com tanta medicação. E o pessoal aqui o ameaça muito, dizendo que se ele não fizer o que eles querem, vão mandá-lo para a Casinha***. Imagina, você com 16 anos ouvir que vai passar o resto da sua vida internado? Os sonhos dele estão cada vez mais frustrados”, lamenta. Os remédios também servem para “acalmar” os dependentes químicos que chegam por lá. Alguns juízes entendem que a internação é a melhor solução para casos de viciados, geralmente em crack. Mas não há, nas dependências da instituição, nenhum serviço específico para esse tratamento. É possível encaminhar estes jovens ao Centro de Atenção Psicossocial (Caps), o que pode demorar, por conta das filas de espera. Mas, segundo Camila, alguns técnicos se negam a enviar o jovem ao atendimento alegando a possibilidade de fuga. “O pior é saber que muitos desses meninos estão aqui justamente por roubarem para sustentar o vício, chegam e não têm ao menos um acompanhamento específico. A única solução que dão a eles são os remédios para que eles aguentem a abstinência. Na unidade onde estou, cerca de 80% se enquadra nesse caso”, conta Mariana. Além dos dependentes químicos, alguns jovens são encaminhados para a internação tendo problemas mentais. Para Carmem, gerente da arte e cultura, “eles deveriam ser tratados pelo sistema de Saúde, mas são enviados para cá. É um caso de saúde, e não de medida socioeducativa”, afirma, incluindo também os dependentes químicos. Nas oficinas, segundo Rodrigo, há todo um cuidado por parte dos educadores para integrar esses jovens às atividades e ao grupo. “Há unidades em que os meninos ficam muito cansados, por conta da medicação.”
Regulamentação
O projeto de lei que criou o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) tramitou por quatro anos na Câmara e no Senado, antes de ser sancionado pela presidenta Dilma Rousseff em 18 de janeiro deste ano. Aprovada, a Lei 12.594 tem prazo de 90 dias para entrar em vigor, e regulamenta a execução de medidas socioeducativas para jovens infratores. São previstas reformulações físicas e estruturais nas unidades, nas áreas da Saúde e Educação, na aplicação de medidas alternativas etc. Quando o Sinase foi encaminhado, ele previa também ampla participação da sociedade civil. Por exemplo, o Conanda daria uma definição, estando ou não a favor do diretor eleito. Na lei sancionada, esse artigo foi retirado.
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A regulamentação é federal e determina as competências dos setores envolvidos na aplicação da medida e as regras fundamentais no País. Rodrigo informa que uma das novidades do Sinase é que ele prevê a visita íntima para os jovens, homens e mulheres. Os jovens casados ou em um relacionamento estável terão esse direito, mediante autorização do juiz. “O PIA, Plano Individual de Atendimento, também é um grande avanço. Quando o adolescente chega lá dentro ele não é mais um número. A ideia é que ele seja um indivíduo e que todas as particularidades sejam respeitadas”, reitera. De acordo com a lei, condições específicas como doenças, debilidades físicas e mentais e dependência química serão consideradas e levadas em conta para o cumprimento da pena. “A questão é que o Sinase é lei, mas o ECA também é. Ou seja, o principal é saber se ele vai ser efetivado ou não. Pela primeira vez o governo federal incidiu, e isso é uma novidade”, diz Rodrigo.
Ter apoio quando se ganha a liberdade é essencial para se manter nas ruas, mas não há programa específico da Fundação Casa que preste assistência ao jovem na sua saída da instituição
Para Camila, mesmo que o Sinase seja um avanço, ele está completamente fora da realidade. “Se em São Paulo é péssimo, nos outros estados é pior ainda”, lembra. Mariana concorda com a análise. “O ECA, o Sinase, nem a Constituição eles obedecem. Todo mês tem problema, todo dia tem problema. E só vai mudar com a mudança de diretores, de gestão, com a presença do Ministério Público.” Para além de qualquer mudança estrutural, de gestão, entidades de direitos humanos acreditam que o problema é anterior à internação e que pode determinar o retorno de algum adolescente que tenha ganhado a liberdade. Base familiar, educação, acesso ao lazer são algumas das questões apontadas. E a reincidência, segundo dados da Fundação Casa, passou de 29% em 2006 para 13% em 2011. Mas é importante considerar que parte dos jovens que cumpriram medidas na Fundação pode virar estatística do sistema penitenciário. Porém, não se sabe quantos dos presos tiveram passagem ali. Ter apoio quando se ganha a liberdade é essencial para se manter nas ruas. O pro-
cesso de transição da internação do jovem, que é a conhecida L.A. (Liberdade Assistida), é de responsabilidade dos municípios desde 2010. E não há programa específico da Fundação Casa que preste assistência ao jovem na sua saída, no seu retorno às ruas. “Se o jovem tem uma família, que lhe preste todo o apoio inicial, ele até consegue se recuperar. Mas caso não tenha nada lá fora, provavelmente ele volta”, analisa Mariana. “É muito mais fácil cuidar do efeito do que da causa. Se olharmos para a causa, isso significa um sistema de educação diferente, com muito mais capacidade de educar, assistência às famílias, assistência social, oportunidades de trabalho. Cuidar dessa infraestrutura é muito mais difícil do que mandar a Fundação construir mais unidades ou internar mais jovens. Eles voltam porque é mais difícil a vida lá fora do que aqui”, opina Carmem. Outro índice que caiu bastante, de acordo com dados oficiais da Fundação, foi o das rebeliões. Com o recorde de 80 rebeliões em 2003, cinco anos depois foram registradas apenas três. “As estatísticas da Fundação Casa mostram uma queda significativa nas rebeliões, mas presenciamos muito tumulto. A gente não sabe qual o critério, qual o conceito de rebelião. Se diminui nas estatísticas, pra gente é algo constante. Não sei se é rebelião, se é tumulto... Hoje mesmo aconteceu um em Itaquera. E os motivos são os mais variados”, relata Rodrigo. A descentralização é vista para a maioria como um grande avanço, mas ainda assim muitos jovens são presos, há um rigor excessivo do Judiciário e falhas neste sistema. Na opinião de Camila, a política de violência, as práticas e as rebeliões continuam. “Com unidades menores é mais fácil pôr os panos quentes e controlar tudo isso. Somente neste ano, teve rebelião na unidade de São Vicente, Encosta Norte, Itaquera, tentativas de fuga na Fazenda do Carmo etc. Os problemas continuam, só não aparecem mais como antes”, ressalta. “A Fundação Casa nasceu para dar errado. Eles saem de lá com mais ódio, achando que as pessoas são todas ruins e que não há como mudar isso. São desrespeitados como seres humanos, são tratados como lixo. E isso faz com que eles pensem que não podem mudar”, argumenta Mariana. F *Os nomes foram mudados para manter a integridade das pessoas entrevistadas.
