Obras completas volume 1

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Fabiano Viana Oliveira

OBRAS COMPLETAS (tempos obscuros)


Direitos autorais, capa e diagramação FABIANO VIANA OLIVEIRA


Fabiano Viana Oliveira

OBRAS COMPLETAS (tempos obscuros)

Salvador 2016


OLIVEIRA, Fabiano Viana. OBRAS COMPLETAS tempos obscuros. Salvador: Edição do Autor, 2017. 968 p. COPYLEFT 666 1. Romance brasileiro. 2. Coletânea.


Sumário ARPEJO - 006 A SUA HASTE MAIS CURTA - 225 24/09/97 MONSTRO EM MIM - 427 MORTE DO INDIVÍDUO OCULTO - 797 TORTURA A.B.I. E AS VÍSCERAS DA SAMAMBAIA - 837 TRUE BELIEF IN THE GRAPE MOUNTAIN 943


ARPEJO Quando acordamos suados e tensos à noite, sem lembrar com clareza com o que sonhávamos, é o momento em que nossos instintos mais primitivos clamam por satisfação... É o que sem o nosso conhecimento nos faz fazer coisas sem se saber porque... Provoca culpa, orgulho e depressão... É a fuga da corrente humana... Dedico esta obra à confusão e à incerteza... nos levam a querer conhecer a nós mesmos; cada vez mais!

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Choque e lei A beleza do nascer do sol começa a iluminar o Jesus. A singela estátua que vislumbra o mar da Barra durante noites e dias. Os raios surgidos no horizonte, rasgando o oceano ao longe, começam a iluminar cada parte do Cristo em mármore. Primeiro a cabeça e vagarosamente descendo à medida que a luz vai subindo, passa pelo corpo, os pés e finalmente chega ao chão: o gramado onde a estátua repousa; no alto de uma colina que de um lado alcança o mar e do outro a avenida. Mas naquela manhã, algo mais que a grama e a estátua “ornamentava” o nascer do sol da Barra... Era um corpo. Suas vísceras expostas e o sangue já coagulado, manchando boa parte da grama e da estátua, dificultavam o estabelecimento do sexo. Era branca, a pessoa, podia-se ver pelos membros, únicos salvos das atrocidades. O cabelo era longo, na altura do ombro, mas não se podia ter certeza com tantos jovens hoje usando cabelos compridos. Somente algum observador atento, especialmente um policial, poderia e deveria se aproximar para ver de perto e identificar o sexo daquele corpo. E seria muito difícil, 7


para qualquer pessoa, mesmo um policial, chegar tão perto de tal horror. O rosto, a marca pessoal que diferencia cada ser humano do planeta, também não foi poupado. Ele, como boa parte do corpo, era uma mancha de sujeira vermelha e mal cheirosa, esparramada aos pés do filho do divino criador.

2 5:15 da manhã. O sol começa a atrair as pessoas que querem manter a forma. Pessoas vindas de toda a cidade aportam na Barra todas as manhãs. Elas correm, andam de bicicleta, caminham, se exercitam... Pessoas de todas as idades: velhos que não querem envelhecer, adultos que querem se manter jovens e jovens que querem continuar jovens. Especialmente nesta época: é setembro, a primavera está começando e um lugar quente como Salvador pede que as pessoas mostrem o corpo no verão... E todos querem se mostrar jovens. Expor as suas belezas interiores através de um exterior bem cuidado. Correndo desde sua casa, em Ondina, bairro vizinho à Barra, seguindo a orla, uma jovem de vinte e um anos é a primeira pessoa atenta o suficiente para notar o corpo deitado ao sol, no 8


gramado, abaixo da estátua do Cristo. Talvez fosse uma falha cruel do destino que a fizesse ser a primeira a entrar em contato com tal coisa... Ela parou de correr, não de súbito - ela sabe cuidar do corpo e sabe que não deve parar de correr de um momento para o outro. Ela mantém um pouco o ritmo e o vai diminuindo à medida que se encaminha para a colina... Andando, ela começa a ir em direção ao gramado. São uns trinta metros da calçada da avenida até a estátua. Ela se aproxima um pouco tímida. Achava que devia ser um mendigo dormindo ao relento, como muitos na cidade, mas tinha que averiguar... Uma curiosidade além do controle a havia tomado, e a cada passo aumentava. Ela estava a uns oito metros quando avistou a primeira mancha de sangue na estátua. Sua primeira reação foi se virar e ir embora, mas queria ver mais. Confirmar o que sua mente já imaginava... Ela deu mais três passos e lá estava: era uma pessoa morta, e mais que isso, estava completamente dilacerada por uma selvageria não humana. Ela pôs a mão na boca. Só tinha tomado um suco de laranja antes de sair para correr e por isso sentia como se fosse colocar seus órgãos internos para fora. Ela fecha os olhos e põe a outra mão no estômago. A visão ainda estava em sua mente, como 9


uma fotografia. Foi quando uma inoportuna rajada de vento levou do corpo em sua direção aquele terrível cheiro de carne exposta, e nesse momento ela não resiste: vomita o que comeu e o que não comeu. O mal-estar era tão grande que ela sentia convulsões no ventre. Seus olhos se encheram de lágrimas com a terrível sensação. Nunca vira um corpo (morto) antes e tal visão estava muito além do que aquela jovem garota poderia imaginar... mas infelizmente, estava ali.

3 Os policiais a cercavam. Mesmo com toda sua beleza ela nunca tinha recebido tanta atenção. Seus olhos avermelhados ainda demonstravam seu choque com a cena de vinte minutos atrás. Seu estômago se contorcia toda vez que relembrava a fatídica imagem. As perguntas surgiram ao seu redor, feitas pelos policiais. Mas ela não tinha capacidade de manter a atenção... • Você viu alguém por perto ? • Você conhece a vítima? • Como disse ser seu nome? - Todas essas perguntas soavam como ecos nos ouvidos da trêmula garota. Na mente dela ainda havia a pergunta, vinda 10


de seu íntimo: “Como alguém pôde fazer isso?”... • O nome dela é Carolina! - A voz vinha de trás o círculo de policiais. Ela levantou a vista e na sua frente apareceu um rosto familiar e amigo. • Luciano... - Ela se levanta e o abraça, como se procurasse um refúgio de toda aquela conturbação. • O senhor a conhece, detetive? - Ela o soltou e o olhou em seus olhos... • É uma velha amiga. • Foi ela que achou o corpo, senhor. - Ele olhou para ela lembrando da imagem da garotinha que conheceu anos atrás. • Eu sinto por você ter de assistir tal coisa, Carol! - Havia sentimento no que o jovem detetive da Polícia Civil dizia, mas também uma certa dureza; talvez necessária para conviver com tais atos durante um dia de trabalho. Com a voz trêmula e insegura, ela fala: • Não sabia que tinha chegado a detetive, Lu! • Só tem alguns meses. • Como alguém pode fazer isso com outro ser humano!? • Eu sei qual é a sensação... Não acredito que você precise ficar aqui já que não viu nada. - Ela suspira de gratidão. • Eu vou levá-la pra casa e volto em seguida. Não mexam no corpo até eu voltar. A polícia técnica 11


deve estar chegando. • Sim, senhor. - Luciano pega Carolina pelo braço cuidadosamente e a conduz até o carro. Na mente do policial muitas perguntas surgiram. Não era só o assassinato que ele começaria a investigar. Ele olhava para aquela linda mulher, com um corpo escultural, usando malha de ginástica e tentava ligála com a moça que conhecera quando estava na academia de polícia... Lembrava dela como a irmã mais nova de um colega de treinamento, cuja casa frequentava tanto que terminou por ficar amigo de toda família. Ele observava o silêncio, a beleza e a consternação dela e sentia que a visão daquele corpo a havia afetado muito. Suas memórias eram todas de uma mera garota de colégio, mas o momento mostrava uma mulher que o deixava intrigado e curioso. Eles chegaram em frente ao prédio onde Carol mora: • Obrigado, Lu. Eu espero que achem o monstro que fez aquilo. • Não se preocupe. Uma coisa daquela não vai virar rotina aqui em Salvador... Não enquanto eu estiver aqui. - Ele falava como nos filmes americanos, que ele e o irmão dela tanto gostavam de assistir enquanto estavam na academia. Não era uma influência muito realista, mas o jovem detetive de vinte e oito anos parecia saber o que estava fazendo. 12


Uma fachada séria, própria de um policial em serviço, dava uma certa credibilidade às palavras de alguém que Carolina havia conhecido como um simples rapaz brincalhão; o melhor amigo de seu irmão. Ela deu um sorriso meio morto antes de sair do carro e entrar no prédio. Luciano a acompanhou com o olhar por alguns segundos antes de partir. Ele sabia que não iria precisar dela na investigação que estava por vir, mas aquele corpo o chamava para perto da irmã de seu amigo morto há mais de dois anos: Cristiano.

4 De volta à cena do crime, Luciano vê uma roda de curiosos em torno do corpo, que já começava a cheirar muito mal... • O pessoal do “Nina” ainda não chegou, detetive. O que a gente faz? • Cubram o corpo e tirem esse pessoal daqui. Os policiais cobrem o corpo disforme com um lençol. As pessoas ao redor olhavam com curiosidade, medo e nojo. A maioria morava nas redondezas e temia por ver coisa tão repulsiva ser encontrada ali. Com o seguir da manhã todos foram se dispersando, principalmente depois que a polícia técnica e o pessoal do Instituto Médico Legal 13


chegaram e se encarregaram de levar o corpo. Só restaram as manchas de sangue na grama e na estátua. Todos olhavam e imaginavam como aquilo poderia ter acontecido.A morbidez parecia ter chegado à cidade de Salvador, onde até esse momento só se falava em festa e sol... Luciano olhava a cena do crime e via mais que um simples assassinato. Havia algo de morbidamente novo nos ares da Bahia. Algo além dos olhos...

Presente Outra presença observava a cena final daquele terrível crime. Seus olhos, diferentes dos outros, não viam só manchas de sangue cobrindo o local onde estava o corpo dilacerado. Ele vê o acorde final de uma música que ele mesmo começou a tocar na noite anterior. Uma leve lágrima se forma em seu rosto enquanto ele olha fixamente aquela borra de sangue. Ele começa a rever passo a passo seus atos. O começo do arpejo. Noite. Ele vê a sua vítima se aproximar... Para o carro em frente à sua casa. Os olhos na janela acompanham todos os movimentos. O plano já estava em sua mente. Era insano. Mas ele sente poder com a insanidade. A hostilidade dentro dele era como uma droga; dando-lhe poder, incentivando-o e eventualmente, viciando-o. A porta é aberta... 14


Nesse momento ele volta sua visão para o mar. A lembrança da noite anterior é somente um eco de um arpejo de violência que ele não conseguiu controlar. A vida deveria ser mais do que aquilo. Alguma coisa tinha que restar após todo aquele retardo. Ele vê a calmaria do mar e a quer sentir, mas não pode.

O Corpo Luciano já havia presenciado muitas autópsias. Além de ser policial investigador, fez curso de um ano no Instituto Nina Rodrigues sobre polícia técnica. Não se compara a algo do porte do FBI, mas um exame de corpo delito podia revelar muitas coisas durante a investigação de um crime. E nesse caso, qualquer coisa seria melhor do que o que já se tinha... O que era nada, pois nem o sexo da vítima se conhecia ainda. O doutor Manoel Azevedo começa a fala no gravador enquanto percorre aquele pedaço de carne que um dia foi um ser humano. Luciano e mais dois policiais assistem atentos: • A vítima é branca. Tem um metro e 63 centímetros de altura. O peso deve estar em volta de 57 quilos. Observação preliminar do envelhecimento dos órgãos internos indica uma idade aproximada entre 19 e 25 anos. Nota: reconhecimento claro 15


de um útero. A vítima é do sexo feminino... O legista continua sua análise inicial. Luciano olhava atento. Muito do que era dito era irrelevante para o caso. A não ser pelo fato de se saber que era uma mulher e jovem, dizer que ela foi morta com extrema violência e crueldade era desnecessário; até mesmo para quem encontrou o corpo pela primeira vez... E era nessa pessoa que Luciano pensava naquele momento. A lembrança de Carolina abatida ao seu lado, no carro, ainda naquela manhã, vinha em ondas; junto com a visão dela própria, como mulher. Ele não conseguia evitar esse pensamento, mesmo vindo logo em seguida a lembrança do irmão dela, seu amigo, Cristiano, morto, abatido por um traficante durante uma invasão. E também a visão seguinte, que aparecia à sua frente, real e clara: aquela garota que fora morta pelo monstro assassino que agora rondava a cidade sem controle. • ...Os dentes foram arrancados junto com partes do rosto. E as pontas dos dedos foram cortadas. Isso torna impossível uma identificação. Só sobrando algum sinal particular que precisa ser reconhecido por alguém próximo. As avaliações químicas devem demonstrar algo mais através dos seus resultados. Nota: as unhas dos pés são pintadas com esmalte de boa qualidade. Sugestão de procurar em pessoas desaparecidas para possível 16


identificação da família. Nota final: seja quem for que fez isso sabia exatamente como ocultar os meios de identificação. Sugere força, frieza e meticulosidade. O doutor desliga o gravador e retira suas luvas. Mesmo com toda sua experiência ele parecia afetado por uma visão tão chocante. O humor negro presente nessa classe de profissionais tão obscura a Medicina Legal - parecia ter sucumbido diante de tais atrocidades contra a fragilidade humana. Luciano e os outros dois policiais olham com visível frustração o corpo que estava sendo encaminhado para as geladeiras. Não havia muito por onde começar. A criatura louca que tinha feito aquilo não tinha deixado traços visíveis. Seria no “tato”. - Eles pensavam. Na mente de Luciano voltava a aparecer Carolina. Parecia até uma compensação. Ele tinha um corpo dilacerado pelo assassino monstruoso. Tinha a investigação às cegas para conduzir. Mas em compensação ele tinha aquela linda mulher que não lhe saía da cabeça. E junto com a lembrança do amigo morto, poderia ser a oportunidade de um novo começo.

Lágrimas do passado no presente O telefone toca na casa de Carolina. São oito da noite e sua mãe atende com voz séria: 17


• Carol, por favor. - Diz o interlocutor. • Ela não está falando com ninguém. Hoje de manhã ela... - Mas a voz a interrompe. • Eu sei dona Carmem. Aqui é Luciano. Eu estou encarregado do caso. • Ah! Olá, Luciano. Como você está? • Não muito bem. Todos estão abalados... • É... Eu ouvi no noticiário sobre o corpo. E Carol falou da coisa horrível que ela viu. • É por isso que eu estou ligando. Eu a deixei em casa hoje de manhã e queria saber como ela estava. • Ela me disse. Eu agradeço o que você fez. • Nada... • Mas ela passou o dia muito abalada. Não foi à faculdade, nem ao estágio. Muitos amigos dela ligaram, mas ela não quis falar com nenhum. • Talvez ela queira falar comigo. A senhora poderia perguntar? • Está bem...Mas... Ela não vai ter de se envolver com isso, vai? • Eu acredito que não. Ela só fez, infelizmente, encontrar o corpo. • Nem me fale... Eu vou falar com ela. Só um momento. A mente de Luciano ainda estava consternada com a frustração que passara durante o dia. Ele queria 18


- além de saber como Carol estava - ouvir uma voz de um passado suave, quando era apenas um cadete da polícia; uma voz, que naquela manhã também tinha uma fonte que ele não podia evitar de se sentir atraído. Mesmo tendo na memória Cristiano e o corpo dilacerado, agora congelado em uma das gavetas do “Nina”... Ele sente. • Alô, Luciano. Aqui é Carol. • Oi. Que bom que resolveu atender. Como se sente? - A voz dela estava arrastada. Como de alguém que saísse do coma. • Hum! Horrível! - Ela se olha no espelho da sala e pensa que está horrível de mais de uma maneira. Mas também, Luciano não a via.- Será que eu posso fazer alguma coisa pra ajudar? • Não sei. Você sabe fazer lavagem celebral? Ela tenta rir da própria piada. Foi infeliz... • Eu imagino como se sente. - Ele queria segurar a conversa, mas não sabia o que dizer. Felizmente ela quebrou o silêncio. Mais por atenção ao interesse de Luciano que ao próprio, ela pergunta: • Descobriram alguma coisa? • Bom ... Descobrimos que era uma garota por volta de 20 anos... • Ai, meu Deus! - Subitamente Luciano se lembra que está falando com uma. 19


• Desculpe, Carol. Eu queria poder ter te poupado disso, mas saiu. • Tudo bem. Eu perguntei... • Escute... Uma coisa que eu aprendi é que se fechar não vai tirar as lembranças da cabeça. Volte à sua vida normal.. Você está saindo com alguém? • Não. • Então procure alguém. - Luciano se segurou para a frase seguinte. Mas a disse, tentando ao máximo ser natural. - fale comigo se precisar. • Eu não sei. • Desde que seu irmão... Bom; tem tanto tempo que nós não nos vemos. Eu deveria ter ficado perto de vocês quando tudo aconteceu, mas preferi me isolar e me dedicar ao trabalho. Hoje eu sinto falta. E sinto mais ainda pelo reencontro ter sido numa circunstâcia tão... terrível. • Talvez você esteja certo. Me agarrar ao sombrio só me faz sentir pior. • Isso. - A chama da esperança surgia naquela fraca voz... Mas: • Passe aqui amanhã e jante conosco. - Encontros familiares não eram do agrado de Luciano, lembravamlhe sua própria família... mas já era uma possibilidade. Algo mais do que ele tinha no momento: ele próprio. • Tudo bem, Carol... tente passar uma noite 20


tranqüila. Eu te vejo amanhã. • Obrigada, Luciano.. Por tudo... Eu me sinto um pouco melhor. Fico feliz que tenha ligado. - Ela conseguia liberar um sorriso, finalmente; arrastado como a maré. Era quase uma terapia. Se despedia de Luciano e olhava ao redor sem saber muito o que fazer. Todo aquele dia parecia ter sido uma travessia; sentia um terrível peso no corpo: era a própria consciência... Voltou para o quarto. Luciano estava quase radiante ao desligar o telefone. À sombra de um assassinato, provavelmente insolúvel, e da lembrança de um amigo morto aos seus pés, ele via a possibilidade de ter ao seu lado uma mulher muito especial: alguém que pudesse, junto com ele, juntar os pedaços de uma vida confusa e com o sórdido direcionamento para o lado mais escuro do ser humano; o que chamam de crime... Um policial.

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Na cama, durante a madrugada, Carol ainda não dorme. Ela realmente se sentia melhor após falar com Luciano, mas ainda não conseguia conter a tristeza. Era como uma gripe, que a derrubava, mesmo ela querendo se erguer: a visão do corpo aos pés do cristo. A lembrança do irmão mais velho morto. A imagem da vítima... uma garota como ela, 21


podendo até ser ela em outra circunstância... Ela não podia evitar. Carol chora de dor em silêncio. Era uma tristeza sólida, que nunca tinha sentido antes. Algo que parecia surgir além do seu corpo e de sua mente: uma incontrolável vontade de se deixar levar pela mesma corrente que dolorosamente trazia as suas lágrimas. Eram lágrimas!...

Só um O suor escorre pelo seu rosto. As imagens se agitam em sua mente enquanto seu organismo conduz os atos. São poucos os momentos que o levam do prazer à melancolia. Por que tem de ser assim? A solidão do seu quarto o rodeia enquanto seu corpo se contorce. Ele tenta se convencer de que é normal, mas uma raiva de si mesmo, de sua incapacidade ou hostilidade, o domina nos momentos finais. Ele sente o salgado do próprio suor da boca. O cheiro singular se espalha pelo quarto. Duas imagens femininas se revezam em sua mente agora. Uma de um passado recente e outra do presente vivo. Não há culpa ou pecado, só frustração. É uma energia subtilizada. Seus movimentos aceleram. É bom. É triste. É grotesco. Será que elas já fizeram também? - Ele pensa... É doloroso estar sozinho. Ele teme pela própria sanidade. A 22


hostilidade pode um dia lhe dominar por completo e aí não haverá volta. Ele deseja. Ele quer. Ela está em sua mente agora. Cada lembrança se consolida naquele momento final. Ele sente. A sombra atrás de tudo. Frustração. Incapacidade. Rejeição. Um lampejo final e ele termina. Seu rosto é desolado. Ele se imagina agora. Não é um ser humano. Não é um homem. Não é nada. Ele tenta se recompor e afastar os pensamentos. Mas ele sabe que tudo estará lá na próxima vez. Ele não sabe por quanto tempo vai suportar isso até explodir de novo. Hostil. Doce. Triste. Como um fotograma de cada momento de sua vida: ele está só.

