Fórum 108

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108 ano11 março 2012

A crise das cidades Interesses imobiliários e a omissão do Poder Público fazem do planejamento urbano uma ficção no Brasil

A Bolívia e seus conflitos de território Os caras-pintadas do Fora Collor, 20 anos depois

1519-8952

no 108 R$ 8,90

issn


Fórum nasceu no 1o Fórum Social Mundial, quando a sociedade civil planetária disse “não” ao pensamento único. Desde lá, conta a história que vem sendo construída sem se render à lógica do mercado, pautando-se pelos interesses da sociedade e dos seus movimentos. Por isso, se tornou uma revista diferente. Uma revista que só publica aquilo em que acredita.

Fórum, orgulho de ser diferente

www.revistaforum.com.br


6 Entrevista Ermínia Maricato 11 A crise urbana no Brasil

O impeachment, 20 anos depois O desigual financiamento de campanhas Clacso - Lucio Magri Mulher e diversidade na mídia Terra e território na Bolívia Jornalismo em quadrinhos Envolverde: o novo líder da China O romantismo sem-vergonha de Wando

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Cartas

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Espaço Solidário

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Diversidade

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Direito

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Mundo do trabalho

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Nossa Estante

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Toques Musicais

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Penúltimas Palavras

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A questão urbana e a informação Esta edição de Fórum traz como tema principal a situação das cidades brasileiras,

que cada vez mais sofrem os efeitos do abandono do planejamento urbano. São locais que crescem de forma desordenada, atendendo quase tão somente aos interesses

do mercado imobiliário, que direciona para onde as cidades vão crescer e quais regiões serão atendidas pela infraestrutura do Poder Público. Financiadores de campanhas

eleitorais e sempre presentes nos círculos de tomada de decisão das administrações

públicas, esses agentes imobiliários têm ajudado a desenhar municípios cada vez mais segregados e excludentes, negando a uma parte da população direitos básicos, como o da moradia.

Assim, criam-se verdadeiros monstros urbanos, lugares desiguais em que a mobilidade é prejudicada, mesmo que sejam abertas vias e mais vias de fluxo de automóveis.

São espaços nos quais os pobres são expulsos para as franjas da cidade, e parte da elite tem a ilusão da segurança e da comodidade em condomínios fechados e shopping centers, espaços privados que se contrapõem aos espaços públicos e abertos que se tornam exíguos.

O arcabouço legal para que seja possível construir cidades mais democráticas e menos

desiguais já existe e é fruto de lutas de décadas, promovidas por movimentos de refor-

ma urbana. Mas, para tornar efetiva a legislação que envolve normas sofisticadas como o Estatuto das Cidades, é preciso mobilização. E, principalmente, informação.

A urbanista Ermínia Maricato, principal entrevistada desta edição, acredita que uma

das prioridades deveria ser combater o que ela chama de “analfabetismo urbanístico”, ou seja, desenvolver um trabalho educativo que permita difundir informações e fazer o debate público sobre uma questão que, como tantas outras, parece interditada

no Brasil, pelos mais diversos motivos e interesses. E as eleições municipais de 2012

poderiam ser um bom ponto de partida para destravar essa discussão. É o que se espera dos homens públicos e da sociedade em geral, que precisa acordar para o tema. Selo FSC

Publicação da Editora Publisher Brasil. Editor: Renato Rovai. Editor executivo: Glauco Faria. Edtora de arte: Carmem Machado. Colaboradores desta edição: Adriana Delorenzo, Alexandre de Maio, Alexandre Sampaio Ferraz, Carlos Carlos, Cynthia Semíramis, Idelber Avelar, Igor Carvalho, John Feffer, Julinho Bittencourt, Moriti Neto, Mouzar Benedito, Pedro Alexandre Sanches, Pedro Venceslau, Rodrigo Savazoni, Túlio Vianna, Vange Leonel e Wagner Pralon Mancuso. Ilustração de capa: Thiago Balbi sobre foto de Felipe Lange Borges (flickr.com/flborges) Revisão: Denise Gomide e Luis G. Fragoso. Estagiários: Camila Cassino e Carolina Rovai. Administrativo: Ligia Lima e Pâmela dos Santos. Representante comercial em Brasília: Joaquim Barroncas (61) 9972.0741. Publisher Brasil: Rua Senador César Lacerda Vergueiro, 73, Vila Madalena, São Paulo, SP, CEP 05435-060. Contatos com a redação: (11) 3813.1836, e-mail: redacao@revistaforum.com.br. Para assinar Fórum: assine@revistaforum.com.br, http://assine.revistaforum.com. br. Portal: www.revistaforum.com.br. Impressão e CtP: Bangraf. Distribuição: Fernando Chinaglia. Fórum Outro Mundo em Debate é uma revista inspirada no Fórum Social Mundial. Não é sua publicação oficial. A divulgação dos artigos publicados é autorizada. Agradecemos a citação da fonte. Matérias e artigos assinados são de responsabilidade de seus autores. Circulação desta edição: 10/03/2012 a 9/04/2012 Conselho Editorial: Adalberto Wodianer Marcondes (Agência Envolverde), Alipio Freire (jornalista), Artur Henrique dos Santos (CUT), Beatriz da Silva Cerqueira (Coordenadora do Sind-UTE/MG ), Cândido Castro Machado (Sindicato dos Bancários de Santa Cruz), Cândido Grzybowski (Ibase), Carlos Ramiro (Apeoesp), Claiton Mello (FBB), Eduardo Guimarães (Movimento dos Sem Mídia), Gustavo Petta (Conselho Nacional da Juventude), João Felício (CUT), Jorge Nazareno (Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco), Lúcia Stumpf (Coordenação dos Movimentos Sociais), Luiz Antonio Barbagli (Sinpro-SP), Luiz Gonzaga Belluzzo (economista e professor da Unicamp), Marcio Pochmann (economista e professor da Unicamp), Maria Aparecida Perez (educadora), Moacir Gadotti (Instituto Paulo Freire), Paul Singer (economista e professor da USP), Paulo Henrique Santos Fonseca (Sindicato dos Bancários de BH), Ricardo Patah (Sindicato dos Comerciários de São Paulo), Roberto Franklin de Leão (CNTE/CUT), Rodrigo Savazoni (Intervozes), Sérgio Haddad (Ação Educativa), Sergio Vaz (Cooperifa), Sueli Carneiro (Geledés), Vagner Freitas de Moraes (Contraf/CUT) e Wladimir Pomar (Instituto de Cooperação Internacional). março de 2012

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China e o novo centro dinâmico (edição 105) O problema é que a China não conta a história de um novo centro, mas sim de uma Oroboro, pois é a maior credora dos Estados Unidos. São dois bêbados se escorando um no outro – na hora em que um cair, o outro também vai ao chão. Rafael Monteiro

Terceirização do trabalho (edição 104) Interessante notar essa volatilidade do emprego terceirizado. Eu, como leiga, tinha o senso comum de que só aumentava, talvez intercalado com alguns momentos de estabilidade. Esses períodos de queda proporcional do emprego terceirizado teriam a ver mais com aumento do emprego não terceirizado, fazendo com que aquele tivesse uma proporção menor no total? Ou seria também decorrência de ações das empresas públicas, especialmente a Petrobras, que vêm sendo pressionadas pela CGU (?) a substituir os terceirizados? Eneida Melo

Pinheirinho: cenário de guerra em desocupação violenta (página eletrônica) Com um Judiciário corrupto que, com altíssimos salários, pasmem, desconsidera até uma decisão federal que foi contra a ação, temos que ver o nosso povo pardo e mulato refém de uma sociedade hipócrita e com os seus juízes desonestos... Eles (juízes) não são servidores públicos, nós, povo, é que servimos eles. Rogério

A Sony administra os sonhos de Martin Luther King (página eletrônica) É um absurdo infinito saber desse copyright. Estou chocada com essa demonstração de até aonde vai a ganância de alguns “seres humanos”. Bárbara Rocha

Se você quer saber como a gente sustenta boa parte da qualidade da revista que você lê, dê uma olhada nestas logomarcas

Sete teses sobre as ocupações de 2009 (edição 105) A meu ver, a primeira análise das ocupações realmente abrangente. O fim do fim da História, da democracia de representação e das fronteiras. Tecnologia ao lado das pessoas, e a compreensão da nova natureza da luta sendo travada. É isso mesmo. As ocupações representam a força da mudança, inevitável, mas sempre surpreendente. Christopher Amaral Paterson

Quem ganha com o vandalismo no samba? (página eletrônica) Havia um espírito de a plateia ir “curtir o desfile”. Havia o prazer de cantar um samba bonito, mesmo que fosse da concorrente, havia o prazer de ir antes às quadras para ver os ensaios das rivais e “curtir” as músicas. Isso vem se perdendo. Essas escolas ligadas às torcidas contribuem para isso. Mas um espírito cada vez mais competitivo por verbas públicas, um espírito que preza cada vez mais pela eficiência traz à avenida “sambas fast-food”, que ninguém se lembra mais depois do carnaval. Além disso, é preciso vender ingressos a um preço absurdo, ingressos que as classes populares compram cada vez menos, pois é mais barato ver pela tevê e aumentar a audiência das emissoras que pagam aí mais alguns milhões para a indústria do carnaval. Uma indústria, diga-se, que sobrevive por causa da criatividade do povo. Diferentemente de outros grandes espetáculos, no carnaval não há nenhum grande artista (a não ser os artistas de sempre, que a grande mídia usa por questões de audiência, mas que não são os responsáveis por fazer o carnaval acontecer), não se pode apontar um “responsável”, um “diretor”, um “ator principal”, pois esses papeis cabem ao povo. Por isso, acho que as escolas de time seriam muito mais interessantes dentro dos estádios.

Essas entidades nos apoiam de diferentes maneiras, mas principalmente com assinaturas coletivas da revista. Se você faz parte de uma entidade que acredita na importância de construir veículos independentes, nos procure, solicite uma tabela e paute na sua diretoria o debate para colocar seu nome aqui, entre os que apoiam a Fórum. Fone: (11) 3813-1836 ou comercial@publisherbrasil.com.br.

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Na Bahia, Ecofolia Solidária garante limpeza e preservação no carnaval Para apoiar os catadores de material reciclável durante o carnaval, a Incubadora de Empreendimentos Solidários (Incuba) da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), em parceria com o Complexo Cooperativo de Reciclagem da Bahia (CCRB), realiza o “Ecofolia Solidária: o trabalho decente preserva o meio ambiente”. Neste ano, nos circuitos carnavalescos, grandes quantidades de lixo foram encontradas nos primeiros dias após a folia. Nas ruas, o projeto cumpriu o proposto e atingiu a meta de 65 toneladas de resíduos coletados durante a festa, pouco acima das 63 em 2011. O projeto tem como eixos o combate ao trabalho infantil, a melhoria das condições de trabalho dos catadores avulsos e cooperados e a redução dos impactos ambientais causados pelo descarte inadequado dos resíduos sólidos gerados durante a festa. A coordenadora da Incuba, Ronalda Barreto, destaca que a atividade dos catadores representa uma alternativa de sobrevivência e contribui diretamente para o fortalecimento da preservação do meio ambiente. Ela diz, entretanto, que os trabalhadores, em geral, executam as

atividades sem as devidas condições de trabalho, não utilizam equipamentos de proteção individual (EPIs), submetendo-se aos riscos inerentes à coleta. Executado por centrais de apoio aos catadores, montado em bairros de Salvador, bem como no centro antigo, o Ecofolia ocorre durante os sete dias de carnaval. Cada central é equipada com computadores, balanças e prensas, para que os locais tenham condições adequadas para recebimento do material reciclável. Os catadores recebem três refeições diárias, água, fardamento e EPIs, como luvas, botas e protetor auricular. Encontros de formação, nos quais são abordados temas como educação ambiental, políticas públicas de resíduos sólidos, economia solidária e combate ao trabalho infantil, também estão entre as atividades do Ecofolia Solidária. “Essas intervenções educativas são importantes na assistência aos catadores porque os ajudam a entender melhor o trabalho. Esses profissionais têm um papel fundamental no equilíbrio do meio ambiente”, pondera Joilson Santana, presidente da Cooperativa de Coleta Seletiva Processamento de Plástico e Proteção Ambiental (Camapet), que integra a CCRB. O projeto Ecofolia Solidária tem o apoio do Governo Estadual da Bahia, por meio do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza (Funcep), vinculado à Casa Civil, e das Secretarias do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte (Setre), de Desenvolvimento Urbano (Sedur), do Meio Ambiente (Sema) e de Desenvolvimento Social e de Combate à Pobreza (Sedes), além das companhias de Desenvolvimento Urbano (Conder) e de Processamento de Dados (Prodeb).

divulGaÇÃo

Câmara de Belém do Pará aprova projeto de economia solidária Em 6 de fevereiro, a Câmara Municipal de Belém (PA) aprovou, por unanimidade, o projeto de lei de autoria do vereador Otávio Pinheiro (PT), que institui na cidade o Programa de Economia Solidária. De acordo com o autor, a criação do projeto teve a contribuição dos movimentos sociais em Belém e prevê assessoria aos empreendimentos desde o processo inicial de formação até depois de estruturados, bem como incentivo à criação de bancos populares, além do intercâmbio entre campo e cidade na área de abastecimento de consumo. “O próximo passo é sensibilizar o prefeito Duciomar Costa (PTB) para que ele possa sancionar o projeto e assim efetivar a economia solidária como política pública”, comenta Otávio Pinheiro. A lei, se sancionada pelo prefeito da capital paraense, irá beneficiar os setores mais carentes da sociedade, como feirantes, lavadores de carros, micro produtores, vendedores ambulantes, entre outros. O projeto institui, ainda, que a administração municipal compre 30% da produção dos itens de economia solidária. Dessa maneira, os empreendimentos solidários passam a ter um diálogo formal com o município. Assim, adquirem caráter legal para comercialização de produtos.

Trajetória Foi em 15 de março de 2011 que a tramitação do projeto de economia solidária começou na Câmara Municipal de Belém. Na ocasião, uma sessão especial – proposta pelo próprio Otávio Pinheiro – tratou do tema. Gercina Araújo, representando o Fórum Paraense, e João Claudio Arroyo, representando o Fórum Brasileiro de Economia

Solidária, entregaram Projeto de lei municipal de Ecosol para a cidade. A proposta teve como inspiração a lei municipal de Londrina, no Paraná, que se baseia numa peça jurídica articuladora de vários instrumentos de participação popular. O destaque é a transversalidade da proposta, que atravessa outras políticas públicas, principalmente a de educação, e se utiliza de ferramendivulGaÇÃo tas como conselho municipal, centro público municipal e acesso ao crédito. Lindomar Silva, secretário executivo da Cáritas Norte 2, avalia que, com a aprovação do projeto, sendo instituído como política pública, a economia solidária torna-se mediadora entre o município e a sociedade. “O projeto fará parte do planejamento municipal no combate à pobreza e legitima os empreendimentos solidários e movimentos que atuam na promoção da economia solidária”, diz.

divulgação solidária – A Fórum dedica este espaço à

divulgação de iniciativas ligadas à economia solidária. Se você participa ou promove algum tipo de empreendimento relacionado ao comércio justo e solidário, entre em contato conosco para divulgá-lo. março de 2012

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Cidades em crise Os interesses do capital imobiliário e a omissão do Poder Público fazem com que o planejamento urbano seja relegado a um segundo plano, enquanto o direito à moradia é negado a uma boa parte da população por Adriana Delorenzo, Gisele Brito e Glauco Faria

“N O chamado vetor sudoeste de São Paulo concentra as atividades do setor terciário de elevado capital

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Nos anos 1990, a região entre a Avenida Berrini e a Marginal Pinheiros fez parte da expansão econômica da cidade para o chamado vetor Sudoeste, que abriga atividades do setor terciário de elevado capital. Maciços investimentos foram feitos para melhorar a infraestrutura, como a construção do complexo Ayrton Senna, dos túneis Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e Jânio Quadros e da Avenida Águas Espraiadas, na gestão Paulo Maluf (1993-1996). Mas as pessoas que moravam ali não foram, em nenhum momento, prioridade. A urbanista Mariana Fix descreve no li-

Gabriel de Andrade Fernandes

inguém esperava que o local onde foi fundado o Jardim Edith, antes do início dos anos 1970, seria, um dia, uma das áreas mais disputadas da cidade.” A reflexão é de Gerôncio Henrique Neto, 69 anos, líder comunitário de uma favela que foi demolida por conta da Operação Urbana Água Espraiada, na zona Sul de São Paulo. As casas modestas, na maioria de alvenaria, ficavam em uma das áreas que, no início da ocupação, em 1973, estava longe de ser o que hoje é uma das áreas mais valorizadas da capital paulista.

vro Parceiros da Exclusão (Boitempo Editorial) como quase todas as moradias foram destruídas na área em que Gerôncio, um dos 12 mil moradores que o Jardim Edith chegou a ter em 1995, se instalou (ver boxe na pág. 8). Além de inúmeras irregularidades no processo de remoção, parte dos antigos moradores foi parar em áreas de mananciais (muitas vezes com incentivo de agentes do Poder Público e de construtoras) como a da represa Billings, onde se ergueu o Jardim Edith II, em uma antiga ocupação clandestina. O cenário em 1996 era desolador: “Com as casas alagadas, tapumes de madeira faziam o papel de ponte e as crianças passeavam com água pela cintura”, detalha a urbanista. A formação de novos centros financeiros, que ignoram direitos básicos da maioria dos cidadãos, como no exemplo já aqui descrito, mostram um perverso processo que envolve o capital imobiliário e parte do Poder Público como sócios na construção de uma cidade segregada, fenômeno que não se restringe


apenas a São Paulo. E é uma segregação que se torna mais evidente na medida em que as terras disponíveis para a construção de empreendimentos imobiliários ficam escassas. Nessa corrida em busca do novo ouro do mercado, lotes que antes abrigavam famílias de baixa renda têm sido requeridos judicialmente, e as decisões sempre tendem para o lado do proprietário, mesmo que ele seja inadim-

Para Whitaker, há uma relação estreita entre a ação do Poder Público no espaço urbano e o aprofundamento das desigualdades. “Em qualquer cidade capitalista, o preço fundiário e imobiliário é decorrente do valor de localização, que é constituído pela infraestrutura urbana que ele abriga – mobilidade, saneamento e etc. –, que fazem com que um lugar seja mais urbano em relação aos outros”, explica. “A con-

plente com tributos ou que sua propriedade não cumpra a função social preconizada pela Constituição Federal. O caso da violenta reintegração de posse realizada no Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), foi emblemático nesse sentido. “O Estado brasileiro é patrimonialista, o Raymundo Faoro já mostrou isso e a Ermínia [Maricato] vem chamando a atenção para esse fato há muitos anos. Ele legitima quem tem patrimônio e, principalmente, quem tem patrimônio fundiário, quem tem terra. Os donos do poder e os donos da terra são os mesmos”, analisa Kazuo Nakano, urbanista do Instituto Pólis. “Diante disso, como fazer com que o Estado regule a terra em prol do interesse público, se vai atingir interesses privados? E existe a lógica eleitoral. Quem financia a campanha a vereador, prefeito, deputado, governador, presidente da República? Desde os anos 1960, são as grandes empreiteiras, que dependem de obras públicas; hoje, é o mercado imobiliário formal, os órgãos das incorporadoras, são as empresas de ônibus, as empresas de lixo. Esses caras financiam as campanhas e, quando o candidato ganha, já assume amarrado.” O processo de reprodução de cidades desiguais, no qual cada vez mais as pessoas com menor renda vão para as áreas mais distantes dos centros, tem se intensificado no Brasil, indo além das grandes metrópoles, onde a desigualdade se faz mais visível. “Metade da população brasileira mora na informalidade, 20% em favelas. E as pequenas e médias cidades do País estão reproduzindo exatamente o mesmo modelo”, diz João Sette Whitaker Ferreira, coordenador do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos (LabHab) da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP), e autor do livro O mito da cidade-global: o papel da ideologia na produção do espaço urbano (Ed. Vozes).

tradição é que quem produz a infraestrutura que faz aumentar o preço da terra é o Estado, é resultado de investimento social, público. E esse investimento público que gera valorização é apropriado individualmente, no que é chamado de mais-valia urbana. Apropriado pelo sujeito que tem dinheiro, pelas elites.” “Terra urbana é uma riqueza social produzida coletivamente”, explica Nakano. “Quando um grupo minoritário se apropria disso sem dar nada de qualidade em troca, há o ganho especulativo”, diz ele, que defende a regulação para evitar que a terra esteja quase que exclusivamente a serviço da especulação imobiliária. “Mas, no Brasil, a gente nunca conseguiu isso [regulação], porque nossa urbanização sempre foi conduzida pelo mercado de terras, seja o formal ou o informal. Essa forma de urbanização que a gente tem no Brasil, conduzida pelo mercado e com grande omissão do Poder Público, fez com que a especulação da terra fosse prevalente e estruturante nas nossas cidades.”

As administrações públicas praticamente abrem mão do planejamento em troca das inúmeras concessões feitas ao mercado imobiliário, que acaba de fato sendo o responsável pelo arranjo urbano

O crescimento econômico e o capital imobiliário

Hoje, diversos municípios do Brasil experimentam um boom imobiliário, com os preços do metro quadrado, seja para alugar ou comprar, subindo muito acima da inflação e também em comparação com outros bens. Em São Paulo, por exemplo, o custo do metro quadrado de imóveis teve alta de 26,4% nos últimos 12 meses, conforme o índice FipeZap. Além dos movimentos especulativos, o crescimento econômico também tem relação com esse quadro. “A expansão econômica tem um lado positivo, mas tem um lado negativo para a gestão urbana”, explica Vladimir Fernandes Maciel, economista especializado em Economia Regional e Urbana da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Assim como Whi-

taker Ferreira, ele ressalta que, atualmente, cidades pequenas e médias, que não passaram pelo ciclo de urbanização como as grandes em meados dos anos 1950, vivem uma expansão urbana acelerada. Maciel acredita que “estamos multiplicando o caos, que, antes, era concentrado nas grandes cidades”. “A desigualdade vai se perpetuando. É como se essas cidades olhassem para São Paulo, Rio de Janeiro e outras e dissessem ‘eu serei vocês amanhã’”, comenta. O economista destaca o processo de expansão urbana que vem ocorrendo no Norte, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil. “Elas repetem o histórico: migração em função da criação de canteiros de obras, que geram empregos. Mas a cidade não dá conta de atender a todas essas pessoas. São cidades sem infraestrutura e saneamento e com transporte e habitação precários”, explica. “Com a migração acelerada e baixos estoques de terra, a população mais pobre é jogada para áreas inadequadas, em habitações precárias.” Mas a expansão desordenada das cidades não pode ser debitada apenas na conta do crescimento econômico. Outro fator crucial é o fato de as administrações públicas praticamente abrirem mão do planejamento em troca das inúmeras concessões feitas ao mercado imobiliário, que acaba de fato sendo o responsável pelo arranjo urbano. No caso de São Paulo, leis de zoneamento chegam a ser modificadas para que novas edificações sejam construídas e comercializadas. Em dezembro, a Câmara Municipal aprovou o Projeto de Lei 425/11, do prefeito Gilberto Kassab (PSD), que permite à administração emitir 500 mil Certi�icados de Potencial Com os Cepacs, as construtoras Adicional de Construção podem fazer (Cepacs) na Operação Urbana prédios acima Faria Lima, na região de Pidos limites esnheiros. Ou seja, no chamado tipulados para vetor sudoeste da capital. a região pelo “Aquela região [Pinheiros] zoneamento urbano. é a que mais concentrou recursos da operação urbana na gestão Maluf, às custas de muito investimento público se tornou um ‘filé-mignon’. Água Espraiada é a mesma coisa, foram bilhões. É a maneira de continuar financiando essa aparente modernidade”, sustenta Mariana Fix, também autora de Cidade Global - Fundamentos Financeiros de uma Miragem (Boitempo Editorial), que ressalta como esse deslocamento de centralidades em São Paulo e em outros lugares se insere nas ações realizadas por um mercado imobiliário concentrado, usando-se o instrumento das operações urbanas. “Essas operações começam no início março de 2012

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dos anos 1990 e, desde então, são apresentadas como modelos em outras cidades. Mesmo aquelas sem mercado implantavam a operação urbana, uma espécie de fórmula mágica”, detalha. “É uma maneira encontrada por governos que não dão conta de fazer um planejamento mais amplo, usando o apelo de que a operação vai ser financiada pelo setor privado. Só que a prefeitura se torna um agente que tem como função desbloquear a entrada do mercado imobiliário. Se tem favela, vai expulsar; se tem terrenos muito pequenos, vai agir no que for necessário para que uma dinâmica imobiliária seja iniciada.” Além das operações urbanas, outras transformações importantes fizeram com que o panorama urbano fosse modificado em função de interesses privados. A financeirização da economia, a internacionalização do setor imobiliário e a abertura do capital de empreendedoras na bolsa de valores modificaram o perfil do mercado, especialmente em São Paulo. “A abertura de capital na bolsa de valores, ocorrida entre 2005 e 2007, trouxe uma gran-

de quantidade de recursos para empresas que mantinham sua atividade concentrada na região Sudeste. Podemos dizer que foi uma captação de recursos bastante considerável. O que essas empresas conseguiram captar no ano de 2007 significou praticamente o que a poupança estava destinando ao crédito habitacional”, argumenta o geógrafo Sávio Augusto de Freitas Miele. Segundo ele, os IPOs (oferta pública de ações, sigla em inglês) tiveram um impacto considerável nos mercados das grandes cidades, pois a quantidade de novos lançamentos e a compra de terrenos para formação de land banks ou “bancos de terrenos” estava atrelada à necessidade de gerar resultados aos investidores. A partir daquele momento, como não estavam claros quais os critérios que o mercado utilizaria para investir nas empresas do ramo, o primeiro parâmetro que as próprias empresas passaram a oferecer como maneira de mostrar solidez foi o banco de terrenos. “Então, tínhamos empresas capitalizadas e com um banco de terrenos para se construir,

Os heróis da resistência do Jardim Edith Gerôncio Henrique Neto ainda lembra de quando os moradores do Jardim Edith chegaram para construir suas casas no local, que depois seria alvo da Operação Urbana Água Espraiada. Segundo ele, era um grande brejo coberto de lama e completamente vulnerável a alagamentos. Não foi à toa que serviu para abrigar uma população pobre, em grande parte composta por migrantes nordestinos que não tinham acesso a áreas mais bem infraestruturadas e, consequentemente, mais valorizadas da cidade. “Ali dava enchente de 2 metros d’água. Já cheguei a ficar 15 dias sem poder voltar para casa com minha família por causa da cheia. Era um barrão mesmo. O que dava muito ali era preá, cobra. Ninguém imaginava que ia virar o que virou. Mas depois que valorizou, veio o interesse imobiliário. Naquela área já construíram prédio em tudo. O único terreno que tem é esse do Jardim Edith”, conta Gerôncio. Ele faz referência às inúmeras moradias que existiam ali antes do início da Operação Água Espraiada. Depois de uma intensa luta, em 2001, os moradores conquistaram o direito de consolidar a área da ocupação como Zona de Interesse Social (Zeis), o que garantiria, conforme a lei, a construção de moradias de interesse social e a permanência da antiga população no local. Mas, apesar da vitória expressa na legislação, a luta precisava continuar. “Vinham fiscais de Justiça falsos, apresentando ordem sem ser da Justiça”, relata Gerôncio. “Eles ofereciam R$ 1,5 mil. Se quisesse, bem; se não, eles tiravam as coisas e passavam por cima. Foi um absurdo o que aconteceu.” “Tiraram por três vezes a Zeis do Jardim Edith, mas conseguimos recolocar. Em 2005, teve um incêndio, saíram várias famílias, recebendo R$ 5 mil. Depois, em 2007, outro incêndio. Foram tirando aquelas famílias. O CDHU me ofereceu 508 unidades no Campo Limpo em troca do Jardim Edith. Mas aí eu disse: ‘Peraí, tem uma lei que garante a gente ficar no local.’ Por que me ofereceram essas unidades se tem gente que está há 15 anos cadastrada esperando apartamento? Porque o interesse imobiliário é muito grande. Mas estamos conseguindo.” Hoje, além das Habitações de Interesse Social (HIS), estão sendo construídos no local uma área verde, um posto de saúde, creche e um restaurante-escola. As primeiras unidades devem ser entregues ainda neste ano; 274 famílias estão cadastradas e recebem R$ 500 reais de bolsa-aluguel, desde 2001, aguardando a conclusão dos apartamentos para retornar à área conquistada. “Ninguém acreditava que nós íamos conseguir fazer habitação popular naquele local. Um vereador disse pra mim: ‘O mercado imobiliário está acima de tudo, até acima da lei’, mas eu disse pra ele que ia conseguir, se existe a lei, é para se cumprir.”