**O local onde a educadora trabalha também foi preservado. *** Casinha é o termo que designa o local aonde vão os jovens que, mesmo após cumprirem pena, recebem decisão judicial de interdição civil, o que determina a internação por tempo indeterminado.
A vida não é fácil. Nunca foi O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas
A vida quer é coragem Ricardo Batista Amaral Editora Sextante, 336 páginas A vida quer é coragem – A trajetória de Dilma Rousseff, do repórter Ricardo Batista Amaral, é um daqueles livros que se pode ler de duas formas. A primeira, sem compromisso. Apenas para conhecer a história da primeira presidenta da República do Brasil até a sua posse. E quem decidir fazê-lo com essa pretensão, vai ter momentos de boa leitura. Primeiro, porque o autor é bom de pena. Conduz o leitor por labirintos da história recente do Brasil, tendo como linha condutora a história da personagem central. E, nesse sentido, as partes fortes são as do regime militar e, claro, a fase mais recente de Dilma, de 2003 à sua eleição em 2010. Prefiro muito mais a primeira, na qual a distância entre o autor e os fatos parece deixá-lo mais à vontade para revelar certos bastidores.
Nele, aparecem detalhes de como Dilma lidou com a relação que o então marido teve com Bete Mendes enquanto ela estava presa. Ao também ser preso, Araújo decide revelar em uma mensagem para a mulher em uma carta de “letra miúda, papel fino, dobrado e redobrado até caber num chiclete mascado, escondido no fundo do maxilar do portador”, a relação que teria tido com a então famosa atriz. Carlos viria a reencontrar a companheira logo depois. “Foi uma emoção enorme aquele reencontro”, lembra. E completa na narrativa do livro: “Ela nunca me perguntou sobre o caso com Bete que eu contei naquela carta.” A foto que acabou se tornando a contracapa do livro de Amaral, e que Fórum publica nesta edição, talvez seja o retrato mais completo da atual presidenta. O olhar de quem sabe o que está acontecendo e do que está por vir. Um olhar profundo de quem não se autopenitencia pela situação vivida. Muito pelo contrário. De uma jovem que tinha a exata dimensão do tamanho do combate do qual era uma das muitas personagens cuja vida estava em jogo. Mas há outros trechos reveladores no livro. Não se pode deixar de tratar do momento em que foi informada sobre o câncer pelo médico Roberto Kalil Filho, quando ao final do telefonema, olhou para o seu secretário Anderson Dorneles e disse: “A vida não é fácil. Nunca foi.”
Mas há um outro jeito de ler a obra. Algo que o resenhista tentou em algumas partes, na segunda leitura que está fazendo do livro, e que promete concluir dentro em breve. A de ir assinalando nomes e fatos marcantes que são relatados com uma caneta pincel. Esse trabalho permite enxergar o envolvimento de certos personagens e a força que têm na história da atual presidenta, como o de seu ex-marido, o advogado Carlos Araújo, que está presente em quase todos os momentos decisivos da vida de Dilma. Mesmo nos momentos recentes.
Esse parece ser um mantra de Dilma. Algo que ela parece repetir a todo momento para si. “A vida não é fácil. Nunca foi”. Nos momentos mais duros do governo, essa frase parece ser a válvula de escape para lidar com certas situações. Se “a vida não é fácil e nunca foi”, Dilma acaba arriscando, mesmo sem parecer que assim o faz. E faz isso muito mais do que Lula, mesmo sem parecer.
Como a trajetória de Lula era quase do conhecimento público quando assumiu a presidência, seus movimentos eram de compreensão mais inteligível. No caso de Dilma, ainda se vive um processo de “decifrar a esfinge”. E o livro de Amaral é, até o momento, o trabalho mais completo nesse sentido.
A vida quer é coragem é fundamental para começar a compreender a alma de Dilma. Veja bem: “começar a compreender”. Para entendê-la de fato, outros trabalhos contando sobre os bastidores do seu governo serão fundamentais. (Renato Rovai)
Vozes das ruas Só o tempo vai dizer, mas 2011 pode ter marcado o início da reconquista do espaço público. Praças e ruas ficaram cheias – da Primavera Árabe aos protestos contra medidas de austeridade econômica na Europa, do Occupy aos indignados da Espanha. Somem-se a isso outras tantas ações aqui no Brasil – das manifestações pela descriminalização da maconha àquelas organizadas pela liberdade de se vestir livremente. Muitos políticos não entendem como esses atos não foram necessariamente organizados por partidos e sindicatos, mas sim em um processo descentralizado, que brotou da insatisfação popular tanto com a persistência de problemas existentes quanto com as soluções que vêm sendo dadas pelos próprios representantes políticos a esses problemas. Não são raros os que têm dificuldade em assimilar como funcionam Twitter e Facebook, utilizados na organização de protestos. Eles não são ferramentas de descrição, mas sim de construção e reconstrução da realidade. Plataformas nas quais vozes dissonantes se conectam e ganham escala, pois não são mediadas pelos veículos tradicionais. Quando a pessoa atua através de uma dessas redes, não reporta simplesmente. Inventa, articula, muda. Vive.
