SIFAEG/GO
Fotos: Taynara Pretto
REPORTAGEM
ALAGOAS,
terra para o açúcar TEXTO: FRANCISCO
RIBEIRO
“Sem açúcar”, já dizia o sociólogo Gilberto Freyre, “não se entende o homem do Nordeste”. Tradição que remota ao Brasil Colônia, a doçaria nordestina é fundada no tripé açúcar, coco e mandioca. Em Alagoas, a arte do doce é preservada pelas mãos de mulheres e homens que perpetuam, ao longo de sucessivas gerações, as receitas de saborosos quitutes
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A cana-de-açúcar, base para fabricação da matéria-prima da doçaria brasileira, é cultivada no Brasil desde o século 16. Durante muitos anos, foi cultivada por toda a faixa litorânea do Nordeste e continua sendo a base da economia alagoana
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Mas na época da publicação de Açúcar, Freyre causou espanto entre os conservadores e acadêmicos por se debruçar sobre um tema tão “menor” quanto a catalogação das receitas de bolos, doces e compotas. Seu olhar dedicado e crítico que repousou nos mais diversos aspectos da nossa sociedade não poderia passar desapercebido a respeito da importância do açúcar, ingrediente responsável por inventar o paladar do brasileiro. “Sem o açúcar”, já dizia ele, “não se entende o homem do Nordeste”.
A saga da fabricação e do comércio do açúcar no País começa a partir da vinda dos portugueses. “O açúcar está no Brasil desde as primeiras décadas da colonização. Já se passaram cinco séculos e ele ainda continua presente. No caso de Alagoas, ‘superpresente’. E com uma força política, econômica e social monumental”, ressalta o economista e professor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Cícero Péricles. “Logo, a culinária não pode ficar de fora da nossa construção cultural. Os portugueses
Divulgação
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iz-me o que comes; eu te direi quem és”. À primeira vista, a frase dita por Jean Anthelme Brillat-Savarin (1755-1826), um dos mais famosos gastrônomos franceses, parece abraçar somente os hábitos alimentares de um indivíduo, mas, na verdade, contempla também tudo o que a culinária pode representar para além das necessidades, restritamente, biológicas: afinal, a comida alimenta, sobretudo, as identidades sociais de um povo. Não à toa, o notável antropólogo Câmara Cascudo (1898-1986) afirmou, muito sabiamente, que o paladar traz à tona no homem o que ele tem de mais pátrio, ligado à terra. Hoje, a gastronomia é reconhecida como uma lente para desvendar os traços de determinada cultura e possui uma importância inquestionável. Ela, conforme mostrou o sociólogo pernambucano Gilberto Freyre (1900-1987), serve como ponte para ligar passado, presente e futuro da história do homem nordestino. Prova disso é a publicação, em 1939, de Açúcar, obra na qual o autor de Casa Grande & Senzala mostra que a culinária nordestina é fruto da fusão de costumes dos brancos colonizadores, dos índios nativos e dos escravos africanos. Isto é, traduz toda a diversidade de um povo, e, por isso, emana uma riqueza genuína.
No século 17, o açúcar ainda era uma especiaria rara, vendido em farmácias para curar doenças, como a peste negra
à capitania de Pernambuco, cuja produção era muito desenvolvida. Portanto, ainda era pernambucano o açúcar produzido onde hoje é território alagoano. O resto, você já deve saber. Basta percorrer o Litoral e a Zona da Mata do estado para verificar a presença quase absoluta da cana, cuja raiz atravessa a formação dos nossos hábitos e costumes, em especial, os alimentares. A doçaria brasileira se desenvolveu tanto nos conventos como em casas particulares. Mas foram os engenhos (fábricas
responsáveis pela extração da sacarose) instalados pelos colonizadores portugueses em terras brasileiras os protagonistas dos capítulos seguintes da história da nossa culinária do doce. “As fábricas responsáveis pela transformação da cana em açúcar ou em outros derivados, como o melaço ou a aguardente, eram formadas por uma casa-grande, senzala, uma parte agrícola, as oficinas e o engenho. Este último tinha tamanha importância, cujo nome acabou correspondendo ao de todo o conjunto”, conta
Gravura de Johann Moritz
