Acervo: MISA
REPORTAGEM
CORTEJO FANTÁSTICO TEXTO: FRANCISCO
RIBEIRO
O que seria do Carnaval sem foliões autênticos, que dedicam suas vidas à fantasia dos quatro dias da maior festa popular do Brasil? Apaixonados pela euforia dos festejos de Momo, eles não poupam esforços para dar vida a personagens embalados pela alegria ilimitada da folia. A Graciliano foi em busca das histórias curiosas de sete nomes inesquecíveis do cenário carnavalesco alagoano – a maioria desapareceu quase no anonimato
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Q
uem nunca ouviu o clássico “só depois do Carnaval”? Pois é. Todos os anos, o Brasil para e cai na folia durante os quatro dias da festa mais popular do nosso calendário. Nos pontos mais badalados do Carnaval brasileiro, como as ruas do Pelourinho ou as ladeiras de Olinda, milhares de pessoas esquecem seus problemas e entregam-se a uma inexplicável comunhão de alegria e excitação que toma conta da multidão. Em seu período mais expressivo, as folias carnavalescas em Maceió não foram diferentes. Além da euforia que invadia as ruas do Centro e os bailes realizados nos clubes da capital, os dias do reinado de Momo produziram verdadeiros ídolos populares. Em sua maioria, eram homens do povo, pobres, à margem da sociedade, mas que, com
simplicidade e entusiasmo, traduziam a essência do Carnaval. O engraxate Ras Gonguila, o gazeteiro Moleque Namorador, o funcionário público Pedro Tarzan, os empresários Saleiro Pitão e o Rei Momo Setton, além, claro, do Major Bonifácio da Silveira, intitulado como o “Presidente Perpétuo da República da Alegria”, tornaram-se personagens, testemunhas de uma glória perdida, cujas histórias, aos poucos, desvaneceram pela passarela da vida. Já na lista de mulheres folionas, alguns nomes se destacaram nos anos 1930, graças aos concursos de versos (glosas) que eram patrocinados pela imprensa da época. Contudo, a personalidade peculiar de Ambrosina Maria da Conceição, mais conhecida
como Miss Paripueira, que devido à forma folclórica, carnavalizada, como se vestia para sair às ruas em sua peregrinação diária a tornou famosa em todo o estado. A figura da Miss foi associada aos festejos de Momo, ainda que ela permanecesse caracterizada o ano inteiro. Conforme avançava a comercialização e a “massificação” do Carnaval, somadas ao enfraquecimento das festanças populares realizadas no Centro da capital, a presença de tais personagens que emergiam durante o Carnaval foi paulatinamente desaparecendo. E mesmo que a história oficial não reconheça o valor de cada um deles, a memória popular já os consagrou como verdadeiros heróis da folia, dotados de uma alegria que não tinha fim.
MAJOR BONIFÁCIO, O “PRESIDENTE PERPÉTUO DA REPÚBLICA DA ALEGRIA” Era de se admirar a tamanha disposição do abolicionista e folião-mor Bonifácio Magalhães da Silveira (1867-1945) para as festanças coletivas. Ele costumava estender as comemorações de Natal, Carnaval e São João meses a fio. Certa vez, um padre chamado Belamin pediu para
que ele encerrasse o festejo natalino (pois já se prolongava para além do dia 10 de janeiro), argumentando que tal data não podia confundir-se com o período carnavalesco. Não à toa, em 1927, numa das suas noites festivas, que aconteciam sempre no bairro de Bebedouro, foi proclamado o “Presidente
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Perpétuo da República da Alegria”. O folião inveterado, mais conhecido como Major Bonifácio, mudou-se do Recife para a capital alagoana ainda criança. Desde cedo, trabalhou no comércio local ajudando seu pai numa loja de tecidos e, mais tarde, em sua própria
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Reprodução: acervo Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas
REPORTAGEM
O major Bonifácio da Silveira foi um dos mais importantes agitadores culturais do estado
