NEWSLETTER | N.º 2 6 | ABR - JUN 2021
OBRA GUERREIRO VIAGENS PELA DE MANUEL VIEGAS
Slide da colecção de gravuras rupestres captadas por MVG: White Lady, Brandberg, Namíbia
ALEGORIA DA CAVERNA CONVOCADA POR LUÍSA MONTEIRO EM ENSAIO QUE REUNE HEIDEGGER, MANUEL VIEGAS GUERREIRO E SILVA VAREJOTA, POETA POPULAR DE QUERENÇA. NUM OUTRO ARTIGO, LEITE DE VASCONCELOS E ORLANDO RIBEIRO, AOS OLHOS DE MVG, SÃO RELIDOS POR CARLOS PATRÍCIO
P.8 - 21
Fundação MVG alia-se a duas associações culturais locais no assinalar dos dias mundiais da Poesia e da Criança. p.25
Percurso Eco-Botânico Manuel Gomes Guerreiro é palco de acções promovidas pelo aspirante a Geoparque algarvensis. p.26
Artigo de Salvador Santos destaca o papel das bibliotecas em MVG e Luís Guerreiro, no Dia Mundial do Livro. p.27 e 28
EDITORIAL A presente newsletter atravessa o trimestre que guarda a expressão máxima da Palavra. A começar pelo Dia Mundial da Poesia (21 de Março), passando pelo Dia Mundial do Livro (23 de Abril) e, dois dias depois, pelo da Liberdade, no qual esta ostenta o seu sentido maior. A 5 de Maio, assinala-se, pela segunda vez, o Dia Mundial da Língua Portuguesa. Foi reconhecido pela Unesco - Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura em 2019, uma década após ter sido oficialmente estabelecido pela CPLP - Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Através da Palavra, condutora do Saber, viajamos por mais dois artigos de Manuel Viegas Guerreiro: «Etnografia e Geografia: Leite de Vasconcellos e Orlando Ribeiro», pelas considerações do geógrafo Carlos Patrício, que o considera um “texto singular”. O segundo artigo: «O Homem e a Terra em um poeta popular do Algarve», publicado em 1977 na revista Natureza e Paisagem. Na releitura crítica de Luísa Monteiro, são convocados Heidegger, o poeta popular Silva Varejota, por intermédio de Manuel Viegas Guerreiro e Platão. A professora de ensino superior e escritora questiona: «Sendo a fala um ato solitário da linguagem que concorre para a potencialidade ontológica do ser-com-outros, indaga-se até que ponto é que o falar poético, dito ou cantado, não propicia uma abertura retroativa, um voltar de novo à “caverna”, tal como na alegoria de Platão.» A este pretexto, divulga-se um slide da colecção de Manuel Viegas Guerreiro (capa), no caso, uma das gravuras rupestres conhecidas como White Lady, localizada em Brandberg, na Namíbia. Os artigos da rubrica Viagens pela obra de Manuel Viegas Guerreiro têm vindo a ser divulgados desde final de 2019, em suporte digital, e publicados em papel a cada número da newsletter. Destaque ainda para a presença, em Querença, da ministra da Coesão Territorial na Fundação, por altura da apresentação oficial do aspirante a Geoparque Mundial da UNESCO algarvensis Loulé-Silves-Albufeira. Ana Abrunhosa visitou o Percurso Eco-Botânico Manuel Gomes Guerreiro que já foi palco de acções pedagógicas organizadas pela equipa do Geoparque algarvensis, junto d@s alun@s de Querença em estreita colaboração com a Câmara Municipal de Loulé. As efemérides acima assinaladas geraram acções conjuntas com associações culturais de Loulé. No assinalar do Dia Mundial da Poesia, a Fundação aliou-se ao recital online Prata da Casa, promovido pela associação cultural Mákina de Cena. A FMVG produziu quatro pequenos filmes que dão a conhecer os quatro diseurs convidados para recitar Casimiro de Brito, por Martim Santos, Gastão Cruz, por João Pedro TáPê, Nuno Júdice, por João Caiano e Teresa Rita Lopes, por Mariana Teiga, autores homenageados no FLIQ – Festival Literário Internacional de Querença. Filmes que se encontram disponíveis no canal de Youtube da FMVG.
Dando eco à versão filmada da adaptação de Maria Adelaide Fonseca do conto tradicional do Coelhinho Branco – A nova estória do Coelhinho Branco -, a Fundação organizou uma sessão de cinema para @s alun@s de Querença, projectando no auditório o vídeo da peça de teatro encenada pela associação cultural Figo Lampo, com sede em Querença. Percorrendo os Postais do Algarve deste trimestre, destaca-se o figo, fruto que empresta cor ao Algarve: «Cor de terra. Cor de figo de seira no mês de Maio», pode ler-se em O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge. Evocado na poesia popular: «Se Ali se cria o bom figo, / Em clima ameno e terno, / Onde o frio não tem abrigo / Nem nas praias há Inverno.» Continuamos assim a descrever o Algarve, através da Palavra. Sobre a qualidade do fruto e de onde este se cria, ouviremos as palavras de Casimiro de Brito, Gastão Cruz, Julião Quintinha, Manuel Teixeira Gomes, Marco Mackaaij, Maria Veleda, Mário Lyster Franco e Raul Brandão. Atravessamos ainda os concelhos de Silves, Portimão e Albufeira, conhecendo as gentes (Parte I) que habitaram e habitam o Algarve por uma dúzia de autores, de Camões a Torga e Saramago, de Francisco Lopes a Nemésio e Manuel da Fonseca. De João Braz a Pinheiro e Rosa, entre outros. No final, lançamos o desafio: saborear os excertos oferecidos nestas páginas como figos de Maio, esperados o ano inteiro. Acreditamos que, até aqueles que não apreciam os «frutos dulcerosos» de Maria Veleda, possam vir a gostar dos Postais do Algarve. Marinela Malveiro
FICHA TÉCNICA EDIÇÃO | FMVG TEXTO | Luísa Monteiro, Manuel Carlos Patrício, Marinela Malveiro e Salvador Santos. Postais do Algarve com autoria identificada sob o excerto RECOLHA E SELECÇÃO Postais do Algarve | Marinela Malveiro
IMAGEM DE CAPA | White Lady, slide captado por MVG
PAGINAÇÃO E DESIGN | Marinela Malveiro
APOIO À PRODUÇÃO E SECRETARIADO | Miriam Soares
FOTOGRAFIA| Espólio FMVG; Cedidas por Luísa Monteiro e Manuel Carlos Patrício; Filipe da Palma, Marinela Malveiro
IMPRESSÃO | Gráfica Comercial, Arnaldo Matos Pereira, Lda., Zona Industrial de Loulé Lt. 18, Loulé | T. 289 420 200
IMAGENS E SINOPSES Mapa do Algarve in Guia de Portugal; Escaparate:: cedidas pelas editoras Direcção Regional de Cultura do Algarve, On y vai e Sul, Sol e Sal
NEWSLETTER FMVG | N.º 26 | 2021 Os textos são da responsabilidade dos seus autores e o uso do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa é, por isso, uma opção dos mesmos.
JOÃO DA SILVA MIGUEL E LUÍS GUERREIRO DISTINGUIDOS NO DIA DO MUNICÍPIO
João da Silva Miguel
O Município de Loulé atribuiu medalhas de Mérito a João da Silva Miguel e a Luís Guerreiro (título póstumo), na sessão de agraciados de 2021, realizada no passado dia 13 de Maio, no Cineteatro Louletano. João da Silva Miguel é director do Centro de Estudos Judiciários e presidente do Conselho Geral da Fundação Manuel Viegas Guerreiro (FMVG). Recebeu a Medalha de Mérito, grau Ouro. Luís Guerreiro, anterior presidente da Fundação, foi funcionário da Câmara de Loulé desde a década de 80 do século passado. O Município distinguiu-o pela criação e envolvimento em diversos projectos culturais do Algarve, atribuindo-lhe a Medalha de Mérito, grau Prata. A edição deste ano distribuiu 14 medalhas municipais: uma de Honra e 13 de Mérito (quatro grau Ouro, sete grau Prata e duas grau Bronze). Quatro, a título póstumo.
Luís Guerreiro
Num ano marcado pela pandemia, durante o qual os profissionais de saúde estiveram na linha da frente no combate à covid-19, a Medalha de Honra foi para os homens e mulheres que integraram as diversas unidades de saúde do concelho. A Cerimónia que premeia cidadãos que se destacam nas mais diversas áreas de actividade foi transmitida em directo na página de Facebook da Câmara Municipal de Loulé, partilhada pela FMVG. Poderá (re)ver a subida ao palco de João da Silva Miguel aos 25 minutos e 55 segundos do vídeo. Cristina Guerreiro e Gonçalo Guerreiro, esposa e filho de Luís Guerreiro, receberam a distinção aos 8 minutos e 35 segundos da sessão que poderá ser visionada aqui: https://www.youtube.com/watch?v=0MZbug6kfcA
Mapa do barlavento algarvio, in Guia de Portugal : Estremadura, Alentejo, Algarve (Lisboa, 1983)
POEMA COM INDICAÇÃO DE LUGAR
POSTAIS
DO ALGARVE
Mostro-te o mosto mortal da cidade. O teu corpo perdese
no pontão metálico do cais e eu, de joelhos, volto o rosto para o branco sono das águas.
POSTAIS DO ALGARVE é uma rubrica criada em 2020, quando o país e o mundo se viram mergulhados numa pandemia sem precedentes. Numa altura em que as casas de cultura se encontravam encerradas ao público, a FMVG iniciou a publicação regular de imagens da região, do litoral à serra, de barlavento a sotavento, através das palavras de mais de cem autores. Todos eles reunidos no Centro de Estudos Algarvios Luís Guerreiro, alojado na Fundação. Seguindo a peugada da anterior edição, apresentam-se agora descrições de Portimão a Albufeira. Toca-se Alte, com Cândido Guerreiro, já no concelho de Loulé. Abre-se a seira de figos de Maio! Votos de boa viagem pelo território em versão excerto nestas páginas - ou integral, nos livros que Querença acolhe.