adaptaram a alimentação do índio, como, por exemplo, a mandioca e o milho, e também a dos negros. E é do resultado dessa mistura que nasceu também a doçaria”, explica. Vale lembrar que o caminho do açúcar até o Brasil foi longo. O caldo de cana chegou ao ocidente pela Ásia, por volta do ano 325 a.C., quando os exércitos de Alexandre Magno regressaram da expedição de conquista da Índia trazendo em suas bagagens a iguaria, batizada de “sal indiano”. No século 17, o açúcar ainda era uma especiaria rara, vendido em farmácias para curar doenças, como a peste negra. Seu prestígio aumentou à medida em que também foi usado na preparação de pratos. E ganhou o mundo, com o cultivo da cana na recémdescoberta América. Daí em diante, a oferta da mercadoria aumentou por toda a Europa, o seu preço reduziu, o que, por sua vez, elevou radicalmente o seu consumo. O pontapé inicial que popularizou a paixão portuguesa pelo doce no Brasil tem data e local conhecidos: 1532, na capitania de São Vicente, quando o explorador Martim Afonso de Sousa instalou a sua fábrica de marmeladas. Ao longo dos anos, a cana-de-açúcar foi cultivada por quase toda a faixa litorânea do Nordeste. Até o ano 1817, Alagoas pertenceu
Instalados pelos portugueses, os engenhos eram os locais onde se extraía o açúcar e outros derivados, como o melaço e a aguardente
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Cícero Péricles, autor do estudo intitulado Análise da Reestruturação Produtiva da Agroindústria Sucroalcooleira Alagoana. O encontro da cozinha indígena, africana e europeia aconteceu no dia a dia das casas-grandes. A convivência bem-sucedida e espontânea entre o açúcar e aquele que era o alimento básico dos índios – a “mani’oka” (mandioca) –, com a força e a experiência das escravas no preparo das comidas (José Lins do Rego, na obra Menino de Engenho, cita a importância das jovens negras, que graças a seus “braços de homem tiravam os tachos pesados do fogo, sem pedir a ajuda a ninguém”), somaramse às receitas dos brancos portugueses, já acostumados ao sabor açucarado das sobremesas. No livro Delícias da Cozinha Alagoana – As Melhores Receitas das Irmãs Rocha, Maria Rocha Cavalcanti Accioly observa que a culinária praticada em Alagoas não difere da do Nordeste em geral. Das quase 200 receitas compiladas na obra, 80 contam o passo a passo para o preparado de bolos, doces, biscoitos, cremes e outros quitutes tradicionais da nossa gastronomia. “Pudim e doce de mangaba, doce de coco, suspiro, sequilho, malcasado de goma, rosquinha de chocolate e de molho, broa de goma e pão-de-ló (sic) torrado... A lista
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é longa, mas sempre haverá tempo para se provar todos esses quitutes. Filós na calda, por exemplo, é comida para os dias de Carnaval. Enfim, são doces que têm passado e história. Conhecido e saboreado por várias gerações. Amaciado no paladar de nossos avós”, escreveu Maria Rocha.
O solo massapé, ideal para o cultivo da cana, é abundante em todo o Nordeste, o que explica a multiplicação de engenhos em Alagoas GEOGRAFIA DO DOCE
“Alagoas, terra para o açúcar”, disse o então governador do estado Osman Loureiro (18951979), referindo-se à qualidade do solo para o plantio e o cultivo da cana. A terra doce e generosa chama-se massapé. Encontrado em abundância em todo o Nordeste, este solo fértil foi o principal responsável pela multiplicação dos engenhos em Alagoas, o que fez do estado uma economia predominantemente açucareira. Gilberto Freyre observa, no entanto, que nem sempre a
intensidade da produção do açúcar acompanha a produção da arte da sobremesa. Ainda assim, a correspondência é a regra. Vejamos, por exemplo, a tradição de doces finos do Rio Grande do Sul, dominada por Pelotas, e no Pará, com as suas compotas de frutas amazônicas. Porém, ressalta ele, o primado da doçaria brasileira cabe ao Nordeste. Era tão grande a importância dos engenhos patriarcais de cana-de-açúcar que foi à sombra deles, segundo pontuou o sociólogo alagoano Manuel Diegues Júnior (1912-1991), na obra O Banguê nas Alagoas, que, no estado, deu-se início a povoações inteiras: Pilar, São Luís do Quitunde, Passo do Camaragibe e a própria capital, Maceió, são alguns dos exemplos citados. Por consequência, é na cozinha das casas-grandes que a herança do doce nasce e se perpetua através das gerações. Naquela época do Brasil Colônia, a alimentação era farta. A mandioca era o alimento que reinava absoluto na culinária dos engenhos alagoanos, seja enquanto farinha ou nos mais diversos e saborosos quitutes, como o cuscuz e o bolo de mandioca. O milho também surge como destaque nas receitas das comidas típicas dos festejos de São João. Entre elas, estão bolo de milho, pamonha, angu, canjica e o munguzá. Este último, conta Diégues Júnior,
