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O HOMEM, A POLÍTICA E A OBRA TEXTO: FRANCISCO
RIBEIRO
Durante toda a sua trajetória, Graciliano nunca foi um homem ligado a grupos políticos. Sua orientação ideológica era pautada por aquilo no qual acreditava: igualdade de direitos. Embora nunca tenha feito literatura panfletária, em que medida sua postura diante das injustiças sociais e sua obra se cruzam?
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Conforme observa a professora do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Belmira Magalhães, toda a produção literária do escritor é política por denunciar as contradições do sistema, mas sem deixar de ser literatura. “Não tem nada de livro engajado no sentido de apontar soluções. É, sobretudo, literatura pura, da mais alta qualidade”, ressalta. Graciliano, ao lado de Rachel de Queiroz, Jorge Amado e José Lins do Rego, inaugurou o movimento literário conhecido como “Romance de 30”. Esse grupo de jovens escritores deixou em suas obras a marca de caráter politizante, com o propósito de, por meio da ficção, tratar das contradições sociais - aliás, um tema universal e sempre vivo na literatura.
“Embora esteja falando do Brasil em seus escritos, especificamente, de uma realidade mais próxima à rural, ele discute questões ligadas ao gênero humano, à vida humana, só que a partir de uma realidade configurada como ele conheceu”, analisa Belmira, autora da tese de doutorado intitulada “Vidas Secas: os desejos de sinha Vitória”. Ainda segundo ela, o autor de Caetés (1933), São Bernardo (1934) e Angústia (1936) insere tais questões em seus romances através do processo minucioso de construção narrativa. “Graciliano era um homem do seu tempo. Ele era ligado às questões que estavam sendo discutidas na sua época, como as mazelas e as contradições da sociedade. Então, para mim, toda a sua obra é uma representação
“Graciliano era um homem do seu tempo. Ele era ligado às questões que estavam sendo discutidas na sua época”, diz Belmira Magalhães (foto)
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abiano e sua família de retirantes, os presos de Memórias do Cárcere, o menino de Infância, João Valério, Luís da Silva, e mesmo Paulo Honório compõem uma extensa galeria de personagens inspirados em homens à margem da sociedade, excluídos, para os quais Graciliano Ramos (18921953) empresta a sua voz. No espaço autoral por onde transitam suas personagens, literatura e experiência, vida e obra se confundem. E é a partir desse encontro que a verve política de Graciliano desponta. O romancista alagoano destacou os problemas sociopolíticos do Nordeste dos quais muitos presenciou -, através de uma escrita extremamente vigorosa e crítica, a exemplo da vida cruel dos retirantes, os resquícios de escravidão e o coronelismo.
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desses temas que ele elege para serem traduzidos nos seus textos”, analisa.
Para a escritora alagoana e professora Vera Romariz, nos relatórios de Graciliano, “linguagem e reflexão sobre o poder são permanentes”
POLÍTICA
Na sede da prefeitura de Palmeira dos Índios, cidade onde Graciliano viveu parte de sua vida, encontramos, na sala principal, uma galeria de retratos em preto e branco dos ex-prefeitos da cidade. Numa das fotos, preservada com uma moldura de madeira simples, vemos Graciliano Ramos de Oliveira, o 13º a gerir o município, num único mandato, iniciado em 7 de janeiro de 1927 e encerrado no dia 10 de abril de 1930. Nessa época, escrevia artigos para o jornal O Índio, de Palmeira dos Índios. Em alguns deles (reunidos na obra Garranchos, organizada por Thiago Mio Salla e lançada pela editora Record) Graciliano já imprimia sua opinião sobre problemas sociais e de outra ordem, ao tecer críticas contra os assassinos precoces, os altos índices de analfabetismo que assolavam a cidade e até mesmo a derrubada indiscriminada de árvores. Empossado no cargo de prefeito aos 35 anos, Graciliano teve sua candidatura lançada pelo deputado federal Álvaro Paes e pelos irmãos Francisco e Otávio Cavalcanti. O trio liderava o Partido Democrata local. Outros fatores foram
determinantes para seu ingresso na vida política, como um crime político ocorrido na cidade e a provocação de integrantes do Partido Conservador, que espalhavam boatos de que Graciliano teria medo de fracassar na função. Sem participar de campanhas políticas ou fazer promessas, concorreu à eleição e venceu com 433 votos. “Fui eleito naquele velho sistema das atas falsas, os defuntos votando”, contou ele, em entrevista à Revista do Globo, em 1948. “É preciso lembrar que, nas poucas vezes em que Graciliano Ramos ocupou cargos políticos, exerceu-os com tamanha lisura que, até os nossos dias, sua conduta honesta e correta na administração da coisa
pública surge, na imprensa do nosso país, como referência e exemplo”, afirma sua neta, Elizabeth Ramos, professora do curso de Letras da Universidade Federal da Bahia (UFBA). OS RELATÓRIOS
