Notas sobre o retrato e a autorrepresentação do pintor

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Fundação Instituto Arquitecto José Marques da Silva Por ocasião do lançamento do Catálogo virtual da coleção de pinturas do Arquiteto Marques da Silva na sessão História das Pinturas e Pinturas das Histórias

NOTAS SOBRE O RETRATO E A AUTORREPRESENTAÇÃO DO PINTOR


NOTAS SOBRE O RETRATO E A AUTORREPRESENTAÇÃO DO PINTOR 1.

2.

Uma primeira pergunta, talvez excessiva mas necessária: para que

O retrato faz-se por via do rosto, da condição de nós mesmos

serve o autorretrato? Como funciona? Diante do autorretrato, e em

sustentarmos e mostrarmos, também, um rosto. Mas, ao invés do

particular, por exemplo, o de Veloso Salgado, o que é que vemos; o

rosto, ele – o retrato - representa um momento, fixa-o para o fazer

que é que ele ativa? Que experiência ele provoca?

durar, para que ele perdure como testemunho de uma ausência,

Importa pois, mais do que questionar o que é o autorretrato, tentar

testemunho desse mesmo instante, e lugar, onde as aparências

perceber como é que ele funciona, como age para nós, que o vemos

voltam a reaparecer.

aqui e agora? O que é capaz de despertar em nós?

O que se retira da presença anímica do rosto - as aparências -

Sim, antes de questionar o ser (questão ontológica: o que é o retra-

transporta-se para o plano da representação e da visualidade.1

to?; o ser a que se reporta o retrato?, etc.) talvez seja pertinente in-

Trata-se, por isso, para o pintor, de compor efeitos, traços, perce-

terrogar como funciona, como opera o retrato? Qual a sua eficácia?

ções e sensações extraídas à vida do rosto; de converter a presença

Por isso, em vez de indagar a sua substância, procuremos com-

num defeito de presença, ao transformar os vestígios e sinais do

preender os modos pelo qual o designado autorretrato - um retrato

rosto numa aparência verosímil, numa representação.

para todos os efeitos - atua e opera em nós.

O retrato opera, efetivamente, um gesto imaginário da perda (de

Ao vermos este retrato (o auto-retrato de Veloso Salgado) que ex-

luto) que funda e comanda a cadeia destas questões, as quais se es-

periência estética ou novo lugar ele permite compor ou recompor?

tendem ao domínio genérico das imagens. A perda da presença viva

Trata-se, pois, mais do que inferir uma qualquer transcendência,

da pessoa torna-se a razão antropológica do memorial, da efígie

ou um saber extrínseco à experiência visual, de considerar as apa-

funerária e da imago na sua aceção original (a qual se vê reforçada

rências, o que aparece e tende a desaparecer diante do nosso olhar.

na ansiedade do registo fotográfico).

Assim, o que é que faz com que, na minha experiência, exista o

Com efeito, o retrato testemunha a persona, a máscara da pessoa

próprio do retrato e o lugar próprio do autorretrato?

(do gr. prosopon). Ele é o resíduo, indício ou vestígio de uma presença, que se vê convertido num vasto processo de manifestações rituais, religiosas, jurídicas, históricas, sociais, psíquicas, etc.

1, Ritratto; re-tirare, puxar; puxar os traços. Portrait; protraho - nome que abarca inúmeras línguas do espaço europeu: puxar para fora, revelar, desvelar.


Veloso Salgado, “Autorretrato”, ca. 1895, óleo s/tela, 61,5 x 47 cm

3. A perda (a morte) e os seus vestígios (também a angústia e o medo)

No autorretrato de Veloso Salgado podemos verificar, objetiva-

produzem em concreto a especificidade de um lugar (enquanto

mente: uma superfície de tinta, cores amanhadas sobre a tela;3 uma

contexto e visibilidade do retrato). Hoje, esse lugar poderá ser a

experiência estética que se reconhece; um género e, talvez, um

coleção privada, a visão museográfica e a experiência estética. Mas

estilo artístico.

poderão ser outros os lugares. Lugares onde se efetiva a varieda-

Subjetivamente: vejo um rosto, um rosto cego que nos olha, uma

de das funções do retrato e do autorretrato: a memória, o culto, a

persona ou máscara que emerge de um fundo escuro. Imagem con-

representação visual do poder, a reivindicação do estatuto social

fusa de uma pessoa em cuja máscara se focalizam mas também se

e intelectual, a inscrição biográfica, a legitimação do historiador,

deslocam os meus hábitos de ver e de olhar.