Difícil retorno Voltar à faculdade parecia um ato heróico depois do choque do dia anterior. Carolina está no terceiro ano do curso de Publicidade da Universidade Católica do Salvador. Era o que se podia chamar de começo de vida integrada: estudar Publicidade, uma profissão em ascedência. Fazer estágio em uma das maiores agências do estado... Ela gostava da vida que parecia vir à sua frente... mas naquela manhã, entrar no carro, olhar para frente, conter a tristeza, viver, pareciam barreiras a serem transpostas. Sua alegria de viver parecia consumida pela forma como um 23


monstro usou da fragilidade da vida para destruir um ser humano. E daquele modo... E de certa maneira, tão próximo dela própria. Talvez por nem ter sido possível reconhecer as feições daquela pessoa, de tão massacrada que estava, a proximidade parecia ainda maior. Como num pesadelo, em que o personagem se torna o espectador e vice-versa... Ela sacode a cabeça fazendo seus cabelos negros e longos, pesados de molhados, baterem em seu rosto; era um lembrete: ela ainda está viva. Não foi ela quem morreu. Quer continuar assim... Finalmente liga o carro e vai embora. Chegando ao campus ela estaciona o carro. Já está cheio. Ela está consideravelmente atrasada. Não é do seu feitio, mas considera-se perdoada... Quase todos os seus amigos já deveriam saber do ocorrido. Além do noticiário, sua mãe atendeu vários telefonemas do dia anterior e contou o fato...Ela caminha devagar. Não tem muita certeza de como deve agir. Tenta se manter normal, casual. Mas estava difícil. Algo de anormal ou anti-ético parecia afetar o comportamento de qualquer um diante daquela situação... A atitude certa simplesmente não existe. Por um segundo ela deseja que fosse uma pessoa totalmente ignorante e alienada, assim não seria tão afetada... Com certeza! Ela entra calada na sala. Olhos a fitam e ela os sente. Um olhar em especial se mantém fixo mais que 24


os outros; como vem fazendo nas últimas semanas. Ela tenta não encarar ninguém, ainda. Se sente um pouco nua com tanta atenção. Mas o olhar fixo daquele que mais a olha, ela não pode evitar de encarar. É após alguns segundos que ele cede, envergonhado e deslocado, desviando o olhar. Carol conhece. Ela sabe. Mas hoje não era dia.. talvez ele não soubesse. Mas os que sabiam não lhe pouparam alentos na primeira oportunidade... Obrigação e/ou prazer; não importava: cada um, inclusive o dono daquele olhar, se sentia agradavelmente abalado pelo momento de Carol... Todos estão ao seu redor. Eles revezam palavras de conforto. Perguntas difíceis de responder. E consternação pela violência do mundo... Milhares de pessoas morrem a cada dia, mas a dor só é sentida quando a pancada é muito perto: é um fator humano, auto defesa... Carol tenta se manter firme. Recebendo toda aquela compaixão, as sensações davam voltas como numa montanha russa. De um certo modo ela se sente bem por saber que tem tantos amigos e que eles se preocupam com ela. Talvez Luciano estivesse certo. Mas provavelmente iria demorar um pouco para poder apagar aquilo da memória. Talvez nunca... Ver toda aquela afeição ao seu redor, lembrar da atenção de Luciano no dia anterior, sentir cada dor daquele dia; tudo faz Carol sentir que ainda merece a vida, 25


mais do que nunca... Aquele corpo ainda chocava sua memória, mas também lhe dava vontade de viver. O resto do dia transcorreu o mais normal possível. Em uma certa hora no meio do dia ela foi ao banheiro e sentiu vontade de chorar: não foi até o fim... Não sabia porque queria chorar. Não sabe porque não o fez. Era realmente um retorno difícil. “Como um dia pode ser tão diferente do outro!” É apenas uma garota de 21 anos. Teve um mórbido despertar para um outro lado, obscuro, da vida. Era estranho. Era triste. A vida parecia passar à sua frente enquanto aquele dia passava. Podia parecer um dia como outro, mas todo mundo era diferente. Tudo era diferente... Ela estava diferente. Um recomeço seria o mais apropriado, mas tudo exigia tempo; até o próprio tempo que Carol passava: o da tristeza, confusão e inconfluência. A volta à faculdade foi difícil, mas já estava melhor. Ainda tinha o estágio à tarde e estava indo embora. Voltando para o carro ela pensa em seus amigos. Um leve espasmo a atinge no estômago. Ela ainda estava confusa com toda aquela mistura de lembrança mórbida e fraternidade. Naquele momento ela só queria seguir em frente: como de manhã antes de sair, ela sacode a cabeça. O gesto de alívio teria que vir. Tempo em tempo. Enquanto ela estava no carro não notava aquele 26


olhar fixo nela, novamente. Ela tinha motivos para não notar, após um dia tão incerto...Mas ele a nota. E a deseja. Não muito tempo atrás... na verdade parece ter sido agora: ele está apaixonado e como no passado, foi rejeitado. São os olhos de alguém com problemas. Ela gosta dele, mas há coisas que não se pode forçar... Ele sabe, mas não para de sentir. É uma pena haver tanta dor num coração tão jovem e são esses os corações que sempre sofrem mais... Fernando vai para casa, mas sua mente está num mar; se afogando em dor, desespero e solidão. “Carol!”- Ele pensa.

O início de uma nova canção Carol atende à porta. A visita já esperada a recebe com um sorriso amigo no rosto. • Lu. Que bom ver você! - Ela estava realmente alegre. • Vejo que está bem melhor. - Seus olhos a percorriam enquanto ele entrava. • Sem dúvida. Você estava certo: voltar à vida normal foi o melhor remédio. • Eu não disse! - Luciano era um policial e sabia usar seu poder de observação. Ao cumprimentar os pais de Carolina, logo notou o quanto a presença dele os faziam lembrar de Cristiano. Não os via desde 27


o enterro do filho, mas eles pareciam os mesmos: cordiais e familiares. E emotivos até certo ponto com a presença de tantas lembranças que ele trazia. Carol demonstrava ainda muita confusão por trás daquele véu de alegria e receptividade. Ele imaginava como aquela imagem da manhã anterior deveria estar sendo reprisada em sua cabeça. Deixando-a sempre muito perturbada... Perturbava a ele, que já devia estar acostumado com tal violência... Ele sentia que havia uma alma quebrada dentro daquele corpo tão expressivo. Corpo que também não parava de deixá-lo admirado com tanta perfeição. Luciano a conhecera franzina e pequena. E agora ela tinha uma forma atlética e firme. Não devia passar de um metro e 65 centímetros, mas era todo um conjunto perfeito. Por um momento ele se pega tendo pensamentos que ofenderiam até mesmo seus colegas policiais; todos acostumados com todo tipo de perversão e baixaria. Também era um policial, mas ao rever aquela família, que nos anos de academia era a sua família, ele chega a se repreender pelos seus pensamentos; assim podendo seguir o resto da noite com um mínimo de paz no seu interior e no deles também. Na mesa de jantar: • Vocês já têm alguma pista? - Perguntou o pai de Carol. 28


• Infelizmente não. Os... - Ele olha para Carol, para sua mãe e em seguida para a comida à sua frente. Ele ia dizer, com naturalidade, que os dedos e os dentes da vítima tinham sido arrancados; mas ao invés, prefere amenizar o assunto... se podendo, até extinguindo-o. • ...A identificação não foi possível. Estamos à cegas. • É uma pena... Um maluco desses por aí!. - Luciano nota Carol baixar a cabeça. Aquilo visivelmente a incomodava. • E aí Carol; você está na faculdade de que mesmo? - Levantando o rosto e mudando levemente a feição, ela responde... Luciano ficava satisfeito por poder se livrar daquilo. Não era apenas por querer aliviar a pressão sobre Carol: a mudança de assunto tinha afetado todos à mesa. Era um conforto voltar para o mundo seguro em que todos pairam longe de uma selva interior que afeta a tudo... Também ele queria se livrar do desconforto de falar sobre um caso sem pistas, que além de pôr à prova a própria competência dele e da polícia, atingia pontos intocados do comportamento humano: algo chamado de mal, mas puramente era relativo ao próprio homem... Afirmar que a situação tinha fonte na possível incapacidade da polícia era uma defesa de cada elemento: se agarrar 29


ao ponto mais próximo antes que a “onda” o atinja... É uma terra onde a imagem da polícia é maculada por corrupção, conformismo e alienação diante de uma violência já existente... Esse meio de defesa de cada um perante a instituição dava certa revolta em Luciano. Mas ver a mudança daquelas pessoas à sua volta para um estado de maior conforto por fugir de um assunto vigente, dava uma visão de ambos os lados daquele mesmo momento... Outro mundo, talvez... Ele lembra do corpo no Nina Rodrigues: também estava incomodado; não parecia ser uma atitude tão revoltante, afinal, apenas uma escolha, fazia parte da mesma vivência: se sentir humano... Seus olhos encontram os de Carol. Não era apenas uma vez... É o recomeço que ele procurava... No estacionamento do prédio, mais tarde, Carolina se despede de Luciano. Havia uma evidente hesitação em ambas as partes. Aquele reencontro tinha sido bom para os dois. Ele via a alegria voltar ao rosto de Carol aos poucos; fazia-o se sentir bem por saber que tinha feito parte daquela mudança de estado. E também ela... • Eu... Eu queria ver você novamente, Carol. Será que você gostaria? - Seu rosto corou um pouco. Pôde-se notar mesmo embaixo da luz fraca do estacionamento. 30


• Eu adoraria Luciano! Apesar do modo tão horrível, nosso reencontro foi muito bem vindo. • Você não sabe como... Bom... - Ele se curva para beijá-la no rosto. Tinha vontade de mais, e ela também, mas um clima nostalgicamente triste ainda os envolvia... Os dois teriam tempo! - Eles pensam. Luciano parte sob o olhar de Carol. Um entusiasmo a invade. As boas lembranças de seu irmão vêm à sua mente. Talvez Luciano fosse a resposta para uma fase mais completa de sua vida. Pela primeira vez desde o terrível acontecimento do dia anterior, ela sente a leveza novamente em seu corpo e também não deixou de sentir uma leve excitação por Luciano. Era realmente um recomeço. - Ela pensou.

2 No carro, Luciano não podia conter o entusiasmo. Dirigia rápido. Estava alegre. Era difícil para sua mente de policial se desligar do caso para uma coisa pessoal, mas era o que tentava fazer. Tentaria não ter humor negro por um tempo. “Corpo morto!... Corpo de Carol!”- Era difícil. Sua vida estava presa ao crime. Era um momento de reflexão barata. Ele ainda sorria. Estava diante de um novo momento. E ele queria muito desfrutá-lo. Por um instante, ele 31


se esqueceu de tudo... Só estava em sua mente a transposição que ele vislumbrava à sua frente: uma nova vida, talvez!

Estado Puro Um jovem misterioso, no âmago de sua solidão. A noite escura e úmida, a caminhar, levando a mente a pensar nenhum pensamento específico. Na torrente da chuva passada se lembra do que já se foi, uma vida desperdiçada, dolorosa e de real vivência com o sentimento de angústia... A presente e constante depressão em sua vida. Chega ele em casa; para quê?... Nada a esperar, nada novo, o que estava de manhã, está na noite e estará no dia seguinte. Sua cama em impecável bagunça; para que arrumar se a noite irá fazê-la desarrumada novamente. Onde ir... cozinha de cheiro insuportável, próximo a corpos em putrefação, que ele se acostumou como se fossem rosas em campos floridos? Fascina-se, olha-se no espelho quebrado e vê sua realidade; “em pedaços”; tudo é isso. Ele é assim. - “Eu sou assim?”- sendo somente o que sempre foi: um nada menor que a própria existência insignificante do homem da Terra. “Para quê?” Mais uma vez. Ao 32


quarto de volta em movimento enigmático de nunca pisar no meio entre a sala e o quarto, como se para passar aquilo ele tivesse que saltar um muro ou cerca, indo para um lugar completamente diferente. No quarto vê-se no outro espelho, mais quebrado que o primeiro; nota que nos últimos dois minutos a vida se tornou ainda pior. Olha a sala e vê que a luz está acesa, mas para que apagar... no outro dia terá que acendê-la novamente... Para quê? Para que viver?... Nada ele faz. Mulher não tem, pais não conheceu, amigos não teve. Improdutivo, inútil, incapaz: pensa ele ser; e com razão se vê vivo no futuro como o único sobrevivente do próprio; pois em sua obsessiva depressão e alienação, coberta e recheada de angústia, se encontra a desesperança no futuro e nela se encontra o único e melhor motivo para continuar vivendo... Para quê? Para isso: ele não se mata. De modo algum. E nem nunca o fará... Simplesmente aguardará. Boa noite!

2 Fernando tenta não se prender a todo sofrimento que o rodeia. É difícil para ele ver o mundo à sua volta andar e ele estar à margem. Pensa um pouco em Carolina. Imagina como ela reagiria se visse como ele vive. Ele 33


sabe como ela vive, e sabe que são diferentes. Ambos estudam Publicidade, mas há um “glamuor” nela que ele não tem. Pensa em qual a fonte de tal abismo que o suga. Ele se deita ainda pensando nela... No que ela poderia estar fazendo nesse momento: um rápido pensamento de um namorado lhe vem à mente e a hostilidade lhe volta. Gostaria de nunca sentir o que sente. Às vezes uma música toca-lhe os ouvidos e ela só diz uma coisa ritmada: rejeição. Não literal, mas na forma de lembranças, de rostos do passado e do presente. Ele está muito ferido: antes de apagar, Fernando tem uma última imagem: é Ilena... O passado e o presente se cruzavam na porta de entrada para os seus sonhos: novamente... Boa noite!

Três dias Nos Barris; um dos poucos bairros do centro que residem calma durante todo dia; a maioria das famílias vive suas vidas sem ser muito afetada pela confusão que os rodeia: isso, os outros bairros do centro. Num apartamento de classe média, uma dessas famílias está tendo de encarar uma situação nova e difícil. Algo que só se parece com histórias de jornal ou programas de TV. 34


• Ela já está sumida há três dias! - Uma mãe preocupada. Dona Joana não se conforma de sua filha ter sumido sem dar notícias; e um outro lado dela se recusa a acatar a sugestão do sóbrio marido: • Se formos à polícia, pelo menos nos livramos das dúvidas. Eu tenho certeza de que ela está bem. - O senhor Lauro Fernandes tenta conter o nervosismo da esposa, que começa a virar histeria à medida que os pensamentos ruidosos surgem na mente de todos. • Ela deve tá com o namorado! - Carlos, irmão mais novo, tenta se livrar da tensão com uma piada infeliz. As suas duas irmãs o olham com certo desprezo. Não sabem elas que o mesmo frio no estômago que elas sentem pela falta da irmã, também atinge o jovem Carlos. Talvez até mais... Ilena e ele sempre foram muito apegados. São os dois extremos de uma cadeia de quatro irmãos. E por essa distância, as diferenças entre irmãos os afetaram menos. As duas irmãs estavam comprimidas entre a mais velha e mais respeitada e o caçula, mais bajulado. Não era muito de se admirar as duas estarem sempre juntas; como estão nesse momento, abraçadas... O pai e a mãe tinham um ao outro e elas a elas, mas Carlos só tinha a esperança de rever a irmã: aos 15 anos, sabia muito bem o que poderia acontecer a uma jovem de 21 numa cidade grande, principalmente após três dias 35


desaparecida. • Carlos! Tem certeza que ela não disse nada a você? - O senhor Lauro perguntava com fervor pela centésima vez nos últimos dois dias... • Não, pai. Ela só disse que ia resolver um assunto. Foi a última coisa que ela disse, antes de sair na segunda à noite. • Segunda à noite, Lauro!! - A pobre mãe revezava bravejos e murmúrios. A preocupação e o medo pela filha estavam estampados em seu rosto. Um abatimento dolorido e emocional... Todos se olhavam em silêncio sem ter muito argumento para o ato que teria de vir: nunca em nenhuma família se passa a idéia de um dia ter de ir à polícia, e pior, ao Instituto Médico Legal, a procura de um de seus entes. É uma sensação estranha. Algo que sobe pelas entranhas. Visceral. O medo de descobrir o que não se quer, apesar de se estar preocupado. O senhor Lauro olha para o filho e em seguida para as filhas. A esposa sentada ao seu lado não lhe dava nenhum sinal de discordância. Era a maneira dela de dizer que ele podia ir em frente. Os filhos presentes sentem o mesmo. • Carlos. Vamos indo! - O garoto se prepara para sair com o pai. • Se tivermos alguma notícia, nós ligaremos. 36


Mantenham o telefone sempre livre. Ela... pode ligar...- A voz dele não se mostrou muito confiante, o que piorava o abatimento nos rostos das filhas... A mãe permanecia em silêncio. • Eu tenho certeza que ela está bem, mãe. - O filho demonstrava uma confiança na voz que parecia melhorar o espírito de todos... Mas todos sabiam que era uma fachada, uma proteção, uma defesa da própria consciência. O medo estava presente. E em Carlos ainda mais. Enquanto saía com o pai tinha na memória a última imagem da irmã: ela estava entrando no carro ao cair da noite; estava com o mesmo sorriso de sempre. Ele não sabia se aquele sorriso o confortava ou o massacrava. Era uma situação praticamente impossível de ser admitida em sua temerosa e apaixonada alma adolescente: ele não tinha certeza se veria aquele sorriso de novo...

As filas O Complexo de Delegacias dos Barris apresentava uma estranha angústia aos que se propõem a procurar algo nesse lugar, e especialmente, alguém. A cada curva se sente que se pode ter uma má notícia e por ironia todo o prédio é uma curva... O senhor Lauro e seu filho Carlos passam por tal sensação nesse exato 37


momento. O atendente os encaminhou ao investigador que estava responsável pelas pessoas desaparecidas. Eles andavam e a cada sala que passavam, notavam o quão o mundo poderia ser triste, envolto com tanta violência. Tantas pessoas, tantos problemas... infinitas angústias. Realmente preferiam não estar passando por aquilo. O investigador os recebeu e os mandou sentar. O senhor Lauro falava sobre o desaparecimento da filha, enquanto Carlos olhava meio assustado para aquele cubículo chamado de escritório. Como alguém podia manter a sanidade, tendo de encarar tantas coisas adversas, de dentro daquele lugar horrível? Ele se pega imaginando. • É uma bonita garota! - Ele segurava uma foto de Ilena. • Obrigado. • Antes de eu fazer o registro de pessoa desaparecida, o senhor tem que fazer alguns reconhecimentos... • Eu imaginei. - tanto ele quanto Carlos sabiam o que aquilo significaria. Era uma pressão e/ou choque que eles já aguardavam. Mas sempre com um teor pré-sentido carregado nas costas de ambos e também na família que ficara em casa... Estavam todos juntos. O investigador dá uma ordem pelo telefone 38


autorizando o senhor Lauro a olhar pessoas com a descrição da filha, presas nos últimos três dias e também as pessoas mortas, dentro do mesmo tipo, no Nina. Não eram muitas garotas brancas de 21 anos que apareciam nesses dois segmentos, mas seria uma tortura essa verificação. A cada olhar o medo de uma revelação aterradora. Não havia outra solução... Eles vão. Carlos não pôde entrar no xadrez municipal, ele teve de esperar numa sala especial junto com outros “menores”. É difícil definir de quem era a tortura maior: o senhor Lauro olhava dentro de cada cela feminina; via todo tipo de sujeira e podridão. Ao chegar perto das janelas que davam para o interior, já sentia o terrível mau cheiro de pessoas amontoadas sem um mínimo de dignidade e de higiene. A maioria das mulheres era negra. Ele não queria, mas sentia um certo alívio. Não era uma pessoa preconceituosa; pelo contrário, isso só fazia aumentar seu medo e sua consternação; mas sua mente dizia: “Ilena nunca se meteria com esse povo!”... Enquanto isso, Carlos olhava para as paredes opacas da sala aonde estava. Imaginava o que o pai estaria vendo; talvez Ilena, deitada numa das celas... Drogada... Ele tentava tirar o pensamento da cabeça: não tinha muito o que o distraísse na sala. Cada coisa lembrava o horror. Um 39


horror real; massacrante. Eles deixam o xadrez municipal tanto com alívio quanto com dor. Ilena não estava naquele lugar horrível, mas podia estar num lugar bem pior. Morta. Ali, pelo menos, estaria viva... A sorte do segundo passo que eles iam dar martelava na cabeça de ambos. O senhor Lauro não conseguia visualizar que reação sua esposa teria se a filha estivesse naquele lugar. Nem a sua própria reação... Parecia um auto-prelúdio de um indesejado e terrível pesadelo. No Complexo de Delegacias. No cubículo onde o senhor Lauro e Carlos estiveram. O investigador olha para a foto de Ilena. Ela estava sorridente, com o cabelo solto, caindo levemente sobre a testa. Os anos de profissão o fizeram duro e perspicaz, por isso ele não pôde deixar de ter uma desagradável visão... Ele torcia para que aquele pai encontrasse a filha antes que tivesse de sugerir a idéia que estava em sua cabeça. Temia que fosse a única. Corpo após corpo. O senhor Lauro seguia o encarregado que ia abrindo gavetas e mostrando corpos de garotas mortas. O já abalado pai olhava, tendo alívio seguido de desgosto, a cada gaveta... Mais uma vez, Carlos não pôde entrar e teve de suportar a espera numa sala a parte. Ele já tinha estado no Nina Rodrigues antes, mas numa excursão 40


de colégio e não a procura de uma pessoa querida que estava desaparecida. Era uma sensação de impotência diante do inevitável... De pontos diferentes, pai e filho sofriam cada momento daquele ainda incompleto pesadelo. Um por ver cada passo e o outro por não ver: os extremos de um mesmo sentimento impossível de ser verbalizado, pois passa por todos os outros... Corpo após corpo. De volta ao Complexo de Delegacias. No cubículo. O investigador olha o rosto do pai e do filho; já deduz que a busca tinha sido vazia. Viu essa expressão várias vezes. É sempre frustrante para ambos os lados... Na sua mesa está a pasta de um caso sem pistas que parecia ter atraído a sua primeira evidência; para a infelicidade daquela família... Eles se sentam à frente do investigador e ele tem que perguntar: • Sua filha tem algum sinal particular? - Os dois se olham e respondem juntos: • Uma cicatriz acima do pulso direito. Em forma de “T”. - Os dois sabiam muito bem. Ela conseguira tal marca num acidente de carro, logo depois de tirar a carteira de motorista. O policial olha a ficha e encara os dois em seguida. Não tinha muito jeito de aliviar aquilo. O relatório em suas mãos era bastante claro... 41


• Eu sei onde a sua filha está! - O tom da voz do homem fez o frio no estômago e o aperto nos corações dos dois atingirem seus extremos. O medo iria se confirmar e seria mais terrível ainda... O corpo é de Ilena.