« O lugar. (...) O sentimento do lugar e o sentimento da cidade, o sonho fluindo entre avenidas e ruas, as cidades que se levam para casa, como escreveu Fernando Esteves Pinto, que se levam para a alma. A cidade como lar do poeta, a terra de que se tem saudades (...) a terra a que se volta, até para morrer, que a terra onde se nasce é mãe também, como ensinou João de Deus, cidade e terra que são sempre casa e mãe e lar, esses lares que Almutâmid saudava esperando e supondo que ainda se recordassem dele. FERNANDO CABRITA
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POEMA COM INDICAÇÃO DE LUGAR (...)
MOSTRO-TE O MOSTO MORTAL DA CIDADE. O TEU CORPO PERDE-SE
NO PONTÃO
METÁLICO DO CAIS E EU, DE JOELHOS, VOLTO O ROSTO
PARA O BRANCO SONO DAS ÁGUAS. NUNO JÚDICE
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De PORTIMÃO para LAGOS há lanços de estrada em que esta parece uma linha recta, indefinida. Pelo caminho encontram-se povoações, hortas com suas eiras redondas e suas noras, figueirais, amendoais. Parece que íamos sempre por um jardim fora, tanto mais que de vez em quando sopravam nos nossos rostos, impregnadas de perfume, as brisas da manhã.
SILVES,
JOSÉ LEITE DE VASCONCELOS
Ó MINHA SILVES, ERAS OUTRORA UM PARAÍSO
ASSILBIA
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O solevamento desta área começa a marcar-se no arredondamento das colinas, nos valeiros que se ramificam e aprofundam: depois é uma imagem de regularidade e perfeição nos galbos dos montes, que para uns evocam montículos de TOUPEIRAS, para outros as tendas de um imenso acampamento de nómadas. ORLANDO RIBEIRO
O AL-GHARB É DESENHADO
« Com o relevo montuoso, imitando TOUPEIRAS, à medida que nos aproximamos da SERRA que amuralha o ALGARVE, começa a transição de um reino para outro. VITORINO NEMÉSIO
PELO AMOR, E PELO AMOR SE CONSTROEM
TORRES E MURALHAS. SÉRGIO BRITO
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FERRAGUDO aparece à nossa vista / Com seu branco e bizarro casario / Numa linda aguarela impressionista! JOÃO BRAZ
POSTAIS
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DO ALGARVE
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BEATRIZ
Tu és o cheiro que exhala Ao ir-se abrindo uma flor! Tu és o collo que embala Suas primicias de amor! Tu és um beijo materno! Tu és um riso infantil, Sol entre as nuvens do inverno, Rosa entre as flores de abril!
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[ALTE] MINHA TERRA
Ao pé dos meus, na minha aldeia querida, A morte será quase uma ventura, A morte será quase como a vida… CÂNDIDO GUERREIRO
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[S. MARCOS DA SERRA, MESSINES] Sabem lá que terra linda! Ainda tem as mesmas madrugadas que pintam a rosa-pálido as serranas penedias, e daqueles poentes rubros, incandescentes lagos de carmim, laranja, violeta e oiro, onde o mar se tinge e embriaga com volúpia de pintor! JULIÃO QUINTINHA
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[CARVOEIRO]
... Dá-me ela um maço de cigarros, noto um jornal redigido em quatro línguas. Português, francês, inglês e alemão; um jornal de
CAMPOS COELHO
Tu és a nuvem de agosto, Meu alvo vello de lã! Tu és a luz do sol-posto, Tu és a luz da manhã! Tu és a timida corça Que mal se deixa avistar! Tu és a trança que a força Do vento leva no ar! És a perola que salta Do niveo calix da flor! És o aljofar que esmalta Virgineas rosas de amor! És a roseira que a custo Levanta os cachos do chão! És a vergontea do arbusto, Anjo do meu coração!
« [recorte das rochas e grutas são como] búzios onde mal cabe um homem» e outras em que o «barco entra por um arco em ogiva, circula por meandros complicados, e sai novamente à luz do Sol por outro pórtico de rocha, para entrar num novo labirinto de meandros e cavernas»
Tu és a rosa de maio! Tu és a flammula azul Que atam á flecha do raio As tempestades do sul!
ALBUFEIRA. - Deve ser único no País – admiro-me. Num sorriso espontâneo de malícia e de orgulho, a rapariga atira-me com esta: - Também ALBUFEIRA é única no País! MANUEL DA FONSECA
Tu és a agua das fontes, Tu és a espuma do mar! Tu és o lirio dos montes, Tu és a hostia do altar!... És o pimpolho, és o gommo, És um renovo de amor! Tu és o vedado pomo,... Tu és a minha Leonor! Tu és a Laura que eu amo, E a minha Taboa da Lei, E a pomba que trouxe o ramo, E a margarida que achei! És o lirio, és a bonina Dos valles do meu paiz! És a minha Catherina! És a minha Beatriz!
JOÃO DE DEUS
« Que a minha alma se consuma ao sol para ressequida regressar confundida com a terra, despida de atavios e preconceitos que nunca foram dela pasto ou condimento
Assim apraz-me vê-la ou imaginá-la amanhada suspensa de um arame esticado na horizontal entre dois barrotes como o peixe fresco a secar na corda,
à luz ardente dos areais do sul que os pescadores à beira-mar preparam
MANUEL MADEIRA
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VIAGENS PELA OBRA DE MANUEL VIEGAS GUERREIRO MVG EM «ETNOGRAFIA E GEOGRAFIA: Leite de Vasconcellos e Orlando Ribeiro» Breves considerações sobre um texto singular POR MANUEL CARLOS PATRÍCIO
A
propósito do encontro improvável de um velho e renomado etnólogo com um jovem e promissor geógrafo, Manuel Viegas Guerreiro dá, neste artigo, um rigoroso e abundante testemunho da sua observação participante, como amigo e colaborador de ambos, acerca da extraordinária relação pessoal e científica entre Leite de Vasconcellos e Orlando Ribeiro, dois vultos incontornáveis da cultura portuguesa, proporcionando, assim, ao leitor, a oportunidade e o privilégio de sentir, num quase dia-a-dia, a amizade e a frutuosa colaboração entre dois amigos, um Mestre e um discípulo, que, à vez, se revezavam a ensinar e a aprender, numa incrível demonstração de troca de saberes. Em termos pessoais, essa relação está bem ilustrada no “afecto [com] que se referiam um ao outro” e de que são exemplos sobejos quer a preocupação de Leite de Vasconcellos com a saúde do amigo, dizendo-se “em cuidados com o Orlando, [que] anda magrito, não está nada bem”, quer o “calor humano com que [Orlando Ribeiro] quebrava a amarga solidão daquela casa de Campolide”[1] onde morava o velho Mestre. A leitura da vasta correspondência trocada entre ambos, hoje bem documentada e já publicada[2], disso dá um cabal testemunho.
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A afinidade e a frequente complementaridade entre geógrafos e etnógrafos é o corolário natural de séculos de vivência em comum GUERREIRO, Manuel Viegas – “Etnografia e Geografia: Leite de Vasconcellos e Orlando Ribeiro”. Separata do Livro de Homenagem a Orlando Ribeiro. Lisboa, Centro de Estudos Geográficos, Vol. 1, 1984, p. 74. [2] Vd. ALEGRIA, M. Fernanda; DAVEAU, Suzanne; GARCIA, João [1]
Em termos científicos, basta referir, como prova bastante, “a oficina de erudição que era a casa do mestre”, reconhecida por Orlando Ribeiro nos seus Ensaios de Geografia Humana e Regional, e o “auxílio pronto e eficiente” de Orlando Ribeiro que Leite de Vasconcellos, “parco em elogios”, acha merecedor de “menção especial” e faz questão de incluir na «Prefação» dos volumes II e III da sua monumental Etnografia. A expressão máxima da alta consideração que Leite de Vasconcellos tinha por Orlando Ribeiro está bem patente numa carta de recomendação, com data de 20 de Julho de 1940, que Leite dirigiu a “uma personalidade portuguesa, de posição cimeira” mas não identificada (embora se presuma tratar-se do Ministro da Instrução Pública), que Orlando deveria entregar pessoalmente mas que, por infeliz coincidência com troca de ministros, nem chegou a entregar e onde Leite declara o seguinte: “Vai receber uma carta minha com a qual lhe apresento o D.or Orlando Ribeiro, um dos meus mais íntimos amigos, meu testamenteiro, e a quem devo muitas obrigações de carácter literário [...]”[3]. Admitindo que a afinidade e a frequente complementaridade entre geógrafos e etnógrafos é o corolário natural de séculos de vivência em comum, Manuel Viegas Guerreiro começa o seu artigo com o relato sumário da evolução dessas áreas do Saber, transformando, desde logo, em decorrência natural da referida afinidade, não apenas a estreita relação científica entre Leite de Vasconcellos e Orlando Ribeiro, como também a concordância de ambos na primazia do trabalho de campo em relação ao trabalho de gabinete, na importância conferida à observação in loco quer do mundo físico, quer do Carlos – Leite de Vasconcelos e Orlando Ribeiro - Encontros Epistolares (1931-1941). Lisboa, Museu de Arqueologia – INCM, 2011, 210 p. [3] Idem, Leite de Vasconcelos..., pp. 24, 148 e 149.