a fruição do colecionador, o carácter identitário, social e moral, a

Algo de errado se percebe do lado do deslocamento. Não se trata

versão caricatural, a introspeção, a transfiguração, etc.

apenas do evidente inacabamento, propício à ideia de transformação

O retrato constrói-se deste modo como um lugar de interações

e de resultado transitório, mas sim da divergência entre o aparente

temporais, históricas, sociais, psíquicas e subjetivas, que se con-

rigor anatómico e a desfiguração, isto é, entre o carácter inquietante

trapõe à imprevisibilidade do rosto, à sua emoção pictural. Existe,

das cores, que fazem também o fundo, e esses detalhes – as pincela-

por isso, conflito entre retrato e retratado, e, ainda, entre o retra-

das - que talham, precisamente, os efeitos de luz sobre o rosto.

tista e a imaginação visual de cada época. Conflito entre presença

Na hipótese de um plano afetivo: se ele sou eu, como expressão

e representação, entre identidade e alteridade, entre semelhança e

desse outro que nos interpela, e interpela o próprio pintor, sinto

dissemelhança, entre imitação e transformação.

a rudeza, por certo bastante equívoca, de um carácter intempes-

2

O retrato é, por isso, sempre paradoxal. Ser indício de uma apa-

tivo sobre a camada entrançada das cores saturadas e escuras. O

rição, de um rosto desaparecido e, ainda assim, apresentar a sua

meu olhar desloca-se pelo espaço da tela como que sublinhando o

ausência. Mais do que um objeto visível trata-se de um meio visual.

próprio do retrato: em especial, os gestos e as pinceladas, ou seja,

A sua visualidade permite abrir um fundo de problemas antigos, no

o trabalho do pintor. A sua mão – a do pintor -, não visível, trans-

entanto, bem presentes e atuais. Problemas, direi, de ordem técni-

forma-se assim em órgão do olhar e devolve-nos esses traços que

ca e antropológica, de ordem estética e política.

pertencem, ao mesmo tempo, ao rosto e à pintura. Trata-se, grosso modo, de um esboço, onde perdura – parece-me – a urgência e o fracasso dos traços de um (meu) hipotético e semelhante rosto.4

2, Todo este parágrafo mereceria um tratamento mais exaustivo.

3, Maurice Denis diria mais ou menos o mesmo: «un tableau (...) est essentiellement une surface plane recouverte de couleurs en un certain ordre assemblées» 4, C. Baudelaire diria, muito acertadamente: «Tu le connais (...) – Hypocrite lecteur, – non semblable, – mon frère»


Fotograma de “Film” de Samuel Beckett/Alain Schneider, 1965.

4.

5.

Normalmente, esquecemo-nos que toda a imagem se realiza, como

Partindo da formulação de Berkeley, desenvolvida por S. Beckett,5

uma transformação e uma composição do campo onde ela surge e

em Film de 1965 – esse est percepi, «ser é ser percebido» – podemos

tem lugar.

considerar o autorretrato como um regime de perceção afetiva, que

O autorretrato é, historicamente, o resultado de um processo onde,

está muito para além da visão objetiva-subjetiva através da qual se

em si mesmo, se organiza um dispositivo espacial complexo: um

determina a interação dos olhares e as suas representações.

lugar. Fazer um autorretrato exige um espaço, o cavalete, a tela,

A perceção afetiva acontece quando já nada vemos e nada nos vê,

as tintas, o espelho e o imaginário do pintor. Considera-se, claro,

restando-nos apenas olhar para nós mesmos: para dentro de nós.

o atelier do artista, ou uma outra qualquer disposição, mas a que

O pintor, diante de si, vê e pinta o olhar que se vê a ver e a pintar. Na

outro lugar se destina o autorretrato? Para além de si mesmo, a que

verdade, as mãos confundidas com o olhar interior, tornam-se o

outro(s), realmente se destina?

órgão vidente e sensitivo da pintura.