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e o ritmo de crescimento foi grande”, relata Miele. “Outro momento importante, resultado desse processo, foi o que podemos chamar de expansão regional, ou seja, quando as empresas do Sudeste começaram a ter investimentos em outras capitais do Sul, Norte/Nordeste, Centro-Oeste, quando só o mercado de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais não sustentariam as necessidades de resultados que elas precisavam. Essas incursões foram feitas por meio de parcerias com empresas locais, muitas vezes sem cautela, trazendo dificuldades para algumas grandes empresas.” Foi nessa fase, graças à captação de recursos por meio da abertura de capital na bolsa, que ocorreram as fusões e compra e venda de empresas, com a presença de grandes fundos internacionais.

A questão da habitação

Alguns dados mostram como a especulação imobiliária no Brasil constitui, na prática, um problema social. De acordo com o Censo de 2010, realizado pelo Instituto Nacional de Geografia e Estatística (IBGE), o número de domicílios vagos no país é maior que o déficit habitacional, já se excluindo dessa conta residências de ocupação ocasional ou casas em que os moradores estavam ausentes de forma temporária. No país, há 6,07 milhões de domicílios vagos, o que superaria em mais de 200 mil o número de habitações que precisariam ser construídas para famílias que não residem hoje em locais considerados adequados: 5,8 milhões. “O direito à propriedade é considerado como absoluto, mas só vai até o ponto em que ela [propriedade] cumpre a função social”, lembra Mariana Fix. Existe um arcabouço legal que regulamenta a questão, vinculando-o aos planos diretores e à função do terreno em determinadas regiões da cidade. Há instrumentos como o IPTU progressivo e o direito de preempção, que também consta no Estatuto das Cidades, e confere, em determinadas situações, a preferência ao Poder Público para comprar um imóvel que esteja sendo vendido pelo proprietário a outra pessoa. Ainda assim, o direito à propriedade é tido pela sociedade em geral (e até mesmo por quem não tem posse alguma) como quase intocável. Essa noção de “propriedade inviolável” também se relaciona ao anseio pela casa própria, ignorando-se ou subestimando outras formas de moradia. Mariana Fix analisa como essa ideia se tornou parte do chamado “sonho americano”. “Nos EUA, a partir dos anos 1920, 1930, houve uma série de


campanhas feitas pelos agentes do mercado imobiliário para que as pessoas passassem a almejar a casa própria, associando-a à felicidade. Foi realizada uma campanha de marketing, junto com a promoção do sistema de hipotecas para moradia, e a população acabou sendo convencida dessa alternativa.”

imóvel é uma maneira de estar inserido no sistema econômico.” Desde essa experiência do BNH, o governo federal havia se ausentado da função de elaborar políticas públicas de amplo alcance na área de Habitação, o que se alterou com a instituição do Minha Casa, Minha Vida, em

De acordo com Fix, campanhas nacionais da época propagavam a ideologia da casa própria e combatiam alternativas como a habitação multifamiliar e conjuntos habitacionais que fossem produzidos pelo Estado. Tal ideal passaria a dominar o discurso dos dois principais partidos estadunidenses, o Democrata e o Republicano. Mais tarde, isso passou a constituir um traço cultural, mas tem também relação com a falta de uma política pública de aluguel, como acontece em alguns países da Europa, e de concessão de uso. A cultura da casa própria também passou a fazer parte do ideário brasileiro, que tem uma trajetória de exclusão e violência na área de Habitação. “No Brasil, a primeira moradia do trabalhador recém-liberto foram os cortiços, ele passa a morar na ilegalidade, ser expulso, como no emblemático caso Cabeça de Porco, no Rio de Janeiro, em 1893. E, depois, tem o surgimento das favelas, sempre refletindo uma situação de muita insegurança para os moradores, ou seja, existe um lastro, um problema real para que se coloque a questão da casa própria”, explica Fix. O próprio Estado passou a adotar como modelo e única opção de política pública a oferta da casa própria, durante o regime militar, que pretendia resguardar a estabilidade social e a ordem. A esse respeito, Fix lembra uma declaração do então ministro do Planejamento Roberto Campos, quando da instituição do Banco Nacional de Habitação (BNH). “O proprietário da casa própria pensa duas vezes antes de se meter em arruaças ou depredar propriedades alheias e torna-se um aliado da ordem”, dizia Campos. “O BNH é uma política pública, uma maneira de acesso à cidade legal que implica uma garantia para o morador de não ser expulso. O [sociólogo] Boaventura de Sousa Santos comenta que a legalidade em relação à posse da terra repercute sobre todas as relações sociais, já que o morador ilegal tem a dificuldade do endereço, de crédito etc. A propriedade legal de um

2009. “Compreende-se que a população queira a casa própria, mas o Minha Casa, Minha Vida é um reforço à ideologia da casa própria, fechando as portas para outras alternativas. Esse é um tipo de solução de mercado convencional”, acredita Mariana Fix. O programa foi instituído após a crise econômico-financeira de 2008/2009 e era uma ação que se inseria em uma série de medidas de caráter anticíclico do governo, com objetivos que iam além da questão habitacional, como a geração de empregos. Mas foi uma grande oportunidade para as empresas do setor imobiliário ao incorporar pessoas que antes estavam fora do circuito de compra e venda de imóveis. “Algumas dessas construtoras que haviam aberto seu capital na bolsa viram aí a possibilidade de trabalhar com os segmentos de menor renda, criando braços das empresas ou mesmo comprando empresas que já atendiam de alguma maneira esses setores”, analisa Sávio Augusto de Freitas Miele. O programa federal também tem limites para solucionar a questão do déficit habitacional na faixa mais baixa de renda, na qual o problema é mais grave. Miele cita alguns dados que mostram essa realidade. “A partir dos dados sobre o déficit habitacional e do próprio programa [nas suas duas fases], observa-se que a maior parte das famílias atendidas são aquelas que possuem renda entre três e dez salários mínimos, o que representa cerca de 15% do déficit habitacional do País. A faixa que comporta as famílias com renda entre zero e três são as menos atendidas e representa cerca de 85% do déficit habitacional”, aponta. “O nosso drama no Brasil: a gente instituiu esse conjunto de legislação para a política urbana e política habitacional, mas isso ainda está no papel. Há sim estruturas institucionais, no entanto, todo esse aparato incidiu muito pouco nessa lógica de formação de preço da terra e do imóvel e nos canais tradicionais da terra urbanizada”, pontua Kazuo

O próprio Estado passa a adotar como modelo e única opção de política pública a oferta da casa própria, durante o regime militar, que pretendia resguardar a estabilidade social e a ordem

Nakano, que alerta para os efeitos futuros da falta de planejamento urbano. “As políticas de produção habitacional e produção de terra urbana não se articulam. Vide o Minha Casa, Minha Vida, você tem toda uma infraestrutura de financiamento, de construção, independente de um processo de planejamento urbano. Muitas moradias estão sendo construídas na periferia, fora da cidade. E isso tem consequências, assim como a gente viu no BNH”, adverte. “Daqui a 20 anos, estaremos falando as mesmas coisas que a gente falava com o BNH. Conjuntos segregados, intensificando o crescimento desordenado e desarticulado da cidade, gerando especulação com a terra nas periferias da cidade. Porque não conseguimos colocar em prática que construir moradia é construir cidades adequadas.” F

São Paulo, a cidade-global da América Latina? Com prédios altíssimos, modernos e envidraçados, somados a um dos maiores PIBs entre as cidades do continente latino-americano, São Paulo disputa o posto de ser uma cidade-global. Afinal, a capital paulista também tem o seu World Trade Center. A imagem da cidade-global, segundo o urbanista João Sette Whitaker Ferreira, é reforçada na mídia, no mercado imobiliário e nos meios acadêmicos governamentais como um modelo de sucesso a ser seguido. “Trata-se de uma construção ideológica, que visa a promover, antes de tudo, os interesses específicos dos setores beneficiados com a rentabilidade imobiliária que as ‘ilhas de primeiro mundo’ geradas pelo discurso da ‘cidade-global’ propiciam.” Essa ideia, conforme o pesquisador, justifica o discurso de governantes que investem em áreas nobres da capital, enquanto a periferia cresce na exclusão. “Cria-se o discurso de que a cidade precisa de vários centros de convenção de eventos, um aeroporto ultramoderno, shoppings, prédios de alta tecnologia, tudo isso para que ela se torne uma cidade-global. Ou seja: a necessidade de muito investimento público para atrair mais investimento privado”, afirma. Ele ainda critica os últimos gestores da cidade: “O governo do Serra/Kassab retomou sem constrangimento, com toda a desfaçatez, investimentos concentrados para favorecer o mercado imobiliário. PSDB e Kassab são identificados com as elites e reproduzem um governo de elite em um Estado elitista, criando um apartheid social escamoteado.” março de 2012

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Um túnel e o destino de 8 mil famílias texto e foto por Igor Carvalho

“E

u não sei para aonde irei, se me tirarem daqui”. A preocupação é do seo José Henrique, pai de uma das 8.395 famílias que serão removidas de suas moradias para a construção de um parque linear na beira do córrego Água Espraiada. Próximo ao parque, será construído, também, um túnel de 2.350 metros, precedido de uma via segregada de 750 metros. Só para essa obra, está prevista a desapropriação de 700 casas, segundo o engenheiro José Orlando, representante dos moradores da área em que será construído o túnel. A Lei nº 13.260, de 28 de dezembro de 2001, aprovou a Operação Urbana Consorciada Água Espraiada, incluindo uma obra que tinha como principal intuito ligar a Av. Dr. Lino de Moraes Leme até a Rodovia dos Imigrantes. O projeto era extenso e previa, ainda, a construção de ciclovia, viadutos, pontes e também das unidades de Habitação de Interesse Social. Passaram-se quase dez anos para que fossem promovidas alterações na lei, o que ocorreu em 4 de julho de 2011.

José Orlando presenciou a votação na Câmara Municipal de São Paulo que determinou as modificações. “Foi uma vergonha, estávamos acampados havia 32 dias na Câmara, protestando contra a alteração da lei. No último dia antes do recesso, no fim da noite, depois de uma estranha paralisação, eles votaram.” Dos 52 vereadores presentes para a votação, 35 foram a favor da mudança na lei, que determinava a construção do túnel, que não estava previsto na lei de 2001. Há 15 favelas que se formaram na beira do córrego Água Espraiada, e todas essas pessoas serão removidas de suas moradias para que a obra tenha seu início. Porém, na outra ponta desse imbróglio, está uma determinação, prevista na lei, de que a prefeitura deve fornecer moradia aos desalojados. A assessoria de imprensa da SP Obras, órgão vinculado à Secretaria de Infraestrutura Urbana e Obras – que tem como objetivo executar programas, projetos e obras definidos pela administração municipal –, alega que “o Cades [Conselho Municipal do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável] concedeu licença para as obras de reassentamento de 4 mil famílias – das 8.395 famílias previstas para se-

rem atendidas – e, agora, o projeto está sendo finalizado para que as obras sejam iniciadas”. Alguns moradores, como José Henrique, temem que sejam removidos de suas moradias antes que as habitações populares estejam prontas. Muitos não vão ser contemplados, e isso os preocupa. “Foi cadastrada uma parte da população, não a totalidade. Quem é cadastrado tem um cartão magnético. Como vou acreditar neles, se não começaram nenhuma das 45 obras que vão abrigar as famílias desalojadas?” Em sua resposta, a SP Obras não fala diretamente sobre o assunto, mas deixa a entender o que deve acontecer. “As famílias aguardarão em aluguel social a entrega das moradias definitivas.”

Desvalorização dos imóveis e falta de justificativa irritam moradores

Na região inserida no projeto de lei para a construção do túnel, a preocupação é similar. Alguns moradores estão sendo procurados por uma empresa que diz representar uma empreiteira que vai realizar obras na região, para negociarem seus imóveis que serão demolidos. Para João Salgueiro, 74 anos, morador da região há 30, “essa obra é um loucura, antes passava só na região do córrego, estava certo, desde que se dê moradia ao pessoal da favela, mas nesse novo projeto [túnel], tudo é bagunçado. Tenho problemas sérios de saúde, fiz oito operações. Eu mesmo levantei minha casa e agora vou ter que me desfazer dela”. José Orlando repercute o que tem escutado dos moradores, nas reuniões do movimento. “Quando você liga nessa empresa, eles fazem propostas escabrosas, tem imóveis valiosos aqui que estão sendo desvalorizados.” Até o fechamento desta matéria, a Prefeitura de São Paulo, por meio de contato com a SP Obras, não apresentou um estudo de fluxo de tráfego que justifique a construção do túnel na região. F José Henrique: “Eu não sei para aonde irei, se me tirarem daqui”.

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O panorama das cidades doentes

fotos: Adriana Delorenzo

A urbanista Ermínia Maricato fala sobre sua experiência na Administração Pública, a força do capital imobiliário e por que o Estatuto das Cidades e outros instrumentos legais não são aplicados para beneficiar a população mais pobre por Adriana Delorenzo e Glauco Faria Fórum – A senhora participou de duas experiências marcantes no Poder Público: a primeira, como secretária do Desenvolvimento Urbano da prefeitura de São Paulo, na gestão de Luiza Erundina (1989-1992); a segunda, no Ministério das Cidades. Como situar essas duas experiências e os dois contextos na discussão sobre as cidades no Brasil?

Ermínia Maricato – Eu estava na universidade, no movimento de reforma urbana, quando dava assessoria voluntária para a primeira bancada de vereadores do PT. Vários profissionais davam assessoria, como o Firmino Fecchio, que depois foi para a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, com o Paulo Vanucchi, e outros profissionais. E dizer que o técnico despolitiza, não concordo com isso, acho que existe um técnico adequado à posição política. E não é verdade que o plano da política é absoluto. Quer dizer, se você tem uma proposta para a cidade, tem que entender como implantar, e, principalmente, se não tem a seu favor a corrente do rio, precisa conhecer muito pra conseguir implantar uma proposta que vá em direção diferente. Tem essa discussão de que a Dilma seria técnica, e não política. Acho que ela é muito técnica e competente, e é de esquerda. Se ela está conseguindo fazer as coisas, é outra discussão. Éramos, desde o nascimento do PT, técnicos que conseguíamos – como digo no livro O Impasse da política urbana no Brasil (Editora

Vozes) – fazer propostas, o que, para um técnico, era um sonho. E lá a gente tinha essa diversidade, uma cultura interdisciplinar, aprendi demais com o pessoal de transportes, de trânsito, com o pessoal de meio ambiente, com as pessoas do saneamento... Eu estava muito feliz, porque nós tínhamos uma discussão que era política e, ao mesmo tempo, especializada. E ali se reunia todo mundo, de todos os cantos, que tinha uma utopia e não conseguia realizar, pessoas que trabalhavam em órgãos de governo, dentro do Estado e tínhamos aquela ideia de que tudo podia ser mais barato, podia ser melhor, mais sustentável, mais democrático, em cada uma das nossas especialidades. Conheci a [Luiza] Erundina nesse período, e ela me convidou para ser secretária. Houve uma disputa complicada... O município é de fato muito mais difícil do que o próprio governo federal – não para o presidente, provavelmente –, porque você está no local onde falta moradia, não está elaborando uma discussão que vai passar pelo Congresso lá em cima, e a Erundina, no movimento social, vinha de uma luta, da década de 1980, muito acirrada. Uma década que foi marcada primeiro pela contenção das políticas sociais; já tinha o rumo do neoliberalismo, sem ele estar explícito como ficou no Consenso de Washington em 1989. O mundo vinha da reestruturação produtiva do capitalismo, que o [David] Harvey nota, em 1973, como uma espécie de ano em que se tem março de 2012

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uma virada. O Brasil vinha de um PIB muito alto na década de 1970, mantido a essa altura principalmente pela construção civil, que construía muita moradia e infraestrutura pelo país todo. Havia também um movimento político extraordinário, que eram os movimentos urbanos, que na década de 1970 começam a se desenvolver, e depois tivemos as greves operárias. Havia o operário de um novo ciclo, concentrado no ABC, o declínio da ditadura e a emergência de uma sociedade civil que estava querendo abertura e formulava propostas. Ao mesmo tempo, as cidades iam piorando, as décadas de 1980 e 1990 foram terríveis para o destino das cidades. A década de 1970 também, porque o regime militar rebaixou salários, os ganhos da força de trabalho, embora, do ponto de vista da formulação da política urbana, ela era mais avançada até do que atualmente. Tinha uma agência nacional de transporte urbano, o setor de saneamento, de habitação, que foi reeditado no governo Lula. Fórum – Função de planejamento Estado que desapareceu durante o apogeu do neoliberalismo.

Maricato – Em termos de planejamento, o regime militar foi pródigo em fazer planos diretores, teve uma fábrica de planos diretores. Mas, na verdade, era uma coisa que não se implantava, também não era muito diferente do que é agora, quando temos essa superestrutura jurídica urbana e vemos que não se aplica. Um exemplo é o Pinheirinho, uma mostra de que o juiz pode fazer o que quiser com a lei, até desconhecer a legislação.

chegávamos éramos recebidos com um respeito impressionante. Houve uma volta por cima em relação àquela oposição que dizia que a gente era inexperiente e, na verdade, quando olho pra trás, acho que foi feita muita coisa, pelo menos na nossa área houve um reconhecimento internacional. A equipe era muito boa, o Nabil Bonduki era titular da Superintendência de Habitação de Interesse Social – que era uma espécie de apêndice da secretaria e se tornou um órgão central. Por quê? Porque o governo no Brasil desconhecia – e ainda desconhece – o ilegal, o informal, parece que favela é uma ocorrência menor. O próprio IBGE não mede, subdimensiona o número de pessoas que moram em habitações subnormais. E, no entanto, passam de 20 milhões segundo o IBGE, de fato, chega a quase 30, é um país todo que mora em favela e loteamentos clandestinos. Por que é que existia essa superintendência na Secretaria de Habitação? Porque as favelas pegavam fogo, muitas estavam na linha das obras, o órgão era um apêndice para lidar com os pobres, moradores de rua, favela, loteamentos ilegais, com as emergências. Enquanto não tinha emergência, ninguém ligava. Quais são as favelas que são despejadas hoje? Só as que estão em terra que têm valor de mercado. Fórum – Em São Paulo, isso foi feito em diversas gestões, na do Jânio Quadros, por exemplo...

Maricato – Nessas áreas valorizadas. E na periferia ele fazia urbanização. Já fui dar aulas em universidades de caráter conservador, onde os estudantes falavam: “Mas a Erundina ajudou os favelados a se consolidarem”. Então, há muito desconhecimento sobre as cidades brasileiras, sobre o urbano no Brasil. Muito. Minha esperança O governo no Brasil descoera que o Ministério das Cidanhecia – e ainda desconhece des fosse mudar esse quadro. – o ilegal, o informal, parece Não a curto prazo, porque não se muda isso a curto prazo. Acho que favela é uma ocorrência que a gente fez uma gestão muimenor. O próprio IBGE não to inovadora na cidade de São Paulo. Mas era muito cedo, realmede, subdimensiona o númente, para aquilo que fizemos.

mero de pessoas que moram em habitações subnormais

Quando Erundina me convidou, tive que inverter o trabalho da secretaria. As secretarias, as prefeituras no Brasil, são todas voltadas para a cidade legal, a cidade do mercado, e vínhamos de uma tradição acadêmica e ativista na cidade “ilegal”. Quería­mos trazer essa cidade para o centro da política urbana. E a Erundina, ninguém mais do que ela, tinha uma prática nessa área... Segurou um despejo, ela segurou, enfrentou a polícia. A nossa situação era muito difícil, a Câmara contra, a mídia toda contra, queríamos mudar as coisas, mas não tínhamos uma correlação de forças que nos ajudasse, e o próprio partido estava na direção também contrária em alguns momentos. Talvez se tivéssemos feito a aliança que alguns queriam, teríamos nos saído melhor, mas não me arrependo de nada do que fizemos. Fomos muito coerentes o tempo todo com tudo que a gente pregava, mas a vitória naquela eleição foi uma surpresa, todo mundo sabe disso, e cada um de nós vinha com muitos sonhos... Foi muito difícil mudar a máquina, implementar o que a gente queria. E é engraçado, passados dois, três anos do governo Erundina, onde

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Fórum – E depois, no Ministério das Cidades, que já era outro momento, como foi a experiência?