ESPÓLIO FMVG
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Primeira página do artigo de Manuel Viegas Guerreiro em Separata do Livro de Homenagem a Orlando Ribeiro (Lisboa, 1984)
mundo humano, na permanente disponibilidade e no gosto pela viagem mesmo quando sujeitos a eventuais contratempos ou situações menos [4] [5]
GUERREIRO, “Etnografia e Geografia…”, p. 63. Ibidem, p. 64.
agradáveis e, ainda, na facilidade de contacto com as populações locais. Sendo ambos excelentes e devotados cultores das suas áreas, em ambos se encontrariam plasmados, por certo, os traços característicos e absolutamente indispensáveis ao bom exercício das mesmas. Recuando no tempo, Manuel Viegas Guerreiro recorda os “primeiros escritos de feição etnográfica” de que há notícia da Grécia antiga, onde “Heródoto que viveu no século V antes de Cristo descreve os costumes dos povos com os quais os gregos estiveram em guerra”, e aponta essas histórias “como relatos geográficos, etnográficos e históricos”[4], remetendo para esse passado longínquo os primórdios da Etnografia e fazendo, assim, a demonstração da remota origem da estreita relação entre a Geografia e a Etnografia. Na verdade, ao longo de séculos, os saberes geográfico e etnográfico partilharam o espaço comum de uma Geografia Geral, essencialmente descritiva e enciclopédica, a qual, mantendo o estatuto de saber abrangente, ainda que com explicações de carácter apriorístico, teleológico ou mesmo metafísico, deu origem, ao nível local, a “numerosas corografias e escritos de índole corográfica, embora lhes dêem outros nomes (Geografia, História, tratado, descrição)”[5] -– razão pela qual não competia ao geógrafo apenas a descrição dos lugares mas também a descrição dos povos e de seus costumes. A partir de finais do século XVIII e, sobretudo, ao longo do século XIX, com o confronto do paradigma clássico com o moderno e, nomeadamente, com a oposição entre as correntes idealistas e positivistas, tornou-se inevitável a definitiva clarificação entre Ciências da
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(continuação)
Natureza e Ciências Sociais e a consequente afirmação da Etnografia como uma ciência autónoma em relação à Geografia, embora continuando a existir entre estas últimas uma frequente relação de mútuo proveito. A Geografia, sendo a ciência charneira entre o mundo físico e o mundo humano, foi oscilando – por virtude dessa sua singular característica e no contexto do já referido confronto ideológico entre posições idealistas e positivistas – entre as metodologias de explicação e de pretensa objectividade científica e as metodologias
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Em Orlando Ribeiro, segundo Viegas, “Geografia e História davam-se as mãos, em discurso como nunca ouvimos outro”. de compreensão[6] com as quais se preservam as singularidades individuais mais adequadas ao tratamento de questões das Ciências Sociais. Convém, contudo, referir que, perante a progressiva e quase universal aceitação das ideias positivistas e evolucionistas, e em resultado da consequente valorização, em termos metodológicos, do método empírico-indutivo, a Geografia mostrou-se particularmente sensível àquilo a que Foucault chamou a segunda grande descontinuidade na épistémè ocidental. Justificada a secular ligação da Etnografia à Geografia, a natural persistência de uma forte relação entre ambas e a frequente complementaridade de que ambas têm beneficiado e que, de algum modo, se encontra pessoalmente reproduzida na relação científica entre um etnógrafo e um geógrafo, ou seja, entre um velho Mestre e um jovem discípulo, com interesses científicos coincidentes em muitos aspectos, dada a mútua partilha de muitas normas, problemas e ambições, Manuel Viegas Guerreiro procurou, ainda, dar notícia, embora de forma
Utiliza-se, aqui, a sugestiva tipologia do historiador oitocentista alemão Gustav Droysen. [7] Ibidem, p. 65. [8] Ibidem, p. 69. [9] Ibidem, p. 65. [6]
sumária, de alguns aspectos da actividade científica de Leite de Vasconcellos e de Orlando Ribeiro, procurando enquadrar cada um deles no ambiente dos seus pares e da sua área através de algumas afirmações relevantes sobre o estado da arte em cada uma dessas áreas. Em relação a Leite de Vasconcellos, Manuel Viegas Guerreiro, embora refira Teófilo Braga e Adolfo Coelho como “dois mestres que deram, pela primeira vez, em nossa terra, um tratamento científico à matéria”[7] etnográfica, considera que nenhum deles se aplicou ao trabalho de campo. Assim sendo, como, em seu entender, “não há Etnografia sem trabalho de campo, [...] nesse sentido, Leite de Vasconcellos foi o nosso primeiro etnógrafo”[8]. Tal situação de um escasso contacto directo do etnógrafo com o seu objecto de estudo parece não ter sido um procedimento exclusivo de Portugal pois, como assinala Viegas Guerreiro, “quando o moço aldeão de Ucanha ouvia, à beira do Barrosa, da boca das mulheres da sua terra cantigas e mais cantigas e se metia a estudar o meio rural que o cercava, predominava ainda na Europa o trabalho de gabinete, a utilização do facto apurado por outrem”[9]. Além das qualidades referidas, ressaltam, no ímpar legado deixado por Leite de Vasconcellos, os inúmeros e valiosos textos publicados, a fundação da Revista Lusitana e do Arqueólogo Português, a criação do Museu Etnológico de Belém e, claro, a sua monumental Etnografia Portuguesa, fruto de materiais acumulados ao longo de 60 anos e de que ele só viu publicados três volumes, sendo os restantes sete fruto do empenho de Orlando Ribeiro e Viegas Guerreiro que, com uma extrema dedicação e também com a ajuda de alguns colaboradores, ordenaram, seleccionaram e editaram, de acordo com o exigente plano do velho Mestre, o abundante espólio por ele deixado para o efeito. E se não há Etnografia sem trabalho de campo, o mesmo pode afirmar-se quanto à Geografia, razão pela qual afirma que Orlando Ribeiro foi o nosso
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« Orlando Ribeiro, inegável detentor de um excepcional domínio em ciências afins da Geografia (...) deixou brilhantes discípulos nas principais escolas do país, fundou o Centro de Estudos Geográficos, um centro de referência no país e no estrangeiro, e redigiu o admirável e intemporal “Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico” (...) ao qual ele chama, simplesmente, “um esboço de síntese das relações geográficas do nosso território” primeiro geógrafo. Refere antes dele, como exemplo, o caso de Lisboa, onde Orlando foi aluno e onde o ensino da Geografia, conforme o seu testemunho, “era inteiramente teórico e verbal [pois] nunca fizemos uma excursão, nunca vimos um mapa de grande escala”[10]. Em seguida, Viegas Guerreiro cita Amorim Girão, que “não introduziu [o trabalho de campo] na regular metodologia do seu ensino”[11], e o prometedor mas fugaz Vergílio Taborda, “um dos mais vigorosos espíritos da Geografia Portuguesa”[12] segundo o próprio Orlando Ribeiro (para quem a tese de doutoramento de Vergílio era “o melhor exemplo de um estudo de região em Portugal”[13]). Em Orlando Ribeiro, segundo Viegas, “Geografia e História davam-se as mãos, em discurso como nunca ouvimos outro”. Além disso, sendo ainda “mais andarilho que Leite de Vasconcellos” nas saídas de campo, “era um regalo vê-lo conviver com o povo” e ouvi-lo “fazendo matéria de tudo quanto via, dos acidentes do terreno aos modos de vida e formas de povoamento”[14].
RIBEIRO, Orlando – Ensaios de Geografia Humana e Regional. Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1970, p. 16, in: GUER[10]
REIRO, “Etnografia e Geografia…”, p. 70. [11] GUERREIRO, “Etnografia e Geografia…”, p. 70. [12] RIBEIRO, Orlando – Opúsculos Geográficos II - Pensamento Geográfico. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1989, p. 171.
Orlando Ribeiro, influenciado pela leitura de Vidal de La Blache, entre História e Geografia optou por esta última, praticando, neste aspecto, uma geografia possibilista, mas diferenciou-se de Vidal de La Blache no que diz respeito à relação Homem-Meio – o que é uma decorrência natural dos contextos espaciais e temporais em que cada um viveu, sobretudo se nos recordarmos da França do jovem Vidal, então saída da derrota humilhante de 1870-71 frente à Prússia, e da premente necessidade que este sentiu em contrapor à “lei dos espaços em expansão” (Gesetz der wachsenden Räume, 1882 e 1896) e ao “espaço vital” (Lebensraum, 1897 e 1901-2), presentes na antropogeografia de Friedrich Ratzel (1844-1904), os domínios de civilização da sua geografia possibilista, ajudando, assim, a combater o imperialismo do Reichskanzler Otto von Bismarck (e, depois, do Kaiser Wilhelm II) e a justificar, em simultâneo, o crescente expansionismo da política colonial francesa. Já Orlando Ribeiro, um geógrafo de um outro contexto e de uma outra época, embora afirme que, “sous des formes nuancées et complexes, le déterminisme demeure, en Géographie humaine, une condition logique de toute interprétation”, não deixa de assinalar que “il convient d’examiner de plus près l’outillage dont l’homme dispose et qui permet de le considérer, à juste titre, comme «facteur géographique»”.[15] No entanto, um e outro deram mostras de acompanhar o progresso tecnológico do seu tempo, quer no tocante à influência de novas técnicas, quer no que diz respeito à alteração das condições históricas e sociais daí decorrentes. A este propósito, bastará recordar que a notável evolução do pensamento de Vidal de La Blache entre o Tableau de la Géographie de la France (1903) e o La France de l'Est: Lorraine-Alsace (1917) não passou despercebida a vários autores, inclusivamente a Yves Lacoste – um geógrafo que se situa nos antípodas de Vidal e que, em 1979, publicou, a este respeito, um artigo na revista Hérodote com o seguinte título
[13]
Prefácio de Orlando Ribeiro à 2.ª edição (1987) de Alto Trás-
-os-Montes de Vergílio Taborda, p. 7.