Ricardo Lêdo
Em quase todas as regiões de Alagoas, os canaviais dominam a paisagem. Isso faz do estado uma economia predominantemente açucareira
preparado da seguinte forma: “Põe-se o milho descaroçado para cozinhar; quando fica bem molinho o milho, põese leite de coco grosso e depois acrescenta-se açúcar, adocicando a gosto. Põe-se um pouco de manteiga e juntam-se também uns cravos de doce. Deixa-se apurar bem o gosto dos ingredientes, fervendo tudo. Daí a pouco está pronto o munguzá”. Outra iguaria preparada com a mandioca ou a macaxeira, e que até hoje permanece muito apreciada, é o pé de moleque. A receita leva, preferencialmente, a mandioca, além do sal, açúcar, leite de coco e ovos: “Mistura-se coco raspado com a mandioca já lavada, espremida e seca;
acrescenta-se sal, açúcar, manteiga, leite de coco e gema, tudo conforme a gosto. Em seguida vai ao forno em forma untada com manteiga para assar. Outra forma de fazer o pé-de-moleque (sic) é em folha de bananeira”, registrou o sociólogo, em O Banguê nas Alagoas. O que não faltava nas casas-grandes eram frutas, consumidas não só nas sobremesas, como também nos lanches. A banana, a goiaba, o maracujá, o mamão, a mangaba e a laranja encontravam-se sobre as enormes mesas de madeira. Contudo, o caju era a fruta que tinha a preferência das famílias de engenho e que até os dias atuais adoça o paladar dos alagoanos. Do
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cajueiro, praticamente tudo era aproveitado. Dele, faziamse doces secos e em calda e fabricavam-se vinhos ou licores. Destaca-se ainda a arte do bolo e das suas formas. Dos fogões a lenha, saíam bolos de várias espécies enfeitados com papel de seda, sequilhos, broas de goma, suspiros, beijus etc. “Com o açúcar não eram aproveitadas somente as frutas”, escreveu Manuel Diégues Júnior, “também o eram a mandioca, o milho, para o preparo de quitutes de diversas qualidades. E eram estes doces, estes bolos, estes quitutes, muitos deles característicos das casas-grandes, celebrados e consagrados, figurando no
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quadro das atividades sociais dos engenhos”. Passados cinco séculos, a geografia do doce em Alagoas possui, atualmente, características diferentes da época do Brasil Colônia. Das mãos das escravas e senhoras de engenho, a preparação dos quitutes estão hoje a cargo de mulheres e homens humildes, pertencentes às camadas sociais de baixa renda. O estado tem uma curiosa distribuição geográfica relacionada ao fazer e à venda de determinados tipos de iguarias. Nos municípios do Litoral Norte, verifica-se a tradição das broas, bolachas, compotas de frutas, beijus, grude, bolos de tabuleiro e pé de moleque. Em Riacho Doce,
por exemplo, residem as seis filhas da famosa doceira dona Percina (falecida em 2013). Enquanto no Litoral Sul, segue o trabalho das doceiras do povoado Massagueira, que vendem cocadas, brasileiras, broas e suspiros, à beira da AL101 Sul. E foi seguindo uma espécie de trilha do doce que percorremos três cidades alagoanas com o propósito de resgatar a tradição da doçaria local. Descobrimos que passado, presente e futuro estão fundidos num mesmo prato e vêm à mesa com um sabor adocicado. E que esta herança secular, que revela, sobretudo, as identidades do nordestino, ameaça desaparecer e não mais adoçar o nosso paladar.
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Graciliano na trilha do doce 1
Maragogi A tradição da feitura artesanal de sequilhos, como bolachas e broas, pelos moradores da região, permenece viva.
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Maceió Nos bairros de Riacho Doce e Ipioca concentramse a produção de quitutes à base de mandioca e de compotas de frutas.
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Japaratinga Distante 110km da capital alagoana, no município está atualmente instalada a fábrica Bolachas Maragogi.
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Marechal Deodoro No povoado de Massagueira, quituteiras vendem cocadas em barracas à beira da AL-101 Sul.