loja, A Democrata, situada na antiga Rua do Comércio. Atrás do balcão, o jovem Bonifácio ouvia conversas dos fregueses sobre as desigualdades sociais na monarquia e o sofrimento dos escravos. Não obstante, tornou-se um republicano e abolicionista militante. Aos 25 anos, em 1892, ocupou o cargo de prefeito de Maceió, por indicação do então governador Gabino Besouro. Entre as funções públicas de maior destaque que assumiu estão a de comandante da Polícia, na gestão do governador Clodoaldo da Fonseca, a de tenente honorário do Exército Nacional, segundo decreto de Floriano Peixoto, e de major da Guarda Nacional e do Tiro Alagoano, título que conservou
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até morrer. No entanto, mesmo com seus compromissos oficiais, Bonifácio da Silveira sempre encontrava tempo para organizar diversas brincadeiras, como a curiosa “cavalhada de bicicletas”, e promover grandes festejos populares, que reunia negros e brancos, ricos e pobres, sem fazer qualquer distinção. O espírito inventivo do major não parou por aí. Bebedouro, na época, um bairro tranquilo, de ruas pacatas, atraía as famílias para ali curtir as férias ou para descansar aos domingos. “Veio-lhe, então, o desejo de acabar com aquela monotonia e contratou um ‘Esquenta Muié’, com pífanos, zabumba e tudo”, escreveu sua neta, Ilza do Espírito Santo Porto (já falecida), no livro Major Bonifácio Magalhães da Silveira – O Homem do Governo e o Homem do Povo. Logo, não demorou para ele fundar um clube próprio, batizado como Ciganinhas do Major. A sede da agremiação ficava num terreno próximo à sua casa. Os moradores das proximidades iam, às sextas e aos sábados, assistir aos ensaios da agremiação carnavalesca criada por ele. Segundo Ilza Porto, “belas crioulas, empregadas de casas ricas, mulatas vistosas, eram requisitadas e convidadas para fazer parte do bloco, que tinha como porta-estandarte Zefa, sua empregada”.
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“Há uns fatos que a minha avó costumava contar-me sobre a relação do Bonifácio com o folclore. O major mandava os grupos ir dançar na varanda da sua casa para selecionar os melhores dançarinos. Ele era um grande incentivador da cultura popular. E isso me chamou a atenção, pois naquela época ele conseguiu fazer com que a classe média entendesse a importância da cultura que emerge do povo”, rememora a arquiteta Mirna Porto Maia, tataraneta do folião. Major parecia viver especialmente para as festas. Tanto é que, na década de 1930, por indicação do governo municipal, foi responsável pela organização do Carnaval, Acervo: MISA
que contava com grande aderência popular. “Quase toda a população festeira da cidade esteve lá”, informava o extinto Jornal de Alagoas, em sua edição de 9 de janeiro de 1932. “De cavalhadas a quadrilhas juninas, passando pela formação e apoio logístico de grupos de folguedos e da participação pessoal em concursos como o banho de mar à fantasia, de tudo fez o Bonifácio da Silveira até a idade proibi-lo”, escreveu Bruno
César Cavalcanti, em artigo publicado na Gazeta de Alagoas (04/02/2006). Talentoso também com as palavras, o major exibia suas glosas em diversos jornais. Numa delas, publicada em pleno Carnaval de 1932, pareceu antever o expressivo esvaziamento das festas de momo em Maceió, que aconteceria nos anos seguintes: “Segurem esses ricaços/ Eles querem fugir.../ Quando o carnaval começa/ Querem todos escapulir”.
Já nos últimos dias de vida, o major afastou-se dos festejos populares. Por esta razão, em 1938, mudou-se para Marechal Deodoro, onde se dedicou à pesquisa e à preservação de documentos raros que versavam sobre a história de Alagoas. A ele, deve-se o mérito da realização dos primeiros carnavais de rua verdadeiramente participativos e o apogeu festivo da alegria criativa, espontânea e massiva da folia momesca.