Maricato – Ainda em São Paulo, o Guiomar Matos, que era secretário de Obras, ensinava como o tamponamento de córregos era um desastre na história da cidade. E a gente aprendia e pensava: “Bom, mas então a marginal do rio é um erro”. Ocupar córrego, pelo Código Florestal, também é um erro. É incrível que muitas secretarias de Meio Ambiente deixem fazer asfalto em beira de rio e não deixam fazer moradia. Começamos a aprender uma série de coisas e o quanto era burocrática a nossa máquina pública. Por que era tão burocrática? Porque você tem uma ambiguidade na aplicação da lei. O [episódio do despejo no] Pinheirinho mostrou isso: há uma total arbitrariedade na aplicação da lei. Existem fraudes de registro no Brasil, é muito mais norma do que exceção. Há essa tensão na aplicação da lei, e é algo absolutamente contraditório. Imagine se levassem a sério a lei do zoneamento e o plano diretor? Em certos casos, se eu aplicar a lei de zoneamento, vai ser pior. Por exemplo: se existem quase 2 milhões de pessoas morando ilegalmente na área de proteção dos mananciais, onde você põe esse povo? O povo não evapora. Ele vai morar em algum lugar. Muitas


pessoas estão morando em áreas de proteção ambiental porque estas é muito forte lá em cima, mas é absolutamente forte no município. não interessam ao mercado imobiliário. E elas são invisíveis. É muito comum agentes do capital imobiliário virarem prefeitos ou Quanto ao Ministério das Cidades, fui para a equipe de transição, e vereadores, ou bancarem as campanhas destes. E como a questão da sabia o que o Lula queria de mim, porque tínhamos feito o Projeto terra sempre foi uma questão central no movimento e na agenda da Moradia, e, nele, estava a ideia de criação do Ministério das Cidades. reforma urbana, pode-se dizer que o governo federal tem, sem dúviQuando acabou essa experiência na prefeitura, a Erundina teve 70 da, um poder limitado no que se refere ao desenvolvimento urbano. processos e eu tive três ou quatro, e fui muito bem defendida, por Nesse sentido, qual era a nossa ideia? Talvez fazer uma lei para as gente como José Afonso da Silva, Márcio Thomaz Bastos, Paulo Lo- metrópoles, em nível federal, e talvez, mas não necessariamente, famar, Sérgio Renault, e havia um grupo de pessoas me ajudava a pagar. zer capacitação e formação de quadros no Poder Público, para apliE é impressionante como no Brasil os corruptos nos acusam. cação dos novos instrumentos jurídicos criados a partir da ConstituiEntão, tinha prometido a mim mesma que não voltaria ao Poder Pú- ção, quando se reconhece a função social da propriedade, o direito à blico. Mas fiquei no Ministério das Cidades, que para qualquer urba- moradia. Havia uma série de elementos novos, muito desconhecidos nista é um sonho, participar da criação e depois implementar, com o inclusive no Judiciário. Não existe aquela propriedade “absoluta” na Olívio [Dutra] à frente. E aí a experiência foi muito diferente, porque qual a juíza se baseou para decretar o despejo do Pinheirinho. Não o Olívio tem uma postura de maior tranquilidade diante dos conflitos existe essa figura. Existe na cabeça dela e de muita gente, dos operado que eu tinha, além de muita experiência. E ele tinha muita con- dores de Direito no Brasil, até de muita gente pobre, que dizia: “Não, fiança em mim e na minha capacidade de direcionamento técnico e nós não estamos aqui legalmente, mas estamos legitimamente”. E eu político no Ministério. A equipe era maravilhosa, já tinham passado falava: “Não, senhor, vocês estão legalmente”. pela Administração Pública, porque a primeira experiência no Poder E nós lutamos, lutamos, conquistamos um monte de coisas. Temos um Público é absolutamente necessária para você não levar um susto novo Marco Regulatório do Saneamento, temos o Estatuto da Cidade; com a burocracia, com os pequenos conflitos, as pequenas disputas com a nova Constituição, temos uma Lei de consórcios públicos, que foi de poder e tal... Pequenas, às vezes nem tanto... (risos) votada em 2005, temos o Conselho das Cidades, Conselhos Técnicos, Foi um momento muito novo, a questão urbana era nova, e a gente sa- um aparato institucional novo, importante, mas a sociedade brasileira bia que estava correndo contra o tempo, que aquilo podia acabar, aque- age como se isso não existisse. A sociedade. Porque estou cansada desla lua de mel da gente com a gente mesmo. Eram discussões maravilho- se negócio de só “ah, a culpa é do governo”. Se um governo quiser mesas, chegamos a fazer, por exemplo, um manual para auxiliar os lhorar a condição de circulação e deputados a fazerem emendas mais necessárias de acordo com transporte no seu município, um a política urbana em cada região do país etc. Mas o asfalto ganhagoverno municipal, e proibir auva... o asfalto dá muito voto. E ficamos às vezes administrando, Temos uma Lei de consórcios tomóveis de circular, ele pode? como falei, metade do orçamento do Ministério para emendas. Aqui em São Paulo tem o rodízio, Quando o Olívio saiu, decidi ir embora porque já havia uma dis- públicos, que foi votada em mas isso não está resolvendo em puta pesada nos três primeiros anos do governo Lula. A disputa 2005, temos o Conselho das lugar nenhum, principalmenera pela macroeconomia, pela orientação financeira. A gente não te aqui. Cercear a circulação de Cidades, conselhos técnitinha dinheiro para aplicar e, obviamente, queríamos recuperar automóvel, mas investir na cira política urbana propriamente dita, o desenvolvimento urbano, cos, um aparato institucional culação de transporte coletivo o uso e a ocupação do solo, casada principalmente com a polí- novo, importante, mas a so– ônibus combinado com trem tica de transporte, mas também com saneamento e habitação, e metrô – é algo central, hoje é que era competência principalmente do governo municipal pela ciedade brasileira age como o principal na política urbana. Constituição. E do governo metropolitano – governo entre aspas, se isso não existisse Combinado ao uso do solo, você porque nós não o temos, pela Constituição Estadual. tem que ter lugar para o pobre E caiu no limbo desde então. Já escrevi sobre isso: por que é que morar. Entendeu? E esse lugar a gente jogou tanta competência para o município? E também tem que ter transporte. Não é tem o desenho da questão metropolitana, porque cada estado tem uma “põe pra fora da cidade”, o que não mudou muito com a política atual ideia do que é uma metrópole. Aquilo é desenhado em cada estado, e de habitação. Nós não mudamos o que era básico na lei de reforma uraí aconteceram essas coisas; numa certa hora, no Brasil, Manaus não bana, que era a questão da função social da propriedade. Mas estamos era metrópole e Santa Catarina tinha cinco. A gente deixou isso para o desconhecendo que ela existe. poder local ou regional resolver. E hoje, sinceramente, acho que deve- Essa situação para nós estava clara. A gente queria construir novos ria estar na esfera federal. A Constituição de 1988 tirou muita coisa do paradigmas. Assim, fazer um trabalho bem a la Paulo Freire... poder central porque a ditadura era absolutamente centralizada, não tinha participação nenhuma, e a gente sentia que o município precisa- Fórum – Combater o analfabetismo urbanístico, como a senhora fala... va participar da democracia, era onde os moradores iam participar da Maricato – Exatamente. Outro dia, estava num debate com o Juca elaboração da política urbana. A gente entendia isso, que cada cidade é Kfouri, ele até deu risada. Uma pessoa lá perguntou: “Você não gosta de futebol?”. Eu falei: “Gente, eu realmente tenho um problema com o uma cidade, diferente da outra, devido à região, ao clima... Quando a gente foi para o governo federal, percebeu que poderia futebol, que é o seguinte: se todo cidadão que conhece tão bem a seleobrigar as prefeituras a fazer plano diretor, por exemplo. Mas como ção brasileira, de qualquer ano, o que aconteceu, quem era o técnico, o município é autônomo, não poderíamos obrigar o município a quem era o massagista, qual foi o resultado do jogo, quem fez os gols, cumprir, a aplicar, por exemplo, o Estatuto da Cidade, que é uma lei conhecesse o quanto tem de investimento na sua cidade e como é federal conquistada a duras penas. A questão urbana é federativa, e que esse dinheiro está sendo aplicado...”. Porque é um dinheiro sobre depende de um acerto com os três governos. O capital imobiliário o qual se fazem os lobbies. E o automóvel, o sistema viário, as pontes, março de 2012

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viadutos, que aí também entra uma empreiteira... Houve uma reserva de mercado para a construção pesada no Brasil, e ela é competente para fazer obra no mundo inteiro. Ela sabe trabalhar com muito conceito, por isso que foi construir estrada no Iraque... Bom, mas quando o Olívio saiu, fiquei pensando que alguma coisa ia segurar, porque tivemos um movimento forte, com um pé dentro da Academia, nos Legislativos, começamos a ter gente ligada à reforma urbana; nos Executivos, muitas prefeituras começaram na década de 1980 e 1990 a fazer experiências novas no Brasil. Tínhamos nos profissionais uma visão nova, na área do Direito... Na área de arquitetura e urbanismo, praticamente criamos uma escola. O know-how de urbanização de favela no Brasil é respeitado no mundo inteiro. O Estatuto da Cidade é respeitado no mundo inteiro. Já fui falar na Índia sobre o Estatuto da Cidade para o governo central, mas sou honesta, falei que ele não está sendo aplicado no Brasil. Não temos correlação de forças para aplicar a função social da propriedade, como foi pensado. No setor de Saneamento, durante esse período que a gente criou a emenda de Reforma Urbana, tinha uma Frente Nacional do Saneamento. Achei, depois do movimento de reforma urbana e depois desse pessoal no Ministério das Cidades, que nunca mais iríamos tamponar córrego, a não ser por uma medida absolutamente necessária. E estou cansada de ver o dinheiro do Ministério das Cidades fazendo impermeabilização do solo até dizer chega. Depois vão se queixar de enchente. Tapar córrego transfere a enchente de um lugar para o outro. Pensei que a gente tinha feito a diferença, mesmo que só em dois anos e meio, com o Olí-

a pessoa tem que vender pelo mesmo preço para o privado. Isso faz uma diferença. Essas questões não foram aplicadas, e o que a gente está vendo, mais do que nunca – talvez, só menos que no auge do BNH –, é uma especulação bárbara.

Fórum – Ou seja, existia uma ideia de se fazer esse investimento em moradias de baixa renda, destinadas a esse público, mas isso está sendo desvirtuado e acaba não suprindo o déficit habitacional do País.

Maricato – Porque quase 90% do déficit habitacional está situado na faixa de baixa renda, entre zero e três salários mínimos. E aqui cabe explicar uma outra coisa de que nós tínhamos clareza absoluta: o mercado imobiliário brasileiro, até o Lula assumir – porque, quando estávamos no Ministério, começamos a mudar esse quadro, mas ele mudou mesmo foi com o Minha Casa, Minha Vida –, só produzia para faixas acima de dez salários mínimos. É um mercado que um autor, o Milton Vargas, chama de “artesanato de luxo”. É uma indústria que não era muito produtiva, esmagava a força de trabalho e aplicava muito no consumo conspícuo. O que é o consumo conspícuo? A pessoa projeta e coloca ali um Espaço Gourmet, o Child Care, o Fitness Center, pode ser tudo simulacro, é o condomínio com clube, as torres com o clube dentro, e aí tudo muito bordado, fachada, tarará... Uma parte expressiva da classe média não entrava no mercado. Tínhamos uma proposta na qual afirmávamos que se fossem feitas casas, moradias sociais para baixa renda, e a classe média ficasse sem alternativa, seria o mesmo que enxugar gelo. Isso nós já tínhamos experiência nas prefeituras. Então, do que a gente precisava? De uma política para a classe média Como não houve reforma e de uma política para a de baifundiária, o dinheiro que xa renda. A política para a classe média era, do nosso ponto de chegou alimentou a especuvista, uma política de mercado. E lação imobiliária e a elevaa política para baixa renda, uma política pública. O Minha Casa, ção do preço dos imóveis. Minha Vida aparentemente faEm 2010, depois do lançazia isso, porque ele dá subsídio mento do Minha Casa, só para quem tem renda abaixo de cinco salários mínimos. Mas, Minha Vida, o preço dos mesmo quando é subsidiado, imóveis disparou quem constrói vai no teto daquilo que o subsídio permite.

vio e aquela equipe. Ficou gente boa lá, mas acho que perdemos a luta, que é pela hegemonia do tema, do assunto. Quando eu digo: “O Brasil mudou de agenda”, o André Singer tem razão, é porque mudou mesmo, porque não dá mais para um governo entrar sem manter Bolsa Família, por exemplo. Mas as cidades estão sendo administradas com a política velha. Velha! Parece que nem nós passamos pelo governo. Tudo bem, temos, pela primeira vez na história, no governo federal, há subsídios para a baixa renda, a política do Minha Casa, Minha Vida... Mas acontece que, como não houve reforma fundiária, o dinheiro que chegou alimentou a especulação imobiliária e a elevação do preço dos imóveis. Em 2010, depois do lançamento do Minha Casa, Minha Vida, o preço dos imóveis disparou. Não adianta é preciso alguma política que freie os ganhos imobiliários, e há vários instrumentos para isso, no Plano Diretor, Imposto Progressivo, Zeis (Zona Especial de Interesse Social), e a preempção, que estabelece que qualquer terra que vai ser vendida, desde que esteja sob direito de preempção, tem que ser oferecida primeiro para o Poder Público. Se ele não quiser,

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Fórum – Se vai de zero a cinco salários, as construtoras voltam os esforços para a faixa maior. E também vira uma política voltada para o mercado.

Maricato – É. E por que é que a gente fala voltada para o mercado? Quando o Minha Casa, Minha Vida veio, as maiores empresas do Brasil tinham terra. E elas ganharam muito com a renda da terra. Todas as grandes têm um braço popular hoje, mesmo as de luxo têm. Então, essas grandes têm um estoque, e outras já estão precisando comprar terra. As médias, todas, e pequenas estão precisando comprar terra. E o movimento social ficou sem área até para ocupar. Por exemplo, os movimentos sociais urbanos que constroem casas, muitos deles da época da gestão Erundina, se tornaram especializados em mutirões habitacionais etc., e começaram a disputar terra com o próprio mercado na periferia. Fórum – Agora, ao mesmo tempo, em São Paulo, existem essas operações urbanas e a elevação de preços dos imóveis da região central, afastando ainda mais os pobres para as periferias. Qual deve ser o papel


dos movimentos sociais, é ocupar os imóveis vazios? Como podem se articular diante de um panorama diferente daquele de 20, 30 anos atrás?

Maricato – Olha, eu posso ser processada se disser que os movimentos devem ocupar. Mas só queria dizer que, se os movimentos não ocupam, essa questão não tem visibilidade. Não, se não ocupam áreas valorizadas. Ocupar, pode, você vai ocupar área de proteção de mananciais? A lei não permite, mas pode. Quero dizer que ninguém vai tirar você de lá a não ser que seja uma coisa pontual. Mas vai ocupar um prédio na Prestes Maia que deve R$ 4 milhões de IPTU pra ver se consegue ficar... Ali, onde a lei permite, não se pode ficar; nas áreas de mananciais, onde a lei não permite, pode. Qual é a norma, a lei que existe neste País? É a de mercado, não é a norma jurídica. Lá, no centro, você não pode porque tem tudo lá, é um tesouro. É o melhor lugar, não tem nenhum local em que o transporte público é melhor, você não precisa ter carro. Fórum – E em relação a essas novas centralidades em São Paulo, como a região da Berrini?

O governo Lula teve duas iniciativas importantes ao garantir que um terço da merenda escolar venha da agricultura familiar e ao assegurar a compra da produção. Isso ajuda a permanência do pequeno produtor. Mas, para competir com o agronegócio, você precisa diminuir o custo do transporte do alimento, o que os europeus e americanos estão fazendo. Hoje, o alimento orgânico é caro, mas prefeituras como Suzano, Guarulhos, Mauá, estão produzindo orgânicos dentro da cidade, com alta produtividade. Isso seria o encontro do campo com a cidade que estamos precisando, a junção da cidade, do campo e do meio ambiente. E aí você pode ter cidade verticalizada, compacta? Pode. Mas com o transporte adequado e áreas permeáveis fazendo parte do tecido urbano. Na cidade compacta, você tem alta qualidade de infraestrutura e está furando essa cidade dispersa. Toda metrópole brasileira está cercada do loteamento fechado, que é uma figura ilegal. Pela lei, não poderia estar fechado. Mas ali moram juízes, promotores, donos de jornal...

Fórum – No caso de São Paulo, é pior? Uma pesquisa da Rede Nossa

Maricato – Os americanos construíram a tese da máquina do cresci- São Paulo que diz que 56% das pessoas gostariam de sair da cidade. mento, uma articulação de forças que conduz o crescimento da cidade Maricato – Olha, fico impressionada com o nível de patologia urbana em um sentido. E, nos EUA, até as lideranças sindicais podem entrar na que a gente aguenta. Sabe aquela história de que, se você esquentar a máquina do crescimento, quando uma cidade compete com as outras, água devagar até ferver, a rã, o sapo, não pula? Você já ouviu falar? Copor exemplo, para atrair investimentos, se faz uma coalizão em que to- nheço uma filha de uma amiga minha que falou assim: “Se você morar dos apostam num determinado sentido do crescimento. Para a Berrini, numa cidade com uma relativa qualidade de vida e vier para São Paulo, o que a pesquisadora Mariana Fix e o João Whitaker mostraram é que você não fica.” Inclusive o professor Paulo Saldiva, da USP, está moshouve um conjunto de forças que levou o mercado para essa região. trando o impacto das doenças respiratórias com a alta concentração de O centro perdeu centralidade, o capital imobiliário foi para a poluentes no ar. Paulista e o centro degradou-se; depois foi para a Faria Lima, e Depois, você tem as horas paa Paulista degradou-se; agora vai para a Berrini, e a Faria Lima radas. Como é que as pessoas O governo estadual usou começa a se degradar. Tudo que é popular é degradado. aguentam? Uma hora e meia O motor é econômico. A fronteira da expansão imobiliária pre- uma força no Pinheirinho para chegar num lugar, uma cisa se deslocar, e você vê isso em qualquer cidade se expandin- que, se não tivesse a reperhora e meia para voltar, e as pesdo. Em vez de aplicar onde é necessário, por prioridade social, soas acham normal isso. Elas vamos aplicar para produzir a nova centralidade, e é lá que o cussão que teve, inclusive estão doentes. Não é possível capital imobiliário está. aceitar isso. E o que é mais grave em nível internacional, de tudo, ninguém mais defende iria se repetir no Brasil Fórum – Esse capital imobiliário praticamente norteia as políticas púo transporte coletivo. Ninguém inteiro, porque tem muita blicas e há marcos legais para que isso não ocorra. O que falta? mais, digo, coletivamente, em Maricato – É a correlação de forças. O governo estadual usou gente de olho em terras onde termos de classe, porque hoje uma força no Pinheirinho que, se não tivesse a repercussão que os trabalhadores, de um modo teve, inclusive em nível internacional, iria se repetir no Brasil in- estão favelas geral, querem ou moto ou carro, teiro, porque tem muita gente de olho em terras onde estão favepodem ser velhos. Porque eles las. Não qualquer terra, mas terras valorizadas. Como o mercado aprenderam que transporte púimobiliário está “bombando”, creio que isso foi um ensaio. blico ou coletivo é maldição. Vai ver onde mais se gasta dinheiro? É em obra viária. O que é que você tem mandando na cidade? Bom, em priFórum – Existe uma questão em que a senhora toca, mas que não é meiro lugar, ninguém questiona, o automóvel. Ele está entupindo todas, muito abordada, que é o enfraquecimento dos cinturões verdes, que existodas as cidades. É suicídio. Não há o que fazer, alargar ruas, construir tiam em torno das cidades, e a relação disso com a força do agronegócio. pontes, não adianta. É suicídio, o que está acontecendo. E o transporte Como ele muda a lógica do panorama nas cidades? coletivo foi derrubado nas décadas do neoliberalismo. Parou a política Maricato – Ele acaba dificultando ou inviabilizando a vida do peque- urbana, parou a política de habitação, de transporte e de saneamento. no. A Caixa Econômica Federal está fazendo um esforço para não levar Bom, foi retomada agora a de habitação e saneamento, mas, sem políos conjuntos habitacionais, voltados para a população de baixa renda tica urbana, que seria o uso do solo mais essa infraestrutura principal. para o campo, para fora da cidade. Mas as câmaras municipais estão Não tem o controle de uso e ocupação do solo, o automóvel não é pegando áreas rurais e declarando como área de expansão urbana. Daí questionado, o mercado imobiliário controla a legislação fundiária e você obriga o pequeno produtor a pagar IPTU, ou seja, quebra o pe- imobiliária por meio da Câmara Municipal, e as grandes empreiteiqueno produtor que planta próximo às cidades. O cinturão verde exis- ras às vezes substituem a Secretaria de Planejamento e de Obras. Às te em São Paulo, e é muito importante e seria importante também ter vezes, substituem literalmente a de Obras. Por quê? Porque o Poder dentro das cidades essas áreas permeáveis à água de chuva para evitar Público não tem quadros, existe uma burocracia infernal e, ao mesmo as enchentes. Agora, quando ela sobe muito de valor, é muito difícil de tempo, uma condição de ilegalidade para quem fica de fora do mercasegurar, principalmente para um pequeno proprietário. do e das poucas obras públicas de habitação. F março de 2012

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1992, o ano que também não terminou Vinte anos depois do movimento “Fora Collor”, Fórum reencontra os personagens caras-pintadas e conta passagens inéditas da última manifestação massiva da história brasileira

H

á 20 anos, o Brasil registrou o seu último grande movimento de massas, o “Fora Collor”. A efeméride de 1992 ainda não despertou o interesse da mídia tradicional e talvez acabe mesmo passando em brancas nuvens. Uma pena. Ao relembrar a ação dos “caras-pintadas” e ao ouvir hoje seus protagonistas, somos conduzidos a um debate no mínimo instigante: por que nas duas décadas seguintes nenhuma passeata, bandeira, escândalo ou demanda levou o povo às ruas novamente? As manifestações pontuais registradas aqui e ali – entre elas o “Fora Pitta”, na capital paulista, a “Marcha da Maconha” e pequenas passeatas contra a corrupção, mobilizadas via Facebook – definitivamente não merecem um capítulo nos livros de História se comparadas àquela movimentação pelo impeachment do primeiro presidente eleito após o fim do regime militar.

militando nas franjas radicais da legenda, mas logo passou ao que era o Campo Majoritário, maior tendência da legenda, pela qual elegeu-se deputado. Depois, foi prefeito de Nova Iguaçu e senador pelo Rio de Janeiro. O número 2 da UNE, naquele ano frenético, era o tesoureiro da entidade, o baiano Orlando Silva Jr. Ao contrário de Lindberg, ele nunca deixou o PCdoB, partido que o escolheu para ser ministro do Esporte do governo Lula, depois da saída de Agnelo Queiroz. Ele teve ao seu lado figuras como o atual ministro da Saúde, Alexandre Padilha, que era dirigente da juventude petista e presidente do DCE da PUC-Campinas; Manoel Rangel, presidente da Agência Nacional de Cinema (Ancine), que era dirigente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes); Floriano Pesaro, vereador do PSDB paulistano e ex-presidente do Centro Acadêmico de Ciências Sociais da USP; e Fernando Gusmão, ex-deputado estadual do Rio. Depois de apeado do poder, o midiático

Teorias à parte, não há como negar que a efervescência do movimento dos caras-pintadas construiu uma geração de dirigentes políticos bem-sucedidos A linha do tempo mostra que parte dos líderes de 1992, forjados no movimento estudantil, chegou ao poder junto com Lula. Depois de deixar a presidência da UNE, o paraibano Lindberg Farias, o maior deles, elegeu-se deputado federal pelo PCdoB, migrou para o PSTU e “perdeu o eixo” antes de ressurgir como uma fênix da política. Depois de uma temporada longe dos holofotes, perdeu a silhueta pesada, ganhou corpo de triatleta e filiou-se ao PT em 2002. Começou

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Fernando Collor, como todos sabem, reinventou se. Voltou ao seu estado, Alagoas, foi eleito senador e tornou-se um leal integrante da base dos governos Lula e Dilma. No final de maio do ano passado, o também ex-presidente José Sarney usou sua prerrogativa de presidente do Senado para tentar jogar o movimento “Fora Collor” na lixeira da memória nacional e, dessa forma, fazer um agrado ao colega nordestino. Ele simplesmente mandou retirar o impeachment dos painéis que

contam a história do Senado desde o Império. Pegou mal. Questionado por jornalistas sobre sua motivação, Sarney saiu-se com essa: “Eu não posso censurar os historiadores que foram encarregados de fazer a História. Mas acho que talvez esse episódio seja apenas um acidente que não devia ter acontecido na história do Brasil. Não é tão marcante como foram os fatos que aqui estão contados, que arquivo pessoal

por Pedro Venceslau


foram os que construíram a História, e não os que, de certo modo, não deveriam ter acontecido.” Bobagem pura e sem gelo.

Qual é a sua cara?

É consenso entre os historiadores que o “Fora Collor” foi um divisor de águas. Mas por que a juventude nunca mais tomou as ruas? “Aquele foi o último suspiro da década de 1980, que foi a era dos movimentos sociais: Diretas Já, Tancredo Neves, eleição de 1989...”, pondera o sociólogo mineiro Rudá Ricci, autor do best-seller “Lulismo”. Ele afirma que, depois dos caras-pintadas, o País passou por um processo de desmonte gradual dos movimentos sociais. “Não gosto do termo cooptação. O que houve foi uma convergência de interesses, com o estado financiando ONGs e movimentos sociais. As organizações, hoje, estão dentro do Estado, nomeando ministros e definindo o valor do salário mínimo.” Para o historiador da USP José Carlos Sebe, coordenador do núcleo de História Oral da universidade, o hiato de duas décadas sem mobilizações populares é algo natural. “[o filósofo espanhol] Ortega y Gasset diz

que todas as gerações têm o seu tom vital. Sou contra a tese de que a juventude perdeu a causa. Isso é saudosismo barato.” Teorias à parte, não há como negar que a efervescência do movimento dos caras-pintadas construiu uma geração de dirigentes políticos bem-sucedidos. Tendo como base o primeiro escalão do movimento estudantil da época, Fórum conta a trajetória desses personagens e ouve deles, além de análises de causas e efeitos, saborosas histórias de bastidores. Não é exagero dizer que, tal qual 1968, o ano de 1992 também não terminou, pelo menos no Brasil. “As raízes dos caras-pintadas devem ser analisadas desde a década anterior, em especial o ano de 1989, que marcou a eleição de Fernando Collor”, pontua o historiador Luiz Antonio Dias, em artigo publicado na revista História Agora.