Dois Lados Seus olhos tinham à frente uma mulher que o fazia suar de tanta atração. Não conseguia ver quase nenhum traço da garota que conhecera. Era como olhar uma escultura. Perfeita. Seu olhar, quase hipnótico, lhe dizia: “Eu quero!” As palavras soavam como pedidos... ordens de uma deusa que ele não conseguia evitar de desejar... Na mesa entre eles estava um prato de lagosta. Era um prato caro, muito caro para um policial, mas ele a queria impressionada. E ela estava. Carolina já tinha tido muitos encontros, mas nunca um tão bem produzido e nunca com um homem tão maduro. Luciano só tem 28 anos, mas sua experiência de vida policial, convivendo com todo tipo de situações, lhe dera uma fonte de adaptação para as mais diversas condições, que realmente surpreendia. Carol se sentia estranha ao estar com Luciano. Ele é um policial; coisa que aparenta, sempre, adversidade. Mas também ele é um velho amigo de seu falecido 42


irmão e estava a cargo de uma investigação que teve origem num crime que a havia afetado muito nos últimos dias. Ela não sabia porque, mas também sentia atração por ele... Seus olhares diziam isso a cada momento, mesmo apesar de estarem num lugar tão luxuoso, comendo e conversando sobre assuntos que os dispersam de tudo. Era algo inegável, somente não totalmente exposto por causa de um incômodo, mas necessário, véu de polidez e civilização... Ela queria esquecer os últimos três dias, queria começar uma nova vida. E de certo modo, ele também. • ...não sei muito sobre isso. Antes eu tinha... O som do bipe de Luciano a interrompe. Ele tinha vontade de não ouvir mais nada além da voz dela, mas não podia ignorar o serviço. Era o mundo ao qual ele pertencia. Não só por ser um policial dedicado. Ele se tornava a cada dia mais concentrado naquilo que fazia de melhor... fazia parte de uma redescoberta do seu lado mais humano e familiar; aquilo em que se mantinha com Carol... Ficar apegado a uma pessoa pelo puro prazer de estar com ela: a memória mais próxima disso em sua vida era justamente a convivência com o irmão da mulher que estava à sua frente, rompendo-lhe toda aquela atenção... Cristiano era um grande amigo e Luciano o perdera... Voltar a ter contato emocional com uma pessoa e justamente com 43


a irmã daquele amigo tão querido, era uma ideia tanto assustadora como extremamente agradável... por isso era tão difícil se desligar dela: era algo íntimo. Uma lembrança perfeita e que se consolidava na perfeição de Carol... A muito custo ele se desligara: não queria nunca se desligar daqueles olhos... Nunca. • Droga! Eu tenho de ligar... Eu já volto! • Tudo bem... - Ele se levanta e anda até o bar. Carol o observa. Tem pensamentos que nunca revelaria nem a melhor amiga. Todo aquele momento estava coberto de prazer e esquecimento. Ele a convidara; ela aceitara. Era simples, Carol pensava. Era uma exigência do seu corpo e de sua mente: ter de volta aquele simples sentimento de prazer e paz. Toda a conturbação dos últimos dias parecia ter lhe furtado essa sensação tão elementar. O homem com quem estava lhe trazia memórias de dias mais alegres de seu passado... A presença de seu irmão em sua vida; e na vida dele. Eram partes componentes de uma nova fase; ela sentia.. E mesmo apesar do nervosismo presente em todo aquele clima de proteção e não revelação; e também da breve interrupção, Carol via que pelo menos naquele momento podia confiar na construção de um futuro melhor. Aos poucos conseguiria se reerguer. Tinha que aprender a ser forte... Seus pensamentos se transpareciam; seu corpo revelava 44


(confusa esperança)... Luciano... Seu rosto não conseguia esconder, se tornava evidente: ela estava cativada por aquele jovem policial. Ele começava a se transformar num ícone de sua necessidade: a fonte! • Nós temos que ir! - Ela via uma nova apreensão no rosto de Luciano. Temia que fosse um sinal de uma inevitável quebra do seu momento de revitalização. Sabia que era uma possibilidade viva, o tempo inteiro, mas é uma coisa mais fácil de ser negada do que encarada... Precisava ser forte! - Pensava continuamente. • Algum problema? - Ele olhou para ela hesitante. Sabia que o prazer daqueles instantes que eles tiveram juntos estava por sucumbir ao retorno para a realidade. Tanto suas renovadas esperanças quanto as dela, principalmente as dela, que não faziam parte daquele mundo... Eles estavam por ter que novamente reconhecer aquela situação que os reuniu. Luciano lamenta intimamente, mas não pode esconder de Carol o que se desenvolvia: • Uma... família identificou o corpo daquela garota. - Os olhos de Carol perderam o brilho. Era quase um choque ver uma expressão tão alegre se modificar de uma maneira tão impiedosa. As memórias retornaram à mente dos dois. Era como uma maldição que insistia em seguir no momento em 45


que se parecia estar em contemplação... Era injusto... Carol tentava não perder as últimas forças capturadas durante aqueles momentos com Luciano. Era difícil encontrar uma postura para reencarar aquilo. Não estava preparada. Talvez nem Luciano estivesse... Ambos sentiam a mudança. Não havia mais o que fazer naquele lugar. Tinham que partir. Caminham juntos para o estacionamento. Não há troca de olhares. Não há o que dizer. A magia do momento juntos havia terminado. A lembrança do que os tinha feito se reencontrarem estava lá de novo. Rodeando-os. E não era agradável, como sempre. Surpreende como a vida parece agradar e atacar seus seres sem a menor complacência ou remorso. Só se difere o modo como cada um lida com essas mudanças... Era mais forte que a razão: Carol não quer, mas sente medo; por tudo. Ela estava atraída por um homem que vivia como vivia, não podia evitar, era mais forte que ela. E uma nova antagonia surgia em sua vida: aquelas visões mórbidas vinham à sua mente outra vez, misturava memória, medo e imaginação... Uma forte insegurança também surgia: a respeito dela própria, de sua vida, do que ela fazia e sentia... Quando tal batalha terminaria? - Ela pensa... Visualizando em seguida o homem ao seu lado: calado, passo a passo com ela, sério... Talvez só: diferente dela, ele separava 46


os dois lados e sua cabeça podia conter aquelas duas situações antagônicas. Luciano tinha maior convívio com o discernimento, mas também estava confuso; detestava estar impotente diante da insegurança de Carol. Talvez com o tempo conseguiria achar o que realmente procurava... Ambos sentiam, por extremos diferentes. Havia uma estranha proximidade; entre as sensações dos dois e entre as duas situações: vida e morte; prazer e náusea... Surgia nesse ponto a melhor fonte de união. Eles viviam os dois lados, juntos. Sentiam diferente, mas a lembrança daquela noite, e mesmo da sua brusca alteração de extremos, fazia-os partilhar muito mais que um simples encontro... Eles descobriram; está com eles... A partida! Ao chegarem no prédio de Carol, Luciano mantinha a seriedade. Estava firme, era o reencontro com sua postura policial... Mas algo em ambos ainda pedia uma finalização mais adequada para aquele encontro tão cheio de altos e baixos: teria que haver um último extremo... O melhor: era a despedida!... • Espero que tenha gostado! • Eu adorei! - A viagem em silêncio parecia ter sido uma terapia para ambos. Voltar à simples banalidade era o melhor som que se podia ouvir após todo aquele desapreço do destino... Ambos queriam “O final”! 47


• Desculpe pelo final corrido, mas... • Tudo bem! Eu entendo. - Ele deu um sorriso de concordância. Ela sentia com leveza a volta do prazer do encontro; antes do telefonema... Olha para ele alguns segundos. Palavras não eram mais necessárias... Luciano tinha de ir; estava hesitante, mas ele também queria... Via nos olhos de Carol... Eles se aproximaram. Mais alto um pouco, Luciano se inclina. Os olhares se cruzam novamente. Seus corpos e tensões se alteram para o encontro. Era o fio da espera: seus lábios se tocam; era tudo que eles precisavam. O final... Naquele momento não havia mais corpo dilacerado; não havia mais dor, sofrimento ou lembranças; somente as sensações geradas por aquele simples toque. Seus corpos e mentes só diziam uma coisa... Esteve presente durante toda noite (político), foi por um pequeno período abafado (o passado) e enfim se mostrava presente nos dois, irrepreensível: o desejo.

2 Chegando ao Complexo de Delegacias, Luciano tentava transportar-se para o seu outro lado: o de policial sério. A lembrança dos lábios de Carol ainda latejava em sua cabeça. O reconhecimento de uma 48


emoção simples e única... Mas ele tinha que encarar a realidade: o pai de uma garota deixada irreconhecível aos olhos de peritos, mas facilmente reconhecida por uma família unida e presente... • O nome dela é Ilena Fernandes. O pai a identificou pela cicatriz no braço. Ela estava sumida há três dias. - O investigador dava as informações para Luciano, o encarregado do caso. Seu olhar ia da ficha e da foto em mãos para o pai sentado dentro da sala. Sua mente saía das lembranças de Carol e ia para lembranças mais distantes, ia para aquele rosto à sua frente, para o corpo dilacerado... Aquele pai, sentado lá, tentava se conter e encarar a situação de maneira firme: dura será a missão desse homem! Pensa Luciano com pesar... O investigador diz a ele que o irmão da garota deu um ataque quando soube e que foi levado para casa sedado. A esposa do homem também não estava nada bem... Luciano sabia de tudo aquilo. É sempre uma reprise já aguardada. O que mais podia fazer? Agora já estava tudo feito. Os caminhos do destino já tinham sido traçados. Tinha que seguir em frente. Ele é o policial... O responsável. • Olá. Eu sou o detetive Luciano. Encarregado da investigação. - O homem se levanta para apertarlhe a mão. Era como um zumbi de gestos cansados. A exaustão e a tristeza lhe maquiavam o rosto... 49


• Eu sinto pela sua filha. - Os olhos do homem se desviam de qualquer coisa. Não havia expectativa de resposta. Queria ele se esconder de tudo e não ter de ver mais nada ou ninguém no mundo... • Eu preciso fazer algumas perguntas; e provavelmente terei de falar com a sua família e também ver os pertences de I... de sua filha. • É mesmo necessário? • Devido à gravidade do crime... sim. Tememos que possam acontecer novos incidentes. - Luciano detestava usar tal palavra. Era uma fuga natural das pessoas ao que realmente se queria dizer: assassinato. Ou qualquer outra fatalidade. Mas ele se manteve; era preciso. Eram mais que palavras... Agora uma família estava exposta àquele momento. A fuga era uma necessidade. • Nós faremos o que puder... - A voz do homem se deteriorava. Luciano já vira isso acontecer várias vezes, mas ainda era difícil suportar tanta consternação sem participar; principalmente, agora: os dois lados o afetavam. • Obrigado... senhor Fernandes! • E quanto ao... corpo...? • Infelizmente ainda não podemos liberá-lo. - A frustração se transparecia no seu rosto ainda mais, mas ele não tinha forças para qualquer retração. Ele só 50


queria ir para casa e ver a família. Ela estava mutilada agora; ele sabia. Mas ele queria estar perto dela mais do que nunca. Nesse momento era tudo que restava... Luciano conseguia ver essa necessidade nos olhos do pobre pai... • O senhor pode ir agora. Amanhã ou depois eu irei em sua casa. Eu agradeço a cooperação do senhor, mesmo sendo um momento tão difícil. O senhor Lauro sacudiu a cabeça. Não queria mais falar. Só queria ir embora... Se sentia perdido; só. Era uma rara fonte de desgosto... Ele sofre; meio morto... Ele vai embora, deixando Luciano sozinho na sala. Observa ele o afastamento do homem por alguns segundos; parecia emanar a dor... Luciano pega a foto da garota de novo. O que há por trás disso? - Pensa ele... Vendo aquela linda moça, seus olhos enxergam fundo, mais que os outros. Era algo próximo... Ele sentia aquele poder de novo: pegar o assassino! Isso o deixava de certo modo excitado. Se sentia forte apesar da situação: uma amoralidade incontrolável; uma atitude de desconfortável satisfação... Ainda podia ver a expressão daquele pobre homem, mas não podia evitar... Longe dos olhos de todos, ele queria isso... Era um forte paralelo com o seu momento... Ele desejava tanto o poder quanto desejava Carol... Formava um círculo. Diferente. Recomeçava... Carol! 51


Sentia que as coisas podiam se encaixar: perfeitas!

3 Ela está no chuveiro. Chegou mais cedo que esperava. Muita coisa povoava sua cabeça, mas uma sensação dominava seu corpo. Parecia pedir aquilo. Queria esperar até o momento certo, mas estava muito forte. Começava no ventre, descia até as pernas viajando por tudo que há entre. Era a sensação... Sobe para os ombros, pescoço e lábios, onde a memória do contato era maior. Não conseguiria dormir sem aquilo. Mal se lembrava da última vez que se sentira assim; talvez nunca. Carol reinicia a viagem pelo seu corpo. Ela o conhece muito bem. E ele está pedindo... Os movimentos se tornam contínuos. O jato do chuveiro compõe o toque generalizado, levando de sua pele todo e qualquer resíduo. Seus olhos fechados, tentam enxergar a memória daquele que está em sua cabeça: Luciano. Seus cabelos tocam as costas e os ombros. Ela o sente como mãos. Cada parte do seu sistema está vibrando. É uma mágica. O tempo não existe. Ela vê aquilo crescer em seu organismo. Tenta conter um grito que lhe chega às cordas vocais... Ele soa como um leve grunhido. É irresistível. A pele de Carol começa a se arrepiar. Ela sente o final chegar. As outras partes 52


sensíveis também gritam por toques, mas ela não tem mais mãos: tenta revezar. É o fim. Ela sente. É um tanto contido, limitado... Mas por agora bastava. Sua mente estava se libertando. Ela vivia de novo.

Os passos Luciano entrou na casa e sentiu o peso do ambiente. A pobre mãe, dona Joana, se mantinha sentada, pálida, seu olhar perdido. Luciano havia perdido a mãe muito cedo, não tinha muita referência pessoal sobre um relacionamento tão singular: o de mãe e filhos, mas tinha capacidade de imaginar que tipo de dor aquela mulher deveria estar sentindo. Se lembra de como a mãe de Carol havia ficado quando Cristiano morreu... Era uma palidez bem semelhante à que observa em dona Joana... Ele dá uma olhada nas outras duas filhas daquela família: consolavam-se uma a outra no canto da sala. Do relacionamento fraterno a única e mais próxima lembrança era Cristiano: não tinha outro irmão, só a si mesmo. A união das duas lhe trazia tanto harmonia por elas próprias, como também ressentimentos por coisas em sua vida que ele não teve ou que teve e perdeu... Aumentava ainda mais seu “distante profissionalismo”... O senhor Lauro vinha cumprimentá-lo. Luciano imagina como 53


aquele homem deve estar tendo uma força sobrehumana para poder encarar o clima daquela casa, ainda conseguindo se manter firme diante da situação em si: ele condensava toda dor da família e a sua; é o responsável: um dirigente patriarcal que precisa sobrepujar os próprios sentimentos para manter a máquina político-familiar funcionando... É o que ele faz: • Olá, detetive... Eu vou lhe mostrar o quarto de Ilena. É por aqui... - Sua voz estava fraca, arrastada; como se a qualquer momento pudesse desaparecer. Luciano o seguiu. Era como andar pelos corredores das recordações daquela família. O apartamento não era tão grande, mas cada canto, cada foto, cada imagem transmitia através de seus personagens que algo (alguém) presente em tudo não estava mais lá... A união de toda aquela família aumentava ainda mais a sensação de impotência e distanciamento em Luciano: não podia trazer Ilena de volta e simplesmente não podia, e não queria, se envolver...”Trabalho!” - Está em sua cabeça. • E o seu filho? - Para completar o cenário. • Ele ainda está de cama. Foi um choque muito grande. • Eles eram chegados? • Demais. Estavam sempre juntos. Imagino a 54


falta que ele deve sentir... - Luciano sentia a verdade e a tristeza nas palavras do homem. Sentia, mas não podia evitar o procedimento: • Eu provavelmente terei de falar com ele, senhor Lauro. Pela proximidade dos dois, pode haver alguma informação importante que ele possa nos dar. • Eu entendo... Falarei com ele depois... quando melhorar. Eles entraram no quarto de Ilena. Era um quarto normal de uma jovem de 21 anos de classe média. Ainda estava arrumado do dia que ela desaparecera. Guardava um tom soturno em cada objeto que se podia ver; não eram eles próprios, era a falta que eles representavam. A visão investigadora de Luciano procurava qualquer sinal de pista. A primeira coisa que ele localiza é uma agenda de telefones; estava numa escrivaninha, junto com alguns livros, um caderno e um porta caneta. Ele pediu licença e se apossou da agenda. Luciano folheava o pequeno livro florido sob o olhar “morto” do senhor Lauro... O homem dava voltas com o olhar pelo quarto. Desejava intimamente ter estado mais vezes ali. Sua família era unida, mas a rotina da vida diária acaba sempre por afastar um pouco as pessoas. As preocupações do dia-a-dia; coisas tão insignificantes agora... Contém a lágrima que vinha surgindo no seu olho através de uma 55


pergunta ao introspecto detetive: • Encontrou alguma coisa, detetive? - Ele folheava muito interessado a agenda de telefones da garota. Estava muito sério... • Talvez!... O que ela fazia? • Ela trancou a faculdade há uns sete meses e estava procurando emprego. O que os jovens chamam de dar um tempo para se encontrar... - O senhor Lauro se perdia no meio de sua afirmação. Era difícil admitir que a filha tinha morrido: uma verbalização errônea de uma presença não mais existente... Luciano o olhou por alguns segundos... • Que faculdade ela fazia? • Publicidade! Aquela resposta deixava com sentido, apesar da emergente confusão que seu significado provocaria, a presença do nome que Luciano tinha achado na agenda e que nesse momento ele observava. Não sabia que artimanha do destino era aquela. Sua postura não deixava transparecer a perplexidade que se formava... Apesar de que o senhor Lauro não estava nem um pouco atento... Ele tinha acabado de encontrar o nome de Carolina na agenda de Ilena: elas estavam na mesma faculdade, mesmo que uma sem estar frequentando. Elas se conheciam... Imagina ele o quanto... Aonde mais aquilo iria? Que obra era aquela que fazia uma 56


leve coincidência virar uma trama: Carol conhecia a vítima que ela própria tinha encontrado dilacerada abaixo do “Cristo”. Luciano não conseguia evitar de imaginar o choque que aquilo seria... Mais um! Os outros nomes da agenda deveriam ser na maioria de outros alunos daquela faculdade. De um jeito ou de outro ele teria que pôr Carol a par. Aquela investigação estava tomando um rumo que Luciano começava a não gostar. Já era difícil se manter distante das pessoas envolvidas e agora ele já estava próximo de uma pessoa que ele teria de envolver: era a perda do invólucro policial... • O senhor ainda vai precisar de alguma coisa do quarto dela? • Eu acho que não. Essa agenda deve bastar. Mas por favor tente não tirar nada daqui; por enquanto. • É claro. - Os dois saem do quarto. Luciano seguindo o senhor Lauro. • Ah! Agora eu me lembrei! O carro da sua filha foi encontrado. Ele estava abandonado no Comércio. • Que bom... - Ele não parecia ligar muito. Provavelmente seria mais uma coisa que lembraria que a filha não estava mais lá. Um acréscimo ao acervo de recordações daquela família... • A perícia não encontrou nada nele, portanto o senhor pode pegar quando quiser no DETRAN. 57


Só precisa de um documento de identificação do proprietário... • Ele está em meu nome. • Eu imaginei... - Já na porta, Luciano aperta novamente a mão do senhor Lauro. Sente o calor. - Em alguns dias eu ligo para falar com seu filho. • Não se preocupe. Ele já deverá estar melhor... - Luciano parte e o senhor Lauro fecha a porta... A situação daquela família era triste. Luciano se sentia aliviado por sair daquela casa. Não podia deixar de ansiar uma maior agilidade no processo ao qual estava envolvido. Mas não podia exigir muito de uma família em tal estado. Ele sabia qual era o seu próximo passo: os nomes da agenda; inclusive Carol. Ele estava tomando um caminho difícil e desconhecido. De certo modo ele se fascinava com aquilo tudo. Aquela trama... Uma estranha força... Como as coisas podiam ser assim?

A ponta do “Iceberg” Ele anda pelo seu aposento. É um animal enjaulado em si mesmo. Olha para a mesa e lá está... É a foto dela. Um momento guardado de alguém que não existe mais. Não podia conter aquela sensação. O arpejo tinha começado há dois anos atrás e o levou 58


a isso. Como pôde ter descido tanto? Como pôde ter liberado tanta hostilidade? Ele se admira de sua própria impaciência enquanto anda de um lado para o outro de seu quarto, totalmente escuro. As imagens a sua frente são selvagens. São de si mesmo. Ele sente medo... Mas gosta. Estava a salvo, por enquanto, mas as luzes começavam a aparecer... As notas queriam recomeçar a tocar. Agora era outra imagem que se repetia. A primeira se transformou somente em uma lembrança de um momento violento e sublime. Ele queria amá-la, mas o arpejo tocava para outro lado. Pedia mais morte.