MOLEQUE NAMORADOR, O “REI” DO PASSO
Moleque Namorador, o mais talentoso e premiado passista de frevo em Alagoas, durante uma de suas performances
A foto ao lado foi publicada em 1997, no jornal Gazeta de Alagoas, com a seguinte interrogação: “Seria o dito cujo?”. O leitor Carlos Mendonça identificou o artista e ele próprio, sentado no chão vestido num terno impecável, assim como todos naquele dia, e sentenciou: “Era”. A fotografia retrata o mais talentoso e premiado passista de frevo em Alagoas, Armando Veríssimo Ribeiro, mais conhecido como Moleque Namorador. Farrista em tempo integral, Armando nasceu no município de São Luís do Quitunde. Ao fixar residência em Maceió, morou na Rua Xavier de Brito, no bairro do Prado, mas animava os carnavais da Ponta Grossa ao som do autêntico
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frevo pernambucano. Moleque Namorador dividia o seu tempo entre a vida boêmia e a venda de jornais pelas ruas da capital, nos anos 1930 e 1940, ofício que executava sempre de bom humor e sem abandonar o espírito de um verdadeiro folião. Vítima de tuberculose, o passista morreu precocemente, aos 28 anos de idade (algumas fontes afirmam que aos 30), em 1949. Na década de 1960, durante a gestão do ex-prefeito Sandoval Cajú, foi construída uma praça em sua homenagem, na Ponta Grossa. O local, que abriga uma escultura em memória a seu patrono, tornou-se um reduto dos foliões que mantiveram a tradição da folia de Moleque Namorador.
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A MAGIA DO CINEMA NA VIAGEM CARNAVALESCA DE PEDRO TARZAN
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Um homem corpulento e de pele negra, Pedro Ferreira Auta (1929-2001) mantinha uma espécie de “ritual” para confeccionar suas fantasias carnavalescas. Para evitar ser incomodado pelos comentários alheios sobre os trajes que produzia, ele buscava se isolar do contato com as pessoas. “Não queria ouvir a opinião de ninguém”, confessou ao cineasta alagoano Pedro da Rocha, no documentário Memórias de um herói de carnaval (1988). Não era segredo para ninguém. Bastava perguntar para Pedro Ferreira de onde vinha a inspiração para criar as suas fantasias que ele revelava sem nenhum rodeio: “Através dos filmes que vinha assistindo, como O Grande Guerreiro, com Victor Matuse, Um Passo da Morte, com Kirk Douglas, Talhado em Granito, com Randolph Scott e O Último Guerreiro, com Jack Palance”. Desfilando pelas ruas durante as festas momescas vestido de heróis dos épicos hollywoodianos, ele logo se Graças às fantasias bem elaboradas e seu corpo atlético, o folião Pedro Tarzan (nas duas imagens ao lado) tornou-se conhecido como o “rei do Carnaval alagoano”
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tornou “o rei do Carnaval alagoano”. Nascido no município sergipano de Malhador, ainda jovem o folião fixou residência em Maceió, por volta de 1952. “Viemos para a miséria, para a cidade... penar”, lembrou. Antes, morou alguns anos em Aracaju e, em seguida, no pequeno povoado alagoano de Riacho Velho. Descendente de índio e de negro, cresceu ao lado de 18 irmãos. “Mas morreram um bocado. Eu não sei a quantia” (sic), pontuou, afirmando que teve a sorte de, desde criança, se destacar entre os demais: “Parecia que eu tinha um espírito elevado”. Em Maceió, Pedro trabalhou como funcionário da prefeitura até aposentar-se. A primeira vez em que desfilou, vestiu uma fantasia de índio, mas confessou não ter achado “muito adequado”. Numa avaliação crítica de si mesmo, disse: “Eu tenho que me aperfeiçoar”. Para tanto, assistiu a diversos filmes e fez releituras dos figurinos dos personagens. Em 1956, iniciou suas atividades como carnavalesco “de carteirinha”, apresentando-se como Comanche, inspirado no filme