Essa destinação faz do autorretrato uma imagem que declara, em

O autorretrato do pintor torna-se assim um dispositivo visual

primeira instância, o lugar da pessoa e do pintor...

afetivo. Uma imagem capaz de criar um lugar imanente ao próprio

Porém, ali, no atelier, na intensa materialidade da tela, surge em

olhar. Mas o que pinta esse olhar? Que olhar é esse, o do pintor,

rápidos traços de luz o retrato do pintor, como se, através da sua

senão o próprio afeto da pintura, a própria emoção de ver e pintar.

representação, emergisse a emoção da pintura que o atravessa. Não se trata, portanto, de verificar apenas a relação entre retrato e retratado mas sim de entender a interferência de um terceiro, de um outro, onde intervém o sentido da re-presentação: a sua tensão moral, psíquica e afetiva, que necessariamente ecoa em cada um de nós. A constituição simbólica da auto-representação não se fecha, ela destina-se a ser vista pelo outro, por esse outro que se abre em si mesmo a um devir-outro da pintura e do pintor.

5, Film, realizado por Alan Schneider, traduz o guião do escritor Samuel Beckett, assente na concepção crítica de G. Berkeley. Cf. G. Deleuze, Cinema 1, L’image-mouvement, Paris, Minuit, 1983, p. 97-100.


Veloso Salgado, “Grupo de família Veloso Salgado”, 1911, óleo s/tela, 190 x 241,5 cm.

Veloso Salgado, “Autorretrato”, 1931, óleo s/tela, 60,5 x 50,5 cm.

6. A condição técnica da mimésis exige, na preparação clássica do autorretrato, uma mediação e um terceiro, por vezes incluído na representação: o espelho. Sem espelho como pode o pintor ver-se e pintar-se como um outro? A história do espelho move-se paralelamente ao uso de diversos procedimentos e meios. Por vezes, a imitação (pictural) acerta os seus efeitos e ilusões, justamente, através da inversão especular.6 No gesto do autorretrato, o espelho torna-se o mecanismo reflexivo, o lugar real ou imaginário, a partir do qual se efetua a focagem e o deslocamento dos traços do retratado. Trata-se, portanto, de uma presença invertida que, como um outro, permanece ora familiar ora estranha. Neste jogo de inversões, a experiência do autorretrato pulsa assim como um sintoma do devir-artista. Se cabe ao espelho, na interacção dos olhares sobre si mesmo, produzir a inversão, não pertencerá ao próprio (auto)-retrato a contraposição visual do afecto pictural que mobiliza o olhar da pintura? A maneira pela qual o gesto e o desejo pictural se potenciam na ilusória identidade do pintor? Sintoma pictural, o autorretrato aparece como a expressão de um Honoré Daumier, “O autorretrato”, 1848, litografia.

encontro entre a matéria da pintura, os sinais, os traços do rosto e o lugar da sua potenciação visual: encontro de inversões, onde reside também a historicidade da máscara, da imago, do retrato em cera e da fotografia, por exemplo.

6, Esta é uma lição de Leonardo, mas também de Claude Lorrain.


Lovis Corinth, “Autorretrato e estudos de expressão”, 1910, lápis s/papel.

Lovis Corinth, “A morte e o artista”, 1922, água-forte, 30 x 40 cm.

7. É também verdade que, através do autorretrato, o pintor intensi-

Última nota: Ogni pittori dipinge sè.

fica a sua percepção pictural e imaginal, e, com ela, a perceção de

O célebre provérbio toscano (cada pintor pinta-se a si mesmo) ex-

si mesmo, enquanto agente autónomo, social e profissional. O que

prime, a exemplo do pintor, que cada pessoa, de modo involuntário e

procura então o pintor no seu retrato?

inconsciente, acaba sempre por revelar o seu carácter. O provérbio lida

O autorretrato pode funcionar como um campo de conflitos do

com aspetos morais e, sobretudo, com a componente auto-mimética

pintor consigo mesmo, pode trabalhar como um olhar paradoxal,

onde se espelha a boa e a má conduta, quer ética quer estética.

emocional, de Si mesmo como um outro. Pode, certamente, ins-

No Renascimento, algumas observações críticas a pintores, tais

crever-se como uma investigação onde o Eu ou os múltiplos Eus

como Botticelli, Filippo Lippi, Perugino ou Luca Signorelli, con-

intervêm.

sistiam em denunciar que muitos deles replicavam no desenho das

Por isso, o autorretrato não se experimenta apenas como um lugar

suas figuras os seus próprios autorretratos. Para além das autorre-

para a identidade ou o reconhecimento – um reflexo – mas sim

presentações, que integravam, justamente, as suas composições,

como uma pesquisa que visa uma transformação profunda desse

a acusação denunciava que esses artistas escolhiam e utilizavam

mesmo lugar: ser o pintor a própria pintura.

fórmulas, repetindo e abusando daquilo que hoje podemos definir

É no rosto do pintor, no olhar que o suporta, que existe a pintura.

um estilo pessoal.