2 A agenda nas mãos de Carol não deixa dúvida. Ela custava a acreditar: a cada momento que aquela mórbida lembrança parecia desaparecer de sua mente, outra revelação surgia e a tornava ainda mais terrível... Ela segurava a agenda e a foto; não podia acreditar: • Ilena! Eu não acredito! Como isso pode acontecer? - Ela se vira para Luciano com os olhos trêmulos. Era uma sombra dos olhos que o haviam recebido há vinte minutos atrás: eles brilhavam. Pediam um novo contato como o de alguns dias atrás... Luciano tinha sentido a mudança, mas não 59


tinha escolha... Tinha um trabalho. • Eu sinto muito, Carol. Acho que foi uma triste coincidência. • Triste?... Primeiro o corpo. Agora isso... - A desilusão dela se tornava uma leve revolta. O que tinha começado com um corpo não identificado havia se tornado uma coisa mais próxima: pessoal. Não só o fato de a vítima ser uma amiga de Carol... Ela começava a ficar cansada daquele sobe e desce entre satisfação e desilusão. Atingia um ponto de saturação em meio a esse tão confuso momento. • Eu não queria te envolver, mas vou ter de falar com esses nomes que estão na agenda. • Eu não conheço todos; só alguns. • Tudo bem. Eles devem conhecer os outros. • Você acha que pode ser um deles? - O olhar de Carol agora ficava vidrado na agenda e na foto. Ela olhava os nomes com interesse. Mais parecia estar por vir... • Eu não sei... É um começo. - Luciano nota que Carol mudava à medida que aquele caso se complicava. Quisera ter ela nos braços de novo, sem ter aquele empecilho entre eles. Começava a se incomodar com o interesse dela pela situação. Ficava mais pessoal a cada revelação.. • Como ela era? - Carol olha um minuto fixo para 60


a foto. Não a via há muito tempo; era uma verdade. Mas as memórias começavam a surgir em sua mente e apesar de boas, no final, conotavam tristeza. • Era muito alegre. Não consigo imaginar ninguém querendo machucá-la. - Luciano via uma raiva contida surgir em Carol. Temia por ela e por ele próprio. Temia pela perda do que eles haviam iniciado juntos... • Que loucura! Quem fez isso é um monstro. Sem dúvida! - Ela se levanta e vai até a janela. Dá para a Avenida Oceânica e tem a vista da praia logo em frente. Carol não conseguia parar de pensar em Ilena. Ainda custava em aceitar o fato. E tudo parecia piorar quando ela lembrava do modo como o corpo estava... Ela aperta o parapeito da janela, fecha os olhos e sacode a cabeça... Queria tirar aquilo da mente! Luciano a observa com atenção; assegura certa consternação por vê-la passar por aquilo. Só queria têla de novo, mas uma barreira estava no caminho... Ele olha para a foto de Ilena. Quase que pedia para que ela nunca tivesse existido... Luciano sente a dor do momento; mais por Carol; mas se mantém, continua: • Carol... - Ela se vira para ele. • Eu preciso de você. • Eu sei. Eu farei o que puder para ajudar a pegar esse monstro. - Luciano admira a seriedade e firmeza 61


na voz dela. Era uma nova Carol. Ele anda até ela; tem vontade de tocá-la. Mas o olhar dela não mais pedia isso; pedia retratação... A volta da paz que tinha antes desse “maldito” aparecer em sua vida. • Eu... agradeço, Carol. Espero que não seja tão difícil... Eu vou precisar ir na sua faculdade. Acho que é o melhor lugar pra falar com todo mundo. • Tudo bem. Acho que vai ser um choque para eles também, mas vão querer ajudar... Esse sujeito matou a pessoa errada. Ilena não merecia morrer e seus amigos não vão dar trégua. - Luciano se assustou com o tom raivoso de Carolina, mas também não pôde evitar de tirar ironia policial da ingenuidade daquela frase. Ele bem sabia que o que os amigos de Ilena poderiam fazer era o mínimo; provavelmente dizer como ela era uma garota legal, e como não merecia ter morrido: Luciano ri intimamente. Ele sabia que, certamente, a melhor chance contra o assassino seria quando ele atacasse de novo. Pegá-lo por ele mesmo... Estabelecer métodos e formar suspeitos: ele sabe que a lei caminha desse jeito... Só não lembrava que outra vida seria desperdiçada. A sua humanidade às vezes falha, mas é uma conseqüência natural do serviço policial... Ele olha Carol de novo; ainda quer tocála; mas simplesmente vai embora. Aquele momento estava “morto”. 62


Carol volta à janela. Queria voltar à vida de antes, mas sabia que não era mais possível. Ela hesitava, mas sabia que tinha uma batalha pela frente: ela mesma... e também seus amigos. Imaginava a reação deles... Seus olhos se fecham novamente: “Quanta dor!”

3 Uma presença parecia surgir entre Carol e Luciano. Algo mais que a consternação e a revolta. A cada novo fato que surgia, complicando ainda mais suas vidas, eles se prendiam a tudo aquilo e não conseguiam deixar de sentir a distância que começava a surgir entre eles. Nem Luciano, nem Carol ansiavam por isso, mas uma criatura surgia entre eles e os empurrava para lados opostos do mesmo desconhecido... Talvez possam contornar; talvez possam superar o monstro: sua simples aparência em fatos já era uma grande força de retração entre ambos, mas se fossem realmente poderosos os sentimentos que começavam a surgir; aquele breve momento de despedida e desinteresse, com certeza, seria esquecido e daria lugar ao que ambos mais desejam: estar um com o outro, sem nenhuma presença em seus “calcanhares” ou em seus corações; o tão esperado 63


recomeço... Com o tempo!

Olhares Luciano e Carol estão sentados. A cantina da Faculdade de Comunicação é palco de uma série de revelações chocantes e tristes... São várias mesas. Em uma está Carol e o seu amigo policial recém apresentado a todos. Ao redor deles estão pessoas com expressões desoladas. Eles não tinham notícias de Ilena há muito tempo, mas isso não diminuía o impacto do momento. O que poucos dias atrás era o motivo para acalentar uma amiga sofrendo, agora é o sofrimento de todos. Como a vida podia jogar na cara de todos aqueles jovens e esperançosos uma coisa tão terrível... Mesmo os que já tinham tido experiência com a perda de pessoas próximas não estavam preparadas para tanto. Todos tinham tido conhecimento do ocorrido; através de Carol e através dos noticiários; um corpo tão dilacerado que não podia ser reconhecido. Somente Carolina tinha visto o corpo, de todos eles, mas naquele momento a imaginação de cada um tratou de suprir o sofrimento e o choque com imagens tão ou mais terríveis que o real; tudo sendo cruzado com a figura viva e alegre que suas memórias tinham de Ilena. Eles não podiam 64


acreditar... Os que falavam, os que choravam, os que se calaram, todos sentiam aquilo sem acreditar... Seus rostos demonstravam algo como se um pedaço das próprias vidas tivesse sido arrancado. Há tão pouco ela parecia tão distante e agora que está morta parece tão perto... Curiosidades humanas... Luciano observava cada olhar. O mais firme ainda é o de Carol; ele temia que tudo aquilo a tivesse afetado demais... demais até para ela perder o interesse nele. Ele tentava não pensar nisso... As pessoas ao seu redor apresentavam sua tristeza e revolta: como ele havia previsto todos pós-admiravam a amiga morta; duvidava achar alguém ali que ajudasse realmente à investigação, mas tinha que fazer o serviço: • Alguém aqui falou com ela recentemente? Carol observava Luciano conduzir as perguntas; já sabia como aquilo funcionava. Pensava como seria doloroso para cada um no momento que tivesse de falar sobre Ilena individualmente... Discutir a personalidade e o comportamento de uma amiga morta. Ela tinha certeza que ninguém ali saberia alguma coisa e duvidava em sua alma que qualquer um pudesse ter algo a ver com o crime. Essa era uma idéia que ela repugnava tanto quanto o próprio ocorrido. Todos que tinham seus nomes na agenda de Ilena seriam questionados, mas ela sabia que todos 65


eram amigos de Ilena e amigos não matam!... Na mesa vizinha; sozinho; de certo modo tão triste quanto todos na primeira mesa... Fernando olha o grupo. Ele sabe do que se trata; não pôde evitar, e todos saberiam cedo ou tarde (comunicação)... Por entre o grupo ele procura uma imagem específica. É a única imagem que segura toda aquela situação. Seus olhos querem Carol... Olhando diretamente para ela, como muito o faz, memórias e desejos vêm à sua mente. Ele sabe como ela está se sentindo. O sofrimento dela traz outras memórias; de um tempo passado e que foi esquecido a duras penas, mas que ainda assombra... Seus olhos captam algo indesejável: Carolina toca no braço de Luciano. É um gesto corriqueiro, mas Fernando vê como ela o olha... Novamente ele sente: por um minuto se esquece da dor recém revelada a todos e se volta para a própria dor... Ele! Carol olha ao redor e como muitas vezes ela se choca com o olhar de Fernando. Ela o conhece. Não o quer mal, mas um frio no estômago lhe vem sob o olhar inquisidor. Sabe que o amor pode significar dor. E para Fernando realmente o era... Ela solta o braço de Luciano. Ele se vira e vê o olhar de Fernando fuzilar a mulher ao seu lado. Olha diretamente para Fernando... num segundo os dois olhares se encontram. Carol e Luciano olham para Fernando. 66


Ele não esperava aquilo. O frio no estômago agora o atinge... Discretamente Fernando desvia o olhar. Não sabia o que tinha sentido naquele momento. Ele agora é o alvo. Era uma sensação nova, pois nunca foi atenção para ninguém... Se sentia deslocado por ter seu mundo invadido; se sentia desprotegido. Sobrevivência! Luciano, ainda olhando para Fernando, se aproxima do ouvido de Carol. Ela estava meio distraída, mas viu que Fernando tinha desviado o olhar por causa de Luciano, atrás dela. Ela conseguia visualizar o cenário... • O nome dele está na agenda? - A pergunta surpreende Carol. Não sabia como comutar tais pensamentos: aferia... • Você acha que...? As pessoas ao redor falavam entre si e não notavam o colóquio entre os dois... • Eu tenho de checar todo mundo, Carol... E então? - Ela se oferecia certo alívio com a resposta. • ...O nome dele é Fernando... E sim; está na agenda. • Ele era próximo de Ilena? - Carol olha novamente para Fernando. Não muito tempo atrás ele lhe confessara coisas muito íntimas e tristes. Sempre o vira sozinho; se sentia a pessoa mais próxima dele e se ressentia por ter se afastado dele após a revelação... 67


Carol sentia que ele tinha ficado ainda mais triste e sozinho... Ela se via ainda com mais sofrimento em seu coração; além do que já parecia estar na carne. Estava difícil suportar... Ela se volta para Luciano. • Acho que eles se falavam às vezes, mas Fernando nunca foi próximo de ninguém... - Luciano observava o teor de ressentimento na voz de Carol: uma pausa de compaixão. • Ele olhava pra cá bem triste. - Ele sabia que Fernando olhava era para Carol, mas não quis forçar... Queria descobrir os pontos. Seu trabalho. • Acho que ele sente como todos nós; só que de longe. - Luciano sentia todo peso daquela afirmação. Seu olhar aguçado viu no momento em que ela disse aquilo: aquele rapaz era apaixonado por Carol. Ela falava por metáforas, como se falasse de Ilena, mas falava de si própria, e Luciano via isso... Ele não quis consterná-la mais ainda com o reconhecimento daquela situação... As respostas surgirão: “Tempo!” • Depois eu falarei com ele. Só para seguir o esquema. - Carol ficava aliviada. Não queria pensar que alguém dali pudesse cometer aquela atrocidade; muito menos Fernando; alguém que ela não podia evitar de sentir pena... Mas ainda teria de acompanhar a investigação de Luciano... E já imaginava quando chegasse a vez de falar com Fernando. Ela duvidava 68


da própria capacidade de suportar tudo aquilo. Sua resistência ao conflito que estava por vir. Luciano continuou a falar com os outros, mas sua atenção se voltava sempre para Fernando. Ele via naquele jovem de aparência tão triste e solitária uma força muito além da vista de todos. Aquele olhar fuzilante sobre Carol lhe dera uma porta... Algo muito além do próprio olhar estar sobre a mulher que ele também queria: ele via a hostilidade em continência... Um olhar que um policial podia captar de longe. Uma forte antecipação.

2 Fernando “fugia” da cantina. Queria fugir daqueles olhares. Um policial, a mulher que ele ama, uma morte. Ele gostaria de sumir e fugir de tudo aquilo. Um medo o tomava. Tentava não sentir raiva da rejeição e da “pena” de Carol. Tentava não pensar em Ilena. Tentava esquecer a mão de Carol no braço de Luciano. Queria morrer... Ainda sentia o olhar do policial em suas costas... Queria nunca ter existido! Ele sai em dor. Um desistente da própria vida.

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A Chave É de tarde. Foi um dia difícil para todos. Cada um que sentou em frente de Luciano passou sua angústia. Por dezenas de vezes Luciano ouviu como Ilena era alegre, boa amiga, boa pessoa e incapaz de qualquer maldade. Sua experiência lhe dizia o quanto aquilo era irrelevante e irreal. Ele tinha que conduzir uma investigação; mas não podia deixar de ser afetado por todo aquele afeto apresentado por aquelas pessoas. A união humana impressiona a todos. Em alguns casos o jovem policial chegou a se tocar com a emoção de seu entrevistado. Uma a uma, aquelas pessoas foram levadas por Carol a ele em uma sala vazia. As perguntas se sucediam repetitivas. Ele via como cada um reagia. Era triste e ele sabia que não estava ajudando muito, apenas alimentava um fracasso inevitável. Tudo que eles pareciam sentir pela amiga ausente se tornava um símbolo de sua importância em vida e também da presença, aparentemente, errônea de Luciano ali. A revolta e tristeza não pareciam conter nenhum tipo de hipocrisia geralmente presente nessas situações, como muito Luciano vê em seus dias. Parecia uma procura inútil. Ele se impressionava e se frustrava. Tinha os mais diversos pontos do comportamento humano em suas mãos: era fascinante, mesmo nos 70


momentos de delírio irreal... Era perdoável... Eles são humanos. Sinais de verdadeira amizade: fortes, inocentes e incapazes. Luciano e Carol sozinhos na sala: • Faltam quantos? - Sua expressão era cansada. Estava ali desde a manhã e foi paciente com todos. Carol olhava para ele e via mais um motivo para admirá-lo: sua obstinação diante das dificuldades. Luciano nota como o olhar de Carol tinha voltado para ele como era antes. A sensação lhe voltava também... • Só uma. Ela está esperando. Era muito amiga de Ilena.. - Luciano a encara. Vê a fragilidade em sua feição... Uma abertura: ele passa a mão pelos cabelos de Carolina. Queria senti-la de novo. Após aquele dia tão estafante, era bom ter uma sensação agradável novamente. • Todos eram muito amigos dela, não? • Tem razão. Ela era amiga de todos. • E aquele cara da cantina hoje... Fernando? - Carolina muda um pouco a expressão. Depois da troca de olhares de manhã não tinha encontrado mais Fernando. Imaginava no que Luciano poderia estar pensando... • Eu não tive oportunidade de falar com ele. Eu o procuro amanhã. • Você não tem o telefone dele... Aliás, nós já o 71


temos: a agenda. Por que você não liga para ele hoje? - Carol se surpreendeu com tanto interesse de Luciano por Fernando. Ela não podia imaginar aquela pessoa tão frágil e triste fazendo mal a Ilena... Também não sentia muito entusiasmo em ligar. Só ligou para ele uma vez e sentiu como ele estava tenso do outro lado da linha. Era um contato que Fernando podia não aguentar e ela sabia disso. Se incomodava pelos dois lados. Mas... • É. Eu posso ligar... - Luciano sabia o que estava falando. A tensão e hostilidade que ele viu em Fernando de manhã era algo claro. Algo explorável. Sentia como a compaixão de Carolina por ele a fazia não enxergar tais pontos; além da própria vaidade. Luciano sabia que Fernando sentia diferente dos outros. Uma visão diferente dos outros podia ser a chave para um melhor conhecimento daquela situação. Ele veria... • Tudo bem... Agora chame a moça. Como é o nome dela? • Frida. - Ela sai para chamar a colega. Luciano a observa. Tenta fugir das pressões do momento e da investigação nas lembranças do beijo que dera em Carol há alguns dias atrás. Sua mente já fantasiava momentos mais “aléns”, mas o serviço ainda estava a sua frente. Mesmo que inútil, ele tinha de checar todas as possibilidades. 72


Elas voltam:... • E então... Quando você teve o seu último contato com Ilena? - ... “ - Oi, Frida. Como você está? • Bem... A gente é que tá preocupada com você! Tanto tempo sem notícia... O que você tem feito? • Procurando trabalho, mas está meio difícil. • Eu ainda acho que você deveria voltar pra faculdade. Ficar sem terminar uma coisa parece besteira pra mim! • Eu sei! Depois que eu me ajeitar mais eu vou tentar voltar... • Ainda bem, Ilena... • E o curso... Está melhor? • É... Mais ou menos. A gente passou por uns “dinossauros”, mas agora até que tem uns professores legais... • E o pessoal? • Na mesma. O grupo não mudou muito. E os tipos continuam os mesmos... A gente sente muito a sua falta, Ilena. • Obrigada, Frida. Acho que eu precisava ouvir isso... • Por que, Ilena? Você está com algum problema? • Alguns... - A voz de Ilena mantinha uma polidez e alegria que às vezes falhava, demonstrando 73


suas fraquezas, o “eu” de cada um. Frida era o tipo de amiga com quem ela gostava de se abrir, mas mesmo assim não lhe participou tudo: foi até pouco... Frida era insistente e cativante. Sabe sempre dizer algo que desconserta as pessoas e as força a se expor. Era sua característica mais forte, além da visível independência e desenvoltura diante dos problemas e da vida. Isso lhe dava respeito perante seus amigos... Inclusive os mais chegados, como Ilena. Nesse contato Frida usara todos os seus dons num telefonema... Se preocupava, se importava; numa mesma medida que os outros; mas ela tinha a capacidade para agir... Ilena se sentiu melhor ao falar com Frida; ao se abrir. Frida tinha conhecimento disso. Sempre teve.” Ação! ...Luciano se surpreendeu com aquela garota. Diferente de todos os outros, apesar de triste, ela tinha uma incrível disponibilidade para falar. Carol já a conhecia... Frida era sempre assim; mesmo naquela situação... Ela demonstrava uma descontração que desconsertava até Luciano. Em grupo, pela manhã, não deu para notar essa diferença, mas agora... • ...namorado dela que... - Essa palavra despertou o interesse de Luciano além da observação anterior. Ninguém antes havia mencionado sobre namorados; só esperava ouvir disso com a família de Ilena. Ele se adiantou: 74


• Você o conheceu? • Não. Ela só me contou sobre ele porque eles tinham brigado naquele dia. Disse que ele tinha forçado a barra. - Os olhos de Luciano brilharam. A mente policial tinha encontrado o melhor e mais comum caminho... A paixão. Os pensamentos dele se manobravam em sua mente para a pergunta seguinte: • E qual o nome dele? • Eu não sei. Ela não me disse. - A expressão de Luciano mudou claramente. Carol via calada que aquilo estava dando em nada; como os outros... Ela compartilhava da frustração do policial. • Eu sei de um bar que ela ia muito. E ela também namorou um dos donos de lá quando ainda estava na faculdade. Ele saiu com a gente uma vez... Carol, você não o conheceu? - Carol respondeu tranquila: • Acho que não... • O nome dele é Cláudio. - Finalmente um nome. Luciano se aliviava um pouco em ver que aquela mulher tão falante podia, afinal, dar alguma informação pertinente. Algo que ajudasse na construção do “cenário”. • O bar é o ...Ateliê, no Jardim Bahiano. Luciano vibrava internamente. Ele sabia muito bem aonde era aquele bar. Se soubesse que Frida era tão próxima de Ilena teria falado com ela primeiro e não 75


por último. Teria poupado tempo e as informações seriam as mesmas. • Acho que é suficiente, Frida... • Você tem de pegar esse psicopata. Como é que ele pôde fazer tal monstruosidade a ... • Não se preocupe, Frida. Obrigado! - Luciano tinha ouvido aquela “rasgação de seda” o dia inteiro; agora que ele tinha uma pista, não queria mais aguentar. Só queria sair daquele lugar... Ele olha para Carol. • Nós temos que ir, Frida. Amanhã a gente se vê. - Frida se levanta para sair. Antes, Luciano a retém: • Frida. Você sabe de algum aluno daqui que fosse “interessado” em Ilena? • Que eu saiba, não. Ela sempre gostou de tipos estranhos... “Alternativos!” (Luciano se fixa no vazio por um segundo.)... Tchau, gente. Frida vai embora. Carolina tinha estranhado a pergunta de Luciano, mas imaginava que era um procedimento normal da investigação. Também ela, só queria ir embora. Sua saturação tinha uma fonte diferente, mas também estava no limite. A mente de Luciano traçava os passos de uma trama. Todas aquelas coincidências pareciam se conectar. A complicação do crime começava a fascinálo. Ainda olhava para fora da sala aonde Frida ainda 76


estava. De certo modo havia se desagradado com ela. Era uma pessoa afetada por natureza, talvez por isso a angústia que atingia a todos os seus colegas a capturava de maneira diferente. Toda aquela descontração e franqueza o incomodava, pois tiravam dele a margem de dúvida que ele tinha que ter diante das pistas... Com certeza iria visitar o bar e o ex-namorado de Ilena. Ele sentia que o assassino estava se movendo na sombra de novo. Toda aquela confusão parecia um grande “capricho”... Uma vaidade de um novo ser... Tirou as dúvidas da cabeça quando Carol lhe veio: • Lu. Vamos embora! • Claro! Vamos sim! A caminho do carro, o silêncio dos dois revelava a ambos a obscuridade dos pensamentos de cada um. O dia tinha sido cansativo para ambos. Era trabalho para Luciano; não muito normal, pois envolvia algo muito excepcional. E era para Carol algo a ser feito; mesmo que doloroso. Os passos de ambos em direção ao carro carregavam cansaço, perplexidade, angústia e esperança; essa última, de um no outro. Todo o dia de contato, apesar do “trabalho”, afinal, os havia aproximado. Como uma espécie de luz no fim de um túnel. Bom!