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A MAÇONARIA FEMININA DO DOCE
A comida traz a marca do passado. É isto o que revela o continuado esmero na produção artesanal de doces, bolos e sobremesas pelas mãos das doceiras alagoanas. Passados de mãe para filha secularmente, o modo de preparo das guloseimas se manteve em segredo por essas mulheres. Ao lado da maçonaria dos homens, houve também uma “maçonaria feminina do doce”, termo este cunhado por Gilberto Freyre para designar a sociabilidade feminina do Brasil patriarcal em torno das receitas de família. No bairro de Riacho Doce, um dos primeiros na porção litorânea ao norte de Maceió, encontramos dezenas de boleiras, que comercializam seus quitutes em tabuleiros dispostos à margem da rodovia. Elas mantêm entre si a arte da produção do beiju, da tapioca, do grude (malcasado de goma), da brasileira, do pé de moleque, e dos bolos de macaxeira, massa puba e milho. Sobre todos os ingredientes usados na receita dessas saborosas iguarias, predomina a mandioca nativa – um elemento de franca ascendência indígena. Entrar à casa onde vivem duas das seis filhas da mais famosa quituteira do município, dona Percina Assis dos Santos
Acervo da família
Vanessa Mota
À esq., dona Percina, a matriarca, já falecida, de uma família que se dedica há muitos anos à produção de bolos em Riacho Doce. O bolo de macaxeira, feito em tabuleiros, é um dos mais apreciados
(1928-2013), é ter uma aula sobre de onde vem a comida. Do quintal da residência, transformado em cozinha, é possível sentir o cheiro da massa e da goma de mandioca assando no forno a lenha. Em poucos minutos, saem quentinhos os bolos e outros quitutes. Falecida aos 85 anos, dona Percina está viva em suas receitas. Bastou pedir licença e logo as portas se abriram para a reportagem. Fomos recebidos por Angelina, 65 anos, a mais velha das filhas de dona Percina. Levados por ela, chegamos ao quintal em que se revela a engenhosidade do povo simples: máquinas para
moer a macaxeira e um grande forno de barro. Um painel repleto de fotos disposto em uma das paredes roubava a atenção. Ocupando um lugar de destaque, vemos a fotografia de uma negra, robusta, dedicandose ao preparo das iguarias. “Essa é a minha mãe”, apontou Angelina. Das seis irmãs, quatro se dedicam à arte do doce. “A mais nova, Anabel, 46, faz as brasileiras; Joselina, 50, os bolos; e Angélica, 63, dá apoio às tarefas”, disse Angelina, que é responsável pelo preparo “do grude, dos torrados e das tapiocas”, ao explicar a distribuição das atividades entre elas. Com sorriso sempre
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Em Riacho Doce, bairro situado no Litoral Norte de Maceió, é tradição a produção e venda de bolos e outros quitutes de origem indígena feitos à base de mandioca e coco
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Fotos: Vanessa Mota
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De cima para baixo, alguns dos principais quitutes tradicionais de Alagoas: beiju, grude (também conhecido como malcasado), brasileira e pé de moleque
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presente no rosto, Angelina rememora o início de tudo: “Eu era criança quando mamãe já fazia. Ela aprendeu com a minha avó – a mãe do meu pai –, e também vendo os outros fazendo e por conta própria”. Angelina reivindica os créditos à dona Percina quanto ao pioneirismo na produção do bolo de macaxeira em Riacho Doce. “Tinha também um bolo de erva-doce, que ninguém sabia fazer. Só ela. E até a gente mesmo tentou fazer, mas... Ainda vamos conseguir”, contou, revelando a fragilidade da tradição oral. O forno é aceso aos sábados, antes mesmo do sol nascer, às cinco da manhã. Mas o trabalho começa nas quartas, quando as irmãs descascam e moem a macaxeira. O coco é ralado e espremido também durante a semana. Às 10h, de sábado, as guloseimas saem do forno e vão direto para o tabuleiro, prontas para serem vendidas. O primeiro a chegar às barraquinhas é o pé de moleque. É preciso força nos braços e a dedicação de uma artesã para o seu preparo, que dura quase uma hora. O beiju é um dos muitos doces que surgem naquele quintal. Tal iguaria está para os índios assim como o pão está para o homem branco. O modo de fazer permanece idêntico: a goma é deitada sobre o forno e, com as mãos, se faz um círculo; em seguida, acrescenta-se o