O Grande Guerreiro (1955), fantasia confeccionada com penas de peru e pavão, lantejoulas, galões, papelão e areia brilhante. Após a leitura do livro Força e Saúde e com o objetivo de assemelhar-se fisicamente à figura do gladiador romano, interpretado por Kirk Douglas, no filme Spartacus (1960), o folião começou a praticar halterofilismo. A prática esportiva lhe rendeu a alcunha de “Pedro Tarzan”, ao vencer um concurso de força em Maceió, na década de 1950. “Na época, estava passando Tarzan, com Johnny Weissmuller. Aí o apelido pegou”, rememorou. Suas fantasias sempre bem elaboradoras e o corpo atlético renderam tamanha fama entre os foliões que Pedro desfilava
protegido por um cordão de isolamento. Ao longo dos anos 70, ele viveu seu apogeu. Foi durante esse período que frequentou o Museu Théo Brandão, então administrado pela museóloga Carmen Lúcia Dantas. “Ele era um homem de muita paz, voz mansa, pausada. Ao mesmo tempo que tinha um físico extraordinário, com os poderes masculinos tão aflorados, ele parecia ser predestinado para as mulheres se afastarem dele. E a gente se
Pedro Tarzan inspiravase nos figurinos dos filmes hollywoodianos a que assistia para criar as suas fantasias
divertia e também tinha pena das mágoas amorosas que ele nutria”, conta Carmen. Aos 71 anos, debilitado e sem desfilar havia quase uma década, Pedro “apareceu na TV e explicou o verdadeiro sentido da festa popular através dos microfones de uma emissora de rádio. Foi a última vez”, noticiou o extinto O Jornal (06/07/1999). Impossibilitado de falar e de andar, o velho folião, que sofria com artrite e artrose, teve seu quadro de saúde agravado após um acidente vascular cerebral. Pedro Ferreira Auta faleceu em 2001, aos 72 anos de idade, “na mais absoluta miséria”, segundo afirmou seu filho, Gerson Ferreira Mamede, que permanece na luta pelo reconhecimento do seu pai, “o rei do Carnaval alagoano”.
RAS GONGUILA, O CAVALEIRO DA FOLIA A Maceió dos longínquos primeiros anos do século 20 conheceu um ícone carnavalesco de presença obrigatória na história do carnaval alagoano: Benedito Santos, criador e líder de um dos blocos mais tradicionais do Carnaval local, o Cavaleiro dos Montes. Com a alcunha de “Ras” (título real oriundo da Etiópia que designa um guerreiro), e o sobrenome de Gonguila, o jovem negro
comandou a mais animada agremiação que desfilou nos quatro dias de folia de Momo pelas ruas da capital. Nascido na antiga Rua do Macena e morador do bairro da Ponta Grossa, Ras Gonguila foi o mais “disputado engraxate ambulante”, segundo registrou Adenor Bittencourt, em Picadas e Ferroadas (1987), livro de memórias que reúne crônicas sobre o cotidiano da cidade. Benedito tinha como fregueses,
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políticos, funcionários públicos e poetas. O ponto do engraxate, na Rua do Comércio, tornouse um local de encontro para o bate-papo de boêmios e pessoas a fim de “jogar conversa fora”. Fundado por ele no início do século 20 (a data exata é objeto de incerteza até para pesquisadores), o bloco Cavaleiro dos Montes foi inspirado no cinema, em especial, na figura dos cowboys.
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O engraxate e folião Ras Gonguila pôs o bloco Cavaleiro dos Montes na rua durante mais de 30 anos, sempre com a colaboração do povo
Ao lado, num registro raro, Ras Gonguila desfilando com o estandarte do bloco Cavaleiro dos Montes
Nos desfiles, Ras Gonguila vinha à frente, tocando o clarim que convidava a multidão para a festa. Durante a caminhada – que saía do bairro do Farol, na altura de onde hoje está situado o Hospital Portugal Ramalho, atravessava o Centro e seguia até a Ponta Grossa –, misturavam-se pedreiros, engenheiros, médicos, enfermeiros, desocupados, prostitutas e soldados. No auge, o bloco contava com mais de 15 músicos. Durante os anos em que “botou o bloco na rua”, apenas não pôde participar um ano, por motivos de saúde.