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“Blues” A música está no ar. Ela é diferente. Algo relaxante, que traz boas lembranças e incentiva um futuro mais suave. No palco, os músicos tocam antigas canções americanas que impõem um ritmo livre a todos os presentes; mesmo aquele que veio a trabalho: Luciano assiste a um talentoso show de “blues” no bar Ateliê. Ele está ali a procura de um dos donos do bar, Cláudio... E nesse momento o mesmo está tocando no palco; é o guitarrista. Luciano o observa; tenta ver o máximo do comportamento de alguém antes de fazer o contato. O homem tem uma aparência razoável e seu comportamento no palco indica descontração; facilidade de exposição, mesmo que pela música; e vivência. Luciano tenta não se prender a alguns preconceitos com relação a artistas. Muito bem, ele sabia que as pessoas podem representar algo completamente diferente do que realmente são. Cláudio deveria ter entre 25 e 30 anos, quase o mesmo que ele. Era músico, tinha cabelos compridos e podiase ver algumas tatuagens no seu corpo. Luciano pensa no que Frida disse: Ilena realmente gostava de tipos “alternativos”... Mas ele também é um empresário... O bar não está lotado. É dia de semana. Mas parecia que havia um grupo de freqüentadores bastante fiéis. 78


Isso indica certa estabilidade na vida do músico à sua frente, no palco... Não sabia muito o que esperar. Depois de toda aquela observação, sua maior esperança estava em quando foi a última vez que Ilena esteve ali... Está de serviço, por isso toma refrigerante; mas ao levar o copo à boca, acompanhando aquela música e pensando na trama em que se envolvia; sua mente não podia parar de pensar no que tudo aquilo daria... talvez em nada. Cláudio vem até ele... • Ele disse que você queria falar comigo!? Quando Luciano chegou, perguntou por Cláudio, um dos donos... O garçom lhe disse que ele estava no palco e que o avisaria... • Isso mesmo. Eu sou detetive Luciano da Polícia Civil. - Cláudio se antecipou: • É sobre Ilena, não é? - Luciano ficou meio surpreso. • Como sabia? • Eu ainda sou amigo da família. Uma das irmãs dela veio aqui essa semana e me contou... - Ele se senta em frente de Luciano. Sua expressão demonstrava apenas saudade; era um tanto diferente do pessoal da faculdade. Pertencia a outro ambiente, outra vida. • Quando foi a última vez que você a viu? • Faz tempo... Uns quatro meses. 79


• A amiga dela, Frida, disse que ela vinha sempre aqui. • É. Mas eu é que estava fora. Eu viajei um tempo. O pessoal aqui disse que ela apareceu algumas vezes. • Sozinha? • Não. Ela sempre andava em grupos. • E essas pessoas... Você as conhecia? • A maioria é o pessoal daqui mesmo. Me disseram que ela veio com um cara uma vez, mas saíram logo... • Alguém viu essa pessoa? • Que viu, viu; mas eu duvido que se lembrem... - Cláudio tanto abria portas para Luciano quanto as fechava. A primeira situação: ele mesmo tinha um álibi; estava viajando e de qualquer modo não tinha motivo... Estava com uma namorada e não demonstrava nenhum sinal de “stress” emocional; normal nesses casos... Depois um sujeito misterioso de quem ninguém se lembra. O jovem músico-empresário parecia ter uma vida concentrada e normal; Luciano já descartava a possibilidade dele como suspeito. Os tipos que estavam no bar realmente tiravam a possibilidade de alguém lembrar do tal sujeito. Todos pareciam estranhos. Ilena era sem dúvida uma garota popular e amorosa: Luciano sentia outras pessoas do 80


bar, provavelmente também amigos dela, o fitarem com curiosidade e certa revolta. Era um momento bastante singular. Seguem: • Quem me falou daqui foi a Frida. Ela disse que conheceu você! • Eu acho que me lembro. Ilena trouxe os amigos da faculdade uma vez aqui quando ainda estávamos namorando... É uma muito falante, não é? - A memória de Luciano executa o trabalho conjunto com a de Cláudio... • Isso mesmo! Ela também disse que vocês terminaram. Você podia me dizer a razão? - Cláudio guardava certa hesitação. Era sua vida, também... • Bom... Isso tem quase um ano já... Ah ... Ela me contou de um cara que estava “a fim” dela e que ficava telefonando direto pra ela... Eu pensei que ela quisesse que eu desse um jeito no cara, mas ela disse que tinha pena dele... que era um sujeito triste... rejeitado... Eu não tive muita paciência. Na época eu achei que ela ficou muito vaidosa com tudo aquilo. A gente não foi muito longe depois disso... Talvez se tivéssemos ficado juntos, isso não teria acontecido... - Era um tipo de consternação natural. Luciano sabia disso. Era uma defesa corriqueira da mente humana... Provavelmente não teria alterado em nada o ocorrido... Ele também sabe disso. 81


• Não se culpe. Ninguém poderia imaginar tal coisa... E o tal cara... Você sabe o nome dele? • Ela não me disse. Mas ele era da faculdade... • Tem certeza? • Absoluta! - Luciano via ali, afinal, uma porta que o próprio Cláudio não fechara: alguém por quem procurar e um lugar aonde procurar. Não conseguia imaginar aquele músico dando mais alguma informação que lhe valesse o tempo. Aquele lugar era do seu agrado, apesar dos olhares “injustiçados” dos amigos de Ilena. O homem à sua frente lhe inspira confiança, segurança; podia ser falso; mas seu trabalho parecia estar terminando naquele lugar... por enquanto... Luciano agradece a cooperação de Cláudio. Ele retorna em seguida ao palco: é o dono do bar e se permitia tocar; pelo menos tocando bem... Luciano não imaginava ter de voltar àquele lugar de novo; ao menos não em serviço; aquela música o havia relaxado muito e as possibilidades eram boas. Um leve sorriso se formou em seu rosto: talvez trouxesse Carol um dia... Informado; relaxado, recompensado. Novamente o recomeço.

Sob a escuridão 82

O bairro de Nazaré tem uma figura de aspecto


sombrio em seu território. Ele anda pela madrugada, sentindo o cheiro da noite. Depois do poder que descobriu em si mesmo, se sente um predador. Não consegue evitar. A leve culpa que ainda o atingia não consegue tirar o prazer de ter criado uma coisa tão complicada e brilhante. O que começou como um ato apaixonado e de desespero se transformou aos poucos numa trama que surpreende até ele mesmo. Sua figura não transparece nenhuma suspeita apesar da proximidade. O poder estava ali... Mas na noite os rostos aparecem na memória à medida que as luzes da rua diminuem de intensidade. O rosto sorridente se torna o rosto sem vida e depois não existe mais rosto. Ele tenta evitar o pensamento se transferindo para o poder que o elevava... Mas o arpejo quer recomeçar e as imagens se repetem novamente; na velocidade das notas musicais em sua cabeça. Seu passo muda um pouco. Não há viva alma na rua para observá-lo, apenas ele mesmo. Se imagina novamente poderoso; caminhando por entre os rostos assustados. Ninguém sabe: ele sabe... Não podia haver tamanha duplicidade no mundo... Seu rosto mudava a cada segundo. Outra feição surge à sua frente: viva, presente, forte. Ele quer outra vez. Ele a quer... poderá ser diferente dessa vez? - Imagina. Talvez seja sua redenção, mas a carne está presente, novamente... Ele teme a si mesmo e o 83


prazer que quer sentir. Triste e poderoso. Satisfeito e insaciável. Ele é sugado pela escuridão; por ele mesmo... A noite desaparece; como ele. Vinha o novo dia... Estará seguro?!

Visita Barris. O vento sopra no amanhecer de Salvador e traz uma visita especial para os sonhos de um garoto muito abalado. Ele dorme. Tem o sono agitado. Não tem sido um sono pacífico desde que descobriu que a irmã, que ele tanto adorava, estava morta, desfigurada, deitada numa gaveta do Nina Rodrigues. Até no sono ele havia sido afastado. Carlos sonha: “Ele está andando por um corredor com muitas portas. Sente a imagem de Ilena em seus pensamentos. Está nítida. Ele vê uma das portas entreaberta; se aproxima. Pela fresta vê uma mesa, parece a mesa da sala de sua casa. Ele abre a porta. É a sala da casa dele. Está muito iluminada, mas sua vista não está ofuscada. Ele entre e vê que tem uma pessoa sentada na cabeceira da mesa e outras de pé ao redor, um pouco afastadas. Ele se senta na outra extremidade da mesa. Olha para a pessoa à sua frente; o rosto não está claro, mas começa a se formar e então... é Ilena. Suas lembranças se contorcem por 84


trás dele. Sua mente não sabe o que pensar. Ela então se levanta e diz: “Cor. Dor. Sentimento. Você o vê!” Ela começa a andar para trás; Carlos tenta gritar o nome dela, mas não consegue. É uma visão passada e agora tinha sumido. Partido para sempre... Ele se sente tonto e então”... Ele acorda. Sua cabeça está povoada pelo nome de Ilena: sua imagem. Ele vê a claridade do dia começar a surgir em sua janela. Está calmo, mas profundamente triste; sente o seu peito doer de tanta angústia. Ele se encolhe na cama e chora silenciosamente. As lembranças da irmã lhe provocam um medo que incomoda. Ele queria sumir. Como vai ser viver sem Ilena por perto?... Pensa no que terá de enfrentar. Não tinha mais estímulo; antes fugiu para o seu mundo interior, mas agora não tinha mais para onde ir. Tinha que ir em frente... Tinha que viver sem Ilena.

2 Ondina. Outra pessoa com o sono perturbado está perto do momento de seu despertar. A hora da emersão. A agitação de seu corpo é natural, mas sua mente está contemplando imagens que aumentam mais ainda sua agitação. O suplício do dia anterior tinha levado a isso... Carol sonha: 85


“Ela está envolta em escuridão profunda. É calmo, mas uma solidão angustiante a atinge. Uma voz fala: “Perto!” Ela tenta procurar a fonte da voz, mas só há escuridão. Ela começa a se movimentar. Luciano aparece à sua frente. Sua visão agradável a atrai, mas à medida que ela vai na direção dele, ele se afasta; então por trás dele aparece a sua sala de aula; ela vê todos os seus colegas. Todos a olham; ela está confusa... A voz repete: “Perto!” Ela sai pela porta da sala e se vê na Barra, ao pé da estátua do Cristo. Ela sente o frio no estômago. Uma luz ofuscante surge atrás da estátua. Ela se move para trás... Então sente alguém às suas costas. Ela se vira e vê Fernando; se assusta e tenta se afastar dele. Ele não se move... Ela se volta novamente para a estátua e uma pessoa está lá de pé. É Ilena. Carol olha para ela fixamente e ela diz: “Muito perto!” Uma tristeza toma Carol diante da imagem de Ilena. Ela sente lágrimas descerem pelo seu rosto e um calor cobrir seu corpo. Um barulho começa a entrar em seu ouvido. Ela não sente nada” ...Ela acorda. O despertador tocava à sua frente. Carol ainda se sente mal com o sonho. Se senta na cama ainda sentindo um peso sobre si mesma. Novamente ela deseja nunca ter visto aquele corpo. Imaginava se o sofrimento iria acabar algum dia. Ela se levanta. Entra no banheiro... Debaixo do chuveiro pensa 86


nos colegas, no dia anterior. Como eles estavam tristes e revoltados. Cada um tentando manter a postura dentro de um mar de emoções conturbadas. Do mesmo modo que ela, todos eram atingidos por aquele momento de uma maneira exagerada e forte. Muito mais no caso dela que viu o corpo destruído e ainda o tem na memória. Ela sabe que em duas semanas ou menos, todos estarão normais; longe daquela mórbida trama. Mas não ela; de algum modo o destino a fez ficar numa “janela” muito próxima de tudo aquilo; próxima demais para esquecer, para não se envolver. Eles poderiam se salvar, mas ela, com certeza, não... Luciano também estava presente nos seus pensamentos. Ela ainda sentia uma forte atração por ele. Essa lembrança faz a água tocar diferente no seu corpo, mas logo lhe vem outra lembrança: a imagem triste de Fernando no sonho a fazia recordar do telefonema que dera para ele no dia anterior... Pediu que ele ficasse um pouco depois da aula para falar com o policial / Luciano; como o próprio pedira. Carol sentia a cada palavra de Fernando a tensão por estar lhe falando. Não podia evitar de sentir pena. E sentia pena por sentir pena. Sentia-se um pouco culpada. Tentava afastar a vaidade, mas não podia fazer nada além, por ele... Já imaginava como seria aquele encontro mais tarde. Queria somente ignorar 87


tudo aquilo, mas não podia; até seus sonhos agora estavam contaminados por aqueles problemas: terríveis lembranças... Ela só queria voltar a “viver”. Se limpar, como no banho.

Nada para falar Sair da cama parece uma missão impossível de ser realizada. A cada momento que se passa acordado as imagens surgem na memória. São as lembranças de alguém carinhosa, alguém viva e feliz. São poucas as famílias que conseguem se manter unidas nos dias de hoje. Drogas, brigas, depravação pessoal e principalmente falta de diálogo. Carlos pensa que apesar dos problemas corriqueiros da vida, sua família era realmente unida e feliz... Então, porque alguém estranho; um doente desajustado; tinha que tirar a vida de sua irmã. Nada mais seria igual. Daqui por diante sua família viveria à sombra de um ato monstruoso de uma pessoa sem rosto, a que tirou a vida de Ilena... Ele pensa na irmã a cada segundo. Sentia a presença dela nos seus sonhos. Não pudera nem se despedir. Suas felizes recordações são sempre cortadas pela sensação de perda. A falta que Ilena faz é como a falta que seu próprio corpo faria. Não só para ele, mas também para a família. E ele sentia por 88


eles também. Ele caminha até a cozinha. É um gesto automático, pois não tem fome alguma. Passa à porta do quarto dos pais. Sua mãe está na cama. Parecia tão ou mais chocada que ele próprio. Como poderia ajudar? - Imagina... Seus pesados e dolorosos passos o levam até a mesa. Uma de suas irmãs está lá. Seu olhar perdido encontra o olhar dela. A angústia e a seriedade estão estampados em seu rosto. Tenta não sentir mais falta da irmã morta do que amor pela irmã viva à sua frente; mas não pode evitar. Carlos tinha em Ilena uma espécie de amiga perfeita. Tinha o que há de bom em sua mãe, o que há de bom numa irmã e tudo que se poderia querer de uma amiga. Os momentos com ela pareciam distantes, como alguém que tivesse ido viajar... Ele anda até a janela. Sua rua; tão calma... tão solitária ela ficaria agora, sem Ilena. Ela era amiga de todos. Carlos se sente até um pouco culpado por ter tido tanto amor da irmã. Pensa que pode ter privado alguém de tal dádiva... É o prazer de muito poucos. Carlos tinha 14 anos. Sente-se tão só quanto um órfão, apesar de ter mais duas irmãs e os pais. Novamente sente culpa: sentiria tanto se fosse uma das outras irmãs a ter morrido? - Tenta afastar esse pensamento da cabeça. Pensa na irmã sentada à 89


mesa atrás dele... Olha a barraca de doces em frente do seu prédio. Ela está fechada e tem uma tarja negra no pequeno balcão... Ele sabe porque. Todos gostavam de Ilena. Não conseguia imaginar alguém não gostar dela tanto que a matasse... Mesmo em sua pouca experiência ele pensava nisso como uma coisa impossível; matar por não gostar... E provavelmente o era... Ele se volta e anda até a irmã. Ela está com um copo na mão. São 10 da manhã e seu pai e sua outra irmã saíram: cada um reage do modo que lhe é sentido. A mãe se fechava em si mesma, no quarto. Uma irmã ia para o colégio, provavelmente os amigos lhe dariam alento. O pai trabalhava, talvez precisasse, talvez quisesse; com certeza não parava de pensar em Ilena, era uma dor impossível de não ser sentida. E a outra irmã está ali sentada, sozinha, triste... O que podia ser pior? Talvez a situação dele fosse tão ruim quanto a de todos. Ele é o mais jovem. Era o mais apegado a Ilena. E era quem mais a conhecia. Ele não iria desapontá-la. Nunca mais ela sofreria de novo. O mostro destruíra Ilena, mas não destruiria tudo o que ela representava e amava: ela mesma, sua família, seus amigos, ele... Carlos anda até a irmã. Os olhos dela estão inchados. Ele a levanta da cabeceira. Ela é mais velha dois anos, mas ele já é mais alto. Ele olha diretamente para aqueles olhos sofridos e a 90


abraça com muita força; nem mesmo Ilena ele tinha abraçado daquela maneira, e os dois viviam grudados. A irmã sente nos braços do irmão a cumplicidade numa tristeza que os vinha corroendo há dias. Talvez por ele sentir tanto a falta de Ilena, podia entender e sobrepor o sofrimento de todos... Eles se soltam. Carlos dá um leve beijo no rosto dela e a senta de volta. Ambos suspiram com certo alívio. Ele dá um discreto sorriso e então se dirige ao banheiro. Sabia que tinha uma espécie de batalha pela frente: enfrentar uma inquisição da polícia e ao mesmo tempo se conter para não perder o controle de si mesmo. Ele era o mais próximo de Ilena e teria que ajudar, teria que lembrar, teria que relembrar tudo... E tudo significava Ilena viva. Ele não deixaria o monstro destruí-lo também. Faria por Ilena; para sempre.

Anti-presença É uma batalha a cada dia levantar da cama. Pensar em abrir os olhos e ver aquela casa onde esteve a vida toda. É dele. Única coisa deixada por seus pais quando ainda tinha dois anos. Criado por pais adotivos, agora ele está sozinho, como sempre esteve, como sempre está, como sempre se sente... Fernando sente a vida como um livro, onde cada 91


dia é um capítulo, mas que não apresenta nenhuma surpresa. Nunca pensou em destino ou futuro. Estudou e entrou na faculdade, não por vontade própria, mas porque era o passo seguinte a ser dado. Assim como mastigar e depois engolir. Ele tenta não sentir pena de si mesmo. Se acha uma tragédia humana. Uma grande conturbação de paixões irrealizáveis e de certo modo incômodas. Algumas vezes se vê como um mártir: alguém que deva sofrer; mas muitas vezes sente a hostilidade em seu peito. Não possui muito, mas é possessivo. Não tem compromisso, mas é fiel. Não tem fidelidade, mas sente ciúmes... Ele se entristece e se enraivece ao mesmo tempo... Por que? Fernando se prepara para ir à faculdade. Sua fome matutina é limitada. Sair da terra os sonhos e voltar à sua vida é uma experiência que lhe tira o apetite. São raras as vezes que sente fome antes das três da tarde. É como se fosse o período necessário para ele encarar com naturalidade aquilo que lhe parece patético e sem sentido: sua vida. Está cedo. Ainda tem tempo para chegar ao campus. Ele caminha até lá todos os dias. Gosta muito de andar. É um dos poucos prazeres que tem, pelo menos é um que não lhe causa angústia no final... Anda pela casa. A impecável bagunça lhe dá um certo orgulho... tenta se convencer de que é livre; não tem 92


que se preocupar com os outros; mas ele sabe que não é verdade. Daria tudo para ter o prazer de uma companhia naquela casa. Alguém que tanto compartilhasse da bagunça quanto ajudasse a arrumá-la. Ele próprio não tem estímulo para fazê-lo... Inevitavelmente pensa em Carol. Nunca a convidou para visitá-lo, apesar de desejar isso mais do que deseja continuar a viver. Sabe que ela não aceitaria, e depois... podia acontecer como quando convidou Ilena para vir... Ele para de caminhar pela casa, olha o relógio. Seu último pensamento o conduzira para a realidade que ele teria de enfrentar hoje... Num lampejo o telefonema de Carol lhe volta à cabeça: sua voz soava doce como sempre. Ela falava coisas sérias: “Ficar após as aulas!” “Falar com o policial!” “Ilena!” Mas seus ouvidos eram ativados pela memória. Um tempo, não muito distante, quando ele se abria com ela, contava suas frustrações e problemas. Mas infelizmente, mais uma vez, não pode evitar, e dessa vez estava sendo bem mais forte. Era próximo, doloroso, triste. A sua necessidade de contato chocava com a falta de vontade dela por contato. Era como uma proteção. - Ele imagina. Carol queria se proteger e ao mesmo tempo poupá-lo; mas uma tortura maior se formava... Fernando mal pode esperar para vê-la, mas quando a vê e não pode tocá-la... Uma dor o consome. 93


Um sentimento quase sólido se forma em sua alma e penetra-o com dor, como uma faca no peito... Os pensamentos e sentimentos se cruzam novamente fazendo-o lembrar que tem que ir. Suas memórias por Ilena agora são frágeis. Algumas imagens lhe vêm à mente, mas aquela canção parecia já ter acabado, mesmo antes do final. Se sentia confuso com a morte dela. A idéia de falar com um policial o preocupava. Talvez ninguém nunca tenha sabido. Nem mesmo para Carol, isso, ele contou. Era parte do passado, mesmo que ainda tão presente. Teria de enfrentar isso. Talvez nada apareça... A imagem de Carol volta a sua mente enquanto ele já está saindo à rua. A caminhada seria relaxante, sempre é... Mesmo no dia em que se revelou para Carolina; quando sua tensão era tão grande que mal podia articular; andar foi o melhor remédio... antes e depois. As palavras daquele dia ainda ressoavam em sua cabeça... Ele sabia que iria acontecer, não podia ser diferente. Como Ilena havia dito a ele um dia: “Você não pode amar, porque não tem amor por si próprio!” E era verdade. Talvez daí venha sua hostilidade. É uma raiva que se comprime da incapacidade de amar ou de ser amado. Fernando não consegue evitar de ficar triste. Um último choque dos pensamentos e das lembranças o faz visualizar o que terá de enfrentar hoje: ele, Carol e o policial. 94


Era aquele homem que olhara diretamente para ele e parecia ter visto a sua alma. Talvez fosse essa a razão da sua maior preocupação: Fernando sempre teve o dom de em silêncio observar e auto-argumentar sobre as reações dos outros ao seu redor; era um talento que vinha da solidão. Agora ele iria encarar alguém que parecia ter esse mesmo poder; talvez até mais que ele... Mas o que Fernando mais temia era ser exposto para Carol... Não queria perder o mínimo que tinha; e era tudo: a sua contemplação. Sua caminhada silenciosa. Pensar é ainda o que lhe resta: revê; prevê; recua diante de si mesmo... Fernando só tem a si mesmo. É com quem ele conta... Triste. Ele chega à faculdade.