Os textos presentes nesse livro ajudam a entender por que e como tanta gente está indo para a rua. Alguns deles, inclusive, soam como um necessário empurrão para fora de casa. Ver que os jovens estão gritando a plenos pulmões sob o Sol e a chuva traz uma lufada de esperança. Talvez esta nova geração, auxiliada pelas trocas e conexões possibilitadas pela tecnologia, faça a diferença de uma forma que os que vieram antes não conseguiram. (Leonardo Sakamoto)
Occupy – movimentos de protesto que tomaram as ruas David Harvey, Edson Teles, Emir Sader, Giovanni Alves, Immanuel Wallerstein, João Alexandre Peschanski, Mike Davis, Slavoj Žižek, Tariq Ali, Vladimir Safatle. Boitempo Editorial, 88 páginas
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A trajetória da Cia. Carroça de Mamulengos, uma família brasileira feita para o mundo que reinventa, preserva e devolve ao nosso País o que lhe é mais real e autêntico
Os saltimbancos modernos do Brasil por Julinho Bittencourt
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oda família tem seu álbum de fotografias, suas memórias, seus Natais, aniversários, suas alegrias e perdas, domingos de sol, segundas de chuva. Com a família Gomide, que forma a Cia. Carroça de Mamulengos, não é diferente. Suas recordações, no entanto, se confundem com seus espetáculos, que viajam e alegram o Brasil há 35 anos. As fotos que guardam vêm de um mundo de sonho. Trazem os meninos e os pais cercados de pequenas multidões pelas ruas do Brasil, com expressões indescritivelmente livres, invariavelmente paramentados de seus ricos personagens – as boneconas Miota e Mariama, a burrinha Fumacinha, os jaraguás Rosa e Florinda, o tamanduá Maleta, o carneirinho Belém, as pernas de pau, o palhaço Alegria e os bonecos manipuláveis –, os mamulengos. Memórias encantadas que, de tão íntimas, têm sido divididas com plateias de todas as partes. Uma família brasileira feita para o mundo que reinventa, preserva e devolve ao nosso país o que lhe é mais real e autêntico e que tem sido devastado ao longo dos anos: a sua cultura ancestral, as suas manifestações
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mais populares, seus mitos e cantigas, suas danças e folguedos, brinquedos e trovas. Sem meias palavras, a sua própria identidade. Todo o arquivo disponível da Cia. Carroça de Mamulengos desde a sua formação, em 1978, em Brasília, até agora, nos dá a dimensão do visionário projeto inicial do casal Shirley França e Carlos Gomide. Hoje, Shirley segue na estrada com todos os filhos, exceto Antônio, que vive com o pai no Cariri, de onde dão suporte à trupe enquanto se apresentam com outra companhia, que todos consideram a mesma, como uma artéria que se desprende para oxigenar o mesmo coração. Artistas mambembes, talentosos e apaixonados pelas tradições populares brasileiras, partiram para a estrada, na medida em que foram tendo os filhos Maria, Antônio, Francisco, João, Pedro, Matheus, Luzia e Isabel. Segundo contam, os meninos foram educados pelo caminho, alfabetizados pelos pais, aprendizes de cada lugar e povo que encontravam pela frente. Carlos sempre diz que “os meus filhos não têm diploma, mas têm um ofício”. Hoje, 27 anos depois do nascimento da primogênita Maria, todos os meninos ainda estão juntos na Cia., e nunca pensaram, em momento algum, tomar outro rumo. Segundo conta a
própria Maria, ela passou seus primeiros anos de vida sem pensar no assunto e, quando parou para refletir, a única conclusão a que conseguiu chegar foi: “A vida não me deu escolha, mas que bom que a vida não me deu escolha! Eu costumo brincar com meus irmãos que quem nasce nesta família já nasce empregado”, completa sorrindo. Hoje, Maria é uma espécie de mestre de cerimônias dos espetáculos do grupo. Nos primeiros anos, ainda muito menina, já andava de perna de pau, dançava, cantava. “Desde muito cedo, nós aprendemos a assumir o protagonismo do espetáculo, dentro das nossas possibilidades. A dramaturgia dada a cada um de nós, artistas da família, sempre fez parte do nosso universo. E isso, é claro, vem mudando”, ressalta Maria. Os meninos Francisco e João, com o passar do tempo, aprenderam instrumentos, falas, danças e tantas outras brincadeiras que foram se incorporando aos espetáculos. O mesmo processo ocorre, incessantemente, com os mais novos Pedro, Mateus, Isabel e Luzia. Uma terceira geração começa a aparecer também. Francisco, com apenas 22 anos, acaba de se tornar pai de Iara, que já fez a sua primeira aparição num espetáculo da trupe.
Felinda
A aptidão musical do grupo também evoluiu muito. A música, que servia aos espetáculos, ocupa lugar de cada vez mais destaque. A discografia da Cia. conta com o álbum Alumiação, lançado em 1996, hoje uma raridade, que chegou a ter 16 mil cópias em várias tiragens, uma façanha para um disco independente. Além dele, participaram também, em 2005, do projeto “União dos Artistas da Terra da Mãe de Deus” e gravaram, em 2010, Afilhados do Padrinho, todo dedicado a ritmos nordestinos. O projeto que neste momento está no forno é a gravação de dois CDs de uma vez, por meio do sistema de financiamento coletivo. Os amigos, admiradores e entusiastas em geral podem entrar no site do grupo (www.carrocademamulengos.com. br) e doar valores que vão de R$ 40 a R$ 5 mil e receberão em troca, assim que concluído o trabalho, CDs, posters, participações em espetáculos e oficinas, arte em aquarela da pintora Rebeca Queiroz e até mesmo um show particular. As aquarelas são um caso à parte: corroboram com a beleza do trabalho do grupo e também podem ser vistas no site. Dos dois CDs, um é totalmente dedicado às novas vozes do grupo, os irmãos caçulas, e vai se chamar Passarinhos. Trata-se da última oportunidade de registrar as vozes ainda em desenvolvimento. O outro, feito pelos adultos, será o Canto Fortuito. Os dois discos contam com 22 canções que fazem parte do trabalho da Cia., muitas delas do pai Carlos Gomide, e outras, dos compositores Beto Lemos, Paulo Tovar e Luiz Fidelis. São cantigas inventivas, repletas de ironia, brincadeiras e felicidade. Músicas que reforçam o imaginário com que trabalham desde sempre e que nos dão uma ampla dimensão tanto do grupo quanto das ricas variações sonoras do Brasil. Construídas de forma lúdica, as letras têm sempre a intenção arte-educadora, traço que, na verdade, se confunde com todo o trabalho do grupo. Variações das folias de reis e encontros de bandeiras de Minas; adaptações da canção do palhaço ladrão de mulher, abertura secular de todos os cirquinhos do interior do País; canções para os personagens, enfim, uma riqueza cultural imensa e comovente, lindamente interpretada pela família. Um dos pontos altos entre os números musicais é a hilária canção “McDonald”: “McDonald não tem pamonha/ McDonald não tem curau/ McDonald não tem cuscuz/ Credo em cruz, Credo em cruz.../ E tem tem tem/ E se plantando tudo dá/ McDonald indo embora/ Leva junto a coca cola/ E vivam as nossas cajuínas.”
