Bois em festa

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Quinta-feira Qu uin nta t 23/02/2012

O boi em cena numa comunidade de Maceió: encenação a partir de enredos e personagens diversos

Soderbergh recruta lutadora de MMA para seu novo filme. B5

PASCAL LE SEGRETAIN/GETTY IMAGES

FOTOS: RICARDO LÊDO/ARQUIVO GA

BOIS EM FESTA

CULTURA POPULAR. Ele encontrou adeptos de norte a sul do Brasil, mas foi em Alagoas que ganhou status de espetáculo: expressão popular que vem sendo construída desde o período colonial, por aqui o bumba-meu-boi deixou de ser um folguedo de ocorrência exclusivamente natalina para exibir suas cores e movimentos também no período do carnaval. Atração amanhã e sábado na praça Multieventos, o Festival do Bumba-Meu-Boi de Alagoas chega à 20ª edição reunindo 18 grupos, que se exibirão para um público cada vez mais numeroso. Nesta edição, a Gazeta revisita essa tradição – e passa a história do boi em revista. Confira FRANCISCO RIBEIRO COLABORAÇÃO PARA A GAZETA

E lá se vão mais de cinco séculos. Há 512 anos, com a chegada das primeiras caravelas lusitanas ao Brasil, a ‘cultura nacional’ começava a exibir os traços da mistura que passaria a ser considerada uma de suas principais características. Foi nesse período, por exemplo, que surgiram os relatos iniciais da brincadeira do bumbameu-boi, uma das nossas mais representativas expressões populares – presente em 12 estados, o boi-bumbá, como também é conhecido, ocorre segundo costumes e hábitos locais, mas sempre a partir de elementos provenientes do imaginário europeu, africano e indígena. Cultuada nas festas de glorificação originárias da antiguidade e fortemente ligada à pecuária e aos engenhos de açúcar do Nordeste brasileiro, a figura do boi se perpetuou como poucas, mas foi somente após a criação do calendário cristão que sua imagem passou a ser associada aos festejos natalinos – em Alagoas e Pernambuco, contudo, a manifestação também é levada às ruas na forma do boi de carnaval, como nota o folclorista José Maria Tenório Rocha em seu livro Folguedos Carnavalescos de Alagoas (1978). Para o estudioso, o aparecimento dessa variante é resultado da transposição do bumba-meu-boi do contexto de brincadeiras como o guerreiro e o reisado.

POPULARIDADE Mas embora sempre tenha desfrutado de bastante popularidade em território alagoano, o folguedo só veio se fortalecer por aqui a partir da década de 1990, quando foram criadas as primeiras agremiações e festivais – o principal deles, o Festival do

Bumba-Meu-Boi de Alagoas ganha nova edição amanhã e sábado (25) na praça Multieventos, na Pajuçara, a partir das 20h. Responsável por transformar uma manifestação ingênua e sem muito luxo num espetáculo de cores e movimento, o concurso que é promovido pela Fundação Municipal de Ação Cultural (FMAC) em parceria com a Liga dos Grupos de Bumba-MeuBoi de Maceió deve reunir um público considerável em sua 20ª edição. Segundo Eugênio Vilela, presidente da Liga, neste ano 18 grupos estarão na disputa – um número bem menor do que o de 2011, quando 32 agremiações tomaram parte no evento. A falta de dinheiro para montar o espetáculo é o principal motivo para a desistência. Pelo menos é o que afirma Erivaldo Lins, do Boi Paraná. “Ninguém apoia, ninguém ajuda em dinheiro; então o que a gente ganha é pouco. Eu ganhei R$ 1 mil e não dá para arrumar um boi, porque é muito gasto. A pessoa acaba gastando dois ou três mil reais”, diz.

HOMENAGEM Criador das primeiras competições de bois de carnaval de Maceió, o radialista Luiz de Barros será o grande homenageado desta edição do festival. Ele conta que foram mais de 20, de seus 79 anos de vida, dedicados aos concursos. “Comecei divulgando no rádio a primeira edição de um festival de bois de carnaval, ainda nos anos 1990. Dias depois, apareceram inscrições de bois de diversos bairros da capital, entre eles Jacintinho, Pajuçara e Poço”, rememora. A primeira apresentação competitiva reuniu cinco bois, lembra o radialista. Nessa ocasião, o certame já contava com uma comissão julgadora, pre-

miando os grupos que exibissem o melhor desempenho. Ainda hoje o evento é realizado na orla de Pajuçara. “Desde o início dessa empreitada, o concurso sempre foi bastante prestigiado, principalmente pelos moradores que iam torcer pelo boi do seu bairro”, recorda ele. Luiz de Barros fala com certa nostalgia sobre o período em que as apresentações eram mais simples, quando o improviso e a alegria da evolução dos personagens, em coreografias surpreendentemente elaboradas, caracterizavam a manifestação. O crescimento da competição também modificou as músicas do folguedo – no passado, elas chegavam a ser semelhantes às tocadas e cantadas nos sambas-dematuto (dança ou cortejo sem enredo ou drama). “Percebo que ao longo dos anos foram inseridos novos elementos, como as baterias de escola de samba, algo que não está muito relacionado à sua origem”, comenta. Mas mesmo diante de todas as transformações, o radialista não faz coro com a turma que condena as mudanças. “É importante dizer que o boi continua presente no imaginário popular, e em cada uma das edições do festival é possível perceber o aumento do público. Isso serve para confirmar que o folguedo, vinculado ou não às festas de carnaval, é um ícone da cultura alagoana”, avalia.