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Desde 2011, por falta de apoio público e devido a dificuldades financeiras, o bloco não sai mais às ruas. “Antes, na época de Ras, era mais fácil conseguir apoio. No entanto, atualmente, por conta da ausência de patrocínio para arcar as despesas com a orquestra, por exemplo, tivemos que parar”, lamenta o atual presidente da agremiação, Paulo Jorge Jerônimo. Tamanha eram a popularidade e a importância social de Gonguila que, durante as campanhas eleitorais, o folião era sempre requisitado
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por candidatos a vereador, prefeito, deputado, e, certa vez, até pelo presidente Getúlio Vargas (1882–1954), para obter o seu apoio, segundo conta Carlito Lima, em artigo publicado no jornal Gazeta de Alagoas, de 7 de outubro de 2012. No palanque, ao lado de Ras, dificilmente o político perderia a eleição. Segundo registro do historiador José Maria Tenório Rocha, Benedito Santos morreu em 1967, de um ataque cardíaco fulminante, em plena Rua do Comércio, no Centro de Maceió.
SETTON, O ETERNO REI MOMO DE MACEIÓ Na lista das figuras carnavalescas mais emblemáticas de todos os tempos, sempre constará com destaque a imagem rechonchuda do Rei Momo. Pode até não parecer, mas sua origem remete a um passado bem distante. Tudo indica que o monarca da folia surgiu inspirado em um personagem da Antiguidade clássica, o deus do sarcasmo e do delírio chamado Momo. Por 19 anos consecutivos, os alagoanos acompanharam a trajetória de um legítimo representante da folia momesca. Salomão Setton Neto, mais conhecido como Rei Momo Setton, nasceu em Maceió no dia 23 de fevereiro de
1920 e faleceu em 12 de maio de 1994. Seu reinado durou de 1970 a 1988. E, para sua sorte, muitas vezes o seu aniversário caía em pleno Carnaval. Não havia presente melhor para um folião: a comemoração não tinha hora para acabar. No Brasil, a tradição de eleger um Rei Momo apareceu primeiro no Rio de Janeiro, em 1933. Como segue a tradição, geralmente, o escolhido ao trono era alguém gordo e extrovertido. Além de contar com esses dois atributos, Setton também era dotado de uma simpatia incomum. No seu reinado de quase duas décadas, o Rei Momo recebeu a chave da cidade, que ele, simbolicamente, governa durante os festejos carnavalescos.
Acervo: MISA O Rei Momo Setton, cujo “reinado”em Maceió durou 19 anos: o comerciante amava o Carnaval
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Mas foi na labuta diária que ele começou a ganhar popularidade pela cidade. O ilustre folião trabalhou na Casa Setton, a loja de tecidos de seu pai, situada na antiga Rua Joaquim Távora (hoje Rua da Alegria), tanto no balcão quanto como cobrador de prestação, o que lhe proporcionou conhecer as pessoas e a cidade como a palma da mão. A sua veia artística despontou na juventude. Aos 28 anos, Setton foi convidado para fazer parte do cast de inauguração da Rádio Difusora de Alagoas, como cantor, em 1948. Ao lado da sua paixão pelo Carnaval, ele mantinha uma outra: a de torcedor do time alagoano CSA. Depois do falecimento de seu pai, Jacques Setton, a Casa Setton transformou-se no Setton Bar. Segundo alguns frequentadores, o cachorroquente e o bolo salgado eram o forte do cardápio. Depois do bar, ele dedicou-se à profissão que abrigava todos os seus atributos de relações públicas: a corretagem. O nome de Setton Neto, também conhecido pela alcunha de “El Gringo do Samba” (e da folia), entrou para a história das grandes figuras do Carnaval de Maceió. O cantor e compositor Eliezer Setton é filho do famoso Rei Momo.