A Cia. Carroça de Mamulengos estreou, em 2010, o espetáculo Felinda, que acaba de cumprir temporada vitoriosa no Espaço Cultural Eletrobras Furnas, no Rio de Janeiro. É o primeiro escrito e dirigido pelos filhos com o apoio dos pais, uma espécie de passagem de bastão. Felinda traz “a história de uma mulher nem feia, nem linda, que foge para seguir com o circo. No entanto, não é artista e não consegue entrar para a trupe. Sozinha, desorienta-se: esquece seu nome e de onde vem. Mas o circo habita sua memória e, neste circo de sonhos, ela encontra morada e um caminho que lhe dá sentido”. E é da memória de Felinda que saltam os elementos que formatam o espetáculo: uma charanga de palhaços, uma bailarina tímida, uma banda desastrada, bonecos reais e seres imaginários. O próximo passo do grupo é levar Felinda ao sertão do Cariri, em 22 cidades da região da Chapada do Araripe. A viagem é uma contrapartida ao patrocínio de Manutenção de Companhias da Petrobrás. Além de Felinda, o grupo vai fazer oficinas de perna de pau e também apresentações do filme O Palhaço,
Fotos: arquivo pessoal
A música
de Selton Mello, em parceria com o Cine Arte Sarau. Outra das várias surpresas é
que, dessa vez, uma equipe de filmagem vai acompanhar a trupe, fazendo registros diários das atividades, que depois serão postadas tanto no site da Cia. quanto nas redes sociais (http://www.facebook.com/ CarrocaDeMamulengos e @CiaCarroca). “Em 2010, estivemos lá no Cariri e fizemos espetáculos em praças para 600 pessoas em cidades de 2 mil habitantes. Nosso objetivo é pescar as pessoas para o teatro nas ruas, sair do espetáculo e abraçar o público, saber da vida das pessoas. A arte é a vida, como a gente vive”, exulta Maria.
Um sonho brasileiro
A despeito de parecer anacrônico para alguns, o trabalho da Cia. Carroça de Mamulengos está mesmo assumidamente deslocado da nossa sociedade contemporânea. Conforme diz a própria Maria, eles vêm de outro tempo. São saltimbancos modernos, apaixonados pelo estradar, desembarcados diretamente da Idade Média a evocar um mundo que seguimos destruindo. Ao propor respostas simples e honestas, nos encantam com uma premissa que, de tão óbvia e urgente, alguém se esqueceu de repetir. E eles nos lembram: “Um povo sem cultura é como um dia sem Sol, uma noite sem Lua, um corpo sem alma. E é por isso que a Cia. Carroça de Mamulengos segue cantando, dia e noite, noite e dia.”
Retratos da Cia.: Acima, Carlos,Francisco, Antonio e Schirley, grávida de João. Abaixo, Carlos e Shirley em apresentação com o “filho” João Batista e uma roda em Fortaleza, em 1989
Maria não sabe como vai ser daqui para a frente, como serão as próximas noites e dias, na medida em que ela e os meninos constroem as próprias vidas, as próprias famílias. “Vai ser outra coisa, mas com certeza decorrente desta grande coisa que é a Carroça de Mamulengos. Uma árvore frondosa que hoje, por todo o Brasil, vai dando seus galhos e frutos através de inúmeros amigos”, encerra emocionada. F abril de 2012
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história
Não podemos deixar 1964 se repetir Brigadeiro da Aeronáutica cassado pela ditadura defende a Comissão da Verdade e quer que governo seja duro com militares que se manifestem contra Imagens reproduzidas do documentário Senta a Pua
por Leonardo Fuhrmann
A
os 92 anos e sofrendo de uma leucemia crônica, Rui Barbosa Moreira Lima aguarda a confirmação na Justiça de sua promoção a brigadeiro de quatro estrelas (patente máxima da Aeronáutica). Mas a idade avançada e os problemas de saúde não impedem que o militar continue acompanhando o desenrolar dos acontecimentos na política e na vida militar do Brasil. E nem mesmo os adversários podem negar a coerência de sua longa trajetória. Foi piloto de caças com 94 missões durante a II Guerra Mundial, lutando contra as ditaduras nazifascistas, participou da implantação da aviação a jato no País, defendeu a posse do presidente Juscelino Kubitschek, que havia sido democraticamente eleito, e depois defendeu seu governo de duas tentativas de golpe militar. Em 1961, esteve ao lado da legalidade quando militares ligados à União Democrática Nacional (UDN) tentaram evitar a posse do vice João Goulart após a renúncia do presidente Jânio Quadros e, três anos depois, quando esse grupo conseguiu instituir uma ditadura militar. Cassado e preso três vezes durante o regime de exceção, participou, no começo dos anos 1980, da formação da Associação dos Militares Cassados (Amic). Estiveram no grupo que criou essa entidade personalidades como o general e historiador Nelson Werneck Sodré e o capitão paraquedista Sérgio Miranda de Carvalho, conhecido na Aeronáutica como Sérgio Macaco. Sodré relata em seu livro História Militar do Brasil os casos de tortura cometidos, nos anos 1950, por militares que depois fariam parte do golpe contra praças e sargentos que participaram da campanha “O petróleo é nosso”. Em 1969, Macaco denunciou um plano terrorista a ser realizado no centro do Rio, que teria sido proposto a ele pelos brigadeiros Hipólito da Costa e João Paulo Burnier. A ideia era responsabilizar “os comunistas”
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pela série de ataques e justificar o aumento da violência na repressão. Por causa de suas denúncias, o militar, que ficara conhecido por suas missões humanitárias, em especial em defesa dos índios da Amazônia, foi preso e torturado. Hoje, a Amic passou a se chamar Associação Democrática e Nacionalista de Militares (Adnam) e Moreira Lima defende a Comissão da Verdade, critica os militares que atuam contra ela e pede a atenção das autoridades contra qualquer tentativa de desestabilização da democracia.