Evasões Um dia de aula na Faculdade de Comunicação pode ser tanto uma tortura interminável de informações inúteis, quanto pode ser uma boa oportunidade de aprender; realmente. Depende do dia, do professor ou do espírito dos estudantes... E nesse dia, dois estudantes em especial estão passando um dia de agonizante expectativa. Fernando chegou cedo como sempre. Sua 95


entrada solitária na sala de aula e o contato distante com os outros alunos se mantiveram. A única pessoa que costumava lhe falar mais, agora, não lhe fala mais... Carol chegou naquele dia ciente do que teria de enfrentar após as aulas. Diferente da maioria dos dias depois que Fernando se declarou, ela, foi quem primeiro olhou para ele. Sua expressão estava tão desolada como sempre. As poucas vezes que o vira sorrir foi na sua presença. Ela sentia um pouco de culpa. Nunca imaginara que geraria sentimento tão forte em alguém. Sentia também medo pela mesma razão... Ver aquele jovem de aparência tão frágil e triste confrontava com o interesse de Luciano por ele. Seria ele capaz?... Talvez fosse ingenuidade dela pensar que não. Talvez seja ciúmes de Luciano! - Pensa seu ego, mas rápido esbarrando novamente na culpa... Não poderia ficar vaidosa nem com o sofrimento de um ou com a hipótese do outro... Ela viu o corpo de Ilena no pé da estátua; nunca imaginaria alguém ser tão cruel. Talvez aquela fragilidade à sua frente fosse somente aparência. Ele já tinha mencionado que já tinha sido rejeitado muitas vezes antes; o que aumentava ainda mais o seu sentimento de culpa. E se fosse um estopim... Ela viu aquele homem curvado sobre si mesma, desviando o olhar de todos, mesmo sem ninguém olhar para ele além dele próprio; e ela. 96


O que realmente ela sabe sobre Fernando... Além do que ele contou. - O pensamento a assusta. Ela queria não ter que passar por isso... • Oi, Fernando! - Sua vista subia devagar percorrendo aquele corpo que ele tanto fitava com desejo. E ela sabia disso. Mas naquele dia Fernando se sentia distante até dos próprios sentimentos. Fora de sua órbita natural... Tinha atenção... • Oi! - Ela não sabia muito o que dizer. No telefonema repetira o pedido de Luciano; tinha um leve propósito; e mesmo assim sentia a pressão que vinha dos dois lados... Nesse frágil momento, sua jovem mente estava insegura sobre como devia agir. A qualquer momento tudo poderia desabar. • Desculpa eu ter ligado... Luciano... (teve um breve arrependimento por ter se referido daquela maneira.)... queria falar com todos que conheciam Ilena. Você saiu ontem antes de eu poder te avisar... Desculpa. - O arrependimento dela parecia ter várias fontes. Fernando percebia isso. Sentia um certo poder por causar, pelo menos, isso nela. Ele tentava se segurar nisso e na sua contemplação para não ceder ao pranto generalizado. Já era visto desolado o suficiente para não querer começar a se ver assim. Fernando abomina as Tendências Suicidas. O pouco que ele tem de força em seu espírito é para se manter, se não 97


próximo, além daqueles que o rodeiam. É solitário, mas é reconhecido. • Tudo bem... A que horas ele chega? • Deve chegar umas onze. • Tá certo! - Ela dá um sorriso amigo. Tanto o conforta quanto o enfurece. O que mais poderia esperar... Olhando ela se mover para sua cadeira, vê não o que esperar, mas sim o que quer. Não podia acreditar que ainda conseguia ficar alterado por ela. Por meses se desligou de tudo até ela “surgir” à sua frente. Ele nunca imagina uma paixão mais forte que a outra. Parece que nada é aprendido. Tenta ver os casos de modo diferente, mas há uma transferência e uma proximidade que chegam a incomodar. As visões dos momentos de sua vida se aglomeram naquele momento. O olhar do policial no dia anterior o tinha despertado de várias maneiras. Novamente olhando para Carol, ele contempla uma visão além da dela própria... A intimidade que ela parecia demonstrar para com o policial enegrecia sua mente. Por que eles eram assim? Por que ele? - Fernando se lamenta por ser como é. Parecia sumir dentro de si mesmo. Parecia não existir.

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2 • Carol! - Ela se vira. Estava de pé, recostada na parede, perto da porta fechada de uma das salas do campus. Era Frida. • Oi! - Quem está esperando? • Luciano está falando com Fernando. - A cabeça de Frida começa a aferir tudo que lhe é possível. - Por que hoje? • Nossa, ele é tão estranho. Não me surpreenderia se ele fosse um psicopata. • Que é isso, Frida... Ele só é calado. • Nem tanto! - Carol se interessava pelo que Frida dizia mesmo sabendo que ela sempre falava dos outros, e para os outros... Não como “fofoca”. Era mais um tipo de honestidade direta. Algumas vezes irritava até os melhores amigos; mas Carol quer saber o significado daquilo. Seu envolvimento não era mais uma questão de fazer ou não; ela já estava na trama... desde o momento que aqueles dois homens entraram juntos naquela sala: sua vida também estava por ser exposta... • Como assim, Frida?... Você sabe alguma coisa? • Eu o vi um dia discutindo com Kleber... • Aquele garoto!? • Isso mesmo... Aparentemente Kleber disse algo 99


que o irritou. Ele pegou e riscou o carro de Kleber: depois saiu correndo. Para mim... não parece coisa de gente certa. Carol tentava olhar a perspectiva de Fernando. Não o conhecia bem. Só conseguia ver a sua fragilidade, mas ele era um homem... Kleber deve ter dito algo de muito desagradável. Era um garoto antipático de qualquer jeito... Carol ouvia as análises sensatas e absurdas de Frida e muitas vezes “voava” em seus próprios pensamentos... Luciano havia pedido para ela sair... quando no dia anterior deixou ela ouvir todas as “entrevistas”. Qual poderia ser a intenção dele com Fernando?... - Sua imaginação trabalhava com a ajuda das palavras de Frida. Será que poderia haver um lado hostil em Fernando... Sempre encarou o olhar dele com vaidade e pena. Sabia que não era algo inocente; seria inocência dela pensar isso. Sentia o olhar dele penetrar em cada fresta de sua roupa. Isso a incomodava, mas sabia que era “normal”... Um medo repentino lhe veio de haver algo mais no olhar dele... A hostilidade na qual ela pensara lhe volta à mente: todos os seres humanos a possuem; ela se lembra. É um fator natural... Mas nem todos são capazes de controlar; às vezes tudo sai do controle e o “olhar” perde sua doçura e o corpo age, mesmo sem o consentimento da consciência... Carol enxerga. Uma 100


pergunta lhe vem: • Fernando já foi a fim de Ilena? - A pergunta surpreendeu Frida, finalmente parando de falar. Mas ela continuará a aferir... Ainda mais. • Não sei. No primeiro semestre até que eles se falavam. Mas esse sujeito parece mais um mortovivo. Ele deve gostar é de mulheres “dark” ou “punk”. - Carol sorri discretamente... Se ela sabia pouco de Fernando, menos ainda sabia Frida que falava tanto... Ela se lembra de uma coisa que disse a ele um dia: “Eu vejo em você um coisa que eu acho que ninguém mais vê!” - Era a sensibilidade. Todos viam a sisudez e o fechamento de Fernando... Carol podia ver a paixão e a solidão. Tranquilizava um pouco, tal pensamento. Talvez Luciano também só conseguisse ver o que os outros viam e por isso se interessou. Afinal, não havia tanto com que se preocupar...

3 Ele só quer ir embora. Cada pergunta parece invadir todas as frustrações que Fernando sempre escondeu tão bem dentro de sua solidão e angústia. Nesse momento ele sente falta de ambas. Nelas ele podia se refugiar do mundo; sentir pena de si mesmo o protegia de se expor. Ele mesmo não gostava de 101


ouvir os próprios problemas. E ele os reconhece muito bem. O policial à sua frente o despe com uma destreza inigualável. Seria ele tão transparente?... Sempre teve o poder de alienar as pessoas através de um bem treinado laconismo, mas desta vez ele enfrenta um obstinado: Luciano lhe fazia perguntas afirmativas que ele sabia que eram verdade; e não havia evasão no mundo que evitasse sua vergonha em admitir tais coisas... Sozinho (sempre). Amigos (antisocial). Interesse (nenhum). Nervosismo (constante e evidente). Seu comportamento só descrevia alguém extremamente confuso, contido e hostil em si mesmo. • Você ligava muito pra ela? - Nos últimos meses, não. Mas Fernando se lembra de um tempo quando tinha o número do telefone de Ilena fotografado na cabeça. Gostava de falar com ela, mas ela o tinha como colega. Isso era um aceno normal, mas a semelhança com o presente o fazia lembrar como fora rejeitado novamente naquela ocasião. Começou a temer até onde aquele policial iria: o que ele queria descobrir na verdade... O que ele poderia descobrir?... Detestaria se expor. Detesta se expor. Queria sumir dali. Se sentia perdido. Estava com medo. O único poder que tinha estava se esvaindo através do questionamento de Luciano. Como um grande paradoxo, começou a sentir falta de sua casa que sempre o lembrava 102


solidão. Que estranha trama era aquela que começava a revirar seu estômago... Uma raiva súbita lhe vem por aquele policial... Só queria ter um “colo” para deitar. A nobreza do amor. Carol.

4 Tudo que via à sua frente era um jovem triste que lhe dava respostas curtas e evasivas. Mas o modo como não negava afirmações ditas em tom interrogatório não lhe deixava muita dúvida: Luciano via no passado e na vida daquele jovem uma estranha semelhança... Seus pais morreram quando ele era criança. Os de Luciano: a mãe morreu de parto e o pai o criou com certa distância; também era policial; morreu em serviço (era o prelúdio de outra trágica semelhança: Cristiano). Fernando não tem irmãos. O mais próximo disso que ele teve foi Cristiano. Tanto a perda quanto a solidão tinha afetado suas vidas. Fernando se tornou fechado e Luciano se tornou irônico. Um policial. Eram faces estranhas que se olhavam e viam as suas próprias semelhanças. A morbidez da vida estava em ambos. Num, em si próprio; noutro, ao seu redor. Coisas que eventualmente se penetram e se expandem. A hostilidade que Luciano vira em Fernando no dia anterior continuava lá. Não era só do 103


momento: dele e Carol; era algo de constante; algo tão forte quanto a sua própria influência no momento. Ele lembra do incômodo de Carol quando os apresentou. O quanto será que ela estava incomodada? - talvez mais do que qualquer um possa imaginar. Esse era o poder de Fernando... Toda fragilidade daquele rosto podia afetar Carol, mas não ele: o policial Luciano também procurava uma fuga. Uma abertura naquela face.

5 A porta se abre. Fernando vê Carolina e Frida. Queria dizer algo, mas se prende ao silêncio. Se afasta enquanto ouve Luciano cumprimentar Frida e ela dizer: • Tomara que você pegue o assassino! - Fernando para um momento. Ilena estava morta. A desordem de sua vida parecia no auge. Apaixonado por Carol. Enfurecido com o policial. Exposto. Sentia uma estranha culpa e uma vontade de gritar; queria quebrar algo... ou alguém. No lampejo ele pensa: “Devia ter sido Frida!” Sente que Carol o olha. Era uma telepatia misturada com o elementar. Talvez sua rudeza tenha finalmente transparecido... Sempre esteve lá... Ele volta a andar e se vai. Sozinho. 104


• Não se preocupe, Frida. Eu sinto que ele está para agir de novo. - Carol via uma segurança na afirmação de Luciano que a amedrontava. Saberia ele algo a mais? • Eu tenho que me preocupar. Se ele pegou Ilena, pode pegar qualquer outra pessoa. Até eu... ou Carol. - Um repentino pensamento quebrou em Luciano: “Não seria tão mal! Frida!” A auto-ironia de Luciano se fortalecia com as palavras inconsequentes de Frida. Carol já estava acostumada com a amiga, mas não Luciano... Como no dia anterior, ele foge. • Eu preciso ir. Tenho que passar no Nina para ver uns relatórios. • Tudo bem. Você me liga de noite!? • Claro! - Luciano sentia o olhar lascivo de Frida. Ela estava dando na vista. • Tchau! Tchau Frida. - Ele saiu sem nem dar um beijo em Carol; estava por demais afetado pelas palavras de Frida e também pelo interrogatório... Ele deixa as duas. Frida pensava em planos para como “ajudar” a investigação. Sua memória forçava para recordar conversas com Ilena. Talvez houvesse algo de objetivo a ser feito. A morte da amiga a havia afetado também, só que não lhe havia afetado sua capacidade de aferir e sua vontade de descobrir a verdade. Desse modo ágil, ela mantinha sua paz... Era um conforto 105


que Carol não tinha... Ela ainda pensava no tempo que Luciano e Fernando ficaram dentro da sala. Imaginava como devia ter sido difícil para Fernando se abrir. Ela se lembra do dia em que ele se revelou para ela: nunca o vira tão tenso. Tentava formar frases que tornassem a sua dedução fácil. Algo que tirasse dele a responsabilidade da declaração. Sentia em seus olhos um tormento nunca visto. Quando a compreensão lhe veio mal podia acreditar: aquele homem tão grande estava encolhido ao seu lado; com medo de si mesmo; com medo do mundo... simplesmente querendo dizer: “Eu amo você!” A frase nunca foi pronunciada, mas Carol disse: “Eu estou começando a entender...” E tudo ficou claro; e também, profundamente difícil. Os olhos de Carol se perdem no leve caos do momento: Ilena, Frida, Fernando, Luciano, ela... Como a sua vida tão simples (faculdade, publicidade, estágio, academia, praia) pôde ter virado esse conturbado frenesi de situações, emoções e pessoas? Volta a pensar em Luciano; sente um leve arrependimento por sentir tanta compaixão de Fernando: de que modo o jovem policial interpretaria tais pensamentos? As dúvidas do dia recaem sobre ela novamente... Frida à sua frente lhe apresenta argumentos contínuos e fortes que ela não sabe com segurança como os deve julgar. Ilena morrera e ela estava / se sentia enterrada dentro 106


daquilo. Carol espera que o tempo lhe apresente algo por que vir... - Ela está extremamente confusa. Numa tempestade de almas.

6 A caminho do Nina Rodrigues, Luciano dirige pensando nos novos enlaces da trama. Fernando lhe chamava atenção mais além que o próprio caso. Todos que o rodeavam viam um jovem de comportamento fechado e concentrado. Conseguia ver no seu passado um incontável número de problemas que iam da perda da família à dificuldade de socialização. Sua tentativa desesperada de se evadir dos problemas com respostas curtas e simples indicava um claro desapreço para com a realidade. Tudo era encarado com tamanha profundidade que os atos mais simples de relacionamento humano o assustavam. Por isso sentia a paixão por Carol tão forte. Era encarada de modo único e sublime. Ele não conseguia simplesmente ser espontâneo, natural. Luciano imagina como deve ter sido torturante a sua declaração para Carol. O medo quase sólido de ser rejeitado e a insegurança de sua capacidade como homem o tornava ainda mais distante da realidade. Ele não sabia se valer do seu lado animal muito bem. E era disso que Luciano mais 107


conseguia tirar sua hostilidade. Era algo que nascia do cruzamento da solidão com a frustração. Fernando havia se construído ao redor de uma série de desejos não realizados. Luciano via nele uma imensa confusão e tristeza... O encontro com aquele jovem tão confuso havia despertado um montante de conclusões e sensações que faziam Luciano aferir sobre o caso, sobre como tudo aquilo estava se encaixando, se tornando algo inigualavelmente fascinante. Não era só a procura da resolução de um crime. Era a procura de razões primárias dos desejos humanos. Coisas que amedrontam Luciano. A proximidade de tudo aquilo o fazia lembrar de si próprio. Ele se lembra que também é sozinho. É um modo menos afetado de solidão, mas coisas demais o levavam para sua própria vida. O que fizera! O que tem feito! E o que quer fazer... Toda aquela aparente fragilidade de Fernando, que esconde uma hostilidade latente, faz Luciano se imaginar também escondido; só que dentro do policial: esperto, irônico, forte. Não consegue se negar... A coisa que ele via de mais claro em Fernando, estava claro nele também: está apaixonado por Carol. Foi o que mais o atraiu em Fernando... Mas diferente dele, Luciano tem uma escolha. Ele tem Carol. Para Fernando, só aquilo que Luciano se propusera: culpa. Existir. Ser. 108


Sonda No auditório do Nina Rodrigues estão alguns estudantes, um grupo de policiais interessados, especialistas que irão se dirigir e Luciano. Estão todos reunidos para analisar os resultados das investigações técnicas a respeito do assassinato da jovem Ilena Fernandes. A demora com resultados químicos e patológicos é normal numa cidade tão pouco preparada como Salvador. Mas havia um interesse especial por aquele crime, por parte de todos; por isso tantas pessoas presentes. Luciano que vira tudo desde o começo: o corpo desfigurado, a família desolada, os amigos, a entrada no mundo de Ilena; ele se sentia fazendo parte de toda aquela trama. Aguardava as informações com expectativa. Não sabia o que se podia esperar. Sua tensão ia além do interesse que os outros presentes sentiam. Era amargar a continuidade do contato... Não conseguia parar de pensar em Carol e eventualmente em Fernando... O doutor Azevedo abre os relatórios. Era o patologista mais experiente e teve o contato inicial com o corpo. Ele estava a par e iria colocar também os outros: • Boa tarde. As informações que temos a dar são extremamente fortes. Demonstram uma crueldade e 109


destreza que nas mãos desse assassino se tornam uma força de enorme capacidade visceral. A vítima, Ilena Fernandes, foi morta por força de uma hemorragia generalizada. Além da desfiguração do rosto e de partes do corpo, ocorrida “pós-morten”, existem duas profundas penetrações no peito causadas por instrumento pontiagudo, aplicadas com extrema força física. Há sinais de asfixia e provavelmente ela já estava inconsciente quando sofreu as duas estocadas no peito. Há sinais de penetração sexual tanto na vagina quanto no ânus. A rigidez dos órgãos demonstra que essa violação também foi “pós-morten”. A análise química demonstrou sinais de esperma dentro da vítima. O tipo sangüíneo do elemento é O-Positivo. Não havia sinais de drogas ou álcool no organismo da vítima e sinais encontrados nos dedos dela demonstram que ela estava lúcida e tentou reagir ao atacante. Infelizmente, como as pontas de seus dedos foram cortadas não se pôde averiguar qualquer conteúdo que pudesse estar em suas unhas. O atacante deve ter ficado com algum arranhão no braço ou no rosto... Não se pode afirmar nada. Biologicamente foi o que se pôde aferir a partir do corpo da vítima. Como patologista devo registrar que nunca vi tal minúcia ou crueldade. O relatório do psicólogo irá confirmar as condições dos traumas 110


corporais. Obrigado pela atenção. - Todos ficaram afetados de maneiras diferentes. Os estudantes faziam anotações apressadas e detalhadas. Era material para pesquisa futura; realmente. Tanto em investigações policiais quanto em patologia. Luciano conhecia muitos daqueles fatores. Alguns dos outros policiais presentes o olhavam com certo interesse e admiração. Eles sabiam que Luciano estava encarregado de procurar e enfrentar tamanha força e destreza. A crueldade que o doutor Azevedo tanto falava era uma realidade inegável. Um homem com tal poder não tinha respeito pela vida humana; ou mesmo pela sua representação: a total desfiguração da vítima não só feria os olhos de todos, mas também massacrava aqueles que a conheciam (sua imagem). Luciano, como todos ali com alguma sensibilidade, via que para aqueles que conheceram a verdadeira expressão da vítima, o assassinato a havia matado mais de uma vez: ele tirou a sua consciência, tirou sua vida, sua dignidade e por fim tirou a sua imagem. O trabalho policial e a convivência com o mesmo endurecem o comportamento, mas mesmo os mais profissionais declinavam em suas certezas sobre a humanidade ao entrarem em contato com tal poder. O assassino era louco, com certeza, mas sua defesa era a própria loucura e o poder que ele descobrira: matar e com 111


crueldade. Era um prazer além... O doutor Mattos; psicólogo da Universidade Federal da Bahia; ele pode ir além: • Junto com as análises patológicas e químicas do corpo da vítima, eu tentei avaliar através do “modus operandi” do elemento, como pode ser o seu perfil psicológico. A extrema crueldade aplicada indica um comportamento preso para com os outros. Esse ato demonstrou sua libertação. Os seus fatores de relação social devem ser extremamente confusos; podem ser fechados e dissimulados ou até avessamente sadios. A meticulosidade que o levou a cortar os dedos da vítima demonstra isso, a aparência saudável que ele nutre, e também um grande cuidado em se proteger. De certo modo eu acredito que nem ele mesmo esperava conseguir gerar tanta violência. Provavelmente ele tinha a intenção primária de deixá-la inconsciente e daí tirar satisfação sexual, mas quando em suas mãos; o poder de causar dor, sofrimento e medo; a sua excitação deve ter rompido a barreira da psicose que provavelmente estava latente nele; escondida como ele mesmo estava do mundo... Esse homem não hesitará em matar de novo quando sentir em suas mãos, novamente, o poder que ele descobrira; no caso dele eu diria que o primeiro ato foi como uma primeira dose de um entorpecente: ele sente poder, 112


depois culpa, depressão; mas por fim ele vai sentir necessidade, novamente... Agora que sua hostilidade, sua psicose foi libertada; cedo ou tarde, ela vai exigir “alimento”. É o que eu posso dizer... Espero que ajude. Obrigado. Os próximos passos da investigação deveriam ser procurar suspeitos com sangue tipo O-Positivo e talvez com marcas de unhas; procurar a arma do crime, e pessoas próximas a Ilena com esses comportamentos descritos... Os presentes sabem disso... Luciano se lembra da fonte no Ateliê. Cláudio falou de um elemento que ligava muito para Ilena. Talvez esse comportamento obsessivo fosse uma possibilidade. Se o psicólogo estava certo sobre o modo como o assassino se esconde; dentro de outra pessoa; então seria realmente difícil. Luciano tenta manter os fatos em perspectiva... Por um momento pensa em Fernando (aquela fragilidade...), ele pensa também em Cláudio (aquela espontaneidade de músico...); queria saber mais. O assassino é um namorado, ou pelo menos um pretendente. A cabeça de Luciano fervilhava com as palavras do psicólogo. A intenção sexual sempre presente nesses casos era realmente anômala. O nível de anormalidade que o atingia era tanto que mal podia controlar a extrema confluência de pensamentos em sua cabeça. Conseguiria pegar o assassino? - Não só 113


ele se perguntava isso; os outros policiais presentes o olhavam com interesse. No que aquelas sondagens podiam ajudar afinal...: anatomia, patologia, química, psicologia, violência... Dava para sentir cada mente naquele recinto formar a imagem do assassino na cabeça: o monstro ideal! Ele matara Ilena, iria matar de novo; eles quase torciam por isso; e ninguém tinha idéia do que viria pela frente... No palco, os doutores Azevedo e Mattos relêem seus relatórios: estavam certos? Conseguiria alguém pegá-lo!? Luciano se entristecia e pensava em Carol. Após toda aquela tempestade de dia: ele ainda ligava uma ponta de sua solidão com a imagem de Fernando. Não tinha mais o que fazer nesse dia... Quer ver Carol. Quer esquecer! Esperará que o tempo se encarregue daquilo... No momento a última pertinência é ele... E Carol.