coco ralado. Quando a massa fica sequinha, vira de lado e já está pronta para ser degustada. Dessa produção genuinamente artesanal, é feito o grude. A goma de mandioca e o coco ralado são misturadas em proporções iguais. E só. A massa é moldada nas mãos, como se fossem hóstias gigantes. Em seguida, são colocadas em cima de folhas de bananeira. A mistura deve ser assada até ficar levemente dourada dos dois lados. Diferente da tapioca comercializada na orla de Maceió, as boleiras fazem a “tapioca misturada”, uma versão mais rústica, bem diferente da tradicional. Basta misturar a goma de tapioca com o coco ralado e fechar sem recheio que está pronta a iguaria. A venda dos doces acontece somente no fim de semana e feriados. Angelina garantiu que é difícil sobrar algum, mas caso ocorra, a barraquinha será aberta, excepcionalmente, na segunda-feira. Do popular à alta gastronomia, as guloseimas foram incorporadas aos menus mais seletivos. É isso o que conta a chef baiana, radicada em Alagoas há 31 anos, Tatiana Brasil. “Essas coisas chamam mais a atenção do que quando eu coloco um blinis [panquequinha russa]. O que falta é acreditar no que é nosso. Se gastronomia é cultura,
vamos partir do princípio que o alagoano e o brasileiro estão bem educados para comer o produto dele. Eu nunca fiz algo regional que saiu de cardápio. Sempre fica. E as pessoas estão mais aptas a aceitar do que a rejeitar, e quando vem de forma inusitada elas são surpreendidas”, comenta ela, que, quando criou o aperitivo à base de beiju, foi até Riacho Doce em busca de uma fornecedora: “É importante dar uma movimentada na economia. Ser chef não é só cozinhar, mas também agregar valor”. Sobre a permanência do legado do doce, a quituteira Angelina confessa: “De vez em quando, vem o pessoal comprar e diz: ‘Continue com a tradição’. Mas não acredito que meus filhos e netos estejam interessados, não, pois nenhum chega perto para aprender. Eles estão pensando em estudar e ter um futuro melhor”, disse. Para ela, “isso aqui é a tradição, mas não é o futuro”. Gilberto Freyre enxergou nesse saber um significado que vai além: “Numa velha receita de doce ou de bolo há uma vida, uma constância, uma capacidade de vir vencendo o tempo sem vir transigindo com as modas”. DO ARTESANATO ÀS FÁBRICAS
Embora predominantemente artesanal, a feitura da doçaria e da confeitaria no Brasil também
Ao lado, a quituteira Angelina, uma das filhas de dona Percina. Ela conta que seus filhos e netos nunca tiveram interesse em aprender o ofício se industrializou. É o caso de biscoitos e bolachas, doces que até hoje se consome e que já não são produtos de doceiras, mas de fábricas, como a tradicional Bolachas Maragogi. Fundada em 1956, a fábrica das bolachas Maragogi hoje está situada do município vizinho, em Japaratinga. A sua história começa com Claudinel Lira Pinto, que deu início à produção caseira da guloseima. Para atender à demanda
crescente, a fabricação foi se modernizando. Hoje, a pequena indústria emprega 16 funcionários e conta com maquinário especial. Segundo o gerente-geral Maciel Buarque Pinto, 30, são produzidos cerca de 700 quilos de bolachas por dia. Entre as opções à venda na lojinha aberta exclusivamente para vender os produtos da fábrica, localizada no Centro de Maragogi, estão a bolacha
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Fotos: Francisco Ribeiro
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Fundada nos anos 1950, a fábrica de bolachas Maragogi iniciou com a produção artesanal. Hoje, emprega 16 funcionários e produz cerca de 700 quilos de bolacha por dia, em diferentes versões
folhada doce e salgada, nazaré, sequilho, tareco, praieira e fofinha. As matérias-primas utilizadas na receita do bolinho de goma são gema de ovo, leite de coco (sem misturar com água), açúcar, manteiga, sal e amido de milho, que atualmente substitui a goma da mandioca, que dá nome ao docinho. A indústria do bolo de goma – mais conhecido como sequilho – é fonte de renda para mais de 60 famílias que moram no vilarejo de São Bento, em Maragogi. A atividade iniciada há cerca de 40 anos envolve, direta ou indiretamente, 500 pessoas aproximadamente. As empresas estão organizadas, desde 2009, em torno da Associação dos Produtores de Bolo de Goma de Maragogi (Aspromar).