No período em que passou à frente da prefeitura de Palmeira dos Índios, Graciliano Ramos prestou contas de seu mandato por meio de dois relatórios, datados de 1929 e 1930. Ambos foram enviados ao governador de Alagoas e publicados no Diário Oficial do Estado. Escritos numa linguagem inusitada para textos dessa natureza, em especial, pela ironia e o tom coloquial contidos neles, os documentos tiveram
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repercussão nacional. No primeiro texto, ele se refere aos gastos inúteis com telegramas: “Porque se derrubou a Bastilha – um telegrama; porque se deitou pedra na rua – um telegrama; porque o deputado F. esticou a canela – um telegrama. Toda a gente sabe que isto por aqui vai bem, que o deputado morreu, que nós choramos e que em 1558 dom Pero Fernandes Sardinha foi comido pelos caetés”. Em outra passagem, critica o modo de gestão municipal, e que ainda hoje continua atual: “Havia em Palmeira inúmeros prefeitos: os cobradores de impostos, o Comandante de Destacamento, os soldados, outros que desejassem administrar. Cada pedaço do Município tinha a sua administração particular, com prefeitos coronéis e prefeitos inspetores de quarteirões. Os fiscais, esses, resolviam questões de polícia e advogavam”. Com comentários em vários jornais do País e, às vezes, transcrições do documento na íntegra em alguns deles, Graciliano confessou ao jornalista e escritor Homero Senna a surpresa que tivera ao saber da notoriedade que os relatórios alcançaram: “Apenas porque a linguagem não era a habitualmente usada em trabalhos dessa natureza, e porque neles eu
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dava às coisas seus verdadeiros nomes, causaram um escarcéu medonho. O primeiro teve repercussão que me surpreendeu. Foi comentado no Brasil inteiro”. Numa dessas transcrições, o texto chega ao conhecimento do poeta Augusto Frederico Schmidt, dono da Editora Schmidt. Admirado com a qualidade da escrita, o editor investiga se o alagoano não teria textos na “gaveta” e se oferece para publicar o primeiro romance de Graciliano, Caetés, o que só ocorre em 1933, três anos após lhe enviar os originais, pois Schmidt havia esquecido os originais no bolso de sua capa de chuva e não conseguia encontrá-los. Para a escritora alagoana e professora aposentada do curso de Letras da Universidade Federal de Alagoas, Vera Romariz, estudiosa dos relatórios de Graciliano, os documentos já traziam elementos que apontavam para a construção de uma obra autoral. “Ele propõe uma grande crítica às instituições que não conseguem desempenhar seu papel público. Obviamente, os resultados dessa análise seriam documentos bastante diferenciados, pois, para ele, essa tarefa não é uma simples ação burocrática, na qual seria engolido pela convenção ortográfica. É através de ambos os relatos que Graciliano dá o pontapé inicial para a
construção de uma obra autoral em que linguagem e reflexão sobre o poder são permanentes”, analisa. Ainda segundo Vera, o comprometimento com o social está presente em toda a obra de Graciliano, em especial, nos relatórios. “O homem, o ser político, não necessariamente partidário, comprometido com o público, já está presente nesses textos. Lendo atentamente, verificamos que ele faz uma crítica ao Estado burocrático por não cuidar das pessoas menos favorecidas. A única atuação política de forma direta é como prefeito. No entanto, ele mesmo reconhece que não foi bem. Não era o lugar dele. O escritor luta com palavras”, pontua. A PRISÃO
Em 1930, Graciliano Ramos aceita o convite do então governador de Alagoas, o amigo Álvaro Paes, para dirigir a Imprensa Oficial do Estado, em Maceió, que, muitos anos depois, receberia seu nome como homenagem. Para isso, ele renunciou à prefeitura, vendeu a loja que herdou do pai e partiu com a família para a capital. “Com a revolução, quis demitir-me, mas não pude. E lá fiquei até dezembro de 1931. Não suportando os interventores militares que por lá andaram, larguei o cargo e voltei para
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1. Fachada do prédio da prefeitura municipal de Palmeira dos Índios 2. Graciliano Ramos (em 1936 ou 1937) fotografado na Casa de Detenção, em Ilha Grande 3. Documento oficial que autorizava a mulher do romancista alagoano, Heloísa Ramos, a visitá-lo durante o cárcere
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Palmeira dos Índios, onde, numa sacristia, fiz São Bernardo”, contou ele. Pouco tempo depois, recebeu um convite do interventor Afonso de Carvalho para assumir a direção da Instrução Pública do Estado - órgão equivalente à Secretaria de Educação hoje -, retornando a Maceió em 1933. Nesse mesmo ano, seu primeiro romance é publicado e recebe elogios da crítica. “Caetés é um belíssimo trabalho, dos que mais me têm deliciado nestes Brasis”, escreve o crítico Agripino Grieco, no
periódico carioca O Jornal. Antes de terminar o seu terceiro livro, Angústia, o escritor alagoano é preso sem acusação formal no dia 3 de março de 1936. Levado primeiro para Recife e depois para o Rio de Janeiro, ele permaneceu detido na Casa de Detenção, junto a presos políticos, e na Ilha Grande, com presos comuns, até ser libertado em 13 de