Terceira Visão Um tipo de música diferente está no ar. O ritmo é forte; uma batida contínua. É também um tipo de arpejo, mas é sedutor. Tem um lado alegre. E é a alegria que está ao redor agora. De um canto escondido do bar, sozinho, um par de olhos se fixa na visão familiar do seu próprio desejo, ao lado de 114


um ascendente algoz. Ele o combate, mas o admira. Ela está com ele. Carol e Luciano... É ao ar livre. O bar fica dentro de uma casa, mas todos ficam do lado de fora, sentados em várias mesas. Aquilo é tão normal que é uma atração turística... Não é uma festa; acontece todos os dias. O Pelourinho mantém uma sequência de eventos festivos em cada alameda. É um bairro antigo de Salvador que recebe e distribui a alegria de visitantes e moradores todos os dias... Luciano e Carol decidiram vir aqui nesse dia. O dia cansativo fez Luciano procurar Carol ainda no estágio dela. Ele queria fugir das indecisões e indagações do momento e ela foi receptiva à oferta; também estava sentindo falta de momentos juntos; fora do sistema; não faziam isso desde que os Fernandes identificaram o corpo de Ilena e o “trabalho” começou... Mas agora, eles dançam. Ao som renitente daqueles “atabaques” e tambores, ao som familiar da cultura afro-baiana, eles se divertem. Sorriem. Eles singram um no corpo e na mente do outro... Vivendo. Mas o olhar que seguira Carol o dia todo estava lá também. Ele não participa da alegria. Não gosta daquela música; a batida contínua em seus ouvidos os machuca, algo além do próprio arpejo musical. Ele está vendo Carolina sorrir, dançar, pular nos braços de outro homem. Fernando observa aquele 115


corpo atlético que tanto deseja; ela se movimenta com sensualidade; era algo próprio das músicas da Bahia; mas nela se tornavam movimentos naturais. Seus quadris deslizam de um lado para outro, revezando lento e veloz. O “jeans” apertado ajuda a evidenciar suas formas. A camiseta levemente suada começa a grudar no seu corpo, revelando suas formas posteriores. Seus cabelos giram com a cabeça, tocando o rosto, aumentando ainda mais sua “perfeição”. Era uma beleza inalcançável. - Ele pensa; mas as mãos que tocam seu corpo a alcançaram. A excitação por observar Carol se transformava em ira a cada vez que Luciano entrava em seu campo de visão; não queria pensar, mas só tinha uma imagem se formando na cabeça, além do visível: Carol e Luciano juntos. Imaginar o corpo dela nu era algo de corriqueiro na mente de Fernando, quase automático; ele sabia que era uma tortura, que nunca iria tê-la, mas não podia parar de imaginar, de sonhar; a toda oportunidade sozinho... Mas sua consciência rejeitava veementemente ela com Luciano... Ele a tendo; em sua cama; em sua vida; em seu sexo; possuindo-a. Ele vê aqueles dois juntos e não quer mais suportar aquilo. Os movimentos dos corpos dos dois já diziam como a noite terminaria. Fernando se enfurece e se entristece. Não queria mais tê-los em sua vista, mesmo ainda 116


desejando Carol. Nem queria imaginá-los juntos mais tarde, como provavelmente aconteceria... Ele sabe que nunca tirará isso da cabeça. Teme por si próprio; seu futuro. Não aguenta mais aquele “barulho” no ouvido... Vê-los, pensamentos e música. Ele estava cedendo. Quer ir embora! Ele se levanta, olha para ver se é notado pelos dois, mas um só nota o outro... Anda rápido, driblando as mesas, cadeiras e pessoas. Todos se mexem ao som da música e um esbarrão o faz girar. Estava com a palavra “desculpa” na boca. Já imaginava ser algum bêbado grandalhão que iria querer surrar até sua alma por ter derrubado uma gota de cerveja. Mas esse dia não é o de sorte de Fernando. Ele dá de cara com: • “FRIDA”! - Ela sorri um sorriso medonho. Sua ironia estava a postos para massacrar o pobre Fernando. Nunca perde a oportunidade de tirar dos outros desconforto. São frases sem resposta e observações desdenhosas que provocam asco em qualquer uma de suas vítimas. Era aquela espontaneidade que incomoda. Que tira as defesas de todos com uma honestidade abrupta. Frida é assim e a imagem infeliz e deslocada de Fernando não lhe deixa dúvida: • Nunca imaginei ver você aqui, Fernando! Está com alguém? - E ela sabe que não, só por isso pergunta. Uma coisa ela tem de sobra: poder de 117


observação, avaliação e desdém. É um talento de aversão. Desperdício... - Não - a rispidez de Fernando não foi suficiente para Frida se calar. Ela conseguia tirar ironia de sua honestidade e timidez... • Não sabia que gostava de “axé”... Veio procurar namorada, foi? - O rubro tomou o rosto de Fernando. Mais uma vez não tinha resposta para Frida. Imagina ele o que ela iria pensar quando visse Carol e Luciano lá; talvez o óbvio, talvez mais. Fernando se enfurece de novo com aquela nova ameaça. Sua personalidade e alma sempre tão protegidas corriam risco nas mãos (e boca) daquela desdenhosa mulher. Queria inventar uma desculpa e sumir dali: quem sabe um dia se desfaria de tamanho revés... • Eu estou indo embora, Frida. Vim pra cá por acidente. Até logo! - Ela não se conformou, nem se conteve: • Espere (um sorriso superior brotou no seu rosto), dance um pouco comigo! - Ele olhou tanto irado quanto receoso para ela. O que ela pretendia? • Eu não sei dançar, Frida! Tchau!! - Ele sai da visão dela. Não mais se preocupa em esbarrar em alguém. Sua presença ali seria explicitada de qualquer maneira. Tentava não pensar nas consequências disso: Carol... o policial... sua presença. Sua cabeça explodia diante de tanta desarmonia. Ele desaparece 118


em meio ao público. Frida observa sua obra: a consternação que ela tinha causado nele era maior do que esperava. Ela sentia um momentâneo prazer, mas também um certa culpa e medo. Não o conhecia tão bem e há pouco tinham-se imaginado ele como um assassino. Ela se abatia com tal incerteza. Ela era assim: desbravadora, incomodava os outros com tanta clareza e exuberância no modo de encarar as coisas, mas era uma forma de ver o mundo. Talvez um pouco arriscado e também único. Poucas pessoas têm a capacidade de expor uma personalidade tão livre e expressiva. Ela ainda procura Fernando, mas ele já desaparecera em alguma das esquinas do Pelourinho. Ele estava lá contra a vontade; isso era claro. E algo lá o incomodava. Seu desconforto ia além do encontro com Frida; foi a prova final. A perspicácia de Frida queria entender aquilo e sua curiosidade também. Talvez fosse uma maneira de se recompensar... Ela se vira e vê Carol com o policial; o sorriso em seu rosto deixa claro... Ela adora descobrir segredos; atingir os centros nervosos; e ganhar. Ela consegue.

2 Luciano levanta para pegar a cerveja. O ritmo da música ainda persistia mas a energia que se gasta é 119


muito grande, em algum momento tem-se que parar. Frida havia se juntado a eles, o que não o agradou muito, mas logo iriam embora. Aquela “festa” era só o começo... • Carol, ele é mesmo um gato. Nunca imaginei um policial tão legal... - Carol já era familiar ao comportamento de Frida, mas ainda se incomodava com alguns de seus comentários. E ela sempre falava tudo; e sempre de um jeito desconcertante... Luciano as olhava de dentro do bar, não estava de serviço, mas a mente policial não parava de funcionar. Ele observava as feições de Carol a cada coisa que Frida dizia e ela falava muito. O aparecimento dela ali tinha tirado um pouco do prazer da noite. Era uma desagradável coincidência e ela tinha o incrível poder de notar “climas”. Ela tinha quebrado o deles! Luciano tem outras intenções para o resto da noite e Carol está com a mesma inclinação... Ele olha para ela e lembra daquele corpo mexendo ao som da música; transmitia uma sensualidade transcendental, uma sexualidade perfeita; querendo o desenvolvimento... Olhava Carol e Frida juntas: tinha o duplo sentido do momento na cabeça. Queria se livrar de Frida... As expressões que Carol fazia também diziam isso. Ele via que a trama estava começando a formar o seu melhor lado. Luciano põe a cerveja na mesa. Seus olhos estão 120


em Carol e ela mantém a reciprocidade. Ele se senta; Frida continua falando, mas nenhum dos dois a ouve: um só vê o outro. A visão dos dois se perde em desejos e emoções comuns. O rosto de Carol se ilumina com o assédio do olhar de Luciano. Nem mesmo a música os interrompe. É um prelúdio do contato. Suas almas já pareciam se amar... se tocar. O que Frida falava, não mais importava. Ela tinha sumido; a antecipação da despedida. O fim. Carol sente o seu peso. Por dias ambos desejaram isso. Cada movimento dos seus corpos exala prazer. Luciano tinha finalmente aquele corpo em contato com o dele. A pele sentia todos os toques. Cada curva era satisfeita com novas sensações. Suas epidermes se arrepiam a cada rompante de um novo espasmo. Os movimentos que os levam a cada segundo de prazer e se encaminha para um supremo momento final dura tão pouco tempo que eles se sentem injustiçados. Querem mais e mais, sentir um ao outro. Carol tem lampejos de seus sonhos com os olhos fechados e então os abre para sentilos realizados. Nunca teve tanto prazer antes... Em nenhuma das duas oportunidades anteriores de sua vida o homem que ali estava lhe dera tanto para sentir. As palavras chegam às suas cordas vocais em forma de gemidos e é uma língua que Luciano entende pois 121


ele também sente... Tem mais experiência, mas a mulher ali com ele sentindo-o, é a mais magnífica de todas. Também ele tem lampejos de sonhos... O beijo que tiveram dias atrás era uma gota na tempestade que eles sentem agora. Não querem acabar. Seus olhos se cruzam e se fecham. Seus lábios se encontram novamente. Seus poros transpiram prazer de um para o outro. Como uma transferência. A sensação já os domina completamente. Sentem como se flutuassem num plano sem dor. Viajando para dentro de seus olhos... Suas respirações se tornam cada vez mais ofegantes e as “palavras” sem significado se tornam mais constantes. Eles vibram. Cada parte em contato está tremendo; pulsando. Carol e Luciano quase não acreditam um no outro. É perfeito; é sublime; quase onírico... Finalmente seus movimentos os levam para longe... Num grito em comum eles atingem o centro um do outro. Carol libera uma lágrima que se mistura ao suor. Um sorriso quase mágico os toma. Eles ainda se movimentam, buscam alguns segundos finais; queriam mais, mas aquilo os consumiu. Seus corpos tremem levemente antes de cederem à exaustão. Eles param... Estão abraçados. Sentem um o corpo do outro; suados, cansados, satisfeitos... Por um segundo eles se sentiram fora do planeta e agora sorriem em contato. Não conseguem acreditar. Foi a explosão do 122


universo dentro de ambos. Foi a vida além da vida. O prazer.

3 Luciano observa Carol se vestir. Se sente tão bem que a observação parece ser um espetáculo. Uma obra prima particular que ele possuiu por quase um hora. Ela colocava o jeans e à medida que sobe ele sente de novo a textura do toque daquela pele. Ele vê que ela também está satisfeita; se sente bem com isso também; é um tipo de realização machista, mas que o eleva em saber que conseguiu saciar a parceira e Carol era muito especial... Ele sentia isso além do próprio prazer que teve com ela. Aquele quarto de motel foi testemunha de um encontro dos deuses; algo que inveja a muitos seres humanos: toda a lembrança daquele momento de prazer e consumição os elevava, os aproximava; tirava-os da realidade que estava fora daquele quarto. Eles não conseguem parar de sorrir um para o outro. • Temos que ir! - Carol olha em volta. A cama desarrumada a faz lembrar de cada detalhe. Aquele momento não podia ser menos que perfeito. Ela se aproxima de Luciano e o beija; seus corpos ainda se agitam com as lembranças, mas eles têm que ir... 123


A caminho do carro, abraçados, finalmente saindo do mundo das fantasias perfeitas e dos prazeres realizados, Carol se lembra do que Frida lhe contou no Pelourinho. Daquele momento até agora não tinha dado importância; seu corpo entorpecia qualquer raciocínio; mas agora, já realizada; ainda meio receiosa de mencionar; ela consegue uma expressão: • ...Lu... Frida disse que Fernando estava lá no Pelourinho, hoje; no mesmo bar que a gente... - Ela observa Luciano para sentir sua reação. A privacidade dos dois já tinha sido invadida por Frida e agora, se sabendo, por Fernando. Todas as tensões do dia e as suspeitas pareciam violar algo além da investigação. Luciano absorve certa raiva... O seu momento sublime estava sendo poluído. Ele não queria perder de novo. • Sua amiga fala demais! (Alguns segundos de seriedade silenciosa.) O que mais ela disse? - Carol não compreendia muito bem a atitude de Luciano. Ele não parecia se interessar pelo fato de Fernando a ter seguido ou ter seguido a eles dois; parecia esperar por isso... Mas ele se preocupava com a intromissão de Frida. De certo modo Carol sabe porque Fernando estava lá, mesmo sendo algo imencionável entre eles. (Era ela mesma.) Sua vaidade não consegue crer em coincidência e ela sabe que Luciano também não acredita nisso. Mas existia a outra possibilidade; a 124


gerada pelo caso: o investigado seguir o investigador. Carol ainda resiste a isso e Luciano parece saber que não é... Ambos viam a dor de Fernando, mas por lados opostos. O interesse de Luciano ainda era em Frida... • Ela disse algo sobre Ilena. De ver o exnamorado dela; ainda hoje. • Sua amiga devia entrar pra polícia se pensa ser capaz de pegar um assassino! - Ele usa um tom de desdém familiar... Era como Frida falando. Mas com uma certa dose de ressentimento. • Você acha que ela vai estar em perigo? Eu disse... que elas eram muito amigas! • Pois pra mim ela é uma grande pedra no sapato! - Carol via certa razão no descontentamento de Luciano. Ela ter aparecido no Pelourinho, no bar onde eles estavam, trazendo tais informações... Carol sabe que é o jeito de Frida agir, mas mesmo assim não deixa de se preocupar um pouco... Por Frida e também pelo futuro dos dois. Ela também não queria perder aquilo. O momento... Entrando no carro e indo embora do motel ela começa a, definitivamente, voltar ao mundo em que vive. Imagine: se, realmente, Fernando estava lá (Frida não costuma mentir); quão torturante deve ter sido vê-la dançar, abraçar, beijar, estar com Luciano. Além dos sentimentos por ela... Luciano era o policial que nesse mesmo dia o 125


despira de seu mundo fechado para investigar um crime. E ela desconfiou dele. Talvez ainda esteja se enganando ou talvez não. Carolina detesta a ideia de sua felicidade e prazer provocar dor em outra pessoa. Ela pensa naquele frágil olhar de Fernando... Quase que, intimamente, ela sente vergonha pelo que acabou de ter com Luciano. Olha-o meio de lado e se imagina nua, perdida... Nesse momento Carol se sente incrivelmente vulnerável. Só queria ser feliz!

“Flashback” e futuro Arpejo é uma sequência musical contínua. Ele toca seguidamente até mudar o acorde. O arpejo pode ter só um pedaço, um só relance musical; ou pode se manter indefinidamente... A mudança de acorde é opcional. “O arpejo começou em sua cabeça há dois anos. Nessa época ainda era insonoro, mas definitivamente presente. Tudo que acontecera em sua vida o tornara sozinho e delimitado socialmente e nunca há de se saber que origens mais pode ter sua agressividade: família, criação, convivências, genes, maldade... Quem sabe? Ele vira Ilena e a desejara. As vontades de seu corpo guiavam os atos. Quando falava com ela, 126


pensava em possuí-la. Quando a tocava pensava em prazeres mais proibidos que a própria posse. Tê-la era tudo. Não se considerava obsessivo; só seguia seu desejo. Mas por muito foi rejeitado. E nas poucas oportunidades que teve de chegar perto, ela se retraíra. Culpava-a; nunca imaginava em sua honestidade. Via Ilena no limite da sua vontade de ter prazer com ela e nunca na margem dela querer ou não. Se considerava torturado. Por tempos a procurou, mas ela sempre o dispensava. Era forte demais para ela. Intenso além da própria atração por homens; mesmo aquele. Ele não podia aceitar; não queria aceitar. Mesmo que outras mulheres aparecessem, ele queria Ilena; mesmo que seu rosto e boca dissessem não. Mesmo que seu sorriso morresse por algum tempo... Quando voltasse não se lembraria de nada e o desejo seria satisfeito. A pessoa que conhecia e sabia que era amada por todos, inclusive por ele; era diferente daquele corpo que ele tanto queria possuir. Viajaria por ele enquanto estivesse inconsciente. Tocaria em cada parte. Conheceria cada curva. Possuiria tudo que desejasse. Tudo que ela lhe negara. Até mesmo seus lábios... Ela foi em sua casa. Foi uma batalha convencêla, mas ela também queria terminar com aquela situação incômoda. Ele a olhava de longe e já sentia 127


seu corpo se alterar. O plano em sua cabeça era perfeito: inconsciência, sexo e finalmente a paz. Mas o arpejo pediu mais... Ele a agarrou por trás. Seu braço forte a faria desacordada rapidamente e logo ele teria o que desejava. Sua cabeça não considerava isso imoral, apenas necessário. Ele tirou-lhe a roupa vagarosamente e seus olhos vislumbravam a abertura de uma nudez perfeita, a qual ele tanto havia imaginado. Finalmente ele a tem. Sentindo seu calor interno e toda maciez daquele corpo... Mas seu golpe não foi suficiente... Ela acorda. O peso daquele homem sobre ela a faz enojada. Ela o rejeitara, mas o considerava um amigo. Como ele podia fazer isso!? Era detestável! Ilena dá-lhe um tapa no rosto e foge de debaixo dele. Tentando ocultar sua nudez com o que encontrara mais próximo, pergunta: • Como você pode fazer isso? - Mas ele não ouvia. Também estava nu, mas não ligava. Pela primeira vez se sentia livre das suas inibições. Se sentia poderoso. O arpejo se tornara sonoro e estava num volume ensurdecedor em seus ouvidos. Olhava aquela mulher encolhida num canto de seu próprio quarto e queria não só possuí-la, queria fazer dela o seu brinquedo. Seus punhos também estavam alterados; estavam fortes; livres. Ele pula sobre ela, que tenta se defender; mas tapas, empurrões e gritos não poderiam 128


segurar o arpejo. Ele não sente a dor como dor... Faz parte do prazer. O prazer de usar sua livre violência sobre ela. Era melhor que o próprio sexo. Vibrava ao ver Ilena definhar diante de seu poder... Sua voz sumia. Suas unhas não mais o arranhavam. O corpo em suas mãos morria. Os hematomas no rosto o deixavam orgulhoso e excitado. Ele queria mais. Ele agora pode experimentar outros prazeres. O arpejo tinha se acalmado. Sua satisfação básica já tinha sido alcançada. Agora teria tempo, mas não muito... A Lâmina próxima e uma estocada final completariam o serviço. Agora... Ilena estava morta.” Ele quer mais. O tempo está se esgotando e o arpejo está começando a aumentar de volume novamente. A memória de Ilena morta tanto o rende à força quanto o deprime. Com o arpejo recomeçado ele teria que satisfazê-lo, mesmo que em parte. Tinha que escolher de novo. Ele agora conhece a sensação; ainda teme sua força, mas gosta de sentir no corpo aquele poder; o mesmo que se expande para a trama que havia se formado depois da primeira vez. Também gosta desse poder, mesmo que involuntário. Mas o poder primário está começando a pedir alimento. E ele não tem escolha. Também quer. Provavelmente vai gostar... Ele não consegue evitar de sorrir, mesmo tendo o frio no estômago. Ele já fez a escolha. É ela... 129