Uma aliança histórica

Sentados na sala do pequeno sobrado da família em uma pacata vila perto da estação Ana Rosa do metrô, na capital paulista, o ex-ministro do Esporte Orlando Silva Jr e sua esposa, a atriz Ana Petta, reviram caixas de

Abaixo, Ana Petta e o ex-ministro Orlando Silva, em manifestação pelo impeachment de Fernando Collor

fotos e recortes de jornal enquanto tentam lembrar detalhes do começo do namoro. Os dois se conheceram quando ele deixou sua terra natal, Salvador, onde presidira o DCE da Universidade Católica, para assumir em São Paulo o cargo de tesoureiro da UNE. Ao achar uma matéria antiga publicada no “Estadão”, que mostra Orlando discursando ao microfone, Ana não resiste: “Olha como ele era magrinho...”. Na época, ela era presidente da União Campineira dos Estudantes Secundaristas e despontava como quadro da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes). Eram tempos de agitação política nas universidades públicas e privadas. Antes das denúncias contra o então presidente da República, Centros Acadêmicos e Diretórios Centrais Estudantis fervilhavam com manifestações por mais vagas e mensalidades menores. Embalado pelo som de Legião Urbana, o movimento estudantil pós-1989 tinha sede de ação. “Havia o eco da redemocratização”, lembra Ana Petta. “Logo no começo da gestão Collor, já havia um caldo político que mobilizava as lideranças do movimento estudantil”, lembra Ricardo Abreu, o “Alemão”. Nos anos 1990, ele foi o representante do poderoso Comitê Central do PCdoB nos congressos da UNE. “Foi em um Coneg [Conselho Nacional das Entidades Gerais] da UNE, em dezembro de 1991, em Curitiba, que aprovamos o ‘Fora Collor’ como bandeira do movimento estudantil. Não era fácil argumentar, mas, conforme a recessão e o desemprego foram aumentando, os estudantes foram aderindo”, lembra Alemão. “Esse debate sobre puxar ou não o ‘Fora Collor’ vinha acontecendo. Na cúpula do movimento estudantil havia uma divisão clara. Como o PT jurava que Lula seria eleito em 1994, muita gente no partido era contra o impeachment. O ‘Fora Collor’ foi aprovado antes das denúncias e era uma bandeira mais política”, diz Orlando Silva. Foi nesse clima que Lindberg Farias foi eleito na UNE no Congresso de Niterói, em 1992. Ao puxar pela memória a linha do tempo dos eventos que culminaram com as passeatas dos caras-pintadas, Orlando recorda-se de uma pérola. “A gente roubava os carros de som da campanha do Aloysio Nunes Ferreira, que era ligado ao Quércia e candidato à prefeitura de São Paulo pelo PMDB. Como o MR8 (que era o braço jovem de uma ala do PMDB) estava conosco na direção da UNE, usávamos os veículos nas portas das faculdades e devolvíamos antes das 9 da manhã. Ninguém sabe dessa história...” março de 2012

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No vibrante ano de 1989, quando Lula perdeu para Collor no segundo turno, a UNE era presidida por Cláudio Langone, do PT, e o movimento estudantil ganhou musculatura. (quase duas décadas depois, Langone seria “vice-ministro” de Marina Silva no Ministério do Ambiente). O Partido dos Trabalhadores dirigia a entidade estudantil desde 1987, quando quebrou a hegemonia do PCdoB. Mas em 1991, quando a popularidade do presidente Collor começou a sofrer os primeiros sinais de desgaste, os comunistas retomaram o comando da União Nacional dos Estudantes. “Em 1992, o PT tinha uma chapa na UNE que chamava ‘Dê flores aos rebeldes que falharam’. A tese era que a UNE havia morrido. Teve um dirigente deles que chegou a dizer isso no jornal O Globo”, lembra Orlando Silva.

Sociais da USP. “Naquela época, a gente não discutia a questão ideológica, se o Collor era de esquerda ou direita. Era tudo muito novo para nós. No PSDB, havia uma divisão. Parte do partido havia defendido a adesão ao governo Collor”, conta. A posição dos tucanos começou a mudar conforme a situação do presidente foi se deteriorando. A confusão ideológica daqueles tempos abriu caminho para uma inusitada aliança. Para enfrentar a hegemonia das correntes petistas na USP, o PCdoB e o PSDB selaram

No amplo gabinete do vereador Floriano Pesaro, líder do PSDB na Câmara Municipal de São Paulo, um detalhe na decoração não passa desapercebido. Embaixo de uma foto do ex-presidente estadunidense JFK e de outra, de líderes tucanos, há uma foice e um martelo estilizados em um cartão postal. A imagem é emblemática de um tempo em que Floriano, assim como boa parte de sua geração, ainda não sabia muito bem o que seria feito da esquerda depois da queda do muro de Berlim. Em 1992, Floriano, com 24 anos e já na juventude social-democrata do PSDB, era presidente do Centro Acadêmico de Ciências

uma aliança. “Para nós, a social-democracia era um meio de chegar ao socialismo. O centro, em 92, era o PL [Partido Liberal]. Nós éramos de centro-esquerda”, informa Floriano. Diante da ausência de um discurso mais incisivo do PT contra Collor no campus, a dobradinha tucano-comunista foi ganhando um a um todos os centros acadêmicos importantes, até chegar ao DCE. A mesma aliança se repetiu em outro importante núcleo do movimento estudantil, o Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da USP. “A aliança PCdoB e PSDB na USP durou mais de dez anos”, relata o vereador tucano. Ele conta que foi justamente esse arranjo político que garantiu aos comunistas a vitória no Congresso da UNE de Niterói, de 1992, quando Lindberg Farias foi eleito presidente da entidade. “Nós [PSDB] levamos 95 delegados para o Conune [Congresso da UNE]. A bancada era tão grande que assustou todo mundo. A princípio, nossa ideia era fazer uma aliança com os independentes. Mas o PCdoB fez a conta e percebeu que, sem nós,eles perderiam para o PT. Lembro que eram duas da manhã quando o Lindberg e o Alemão nos chamaram para dizer: ‘Queremos o PSDB na diretoria da UNE’”, recorda o vereador paulistano. Depois da vitória, os tucanos escolheram o atual diretor superintendente do Itaú Cultural, Eduardo Saron, para representar a sigla na diretoria da entidade. E foi ele quem mediou a aproximação com Itamar Franco. “Eu liguei para o Lindberg e pedi para marcarmos uma audiência da UNE com o vicepresidente Itamar Franco. A ideia era ampliar horizontes. Com Itamar isolado, a tendência

era abrir artilharia contra Collor. Quando a OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] e a ABI [Associação Brasileira de Imprensa] adotaram o ‘Fora Collor’, a pauta ficou mais ampla que a UNE”, relembra Saron.

O papel da mídia

A atriz Ana Petta lembra que as primeiras manifestações contra Fernando Collor, em 1991 e 1992, eram vistas com desconfiança pela mídia. Havia no ar uma comparação inevitável com a geração de 1968. Em

“Naquela época, a gente não discutia a questão ideológica, se o Collor era de esquerda ou direita. Era tudo muito novo para nós”, conta Floriano Pesaro

Horizontes ampliados

O papel dos secundaristas Quando presidiu a UNE, o hoje senador Lind­ berg Farias acabou incorporando o rosto dos caras-pintadas. Mas apesar do protagonismo da UNE, a massa que enchia as manifestações era majoritariamente formada por estudantes secundaristas. Em 1992, a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes) foi reunificada em uma só entidade. Até então, havia duas organizações nacionais: uma, dirigida pelo MR8 e outra, pelo PCdoB. Com o acordo, definiu-se que dois coordenadores, um de cada força política, se apresentariam como líderes da Ubes: Mauro Panzera, pelo PCdoB, e Antonio Parente, o Totó, pelo MR8. Hoje, Totó é chefe de gabinete de Lindberg Farias.

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editoriais e reportagens, os caras-pintadas eram apresentados como despolitizados, e a liderança da UNE era constantemente questionada. Vendia-se uma tese de que o movimento era espontâneo. Eduardo Saron, que já não está mais no PSDB, concorda, mas faz uma ressalva: “A mídia não apostava nos caras-pintadas, mas houve um momento em que isso mudou. O seriado Anos Rebeldes, da Globo, ajudou muito.” Não era o propósito da Globo, mas, ao colocar uma série que retratava a luta estudantil contra a ditadura, a emissora que elegeu Collor criou um caldo de cultura favorável ao movimento. “Quando fomos mobilizar a grande passeata de 11 de agosto de 1992, usamos esse slogan: ‘Anos Rebeldes: próximo capítulo é o Fora Collor’.” A turma de comunicação da UNE foi sagaz. A música do Caetano Veloso era o hit: “... caminhando contra o vento, sem lenço sem documento...”, recorda e canta Orlando Silva. Entre os caras-pintadas que entraram no clima estava o jovem ator da Globo, Marcelo Serrado, que interpreta o mordomo Crô na novela Fina Estampa. O ex-ministro lembra que a obsessão da Folha de S.Paulo em dizer que o movimento dos caras-pintadas não tinha líderes era tão grande que, certa vez, o jornal publicou que a saída de uma manifestação seria do vão do Masp, quando na verdade seria do centro. A ideia deu errado, e apenas 20 pessoas foram ao local indicado, contra 20 mil que seguiram a orientação da UNE. Entre as gerações de 1968 e 1992 há uma diferença básica, que jamais foi devidamente registrada pela mídia: a segunda, pelo menos em um primeiro momento, saiu vitoriosa. F


A quem interessa o escândalo? S

im, meninas, eu vi e estava lá. A posse da professora Eleonora Menicucci de Oliveira como ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres foi emocionante. Festejada e aplaudida por um semnúmero de feministas, a escolha da presidenta Dilma para a SPM foi considerada um grande avanço pelo movimento de mulheres. Eleonora, que me disse uma vez ter se tornado feminista na cadeia, dedicou sua vida pós-prisão à luta das mulheres. Autora de vários ensaios sobre saúde das mulheres no trabalho e direitos reprodutivos, a nova ministra entende do riscado. Contudo, dias antes de assumir a SPM, parte da imprensa insinuou que a presidenta escolheu Eleonora apenas por serem amigas. Sim, é verdade que as duas são amigas desde os tempos de juventude em Belo Horizonte e que depois, presas e torturadas pela ditadura, foram colegas de cela na chamada Torre das Donzelas no presídio Tiradentes. Mas é verdade também que Eleonora tem um trabalho reconhecido como feminista e sanitarista e que, ao aceitar o convite presidencial, deixou de lado um grande sonho: o de se tornar reitora da Unifesp. Talvez por isso, reconhecendo tanto as credenciais como a amizade de Eleonora, Dilma tenha afirmado, em seu discurso na SPM, que a escolheu pelo “conjunto da obra”. No momento em que escrevo este texto, a nova ministra da SPM sofre ataques constantes de conservadores e religiosos por sua posição pessoal a favor da descriminalização do aborto. Mesmo sem renegar suas posições pessoais, Eleonora declarou que seguirá as diretrizes estabelecidas pelo governo, ou seja, a legislação sobre o aborto é uma questão da sociedade e do Congresso. Mas a velha imprensa insiste em

dar voz a bispos, pastores e conservadores, amplificando a voz do obscurantismo. Por que isso? Por que não divulgar outros aspectos da agenda de Eleonora à frente da SPM? Por que não dar visibilidade à função da SPM como formuladora de políticas públicas, que depois serão implantadas em outros ministérios, numa inédita transversalidade? Por que não falar de seu plano de políticas de thiaGo balbi saúde para a melhoria da qualidade de vida das mulheres, inclusive as esquecidas lésbicas e portadoras de deficiência, como a própria ministra explicitou em seu discurso? Por que não divulgar o esforço na construção da autonomia feminina ou a implementação da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres? Enfim, qual o interesse em abordar apenas a opinião pessoal da ministra sobre o aborto? Eu explico: é porque a mesma agenda retrógrada, hipócrita e obscurantista que atacou cruelmente a então candidata Dilma Rousseff nas eleições de 2010 ainda está ativa e pulsante. Pior: conta com a ajuda da mídia sensacionalista, louca por escândalos e polêmicas. Eu espero que Eleonora aguente firme os ataques que está sofrendo e os que ainda virão. Os obscurantistas retrógrados estão com seus megafones nas ruas, em seus púlpitos, nas igrejas e em canais de televisão, apostando no retrocesso. Por isso nós, que desejamos avanço nas questões feministas, precisamos ocupar as ruas, jornais e TVs. Continuaremos fazendo nosso trabalho cá, para ajudar Eleonora a fazer o dela na SPM. Boa sorte, ministra. A luta continua! F Twitter: @vleonel E-mail: vangeleonel@uol.com.br

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poder

As distorções do financiamento de campanhas por Wagner Pralon Mancuso e Alexandre Sampaio Ferraz*

A

s discussões sobre o projeto de reforma política que tramita no Congresso Nacional trouxeram novamente à tona o debate sobre o financiamento das campanhas eleitorais. Pelas regras atuais, os recursos para as campanhas podem ser doados por pessoas jurídicas e físicas, pelos próprios candidatos e também ser obtidos de outras fontes, tais como a comercialização de bens e realização de eventos, fundo partidário e rendimento de aplicações financeiras. Embora a legislação preveja uma variedade de fontes de financiamento, na prática, a realidade é outra. Concentração é a palavra que mais bem descreve o que ocorre no sistema de financiamento eleitoral. Em primeiro lugar, as doações são concentradas pelas empresas. De acordo com dados do TSE, as pessoas jurídicas doaram cerca de 75% de todo o dinheiro que alimentou as campanhas eleitorais em 2010, para todos os cargos em disputa – nada menos que 2,2 bilhões de reais, num total de quase 3 bilhões. Em segundo lugar, as doações são concentradas por grandes empresas e grupos empresariais. De fato, mais de 19 mil pessoas jurídicas doaram para campanhas em 2010, mas metade das doações foi feita por apenas 70 empresas ou grupos. Dentre os 15 doadores mais pródigos, responsáveis por 32,5% de todas as contribuições empresariais, encontram-se: seis construtoras (Camargo Corrêa, Queiroz Galvão, Andrade Gutierrez, OAS, Galvão Engenharia e UTC Engenharia); três grupos financeiros (Bradesco, BMG e Itaú); duas siderúrgicas (Gerdau e CSN); uma mineradora (Vale); uma indústria de alimentos

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Sistema adotado no Brasil compromete a equidade da disputa eleitoral e concentra recursos nas mãos de poucos partidos

(JBS); uma empresa de comunicação (Con- em grandes empresas, grupos empresariais tax, do grupo Oi) e uma indústria de bebidas e indivíduos abastados coloca em risco a (Leyroz de Caxias, do Grupo Petrópolis). igualdade política. Os grandes doadores têm Em terceiro lugar, os empresários con- o poder de exercer muito mais influência socentram suas doações nos grandes partidos. bre os resultados eleitorais do que os eleitoVinte e sete partidos políticos apresentaram res comuns – a imensa maioria da população candidatos às eleições de 2010, mas as con- –, que contam apenas com seu voto. tribuições empresariais destinaram-se, soNo Brasil, não é impossível eleger-se a bretudo, aos três maiores: o PSDB, que rece- cargos nacionais importantes sem apoio beu 23,3% das doações (incluindo as feitas financeiro do empresariado. Prova disso é a todos os diretórios, comitês e candidatos a eleição para a Câmara dos Deputados de do País); o PT, que recebeu 22,5%; e o PMDB, candidatos comparativamente pouco finanque recebeu 18,1%. ciados, tais como celebridades da TV, líderes Esses dados se referem exclusivamente ao religiosos e candidatos fortemente apoiados “caixa 1”, isto é, às receitas devidamente decla- por segmentos sociais circunscritos, mas reradas à Justiça Eleitoral. Mas é unânime o con- levantes. No entanto, essas candidaturas mal senso de que também há o “caixa 2” – ou seja, financiadas e bem-sucedidas são exceções, e recursos não declarados que entram e saem não a regra. das contas de partidos e candidatos –, embora Por outro lado, numerosos estudos mosseja muito difícil quantificar o montante. tram que existe forte associação entre o voluA concentração do financiamento eleito- me de recursos investidos na campanha eleiral traz vários problemas para nosso sistema toral e o número de votos obtidos. Os estudos político. Vamos nos deter aqui sobre dois de- evidenciam também que a relação entre os les: a desigualdade de influência política e o dois elementos é de mão dupla: candidatos viés que essa desigualdade pode imprimir no com potencial eleitoral elevado atraem financomportamento dos representantes eleitos. ciamento farto, e o financiamento farto ampliA igualdade política é um princípio fun- fica o potencial eleitoral dos candidatos. damental para qualquer país democrático. Fontes de receita para a campanha de 2010 (TABELA 1) No Brasil, o princípio FONTES VALOR % da igualdade política é Pessoas jurídicas 2.212.077.033,99 74,4 estabelecido pelo caput do artigo 14 da ConstiPessoas físicas 430.421.298,95 14,5 tuição Federal, segundo Recursos próprios 303.369.903,97 10,2 o qual “a soberania poComercialização de bens e realização de eventos 19.787.308,77 0,7 pular será exercida pelo Fundo partidário (diretórios nacionais e estaduais) 6.554.091,01 0,2 sufrágio universal e pelo voto direto e secreRendimentos de aplicações financeiras 7.044,83 0,0 to, com valor igual para Total 2.972.216.681,52 100,0 todos”. A concentração Fonte: TSE das doações eleitorais


Depois que os resultados eleitorais são proclamados, surge o segundo problema. Representantes eleitos que foram financiados podem retribuir os favores recebidos. Com isso, mandatos públicos podem ser usados para tratar dos interesses particulares dos financiadores de campanha. Enquanto isso, os assuntos de interesse público são relegados a um segundo plano. É importante ressaltar que as consequências desta deturpação da representação política ocorrem não somente quando o mandatário atua de forma ilícita (por exemplo, fraudando concorrências para beneficiar financiadores), mas também quando atua de forma lícita, porém, ainda assim enviesada, para defender os interesses de seus financiadores nos processos decisórios que lhes afetam.

Financiamento público

Como vimos, a desigualdade e seu viés colocam um grande desafio para a arquitetura institucional brasileira. Uma saída frequentemente apontada tem sido o financiamento exclusivamente público das campanhas eleitorais. Nesse caso, a única fonte lícita seria o orçamento da União, e à Justiça caberia punir doadores e recebedores de contribuições ilegais, como de resto já deveria fazer hoje. Os defensores do sistema atual criticam essa

proposta, alegando que os recursos públicos deveriam ser aplicados em outras áreas, dada a enorme demanda por serviços públicos no País. Críticos da mudança do sistema também temem que a distribuição dos recursos privilegie exageradamente os partidos dominantes – algo que, como mostramos, já vem ocorrendo no sistema atual, não apenas com o financiamento privado, mas também com os recursos públicos destinados às eleições –, sobretudo com o fundo partidário e o horário gratuito de propaganda eleitoral. Uma saída alternativa seria estabelecer tetos mais baixos, em valor absoluto, para as doações de pessoas jurídicas e físicas. Hoje em dia já há tetos para as doações, mas estes são estabelecidos em valores relativos – 10% dos rendimentos brutos auferidos no ano anterior à eleição, no caso de pessoas físicas; e 2% do faturamento bruto do ano anterior à eleição, no caso de pessoas jurídicas (Lei No. 9.504/97). O teto atual, bastante permissivo, viabiliza doações vultosas por pessoas jurídicas e físicas mais abastadas. A favor da adoção de tetos menores, inclusive para pessoas físicas, pesa o fato de alguns indivíduos milionários terem feito doações muito superiores à média das demais pessoas físicas. Entre esses destacamse os empresários Guilherme Peirão Leal,

candidato à vice-presidência na chapa de Marina Silva, que doou R$ 14.565.265,64 para campanhas do PV; e Eike Batista, que doou R$ 6.050.000,00 a diversos partidos, comitês e candidatos. O estabelecimento de tetos mais baixos para as doações eleitorais poderia combater os problemas da desigualdade excessiva e do viés dessa desigualdade, forçando os políticos a buscar apoio mais amplo e diversificado para suas candidaturas. Outra alternativa seria proibir a contribuição das pessoas jurídicas. Só quem vota poderia contribuir com as campanhas, e empresa não vota. Nesse caso, os empresários somente poderiam contribuir como pessoas físicas, dentro do limite estipulado pela lei. Duas coisas, no entanto, estão claras. Qualquer medida para combater a desigualdade e o viés exigirá um esforço extra de fiscalização e de punição dos que agirem na ilegalidade. Envolverá também o barateamento das campanhas eleitorais, mantido ou não o número de candidatos que disputam as vagas. Isso significaria uma excepcional reversão de trajetória, pois nas mais recentes eleições brasileiras, o preço médio das campanhas bem-sucedidas para cargos de nível nacional tem sido cada vez mais alto. F

Wagner Pralon Mancuso é doutor em Ciência Política pela USP e professor da EACH-USP. Alexandre Sampaio Ferraz é doutor em Ciência Política pela USP e economista do Dieese.

Maiores doadores empresariais na campanha de 2010 (TABELA 2) DOADOR

Grupo Camargo Corrêa

VALOR em R$

% DOAÇÕES EMPRESARIAIS

113.182.120,00

5,1

Doações empresariais por partido político em 2010 (TABELA 3)

Grupo Bradesco

93.872.000,00

4,2

PARTIDO

Grupo Queiroz Galvão

71.166.020,50

3,2

PSDB

516.461.767,60

23,3

498.158.148,49

22,5

%

VALOR

Grupo Andrade Gutierrez

63.146.000,00

2,9

PT

Grupo Vale

58.170.000,01

2,6

PMDB

399.411.149,46

18,1

Grupo JBS

54.653.000,00

2,5

DEM

141.686.303,52

6,4

Grupo OAS

48.264.301,00

2,2

PSB

138.305.104,23

6,3

Grupo BMG

34.145.000,00

1,5

PR

90.293.224,12

4,1

Grupo Gerdau

33.930.000,00

1,5

PPw

88.394.623,29

4,0

Grupo CSN

30.591.493,55

1,4

PDT

71.826.497,20

3,2

Grupo Oi (Contax S.A.)

26.180.000,00

1,2

PTB

52.941.560,21

2,4

Galvão Engenharia

24.195.730,00

1,1

PPS

52.905.402,96

2,4

Grupo Petrópolis (Leyroz de Caxias)

23.350.000,00

1,1

PV

41.393.723,89

1,9

UTC Engenharia

23.164.667,00

1,0

PC do B

28.638.414,59

1,3

Grupo Itaú Unibanco

22.880.100,00

1,0

PSC

25.708.956,93

1,2

720.890.432,06

32,5

PMN

22.039.796,72

1,0

1.491.186.601,93

67,5

OUTROS

43.912.360,78

2

2.212.077.033,99

100,0

2.212.077.033,99

100,0

Subtotal 15 maiores doadores Demais grupos e empresas Total FONTE: TSE

Total FONTE: TSE

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Querem censurar até jogos Em tempos em que os games são tão realistas quanto cenas de filmes, o legislador brasileiro propõe censurar aqueles que são contrários aos costumes e às religiões, no melhor estilo da censura do século XVI. Novas mídias, velhos hábitos

E

m 1559, a Igreja Católica criou seu Index Librorum Prohibitorum (Catálogo de Livros Proibidos), que só viria a ser abolido mais de 400 anos depois pelo Papa Paulo VI, em 1966. Na extensa lista de livros proibidos pela Igreja por contrariarem a “moral e os bons costumes” católicos, constavam obras de Maquiavel, Voltaire, Sade, Victor Hugo, Diderot, Balzac, Émile Zola e muitos outros que hoje são considerados gênios do seu tempo. No Brasil do século XXI, discute-se no Senado da República o Projeto de lei nº 170, de 2006, de autoria do senador Valdir Raupp (PMDB-RO), que pretende criminalizar a criação e comercialização de jogos eletrônicos ofensivos “aos costumes, às tradições dos povos, aos seus cultos, credos, religiões e símbolos”. Novas mídias, velhas ideias: querem criar agora um Catálogo de Jogos Proibidos ou, num linguajar mais condizente com o espírito da proposta, um Index Ludorum Prohibitorum. O projeto foi aprovado na Comissão de Educação do Senado em 2009 com parecer do senador Valter Pereira (PMDB-MS), que justificou sua posição afirmando que “sobre o cristianismo, vê-se em alguns jogos alguém bater em anjos, enquanto se escuta um coral católico. É comum um superbandido bater asas pelo inferno antes da batalha final, ou até derrotar Jesus e seus doze apóstolos, embora tenham nomes engraçados”(sic). A proposta encontra-se atualmente na Comissão de Constituição e Justiça, onde já recebeu pareceres favoráveis dos senadores Serys Slhessarenko (PT-MT) e Vital do Rêgo (PMDB-PB). Não bastasse a iniciativa do Poder Legislativo, o Judiciário também tem proferido decisões proibindo a venda de determinados jogos. Em junho de 2007, o juiz federal Carlos Alberto Simões de Tomaz, da 17ª Vara Federal da Seção Judiciária do estado de Minas Gerais, proibiu a comercialização no Brasil do jogo de tiro em primeira pessoa Counter-Strike e do RPG EverQuest. Na sentença, o magistrado justifica sua decisão afirmando

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que não se trata de proibir todos os jogos de computador, mas tão somente “aqueles que encerram cenas de violência, terror, apologia ao crime etc. que agem principalmente no subconsciente das crianças e adolescentes […] de forma a deturpar sua educação, seu desenvolvimento sociocultural e psicológico […], confrontando os valores morais, éticos, religiosos recebidos no seio da família e na escola, com um conceito de contravalor”. Somente em junho de 2009 o Tribunal Regional Federal da 1ª Região reformou a decisão do juiz, liberando a venda dos jogos. Os argumentos tanto dos legisladores quanto do magistrado para sustentar a proibição dos jogos de computador são exatamente os mesmos que fundamentaram a criação no passado do Index Librorum Prohibitorum:: a proteção da população e da família contra a expressão de ideias e valores que colocam em risco a moral, os bons costumes e a religião dominante. O que mudou foi apenas o meio no qual a expressão das ideias se dá: antes nos livros, hoje na tela do computador. O discurso censor, porém, permanece o mesmo, baseado em uma cruzada moralista e religiosa contra a expressão de valores com os quais o censor não concorda. A República, porém, é laica e amoral. Cada cidadão pode escolher o deus que deseja cultuar e os valores morais que pretende seguir. A Constituição não garante apenas a expressão dos “bons” valores (quem decide o que é bom ou ruim?) ou dos valores “morais, éticos e religiosos” aceitos pela maioria. Em seu art. 5º, IX, a Carta Magna estabelece que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. A Constituição não permite que se escrevam apenas bíblias: livros satanistas também podem ser livremente escritos e publicados em nosso País. A Constituição não permite que se produza e se divulgue apenas filmes religiosos e comédias românticas; filmes do Tarantino ou pornográficos também

lu

ci

a

no

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o


podem ser vistos nos cinemas brasileiros. E a Constituição não permite que apenas se produza e comercialize Tetris e jogos de paciência, Counter-Strike, EverQuest ou qualquer outro título também estão amparados pela liberdade de manifestação artística. Qualquer tentativa de impor algum limite a essa liberdade é uma nefasta censura prévia que viola frontalmente nossa Constituição.