GUERREIRO, “Etnografia e Geografia…”, pp. 70-71. RIBEIRO, Orlando – “En relisant Vidal de la Blache”, in: Annales de Géographie, LXXVIIe année, n.º 424, 1968, pp. 649 e 654, respectivamente. [14] [15]
(continuação)
irónico: “A bas Vidal... Viva Vidal!”. Por seu lado, Orlando Ribeiro, inegável detentor de um excepcional domínio em ciências afins da Geografia, em resultado da sua enorme curiosidade científica e do estreito convívio e até parceria com inúmeros cientistas de renome a nível nacional e internacional, além da sua excelente docência, deixou abundante bibliografia publicada, deixou brilhantes discípulos nas principais escolas do país, fundou o Centro de Estudos Geográficos, um centro de referência no país e no estrangeiro, e redigiu o admirável e intemporal Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, um livro de consulta obrigatória em escolas de várias áreas e ao qual ele chama, simplesmente, “um esboço de síntese das relações geográficas do nosso território”[16]. Em jeito de conclusão e reforçando a ideia que percorre todo o artigo de Manuel Viegas Guerreiro, mostrando a estreita relação entre a Geografia e a Etnografia, não deixa de ser curioso e pertinente assinalar que também Vidal de La Blache, a exemplo de Leite de Vasconcellos e Orlando Ribeiro, se interessou em particular por assuntos relacionados com a Etnografia, como o provam os diversos textos escritos sobre essa temática como, por ex., o artigo “Ethnografie. L’éducation des indigènes”, publicado na Revue Scientifique em 1897, ou o “Les conditions géographiques des faits sociaux”, publicado nos Annales de Géographie em 1902.
NOTA PESSOAL
Manuel Carlos Patrício, geógrafo e discípulo de Manuel Viegas Guerreiro
Como antigo discípulo do Professor Manuel Viegas Guerreiro, com quem tive a honra de conviver como amigo, e mantendo, por sua memória, um imenso respeito e saudade, não posso deixar de referir o seguinte: após a leitura atenta deste seu artigo, ressaltam no meu espírito, mais uma vez, ... as favas e os griséus (...) são ali não só os reconhecidos méritos do etnólogo, como de qualidade e sabor inigualáveis... também a excelência do Homem. Tendo sido Manuel Viegas Guerreiro, juntamente com Orlando Ribeiro, um dos pilares fundamentais para a preservação, tratamento e edição do vasto espólio de Leite de Vasconcellos, só mesmo alguém como ele é que não aproveitaria, ao longo deste seu artigo, as múltiplas (e inquestionavelmente merecidas) oportunidades de subir ao pódio. Honra à sua atitude e à sua memória!
MANUEL CARLOS PATRÍCIO
RIBEIRO, Ensaios..., p. 16, in: GUERREIRO, “Etnografia e Geografia…”, p. 73. [16]
Geógrafo. Professor aposentado do Departamento de Geografia (actual IGOT) da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Doutor em Geografia (Geografia Humana), Mestre em Geografia Humana e Planeamento Regional e Local e Licenciado em Geografia pela mesma Universidade. Antigo investigador do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa (CEG-UL) e do Centro de Tradições Populares Portuguesas Professor Manuel Viegas Guerreiro (CTPP-CLEPUL). Membro do Conselho Geral da Fundação Manuel Viegas Guerreiro.
Programa de conferência internacional, realizada a 3 e 4 de Junho em formato online, na qual a Hemeroteca Digital do Algarve (HDA) foi apresentada pela directora regional de Cultura do Algarve, Adriana Nogueira. Towards recovery: digital capacity building in the cultural heritage sector foi organizada pela Europeana e pela Biblioteca
Nacional de Portugal, em articulação com o Ministério da Cultura, no âmbito da Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia. A HDA nasceu de uma ideia vencedora de Luís Guerreiro, colocada a votação no Orçamento Participativo de Portugal, em 2017.
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VIAGENS PELA OBRA DE MANUEL VIEGAS GUERREIRO ESCAVAR A FALA, VIEGAS GUERREIRO E VAREJOTA À LUZ DE MARTIN HEIDEGGER POR LUÍSA MONTEIRO1
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LUÍSA MONTEIRO
Professora de História do Teatro e de Teorias da Arte Teatral na Escola Superior de Teatro e Cinema. Doutorada em Literaturas Românicas Comparadas, Universidade Nova de Lisboa. Membro do CIAC-Centro de Investigação em Artes e Comunicação, Universidade do Algarve.
RESUMO: PARA O PRESENTE ARTIGO SÃO CONVOCADOS HEIDEGGER, O POETA POPULAR SILVA VAREJOTA, POR INTERMÉDIO DE MANUEL VIEGAS GUERREIRO E PLATÃO. SENDO A FALA UM ATO SOLITÁRIO DA LINGUAGEM QUE CONCORRE PARA A POTENCIALIDADE ONTOLÓGICA DO
SER-COM-OUTROS, INDAGA-SE ATÉ QUE PONTO É QUE O FALAR POÉTICO, DITO OU CANTADO, NÃO PROPICIA UMA ABERTURA RETROATIVA, UM VOLTAR DE NOVO À “CAVERNA”, TAL COMO NA ALEGORIA DE PLATÃO.
PALAVRAS-CHAVE: Fala – Morte – Heidegger - Viegas Guerreiro – Varejota – Caverna.
ESPÓLIO FMVG
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Capa e pág. 53 do artigo de Manuel Viegas Guerreiro «O Homem e a Terra em um poeta popular do Algarve», in Natureza e Paisagem (Lisboa, 1977)
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scavar significa trabalhar a terra, mas
também estudar profundamente. É o ato intencional de criar concavidades, cavernas para obviar o que está abaixo da superfície; assim acontece com o homem que cava a terra para sustento do corpo e com o que escreve para sustento do logos, vivendo o permanente conflito
entre a experiência e o pensamento. Tal não é alheio tanto ao filósofo Martim Heidegger (1889-1976) como ao quase desconhecido poeta popular Silva Varejota (1865-1905). E não o será também para Viegas Guerreiro (1912-1997), autor do artigo «O Homem e a Terra em um Poeta popular do Algarve», publicado em 1977 na brochura Natureza e paisagem do Serviço
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Nacional de Parques, Reservas e Património Paisagístico, afeto à então Secretaria de Estado do Ambiente.
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O punk conquistava jovens portugueses pela excentricidade de David Bowie, Sex Pistols, The Ramones e outros, os quais competiam nas telefonias com o fado de Amália Da “atmosfera” Um dos princípios da referida publicação é, curiosamente, o de “inculcar em quem ainda a não tenha, a consciência da nossa pequenez perante a vida” (Guerreiro, 1977, p. 55). O segundo número, de março, traz à capa uma fotografia de Querença, e nele encontramos um breve texto de Manuel Viegas Guerreiro onde enuncia (ou anuncia) a voz de um poeta popular como uma combinação de “Ciência, Filosofia e intuição poética” (idem). Traz a voz do povo numa altura em que Trigo de Morais assina, no anterior mês de janeiro, pelo secretário de Estado da Indústria Ligeira, a distribuição da Coca-Cola em Portugal. Nesse ano, o punk conquistava jovens portugueses pela excentricidade de David Bowie, Sex Pistols, The Ramones e outros, os quais competiam nas telefonias com o fado de Amália, elevado 34 anos depois à categoria de Património Cultural e Imaterial da Humanidade pela UNESCO (27.11.2011). Os mais velhos colavam-se à televisão, sonhando com as maravilhas do concurso “A visita da Cornélia” e suspirando com a primeira telenovela brasileira “Gabriela, Cravo e Canela”, a partir do romance homónimo de Jorge Amado; começou a ser emitida a preto e branco, fez parar a nação e disparar os divórcios até então ainda tolhidos pela trindade moral de “Deus, Pátria e Família”.
A contrapor ao olhar de todos para fora, o etnólogo Viegas Guerreiro chama a atenção para o olhar para dentro, para as raízes, para a voz e fala de um poeta desconhecido. Fá-lo num período em que se dividia entre a Faculdade de Letras de Lisboa, onde era professor de Etnologia Geral e Etnologia Regional, do curso de Geografia, o Centro de Estudos Geográficos (do antigo Instituto Nacional de Investigação Científica), onde dirigia uma linha de Ação de “Recolha e Estudos de Literatura Popular Portuguesa”, o Programa Trabalho e Cultura do Serviço Cívico Estudantil, que dinamizava com Michel Giacometti e ainda o Museu Etnológico Dr. Leite Vasconcellos (Fonseca, 1998) a par dos estímulos derivados da boa receção do seu Guia de recolha de literatura popular, editado no ano anterior. Querença, a sua terra natal: uma aldeia entre a serra e o barrocal do concelho de Loulé, situada no topo do monte que lhe dá o nome, que significa querer bem a alguém ou a algo. No centro, a Igreja seiscentista de Nossa Senhora da Assunção, um pelourinho, algumas casas pequenas em seu redor; e ao redor deste redor, vegetação e leitos de água, é tudo quanto a vista alcança. Para entrar ou sair da aldeia, passava-se outrora por um caminho ladeado a valados, muros onde se espelhavam as sombras de quem vinha ou ia, como na descrição de espaço que Sócrates faz a Gláuco a abrir o Livro VII de A República. Face a um país em grande transformação e saído há pouco de um regime ditatorial, Viegas Guerreiro “regressa” a Querença para dizer de um poeta que habita o centro da sua terra, alguém que “reflete e constrói a sua própria filosofia” numa atitude conformada de quem “aceita que foi feito de pó da terra e em pó se há-de formar” (Guerreiro, 1977, p.52), levando-nos a pensar em Silva Varejota de enxada aos ombros pelos caminhos, tal como em Heidegger de bengala na mão a remexer a terra na sua “vilória” de Messkirch. Um, sem instrução, criando e reproduzindo a sua poesia somente pela fala e memória, o outro celebrado pelo seu pensamento que há muito havia
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ultrapassado os portões da Universidade de Friburgo, onde ocupara o lugar de Husserl na cátedra de Filosofia e do qual fora afastado. 1. Ser "ser para a morte" Para Viegas Guerreiro, a possibilidade de pensar os fenómenos não está alheia ao conhecimento empírico: O poema que vem da boca do povo precedeu-o, por vezes, longa meditação. Na rabiça do arado ou no trabalho oficinal, vai o espírito organizando a peça literária que a voz ou as poucas letras reproduzem. […] À ciência do povo chama-se-lhe sabedoria, conhecimento empírico que lhe não dá para conhecer as verdadeiras causas dos fenómenos que observa, um empirismo bruto que o confina a uma limitada actividade intelectual, como se um saber profundo senão alcançasse no livro aberto da natureza, no do convívio dos homens, na experiência do quotidiano. (1986) A alusão bíblica referida, não tolda a sua visão genérica sobre a relação do homem com a arte e com a natureza propriamente dita. Logo alerta de que o poeta em questão “não é um ser em outro ser, uma natureza em outra natureza, mas um elo da cadeia da vida que perpetuamente se renova” (Guerreiro, 1977, p.55), e com isso remete-nos para o seu pensamento fenomenológico, onde não existe uma consciência pura, antes uma consciência de algo, para algo, constituindo-se como fonte dinâmica inesgotável de significado para o mundo.