Nele acha-se a potência de fazer, bem como de não fazer, a pintura.

É certo, cada pintor pinta-se a si mesmo na medida em que a sua

Esta possibilidade opera, tal como o pintor, um campo de relações

disposição psicológica o força a escolher o seu tipo ou modelo par-

estéticas onde formas e emoções disputam o sentido das aparên-

ticular. Leonardo debatia-se precisamente, contra este estado de

cias. É, pois, no próprio desse outro, nas semelhanças e diferenças

coisas, contra os pintores que faziam uso de modelos e tipos figura-

que recria para si mesmo, que o pintor experimenta o encontro

tivos, replicando-os sem invenzione.

7

com a emoção da pintura.

7, Tal como G. Flaubert teria dito um dia: «Madame Bovary c’est moi».


Albrecht Dürer, “Autorretrato quando jovem”, 1484, grafite s/papel.

Na mesma época, Savonarola afirmava que ogni dipintore dipinge se medesimo. Non dipinge già sè in quanto uomo, perchè fa delle immagine di leoni, cavalli, uomini e donne che non sono sè, ma dipinge sè in quanto dipintore, idest secondo il suo concetto. [«Cada pintor pinta-se a si mesmo. Não se pinta apenas enquanto homem, porque faz imagens de leões, cavalos, homens e mulheres, que não são ele mesmo, mas pinta-se enquanto pintor, ou de acordo com o seu conceito».] 8 Leonardo preferia acercar-se do concetto e do giudizio como intenção, dita mental, de não se imitar, de não ceder ao auto-mimetismo e aos seus efeitos. Procurava a todo o custo diversificar, variar e inventar. Contudo, parece que o próprio Leonardo caía no mesmo erro. Pois, para lá dos seus inúmeros esforços, experiências e teorias, constata-se um paradoxo: não se imitar a si mesmo não será

Francis Bacon, “Autorretrato”, 1971, óleo s/tela.

Sabemos que Dürer, por exemplo, não hesitou em eleger o seu próprio corpo como modelo e referência, e nos seus autorretratos procurou aproximar-se de uma configuração piedosa e transcendental, replicada da imago mística de Cristo. Muitos outros casos na arte europeia suscitam esta divergência: ora avessos, como Leonardo, ora propícios, tal como Veloso Salgado, à representação de si mesmos.9 Hoje, por entre as aparências do Eu, os despojos da identidade e a genialidade de outrora, o artista contemporâneo procura descobrir, por entre a multidão dos rostos anónimos, esse outro lugar de si mesmo: lugar reminiscente não dos traços singulares do indivíduo mas, talvez, dos traços de uma comunidade e de uma emoção comum. Vítor Silva Porto, 18 de Maio de 2017

um modo próprio de expressar-se a si mesmo? Leonardo deixou-nos um hipotético autorretrato - não confirmado pelos historiadores e demais especialistas - e esse talvez seja, com a dúvida que persiste, o legado misterioso da sua intransigente recusa auto-mimética.

8, Girolamo Savonarola, Prediche sopra Ezechiele, ed. Ridolfi, 2 vols., Rome 1955, I, 337-352, 343 (Predica XXVI; in the edition of Venice 1517, fol. 71v), apud Frank Zöllner, «”Ogni pittore dipinge sè”. Leonardo da Vinci and “automimesis”» in Winner, Matthias (ed), Der Künstler über sich in seinem Werk. Internationales Symposi- um der Bibliotheca Hertziana, Rom 1989. Weinheim, 1992, p.137-160 (nossa tradução).

9, Há inúmeros exemplos: Rembrandt, Lovis Corinth, Max Beckman, Frida Khalo, etc.



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