Violência e jogos

Para tentar dar ares de cientificidade à cruzada moralista contra os jogos de computador, o senador Valter Pereira cita, em seu parecer a uma pesquisa de 2005 da Universidade de Michigan, que concluiu que os videogames insensibilizam os jovens para cenas de violência. As conclusões de uma única pesquisa científica, tomada isoladamente, porém, não podem ser tidas como verdade absoluta a ponto de se criar uma lei. Pesquisadores também erram, e mesmo revistas acadêmicas de prestígio internacional trazem estudos que são refutados poucos anos depois. É preciso levar em conta não apenas uma pesquisa tomada ao acaso em algum release de imprensa, mas todo o conjunto de pesquisas que já foram produzidas tentando relacionar violência e videogames. Há centenas de estudos de Psicologia Social publicados sobre o tema e suas conclusões são bastante variadas, e não raras vezes antagônicas. Boa parte desses estudos conclui que jogos violentos têm efeito semelhante a filmes violentos e podem tornar crianças e jovens mais agressivos. Uma pesquisa de 2004 do Serviço Secreto dos Estados Unidos (Implications for prevention of school attacks in The United States) constatou, porém, que apenas 12% dos envolvidos em tiroteios em escolas gostavam de jogos violentos, enquanto 24% deles liam livros violentos e 27% gostavam de filmes violentos. Jogos eletrônicos são apenas mais um meio de se contar histórias. Se jogos violentos geram violência, não haveria por que livros e filmes violentos produzirem efeitos diversos. O legislador, no entanto, sabe que qualquer proibição de livros e filmes violentos seria identificada imediatamente como censura, o que para parte da população não é tão óbvio quando se trata de videogames. A censura, porém, é exatamente a mesma, pois não se pode proibir adultos de ter acesso a qualquer tipo de informação ou manifestação cultural. Muitas pesquisas, porém, contestam as conclusões de que jogos (e filmes, livros) violentos tornam as pessoas violentas. Um estudo alemão publicado em 2011 (Preference for

Violent Electronic Games and Aggressive Behavior among Children: The Beginning of the Downward Spiral?) concluiu que não são os jogos que tornam as crianças violentas, mas crianças agressivas preferem jogos violentos. De fato, se a maioria das pesquisas se limita, em sua metodologia, a demonstrar que crianças agressivas jogam videogames violentos, não há qualquer prova da relação de causa/consequência. Não se pode concluir a priori que são os jogos que tornam as crianças violentas, pois é perfeitamente possível que elas escolham este tipo de jogo justamente por se identificarem com a violência neles contida. Uma pesquisa publicada em 2011 (Understanding the Effects of Violent Video Games on Violent Crime) conclui até mesmo que jogos de computador (violentos ou não) reduzem as taxas de criminalidade pela “incapacitação voluntária” de potenciais delinquentes juvenis. Ao optarem por permanecerem em casa jogando videogames violentos, jovens agressivos deixariam as gangues e o crime no mundo real para praticá-los exclusivamente no ambiente ficcional dos jogos.

Classificação indicativa em vez de censura

Independentemente dos resultados das pesquisas, não se pode impedir que adultos tenham acesso a jogos, livros ou filmes violentos. E, ao contrário do que o senso comum imagina, jogos eletrônicos não são jogados predominantemente por crianças ou adolescentes. Segundo a pesquisa Gamer Segmentation 2010, a idade média dos jogadores é de 32 anos. Se um adulto eventualmente se tornar violento por ler um livro, assistir um filme ou jogar um videogame, deverá ser punido pelas agressões ou crimes que praticar. Em um Estado Democrático de Direito, não há censura prévia e as pessoas só podem ser punidas pelos atos que praticam, não por seus pensamentos. Quanto às crianças, o Brasil já adota um sistema de classificação indicativa de jogos eletrônicos, regulamentado pela Portaria n° 1.100/2006 do Ministério da Justiça e semelhante ao utilizado pela maioria dos países democráticos. Os jogos, tais como os filmes, são classificados segundo a idade para a qual são recomendados: livre, 10, 12, 14, 16 ou 18 anos. A classificação indicativa tem como destinatários os pais e responsáveis, que terão plena liberdade para decidir o que é melhor para suas crianças e adolescentes. O Estado pode e deve recomendar aos pais cui-

dados com o conteúdo de determinada obra, mas jamais intervir na vida privada das famílias impondo valores morais ou religiosos. Impedir a comercialização de um jogo ou qualquer outra obra a pretexto de “proteger” crianças é censura prévia, vedada expressamente pela Constituição da República. Em 27 de junho de 2011, a Suprema Corte dos Estados Unidos julgou inconstitucional uma lei da Califórnia que proibia a venda de jogos violentos para menores de 18 anos no estado. No caso que ficou conhecido como Brown v. EMA (Entertainment Merchants Association), os juízes decidiram por 7 votos a 2 que os jogos de computador são protegidos pela Primeira Emenda da constituição estadunidense como qualquer outra mídia. Note, porém, que o propósito da lei da Califórnia era bem mais restrito que o do projeto brasileiro. Enquanto lá se proibia apenas a comercialização para menores de 18 anos, aqui se pretende banir do comércio os jogos violentos, impedindo que pessoas adultas e capazes possam adquiri-los e jogá-los. Espera-se que o Supremo Tribunal Federal brasileiro também cumpra seu papel e julgue inconstitucional a lei de proibição de jogos eletrônicos violentos, caso o Congresso Nacional insista em aprová-la. O simples fato de uma lei com este propósito nitidamente censor ter recebido tantos pareceres favoráveis no Senado da República já é demasiadamente preocupante, pois reflete o quanto a liberdade de manifestação artística ainda é um direito que precisa ser consolidado na cultura jurídica nacional. Nenhuma censura é praticada em nome do mal. Nenhum censor vem a público dizer que está censurando livros, filmes ou jogos para impor o seu modo de pensar aos outros. A censura é sempre praticada em nome do bem e da proteção dos bons costumes e das famílias. A cultura democrática está em saber reconhecer que o bom pai de família, bem-intencionado e preocupado com a moral e os bons costumes, muitas vezes é só um tirano que quer impor seus valores à força aos demais. Um país em que se cogita seriamente proibir que pessoas adultas tenham acesso a qualquer tipo de obra, por patrulha ideológica, moralista ou religiosa, só demonstra que ainda não sabe reconhecer quem são estes tiranos “bem-intencionados”. E se não aprender enquanto é tempo, acabará sendo governado por eles. F TÚLIO VIANNA, professor da Faculdade de Direito da UFMG.

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Cadernos do Pensamento Crítico Latino-Americano

L

ucio Magri foi um dos principais dirigentes da esquerda italiana e, ao mesmo tempo, um dos seus mais destacados intelectuais. Ainda muito jovem, foi promovido a importantes cargos de direção, quando o então secretário geral do Partido Comunista Italiano Palmito Togliatti desejava rejuvenescer os quadros do partido por intermédio de uma nova geração de dirigentes. Com Rossana Rossanda e Luciana Castellina, entre outros, Magri constituiu um grupo crítico de esquerda em resposta à política do PCI, especialmente quando Enrico Berlinguer – que sucedeu Togliatti na direção do Partido – promoveu a política do compromisso histórico, a qual abandonava a estratégia da aliança comunista-socialista, concedendo um espaço fundamental à democracia cristã. O grupo saiu do PCI e fundou o movimento chamado Il Manifesto, que passou a publicar um jornal homônimo. Mais adiante, o grupo foi convidado pelo próprio Berlinguer para retornar ao PCI, quando o principal dirigente do partido se propôs a fazer uma volta à esquerda. Quando retornou ao PCI, o grupo enfrentou a morte de Berlinguer, um mês depois, e acompanhou o triste caminho do PCI até sua mudança de nome e dissolução como partido comunista. Magri participou de toda essa trajetória, sendo o único dirigente a votar contra a mudança de nome do PCI (Pietro Ingrao, outro dirigente com a mesma posição, estava viajando). Magri conta sobre a tristeza de sua saída do histórico edifício na Rua delle Boteghe Oscure, sede do PCI, enquanto caminhava até sua casa, também no centro de Roma, com a sensação de que um período histórico terminava e sua vida estava acabando com aquele passado. Após o desaparecimento do partido – considerado a memória histórica do proletariado – Magri se propôs escrever a história do comunismo italiano, que, pelo papel relevante que teve em escala internacional e pelas estreitas relações com o movimento comunista internacional, acaba cobrindo também, em parte, a história do movimento internacional dos partidos comunistas e suas relações com a URSS. Nesse intervalo de tempo, quando se dedicava a escrever o livro, Mara, a companheira de sua vida, adoeceu. Foi um doloroso processo de três anos até sua morte, o que terminou de completar o quadro de fim de vida para Magri. Ele pensou em fazer como André Gorz, mas Mara lhe pediu que primeiro terminasse o livro.

O Alfaiate de Ulm – do qual apresentamos um capítulo, coeditado pela CLACSO em parceria com a Editora Prometeo – é uma obra imprescindível para a compreensão da história da esquerda ao longo do século XX. Em primeiro lugar, porque quase toda a bibliografia sobre as mudanças radicais nas correlações de força no plano internacional e em cada país são geralmente de direita em seus valores e óticas. Magri faz um balanço da própria esquerda, seus dilemas e alternativas. Em segundo lugar, porque o desaparecimento do maior partido comunista do Ocidente ficaria sem história, incluindo seu triste fim, caso alguém como Magri, com sua trajetória e capacidade de análise, não tivesse assumido essa tarefa. Por último, porque retoma a dura tarefa de fazer um balanço das derrotas da própria esquerda, sem nenhuma solução fácil do tipo “eu disse que isso ia terminar mal” ou a subestimação do tamanho da derrota. Sua leitura pode ser útil ao pensamento crítico latino-americano, não apenas do ponto de vista político, mas também do ponto de vista teórico, da articulação entre reflexão teórica e estratégias políticas.

Emir Sader Secretário Executivo CLACSO

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O compromisso histórico como estratégia1* Lucio Magri

I

ncentivado por essas primeiras conquistas parciais, Berlinguer decidiu que podia e que devia ser elaborada e oferecida, tanto para o partido quanto para o país, uma proposta política orgânica e de longo alcance. E assim o fez, publicando na Rinascita um ensaio, em três partes, ao qual conferia o valor de uma plataforma estratégica, e de fato se ateve a ela ao longo dos anos setenta. O ensaio convenceu e envolveu todo o grupo dirigente do PCI, sem objeções, com exceção das de Longo; e a base do partido, depois de certo incômodo, assumiu a proposta e se esforçou em apoiá-la. Nem mesmo aqueles que mais tarde mostraram perplexidade diante das decisões que a colocavam em prática (como Ingrao e Natta, por exemplo) protestaram contra a implantação dessa proposta política. Pelo menos até o momento em que o próprio Berlinguer, vários anos depois, constatando veementemente sua insustentabilidade e seus deficientes resultados, assumiu a responsabilidade de modificá-la profundamente, encontrando muitas resistências. Portanto, a proposta merece uma atenta análise. Eu a reli e meditei sobre ela recentemente, preparado para mudar de opinião novamente a respeito da veemente crítica que expressei naquele momento. Entretanto, não encontrei razões para corrigi-la; antes, ao contrário, pareceu-me ainda mais justificada: o que aconteceu não foi casual, provocado por acontecimentos imprevisíveis, derivado de erros táticos ou responsabilidade de sujeitos hostis. Ao contrário, essa crítica contribuiu para acelerar e agravar tanto a derrota como suas consequências. A fragilidade e as contradições daquele projeto político estão bem à vista, hoje mais do que nunca, em sua formulação inicial. E eu me esforço para demonstrá-lo. A primeira parte do ensaio estava dedicada quase completamente à trágica circunstância chilena que, naquele momento, perturbava o ânimo de cada companheiro disposto a tirar uma lição. A escolha dessa premissa era por si só discutível, e a reconstrução dos fatos estava, conscientemente ou não, presa ao apoio inadequado de uma saída política. Era inegável que no desastre chileno haviam pesado as fragilidades ou decisões ingênuas de Allende e de seus companheiros. Allende tinha se tornado presidente – e presidente significava responsável direto pelo governo do Chile – de forma perfeita desde o ponto de vista constitucional, isto é, mediante o voto popular, amplamente majoritário, apesar de ter obtido apenas 39% dos votos. Tinha diante de si um Parlamento no qual dispunha de uma maioria ocasional e que, mais do que apoiá-lo, torpedeava-o. Também é verdade que suas intenções e medidas não tinham em absoluto um caráter revolucionário, mas estavam centradas contra os poderes ávidos (monopólios estrangeiros impostos havia muito tempo e sempre depredadores) e oligarquias agrárias insuportáveis. Mesmo assim, por trás desses fortes interesses, havia outros ainda mais fortes, internacionais e, sobretudo, o Chile fazia parte de uma região do mundo semicolonial, na qual a totalidade do equilíbrio estava ameaçada naquele momento. O exército tinha renovado sua fidelidade para com a Constituição, mas ainda assim era uma casta separada, formada nos Estados Unidos. Os riscos de um contra-ataque 1

O texto do presente Caderno faz parte de Magri, Lucio. El sastre de Ulm: el comunismo del siglo XX: hechos y reflexiones. Buenos Aires, CLACSO, 2011. Disponível também em: www.biblioteca.clacso.edu.ar


reacionário eram, portanto, reais. É provável que Allende os tenha subestimado, também, porque uma parte dos que o apoiavam na esquerda o pressionavam para avançar e ir mais depressa. Era verdade, de todo modo, que não lhe faltava apoio popular; ao contrário, tal apoio crescia. Intelectuais e técnicos chegavam de toda a América Latina para ajudá-lo, os partidos da oposição estavam divididos, careciam de uma base de massas, apesar de, precisamente por esse motivo, grande parte da população permanecer despolitizada e oscilante. E, de fato, Allende não foi derrotado por uma coligação parlamentar e nem por mobilizações populares. Primeiro, sofreu o desgaste de um caos econômico organizado intencionalmente do exterior; em seguida, vieram as jacquerias empresariais também manipuladas por terceiros. E, no final, dado que tudo isso não era suficiente, um golpe militar, sugerido e financiado pelos Estados Unidos, que pôs em funcionamento uma repressão gigantesca e sanguinária e terminou como um governo despótico e duradouro. O próprio Berlinguer, em seu escrito, reconhecia tal dinâmica com palavras graves: “As características do imperialismo, particularmente o norte-americano, são o abuso, o espírito de agressão e conquista, a tendência à opressão dos povos cada vez que as circunstâncias o sugerem.” Sendo assim, como teria bastado para impedi-lo, tal como ele sugeria, “uma melhor relação” com uma parte da DC chilena, impotente e frequentemente cúmplice? E, sobretudo, existiam ou podiam ser criadas as condições para exercer esse tipo de ameaça na Itália e em toda a Europa, onde precisamente nessa época voltavam ao poder, pelo menos formalmente, as instituições democráticas (Grécia e Portugal), e num momento no qual os Estados Unidos estavam paralisados pela guerra vietnamita que estavam perdendo? É verdade que também entre nós havia uma crise econômica e política, mas de um tipo completamente diferente e muito mais controlável. Assumir a experiência chilena como um exemplo, assim como havia sido feito em seu tempo com o caso grego, não era somente forçar as coisas, mas também era um desvario. Um obstáculo para compreender tanto outras dificuldades reais com as quais fazer contas, como a possibilidade de mudança que a situação oferecia. O indício de uma incerteza na análise que em longo prazo se refletiria na incerteza da proposta. Na segunda parte do ensaio, na qual aborda plenamente o tema da situação italiana e do objetivo a seguir a que o PCI se propunha, o próprio Berlinguer muda de tom e aumenta sua aposta. Aqui, durante uma boa parte, seu raciocínio era coerente, bem argumentado, e, por esse motivo, pode ser sintetizado sem correr o risco de alterá-lo. A Itália – afirmava ele – atravessa uma etapa de crise profunda e crucial: uma crise do sistema econômico que, depois de um longo período de expansão, já não é capaz de garanti-lo; uma crise dos equilíbrios sociais que consequentemente já não podiam ampliar o bem-estar nem redistribuí-lo de forma equânime somente com a pressão sindical; uma crise das instituições, paralisadas pelos corporativismos e frequentemente contaminadas pela corrupção ou por poderes ocultos; uma crise do sistema político, quase carente de maiorias estáveis e de capacidade de governo. Em tudo isso, reapareciam os velhos atrasos da sociedade italiana e se manifestavam novas contradições, próprias do tipo de modernização do capitalismo italiano e do capitalismo em geral. Ainda assim, era possível também ver o fruto de grandes lutas, defensivas e ofensivas, que haviam obstaculizado esse sistema, conquistado novos direitos, afirmado novos valores, novos sujeitos sociais, novas situações; substancialmente, novas correlações de força na Itália e no mundo. Se uma crise como essa tivesse se enroscado sobre si mesma, se tivesse permanecido nas mãos de uma classe dirigente em busca de uma restauração, teria colocado em risco a própria democracia. Para evitá-la, era necessária e possível uma mudança profunda de direção no governo do país, em suas orientações programáticas, no equilíbrio do poder. Para esclarecer o que entendia como “mudança de direção”, Berlinguer acrescentava duas coisas. Primeiro, que “são necessárias reformas estruturais orientadas ao socialismo”: uma segunda etapa da democracia progressiva. Em segundo lugar (citando Togliatti e Longo), que “é errôneo identificar a via democrática com o parlamentarismo: o Parlamento só pode realizar suas obrigações se a iniciativa parlamentar dos partidos do movimento operário estiver vinculada às lutas de massa e ao crescimento de um poder

democrático na sociedade e em todos os setores do Estado”. E inclusive, quando reiterava a necessidade de reunir, em apoio à mudança de direção, uma maioria da população, e com esse objetivo propunha um encontro entre massas comunistas, socialistas, católicas, citava em ordem: a unidade de classe operária respeitando a diversidade de papéis e tradições culturais; a aliança, não de uma classe média qualquer, mas de seu setor progressista e liberado do corporativismo; e por último, mulheres, jovens, intelectuais, isto é, novos sujeitos que surgiram na luta. Até esse ponto, o discurso era não apenas coerente com relação à identidade histórica do comunismo italiano, mas também assumia um caráter claramente ofensivo. A única crítica que se poderia dirigir a ele – e que então lhe dirigi – dizia respeito ao caráter excessivamente sumário na análise da crise e da situação mundial (particularmente da situação do movimento comunista mundial); ainda mais pela ausência de uma valorização sobre o estado real do movimento de massas, e de toda prioridade programática concreta que servisse como atenuante para medir a mudança de direção. Não se trata de uma crítica irrelevante, pois tais reticências deixaram as mãos livres demais no momento de estabelecer uma relação entre estratégia e tática, entre alianças e conteúdos. Na terceira parte do ensaio, Berlinguer procurava exatamente completar a exposição de seu projeto, indicando, em termos mais precisos, como e a partir de onde teria de partir. Mas justamente nesse ponto surgiram de imediato as contradições que mudavam seu sentido, e comprometiam tanto a lógica como o realismo. O eixo que sustentava essa última parte estava sintetizado em uma frase que depois se tornou famosa: “Não é possível governar e transformar um país com uma maioria de 51%.” Considerada em sua totalidade, e lida à luz de tudo o que a precedia, essa afirmação era incontestável. De fato, não é possível “governar e transformar” um país, social, territorial e culturalmente complexo respeitando-se a Constituição se não se dispõe, também no Parlamento, de força suficiente para deliberar e gerenciar reformas profundas, que dizem respeito a extensos interesses ou hábitos enraizados, e de um lapso de tempo suficientemente longo para que tais reformas produzam os efeitos desejados. A afirmação é incontestável, mas é também ambígua. Ora, o que poderá acontecer e o que se deve fazer se não existe ainda uma força semelhante, se há um vazio de governo e uma perigosa crise se anuncia? Deve-se permanecer na oposição, esperando que a crise produza por si só as condições de uma verdadeira mudança de direção, e trabalhar para construí-la? Ou, ao contrário, deve-se separar o binômio governo-transformação e, pelo menos no início, aceitar a participação de uma maioria heterogênea, fundamentada em um programa mínimo, cuja atuação resulta incerta, prorrogando para um segundo tempo uma verdadeira mudança de rumo, na esperança de que a dinâmica da colaboração e os avanços produzidos por esta na consciência das massas permitam metas mais avançadas, conquistandose enquanto isso pelo menos uma legitimação como força de governo? É evidente que não se tratava de uma decisão abstratamente de princípio, e tampouco se tratava apenas de uma tática gradualmente adaptável de acordo com a conveniência. Tratava-se de uma escolha estratégica para tomar decisões antecipadamente, com base em uma análise concreta, em uma fase historicamente determinada. Togliatti, por exemplo, escolheu antecipadamente a participação em governos de unidade nacional e aceitou, inclusive, uma versão talvez mais moderada do necessário. Apesar de tudo, fez isso com base na valorização das relações de força em um país que estava saindo do fascismo, que havia perdido a guerra recentemente e que tinha os exércitos ocidentais em casa; e talvez tenha feito isso esperando que a unidade dos grandes países vencedores durasse um pouco mais. Mas o fez, sobretudo, porque pensava que a ação imediata de governo, para a qual além disso estavam disponíveis todas as forças da resistência, não era o ponto essencial. Era essencial, por outro lado, a conquista da República e principalmente de uma Carta Magna avançada e compartilhada. E ele conseguiu isso, inclusive com a contribuição dos Dossetti, dos Lazzatti e dos La Pira. Um “compromisso histórico” havia sido firmado, e nós estamos ainda hoje o defendendo do desmantelamento. março de 2012

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Cadernos do Pensamento Crítico Latino-Americano

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Coldiretti: organização de empresários agrícolas. Federconsorzi: Federação Italiana de Consórcios Agrários, órgão fundamental da política agrícola estatal (N. do T.).

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centrista então despedaçada e as cada vez mais recorrentes tentativas de socorrê-la mediante acordos provisórios e feitos por baixo da mesa com a extrema direita, inflamavam tensões em seu interior em vez de oferecer uma solução. A mudança marcada pelo Concílio, sobretudo, atuava nas experiências da igreja de base e criava algum reflexo, inclusive entre muitos intelectuais próximos de sua cúpula. Em uma convenção quase desconhecida, mas desafiante (em Lucca, já em 1967), a partir de diferentes ângulos, Ardigo e Del Noce haviam lançado a pergunta: “A gente simples se pergunta: como é possível que, depois de décadas de governo de um partido católico, a marca cristã da sociedade decline?”. E, de qualquer modo, a rejeição de um verdadeiro tratado com o Partido Comunista, que chegara a ser mais forte e era considerado como menos ameaçador, restava como algo infundado e intransigente, exatamente porque essa dita força por si mesma podia colocar em questionamento o partido-Estado, ameaçar sua supremacia no exercício do poder, que constituía seu verdadeiro aglutinador. De fato, esse acordo não aconteceu. E jamais poderia ter sido realizado sem que enfrentasse uma crise e sem uma ruptura da DC, que libertasse forças aprisionadas em seu interior. Entretanto, Berlinguer e o grupo dirigente do PCI rejeitaram tomar nota dessa evidência e assumir, ainda que fosse a sua maneira, as consequências. Ao contrário, iam se convencendo que somente mediante um deslocamento global e gradual da DC, mediante uma experiência comum de governo, poderia nascer um encontro entre massas comunistas, socialistas e católicas. Portanto, Berlinguer, no fim de seu ensaio, contornou o problema com um sofisma e escreveu: A DC não é uma realidade metafísica, mas sim um sujeito histórico modificável. Nasceu em oposição ao velho Estado liberal e conservador, foi arrasada pelo fascismo, em seguida participou da guerra da libertação, contribuiu com a redação da Constituição e depois participou na Guerra Fria, no lado oposto ao nosso inclusive, das piores maneiras. Hoje, pode se modificar novamente, e cabe a nós ajudá-la ou obrigá-la a fazê-lo. Assim, concluiu sua reflexão com uma proposta trabalhosa e reconciliadora para o governo do país: um “novo grande compromisso histórico”, cujos protagonistas naturais eram os dois maiores partidos. Em que consistiria esse compromisso e como ele poderia chegar a ser “histórico” são questões que obviamente ficavam como algo bastante misterioso. Para mim, não fica claro o porquê de tal risco. Talvez ele realmente acreditasse ter encontrado uma saída para uma situação tão difícil e complexa. Talvez pensasse estar protegido dos riscos que isso implicaria por um excesso de confiança na força de impulso e na solidez dos princípios do próprio partido. Mas, provavelmente – e uma coisa não exclui a outra –, Berlinguer não previa que se encontraria tão rapidamente diante de uma saída que não estava ainda madura nem diante de ofertas democristãs tão mesquinhas, e é provável que tenha supervalorizado a extraordinária habilidade de Moro no dizer e no não dizer, no prometer e no protelar. De fato, mais do que encontrar uma solução, ele havia metido a mão em uma arapuca, de onde a retirou tarde demais. F Os Cadernos de Pensamento Crítico Latino-Americano constituem uma iniciativa do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO) para a divulgação de alguns dos principais autores do pensamento social crítico da América Latina e do Caribe. São publicados mensalmente nos jornais La Jornada do México e Página 12 da Argentina e nos Le Monde Diplomatique da Bolívia, Chile, Colômbia, Espanha, Peru e Venezuela. No Brasil, os Cadernos do Pensamento Crítico são publicados em parceria com a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO) na Revista Fórum.