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Para o poeta de Querença, é da correlação terra-ser que ocorrem as possibilidades concretas de se dar sentido às manifestações humanas, ou seja, o ser-no-mundo. Heidegger acrescentar-lhe-ia mais duas facetas: o celeste e o divino
Dasein é ser-aí, isto é, o ser humano como o ente que se encontra sempre no mundo, e não poderíamos pensá-lo de outro modo. Descrever as condições nas quais esse ente se mostra é [2]
Heidegger não vê na coisa física a natureza no seu sentido comum, antes no sentido de phýsis, aquilo que se opõe a uma consciência que se encontra apartada dessa natureza física e que o logos é o espaço assumido por aquilo que se revela e se deixa recolher enquanto algo passível de ser pensado, distinto por isso do representativo, do que já se presentificou. Deste modo, a consciência do ser visualiza aquilo que originariamente já se apresentou, se des-velou, e é esta compreensão originária, o âmbito onde se ancora o logos, o espaço instaurador de possibilidades, nomeadamente, o espaço da consciência. Viegas Guerreiro nota que o poeta “abre, efetivamente, os olhos para o mundo, observa, experimenta, reflete e constrói a sua própria filosofia” (1977, p.55). Por outras palavras, a sua construção poética é a construção do ser, desse “ser-aí” (Dasein) como ente que se encontra sempre no mundo e que não pode ser pensado de outro modo[2]. Gadamer (2000, p.73) faz notar que através de Heidegger “descobriu-se que, mesmo na chamada percepção, se dá uma compreensão-de-algo-como-algo hermenêutica. Mas isto significa, em última consequência, que a interpretação não é um procedimento adicional do conhecimento, mas constitui a estrutura originária do ser-no-mundo”. A arte entra nesta “estrutura originária do ser no mundo”. No caso da arte popular, encontra-se intimamente ligada a duas faces paralelas: a natureza, propriamente dita (espaço de deus, do éter, do fora, da ameaça, mas também do sustento físico), e a casa, (espaço do homem, do corpo, do dentro, da proteção, mas também do sustento das paixões). O homem vive entre, e com, ambos os espaços. A partir do momento em que se opera a possibilidade de posse do que se encontra fora, ele passa a habere, ou seja, a possuir/habitar no fora e no dentro. É a condição de habitante que lhe dá acesso às possibilidades dos espaços, das faces casa/terra
o que constitui a analítica existencial — e isso constitui a base de todas as ontologias, pois é esse ente que compreende o ser.
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Topo da pág. 54 do artigo de Manuel Viegas Guerreiro «O Homem e a Terra em um poeta popular do Algarve», in Natureza e Paisagem (Lisboa, 1977)
e natureza/mundo. Nesta dicotomia de posse e de uso opera-se a interrogação face aos fenómenos, pelo que a arte nasce como forma de domínio desses mesmos fenómenos. A arte só captura aquilo que o homem habita e aquilo que habita o homem, seja da ordem do medo, da dúvida, do sonho ou do desejo. Assim, a arte “nasce” constituindo-se também ela fenómeno. Até certo ponto, este pensamento pode ser ilustrado pelos versos de Silva Varejota do poema escolhido por Viegas Guerreiro: “eu na terra é que semeio / de todo o meu alimento /[…] isto é a verdade pura/tudo na terra é criado / depois torna ao mesmo estado” (1977, p. 54). Considerando que o ato criador é fonte de
Tradução de Irene Borges-Duarte, filósofa que mais se destaca em Portugal no que concerne aos estudos em torno do pensamento de Martin Heidegger. [3]
intencionalidades, o homem e a terra não podem encerrar em si conceitos que o limitam ao conjunto das coisas que o rodeia. Para o poeta de Querença, é da correlação terra-ser que ocorrem as possibilidades concretas de se dar sentido às manifestações humanas, ou seja, o ser-no-mundo. Heidegger acrescentar-lhe-ia mais duas facetas: o celeste e o divino, sendo no ponto de cruzamento desta “Quadrindade”[3] o o-aí, o ponto de eleição para a coisa incerta, precária, mas também nó de acontecimento. Não obstante o sagrado expresso no poema do artigo de Viegas Guerreiro, ele não é assumido como princípio, nem assume um dos seus princípios
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fundamentais: o da ressurreição. O poeta é claro: a morte concretiza em si o fim da experiência: “o corpo da criatura/é só terra e nada mais”, não concedendo a ideia de eternidade à existência humana; finitude e regresso à natureza ou a morte como um bilhete de regresso: “a terra é minha mãe/não no posso duvidar/ e para esta me criar/tudo da terra me vem”, menos o “uso da razão”, cedido por Deus como ordem ou um recado: “Deus à terra me mandou / com o uso da razão”. Deus é um-outro, alguém que empresta a possibilidade de compreender e de empreender, um ente exterior à relação que o poeta-filho tem com a sua mãe-terra: por esta gerado, criado e com ela comprometido para que a si regresse à medida que for “morrendo”, para que a mãe se alimente do filho que alimentou: “a terra me há-de comer”. Apoiado no provérbio popular, esta “mãe” não pode ser vista como a Gaia, Terra-Mãe ou Grande-Mãe dos mitos das sociedades agrárias, sedutora de seus próprios filhos, mas também protetora quanto a tudo que possa ameaçar a sua fecundidade constante, a sua maternidade. Só não consegue proteger os procriados do seu irmão Cronos, ou seja, do envelhecimento. Não é Gaia, mas sim Hera, quem preside ao pensamento simbólico de Silva Varejota e os seus filhos, na terra, todos são Hefesto, o coxo (um trabalhador sem a perfeição física dos deuses, nascido de Hera autónoma que o deu à luz por partenogénese, sem pai, ou quando muito, filho do vento). Quando o homem que trabalha a terra começa a “coxear” e deixa de dominar a técnica, o machado, o martelo, a palavra ou outros utensílios (roubado ao pai, no caso de Hefesto, que lhe cedeu a razão), esta Mãe (deusa da família, com raízes nos mitos mais arcaicos), por vergonha, mata-os e recolhe-os de novo em si, escondendo-os da possibilidade de serem vistos na sua feiura[4]. O corpo que indica o aí de uma vida, cumpriu-se. Como nota Irene Borges-Duarte, “Ser mortal é uma forma mais simples e menos pretensiosa, sem vagas
evocações escatológicas, de falar no que, em Ser e Tempo, se dizia como ‘ser para a morte” (2021). O poeta não parece angustiado com a ideia de fim e há mesmo uma leveza de ânimo não só conferida pela rima, pela musicalidade, como pela repetição sem negatividade da ideia de que a Terra-Mãe devora”: é que o poema, essa arte da fala, comemora o triunfo da “coisa” experienciada. 2. Escavar a fala A linguagem é o elemento que diz do habitar, da co-existência, da pertença e do enlace entre as faces. Para Heidegger é na relação humano / linguagem que se abre, ou constrói um caminho para que sejamos nós próprios o caminho. Este em-caminhar (be-wëgen) não significa acrescentar algo mais ao caminho já existente, mas intensificar o humano no centro da relação, que é onde repousa a sua essência; e a marca distintiva dessa “essência” é o facto de ele ser linguístico. Assim, a marca da essência da linguagem é ser humana. No caminho, o homem, em consonância com a essência da linguagem, torna-se presente e manifesto daquilo que é, e deixa, em conjunto com outros (a quem mostra aquilo que se manifesta), a linguagem enquanto “dito”, enquanto fala. Diz-nos em O caminho da linguagem ([1959] 2003, p. 215): A linguagem foi chamada de a "casa do ser”. Ela abriga o que é vigente à medida que o brilho do seu aparecer se mantém confiado ao mostrar apropriante do dizer. Casa do ser é a linguagem porque, como saga do dizer, ela é o modo do acontecimento apropriador. A “casa do ser” é da face do dentro. Logo, comungamos
Há o relato do geógrafo Pausânias sobre ter visto no Templo de Dioniso, irmão de Hefesto, uma pintura alusiva a uma apropriação do antigo mito pelos Etruscos: que por vingança,
Hefesto terá prendido Hera numa cadeira de ouro feita por si, e que só no estado de bebedeira, cujo vinho lhe foi dado pelo irmão, em quem confiava plenamente, é que libertou a mãe.