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MAESTRO MANEZINHO, O REGENTE DA ALEGRIA A música e o Carnaval foram as maiores paixões do maestro Manoel Tenório de Moura (1922-2013). Ainda garoto, aos 12 anos, foi tomado por um desejo despretensioso de fundar um pequeno bloco carnavalesco. Manoel não previra que, anos mais tarde, a agremiação criada por ele iria obter tamanha aderência popular tornando-se uma das maiores e mais conhecidas de Maceió. “Peguei um pedaço de pau e um cabo de vassoura, e com eles fiz uma cruz. Botei um pano e o nome do bloco”, contou em depoimento ao antropólogo Bruno César
Cavalcanti. Foi assim que surgiu o bloco de frevo Sai da Frente, que na década de 1940, durante os festejos de Momo, arrastava milhares pelas ruas da capital. Nascido em Rio Largo, Manoel fixou residência no bairro do Prado, em Maceió. Graças às suas liderança e dedicação, Sai da Frente detém o maior número de títulos entre os blocos locais: foi campeão 32 vezes nas competições de orquestras de frevo. Entre os anos 40 e meados da década de 50, a disputa se acirrava no concurso mais aguardado de todos, o Banho de Mar à Fantasia, que, segundo
seu Manezinho, julgava a criatividade, a irreverência e a alegria dos blocos. Nele, o maestro conseguiu um feito admirável: levou para casa, por 13 vezes consecutivas, o troféu deste certame, que acontecia sempre na tarde de domingo, e percorria toda a orla da praia da Avenida. “Todas as cores, as alegrias, os festejos e o som das músicas de carnavais dos meus 18 anos ainda permanecem vivas como se fosse hoje, na minha velha memória. Era tanta gente bonita participando do nosso bloco que, quando o Sai da Frente passava, a
Adailson Calheiros
Maestro Manezinho esteve à frente de um dos mais importantes blocos de frevo de Maceió, o Saí da Frente
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multidão acompanhava sem medo nenhum de se entregar à folia”, recordou o maestro, em entrevista à jornalista Luana Nunes. Maestro Manezinho, como se tornou conhecido, dava a largada do seu bloco na Rua das Árvores, no Centro de Maceió, e passava pelas ruas do Comércio, Praça dos Martírios e seguia até a Senador Rui Palmeira, no bairro do Farol. Ao longo dessa extensa trajetória,
uma multidão se aglomerava acompanhando a premiada orquestra e se divertia jogando, uns nos outros, Maizena e bolinhas de silicone com líquido colorido. “O mela-mela era a melhor parte da folia de rua. A gente jogava o pó nos foliões, cumprimentava as pessoas com uma bolinha, que quando batia nas costas melava a camisa de vermelho, e éramos todos felizes dessa forma. Sinto muita saudade de muita coisa, porque
tudo que é bom faz falta”, rememorou seu Manezinho. Em 2006, o folião recebeu o título de comendador do bloco Pinto da Madrugada, e sua esposa, dona Pompéia, foi agraciada com o de comendadora, sendo a primeira mulher a recebê-lo. Falecido em 2013, aos 91 anos, seu funeral contou com a presença maciça de amigos e familiares que homenagearam o carnavalesco com muito frevo.