Fórum – Qual é a sua opinião sobre a formação da Comissão da Verdade?
Moreira Lima – Sou um defensor da Comissão da Verdade. Acho que ela vai acabar com todas essas fofocas que saem do Clube Militar, conversas que pensei que ficassem restritas àquele pessoal antigo, que prendeu a gente, torturou, fez e aconteceu durante aqueles anos. Fizeram as maldades que quiseram na época da chamada “revolução”. Estou vendo agora que aquele pessoal que era novo – tenentes na época, que chegaram a general – repete o mesmo discurso deles. Teve o general Luiz Eduardo Rocha Paiva que falou um absurdo em uma entrevista para a jornalista Miriam Leitão em um programa de televisão. Falou que não concordava com a comissão porque havia sido feita uma anistia. Mas mesmo feita a anistia... A anistia tem uma coisa gozada. Considerando esse negócio como válido, é preciso deixar claro que havia um prazo. As bombas do Riocentro e nas sedes da ABI (Associação Brasileira de Imprensa) e da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) são posteriores ao prazo previsto (a lei impõe os limites de 2/9/61 a 15/8/79). Por que tem de dar anistia pra esses caras também? E, na minha opinião, o torturador não pode ser anistiado, pois é um bárbaro, um covarde. O sujeito que mata alguém que está preso também. Teve casos em que eles cortaram os corpos das vítimas. Era para a Marinha, o Exército e a Aeronáutica receberem bem essa comissão. Como que alguém pode esquecer do deputado Rubens Paiva [desaparecido em 1971 após ser preso]? Se ele entrou preso e sumiu? Como esquecer o Vladimir Herzog [assassinado dentro do DOI-Codi em 1975]? Aí, aparece um general e diz que não sabe se ele se enforcou ou se a presidenta Dilma Rousseff foi de fato torturada? Acho que é até uma falta de respeito pela autoridade. Não estou pedindo que
ele tenha respeito pela dona Dilma, mas ela está no cargo de presidente da República. É uma lástima que ainda se faça isso. Fórum – A quem isso interessa?
Moreira Lima – Eu me lembro quando estavam fazendo o lançamento do filme Senta a Pua [baseado no livro de Moreira Lima], que conta a história do Grupo de Caça do Brasil, que participou da II Guerra Mundial. A atriz Bete Mendes falou na minha frente, lá no Cine Odeon [no centro do Rio], da sua passagem como deputada por Montevidéu durante o governo José Sarney. Ela encontrou o coronel Brilhante Ustra como adido militar do Brasil no país e o reconheceu como o Doutor Tibiriçá que havia torturado ela. Esse rapaz não foi promovido a general. Em quatro anos do Doi-Codi [Destacamento de Operações de Informações/ Centro de Operações de Defesa Interna], só praticou isso. Todo mundo sabe. Isso tem que ser apurado, sim. Esse rapaz foi afastado. O então presidente o tirou de lá, para acalmar o pessoal. Fórum – E como o senhor vê a reação dos clubes militares?
Moreira Lima – Há alguns meses, os presidentes dos clubes militares fizeram um jantar ou um almoço de desagravo, porque ele não chegou a general por ser acusado de ser torturador. Homenagearam esse rapaz. Eles pegaram o discurso de posse da presidenta Dilma, no momento em que ela se refere aos partidos de oposição e que “não estiveram conosco nesta caminhada” e promete que não haverá privilégios nem discriminação. Isso não tem nada a ver com a discussão sobre a Comissão da Verdade. Os presidentes dos três clubes militares publica-
ram um manifesto censurando a presidenta Dilma Rousseff e atacando as ministras Maria do Rosário, de Direitos Humanos, e Eleonora Menicucci, de Políticas para as Mulheres. Eles destacam que a carta foi assinada por militares da reserva, mas manifesta também a insatisfação daqueles que estão na ativa e são proibidos de se manifestar. Tenho muito medo desse tipo de manifestação, porque eu já vi esse filme. O coronel Jurandir Bizarria Mamede fez um discurso em 1955, no enterro do general Canrobert Pereira da Costa, contra a posse do presidente Juscelino Kubitschek, e o general Henrique Teixeira Lott ordenou sua prisão dali mesmo. O Lott não era violento, era disciplinado e tinha uma autoridade moral muito grande. Tanto que garantiu o governo do Juscelino. Fórum – Qual é a reação dos militares cassados a essas manifestações de agora?
Moreira Lima – Nós, da Adnam, lançamos um manifesto que começa destacando que o verdadeiro regime democrático é o que estamos vivendo hoje, e não aquele dos governos militares, que não permitiam diferenças de opinião, de crença e de orientação política. A pre-
sidenta Dilma não governa para uma parcela, mas sim para todo o povo brasileiro, vitoriosa que foi nas urnas. É uma falta de bom senso desses meus companheiros. Eu estimo muito, gosto do presidente do clube da Aeronáutica e o respeito pelo que ele foi e fez dentro da instituição. Mas ele está mal informado por assinar esse documento. Raramente escrevo na revista do Clube. Só em ocasiões como as homenagens aos meus colegas da época da guerra. Se você for para a Itália, vai ver placas em homenagem aos militares brasileiros, que lá estiveram para ajudar a expulsar os nazistas. Fórum – O senhor tem contato com os militares de hoje?