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A dialética é uma via para a plenitude e para o Bem. A fala escava-se em direção à luz, como o ato agrícola, como a filosofia
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Viegas Guerreiro ao referir-se nos seus estudos sobre tribos angolanas compara a solidão da Natureza à liberdade absoluta: egoísmo sábio mas, indubitavelmente solitário. do pensamento de Heidegger de que a fala é do âmbito do íntimo. Falar é, por si mesmo, escutar. Falar é escutar a linguagem que falamos. Torna-se escuta: “O falar não é ao mesmo tempo mas antes uma escuta. [...] Falamos a partir da linguagem” (idem) porque lhe pertencemos. Aquilo que o Dasein comunica e expressa tem um referencial, o que é especificamente falado sobre o que se fala. Desse modo, articulando o sentido a partir da interpretação, falando algo sobre algo, comunicando e anunciando, o Dasein fala e ratifica a estrutura ontológica da linguagem que, nesse contexto do pensamento, manteve-se como possibilidade de um ente específico. E há nisto, a solidão, como explica na referida obra: Linguagem é, no entanto, monólogo. lsso diz duas coisas: que só a linguagem é o que propriamente fala e que a linguagem fala solitariamente. Solitário pode apenas ser quem não é sozinho' não sozinho, quer dizer, não separado, não isolado, sem relação. Na solidão vigora a falta do que é comum como a referência que mais liga o solitário ao comunitário. […] O homem só é, porém, capaz de falar porque, escutando a saga do dizer, a escuta para, a partir dela, poder dizer uma palavra. (Heidegger, ibidem, p. 214). Ninguém, efetivamente, fala por outro, sendo por isso um ato monologal e solitário da linguagem, operando-se numa situação de um alguém não sozinho, o que não implica obrigatoriamente a presença de comuns. “Na sua saga, o dizer concede o "é" na liberdade clara e ao mesmo tempo velada de sua possibilidade de ser pensada” (ibidem, p. 171). Falar é um reiterar do pensamento, um escavar de sentido, no sentido, e nesse ritmo criar aberturas por onde a luz entra aos poucos, mais ou menos diametralmente. Mas é também a assunção da caverna.
3. O regresso à caverna O VII Livro de A República, segue a estrutura dialogal da obra de Platão e encontramos Sócrates a pretender pensar com Glauco, a formação do homem (paideia) através de uma imagem: homens presos no interior de uma caverna desde a nascença de onde viam apenas a parede ao fundo onde se projetavam sombras das formas dos homens, dos animais e coisas. O caminho de saída para a realidade exterior, encontrava-se por trás da caverna, pelo que nunca era visto, os “prisioneiros” apenas olhavam para a frente. A um desses prisioneiros é concedida liberdade. Assim, seguindo com a leitura heideggeriana do Mito, podemos ver que, à medida que o homem é libertado, começa uma progressiva manifestação das coisas no que elas são. E somente porque as coisas assim se mostram, o homem tem a oportunidade de compreendê-las e de adaptar-se a elas. Deste modo, o desvelamento das coisas resulta na progressiva reorientação do homem em direção ao mais verdadeiro. A palavra grega para se referir ao desvelamento, segundo Heidegger, é alétheia, a verdade que passou a ser entendida pelo ocidente como adequação entre a coisa e o intelecto. A mudança na compreensão da alétheia, de desvelamento para a exatidão da adequação, estaria relacionada com a mudança da própria essência da verdade. Indaga-se se no entanto, se a fala não constitui também um ato caminhante, na medida em que pensamento e verbalização oral compreendem momentos distintos do ser, sendo na verbalização e consequente escuta que o pensamento pode permanecer ou alterar-se. Falar é um sair de si, implica uma constante reorientação do eu em direção ao mais verdadeiro do seu pensamento. Talvez não seja tão à toa o aforismo “da discussão nasce a luz”. A dialética é isso, permitindo-nos construir a ponte científico-racional que transporta do “antro das trevas” ao “foco de luz”, ao sol, que nutre tudo o que é vivo e que constitui alimento físico e psíquico. A dialética é uma via para a plenitude e para o Bem. A fala escava-se em direção à luz, como o ato agrícola, como a filosofia: É às pessoas moderadas e firmes por
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Foto de capa das páginas de Facebook da FMVG e FLIQ concebida para o Dia da Terra
natureza que se dará acesso à dialéctica, […] Para aprender a dialéctica, basta permanecer com continuidade e aplicação, sem fazer mais nada, por analogia com os exercícios de ginástica que diziam respeito ao corpo […] Depois disso, deves mandá-los descer novamente à tal caverna […] Quando tiverem cinquenta anos, os que sobreviverem e se tiverem evidenciado, em tudo e de toda a maneira, no trabalho e na ciência, deverão ser já levados até ao limite, e forçados a inclinar a luz radiosa da alma para a contemplação do Ser que dá luz a todas as coisas. Depois de terem visto o bem em si, usá-lo-ão como paradigma, para ordenar a cidade, os particulares e a si mesmos, cada um por sua vez, para o resto da vida, mas consagrando a maior parte dela à filosofia (Platão, pp. 357-358). Deste modo, é possível que a luz referida na alegoria platónica (mais tarde derivando para o entendimento latino cristão em dia e de dia, deus) se refira à dialética, à razão não esquecida pelo poeta e perseguida pelo filósofo, mais do que exterior, Natureza, uma vez que a Natureza, lá fora, no que concerne à vida, não serve, em nada, de modelo moral para o homem. Viegas Guerreiro, no entanto, ao referir-se nos seus estudos sobre tribos angolanas compara a solidão da Natureza à liberdade absoluta: “E não é compensação de pouco preço a liberdade absoluta que uma sociedade, diferente de todas, pode buscar nessa imensa solidão da Natureza” (Guerreiro, 1968, p. 34). Uma visão estoica? É possível, mas também uma postura egoísta, no sentido de posse das aptidões para ser e estar no mundo: egoísmo sábio, mas indubitavelmente solitário.
REFERÊNCIAS BORGES-DUARTE, Irene (2021). “Até à morte, habitação poética. Entre Heidegger e Ruy Belo”. Universidade de Évora: Inédito. FONSECA, Maria Lucinda (1998). “Manuel Viegas Guerreiro: evocação de um mestre e amigo”. Finisterra. Universidade de Lisboa. GADAMER, Hans George (2000). Texto e Interpretação. Trad. Borges-Duarte, Irene; Pacheco, Mª Antónia. Texto Leitura e Escrita – Antologia. Porto: Porto Editora. GUERREIRO, Manuel Viegas (1968) - Bochimanes! Khu de Angola: estudo etnográfico. Lisboa: Instituto de Investigação Científica de Angola. (1977). “O Homem e a Terra em um Poeta popular do Algarve”. Natureza e paisagem. Nº. 2, março. Lisboa: Secretaria de Estado do Ambiente – Serviço Nacional de Parques, Reservas e Património Paisagístico, pp. 52-55. (1896). “Literatura Popular: em torno de um conceito”. Litterature Orale Traditionnelle Populaire. Actes du Colloque,. Paris: Fondation Calouste Gulbenkian Centre Culturel Portugais (1987). Digitalizado e revisto por Domingos Morais em Novembro de 1999. Consultado a 6/03/ 2021: http://alfarrabio.di.uminho.pt/cancioneiro/ etnografia/manuelViegasGuerreiroliteraturapop.pdf HEIDEGGER, Martin. [1959] O caminho para a linguagem. Trad. M. Schuback. In: A caminho da linguagem. Petrópolis: Vozes, 2003. Coleção Pensamento Humano. PLATÃO (2001). A República. Trad.: Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
« NA PROVÍNCIA DO ALGARVE TIVERAM O SEU BERÇO MUITOS DOS HOMENS MAIS NOTÁVEIS DESTE PAÍS. E, SE NÃO, VEJAMOS.
Aqui nasceram os célebres navegadores Gil Eanes, descobridor do Cabo Bojador; Diogo Cão, descobridor do rio Zaire ou Congo; Álvaro de Faria, companheiro de luta do Prior do Crato; João Baptista Lopes, autor de uma Corografia do Algarve [entre outras obras]; (...) Estácio da Veiga, arqueólogo (...); Júlio Dantas, antigo ministro, diplomata, presidente da Academia das Ciências de Lisboa e escritor insigne, autor de páginas admiráveis, dignas de uma Antologia; Teixeira Gomes, antigo Presidente da República e Embaixador de Portugal em Londres; o engenheiro Duarte Pacheco (...) Cândido Guerreiro, Luthgarda...
ALBERTO NEVES DE OLIVEIRA
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... evocar em Messines, as façanhas do REMEXIDO... «
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Dos sarracenos foi sublime a lira D'Abu Otman, poeta de Tavira, Do lírico de Silves, Ibn-Ammar!
Berço de heróis, de santos e de artistas, Terra legenda de um país fecundo, Alma das descobertas e conquistas, Povo-padrão dos mares e do mundo!...
LOLITA RAMIREZ
JOÃO BRAZ
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FOTOGRAFIA: MARINELA MALVEIRO
D. Henrique obtivera no entretanto a alcaidaria de Silves (por carta régia de 15 de Janeiro de 1457) e naturalmente não teria saído logo do Algarve. Em todo o caso, encontrava-se no Algarve a 16 de Dezembro donde escreve «na minha Vila de Sagres» - a primeira que se conhece até agora assim datada (A. Iria) – uma famosa carta, parece que em triplicado, enviada a Maomé II, o sultão dos Turcos, que em 1453 tomara Constantinopla. FRANCISCO FERNANDES LOPES
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Depois que foi por Rei alevantado, Havendo poucos anos que reinava, A cidade de Silves tem cercado, Cujos campos o Bárbaro lavrava. Foi das valentes gentes ajudado Da Germânica armada que passava, De armas fortes e gente apercebida, A recobrar Judeia já perdida.
Como foi que à igreja de Portimão vieram ter estas amazonas, é que o viajante gostava de saber. É certo que não faltaram, por esses tempos, mulheres de armas, entre Deuladeus e Brites de Almeidas, mas incorporadas nas hostes regulares, ombro a ombro com os varões, disso não havia fé.
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JOSÉ SARAMAGO
CAMÕES
Da terra vinha o cheiro dos hortejos e figueirais misturar-se ao aroma das flôres que rebentavam
nas velhas muralhas, e havia altas moitas de baunilha, de suspiros roxos e côr de neve,
sombreadas por velhos limoeiros e aloendros côr de rosa (...) mas o melhor quadro foi Coelho de
POSTAIS
DO ALGARVE
« A cidade como lar do poeta, a terra de que se tem saudades (...) a terra a que se volta, até para morrer, que a terra onde se nasce é mãe também, como ensinou João de Deus, cidade e terra que são sempre casa e mãe e lar, esses lares que Almutâmid saudava esperando e supondo que ainda se recordassem dele. FERNANDO CABRITA
MIGUEL TORGA
« Muito branca e espalhada na baixada da Serra, Messines arvora um letreiro de fábrica que diz «Neto» - e a gente pergunta se não persistirá por ali, nas silenciosas tarefas da produção e do habitat, alguma linha colateral do sangue que deu João de Deus e D. José III, o patriarca que há quase sessenta anos votaria no santo Pio X para o trono de S. Pedro. VITORINO NEMÉSIO
« No Largo da Sé, temos uma verdadeira cidadela de cultura. O Seminário de D. Francisco Gomes onde ensinaram um Francisco Alexandre Lobo e um Monsenhor Botto e onde estudaram um Cardeal Neto e um Cónego Pontes, para não citar outros.