Da infância à velhice, Cláudio Saleiro Pitão (1920-1990) viveu toda a sua vida no Centro de Maceió. Nada mais oportuno para um alagoano apaixonado pelo Carnaval. De lá, ele vivenciou o apogeu e o declínio das festas de Momo na capital alagoana. E seu nome ficaria conhecido por todo o estado como um dos mais animados brincantes de clubes e de rua, ao lado de Ezequiel Pereira, José Moreira Lima, Arthur Machado, João Alves de Souza, Abel Ribeiro, Aristides Carteiro, Mario Cardoso, Rubens Camelo e muitos outros, conforme registrou o cronista Félix Lima Jr. Dono de uma pequena indústria, Saleiro Pitão – como era conhecido – tinha os atributos de um “vendedor nato”. Conhecido pela
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SALEIRO PITÃO E SUA ALEGRIA SEM FIM
Saleiro Pitão foi um dos mais conhecidos foliões do Carnaval alagoano
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personalidade extrovertida, seu único herdeiro, Cláudio Saleiro Pitão Filho, 58, lembra que o velho folião não descansava um instante sequer ao longo dos quatro dias de Carnaval. “Todo ano, ele fazia uma fantasia diferente e saía no carro alegórico, dividindo as atenções com o Rei Momo da época. Ou então, ia para as emissoras de rádio cantar marchinhas de Carnaval ou músicas românticas, com a radialista Odete Pacheco”, rememora. Desde criança, Pitão Filho frequentava os bailes carnavalescos da cidade,
levado pelo seu pai. Num deles, promovido pelo Clube Fênix, ganhou um concurso de fantasia. Os trajes de ambos eram confeccionados pela sua mãe, Helena. “Certa vez, meu pai fez uma fantasia intitulada Amolador de Língua de Sogra e provocou uma polêmica grande numa das festas”, conta, aos risos, lembrando que na ocasião do seu aniversário, cuja data coincidiu com a do Carnaval, Saleiro Pitão contratou a escola de samba Unidos do Poço e preparou uma feijoada para comemorar. Já com a idade avançada, o
folião deixou de acompanhar os festejos. No entanto, ele percebeu que as festas de rua e os bailes carnavalescos estavam, aos poucos, chegando ao fim. “O último carnaval do qual meu pai participou, fui eu quem o levou. Quando começou a brincadeira do mela-mela, peguei uma mão cheia de maionese e sujei o rosto dele. Algumas pessoas foram reclamar do que eu tinha feito. Eu respondi: ‘Olha a felicidade no rosto dele’. E elas perceberam que ele estava alegre, satisfeito, por estar participando da festa”.
OLHA A MISS PARIPUEIRA! Todos os dias, Ambrosina Maria da Conceição saía de casa vestida com roupas coloridas e adornada com acessórios extravagantes. As ruas da atual cidade de Paripueira, até 1988 uma vila agregada ao município de Barra de Santo Antônio, eram a sua passarela. E por onde caminhava, ou melhor, desfilava, recebia aplausos e gracejos dos moradores e convites de turistas para tirar fotos. Sua peregrinação diária transcorria sem maiores aborrecimentos, até os “maloqueiros” azucrinarem a sua paciência. Eles a chamavam
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de Sabiá ou Canela de Sabiá, apelidos que ela detestava. Ambrosina, uma senhora de origem negra, magra e de estatura baixa, perdia a calma e gritava: “Meu nome é Miss Paripueira!”, alcunha pela qual se tornou conhecida e como ainda permanece viva na lembrança de muitos alagoanos. Quando avistada pela criançada, Ambrosina não tinha sossego. Uma das brincadeiras que mais a desagradava era quando a garotada arrancava a sua peruca. A reação dela sempre rendia boas gargalhadas e também
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carreiras dos meninos para evitar uma pancada com a sua sombrinha. Miss Paripueira transitava entre a lucidez e o delírio. Figura singular das décadas de 70 e 80 no pequeno município onde residia, sua fama não tardou a chegar à capital. Vez ou outra, quem andasse pelo Centro de Maceió poderia se deparar com Ambrosina, que logo se tornava uma grande atração. O advogado e professor universitário Carlos Ramiro Basto registrou o início da jornada para a fama da ilustre moradora de Paripueira em artigo publicado no livro Arte