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DOÇARIA NO CENTRO
Ainda que apenas a 30 minutos distante de Maceió, não é preciso se deslocar até Riacho Doce ou Ipioca para comprar doces, compotas de frutas e bolos produzidos pelos moradores daquela região. No Centro da capital alagoana, uma ruazinha mantém viva a tradição há mais de três décadas. Situada entre a Igreja do Livramento e uma agência bancária, o local abriga mais de dez doceiras e suas barraquinhas. Dona Vicentina, 77, é uma das mais antigas quituteiras que se estabeleceram na estreita via. “Antes, costumava vender nos mercados do Centro e do Jaraguá. Na época, já tinha pessoas por aqui. Um dia, a minha tia, que
sempre vinha para cá, disse que era bom porque as pessoas compravam mais e me chamou”, lembra. No balcão da sua barraca, encontramos o bolo de macaxeira, milho e massa puba, brasileira, pé de moleque, grude e beiju. Moradora do município de Riacho Doce, só é possível comprar as guloseimas que ela produz às terça e quintas. “Aos nove anos de idade, aprendi a prepará-las com a minha mãe. Eu a via fazendo e aquilo me chamava muito a atenção. E eu sabia que um dia dependeria do que ela me ensinou para sobreviver. Hoje, eu vivo disso daqui”, conta dona Vicentina, que, sem filhos, é o ponto final da trama de gerações que repassa a herança iniciada por sua bisavó. Boa parte dos produtos à venda na maioria das
Fotos: Vanessa Mota
barraquinhas é fornecida pelo doceiro João Caetano Bonfim, o fabricante caseiro de compotas de frutas e doce de caju, do bairro de Ipioca. Mais à frente, no cruzamento entre a rua da Alegria com a do Livramento, encontramos, religiosamente, de segunda à sexta, a partir das 17h, a cesta de palha repleta de doces quentinhos de José Humberto, 50, o Badeco. A produção diária é puxada. “Mas eu já estou acostumado. Criei meus filhos com esse trabalho e, agora, os meus netos”. Badeco divide com a sua mulher o preparo das receitas. Eles fazem aproximadamente 200 quitutes por dia, entre beiju, grude, pé de moleque e bolos de macaxeira, milho e massa puba. Para dar conta da produção, eles compram cerca de 50 cocos, 15 quilos de açúcar e 15 quilos de macaxeira. Seu Badeco foi um dos primeiros a sair de Riacho Doce para vender os quitutes no Centro de Maceió. “Faz 35 anos que estou neste mesmo ponto. Cheguei aqui no dia 17 de março de 1979”, recorda, com orgulho. RECRIAÇÃO
Gilberto Freyre escreveu que a receita do doce é quase que só arte. Para sobreviver, depende do compromisso com o paladar, com o olfato, com os olhos dos homens. No bairro de Ipioca,
Acima, as barracas situadas no Centro de Maceió, que vendem compotas de frutas, bolos, sequilhos e outros doces produzidos em Riacho Doce e Ipioca 71
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as receitas resistem ao tempo, preservando-se e recriandose. Os doces feitos pelas mãos dos habitantes da região carregam o traço da cozinha portuguesa que se transmitiu ao Brasil. O excesso é a marca dessa herança e explica o fato de termos uma confeitaria açucaradíssima. Zé Grande, seu Manoel, dona Vânia, seu João e dona Petrúcia são alguns dos doceiros que se dedicam à fabricação de doce caseiro de caju, de compotas de frutas e doces em calda na região. Em grande ou pequena escala, é dessa produção que a maioria tira o sustento da família. Para outros, representa um complemento da minguada renda familiar, que vem basicamente da aposentadoria. Cristalizado ou seco (em forma de passa), o caju vendido por João Caetano Bonfim, 59, tem clientela certa. Parte do que produz ele transporta, de ônibus, para abastecer revendedoras que trabalham nas imediações da Igreja do Livramento, no Centro de Maceió. Ele fornece também para os moradores de Ipoca que vendem à beira da estrada
e atende, em casa, a pedidos de turistas e nativos, que presenteiam amigos e parentes residentes em outros estados. Das mãos de dona Vânia Barbosa, além do caju cristalizado e em passa, são feitos o doce de leite em bolinhas, jenipapo, abacaxi e banana cristalizados e o famoso nego bom. Tanto na casa de Vânia como na casa de João Caetano, o procedimento é o mesmo para o preparo da passa do caju. “Primeiro, eu retiro a castanha e descasco a fruta, que é furada em vários pontos e espremida para extrair o suco. Depois disso, o caju vai para a secagem e, em seguida, para o fogo, onde é misturada a um mel feito com clara de ovos e açúcar, e aferventada. O ponto é dado no dia seguinte. Aí tem que esperar escorrer o excesso da calda e o doce está pronto”, conta ele. As safras de caju vão de setembro ao, no máximo, começo de novembro. Ao lado da marmelada e da goiaba, a fruta é, desde os tempos coloniais, um dos mais apreciados doces das casasgrandes.