Moreira Lima – Os militares, hoje, me tratam com muita consideração. Eles me deixam dar duas aulas por ano, de quatro tempos cada uma, para os capitães que vão passar a major. E minha aula sempre é escolhida como a melhor. Vou sempre junto com um colega que cumpriu missões na guerra. Geralmente eu ia com o Ivo Gastaldoni (morto em 2008), que fez mais de cem missões de patrulha, um tipo de ação que tinha um valor muito grande, pois evitava a ação dos submarinos alemães. Estava cassado quando escrevi o livro Senta a Pua, sobre a atuação do Grupo de Caças. É um dos meus grandes orgulhos, pois foi traduzido para o inglês e lançado em outros países.
Fórum – É nele que o senhor cita a famosa carta de seu pai, o juiz Bento Moreira Lima?
Moreira Lima – Começo o livro com a carta de meu pai, que recebi em 31 de março de 1939. Eles me cassaram em 31 de março de
Nós, da Adnam, lançamos um manifesto que começa destacando que o verdadeiro regime democrático é o que estamos vivendo hoje, e não aquele dos governos militares
1964. Meu pai dizia assim: “Rui, és cadete e amanhã, mais tarde, general. Agora deve dobrar os teus esforços e estudar muito. Deves obediência a teus superiores e lealdade a teus companheiros. Seja um patriota verdadeiro e lembre que a força só deve ser empregada a serviço do Direito. O povo desarmado merece o respeito das Forças Armadas. É este povo que deve inspirá-la nos momentos graves e decisivos. Nos momentos de loucura coletiva, deve ser prudente, não atentando contra a vida de teus concidadãos. O soldado não conspira contra as instituições às quais jurou fidelidade. Se o fizer, trai os seus companheiros e pode desgraçar a Nação. O soldado não pode ser covarde nem fanfarrão. A honra é para ele um imperativo e deve ser bem compreendida. O soldado não pode ser um delator, a não ser que isso implique salvação da pátria. Espionar os companheiros visando ao interesse próprio é infâmia. O soldado deve ser digno.” Fórum – Por que o senhor foi cassado?
Moreira Lima – Quando fui ao inquérito, o brigadeiro me falou que eu quis levantar a base em 31 de março de 1964, na hora de passar o comando. Eu tinha a carta de meu pai desenhada em nanquim, e abril de 2012
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mostrei os trechos que citei aos pilotos do grupo de caça que eu comandava na Base Aérea de Santa Cruz. Falei que não estava incitando ninguém a desobedecer às ordens. Mas a gente cumpre quando as ordens são bem dadas, analisadas com cuidado porque era o povo brasileiro que estava metido naquilo. A primeira vez que participei de um levante foi comandado pelo Lott, para garantir a posse do Juscelino e do João Goulart, que era seu vice. Para garantir o respeito à Constituição. E se não fosse o Lott, o governo teria caído nas tentativas de golpe de Jacareacanga (1956) e Aragarças (1959). Fórum – Como era a relação com esses militares golpistas na época?
Moreira Lima – O major Haroldo Veloso, que era meu colega de turma, esteve à frente das ações de Jacareacanga. Quando ele foi preso, fazia 22 dias que eu estava na Serra do Cachimbo [na divisa do Pará com o Mato Grosso], em condições horríveis, para defender o Brasil daquele ataque. E depois fui visitá-lo na prisão, antes mesmo de vir encontrar a minha mulher. Fui lá e disse: “O que houve contigo, Veloso. Está maluco? Se a gente se encontrasse em combate, ia ser um troço chato, pois alguém teria de ceder para o outro”. E ele me respondeu: “Metade da Aeronáutica não veio me visitar por vergonha de não ter cumprido o que me prometeu, e a outra metade porque não queria ter nada a ver com isso.” São histórias assim que os presidentes dos clubes nem sabem.
Fórum – E como vê as declarações do brigadeiro Carlos Almeida Baptista?
Moreira Lima – É uma pessoa que eu estimo, e agora estou constrangido por ele estar assinando essas coisas todas. E, para assinar, ele está acreditando nisso. Ele foi cria disso, nasceu com essa chamada “revolução”. Uma revolução que me prendeu. Nunca tinha sido preso por política em lugar nenhum, pois não sou político. Seis anos depois, fui preso por sargentos. Fiquei encapuzado dentro de uma masmorra em Campinho, em uma humilhação só. Não sei se iam me matar, pois fizeram isso com o Herzog, o Manuel Fiel Filho [operário assassinado em 1976] e tantos outros. Eu instruí minha família a procurar o general Sizeno Sarmento, com quem estive na guerra, e foi ele quem mandou me soltar. Eu estava em um quarto em que não podia nem me deitar. Isso é uma tortura. Ia ao banheiro acompanhado de um soldado de arma na mão. Passei isso no Exército. Fui maltratado na Marinha, na primeira prisão, quando me colocaram em um lugar infestado de ratazanas e baratas. Fiz uma greve de fome de três dias, e o presidente Castello Branco soube e mandou me tirarem de lá e me colocarem com os outros colegas presos. Mas não foi por bondade, não, tinha sido um pedido do brigadeiro Nero Moura, que havia sido meu comandante na guerra. Fórum – E que tipo de reação do governo o senhor espera?
Moreira Lima – Esse filme eu já vi. É assim que começa. Daqui a pouco
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pegam aí o pessoal do “não sei quê da liberdade” e um grupo de “senhoras de não sei quê” e começam tudo de novo. Não sei, tomara que não saia mais, porque agora que as senhoras mandam também, é capaz de elas não fazerem mais um papel desses. A presidenta Dilma tem de ser firme nesta posição dela. Não é estar pondo gente na cadeia, mas é não deixar fazer. Enquanto o Lott foi Lott, não fizeram. Ela é uma mulher que tem autoridade, que tem o voto do povo que a elegeu. Fórum – O senhor acredita que esses movimentos atentam contra a democracia?
Moreira Lima – O perigo são esses caras que não têm preparo para conviver com o povo. Eu estou preocupado. Acho que a presidenta Dilma e os comandantes das Forças Armadas devem chamar os presidentes dos clubes e dizer para eles que não ajam assim em nome dos clubes nem que ponham as fardas deles para fazer tais manifestações. Porque nós já tivemos a experiência de 1964 assim, e aquilo foi uma lástima. A Comissão da Verdade não quer prender ninguém, mas não dá para deixar passar em branco tudo o que aconteceu naquela época. Fórum – Qual é a sua situação militar atualmente?