« Saint Thomas n’appartient pas au Moyen Âge; dans la pureté transcendante de sa métaphisique et de sa théologie, il appartient à tous les temps… JACQUES MARITAIN citando JACQUES MARITAIN sobre o Padroeiro de Faro
JOSÉ ANTÓNIO PINHEIRO E ROSA
« Se passar em Lagos e for à Meia Praia, não fale em cuícos nem em beduínos pois pode dar-lhe mau resultado. Eles não gostam de ouvir isso. Está certo. Mas eu gosto. São uns belos nomes de guerra! Fazem lembrar as antigas tribos a atravessarem territórios à procura de um lugar para viver. MANUEL DA FONSECA
Carvalho, em pessôa, quando apareceu sorridente, entre a rasgada porta, vestindo
gorgurão de seda rôxa, barba prateada em corte florentino, evocando-me um doge de Veneza,
ou grande senhor da côrte de Carlos V.
JULIÃO QUINTINHA
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DIÁRIO DE CAMPO
FOTOGRAFIA: MARINELA MALVEIRO
FMVG PROMOVE LEITURA EM S. TOMÉ DESTA VEZ ATRAVÉS DE CAMPANHA DAS BIBLIOTECAS DE LOULÉ
A pandemia suspendeu a campanha por várias vezes, mas a RBCL e os parceiros envolvidos mantiveram-se empenhados em colocar os livros junto dos futuros leitores. MM:
A Rede de Bibliotecas do Concelho de Loulé (RBCL) reuniu uma colecção de cerca de 20 mil livros infanto-juvenis, manuais escolares e de adulto para África. A Fundação Manuel Viegas Guerreiro participou da campanha solidária entregando cerca de mil livros. A acção foi desenvolvida em parceria com a Liga dos Combatentes - Núcleo de Loulé, que garantiu a presença de uma delegação à chegada dos livros a S. Tomé. A primeira leva de livros viajou através da Força Aérea Portuguesa no passado dia 22 de Março, tendo a Câmara Municipal de Loulé assegurado o transporte até ao aeroporto de Figo Maduro, Lisboa. A campanha Livros Solidários para São Tomé contou com o apoio da comunidade das escolas públicas e privadas do concelho de Loulé (Escola Profissional de Alte e Colégio Internacional de Vilamoura), da Biblioteca Municipal de Loulé e da Fundação Manuel Viegas Guerreiro.
Dia do transporte dos livros para Lisboa, a 21 de Março
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CRIANÇAS FORMAM LAÇO AZUL EM QUERENÇA A FMVG associou-se à Loulé Cidade Educadora e à Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de Loulé, que lançaram o repto: sensibilizar para situações de abuso, abandono ou qualquer tipo de violência física ou emocional sobre as crianças. Desafio aceite no mês de Abril, dedicado à Prevenção dos Maus-Tratos na Infância. Todos os laços de Loulé se encontram aqui: https://www.facebook.com/LouleCidadeEducadora/ videos/968124833992777
DIA MUNDIAL DA POESIA A associação cultural Mákina de Cena (MdC) promoveu um recital de poesia a partir da obra de Casimiro de Brito, Gastão Cruz, Nuno Júdice e Teresa Rita Lopes. A FMVG foi conhecer melhor os diseurs convidados. Os pequenos vídeos podem ser vistos no canal de Youtube da FMVG que, ao aliar-se à Mákina de Cena, deu maior eco à Poesia. O evento decorreu nas páginas de Facebook da MdC e do Festival Literário Internacional de Querença, cenário onde os autores já foram homenageados.
FLIQ 2019 REVISITADO EM MAIO DE 2021 O Festival Literário Internacional de Querença estreou quatro vídeos que podem ser visionados no Youtube da FMVG. Três deles resumem os dias 3, 4 e 5 da última edição do FLIQ, dedicado à Literatura e à(s) Geografia(s). O primeiro dia decorreu sob a égide dos 30 anos da criação dos Estudos Gerais Livres, último grande projecto de vida do Patrono. O segundo foi de homenagem a Nuno Júdice e o terceiro à Leitura. O quarto filme reúne as melhores imagens captadas.
DIA MUNDIAL DA CRIANÇA A Fundação abriu portas às crianças para uma sessão de cinema que, afinal, era de teatro. A versão filmada de A nova estória do Coelhinho Branco, a mais recente produção da Figo Lampo, associação de Querença, foi exibida perante uma plateia ávida de cultura. As crianças do pré-escolar e 1.º ciclo de Querença riram, cantaram, recontaram a estória e voltaram a cantar a música final do vídeo. A adaptação da estória recolhida por Adolfo Coelho é de Maria Adelaide Fonseca.
GEOPARQUE ALGARVENSIS APRESENTADO NA FMVG Ana Abrunhosa, ministra da Coesão Territorial, foi uma das personalidades que marcou presença na apresentação oficial do aspirante a Geoparque Mundial da UNESCO algarvensis Loulé-Silves-Albufeira, no passado dia 23 de Abril, num encontro organizado pela Câmara Municipal de Loulé.
NOVO MESTRADO DÁ-SE A CONHECER EM QUERENÇA Responsáveis pelo mestrado em Gestão Sustentável dos Espaços Rurais estiveram na FMVG para a apresentação do novo curso da Universidade do Algarve. O evento, transmitido por streaming, realizou-se no passado dia 5 de Maio e foi organizado em parceria com a Câmara Municipal de Loulé.
NEWSLETTER FMVG | N.º 25
FOTOGRAFIA: MARINELA MALVEIRO
FOTOGRAFIA: MM
FOTOGRAFIA: MJM
PEQUENOS NATURALISTAS DESCOBREM VESTÍGIOS DE FÓSSEIS DE TEMPOS ANTIGOS
Fóssil de um Crinoide, planta que vivia há cerca de 150 milhões de anos a grande profundidade, observável no Percurso Eco-Botânico de Querença
Grupo de alun@s do pré-escolar e 1.º ciclo de Querença exploram a paisagem da serra e barrocal para descobrir vestígios de outros seres que por cá andaram há mais de 150 milhões de anos. Naturalistas de Querença é um projecto que resulta da parceria entre a Fundação Manuel Viegas Guerreiro/ Percurso Eco-Botânico Manuel Gomes Guerreiro, a CML e o agrupamento de escolas Pde João Coelho Cabanita.
MM:
Munidos de luvas, máscaras, borrifadores e lupas descobriram fósseis preservados nas rochas utilizadas no edifício da Fundação. No espaço exterior, no Percurso Eco-Botânico Manuel Gomes Guerreiro, encontraram o fóssil de um Crinoide, da classe dos equinodermos, planta que vivia há cerca de 150 milhões de anos abaixo das linhas de maré até profundidades abissais (na foto). Esta constitui uma forma lúdica e simples de contar às crianças a história geológica do território do aspirante a Geoparque Mundial da UNESCO que se estende ao longo de três concelhos algarvios: Loulé, Silves e Albufeira. As sessões, realizadas nos meses de Abril e Maio, integraram o programa de Os Pequenos Naturalistas de Querença e foram orientadas pelos técnicos da Câmara Municipal de Loulé (CML), Carolina Coelho, Hugo Campos e Maria José Mackaaij. Os Pequenos
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DIA MUNDIAL DO LIVRO LUÍS GUERREIRO. É AQUI A MINHA MORADA. POR SALVADOR SANTOS Quando os livros tomam uma casa para além do que é razoável ao tempo de um leitor, já conquistaram o dono por inteiro. O espírito do bibliófilo é de papel e de tinta. As bibliotecas são um corpo a quem emprestam a alma. O inventário das relações de um homem com os livros é um assunto só seu. Até onde, e em que grau, os livros influenciam e condicionam a vida de um bibliófilo nem sempre se apuram. As bibliotecas são projetos íntimos. A sua intimidade deve-se sobretudo à condição «da casa». É, em muitos casos, na altura em que o desejo de doar os livros reunidos à comunidade se realiza que o bibliófilo se revela. Foi assim com o Luís Guerreiro. Depois de ter doado os seus livros à Fundação é que pudemos ver a extensão do seu labor. Perceber o cuidado com que reuniu livros, apurou autores, investigou as fontes que se relacionassem com o Algarve. O Luís viveu uma época muito particular. Ainda experimentou o fascínio e poder dos livros. Em que
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Suponho que se o Professor Manuel Viegas Guerreiro saísse, hoje, em excursão pela serra do Algarve, recuaria a Querença a partida que iniciou, no ano de 1956, nos Corcitos, com o seu parente, e companheiro de jornada, Joaquim da Boucinha. Suponho que esse seria o seu procedimento fazendo caso de uma das afirmações de Michel Onfray na sua «Teoria das Viagem», quando afirma que as viagens começam nas bibliotecas. E que lugar mais pertinente, e ao jeito de quem procura saber sobre a região, do que aquele «Algarve escrito» que o Eng. Luís Guerreiro reuniu na fundação que perpetua a memória e o trabalho do grande etnólogo, nascido em Querença, no ano de 1912. Por vezes tenho a sensação que as bibliotecas são feitas de uma matéria estranha. Olhando para elas assemelham-se a pedras. Parecem-me seres inanimados, mas com uma vida secreta por dentro. Algumas agem como ervas daninhas ou raízes. Vão ganhando terra. Espalhando-se com a velocidade impercetível dos ponteiros do relógio.