janeiro de 1937. Anos depois, ao ser questionado sobre a provável causa de sua detenção, responde: “Sei lá! Talvez ligações com a Aliança Nacional Libertadora, ligações que, no entanto, não existiam”. Considerado como a vítima mais ilustre da repressão do Governo Vargas, ao que tudo indica, a prisão de Graciliano tem relação com as amizades
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que cultivava com pessoas que o governo considerava subversivas, como o jornalista e membro do Partido Comunista Alberto Passos Guimarães (1908-1993). Durante o tempo em que ficou detido, Graciliano tomou nota de tudo o que viu e ouviu visando escrever um livro, no qual relataria aquela experiência. Certa vez, prestes a sair da Colônia Correcional Dois Rios, onde se encontrava encarcerado, mantém um diálogo com o médico e diretor da instituição onde deixa clara tal intenção: - Levo recordações excelentes, doutor. E hei de pagar um dia a hospitalidade
“Uma vez posto em liberdade, outro tipo de luta teve que ser travada: a luta pela sobrevivência material”, lembra a pesquisadora Elizabeth Ramos
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que os senhores me deram. - Pagar como? - exclamou a personagem. - Contando lá fora o que existe na Ilha Grande. - Contando? - Sim, doutor, escrevendo. Pondo tudo isso no papel. O diretor suplente recuou, esbugalhou os olhos e inquiriu carrancudo: - O senhor é jornalista? - Não, senhor. Faço livros. Vou fazer um sobre a colônia correcional [...]. - A culpa é desses cavalos que mandam para aqui gente que sabe escrever. Conforme anunciado, o alagoano publicou o livro prometido, Memórias do Cárcere. A obra teve tamanha repercussão entre intelectuais, escritores e políticos, que tornou o escritor um sucesso de vendas – foram comercializados cerca de 10 mil exemplares em apenas 45 dias. “Nessa obra, ao mesmo tempo em que narra uma história, Graciliano insere o seu ponto de vista. Tem uma passagem, que uso em meu livro ‘Vidas Secas: os desejos de sinha Vitória’, na qual ele diz que durante o período em que esteve na prisão procurou anotar tudo. Para tanto, os seus colegas sempre arranjaram papel e lápis. Mas quando é transferido para outro local, antes de entrar no navio, o avisam de que terá uma vistoria; e, às pressas, é obrigado a jogar no mar suas
anotações. Na época, ele ficou chateadíssimo. Contudo, certo tempo depois, percebeu que o que vivenciara não poderia serlhe tirado. E, assim, deu origem a um livro sobre condenação política, realizado por um grande escritor”, avalia a professora Belmira Magalhães. A VIAGEM
“Uma vez posto em liberdade, outro tipo de luta teve que ser travada: a luta pela sobrevivência material, que se tornou possível com a produção literária em livros e jornais. Evidentemente, a experiência da prisão está refletida na sua obra, a começar pela impossibilidade de rever seu terceiro romance – Angústia – que saiu, segundo ele, com toda sorte de excessos e repetições”, revela a pesquisadora Elizabeth Ramos. Colaborando com a revista Cultura Política por questões financeiras, editada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do governo Vargas, de 1941 a 1944, Graciliano é criticado pelos esquerdistas - ainda que sempre tivesse preservado sua independência artística. Em 1945, filia-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), cujo Comitê Central o convida a fazer uma viagem pela União Soviética, Tchecoslováquia, França e Portugal para as
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Em visita a Moscou, em 1952, Graciliano Ramos (ao centro, de braços cruzados). As impressões da expedição seriam publicadas no livro de crônicas Viagem, onde tece críticas ao regime político vigente na extinta União Soviética
comemorações do 1º de maio, Dia do Trabalho. Quando retorna ao Rio de Janeiro, traz na bagagem o rascunho de alguns capítulos do que será Viagem, seu livro de crônicas sobre a temporada no exterior. Nele, o autor narra as impressões favoráveis e também tece críticas ao sistema político vigente na extinta União Soviética. A publicação dos originais enfrenta alguns empecilhos, pois o PCB insiste em censurá-los. Em 1954, a obra, enfim, chega às livrarias do País.
Ao tomar conhecimento de um informe produzido pelo PCB sobre literatura e arte, o qual pregava que uma obra de arte deveria trazer conteúdo que reverberasse os ideais comunistas, Graciliano alfinetou: “Informe? Eu gosto muito da palavra, porque informe é mesmo uma coisa informe”. A proposta de escrever um “romance panfletário” não lhe agradava. Afinal, enquanto homem, o escritor acreditava que poderia ter sua própria ideologia, mas sua literatura deveria ser livre.
Em sua última entrevista longa, publicada na Revista do Globo, o jornalista e escritor Homero Senna pergunta ao alagoano se ele acredita na permanência da sua obra. Sem que deixasse transparecer falsa modéstia, dando a impressão de que falava com absoluta sinceridade, ele respondeu: “Não vale nada; a rigor, até já desapareceu”. Contrariando suas expectativas, hoje Vidas Secas já está na 116ª edição – tornando-se, entre os livros de Graciliano Ramos, o mais vendido.
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