Segundo o Sebrae, atualmente 23 doceiras da Massagueira comercializam guloseimas produzidas artesanalmente, a exemplo das cocadas de diversos sabores
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O DOCE DO COCO
A receita é simples. Numa panela, leve o açúcar ao fogo. Não mexa. Deixe derreter, até formar um caramelo de cor clara. Aos poucos, vire a panela com cuidado para evitar que a calda escureça. Despeje o coco e mexa a colher com cuidado. Atenção: nada de colocar água. Apure um pouco mais o ponto. Quando a mistura começar a soltar da panela e espumar, tire a panela do fogo. Pronto, a cocada já pode ser servida. Quem conta o passo a passo é Marilúcia Tereza da Silva, 40, uma das 23 doceiras ativas em Massagueira, segundo dados do Sebrae Alagoas. Situado às margens da lagoa Manguaba, o vilarejo de pescadores, que pertence ao município de Marechal Deodoro, é conhecido pela fartura da gastronomia e pelas belas paisagens emolduradas por coqueirais. O povoado entrou para a memória e o paladar dos alagoanos e turistas graças às mulheres que vendem os quitutes produzidos artesanalmente, à beira da AL101 Sul. A origem do doce não é precisa. Alguns estudos apontam que a cocada foi criada pelos escravos, que à noite, nas senzalas, ralavam o coco, misturavam ao açúcar (mascavo) e cozinhavam até ficar no ponto de enrolar. Há relatos ainda de que a cocada
Francisco Ribeiro
Dona de uma das barracas de doces da Massagueira, Cícera Marques da Silva aprendeu a fazer as guloseimas vendo outras doceiras trabalhando
surgiu, mais precisamente, na Bahia e de lá se difundiu para o restante do País. É pelas mãos das quituteiras do pequeno povoado que nossa viagem pelos sabores do Litoral Sul tem início. Dona da penúltima barraquinha do lado direito da rodovia, Maria Cícera Marques da Silva, 35, revela a origem de tudo: “Eu vi uma senhora fazendo e fiquei interessada, curiosa para aprender. Então, comecei a fazer. Daí deu certo e estou até hoje”, diz ela. Lá, o segredo é compartilhado abertamente entre as mulheres que já dominam a técnica e as interessadas em aprender para, na maioria das vezes, garantir o sustento das famílias. Todos os dias, o preparo é iniciado bem cedo. Por volta das
5h da manhã, Maria Cícera já está de pé em frente ao fogão. Além da cocada tradicional (cuja receita abre o texto), ela produz mais de oito sabores: leite, maracujá, abacaxi, goiaba, banana, amendoim, coco queimado e jaca. Tamanha criatividade atraiu a atenção da chef Tatiana Brasil. “Para fazer a cocada de jaca, por exemplo, é preciso fazer o suco da fruta para misturá-lo ao açúcar e ao coco. Imagine, então, você conceber um suco de cajá. Elas são muito criativas. E deve-se pensar que elas arriscam não vender, pois essas iguarias têm uma vida útil curta”, observa. Nas barracas improvisadas, encontramos à venda outros doces e sobremesas, como suspiros, broas e brasileiras.
Este último é o nome dado ao quitute feito com farinha de trigo, manteiga e coco ralado. O suspiro, um doce leve e cujo primeiro registro na história da gastronomia data de 1881, é outro clássico da confeitaria alagoana e um dos mais vendidos pelas doceiras da Massagueira. “Quando faço o suspiro, eu começo logo cedo batendo a clara do ovo e, em seguida, sento a massa misturada com limão e açúcar na forma. Enquanto ele vai assando, passo para as cocadas”, conta Maria Cícera. É preciso olhar atento para não deixar passar do ponto. E sempre com aquela mesma forma de fazer: tranquila, bem devagar, sem pressa, quase dolente. Organizadas por meio da
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Arnaldo Medeiros
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“As duas atividades econômicas mais lembradas e importantes da nossa doçaria, que são os bolos e as cocadas, estão morrendo”, diz a chef Tatiana Brasil
Associação das Doceiras de Massagueira, elas participaram ao longo de 2013 do projeto Empreender, promovido pela Associação Comercial de Alagoas, em parceria com o Sebrae. O propósito da iniciativa, conta Ana Cristina Moreira da Silva, analista da Unidade de Turismo e Economia Criativa do Sebrae, foi capacitar as cocadeiras da região sobre a gestão dos alimentos, através do Programa de Alimento Seguro, e formalizá-las enquanto microempreendedoras individuais (MEI). “Tiramos 19 mulheres da informalidade, o que dará a elas diversos benefícios, como, por exemplo, a aposentadoria. Além disso, sabemos que o povoado é um polo gastronômico local, por