coroa, e colocaram-na num jipe sem capota, que seguia o caminhão da orquestra. Foi aclamada miss durante todo o percurso do corso. E, daí por diante, a Vizinha deixou de ser ‘beata’ e passou a ser Miss Paripueira”, escreveu Carlos Ramiro Basto. Tomado pela vontade de registrar a história da Miss, o então diretor alagoano José Márcio Passos, 63, documentou em Super-8 o cotidiano da personagem. “Acompanhei o dia a dia dela. Desde o momento em que saía de casa, pedia dinheiro para as pessoas, era xingada pelas crianças. Todas as suas reações”, lembra. “Miss Paripueira se considerava a mulher mais bonita da cidade. Era um delírio maravilhoso. E a convivência com ela foi fantástica”, conta
Márcio Passos, lamentando a perda da única cópia do filme que tinha. O curta recebeu o terceiro lugar para Melhor Filme no Festival Nacional de Cinema de Aracaju (Fenaca), em 1978, e a mesma colocação no IV Festival do Cinema Brasileiro de Penedo. O cineasta recorda alguns episódios engraçados protagonizados por Ambrosina, como quando falava sobre a paixão dela por um certo capitão Salgado, ou por um personagem da novela Antônio Maria, exibida pela TV Cultura, em 1985. Há quem diga que o tal capitão existiu e há quem afirme que era só mais uma invenção da sua cabeça. Ela também não descuidava da aparência, pois, caso contrário, Lulu da Barra, invejosa, poderia roubar a sua coroa e o seu
Aclamada durante um Carnaval, a Miss Paripueira, vestia-se de forma folclórica, carnavalizada, e fazia peregrinações diárias pelas ruas. Antes da “fama”, fazia-se de beata e pedia contribuições para uma novena
Celso Brandão
Popular de Alagoas, cujas pesquisa e organização são de Tânia Pedrosa. Antes do estrelato, Miss fazia-se de “beata”. Conhecida por Vizinha, ela percorria as praias, aos domingos e feriados, com uma bandeja repleta de flores, onde repousava a imagem de uma santa, pedindo contribuições em dinheiro para uma infindável “novena”, realizada em sua casa. “Num domingo de Carnaval, quando ela estava na praia pedindo espórtulas [doações], várias jovens, inclusive minha filha Elizabeth, perguntaram se ela não queria ser candidata a Miss Paripueira. Ela ficou satisfeita com a proposta e respondeu afirmativamente. Imediatamente, as jovens improvisaram uma fantasia com a faixa de miss e uma
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as pontas dos dedos. Nunca me esquecerei disso”. A artista alagoana Beta Basto também guarda lembranças da Miss. “As boas lembranças que tenho dela são do começo do seu reinado. Mas, infelizmente, ela, que antes era mimada pela turma que ia passar férias em Paripureira, tornou-se motivo de brincaderias maldosas”, recorda. Um dia, os jornais noticiaram a morte de Miss Paripueira, vítima de atropelamento, no Centro de Maceió. Todos lamentaram o desaparecimento daquela figura emblemática de Paripueira. Passado algum tempo, ela apareceria novamente nas ruas da cidade. Não era um fantasma:
a reportagem havia publicado uma informação equivocada. Ela estava viva e apontou como responsável por espalhar aquela noticia inverídica a sua “arquirrival”, Lulu da Barra. Ela continuou por mais alguns anos na sua peregrinação habitual pelas ruas do município de Paripueira, pedindo dinheiro para sua sobrevivência e defendendo o seu reinado de Miss. Até que, já debilitada pela idade avançada, abandonou suas andanças diárias. Mesmo assim, amigos e conhecidos continuaram contribuindo financeiramente e com doações. Quase duas décadas após sua morte, ocorrida em 1995, a Miss Paripueira nunca foi esquecida pelos alagoanos.
Celso Brandão
título. Lulu, segundo Miss Paripueira, não sabia desfilar e nem tão pouco dançar o Carnaval. Somente ela conhecia o “passo da onça”, um estilo de dança com o qual pretendia desafiar a invejosa rival. “Uma coisa que me chamou a atenção foi o fato dos moradores de Paripueira gostarem dela até certo ponto. Porque às vezes ela incomodava, tornava-se agressiva. Mas, na maioria das vezes, era dócil, animada e brincalhona”, afirma Passos, ressaltando uma cena que lhe marcou: “Certa vez, ao entrar numa casa onde os familiares estavam reunidos na varanda, Miss se dirigiu para cumprimentá-los. Mas eles não davam a mão para ela. Só
A Miss foi tema de um documentário dirigido pelo ator e cineasta José Márcio Passos. A única cópia existente foi perdida e restaram poucos registros da história da personagem mais famosa de Paripueira
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