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Não era essa, apesar de tudo, a situação dos anos setenta. Quer fosse pela crise econômica, quer fosse pelo conflito social, não conseguiam encontrar uma solução “mais adiante” separando “governo” de “transformação”. De fato, Berlinguer mal tinha acabado de escrevê-lo, e já se propunha uma “mudança de direção na sociedade e no Estado”. Ainda assim, aceitando, como se dispunha a fazê-lo, uma separação dos tempos, ou o que dá no mesmo, a hipótese de uma fase de transição que abrisse o caminho para metas mais ambiciosas, era possível tal hipótese, e quais eram as condições? O tema central, neste caso, passava a ser o das forças políticas e sua disponibilidade e, a partir daí, de fato, tirou-se a atenção da última parte do ensaio, que tinha muitas características daqueles “reinos imaginários” que até o próprio Berlinguer detestava. Era “imaginário”, acima de tudo, dar como garantida a riqueza da esquerda, à qual dedicava, não por acaso, apenas uma breve menção. A unidade com o PSI já havia se desfeito há mais de dez anos no plano político, e também estivera ameaçada no sindicato e nas administrações locais. Ela poderia se reconstruir nos anos setenta, mas com um trabalho paciente e de resultado incerto. Isso, claro, com a condição de não alimentar, mediante um relacionamento preferencial com a DC, a suspeita de que se quisesse relegar o PSI a um papel marginal e subalterno. Não era menos imaginário considerar que a extrema esquerda não era mais influente e sim facilmente controlável. Não havia dúvidas de que estava desorientada e dispersa, embora exatamente de sua crise brotasse qualquer disponibilidade a um confronto (por exemplo, cito a interessante tentativa do nascimento do PDU P, o Partido de Unidade Proletária, e da reflexão em A vanguarda Operária [Vanguardia Obrera] ou no MLS, o Movimento de trabalhadores para o socialismo). Existia ainda, principalmente, desorganizada embora extensa, uma ampla área juvenil formada em 1968 e em 1970, que havia dado muitos votos ao PCI como única formação parlamentar de oposição, mas que não havia se rendido em absoluto, e que teria reagido contra governos de ampla coalizão e de baixo perfil das maneiras mais imprevisíveis, embora seguramente não com simpatia. A hipótese de uma maioria de governo que incluísse o PCI em tempos razoavelmente breves se fundamentava, portanto, essencialmente sobre um acordo direto entre os dois partidos maiores, a DC e o PCI. Aqui o imaginário prevalecia ainda mais, mas era desmentido por uma reconhecida evidência. De fato, um mês antes, a mesma Rinascita havia publicado em forma de suplemento um número especial de Contemporáneo, dedicado precisamente à análise da DC. Ali intervinham alguns dos dirigentes de maior prestígio, como Chiaromonte e Natta, com alguns especialistas como Accornero e Chiarante. Ao relê-lo, uma coisa impressiona: a partir de diferentes perspectivas, todos convergiam em drásticas análises. A DC já era diferente, diziam, da original. Menos clerical e ao mesmo tempo menos religiosa. Fortemente enraizada na sociedade por meio de diferentes canais clientelistas, proteções sociais, exercício prudente do poder, apoio às empresas, apresentando-se como garantia de estabilidade econômica e administração experimentada do gasto público. Em síntese, um partido-Estado construído em 30 anos, capaz de mediações. Por isso, estava cronicamente dividido em diferentes correntes organizadas, cada uma das quais tinha relações orgânicas com certos grupos, certos territórios, certos setores do aparelho estatal e das empresas públicas, mas fortemente unido pela necessidade de manter sua supremacia. Sua força principal tinha origem na expansão econômica da qual podia fazer alarde, para a qual havia contribuído e cujas vantagens sabia distribuir com sabedoria. Isso não significava que a DC fosse uma fortaleza invencível e impenetrável. De fato, o declive do desenvolvimento econômico também tornava para ela mais estreitas as margens de mediação entre os interesses que representava. O ciclo de lutas operárias havia incidido claramente nas posições e nos comportamentos das grandes organizações sociais que estavam tradicionalmente ao seu lado, como a CI SL e a ACLI (inclusive no mundo agrário, submetido à pressão da indústria agroalimentar e aos injustos acordos impostos pelos maiores países europeus, escapava ao controle total da Coldiretti e da Federconsorzi2). A aliança parlamentar

CLACSO é uma rede de 300 instituições, que realizam atividades de pesquisa, docência e formação no campo das ciências sociais em 28 países (www.clacso.org). FLACSO é um organismo internacional, intergovernamental, autônomo, fundado em 1957, pela Unesco, que atua hoje 17 Estados Latino-Americanos (www.flacso.org.br).


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Corpo feminino, beleza e diversidade na mídia À medida que as mulheres passaram a obter vitórias políticas, conseguindo a igualdade jurídica, a discriminação foi deslocada para outros campos. E um tema que merece atenção é o da aparência feminina, pois envolve uma mudança no enfoque do corpo da mulher na mídia por Cynthia Semíramis

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ulheres ainda são avaliadas primeiro – e principalmente – por sua aparência, e não por suas atitudes e qualidades. Resquício de uma época na qual mulher não podia estudar nem trabalhar, a aparência feminina era fundamental para enfeitar o ambiente e se destacar. Porém, os tempos mudaram, e hoje não faz o menor sentido adotar a aparência física como critério principal para a avaliação da vida de uma mulher e de sua atuação profissional. Um homem não vai ser considerado menos profissional se for careca, idoso ou andar como um pato. Caso não use as roupas da moda, será visto como excêntrico, não como indigno de confiança profissional. Uma mulher será criticada em toda a sua aparência (peso, roupas, esmalte, batom, rímel, sombra, cor e corte de cabelo, espessura e formato da sobrancelha, sapatos, bolsa, brincos, colares e pulseiras) antes de ser avaliada pelo que tem a dizer. Seu peso e sua aparência são tratados como assuntos públicos, como se ela estivesse o tempo todo precisando primeiro ser aprovada como enfeite, e só depois, segundo o ideal de beleza vigente, pudesse ser avaliada e aprovada como profissional. Essa desigualdade na abordagem da aparência faz com que as mulheres não tenham a mesma igualdade de oportunidades que

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os homens. A avaliação é feita por critérios desiguais em razão de gênero, e a necessidade de atender a essa pressão faz com que mulheres sejam fortemente prejudicadas em sua vida social e profissional.

Ideal de beleza ignora a diversidade de corpos

Ao longo do século XX, o padrão de beleza criado com base nas medidas da média das mulheres deu lugar ao ideal de beleza, que valoriza um tipo de corpo bem distante da média da sociedade. Em 1950, uma mulher de 1,60 m e 63 kg era modelo de beleza; atual­ mente a modelo tem de ter mais de 1,75 m e pesar 50 kg, ou menos. A modelo de 1950 tinha o corpo parecido com o das mulheres de sua época; a de hoje, tem o corpo bem distante da realidade da maioria das mulheres. O modelo ideal de beleza atual, incentivado pelos meios de comunicação de massa, é extremamente limitador: para ser bonita é necessário ser jovem, extremamente magra, alta e com traços europeizados (pele, cabelos e olhos claros, cabelos lisos). Basta andar na rua para perceber que é raríssimo alguém ter todas essas características – e praticamente impossível tê-las ao mesmo tempo. Trata-se de um modelo que ignora a diversidade racial e cultural brasileira. É absurdo que, para ficar em um exemplo, cabelos escuros e crespos sejam vistos como inadequados e necessitem ser clareados e alisados para se enquadrar em um ideal de beleza que nega a história das brasileiras. Porém, é esse ideal de beleza altamente excludente e alienante que é tratado como único modelo a ser seguido se as mulheres quiserem obter respeito social e profissional.

Infância direcionada para os cuidados com a aparência

Um dos efeitos da obsessão em obrigar mulheres a ter o corpo perfeito está na pressão exercida durante a infância. em vez de brincar ou estudar, as meninas são incentivadas a perseguir um corpo ideal desde tenra idade.

Antes de aprender a ler, meninas já aprenderam a usar batom e a ter medo de engordar. É cada vez mais comum encontrar maquiagem e tintura específicas para cabelos de crianças. Saltos altos, tratamentos estéticos e gestos limitados para não sujar roupas ou borrar a maquiagem já são rotina para muitas meninas. Estudar, ter vida social e tentar ser feliz são valores secundários: o que importa é aprenderem a controlar e alterar o próprio corpo para obter a aparência perfeita. Durante a puberdade, incapazes de aceitar as mudanças em suas formas e o aumento do grau de gordura corporal, muitas meninas se entregam a dietas de emagrecimento, às vezes até dificultando ou impedindo o processo metabólico natural que levará à menarca. O impacto em suas vidas varia de problemas com autoestima e insatisfação duradoura com seu corpo, passando pelo desenvolvimento de distúrbios alimentares e anorexia, podendo chegar à morte.

Igualdade de gênero, violência e declarações de direitos

A pressão para construir e manter o corpo perfeito resulta em violência física e psicológica. Tentar atingir um modelo inatingível gera angústia, estresse e sensação de inadequação. A pretexto de modificar quem não se enquadra no modelo, estimula-se a zombaria e a agressão, chegando ao ponto de agressão física (como os “rodeios de gordas” na Unesp, no qual universitários perseguiam e agrediam suas colegas que estavam acima do peso considerado ideal). Além da questão da violência, há também a violação do princípio da igualdade. Não é possível ter igualdade de gênero em um sistema que, desde a tenra idade, força as meninas a se perceberem como fisicamente inadequadas e dificulta a inclusão social feminina. Também há a violação dos princípios de proteção ao desenvolvimento físico e mental de crianças e adolescentes. Declarações de direitos são fundamentais no combate a todo tipo de discriminação contra mulheres, inclusive quando gera violência


psicológica. Dentre as diversas declarações e convenções, destacamos a Convenção de Belém do Pará (1994), dedicada a combater a violência contra mulheres. O artigo 6º declara o direito de a mulher ser valorizada e educada livre de padrões estereotipados de comportamento e práticas sociais e culturais baseados em conceitos de inferioridade ou subordinação, e o artigo 8º, considera dever do Estado incentivar os meios de comunicação a formular diretrizes adequadas de divulgação, que contribuam para a erradicação da violência em todas as suas formas e enalteçam o respeito pela dignidade da mulher.

Rodrigo Esper - esper.art.br / Flickr

Antes de aprender a ler, meninas já aprenderam a usar batom e a ter medo de engordar. É cada vez mais comum encontrar maquiagem e tintura específicas para cabelos de crianças

Combatendo a discriminação em razão de aparência O combate às discriminações legitima a atuação do Estado em duas frentes: estímulo a políticas públicas de combate à discriminação e incentivo à introdução de mudanças nas áreas de educação e mídia para modificar as relações de poder que estereotipam e patrocinam comportamentos prejudiciais às mulheres. O Estado brasileiro vem agindo por meio da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), desenvolvendo atuação específica para questionar e combater os estereótipos sobre mulheres divulgados em anúncios publicitários e programação televisiva. É importante lembrar que o Estado não está

censurando nem proibindo, está apenas questionando os valores que são transmitidos pelos meios de comunicação. Ao questionar, propõe mudança de paradigma, para que a mídia combata a violência simbólica contra mulheres. A atuação da SPM, embora louvável e juridicamente correta, ainda é insuficiente. É necessário haver mais envolvimento da sociedade civil e dos demais poderes da República, a exemplo do que ocorre em outros países. Na Suécia, anúncios que exploram o corpo feminino ou que usam mulheres para vender produtos não ligados ao corpo feminino são pichados e sofrem repúdio público. Na Espanha, os desfiles de moda seguem regras para impedir a participação de modelos desnutridas ou jovens demais. Na Inglaterra, anúncios de maquiagem e produtos tidos como rejuvenescedores são retirados de circulação se fica evidente o excesso de manipulação digital da imagem, caracterizando propaganda enganosa. O Ministério Público de São Paulo tem interferido na indústria da moda com bons resultados. Ao exigir modelos negras nas passarelas e proibir algumas participações (modelos abaixo de 16 anos ou magras demais), abriu espaço para maior diversidade de mulheres nas passarelas. É necessário ampliar esse tipo de iniciativa para outras áreas. Anúncios publicitários ainda são bastante discriminatórios, e o Conar, apesar da pressão da sociedade civil, pouco tem feito para modificar esse quadro. Falta diversidade nas revistas e na televisão: a aparência física da maioria das apresentadoras de telejornais, atrizes e modelos está bem distante da média da população e não representa a diversidade das regiões e dos corpos das mulheres brasileiras. O descaso com que são recebidas as críticas à falta de diversidade na mídia faz crer que é necessário forçar a implementação de cotas para estimular a diversidade feminina. Também é o caso de punir propaganda enganosa ou discriminatória em razão de aparência. Em suma, é necessário agir não só por meio de políticas públicas, mas judicialmente, para impedir que se incentive um ideal de beleza excludente que atua para controlar os corpos e restringir a vida das mulheres. Mulheres são muito mais do que corpos, e corpos são muito mais do que aparência estética. É importante lembrar disso para combater o controle do corpo feminino por meio da imposição midiática de um modelo estético opressor, que ignora a diversidade e que não contribui para uma vida com mais liberdade para as meninas e mulheres. F março de 2012

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De quem é a terra na Bolívia?

O delicado problema de conflitos fundiários e de territórios, que por tantos anos foi ignorado, só agora começa a ser discutido no país

por Lídia Amorim, da Bolívia. fotos de Boris Garcia

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odos os dias, antes que o Sol apareça no horizonte, Octavio Yauquirena se levanta para trabalhar. A divisão de trabalho na comunidade onde vive se dá de acordo com o que o coletivo decide, distribuindo-se tarefas como caçar, pescar, cuidar das árvores de cacau-silvestre, plantar, colher, limpar terreno. Octavio é indígena guarayo, e vive na comunidade de Urubichá. A poucos quilômetros dali está o que antes era a fazenda de Laguna Coração, e agora é uma comunidade campesina. No local, vive Ceferino Cuentas. Quando a fazenda foi expropriada, ele veio com sua família de La Paz, e hoje tem seu pequeno pedaço de terra onde planta produtos orgânicos em sistemas diversificados. E, ao lado do grupo de camponeses,

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separados apenas por uma pequena estrada de chão, está uma grande propriedade de soja. Todas essas pessoas estão na cidade de Ascensão de Guarayos, no departamento de Santa Cruz, na Bolívia. Essa diversidade é apenas um pequeno exemplo dos contrastes do Estado Plurinacional da Bolívia, que agrega camponeses, empresários, indígenas do altiplano e indígenas de terras baixas. Também há mineiros; no caso da região de Guarayos, exploradores de ouro. Em outras regiões, como a do Parque Nacional Isiboro Sécure, Tipnis, há os cocaleiros. Cada um com sua visão de desenvolvimento e seus interesses. E, infelizmente, pouquíssimos têm disponibilidade e paciência para negociar pontos que sejam comuns a todos. Neste momento, segundo dados da Fundação Unir Bolivia, pouco mais de 6% dos conflitos do país estão relacionados de maneira

direta aos temas de terra, território e recursos naturais. Pode até parecer uma cifra pequena, mas o problema é que a maioria desses conflitos é grave e tem pouca perspectiva de solução. Além disso, o delicado problema de terra e território, que por tantos anos foi ignorado, só agora começa a ser discutido no país. E isso significa colocar o dedo em uma profunda ferida mal cicatrizada. O problema mais conhecido atualmente é o do Território Indígena e Parque Nacional Isiboro Sécure – Tipnis. Com a promulgação da Lei 180, de proteção ao parque, depois da grande marcha contra a construção de uma estrada que cortaria a área protegida ao meio, a situação não se acalmou. Chegou a La Paz outra marcha, realizada em grande parte por comunidades do Polígono Sete do parque, conhecido pela presença maciça de colonos ou interculturais (grupos que saí-


ram de outras partes do país, como La Paz e é a possibilidade de enfrentamentos dentro isso, temos que cuidar. Caçamos, por exema região cocaleira do Chapare de Cochabam- da reserva, que poderiam acabar em gran- plo, para comer um bichinho a cada cinco ba, em busca de novas terras para plantar) des tragédias. Assim como ocorre com vá- dias, com planejamento, para cuidar dos bie cocaleiros. O pedido agora era a favor da rios países latino-americanos, o que inclui chos”, conta Octavio Yauquirena. construção da estrada e anulação da Lei 180 o Brasil, tais questões têm origem mais proA diferença entre terras altas e terras de proteção ao Tipnis. funda e se relacionam com reformas agrá- baixas está no modelo de agricultura que deSão dois lados defendendo seus próprios rias mal feitas, má distribuição de terras, e, senvolvem. Na TCO Guarayos, por exemplo, modos de vida. De um, estão mojeños, yura- claro, com visões de mundo e de desenvolvi- trabalha-se atualmente com o cacau-silvestre. carés e chimanes, que defendem seu direito mento muito diferentes entre si. São árvores que estão ali há séculos. Agora, os de manejar o território da maneira que seus guarayos estão limpando o lugar e vendenancestrais faziam. E isso não quer dizer que A terra para os povos do os frutos para a produção de chocolate. Gregório Villca se levanta, mata um cor- Eles plantam, mas não pensam em grandes não queiram a estrada. Só que não a querem deiro, separa panelas. É dia de colheita. Ou extensões nem em monoculturas. São essenno meio da sua TCO. “Que Terra Comunitária seja, é dia de omaraka. Num sistema de ayni, cialmente coletores e caçadores e, por isso, passe de um lado, do outro, de Origem, marco ou reciprocidade, toda sua família e vizinhos necessitam de grandes extensões de floresta mas não pelo meio”, explica legal que garante ajudarão a colher as batatas maduras. E, em preservada para viver como seus ancestrais. Fernando Vargas, dirigen- a posse comuniuma grande festa, se mata o cordeiro, que é te da subcentral Tipnis. Do tária da terra. Mas no sistema em aplicação na Bolípreparado ali mesmo, do lado da colheita. via, assim como em quase toda a América outro lado, os camponeses colonos também defendem sua visão de de- Todos comem e festejam o produto depois de Latina, a base das leis é o Direito Romano, senvolvimento, pedem a estrada para trans- meses de espera, presente saboroso da mãe segundo o qual a terra obedece a uma mera portar seus produtos. E pedem também que terra. Depois Gregório, como ayni, também jurisdição espacial. E se registra como proo governo reveja a distribuição de terra das ajudará os outros com suas colheitas. priedade. Ainda que no país seja uma granMeses antes, a terra foi dividida em ay- de vitória o reconhecimento constitucional TCOs, por acreditar que “é muita terra, e eles nokas, ou parcelas. Cada comunário é res- do direito à terra aos povos indígenas, não nem são tantos”. Mas o problema não é só com o Tipnis. Na ponsável por uma. E, num sistema de rota- se conhece bem esses mesmos povos, seus TCO Guarayos, onde vive Octavio Yauquirena, ção, a cada ano se planta um tipo de produto: usos e costumes, e pensa-se a questão de as coisas também estão complicadas. Gua- diferentes espécies de batata, quinoa, ali- território apenas como propriedade coletirayos já tem estrada bem perto. Também tem mento para os animais. Também é reserva- va, não como um espaço comunal. “As Consum plano de manejo de exploração da madei- do um ano para o descanso de cada aynoka. tituições Políticas têm essa orientação, e ra por empresários. Segundo o as reformas agrárias também. plano, cada árvore que se derru- Neste momento, segundo dados da Fundação Unir A lógica sempre é privatizar e ba deveria ser reposta. Mas isso abrir o mercado de terras”, connão é realidade. O bosque gua- Bolivia, pouco mais de 6% dos conflitos do país estão sidera Simón Yampara. rayo é cada dia menor. As coisas relacionados de maneira direta aos temas de terra, E essa lógica já está cheganmudam. Todos na TCO já sendo às mesmas comunidades. Enterritório e recursos naturais tem essa mudança e não sabem quanto Octavio trabalha com os como se livrar nem dos madeioutros guarayos para habilitar reiros, nem dos exploradores de as áreas de cacau-silvestre, tamouro. “Quando eu era menino, isso era grande, No altiplano andino, segundo os indígenas, a bém há os que ajudam na venda de madeira e tinha caça aqui, muito peixe. Agora, não. Para terra é um organismo vivo, a mãe terra pro- autorizam a exploração do ouro, muitas vezes caçar, tem que caminhar quilômetros dentro vedora. Ela se cansa, se zanga, por isso é ne- ilegal. Nos Andes, a reciprocidade já não é a cessário cuidar dela. do bosque”, conta Octavio. mesma. “Íamos às casas e nos comprometíaNessa lógica, o aimara e o quéchua enten- mos. A omaraka, essa ajuda mútua para coA Lei 180 de proteção ao Tipnis não foi anulada, mas o governo preparou outra lei: dem o território como um todo, e o uso da lher, era um compromisso. Mas olha ali meu a Lei de Consulta, que será realizada nas co- terra é visto de maneira individual e também vizinho – e aponta a terra ao lado –, ele decimunidades do Isiboro Sécure, com a parti- comunal. “O privado se complementa com diu fazer sozinho para não se comprometer”, cipação não só das comunidades indígenas o comunitário. A sua casa, você desfruta de conta Gregório. como também dos colonos. A consulta será forma privada, e o resto do território é cofeita segundo os usos e costumes de cada co- munitário”, explica Simón Yampara, sociólo- Divisão de terras e reformas agrárias Em 1952, a Bolívia teve sua primeira remunidade, que não foram pontuados em de- go aimara. Os povos originários de regiões baixas forma agrária, depois de muitas manifestatalhes porque os criadores da lei não sabem quais são esses usos e costumes. A consulta têm uma lógica parecida. Sua relação com ções e pressões. O que se conseguiu foi uma deverá ter como pontos centrais se a estra- as terras e territórios tradicionais é parte distribuição de terras aos campesinos e inda deve ou não ser construída e se a floresta fundamental de sua identidade e espirituali- dígenas baseada em títulos de propriedade, dade, estando profundamente arraigada em o que não atendeu à demanda de terras de deve ou não ter zonas intangíveis. O problema do Tipnis só está começan- sua cultura e em sua história. “Somos terra, e comunais. Outro ponto foi que ela se restrindo, com a perspectiva inclusive de outra a terra é o que nos dá a comida. O território é gia a terras altas e vales, que eram consideramarcha contra a construção da estrada e, nossa casa grande, de todos nós, porque nos dos, naquela época, os mais disputados por agora, contra a consulta. Mas o pior de tudo dá tudo, nos dá a caça, a pesca, os frutos. Por quéchuas e aimaras. Entretanto, os povos março de 2012

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amazônicos e de terras baixas foram total- paro para receber tanta gente. Mas o que mais mente excluídos dessa reforma. gerou conflitos, que até hoje seguem cada vez Os indígenas de terras baixas do Orien- mais fortes, foi a migração para o Oriente do te, Chaco e Amazônia do país, cada vez mais país, com assentamentos e invasões princidespojados de seus territórios pelas constan- palmente nas TCOs e áreas protegidas. Assim tes explorações de recursos não renováveis e começa a chamada colonização, a apropriação renováveis, se organizaram em 1990 na Con- de territórios que pareciam terra de ninguém, federação Indígena do Oriente Boliviano (Ci- mas que, sim, já tinham dono. dob) e organizaram a primeira grande marHoje, sem compreender o modelo de cha desses povos pela vida e pela dignidade. A vida dos povos originários, tanto do Oriente marcha exigia, principalmente, o direito à au- como do Ocidente, campesinos, fazendeiros todeterminação e respeito a sua cultura, seu e outros grupos que estão de olho nas teridioma e seu território. “Nós, os povos, temos ras férteis e virgens das TCOs pedem que se o direito de decidir como queremos estar, e redistribuam essas terras e se estabeleçam não queremos que o governo defina o que é novos limites. que temos de querer”, define Simón Yampara. Seis anos passaram até que se aprovou a A visão do governo Em 2003, o povo boliviano decidiu dar Lei 1.715, conhecida como Lei Inra. Essa foi a segunda lei de reforma agrária da Bolívia, e um basta na crise que estava vivendo com teve como objetivo sanear as terras, ou seja, o governo neoliberal de Gonzalo Sanchez de verificar os direitos das terras no país para Lozada, o Goni. Os sucessivos conflitos, que pensar no que fazer com os povos originários tinham como tema de fundo a privatização do Oriente, que organizavam marcha atrás de da água e do gás, fizeram com que a popumarcha, exigindo autodeterminação e digni- lação pedisse sua renúncia, que resultou dade. Com essa lei se criaram as TCOs, uma na fuga de Goni do país, supostamente com nova distribuição de terras para os indígenas milhões em barras de ouro que estavam no de terras baixas. “Isso beneficiou os povos in- Banco Central. Foi nesse contexto que surgiu a figura de dígenas, porque dá segurança jurídica, lhes outorga territórios saneados”, considera Gon- Evo Morales. O carismático líder cocaleiro Acima, Octavio, indígena guarayo, que vive na conquistou a Bolívia, falando de uma nova comunidade de Urubichá, e Gregório Villca, morador zalo Colque, diretor da Fundação Terra. Mas a Lei Inra deixou vários temas pen- Constituição, da nacionalização dos hidro- da comunidade andina de Challa Arriba: locais diferentes, lutas comuns dentes. Um deles é o tema do latifúndio no carbonetos e minerais, de uma nova reforma Oriente boliviano, grandes propriedades agrária, da industrialização do país. Tudo consideradas ilegais, mas que não foram isso com a participação real do povo boliobjeto de revisão técnica e jurídica. “É uma viano, e não só das elites que desde sempre tidades representativas do país. Nela, se recoisa que continua, a compra e venda de ter- dominaram a Bolívia. Assim, os povos origi- conhecem 36 nações originárias na Bolívia, ras no país, de terras para plantio de soja no nários votaram por identificar-se com Mora- seus direitos e territórios. Como em todo mercado negro, sem controle governamen- les e para ter terra, território e a tão sonhada inicio de relacionamento, a relação de Evo tal, sem pagamento de imposcom os movimentos indígenas tos, sem títulos de proprieda- Campesinos, fazendeiros e outros grupos que estão estava na fase de sedução, na de”, explica Colque. Outro ponto qual os dois lados estavam se de olho nas terras férteis e virgens das TCOs pedem é que, dessa vez, quem ficou conhecendo, também fazendo fora da reforma foram os cam- que se redistribuam essas terras e se estabeleçam promessas mútuas sem pensar pesinos de terras altas. na dificuldade de cumpri-las. novos limites Enquanto as demandas de Depois, veio o “casamento” e terras baixas do Oriente cresapareceram as dificuldades tíciam e consolidavam suas ações políticas, por autodeterminação garantidos constitucio- picas do processo. efeito da reforma agrária de 1952, as terras nalmente. Os campesinos e cocaleiros votaEm 2006, Morales apresentou ao país do Ocidente ou Altiplano começaram a passar ram pela expansão agrícola do seu modelo e uma proposta de modificação da Lei Inra, por um acelerado processo de minifundiza- do seu produto. A classe média urbana votou chamada Lei de Recondução Comunitária da ção. As parcelas se tornavam cada vez meno- pela nacionalização dos hidrocarbonetos e Reforma Agrária e batizou o processo como res, perdendo sua capacidade produtiva e de pela industrialização, que permitiria à Bo- Revolução Agrária. Com essa lei, ele districompetitividade num mercado em que o mo- lívia deixar de ser só exportadora de maté- buiu terras fiscais, deixando latifundiários da delo agroindustrial desenvolvido em Santa rias-primas. O que não se pensou na época é região oriental do país com um gosto amargo que seria tão difícil pôr em prática tudo isso na boca. Foi o caso da grande fazenda LaguCruz se tornava cada vez mais forte. O resultado foi uma migração em grande ao mesmo tempo. E Evo foi eleito presidente. na Coração, que deu origem à comunidade A nova Constituição do Estado foi escri- de mesmo nome, na cidade de Ascensão de escala para as áreas urbanas do país. Nessa época, 70% da população boliviana migrou ta com o apoio principalmente do chamado Guarayos, praticamente ao lado do que hoje para as cidades, que não tinham nenhum pre- Pacto de Unidade, união das principais en- é a TCO Guarayos.