Centro de Estudos Algarvios Luís Guerreiro, biblioteca da FMVG, Querença
NEWSLETTER FMVG | N.º 26
(continuação)
eles eram os grandes veículos de conhecimento e cultura. Acrescente-se que no caso da região até se poderia dizer dos livros objetos raros. Quantas casas com biblioteca, mínima que fosse, terá encontrado Viegas Guerreiro na sua viagem pela serra? Mas essa época de apogeu da tipografia já se ressentia de um declínio que se vislumbrava no horizonte. A cultura audiovisual estava em ascensão e as novas ferramentas digitais já se insinuavam, com uma possibilidade de futuro tão grande, que os livros pareciam objetos arqueológicos. Não podemos atribuir a essa razão, a esse medo do futuro, o projeto da sua biblioteca, mas estou certo que estaria no seu sentido essa ameaça quando a decidiu reunir. E tinha igualmente a consciência da destruição voluntária dos livros. A destruição de que falo não é tão violenta na perceção que temos dela, nem comporta o sentido de culpa das destruições célebres que tem acompanhado a nossa história. Os manuscritos sobre madeira que o imperador T´sin Shihuangti mandou queimar como castigo às críticas que lhe faziam os seus autores. A Biblioteca de Alexandria destruída pelos cristãos. Os emblemas da idolatria azteca, livros, bibliotecas e pinturas atirados ao fogo pelos conquistadores do novo
mundo. É uma destruição motivada pela ignorância e pelo desprezo. Praticada pela generalidade das pessoas e que determina o desaparecimento dos livros sem que para isso tenha existido ordem, decreto ou ação concertada. Apenas o desprezo, a desvalorização do livro. Gostamos de pensar as bibliotecas como um expediente para fugir à morte. Para salvar do esquecimento os homens, o seu pensamento e as suas ações. Não sei como é que o Luís entendia a sua biblioteca. Eu entendo a biblioteca que ele nos deixou como uma preocupação. Uma dádiva. Um tratado de generosidade e de tolerância. Sabemos que os livros, quando a eles nos entregamos por inteiro, nos cegam para o sol que caiu ou para o dia que se levanta, lá fora. Cegam-nos para as pessoas que passam na rua. Para o mais visível que há à nossa volta. Os livros apagam os nossos sentidos para o mundo, mas que outra forma temos para completar a «humanidade inacabada» de que falava Carlos Fuentes? O Luís poderia dizer como Montaigne, «É aqui a minha morada». Vivamos então a casa que ele nos deixou com a mesma urgência e empenho com que ele a construiu.
O artigo que aqui se publica foi pedido a Salvador Santos que, com a generosidade e o amor aos livros que lhe conhecemos, convocou Manuel Viegas Guerreiro em Uma excursão à serra do Algarve e a memória de Luís Guerreiro para escrever sobre o valor das bibliotecas, esses «projetos íntimos». O texto foi inicialmente divulgado nas páginas de Facebook da FMVG e do FLIQ, no Dia Mundial do Livro. Na mesma altura, foi criada a imagem que se coloca abaixo para assinalar a efeméride.
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ESCAPARATE
SINOPSE | «Este livro levanta problemas e conceitos para discutir. O que é leitura pública? O que é público? O que é periferia? Como entender um autor? E, discutindo-os, cria as bases para uma história articulada e sustentada, em que a cultura escrita é feita de objectos e de práticas, de gente e de instituições.», prefacia João Luís Lisboa, na obra que é recomendada pela italiana Casalini Libri como um dos melhores títulos publicados em Portugal no Outono de 2020.
SINOPSE | Quadras de António Aleixo servem de mote a três novelas. Dessa homenagem ao poeta resultaram três escritas diferentes, três universos, três olhares, três formas de escrever a vida por fora e por dentro. E sobre tudo, as camélias, de Clara Andrade, A Búzia de Ana Simão e Tudo boa gente, de Carlos Musga perfazem as três estórias que responderam ao «Concurso de Escrita Criativa Poeta António Aleixo».
SINOPSE | Colectânea de textos de Gonçalo Duarte Gomes publicados ao longo de uma década no jornal Sul Informação, traduz olhares sobre o Algarve, paisagens e mistura de forças telúricas e humanas que as moldam. Evidencia também olhares expressos por imagens, em registos maioritariamente inéditos, de ocasião e oportunidade, captando momentos que, sendo únicos, revelam processos que se repetem. SINOPSE | José do Carmo Correia Martins recupera neste livro o tema da atividade corticeira em São Brás de Alportel no século XIX. Aprofunda-se a verdade histórica do pioneirismo das gentes de S. Brás e das condicionantes que determinaram a perda do protagonismo alcançado na fase inicial desta indústria.
SINOPSE | Barcelona é o encontro do autor com a sua própria solidão, talvez a fórmula que o faz redescobrir tanto do seu passado. Escrito num período relativamente curto, a par do trabalho à distância nas suas empresas e das jornadas de motosserra e máquina de roçar pelas terras da família, visita em cronologia incerta uma vida que parece recuperar-se a cada momento, assim como algumas histórias que há muito povoaram a sua imaginação.
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A LUZ AMADURECE AS PEDRAS E OS
FIGOS NOS LADOS DOS CAMINHOS
GASTÃO CRUZ
« As nossas mãos cheias de frutas, com os
FIGOS brandos, os pendentes
racimos de uvas, as pêras louras e as rubras talhadas de melancia a desfazerem-se em sumo de encontro às faces imberbes... Alguns abocam, arrepanhando brutalmente os frutos, com o jeito cómico de cães esfaimados; aquele chupa demoradamente uma laranja furada; na testa doutro esborracha-se um
FIGO enchario...
MANUEL TEIXERA GOMES
« FOTOGRAFIA: MARINELA MALVEIRO
Duas impressões se fixam no meu espírito para sempre: a noite
extraordinária, a LUZ maravilhosa. A luz sustenta. Basta esta luz para ser feliz. É ela que encanta o Algarve.
FIGOS
É ela que produz os orjais, os coitos, os bracejotes, todos eles amarelos, a estalar de sumo, e destilando um líquido perfumado, e o figo preto de enxaire, que se mete na boca e sabe a mel e a luz perfeita.
RAUL BRANDÃO
POSTAIS
DO ALGARVE
« Tenho no meu quintal uma figueira que não tem grande encanto de roupagem, passa parte do ano sem folhagem e não cresceu bonita nem fagueira. (...) Mas o mais belo que eu encontro nela está numa haste que num gesto amigo tem qualquer coisa para ver comigo e vem trazer-me os
FIGOS à janela.
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E os figueirais – que o SOL beija, radioso, Seus
FRUTOS – dulcerosos ofertando...
MÁRIO LYSTER FRANCO
«
MARIA VELEDA
FIGO
Um é uma dádiva do sol e da terra e da nossa humilde fome, e tudo são figos, ah não comas, não comas nunca nada sem fome. Ouço — aprendi nesses dias a ouvir o melhor da infância: água na língua quando a morte é gémea e se aproxima. CASIMIRO DE BRITO
« Pois nesta aldeia jantei ontem, às horas calmas do sol-posto, com Robalo, velho pescador: uma sopa de sardinha, dourados salmonetes, vinho velho de Alvor,
FIGOS
uvas brancas e inchários dos que têm a pele negra e polpa rosada, doces como mel. JULIÃO QUINTINHA
«
FIGO
Só consigo pensar num maduro, como abri-lo com os meus dedos e tirar a polpa com a minha língua... MARCO MACKAAIJ
POSTAIS
DO ALGARVE
BIBLIOGRAFIA
Brandão, Raul - Algarve. Coimbra : Edição Alma Azul, 2008. Braz, João - Esta Riqueza que o senhor me deu. [S.I] : Edições Sit., 1953. Fundação Manuel Viegas Guerreiro - Festival Literário Internacional de Querença: Catálogo 2016 . Querença : Fundação Manuel Viegas Guerreiro, 2017. Brito, Sérgio - Antologia de Contos do Algarve. Lisboa : Edições Colibri / Arandis Editora, 2020. Cabrita, Fernando - A Cidade e o Mar na Poesia do Algarve. Armação de Pêra : Algarve Mais, 2005. Cabrita, Fernando - 1969 – 1997 Antologia poética. [Vila Real de Santo António] : Comunical, 1997. Camões, Luís Vaz de - Os Lusíadas. Porto : Lello & Irmão, 1991. Cruz, Gastão - Outro Nome. Lisboa : Guimarães Editores, 1965. Deus, João de - Campo de flores : poesias lyricas completas. Lisboa : Imprensa Nacional, 1897. Fonseca, Manuel da - Crónicas Algarvias. Lisboa : Caminho, 1986. Gomes, Manuel Teixeira - Agosto Azul. Lisboa : Seara Nova, 1930. Guerreiro, Cândido - Sulamitis. [Lisboa] : Editorial do Povo, 1945. Júdice, Nuno - A partilha dos mitos. Lisboa : Na regra do jogo, 1982. Lopes, Francisco Fernandes - A figura e a obra do Infante D. Henrique. Lisboa : Portugália Editora, 1960. Mackaaij, Marco - E Se Não For?. Tavira : Canal Sonora, 2015. Oliveira, Alberto Neves de - O Algarve e seus poetas e escritores. Coimbra : [s.n.], 1984. Pereira, António - Poetas de outros tempos e de sempre. In Actas da Poesia nº. 2. Faro: Câmara Municipal de Faro, 1999. Quintinha, Julião - Vizinhos do Mar. Lisboa : Imprensa Lucas & C.ª, 1923. Rosa, José António Pinheiro e - Crónicas, viagens e outras engrenagens. Faro : Edição do autor, 1992. Saramago, José -Viagem a Portugal. Lisboa : Caminho, 1998. OUTRAS PUBLICAÇÕES
Religiões da Lusitânia, vol. II. Lisboa : Imprensa Nacional Casa da Moeda [1988]. Revista Turismo, n.ºs 9-10 (III Série). Lisboa (1961).
Foto de capa das páginas de Facebook da FMVG e FLIQ concebida para a o Dia Mundial da Língua Portuguesa