Serviço O quê: Festival do BumbaMeu-Boi de Alagoas Onde e quando: amanhã e sábado (25), a partir das 20h, na praça Multieventos, Pajuçara Aberto ao público

Quem é quem na encenação do bumba-meu-boi Com diversos personagens, a depender do local onde ocorre o folguedo apresenta enredos os mais distintos. Mas, numa de suas histórias mais populares, um casal de escravos enfrenta a fúria de um senhor de engenho após matar um boi da fazenda. A seguir, veja como algumas dessas figuras são constituídas

O BOI

DONO DA FAZENDA

Figura mitológica nas mais diversas culturas, o boi era visto por escravos negros e indígenas como companheiro de trabalho, símbolo de força e resistência. É por isso que toda a encenação gira em torno dele. A pessoa que veste a fantasia do animal é chamada de miolo e seus trajes variam bastante de uma festa para outra. Alguns abusam de paetês, miçangas e lantejoulas. Outros preferem bordados com menos brilho e mais cores.

Também chamado de amo ou patrão, é o senhor de engenho que, proprietário do boi morto, jura vingança contra o casal Catirina e Nego Chico e exige que o animal seja ressuscitado. Em geral, a pessoa que faz esse papel também é responsável pela organização do grupo folclórico.

VAQUEIRO Ao lado de caboclos, índios e seres fantásticos como o caipora (figura da mitologia tupi), o vaqueiro é um dos personagens coadjuvantes do bumbameu-boi, mas consegue impressionar pelo figurino, principalmente o chapéu, sempre enfeitado com longas fitas. No enredo, ele é quem avisa o dono da fazenda da morte do precioso boi.

OS MÚSICOS O auto do bumba-meuboi sempre é acompanhado por uma banda musical. Vários ritmos e instrumentos são utilizados: só no Maranhão há mais de cem grupos folclóricos. Em alguns estilos (ou sotaques, como dizem os maranhenses), dá para ouvir até banjos e saxofones. Os instrumentos mais comuns, porém, são os de percussão: tambores, pandeirões, matracas (dois pedaços de madeira batidos um contra o outro), maracás (uma espécie de chocalho) e tambor-onça (tipo de cuíca rústica, de som grave).

NEGO CHICO E CATIRINA Depois do boi, são os personagens principais do auto. Representam um casal de escravos, ou de trabalhadores rurais (dependendo do tipo de enredo escolhido). Grávida, Catirina sente uma grande vontade de comer a língua do boi mais precioso da fazenda em que trabalha. Com medo que seu filho nasça com a cara da língua do animal se o desejjo não for atendido, Nego Chico (ou pai Francisco) mata o bicho para satisfazer a mulher. A personagem dela costuma ser interpretada por um homem vestido de mulher.

SOFISTICAÇÃO OCORREU NO ‘RASTRO’ DOS FESTIVAIS

Traduzindo costumes locais, o folguedo acabou por adquirir características das regiões onde surgiu. No caso do bumba-meuboi e dos bois de carnaval verificados em Alagoas, a simplicidade aos poucos deu lugar à sofisticação, tanto nos elementos que constituem seu enredo quanto nas apresentações. Professor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), o antropólogo Bruno César Cavalcanti salienta que tais mudanças ocorreram também em decorrência dos concursos e festivais, os quais abriram espaço para tais intervenções. “Foi por meio de eventos de cunho competitivo, a exemplo do Festival do Bumba-Meu-Boi de Alagoas, que esse folguedo ganhou notoriedade, ao passo que se inseriram invenções não necessariamente relacionadas à sua origem. Mas é válido dizer que a partir de tais concursos foi que o boi pôde crescer, inclusive do ponto de vista estético”, observa ele. Nesse sentido, Bruno César pontua ainda que a iniciativa pública poderia trazer esse tipo de expressão popular de volta às ruas, em diferentes locais e ocasiões. “Há alguns anos, eram comuns nesse período, ainda que mais simples, as apresentações dos bois de carnaval pelos bairros de Maceió. O que eu acho é que não têm surgido iniciativas públicas de aproveitamento do boi ao longo do ano – o que seria muito importante, tendo em vista que esse folguedo talvez seja o mais importante fenômeno da cultura popular alagoana desde o aparecimento do guerreiro”, analisa. FR ‡


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