Moreira Lima – Em 5 de outubro de 1993, eu pedi minha promoção de acordo com a Lei da Anistia feita pelo Congresso. O recurso espe-
Esse filme eu já vi. É assim que começa. Daqui a pouco pegam aí o pessoal do “não sei quê da liberdade” e um grupo de “senhoras de não sei quê” e começam tudo de novo
cial foi sobrestado por decisão do ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Félix Fischer, em 14 de novembro de 2011, até a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a repercussão geral dos recursos em outros pedidos de promoção de militares que foram cassados pelo regime que se instaurou em 1964. Desde 1993, é recurso seguido de recurso, e não sai essa promoção. Recebi faz pouco uma informação que ainda não consegui confirmar, que o Supremo confirmou a minha nomeação como tenente-brigadeiro. Serei o primeiro quatro estrelas do Grupo de Caça da II Guerra Mundial.
Fórum – Por que, em plena democracia, o governo ainda recorre das sentenças que aprovaram suas promoções?
Moreira Lima – Acho que é uma perseguição. É preciso que isso seja dito na Comissão da Verdade. Um sujeito que tem um direito assegurado de uma promoção desde 1993 e só agora, que todo mundo já morreu, a decisão sai. Porque não seria só eu. Meia dúzia de colegas meus foram cassados e também chegariam a esse posto. Tinha até gente mais antiga do que eu. É uma falta de respeito, sou um sujeito que tem uma leucemia crônica. É uma doença grave, e eu vou fazer 93 anos no próximo dia 12 de junho. E o sujeito não tem esse respeito pela velhice dos outros. É uma incoerência que a AGU (Advocacia Geral da União) tenha passado esse tempo todo procurando chifre em cabeça de cavalo. F
SIBA, CANTOR, COMPOSITOR, MULTI-INSTRUMENTISTA e exlíder dos grupos Mestre Ambrósio e Fuloresta, dá uma guinada na carreira e lança AVANTE, um disco em que o instrumento base é a guitarra elétrica. Até então, Siba, exímio rabequeiro, enfeitava seus cocos, emboladas, toadas e afins com violas nordestinas e que tais. No final das contas, a sonoridade encontrada pelo autor, com a ajuda do produtor Catatau, da banda Cidadão Instigado, não se distancia tanto do que ele sempre fez, ou seja, a boa canção popular com grande influência da música nordestina. O seu jeito de compor e, principalmente, tocar guitarra caminham na mesma direção de sempre, e as boas alterações ficam restritas à escolha dos timbres. As composições continuam baseadas nas estruturas em que o autor se dá tão bem. Seus martelos, cantigas e maracatus continuam intactos por trás da base típica do rock – guitarra, baixo e bateria. A medida talvez faça com que Siba aproxime a sua música da garotada, o que por si já é um grande mérito. Mas, como sempre, tem mais, muito mais neste Avante. Siba é, acima de tudo, um excelente compositor. Um bom humor refinado, aliado às melodias rápidas, aparentemente simples, mas extremamente engenhosas, joga a sua música de forma rápida e rasante do ancestral ao moderno. A melhor tradução do que pretendia – e de onde chegou – com Avante vem dele mesmo, através de um mapa imaginário que teria “pistas confusas embaralhando Hendrix, Lemmy, Ivanildo Vila Nova e Manoel Chudu, Zé Galdino, Barachinha, o Sundiata do Mali, Franco, o Congo, Poemas Suspensos, canções de repentistas na voz de Antônio Alves, ‘Voltando a Minha Terra’ de Severino Feitosa, Super Rail Band, Thelonious Monk, Robab Afegão, ‘Star Number One’ de Dakar, Biu Roque, Bembeya Jazz National, Jimmy Page, Os Solitários de Nazaré da Mata, Michele Melo cantando ‘essa noite eu vou ser toda sua…’, O Incandescente de Serres, a viagem de Ulisses, Cancão, rock Touareg, Jack White, Kasai All Stars, Ryad Al Sumbati, Cream, Menelik Wesnatcheu, meu pai assobiando de manhã cedo”, indica o autor. Não bastasse a profusão de ideias e conceitos, o artista segue seu confessionário se curvando aos cenários onde buscou as influências definitivas: “Avante tem um pouco de Rio de Janeiro, Dakar, Recife, Nazaré, São Paulo, Curitiba, Praia dos Carneiros, Teresópolis, Campina Grande, além de sombras de lugares que nunca fui: Kinshasa, as montanhas do Hindu Kush…”, define. Depois de tudo, e ainda com muitas coisas a buscar, o avanço do artista só deixa mais claro o que os que o acompanham já sabiam desde sempre. Siba é um dos jovens talentos mais importantes deste Brasil, que não para de ter prazer em se descobrir. Uma consequência e causa direta desses nossos bons novos ventos, em que os movimentos se dão de forma descentralizada e profusa.