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Mas as divisões feitas até agora não foram suficientes para solucionar a questão. A proposta parecia haver conseguido consensos entre os diferentes setores, mas o tempo passou, e a aplicação enfrenta dificuldades estruturais cada vez mais complicadas, geradas por inúmeras contradições e uma quase impossibilidade de diálogo entre os diversos setores. “O governo sugere um Estado plurinacional tendo como base os direitos indígenas e, por outro lado, tem um planejamento de industrialização e de exploração. Creio que politicamente ele prefere mover-se nesses dois campos, mas acho que já não é sustentável neste momento”, considera Gonzalo Colque, diretor da Fundação Terra. De um lado, estão os direitos dos povos indígenas e, do outro, a aceleração do crescimento econômico, com o aumento da exploração dos minerais e hidrocarbonetos, em um modelo econômico extrativista. Quando o governo começa a ir por um ou outro lado, alguém dá o grito.

sendo motivo de conflito não só na Bolívia, mas no mundo todo. Isso porque o mercado necessita desses recursos – renováveis e não renováveis – e mais de 60 milhões de indígenas no mundo dependem dos bosques para sobreviver. Muitos são expulsos de suas comunidades pela pressão do mercado, e o resultado é desastroso, já que o sistema quer despojar essas pessoas dos seus meios de vida, mas não se preparou para recebê-las.

Autonomias e problemas de fronteira

A marcha pela vida e a dignidade promovida nas terras baixas do Oriente, em 1990, agregou de maneira contundente a figura do território à já problemática questão da terra. Quando se fala de terra, faz-se referência a um meio produtivo, mas, quando se fala de território, a questão muda e torna-se muito mais complexa: o território não só explica o espaço geográfico de posse, mas também o lugar no qual grupos humanos praticam e reproduzem a vida em comunidade e onde se estabelece um equilíbrio entre homem, biodiversidade e natureza. Teoricamente, o reconhecimento, em 1996, pela Lei Inra das TCOs seria a solução para o tema território no país. Mas, não. Para os indígenas de terras altas, não houve nenhuma solução, já que continuaram não sendo reconhecidos de maneira comunitária. Para os de terras baixas, a lei foi meramente decorativa. Isso porque, nessa época, as TCOs dependiam de regras em âmbito municipal, não tendo nenhuma autonomia ou representatividade política. O tema da autonomia só foi considerado a partir do governo de Evo Morales. As auto-

país também são áreas protegidas. E outro tema-chave é o das fronteiras. Na Bolívia, só dois municípios têm suas fronteiras bem delimitadas. Para que as autonomias possam valer de fato, é necessário que os limites estejam definidos, o que pode gerar muitos conflitos. Um exemplo é a contenda que vivem hoje os municípios de Coroma e Quillacas, nos departamentos de Potosí e Oruro. “As pessoas conseguem documentos até da época da Coroa Espanhola para justificar a posse de terras”, conta Pedro Gomez, da Fundação Unir Bolivia.

Diálogos

O grande desafio da Bolívia atualmente está em definir suas estratégias com respeito à terra, território, desenvolvimento rural e combinar as estratégias dos diferentes atores com as estratégias de governo. Considerando as diferentes visões, é uma missão complicada. Porém, é possível. E uma das soluções seria uma política transparente de fomento ao desenvolvimento integral, combinando tecnologias tradicionais com novas Recursos naturais técnicas de investigação e inovação. O calcanhar de Aquiles do governo Evo “Se continuarmos vendo os povos como Morales sempre foi encontrar o modo de competição, isso é perigoso. Se continuarmos exploração dos recursos naturais não renoanulando os povos, aí pode ser desastroso”, váveis em acordo com os povos. Isso porque, considera Simón Yampara. “O mais conveeconomicamente, a Bolívia ainda depende da niente é que se estimule um diálogo entre as exportação de matérias-primas, além de ter partes, quando as coisas se polarizam, o reum grande potencial futuro na área. Exemsultado é a violência”, analisa Pedro Gomez, plos disso são a gigantesca reserva de lítio da Fundação Unir Bolivia. Na comunidade que existe no Salar de Uyuni e as reservas de andina de Challa Arriba, onde vive Gregório ferro no Morro do Mutum, além dos grandes Villca, os comunários querem resgatar os cocampos gasíferos, como o Margarita. nhecimentos tradicionais e estudar para fazer Os povos indígenas e originários demanum equilíbrio entre os seus próprios saberes dam por direitos sobre os recursos naturais e aqueles que vêm de fora. O exemplo foi o do solo, subsolo e sobressolo trabalho conjunto desenvolvido por meio da titulação das terras O calcanhar de Aquiles do governo Evo Morales com pesquisadores universicomo comunitárias de origem tários, que fez com que o rensempre foi encontrar o modo de exploração (TCOs), assim como reivindidimento da colheita de batata cam os direitos de consulta, de dos recursos naturais não renováveis em acordo fosse melhorado graças a um participação e os direitos po- com os povos fertilizante natural, cuja base é o líticos, sociais, econômicos e esterco animal fermentado. culturais, que se encontram esNa TCO Guarayos, a convitabelecidos no convênio 169 da OIT e na Denomias são uma forma de descentralização vência harmoniosa dos indígenas com a fauna claração dos direitos dos povos indígenas da profunda a nível subnacional – departamen- e a vegetação local também mostra os possíONU. “Os povos indígenas têm capacidade de tal, municipal e comunal, no caso das comu- veis caminhos para a resolução dos conflitos mobilização, e isso gera conflitos. O governo nidades indígenas –, mantendo a unidade do que atormentam a Bolívia. “Nós não colhese comprometeu, constitucionalizou e obripaís. Mas como, desde 1952, a Bolívia convi- mos todo o cacau. Os de cima, a gente deixa gou a si mesmo a materializar esses direitos”, veu com confusos processos de distribuição para os amigos macacos, para que tenham o explica Gonzalo Colque. de terras, esse é um tema delicado, já que que comer. E também porque eles espalham Segundo informe recente das Nações não há investigações que deixem claro nem o a semente pela floresta, e isso faz nascer mais Unidas, a maior parte dos recursos naturais tema de direito de propriedade, nem o tema árvores.” Alguém perguntaria por que eles restantes no mundo – minerais, água potáde fronteiras internas no país. mesmos não plantam as sementes. “Porque vel, entre outros – se encontra dentro dos Uma das dificuldades é encontrar uma temos que pensar aqui no bosque. E também territórios de povos indígenas. O acesso a solução para as autonomias indígenas ter- nos macacos”, responde Octavio, como se essa esses recursos e sua propriedade continuam ritoriais, já que grande parte das TCOs do fosse uma resposta óbvia. Talvez seja. F março de 2012

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Um futuro enigmático para o novo líder chinês A China se prepara para outra transição de poder, e o provável sucessor de Hu Jintao, Xi Jinping, terá a tarefa de liderar um país que se deu conta de que, para se tornar industrializado, é necessário romper com algumas regras

por John Feffer

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dos. Como ocorreu com Hu, fontes ocidentais admitem não saber muito sobre Xi – atual vice-presidente chinês – além de seu enfoque “pró-empresarial”. Apenas que tem uma esposa famosa e que se opõe à corrupção. Fora esses detalhes, os jornalistas são obrigados a peneirar suas aparições recentes (as reuniões de Xi com o governo do presidente Barack Obama, seu regresso ao povoado de Iowa, que visitou há 25 anos, sua presença numa partida de basquete do Los Angeles Lakers) para A China representa uma ameaça econômica, e não militar, aos EUA conseguir pistas sobre a verdadeira nature- mais que um dirigente chinês goste de basza política do novo líder chinês. Jinping faz quete ou admire as empresas norte-americao que pode para frustrar a imprensa. Suas nas, ele lidera um aparato político, econômico declarações em Washington foram pensa- e militar dedicado a preservar a si mesmo e a das para atender tanto seus anfitriões oci- integridade territorial de seu país. O mesmo se pode dizer dos líderes da dentais como seus correligionários, ao remaioria dos países. Sem dúvidas, em Pequim, gressar ao seu país. Por exemplo, falou das relações entre Esta- ninguém espera que das eleições norte-amedos Unidos e China como “um rio inseparável ricanas deste ano surja um presidente que que segue avançando”, e destacou a vontade abrace uma ordem comercial que favoreça de Pequim de se comprometer com Washing- desproporcionalmente o crescimento econôton em uma agenda ampla de temas, que vão mico chinês ou que os Estados Unidos cedam desde antiterrorismo até Coreia do Norte. à potência asiática seu poderio militar no PaTambém foi cuidadoso em advertir seus an- cífico. É possível que os interesses nacionais fitriões sobre a importância de “respeitar os da China sejam mais visíveis em torno dos interesses e as preocupações da China”. Por assuntos de segurança. Nos primeiros anos mckaysavage-flickr

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uando Hu Jintao assumiu as rédeas da China em 2002, várias empresas dos Estados Unidos viram nisso um bom sinal. Analistas políticos o descreveram como membro da quarta geração de líderes do Partido Comunista que poderia ser “um liberal no armário”. Entretanto, não o foi. Com certa cautela, os meios de comunicação procuraram retratá-lo como um enigma pragmático. Depois dos atentados que, em 11 de setembro de 2001, deixaram 3 mil mortos em Nova Iorque e Washington, Hu (presidente de seu país, onde também é secretário-geral do Partido Comunista) demonstrou ser um sócio confiável para os Estados Unidos. Isso também incentivou, em 2003, o então secretário de Estado Colin Powell a destacar que as relações entre seu país e a China eram as melhores desde 1972. Porém, não demorou muito para que a mídia e especialistas vissem Hu sob uma perspectiva mais ácida. Em 2005, a revista The Economist o rotulou como “um autoritário conservador”, por intensificar a disciplina partidária e atacar os intelectuais. Hu foi criticado por se manter firme contra os Estados Unidos em disputas sobre comércio, moeda, propriedade intelectual e direitos humanos. Em matéria de antiterrorismo, os interesses de Estados Unidos e China convergiram. Contudo, tanto nessa área como na maioria das outras, Hu se mostrou não ser um “liberal no armário”, em absoluto. Agora, com a China se preparando para outra transição de poder, seu provável sucessor, Xi Jinping, embarca em sua própria viagem pelos Estados Uni-


de gestão de Hu, o debate no Ocidente se centrou na “ascensão pacífica” da China. Nos últimos tempos, a perspectiva se tornou mais obscura. Os pessimistas dizem que a potência asiática acaba de remoçar um velho porta-aviões ucraniano e destacam suas ambições no Mar da China, seu confronto com o Japão sobre as disputadas Ilhas Senkaky/Diaoyu e, naturalmente, seu elevado gasto militar. Segundo a consultoria IHS Jane’s, o gasto militar chinês chegará a US$ 238 bilhões até 2015, mais do que o projetado em toda a região asiática. No entanto, não há sinais reais de que Pequim tenha abandonado seu enfoque de “ascensão pacífica”. O reformado porta-aviões não causa muito impacto (particularmente se comparado com os dez da marinha norte-americana), e Coreia do Sul e Japão também têm sua própria disputa por uma ilha. As reclamações chinesas sobre ilhas do Mar da China são de longa data e ocorrem desde a era pré-comunista. E já se passaram mais de 30 anos desde que a China realizou uma importante intervenção militar de ultramar, o que indicaria que pretende manter seu costume de evitar riscos.

Enquanto isso, os Estados Unidos continuam gastando pelo menos cinco vezes mais do que a China em questões militares, o que faz com que sua política de segurança se afaste do Oriente Médio e se aproxime da Ásia. Uma maior cooperação militar de Washington com Austrália, Filipinas, e inclusive Vietnã deixam a China nervosa. Em termos gerais, as prioridades dos líderes chineses são nacionalistas: manter unido um país vasto e rebelde, preservar a influência em Taiwan e garantir um fornecimento estável de energia em suas regiões vizinhas para manter um elevado crescimento econômico. Primeiro Hu e agora Xi dizem aos seus interlocutores norte-americanos que é possível e desejável que as relações entre os dois países sejam mais próximas, sempre e quando Washington reconhecer esses imperativos nacionais. Entretanto, a ameaça subjacente da China, naturalmente, não é militar, mas econômica. Atualmente, é a segunda maior economia do mundo e poderá superar os Estados Unidos durante o próximo governo. Washington se queixa de práticas comerciais desleais, manipulação da divisa e uma cultura de pirataria intelectual.

Seguindo o exemplo de Japão e Coreia do Sul, a China se deu conta de que passar de país em desenvolvimento a industrializado exige romper com algumas regras. Os críticos destacam que a China, como potência econômica, já não é uma desvalida. Porém, boa parte do país continua subdesenvolvida. E o poderio econômico chinês não se reflete no poder de voto nas instituições econômicas internacionais. Tanto no Banco Mundial quanto no Fundo Monetário Internacional, os Estados Unidos comandam cerca de 16% dos votos, enquanto a China tem por volta de 4%. Em outras palavras, Pequim não determina as regras do jogo. Sem dúvidas, Xi tem suas próprias ideias sobre como manter o que os chineses poderiam chamar de os “três equilíbrios”: harmonia interna da China, suas relações com o exterior próximo e a dinâmica de “aperta e afrouxa” dos Estados Unidos. Entretanto, não é essa mítica figura que o Ocidente espera que algum dia se produza na China. Xi tem suas ideias próprias, mas é também um homem do Partido. E, sob nenhum aspecto, é o homem de Washington em Pequim. F

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Sobre um romantismo sem-vergonha por Pedro Alexandre Sanches

Fernando Moraes / Folhapress

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mestiço Wando (1945-2012) veio da pequena Cajuri, no interior de Minas Gerais, mas trazia a sina litorânea do sambista impressa na pele no início de sua carreira musical, na virada dos anos 1960 para 1970. Seu primeiro LP, de 1973, chamava-se Glória a Deus no Céu e Samba na Terra, e a faixa-título abria o disco em pique de batucada feroz, sob o subtítulo “Samba é Aleluia”. Não se falava explicitamente sobre isso na década de 1970, apesar do levante black power comandado passo a passo por Wil-

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A trajetória de Wando, falecido em janeiro, mostra um artista que rompeu estereótipos e limites sociais em suas músicas, conseguindo alcançar um público livre de preconceitos son Simonal, a partir de 1961. Mas desde os artistas mestiços até os negros era esperado que seguissem essa risca e se tornassem exclusivamente sambistas, restringindo-se às glórias e aos estigmas do bom malandro, bom de chinfra, de cintura e de submissão, no caso dos homens, e da boa mulata, boa das cadeiras, de cama e de tanque, no das mulheres. Para o negro que fugisse dos cativeiros da mente rumo à liberdade em compasso de

bossa nova (Alaíde Costa, Johnny Alf, Leny Andrade), tropicália (Gilberto Gil, Luiz Melodia) ou funk (Tim Maia, Toni Tornado, Erlon Chaves), sobraria bordoada, ou no mínimo a contínua ação disciplinadora da indústria fonográfica (Zezé Motta, Emílio Santiago). A fronteira tênue e difusa entre o samba e outros gêneros era o limite (Jorge Ben, Jair Rodrigues, Alcione, Martinho da Vila, Paulinho da Viola).


Wando não era puro – era mestiço. Ex-en- sado é tão forte/ pode até machucar/ dobre No Wando de 1976, incluiu os títulos “Você graxate, jornaleiro, feirante e caminhoneiro, as mangas do tempo/ jogue o teu sentimento às vezes até sou eu” e “Ê, amigo” (“ê, amigo/ incluiu no primeiro LP um (quase) samba de todo em minhas mãos”, cantava um apaixo- se for por amor vou pagar o meu castigo”), (quase) protesto tenso e corpulento, chama- nado narrador, entre atordoado e solidário. de alusão sutil, mas perceptível, à homossedo “O ferroviário”: “São cinco da manhã, ele xualidade. Em Gosto de maçã (1978), o comjá está de pé/ está se preparando pra tomar Sensualidade explícita e desejo positor foi explícito e confessional na faixa café/ um pouco sonolento, ele não dormiu de liberdade “Emoções”: “Nos fizemos tão meninos, livres, A sexualidade na música mais popular do tão vadios de tanto querer/ (...) me entregasbem/ pensando na farmácia que tem pra pagar/ pensando no aluguel que não pode atra- Brasil é uma das questões esmiuçadas pelo tes teus segredos e eu falei do medo do meu sar/ (...) e quando chega fevereiro/ veste a historiador Paulo Cesar de Araújo no livro Eu coração/ (...) nas nossas juras prometemos fantasia e na avenida vai sambar/ esquece o não sou cachorro, não – Música Popular Ca- ser/ até que a morte nos separe/ ou até o dia trem, tudo que tem.” Ensaiava um “Pedro Pe- fona e Ditadura Militar (Record, 2002), que amanhecer/ nós faremos nosso mundo, nós dreiro” à sua maneira, mas, sem olhos azuis, demonstra o peso da repressão e da censura seremos tudo que devemos ser/ a lua ilumipele clara e placidez capazes de conquistar (tanto a oficial, dirigida pela ditadura militar, nou teu corpo, moreno bonito, pra me provoo público universitário, terminava o disco quanto a informal, espraiada em toda a so- car/ (...) te agasalhei nos braços, pele, mãos, chorando, em melancólica balada, que “O im- ciedade) não só sobre os luminares da MPB espaços acariciei/ te amei suavemente e tão portante é ser fevereiro” (era o samba que o universitária (Chico Buarque, Caetano Velo- docemente me fiz teu rei.” Mais uma vez, a lançou, em 1971, pela voz de Jair Rodrigues). so, Geraldo Vandré etc.), mas também sobre Globo encampou, incluindo “Emoções” numa os representantes da música realmente po- novela romântica das seis da tarde, “MemóFevereiro, sim, mas... o ano inteiro? O segundo álbum, Wando (1975), come- pular, consumida e criada para e por estratos rias de amor”. çava com “Nega de Obaluaê”: “Essa nega fez da base da pirâmide social brasileira. Limites sociais eram sempre beliscados Estamos falando da frente musical tarja- pelo músico, como no retrato do amor entre feitiço/ emprestou meu nome ao santo/ e agora como faço?” A batucada funkeada in- da como “cafona” ou “brega”, que pressiona- um homem mais novo e uma mulher mais vetegrava o cantor e o compositor a um movi- va o conservadorismo e o (falso) moralismo lha da faixa-título de Gazela (1979) ou, mais mento musical que nunca existiu, ao menos da época pela via comportamental. Falamos tarde, no baladão “Drogado de Amor” (1986). não de modo organizado: o samba-rock. de Wando e de muitos outros que não eram A veia social/racial foi, entretanto, a que mais Compondo para si ou para Belatejou na primeira década de beto e Os Originais do Samba produção de Wando. Vários tído trapalhão Mussum, Wando Se não levou adiante os temas de identidade racial e tulos são autoexplicativos: “Metateava seguindo as veredas de nino de rua” (1976), “Cor da samba suingado e misturado orientação sexual, o artista encontrou no romantismo minha cor (Seja)” (1977), “Moabertas pelo êxito e talento de mais picante e sexualizado o alicerce que iria levá-lo reno” (1978), “O menino do rio Jorge Ben – em seu caso, cainde lágrimas” (1979). adiante e além do de boca no candomblé, com “O rei” (1976) e “Ilusão de o balanço irresistível de “Nega carnaval” (1977) insistiram no de Obaluaê”, “Odoiá” (1976), tema precoce de “O ferroviáaceitos no cercado onde se espremiam Elis rio”. Focalizavam especificamente o dia de “Ponto” (1980), “Oxóssi” (1983). Pareada com “Nega de Obaluaê” e com Regina, Chico Buarque, Maria Bethânia, os rei/rainha vivido, na passarela do samba, uma versão funkeada de “Na baixa do sapa- tropicalistas, Secos & Molhados, Novos Baia- por quem seria plebeu/plebeia pelo resto teiro”, do conterrâneo Ary Barroso, a utópica nos e poucos outros. inteiro do ano. “Porta do sol/ Jesus” abria o Odair José despertava a ira da repressão, álbum de 1976, flechando o coração do ra“Velho batuqueiro” se conformava ao carnaval, mas tentava discutir o racismo, num sendo talvez mais conservador que os con- cismo com uma seta de provocação atirada tempo em que ninguém gostava de discutir servadores instalados no poder e pregando o por um Salvador mestiço: “Jesus, Jesus/ neesse assunto (alguém gosta hoje em dia?): lema “Pare de tomar a pílula” (1973), contra o gro bonito dos olhos azuis.” E o mestiço se“É preto, é branco, todo mundo é igual/ na modo (reacionário) adotado pelo regime para guia reivindicando o sincretismo religioso: tentar conter a natalidade nas populações de “Ele é o rei/ ele é Oxalá.” guerra da folia é paz no carnaval.” Em paralelo com o samba-rock, Wando baixa renda. Em “Vou tirar você desse lugar” Em Ilusão (1977), Wando brincou com abria outra frente, essa essencialmente não (1972), o narrador de Odair, apaixonado por fogo com a ditadura, que entrava em fase sambista: a do romantismo sem qualquer uma prostituta, sonhava resgatá-la da profis- de distensão. Inspirado numa história real, vergonha de ser (in)feliz. “Moça” era o gran- são-tabu. Em especial nos capítulos “Pederas- “Presidente da favela” era o nome de um de sucesso nacional do LP de 1975, locomo- tas, maconheiros e prostitutas” e “Capricho sambinha que dizia sozinho mais do que vido pela inclusão na novela global Pecado dos instintos insaciáveis, Eu não sou cachorro, muitos esquerdistas da MPB não haviam Capital. A exemplo de outra faixa do LP (“Na não descreve as desventuras de artistas como ousado proclamar no pós-AI-5: “Dalvino boca no povo”), “Moça” queria discutir um Odair, Diana, Waldick Soriano, Claudia Barro- de Freitas, presidente da favela onde tenho so, Lindomar Castilho, Nelson Ned, Agnaldo meu barraco/ disse que agora na favela é tema tabu: a prostituição feminina. “Você é tão falada, cantada na boca/ na Timóteo, Dom & Ravel e Cláudio Fontana jun- outro papo/ vamos ter ruas calçadas, água boca do povo, do povo, do povo”, começava to à polícia da moral e dos “bons” costumes, boa de beber, pra você ver/ vamos ter esco“Na boca do povo”, em tarefa que “Moça” con- fosse ela fardada ou à paisana. las/ isso quer dizer que vamos ter status/ Wando transitou em todos esses nichos. condução na porta do barraco/ minha nega cluiria. “Moça, sei que já não é pura/ teu pasmarço de 2012