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isso trabalhamos a questão do atendimento ao cliente e da segurança alimentar”, explica. Frequentemente citada pelas doceiras da região, a ação trouxe conhecimentos que foram incorporados ao ofício delas. “Deram muitas dicas de como atender ao cliente. O que você pode fazer para melhorar a qualidade da mercadoria. E várias outras coisas. Para mim, foi bastante importante. Eu não sabia da importância de pagar o seu INSS. E muita gente hoje paga o INSS depois das reuniões que aconteceram”, observa Maria Cícera. O projeto ainda previa a padronização e a rotulagem das cocadas a fim de criar uma identidade única do produto, a exemplo da famosa Cocada Bahianinha, vendidas em
caixinhas. Segundo Ione Rosas, consultora do Sebrae, foi nesta etapa do projeto que surgiram os primeiros impasses. “Não existe um padrão entre as cocadas. São pesos diferenciados. E isso envolve mercado e consumo, pois dificulta oferecer esse alimento para um supermercado. A intenção era fazer a padronização e a rotulagem, mas não da receita. Não queremos modificar isso, mas do doce em si, principalmente do quantitativo. Quando chegamos a esse impasse, percebemos que não teríamos uma cocada da Massagueira, mas sim a da Ana, da Antônia etc. Então, houve uma rejeição delas em fazer esse trabalho do ponto de vista da Associação”, diz Ione Rosas.
Francisco Ribeiro
Outro fator para a descontinuidade da ação foi a falta de apoio das esferas pública e privada. “Tem que ser feita uma revitalização desse trabalho. No sul do estado, aconteceu uma sucessão de abandonos. É preocupante a nossa situação de doces. As duas atividades econômicas mais lembradas e importantes da nossa doçaria, que são
os bolos e as cocadas, estão morrendo. Vários estados estão defendendo as suas coisas. Mas e a gente?”, questiona a chef Tatiana Brasil.
As cocadas da Massagueira são produzidas em diversos sabores: os mais vendidos são leite, tradicional, maracujá, amendoim, banana e caju
COMO FUNCIONA UMA USINA DE CANA-DE-AÇÚCAR Do canavial à mesa, todas as fases da produção da sacarose A cana-de-açúcar é colhida em Alagoas entre fins de setembro e começo de março. Quem explica como ocorre a extração da sacarose é André Muricy Medeiros, coordenador de comunicação e cultura organizacional da Usina Coruripe. A indústria (nona maior do País no setor) prevê mais de 13 milhões de toneladas de cana moída em 2014. Aproximadamente, três mil homens trabalham no corte da planta, que se encontra distribuída em mais de 26 hectares no estado. 1. PURIFICAÇÃO A principal matéria-prima do açúcar brasileiro é a cana-de-açúcar. Ela chega às usinas em caminhões e é descarregada em esteiras rolantes. A primeira etapa da produção é a lavagem da cana. Ela recebe um banho de água que retira terra, areia e outras impurezas.
2. MOENDAS. É onde acontece a separação do caldo e do bagaço. “Na moenda, a cana é esmagada para extrair o caldo que vai se transformar em açúcar ou etanol”, conta André Muricy. Sobram 250 quilos de bagaço por tonelada de cana, que é esmagada sucessivas vezes para que “não reste nenhum líquido”.
5. EVAPORAÇÃO E COZIMENTO. A caminho de virar açúcar, o caldo perde parte da água e se torna mais concentrado em sacarose. Na etapa seguinte, a do cozimento, o caldo vira “mel” e a sacarose forma cristais de açúcar, que se desprende do líquido por meio de uma centrífuga. Como resultado desse processo, temos o açúcar demerara.
3. ENERGIA. O bagaço da cana, adicionado à palha que foi recolhida na limpeza, abastece caldeiras de alta pressão, que alimentam turbinas e, assim, fornecem toda eletricidade necessária ao funcionamento da usina. A sobra é vendida às concessionárias de eletricidade.
6. TRITURADOR. Para transformar o açúcar demerara no cristal, adiciona-se o enxofre. Quando colocado numa espécie de “liquidificador” gigante, o açúcar cristal transforma-se no triturado.
4. CLARIFICAÇÃO E DECANTAÇÃO. Na clarificação, o caldo recebe cal e enxofre. Na decantação, as impurezas presentes no caldo se acumulam no fundo e viram lodo, que serve como adubo.
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