POR SUA VEZ, QUEM ESPERA ALGO MINIMAMENTE PRÓXIMO DA BANDA Cordel do Fogo Encantado no disco de estreia de LIRINHA vai quebrar a cara. O cantor e ex-líder do lendário grupo pernambucano, de Arcoverde e Recife, partiu pra outra mesmo. Ele acaba de lançar LIRA, seu primeiro disco solo, que, assim como todos os do Cordel, é também totalmente independente e também completamente descompromissado com o mercado fonográfico, mas bem diferente de tudo o que já fez. Curiosamente, assim como Siba, Lirinha também lança mão de ritmos e instrumentos mais afeitos à música pop. E, mais curiosamente ainda, apesar da guitarra elétrica e da parceria com músicos roqueiros, assim como o companheiro também pernambucano, a música não ficou nem um pouco mais fácil, muito pelo contrário. Lira explode em poesia, inovações sonoras, efeitos de estúdio, ótimas composições e nenhum truque ou facilidade estética. Outro paradoxo (que também é comum a Siba) está na leveza sonora do disco. Apesar das guitarras, baterias e instrumentos eletrônicos, Lira é muito mais delicado e suave que tudo o que o artista fez até agora. O que não quer dizer que não seja repleto de energia. Enfim, Lirinha surpreende de fio a pavio com este seu primeiro solo. Com produção de Pupillo, baterista da Nação Zumbi, Lira é um segundo momento do artista que traz flertes com o Mangue Beat, a Jovem Guarda e até a música popular brasileira. Além do próprio produtor na bateria, o grupo básico do disco conta ainda com Neilton José de Carvalho, guitarrista da banda punk hardcore Devotos e Bactéria, baixista, guitarrista e tecladista da primeira formação do grupo Mundo Livre S/A. Além da banda básica, o disco conta ainda com as participações de Lula Côrtes, lendário cantor e compositor, parceiro de Zé Ramalho no disco Paêbiru. Lula faleceu pouco depois de deixar o seu registro neste disco. Além dele, estão no disco a cantora, compositora e pianista Angela Ro Ro, o cantor, compositor e percussionista Otto, também da primeira formação do Mundo Livre S/A, Fernando Catatau, guitarrista e produtor, líder da banda Cidadão Instigado e Francisco Amâncio da Silva, o Maestro Forró, fundador e regente da Orquestra Popular da Bomba do Hemetério (OPBH). Dentre todas as coragens de Lirinha, nesse seu primeiro lançamento solo, uma delas é fundamental. O cantor, compositor e poeta se arvora por outras formas e por outros meios, dentro de um conjunto inesperado. Suas novas canções são distintas, fotográficas, encantadas. Muitas vezes parecem pequenas cenas de um romance híbrido, com laivos de Ariano Suassuna e Lewis Carroll. São cheias de luz e cor, sentimentos entrecortados, ancestralidade e modernidade. Enfim, parece que a maturidade artística chega a Lirinha dentro de um universo próprio, mas repleto de outros.
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Viver tem que ser chato!
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er os jornais, hoje em dia, me faz lembrar do Febeapá – Festival de Besteiras que Assola o País – retratado nas crônicas de Stanislaw Ponte Preta, numa época em que o autoritarismo e a imbecilidade reinantes eram basicamente atribuídos à ditadura militar. Agora temos aí os Poderes Legislativo e Judiciário funcionando plenamente – embora pessimamente –, mas o Febeapá de hoje não perde em nada para o dos tempos da ditadura. Uma das coisas é o intervencionismo do Estado em coisas que ele não tem nada que se meter na vida da gente. Temos um Estado que nos trata como incapazes de saber o que podemos e o que não podemos fazer. E nos impõe comportamentos imbecis que certas minorias gostam. O Estado laico tornou-se uma mentira. E pior: os princípios que querem impor a todo mundo não são da igreja majoritária. Religiões minoritárias impõem suas regras a todo mundo. Um exemplo que já cansei de citar: em Sorocaba, dois vereadores evangélicos “obri-
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garam” o prefeito a não referendar o projeto de lei, aprovado na Câmara, que oficializava 31 de outubro como Dia do Saci, ameaçando pular para a oposição. Para eles, mitologia é coisa do diabo. Dois vereadores impuseram sua vontade a uma grande maioria. Outro exemplo: no litoral norte de São Paulo, não me lembro onde, certa vez um prefeito mandou tirar a estátua de Iemanjá de uma praia, para conseguir o apoio de um vereador que via nela a representação de um culto satânico. Sorte que o povo viu e impediu. Fez o que todos deviam fazer: obrigar os cretinos a respeitar as religiões alheias. Enfim, o que vemos no Congresso Nacional, nas Assembleias Legislativas e nas Câmaras Municipais é isso: a minoria mandando na maioria. E presidentes, governadores e prefeitos aceitam essa dominação, com medo de perder dez por cento dos votos dos congressistas, que é mais ou menos a proporção desses religiosos. Os outros 90 por cento que se danem! Ora, acho que nesse caso vale um ulti-
mato da maioria, aos presidentes, governadores e prefeitos: se acatarem essa minoria, nós todos ficamos contra você. Pior é que os religiosos (nisso se incluem muitos católicos também) encaram certas coisas como se eles fossem vítimas. No caso da lei do aborto, tratam do assunto como se todas as mulheres que engravidassem fossem obrigadas a abortar. Ora... Sua religião é contra? Então não pratique isso. Ninguém é obrigado. Ah! no Febeapá tem os “não pode”: “não pode isso”, “não pode aquilo”. Pior é que os “não pode” se espalham. Um estado copia o outro, proibindo coisas que são questões individuais, ou práticas sociais, nunca questões de Estado. Agora cheguei ao “não pode” que me levou a escrever esta crônica. O deputado estadual Campos Machado, do PTB de São Paulo, fez um projeto de lei que proíbe a venda de bebidas alcoólicas em ambientes públicos. Isso inclui calçadas, praias, festa e feiras. Pior: essa aberração já foi aprovada nas comissões que decidem sobre a constitucionalidade e outras coisas. Falta ir a plenário e, se aprovado, vai ao governador para ser referendado. Certamente, a bancada evangélica vai aplaudir e aprovar esse projeto, pois ela é a favor de tudo que é proibição de coisas prazerosas. Beber cerveja em mesas na calçada? Jesus deve estar olhando lá de cima e amaldiçoando. Nas praias, nas feiras, nas festas... Como será que são as festas do ilustre deputado? Devem ser piores que velórios, pois neles sempre rola uma bebida. Imagino que ele goste é que fique todo mundo gritando “Aleluia, Senhor!”, e orando. Mas, chegando ao governador, ele vai vetar essa babaquice? Ah, o apoio dessa turma... Acho que vai gritar junto: “Aleluia, Senhor!”. E a vida em São Paulo vai ficando cada vez mais besta. Padrão talibã. Previno: não adianta mudar daqui. Outros estados copiarão ou o próprio governo federal ”federaliza” o “não pode”, talvez até radicalizando um pouco, para o mal de todos e infelicidade geral da Nação. F
MOUZAR BENEDITO, mineiro de Nova Resende, é geógrafo, jornalista e também sócio fundador da Sociedade dos Observadores de Saci (Sosaci).
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