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Luzia não precisa andar a pé.” A conclusão pavimentaram o terreno durante uma fase (“você é luz, é raio, estrela e luar/ manhã de era bombástica: “Que sirva de exemplo a de relativo encolhimento, que começou a sol/ meu iaiá, meu ioiô”), ambas de 1984. todas as favelas brasileiras/ arranje um se resolver de modo hesitante na latinida- Vieram as bregas descabeladas “Ui-Wando presidente de boas maneiras/ que a vida lá de nômade de “Se quiser chorar por mim” paixão” (1986), “Eu já tirei a tua roupa” no morro será bem melhor.” Eleger, a fave(1978), “Tirerepá” (1980) e, numa fagulha (1987), “Obsceno” (1988), “Amor pelo telela, seu próprio presidente? Com as eleições de virada e consolidação, “Coração cigano” fone” (1990), “Depois da cama” e “Sua flor cassadas e o general Ernesto Geisel biônico (1981): “Meu coração é um forasteiro/ não seduziu meu beija-flor (carente)” (1992)... no poder? tem destino e nem paradeiro/ meu coração é Para quem o excluía classificando sua música No mesmo LP, havia “Boca calada”, um aventureiro/ coração cigano, coração bando- como “vulgar”, ele remetia o título do LP de samba-soul com berimbaus sobre... a mordaleiro/ sou uma gaivota solta no ar/ que voa 1985, Vulgar e comum é não morrer de amor. ça da censura: “Canta, meu povo,/ enquanto livre pra qualquer lugar.” Para mesmerizar os pudicos, gravava “Sem é cedo/ boca calada/ me causa medo.” Paulo Somadas, as investidas na sensualidade pudor” (1986). Cesar de Araújo menciona em seu livro que explícita e o desejo de liberdade talvez seNum País devastado pela exclusão social Wando teve algumas músicas censuradas dujam suficientes para justificar o apelo sexy do e pela hostilidade pairando tensa e “cordial” rante esse período, mas não dá detalhes sobre mineiro moreno fogoso junto a um público entre camadas sociais divergentes, fez cruel quais seriam essas músicas. Talvez ocupada livre de preconceitos e esgares elitistas. De sentido a operação silenciosa de apartar a demais com as muitas iscas lançadas por “Moça” e “Na boca do povo” a “Olhos de seda” “breguice” dos “cafonas” da “sofisticação” da Chico Buarque, a censura não MPB “culta”, esnobe e zelosa de impediu a livre circulação de seus próprios privilégios. Wanalfinetes pop como “Emoções”, Ironia também cruel é que Wando eleja partir bem na do fez fama e fortuna à margem, “Presidente da favela”, “Porta seduzindo morenas e mestiços do sol/ Jesus (Negro bonito de hora da florada das sementes que ajudou a plantar 20 que ousaram pular as cercas olhos azuis)” e “Boca calada”. proibitivas de cá para lá e de lá e 30 e 40 anos atrás Pouco a pouco, o romantispara cá. É mais ou menos o que mo passou a gerar mais frutos faz, hoje, a gigantesca e plural para Wando que os sambas e os cena periférica que não deixa samba-rocks. Por volta de 1976, ídolos popu(1982) e “Coisa cristalina” (1983), Wando foi a música (im)popular brasileira morrer aslares de envergadura começaram a gravar as aos poucos encontrando um dom particular fixiada pela própria pasmaceira. Ironia tamcanções mais mansas do poeta pop: Roberto de acariciar a sensibilidade feminina. Sob su- bém cruel é que Wando eleja partir bem na Carlos (“A menina e o poeta”), Nelson Gonave tom espanholado/gitano, dizia “Olhos de hora da florada das sementes que ajudou a çalves (“Moça”), Angela Maria (“Vá, mas volseda”: “Era quase minha/ quase minha ama- plantar 20 e 30 e 40 anos atrás. te”), Cauby Peixoto (“Gosto de maçã”). “Gosto da/ leve, tão suave/ quis sentir-me o gosto/ P.S.: Para mim, dito crítico de música, de maçã” mereceu até mesmo uma terna verseu olhar de seda/ fez corar meu rosto.” Seu é lastimável e irremediável que este texto são caipira, por conta da dupla Cascatinha & rosto pode corar, mas, não, não é poesia pop tenha sido escrito apenas após a morte de Inhana. má ou pobre que temos aqui. Wando. Ele e seus correlatos nunca tiveram Se não levou adiante os temas de idenA voz aveludada de Wando passou a em- entrada nas editorias culturais dos veículos tidade racial e orientação sexual, o artista balar peças do mais rasgado sexy-romantis- elitistas em que trabalhei – e nem (ou prinencontrou no romantismo mais picante e semo, como “Chora, coração” (de novo, o dese- cipalmente) eu próprio estava minimamenxualizado o alicerce que iria levá-lo adiante jo de liberdade, “chora, coração,/ passarinho te interessado em nossos wandos até ir ler, e além. Títulos como “Senhorita, senhorita” na gaiola/ feito gente na prisão”) e o clássi- espelhados em Eu não sou cachorro, não, os (1977), “Marca dos dentes” (1979), “A mosco djavaniano, bissex, fêmeo (composto por meus próprios preconceitos raciais, sexuais, ca e a aranha” (1980) e “Cantada” (1981) Rose, sua esposa à época) “Fogo e paixão” sociais, intelectuais etc. etc. etc. F


Nova formação para o trabalho imaterial

mente trabalhada ou quantidade de trabalhadores. Por ser cada vez mais direto, relacional e informacional, bem como pela demarcação de relações de tipo produtor e consumidor, o trabalho de natureza imaterial expande-se pelo autosserviço e pela terceirização. Nessa perspectiva, a economia do conhepassagem para o século XXI veio acom- valorização do trabalho humano para além cimento faz com que o trabalho desmateriapanhada de profundas e complexas da obrigação estrita à sobrevivência. A cres- lizado deixe de ser mensurável em unidades transformações no modo de produção cente postergação do ingresso dos jovens no de tempo, conforme identificado desde a capitalista. Uma delas – talvez a principal – mercado de trabalho e a maior redução no época de Adam Smith como um valor comum resulta da emergência da economia do co- tempo do trabalho dos adultos, em combi- a todas as mercadorias. Cada vez mais, o tranhecimento que passou a redefinir catego- nação com a ênfase no ciclo educacional ao balho imaterial gerador de valor pressupõe a rias básicas como o capital, valor e trabalho. longo da vida, representam possibilidades presença de componentes comportamentais. Esta última categoria, aliás, termina por in- inéditas para o mundo do trabalho, especial- Não mais o tempo de trabalho comprometicorporar crescentemente o saber em novas mente com a expectativa de vida mais longa. do, mas a motivação incorporadora do saber bases, o que torna antiquado os atuais sistePara além da tradicional divisão laboral vivo a ser estabelecido por método distinto mas de educação e formação laboral. que demarcou o século XX, por meio da se- do ensino e formação laboral tradicionais. Com a elevação das competências laborais torização do trabalho urbano-industrial e Em síntese, o saber que não se compõe de e a possível ampliação da expectativa de vida agropecuário, há avanços significativos nas conhecimentos específicos e fragmentados a para próximo de 100 anos, expande-se a de- atividades humanas centradas na concepção serem ensinados por formação especializada manda pela formação por toda vida e rompe- e execução do processo de produção. Mas isso e formalizada por escolas técnicas, faculdase a lógica educacional do século passado, não se manifesta sem a plena subsunção do des e cursos setoriais. Com a informatização, comprometida somente com as fases mais trabalho não material, com a evolução da in- o aprendizado setorializado e formalizado precoces da vida humana (crianças, adoles- telectualização nos procedimentos de traba- impede o desenvolvimento do conhecimento centes e alguns jovens). Adicione-se a isso o lho nos setores industriais e de serviços, bem totalizante, ou seja, o saber da experiência, da avanço da sociedade pós-industrial, coordenação, da comunicação, da focado na geração de postos de trabaauto-organização, do discernimento lho no setor terciário das economias A repetição de políticas públicas adotadas e das iniciativas criativas. Esse sa(trabalho imaterial), cuja natureza no passado compromete a formação adeber a ser incorporado no trabalho formativa diverge da inserção e trajeimaterial não torna possível a sua tória laboral contínua no interior das quada para o trabalho imaterial aprendizagem pelo modo tradicioatividades primárias e secundárias nal de educar e formar mão de obra. da produção (trabalho material). Talvez por isso, as grandes Novas formas de organização da produção como pelo consumismo imposto pelo padrão corporações empresariais aprofundem as de bens e serviços extrapolam o exercício la- de produção insustentável ambientalmente. chamadas universidades corporativas (UC), De certa forma, prevalece um conjunto de com formação dos seus empregados ao lonboral para além do exclusivo local de trabalho. Ou seja, a realização crescente do trabalho intensas disputas empresariais associadas à go do tempo. Nos EUA, por exemplo, as UCs imaterial em qualquer local proporcionado apropriação do conhecimento e da tecnolo- ultrapassaram em quantidade as universidapelo uso recorrente das tecnologias de co- gia, o que contribui para a constituição de um des tradicionais, enquanto no Brasil, as 400 municação e informação inovadoras, capaz novo paradigma organizacional do trabalho, maiores empresas já comprometem com de manter o ser humano plugado no trabalho muito distinto do que prevaleceu durante o formação para o trabalho o equivalente a um auge da economia industrial no século pas- quarto de todos os recursos comprometidos heterônomo por “24 horas ao dia”. Não obstante o avanço tecnológico gera- sado. Mesmo que o padrão fordista-taylorista na educação. dor de ganhos importantes de produtividade de organização do trabalho urbano-industrial A repetição de políticas públicas adotamaterial e imaterial na sociedade pós-indus- venha sendo reprogramado, com as modifica- das no passado compromete a formação adetrial, aumenta a pressão por maior tempo de ções introduzidas por uma série de novidades quada para o trabalho imaterial, tornando o uso do trabalho para a sobrevivência. Trata-se processuais no âmbito da produção flexível patronato da grande empresa protagonista do paradoxo contemporâneo concentrado na (toytismo, just in time), permanecem ainda os na difusão de uma educação favorável estridissintonia entre a possibilidade da menor sinais de sua incapacidade plena no atendi- tamente aos objetivos privatistas. É necessádimensão do tempo de trabalho heterôno- mento das determinações laborais, impostas rio outro sistema de formação pública, que mo e o avanço das novas doenças do traba- por diferenciados e inovadores espaços da resgate a totalidade dos valores do trabalho lho, geradas pela intensificação do trabalho acumulação capitalista. dos antiquados métodos fragmentados e esA predominância das atividades de servi- pecializados no ensino e aprendizagem fornos tradicionais locais de emprego da mão de obra e extensão das jornadas laborais em ços no interior da estrutura produtiva faz do malmente setorializados. F outras localidades (em casa ou em espaços exercício do trabalho imaterial objeto distinto públicos) impostas pela combinação patro- do material vigente na produção urbano-inMARCIO POCHMANN é professor licenciado do nal das mudanças organizacionais com ino- dustrial. Pelo lado da produtividade, registraInstituto de Economia e do Centro de Estudos se a sua ascensão, embora de difícil mensuravações tecnológicas comunicacionais. Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas. Presidente do Com a transição para a sociedade pós-in- ção pelos tradicionais cálculos que relacionam Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). dustrial, abrem-se novas perspectivas de avanços na produção física com hora efetiva-

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Nas fronteiras da circulação Nesse pequeno livro/ensaio, que pode ser lido em poucas horas, o antropólogo francês Marc Augé sugere a revisão de alguns conceitos e noções relacionadas à mobilidade e à vida urbana contemporânea. É preciso ressaltar que essa “vida urbana” não se restringe às cidades enquanto instituição fechada entre seus limites e contradições internas. Ao contrário, trata-se de toda a rede que une as cidades pelo mundo: redes de transporte e comunicação, responsáveis pela mobilidade de pessoas, mercadorias, imagens e mensagens em escala mundial. Para compreender melhor a proposta do autor, vale citar o livro Não lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade (1992), que o tornou conhecido no universo das Ciências Humanas em diversas disciplinas. Para Augé, o “não lugar” está em oposição ao “lugar antropológico”, aquele das relações humanas, históricas e identitárias. Nesse sentido, os espaços de comunicação, circulação e consumo, bem como estações de metrô, shopping centers, aeroportos, hipermercados, autoestradas etc. são exemplos de “não lugares”. Nas suas palavras: “É a oportunidade de uma experiência sem verdadeiro precedente histórico de individualidade solitária e mediação não humana (basta um cartaz ou uma tela) entre o indivíduo e o poder público.” O antropólogo defende que a “supermodernidade” (termo que nega a noção de ruptura com a modernidade proposta pelos defensores da “pós-modernidade”) promove uma enorme proliferação de “não lugares”. Já em Por uma antropologia da mobilidade (2007), Augé atualiza tal termo e chama o momento atual de “sobremodernidade” no sentido do inglês over, que remete à idéia de superabundância. Não obstante, a contemporaneidade – sobremoderna – impôs ao mundo grandes mudanças relacionadas às categorias de tempo e espaço. Na medida em que o espaço planetário fica menor e as distâncias mais curtas, o tempo dos homens se acelera cada vez mais. O pequeno livro aborda o tema em seis capítulos, repensando as noções de fronteira, urbanização, migração, turismo, utopia e, finalmente, a mobilidade.

A fronteira é apresentada como o “cerne da atividade simbólica”. Nesse sentido, além de fronteiras geográficas, existem outras: as culturais, linguísticas, naturais, sexuais, políticas etc. “As fronteiras não se desfazem jamais, mas se redesenham”, contudo, sua travessia tem sempre consequências: “A Grécia vencida civilizou Roma e contribuiu para sua influência intelectual”. A sobremodernidade aparenta acabar com as fronteiras, no entanto, “são os países liberais que erguem muros”, o que mostra “uma verdade infinitamente mais complexa que a imagem da globalidade sem fronteiras que serve de álibi de uns, e de ilusão a outros”. Se de um lado o “mundo é uma cidade”, uma rede planetária “sem fronteiras”, destinado principalmente à mobilidade de mercadorias e signos, do outro lado a “cidade é um mundo, onde se encontram todas as contradições e conflitos do planeta” marcado, muitas vezes, pela imobilidade das pessoas. É nesse contexto que o autor questiona e reformula a questão da mobilidade no mundo “globalizado”. Com base nessa argumentação, Augé problematiza questões como a exclusão, as contradições entre a noção de centro e periferia, os cidadãos considerados clandestinos ou “sem documentos” e o turismo como consumo de viagens e culturas comparado às viagens mais “metodológicas” dos etnólogos e antropólogos. Longe de chegar a conclusões definitivas, Por uma antropologia da mobilidade, mobilidade pretende rever conceitos, afim de melhor compreender um mundo que foi reescalonado no espaço-tempo. Augé mostra que entre a “cidade mundo” das redes globais e o “mundo cidade” das contradições locais – assim como procurou fazer entre os “não lugares” e “lugares” –, o importante não é apontar as diferenças que as separam, mas entender como essas condições, aparentemente ambíguas, engendram dinâmicas complexas, que podem ajudar a tender um mundo de superabundância. (Thiago Balbi)

Por uma antropologia da mobilidade Marc Augé Editora Unesp e edUFAL, 112 páginas

Cansaço, a longa estação É inacreditável que Luiz Bernardo Pericás não carregue o cansaço de séculos em suas costas, assimilando sem preconceitos tudo o que poderia atrair para o preconceito. Sua escrita revela uma originalidade que se compara a Ortega y Gasset, que analisou e recusou – talvez por cansaço – a aventura hiper-humana para escrever uma arte verdadeira, um caminho enlouquecedor para o homem. A paixão pelas personagens de Punaré e Baraúna nos leva a uma atmosfera atordoante e quase masoquista de ler sem parar, querendo também pegar o cabo tosco da enxada enferrujada e fincar a pá de metal no chapadão batido. Toda a literatura anterior de Pericás já nos deixava diante de um dos maiores do Brasil, e agora surge esse novo autor, para o qual tenho de segurar pelo menos uns 20 qualificativos elogiosos. Punaré, Baraúna e os bois nunca mais deixarão de me angustiar como um personagem de Unamuno ou como ele mesmo indignado, gritando para os fascistas na Universidade de Salamanca: “Aqui não! Aqui é uma casa de Cultura!”.

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Pericás nos leva para um mundo de ética e estética e não tem nenhum temor da audácia de um De Profundis, de um Francisco de Assis, de um Proust. Lendo Cansaço, a longa estação nunca mais teremos medo das tempestades nem de elementos selvagens que, mesmo jogando as maiores ondas em nossa cabeça, não conseguirão chegar até nós, pois estaremos tranqüilos como um Kierkegaard – e seremos um rei nos escolhos. (Antonio Abujamra)

Cansaço, a longa estação Luiz Bernardo Pericás Boitempo Editorial, 94 págs


GAL COSTA E CAETANO VELOSO SÃO DOIS DOS MAIORES ARTISTAS DA NOSSA MÚSICA, E REPETIR ISSO É CHOVER NO MOLHADO. Estiveram juntos em momentos e movimentos muito profícuos. Fizeram, juntos e separados, discos lindos, inovadores, repletos da velha e boa centelha que faz dos grandes artistas aquilo que são. Posto isso, resolveram, em pleno alvorecer da maturidade, inventar mais uma parceria. O disco, como não poderia deixar de ser, esteve cercado de expectativas desde a sua concepção. Seria um disco eletrônico, com participação de vários jovens valores que têm se destacado e, o melhor de tudo, todo com canções inéditas de Caetano, feitas para a ocasião, com duas exceções já gravadas anteriormente. Uma vez lançado, RECANTO, na contramão das melhores expectativas, decepciona. Involuntariamente, nos leva de volta à mesma dupla que conseguia, sem o menor esforço, traduzir o novo mundo em canções como “Objeto Não Identificado”, as distensões da política e do tempo em “Tigresa” e o mundo novo de novo em “Vaca Profana”, entre inúmeros exemplos. Falta a Recanto a velha centelha. A luminosidade que sempre deixou os dois artistas à vontade no que faziam. Versos controversos e encantadores, melodias simples e sinuosas, diretas. A voz brilhante e linda, o canto certo/errado capaz de berrar a confusão dos tempos e a delicadeza dos ventos. Falta Gal e, sobretudo, falta Caetano em Recanto.

A REALIZAÇÃO DO SONHO DE DOIS MENINOS, QUE HOJE JÁ BEIRAM OS 60, é um dos lançamentos mais lindos e emocionantes dos últimos anos da nossa música. O DUOFEL, um dos duos de violões mais longevos do País, acaba de lançar o DVD DUOFEL PLAYS BEATLES ao vivo, pasmem, no Cavern Club. É isto mesmo: lá em Liverpool, na réplica do lendário clube onde os mesmos Beatles começaram. O Duofel, formado pelos músicos Fernando Melo e Luiz Bueno – dois dos mais legais, bem-humorados e talentosos violonistas do mundo – já havia lançado, no final de 2009, o excelente Duofel plays Beatles. Com a ajuda do bitólogo Marco Antônio Mallagoli, eterno presidente do fã-clube Revolution, e de uma pequeníssima equipe que reuniu, entre outros, a produtora Ana Buono e o lendário fotógrafo Gal Oppido e um orçamento apertado, o grupo partiu para a cidade mágica com o objetivo de gravar o disco. Tudo o que aconteceu desde a partida do grupo, em Guarulhos, até o final da apresentação, em Liverpool, é acompanhado de forma simples e genial, tanto no making of quanto no próprio show que acompanham o DVD pelas câmeras de Felipe Tomazelli e Gal Oppido. O espectador quase embarca junto, participa da expectativa, ansiedade e emoção dos músicos. Ainda no carro a caminho do aeroporto, enquanto um confessa que mal dormiu, o outro lembra quando, ainda menino, anunciou para o pai que ia ser músico, logo após ter descoberto os Beatles. A parada em Londres para a indefectível sessão de fotos na famosa faixa em frente ao estúdio Abbey Road. A chegada na cidade, a Penny Lane, o portão do Strawberry Fields. Tudo no filme persegue a emoção e devoção dos músicos ao projeto.

É um disco honesto impregnado de desonestidade. É, assim como muitos outros desde Araçá Azul, conscientemente feito para encalhar nas prateleiras por conta da sua ousadia. Ao mesmo tempo, e é aí que mora o controverso, feito sem capricho, com canções mal-acabadas, versos ruins e melodias simplórias. Ao tentar compor como jovem, Caetano parece que esquece o jovem que foi. Perde, por um lado, a luminosidade e, por outro, abre mão da sabedoria. Gal, por sua vez, deixa a impressão de que entrou na conversa do amigo. Meio sem direção das coisas, parece que canta as canções da maneira como elas merecem mesmo ser cantadas. Sem brilho. Sem nada. Sem medo de exagerar, não há um só momento que lembre, ainda que de longe, outros momentos dos dois artistas. Com o talento que têm Gal e Caetano, nessa incursão pela música eletrônica, poderiam se colocar facilmente no mesmo patamar de Björk, Fisherspone, Stereolab, Ladytron, Laibach e congêneres. Poderiam se colocar no patamar de qualquer um. Fracassaram. Por estranha ironia, o que salva Recanto do desastre total são as molduras sonoras propostas por Moreno, Kassin, Zeca e cia. Os meninos, sintonizados com o universo, conseguem conferir dignidade, juventude e alguma luz ao disco. De resto, trata-se de um fracasso, que, aparentemente, não serve nem à parada de sucesso.

sentam como se tocassem no maior palco do mundo. A concentração das execuções, a troca de instrumentos, os arranjos arrebatadores e criativos para canções que não cansam de serem gastas, tudo leva a uma obra perfeita. O som captado ao vivo pelo técnico Rodolfo Yadoya nos traduz com maestria os sons tão díspares como os do violão tenor, a viola caipira e os violões tradicionais de nylon e aço. Os instrumentos, extremamente bem executados, nos dão a dimensão exata da importância e do bom gosto do Duofel. Os dois formam um daqueles grupos raros, com sonoridade única, construída ao longo de mais de 30 anos juntos. Não são afeitos a notas rápidas, efeitos e truques baratos. Tudo o que tocam corresponde a um sentido melódico e harmônico exemplar. As mesmas canções, tão conhecidas, se revelam outras, com novos segredos e detalhes. O talento dos Beatles vem acompanhado de uma grande e histórica lição, que é a da ousadia. Fizeram música para milhões, sempre perseguindo obsessivamente o novo. O Duofel, ao realizar um sonho de menino, eleva esse aprendizado ao cubo. E, com isso, faz uma das obras mais importantes da história da nossa música instrumental.

O show em si é quase uma celebração, uma missa profana. Dentro do pequeno clube e diante de uma plateia reduzida, os dois se apre-

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Apóstolo atleta A

impressão que tenho quando converso com homens da minha geração que moravam em pequenas cidades mineiras é que quase todos foram coroinhas. Eu mesmo não escapei disso. Quer dizer, “não escapei” entre aspas, fui ser porque quis, ninguém me forçou. É que eu via outros moleques indo ajudar nas missas e rezas e, como a gente quase não tinha o que fazer, deu vontade de entrar nessa também. Num tempo em que não existiam bibliotecas públicas nem escolares na cidade, não havia quadra de esportes nem piscinas, o que fazíamos eram brincadeiras impensáveis hoje. Víamos os filmes do Tarzã e imitávamos. Numa capoeira que chamávamos “selvinha”, havia cipós para ir de árvore em árvore, e alguns meninos eram craques nisso. Eu não. Mas até que com o arco e flecha eu não era tão ruim, embora não fosse um craque como uns outros. Treinávamos esse “esporte” na beira da selvinha, onde tinha um pasto e ali perto um monte de bananeiras. Cortávamos um tronco de bananeira do nosso tamanho e púnhamos de pé, amarrado com cipó a uma árvore e ele se tornava nosso alvo. Montávamos em pelo numa égua chamada Realina, que ficava no pasto, e, galopando, passávamos a uns 15 ou 20 metros do tronco disparando flechas para acertar o tronco de bananeira, inimigo imaginário. Outras brincadeiras eram roubar frutas, brincar em córregos, pescar lambaris... Alguns caçavam passarinhos para colocar em gaiolas, mas eu não gostava disso. E trabalhava, fosse como engraxate, vendedor de frutas ou balconista de boteco. Então, ser coroinha era uma novidade, algo diferente, e o padre Caio me aceitou para o bando, quando eu tinha uns 8 anos. Mas logo ele viu que eu seria um problema: nas rezas, gostava de ficar encarregado do turíbulo, um vaso de queimar incenso, de metal, pendurado em três correntes. Então, o turíbulo era cheio de brasas e a gente tinha que segurá-lo por um pegador no alto das correntes que o prendiam,

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e ficar chacoalhando de leve, de um lado para o outro, para manter as brasas vivas. E o que eu gostava era de rodear, na vertical, o turíbulo cheio de brasas, o que era proibido. Mas era só o padre virar para o altar que eu cometia isso. Algumas pessoas riam, e ele se virava para mim fazendo cara feia. Tinha que rezar com um olho no altar e outro em mim. Acabei expulso com alguns outros, porque achamos algumas garrafas de vinho de igreja na sacristia, bebemos, ficamos bêbados e aprontamos um monte de coisas. Um dos coroinhas era implicado com um sino que batia sozinho, dando as horas; subiu à torre ao meio-dia, a fim de impedir que funcionasse uma espécie de martelo que batia no sino de meia em meia hora. Ao meio-dia, daria 12 badaladas. Quando o martelo se levantou para bater, ele segurou e só soltou uns minutos depois. Quebrou. Um ou dois anos depois fui aceito para ser um dos 12 apóstolos na missa do lavapés, na Semana Santa. Ensaiamos uma vez, e o padre recomendou: — Antes de vir para cá, lavem bem os pés e passem talco, porque eu só dou uma lava-

dinha de leve e depois tenho que ir beijando os pés de um a um... Na quinta-feira, dia da missa em que haveria a cerimônia do lava-pés, fui jogar futebol no início da tarde. Lá pelas três e meia, saí do campo para ir embora, e uns moleques do time adversário começaram a gritar: — Tá com medo... tá com medo... Voltei com muita vontade de meter uns gols neles. E cada vez que alguém ameaçava sair era a mesma coisa. Quando vi, estava escurecendo. Foi o tempo de correr, vestir a túnica de apóstolo e entrar na igreja, sem tempo para nada. Acho que fui o primeiro apóstolo de Cristo a entrar na igreja de chuteiras. Na hora da cerimônia mais esperada, quando o padre Caio chegou em mim, vi sua cara de pavor ao olhar meus pés dentro das chuteiras em estado precário. Desamarrou as chuteiras, tirou-as, deu uma lavadinha nos meus pés e teve que quase encostar os lábios neles sujos e fedorentos, com um olhar que parecia dar fuziladas em minha direção. F

MOUZAR BENEDITO, mineiro de Nova Resende, é geógrafo, jornalista e também sócio fundador da Sociedade dos Observadores de Saci (Sosaci).


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