Presa e predador A música que regia o ambiente agora era diferente. Muito distante dos atabaques do Pelourinho e também um pouco diferente do “blues” de noites anteriores. Frida se senta sozinha numa das mesas do Ateliê e assiste calma ao show da banda de Cláudio. Ela só o vira uma vez, num encontro em grupo, quando Ilena ainda estava na faculdade; nunca o vira tocar e começava a ficar enfeitiçada por aquele ritmo suave, forte e contínuo. Frida o reconhece. Ele é o guitarrista. Estava um pouco diferente de quando o vira; o cabelo estava um pouco maior. Achava-o atraente... Estava ali para saber mais sobre a morte de Ilena. Não conseguia evitar de querer desbravar sua curiosidade. Tinha um certo senso de perigo, com o assassino e tudo que o envolvia, mas sentia vontade e fascinação por entrar num mundo novo. Talvez fosse um desejo perigoso demais. Frida estava começando a se interessar pelo próprio Cláudio... Devia ser a música, ou um tipo de transferência. Sua amizade com Ilena, a surpreendente morte dela; ela fazia uma estranha junção de imagens, onde ela não conseguia evitar de imaginar Cláudio em contato com Ilena, contato carnal e logo em seguida vê-la morta, do modo que lhe havia sido descrito. Uma estranha 130


excitação a tomava ao lembrar como Ilena era feliz com Cláudio; talvez a vida inteira. Era até ofuscante às outras pessoas. Diante de tudo aquilo Frida também se entristecia. Sabia que Ilena não mais sentiria tais coisas, estava morta... Ela olhava para o seu exnamorado e se auto-repreendia por sentir o que sua amiga um dia sentiu e que não vai mais sentir: atração por um homem; mesmo que um homem que ela sabia que já estivera com Ilena... Tentava se concentrar em sua “missão”. Tinha um nome além em sua intenção. Queria descobrir o que havia realmente acontecido. O show termina. Olhos alcoolizados localizam a bela descendente de alemães sentada sozinha numa mesa ao fundo. Longe em sua memória, já muito afetada pela noite de “blues” e cerveja, ele a reconhece. Não sabia bem de onde, mas a sua beleza e o fato de ela estar sozinha, assistindo a seu show e no seu bar, são razões suficientes para ele andar até ela e lhe dirigir a palavra: mesmo que pareça uma simples cantada. • A gente já se viu antes, não foi?! - Frida sabia que sim, mas os olhos avermelhados e o sorriso puramente lascivo demonstravam que ele diria aquilo mesmo se nunca a tivesse visto... Diria isso ou qualquer coisa do gênero para “quebrar o gelo”. Ela se sentia envaidecida. Mais e mais ela queria não 131


estar ali para falar de Ilena. Em outra oportunidade não teria nenhuma restrição em se deixar levar pelo cortejo, mesmo que levemente entorpecido. • Já sim... Eu sou... era amiga de Ilena. - Se constrangia duplamente em mudar o tempo do verbo. Não queria “trair” a amiga, nem depois dela ter ido... • Ah, Ilena... - Ele estava cambaleante e se escornava na mesa; antes de continuar a falar ele se senta. Arrastou a cadeira de um jeito agonizante... Devia estar em outro planeta. • Ela morreu! • Eu sei. Eu vim pa... • Morreu... - O nível de entorpecimento do rapaz começava a irritar Frida. Não tinha nada contra bebida, mas não estava com paciência de aguentar vitrola quebrada. • Eu já ouvi! Você não sabe de... • Ela morreu... era tão gostosa! - A conversa começava a tomar um rumo desagradável. Frida não queria ouvir lembranças da vida de Ilena; muito menos da vida sexual dela. A atração que sentira por Cláudio começava a se tornar uma leve retração. Estava tentada a desistir e voltar outro dia, mas... • Você sabe dela com alguém chamado Fernando?... Cláudio!... Você já o viu... • Então a gata sabe o meu nome, não é?!... Talvez 132


queira saber mais... Ilena nunca disse como eu sou bom... - Frida sabia o resto daquela sentença. Não queria mais aguentar aquela cantada de bêbado. Ainda mais um bêbado que se acha gostoso. Sua paciência se esgotou naquele momento: • Esquece!... Eu falo com você outro dia; quando estiver sóbrio. - Ela se levanta rapidamente. Cláudio também, mas a tontura o toma de assalto... Queria mantê-la perto. • Tá. Fernando. (Frida deu atenção.) Acho que era o nome do cara que ligava para ela na época que a gente terminou... Ou era Leandro. Ah! Eu não sei direito. Já faz tanto tempo. - Frida o olhava com interesse. Afinal um informação que compensasse aquele “contato alcoólico”. Ela estava pensativa... • Agora... (Ele se aproxima dela.) Não quer dançar comigo?! - A música não era mais ao vivo. Parecia uma gravação mais lenta do que ele costumava tocar. Frida estava com a informação sendo processada na cabeça: as conseqüências daquilo; mas as palavras de um músico entorpecido não são de muita confiança. O modo dela raciocinar não foi impedimento para ela atacar o colega de faculdade. Tão estranho; sozinho; anti-social. Na mente dela aquilo começava a se constituir uma trama; que se cruzava com a investigação de Luciano. Será que ele já sabe disso? 133


- Pensou ela... Os braços de Cláudio a despertam de sua reflexão sobre Fernando e as palavras de seu “interlocutor”, que agora a puxa para a pista: • Vem, gata. É minha música. - Frida se retrai. Não estava mais interessada em Cláudio. Infelizmente no inverso isso não ocorreu... Ele começou a se roçar ao ritmo da música. O que começara como um cortejo simpático ao som de “blues” estava se tornando algo repulsivo. Frida custava a acreditar que aquele era o mesmo rapaz que namorava Ilena, de quem ela gostava e que parecia tão fascinante. Talvez fosse o álcool. Era triste ver a que ponto chegava a degradação humana pelo vício... Ela tentou ser política: • Não, Cláudio. Obrigada. Eu tenho que ir. Está tarde... • Que isso? Só uma dança... - Ele continuava a se roçar nela. Frida nunca foi uma pessoa paciente. Aquele agarramento forçado a irritava muito. Detesta fazer algo sem vontade e odeia ser objeto nas mãos dos outros. Por ele ser quem é, por Ilena e pelo seu nível de entorpecimento; ela ainda tenta ser educada mais uma vez: • Não mesmo... Obrigada! Eu volto outro dia. Ela tentava sair dos braços fortes do guitarrista. Já estava quase explodindo. • Vem... Olha... Meu quarto é lá em cima... - Esse 134


foi o último momento suportável. • Me larga, seu bêbado! - Ela imprimiu mais força para se soltar e os braços dele, sem ter muito controle motor, a soltaram. Ainda tonto, ele olhou para ela com o olhar completamente congestionado. Sem se segurar em nada, ele parecia a todo momento que iria cair para trás... Sua paciência também não podia ir mais longe... Ele deu um grunhido e disse: • ...Sai daqui; vagabunda. Gostosa... Ilena morreu. Esquece! - Frida deu dois passos para trás. Ele ainda olhou para ela por um momento antes de se virar e andar cambaleante para outra mesa. Não parecia ligar para o que tinha dito ou para o que tinha ouvido. Provavelmente nem se lembraria do que tinha feito. Frida se entristecia novamente ao vê-lo se afastar... Ele também estava sofrendo. Era uma maneira mais brutal de fugir da angústia. Envolvia álcool, música e esquecimento. Ela podia enxergar que Cláudio estava com Ilena na cabeça o tempo todo. Se ele foi um dia realmente apaixonado por ela, com certeza ainda era; a perda sempre traz tudo à tona: o bom e o ruim. Ele tentava diminuí-la, tratá-la como a um pedaço de carne; assim como o assassino o fez; mas só o álcool lhe permitia isso. Frida sentia pena dele e também um certo medo, por si mesma; de um dia também cair nessa mesma armadilha. Mais uma vez se sente culpada por 135


ter sentido atração por Cláudio quando o vira tocar. Talvez, também, fosse uma fuga, uma transferência. Naquele momento ela sentiu a perda de Ilena mais do que nunca. Sentia vontade de chorar: por Ilena, por ela, por Cláudio, por Carol; agora podia ver pelo que ela teve de passar; e até Fernando; mesmo com aquela informação na cabeça, não podia evitar de lamentar por pensar algo tão terrível de alguém que ela nem conhece direito. Naquele momento estava realmente difícil de se raciocinar. Queria esfriar a cabeça. Detesta estar triste... Finalmente ela vai embora. O encontro com Cláudio tinha sido um misto de horror, prazer (no começo) e profunda tristeza (no fim). Ela agora quer paz. Caminhando para o carro, Frida notava que toda a fascinação que ela tinha começado a sentir por aquela trama não atingia a fundo como ela pensava. Agora, podia entender melhor a frieza com que Luciano tratava o assunto. As advertências dele faziam sentido: para se entrar naquele mundo obscuro precisaria se estar preparado. Ela não estava. Era uma postura que se precisava assumir para entender o comportamento de criminoso e vítima; para poder manter contato com as diferentes personalidades envolvidas: talvez inclusive um bêbado triste, fugindo da realidade em falsas ações agressivas. Novamente ela sentia pena 136


de Cláudio; afinal, deveria ter dançado com ele. Não seria tão grande sacrifício... Se sentia tentada a voltar no Ateliê, mas não o fez; achava melhor manter esse contato em outra oportunidade, sem a presença do álcool. Não se sentia culpada por isso; provavelmente Ilena gostaria de ver as pessoas que ela gostava juntas. Com as boas lembranças... Frida chega ao carro um pouco mais aliviada. O ar frio da noite espanta o calor úmido do dia, do Pelourinho e daquele bar. Ela sente o vento por um segundo. Tentava lembrar que ainda estava viva... • Ah... Ilena... • Isso mesmo. Ilena! - A fonte da voz não pôde ser vista por Frida. Antes que ela se virasse um golpe na nuca a faz apagar. A rua deserta não apresenta testemunhas para o atacante; ele podia liberar toda sua hostilidade; com a ferocidade de sempre... • Agora você vai aprender, desgraçada... Com Frida caída no chão o feroz atacante começa a projetar chutes em seu abdômen e costelas. Os únicos sons que ecoam são as pancadas abafadas. Ela está inconsciente; não pode agonizar com os golpes; mas ele sabe o quanto vai ser doloroso quando ela acordar. Ele para os chutes e se agacha para dar socos no rosto da pobre vítima. A pele branca de Frida começa a enrubescer com as pancadas. Logo se tornariam 137


terríveis hematomas. Esse pensamento o excita e aumenta a sua violência; mas ele só tem intenção de machucá-la... Ele quer aliviar o arpejo. Os golpes se tornam mais lentos. Seus braços estão cansados. As forças do seu corpo começam a se exaurir. O arpejo ainda tocava de leve pedindo mais. Ele olhava para o corpo de Frida todo coberto de manchas e alguns cortes, por causa do asfalto. Ela ainda estava viva; podia-se ver. Ele estava ofegante. Observava a sua obra e não podia evitar de se excitar. Ela era bonita; apesar dele não sentir muita atração; mas o arpejo não estava completo. Tenta se convencer a ir embora, mas sua mão começa a tocar os seios de Frida. A lembrança dos momentos com Ilena o transformava. Era o terrível choque entre hostilidade, sensualidade e poder. “Não!” - Ele pensa. - “Já é o suficiente!” Ela não o tinha visto. E provavelmente demoraria para se recuperar. Ele se levanta com decisão. Dá uma olhada ao redor. A rua estava deserta como antes. Olha novamente Frida e finalmente vai embora. A presa daquela noite já estava abatida; mesmo que incompletamente; mas já fora um alívio. O corpo de Frida, totalmente machucado por toda aquela violência, seria uma eterna visão de poder em si próprio para o predador. Eventualmente precisaria de mais; sabia disso; mas no momento se contentava 138


com a sua nova obra: Frida.

Se fechando Para alguém com apensas quatorze anos de idade, sua expressão demonstrava seriedade e amadurecimento. Luciano tinha o irmão mais novo de Ilena e também o mais chegado, Carlos, à sua frente. O choque nos dias iniciais da perda de Ilena parecia ter transportado o jovem garoto da terra maravilhosa da adolescência para o terrível mundo real, onde assassinos cruéis tiram a vida de muitas “irmãs”, de muitos garotos, que de repente têm de crescer. Luciano conseguira falar com Carlos no dia anterior, por telefone. Esperara alguns dias para entrevistar, possivelmente, a pessoa que mais sabia sobre Ilena, e que também era a que mais sentia a sua falta. O garoto se dirigia ao policial como se fosse o último sobrevivente de uma guerra: mudado; renascido. Luciano conhecia aquele jeito de atuar. Ao conseguir passar pela dor da perda, ele se sentia poderoso; capaz de enfrentar qualquer outro desafio. Era uma nobre maneira de se enganar. O próprio Luciano sentira isso quando perdeu seu amigo, Cristiano, o irmão mais velho de Carol. Por muito tempo ele se considerou o único policial capaz de 139


combater o crime... Sobreviver ao abatimento do amigo em meio a um tiroteio. Passar por sentimentos de culpa, por não ter podido ajudar; sentir impotência e fragilidade pela falta do amigo... Ele superou tudo sozinho e também se sentiu forte. Teve de aprender com o tempo que nada nunca se resolve com simples transposições, pequenas vitórias. Ainda sentia vontade de se livrar das lembranças e das sensações. Ver aquele jovem garoto se sobrepor em palavras firmes de justiça, consternação e inconformidade, o fazia lembrar de como passar por aquilo é difícil. Mas não podia ajudar Carlos; ele aprenderia sozinho e talvez conseguisse vencer. Por enquanto o máximo que ele podia fazer era tirar as informações dele e daí tentar deslanchar aquela velha trama: o assassinato de Ilena. • Você não se lembra de nenhum outro namorado dela? Ou talvez; alguém que estivesse a fim dela? ... - Carlos olhava ao redor e para Luciano. Era sinal de raciocínio. Queria muito pegar o elemento. Desconfiava da competência e da honestidade do policial à sua frente (algo natural). Um pouco além de sua recém adquirida força de pós-queda, ele sentia algo mais... Todas as memórias vinham junto com a imagem de Ilena e ele não conseguia evitar de se incomodar com isso. Aquele jovem ainda estava muito 140


perturbado; tinha fome de atitude... Ele responde: • Depois de Cláudio, ela ficou um bom tempo sem ninguém... • Ele mencionou sobre alguém que ligava muito pra ela. • Ah, é. Coitado. Ele era doido por ela, mas ela nunca quis nada. Ele ligava muito, é verdade; mas antes mesmo dela largar a faculdade ele já tinha parado. Deve ter cansado de rastejar. • E o nome dele é?... • Fernando. Eu me lembro bem, porque eu pegava muitos recados dele. Ele esteve aqui uma vez. Acho que ela gostava dele, mas não estava a fim... Ele se deu bem com o nosso cachorro. - Carlos se deixava levar por cada lembrança que tinha de Ilena. A menção sobre Fernando o fazia recordar mais ainda como ela era apaixonante. Ele via a imagem daquele jovem que era tão ligado nela e não podia evitar de imaginar aquilo como mais uma coisa perdida na vida da irmã. Um homem que se dedicava a ela, mesmo sendo rejeitado. Imagina ele o que ela faria naquela situação se tivesse outra oportunidade... Mesmo de um jeito melancólico, Fernando a fazia rir e Carlos sabe que ela não mais vai poder rir... Vem o pensamento: “O que o policial queria com aquela pergunta?!” • O senhor suspeita dele? - Luciano não queria 141


responder. Não queria outro intrometido, como Frida, se metendo na investigação. Principalmente um irmão revoltado... Mas não tinha muita saída. Já havia mencionado sobre sua visita ao Ateliê. E as duas informações se encaixavam. O que mais poderia dizer? • Talvez. Eu, quando falei com ele, notei um comportamento bastante obsessivo e potencialmente agressivo. - Novamente Carlos duvidava da competência do policial. É algo normal em jovens, tirar o crédito de uma autoridade... • Eu duvido. Aquele cara era tão gentil; frágil. Era até um dos motivos porque Ilena não ficou atraída por ele. Ela gosta de tipos mais, arrojados... - Luciano via que, como todos, Carlos notava a face dócil de Fernando. Principalmente só o vendo uma vez. Carlos não parecia enxergar que aquilo poderia justamente ser o motivador que faltava em Fernando. Ao ser levado a querer mudar para agradar Ilena, ele cruzou mais que a linha entre dócil e arrojado. Era uma boa teoria. Luciano via uma real possibilidade ali. As palavras de Carlos haviam exposto aquela oportunidade que já deveria estar na mente de Luciano há muito tempo. Ele acreditava na lei do paradoxo ativado pela paixão; mais do que nunca... • Talvez você esteja certo, Carlos. Mas eu tenho de 142


checar todas as possibilidades. - Carlos não precisava saber que tinha dado uma pista perfeita para Luciano. Ele sabia que era melhor manter a perspectiva; e a expectativa. Continua: • E houve mais alguém? • Bom... Nos últimos meses eu sei que ela estava saindo com alguém, mas nunca me disse quem era. Algumas semanas antes dela... (A hesitação era solene à palavra “morrer”.) Há algumas semanas ela tinha brigado com ele. Também nunca me disse porque. No último dia que... eu... a vi... eu acho que ela estava indo acertar as contas com esse cara. • Você nunca falou com ele por telefone? • Não sei. Talvez. Muita gente não diz o nome quando liga. • É verdade... - Aquela estava sendo a entrevista mais produtiva de todas. Luciano via e se preocupava um pouco com a firmeza e serenidade que aquele jovem utilizava para responder às perguntas. Depois de tanta dor, agora tantas recordações; diferente dos outros, ele não ficava dizendo como Ilena era uma boa pessoa e como não merecia morrer. E provavelmente era quem mais sentia isso. Luciano olhava e ouvia Carlos, e o admirava pela sua capacidade. Sabe que é uma corda bamba... Foi quem mais sofreu e agora é quem mais ajuda. Imagina o que mais ele não poderia 143


fazer... Talvez ele tivesse a verdade e não sabia. Tudo que ele aprendera e sentira com a irmã tinha que ser exposto, para se descobrir que lhe havia privado a vida... Ele, com certeza, ajudaria. • E você não lembra de mais nada?... Alguém que a ameaçasse, ou que ela temesse. • Não. Acho que não. Era difícil alguém ficar muito tempo bravo com ela. O tal Fernando mesmo; (o nome ligava Luciano/qualquer coisa...) quando ele parou de ligar, ela ficou até magoada. Sabia o que ele sentia, mas não queria perder o amigo. Imagino como devia ser a situação dele... • É. Eu sei bem como é isso. - Luciano estava sendo testemunha do mesmo fato, só que desta vez com Carol. Aproximação e afastamento contínuos. Novamente ele via a fonte de uma agressividade muito perigosa... Não havia muito mais a perguntar: • Bom. Eu acho que é só. Qualquer coisa seu pai tem o meu número. • Claro... • Por falar nisso. Como está o resto de sua família? • É... Aos poucos eles estão conseguindo ir em frente... Eu também. • Dê tempo ao tempo. É sempre difícil. - Carlos se deteve ao silêncio. Luciano via seu trabalho 144


completo ali. Aquela família agora tinha é que se reestruturar. Novamente pensa em Cristiano, o amigo caído morto aos seus pés; a sua família; Carolina: essa era a melhor lembrança de todas. O que sentira no dia anterior ainda parecia o tomar por completo... “Carol!”- É seu pensamento. • Então... - O telefone de Luciano toca. • Eu posso usar o telefone? • Claro! - Carlos aponta o aparelho e o segue com os olhos. Após todo aquele confronto verbal, ele se sentia um tanto aliviado. Tinha dito tudo que pôde se lembrar e ainda forçava a memória, mas agora só restavam as imagens da felicidade de Ilena. Ele pensa quanta sorte tinha de ter tido uma irmã mais velha tão sua amiga. Algo único. Ele lembra do sonho que tivera com ela... Mentalmente ele pede para que ela volte e lhe mostre o rosto do assassino, mas sua visão é apenas a do mundo à sua frente e do policial que volta do telefone... • Eu tenho que ir! • Algo errado? - Carlos via a expressão séria de Luciano. Responde: • Sabe quem é Frida? • Sei sim. Era amiga de Ilena... • Isso mesmo... Ela foi encontrada toda arrebentada no Jardim Bahiano, perto do Ateliê. 145


• Cláudio!? - Carlos demonstrava conhecimento, mas... • Eu duvido. Isso é coisa do nosso homem! Carlos se admirava da segurança do policial. Poderia ele estar tão certo? • Mas ela ainda está viva, não está? • Está. Mas há coisas que só os psicólogos conseguem entender e eu sei pra onde as explicações deles apontam. - Luciano não participou Carlos totalmente. Quem mais teria motivo para utilizar de tal defesa?... Luciano sabia que uma hora a intromissão de Frida iria levar a algo assim. Ela se expôs e de certo modo expôs o atacante: Luciano, agora, queria Fernando; mais do que nunca. • Até logo, garoto. Eu tenho que pegar o assassino de sua irmã. - Perplexo, Carlos via Luciano ir embora; da janela, vendo ele partir no carro. Luciano parecia agir como um herói que desvendara uma trama demoníaca e escondia o jogo em seu ego. Carlos mais uma vez duvidava da capacidade da polícia. Ele parecia falar aquilo como se fosse um remédio... Como ele pegaria esse assassino? - O pensamento de Carlos se trava: “Ilena. Fernando... Frida... Luciano! Morte!” Parecia uma parede: ela se fecha ao seu redor, mas há uma porta oculta. Carlos quer vê-la, mas ainda não pode. Precisa procurar... 146


Impressão de força A imagem é uma sobra da pessoa radiante que antes existia. Deitada no leito do hospital, Frida se encontra irreconhecível. Coberta por bandagens e curativos; sedada para não sofrer com as dores dos fortes hematomas; ela está rodeada pelos pais e por alguns amigos. Sua mãe a olhava, abraçada com o marido; não conseguia acreditar no estado que haviam deixado sua linda filha. Ela parecia tão frágil, deitada lá, inconsciente, completamente machucada. A imagem da garota alegre e falante permeava as lágrimas da pobre mulher. Agradecia a Deus por ela ainda estar viva, mas não podia parar de se perguntar: “Como puderam fazer isso?” Foi sem dúvida o despejo de muita força. Os médicos se impressionaram por ela ter sobrevivido; de algum modo o atacante sabia onde bater para machucar e não para matar. Era alguém de extrema violência, mas também de muita minúcia nos atos. Os outros ao redor também se espantaram com o estado da amiga. Eles sabiam que iria demorar muito para que ela se recuperasse completamente, e isso fisicamente; era provável que ela guardaria um grande trauma para o resto da vida. Era realmente triste ver como a insanidade de alguém podia violentar tanto a imagem de outro. 147


Todos, cada um à sua maneira, tentavam imaginar que razão podia levar alguém a ser tão violento, tão cruel; que mórbida motivação povoava a cabeça desse monstro... Até mesmo Luciano, que tentava olhar para Frida como um “corpo de delito”, não conseguia deixar de compartilhar da consternação geral. Ele a avisara sobre os perigos vindos da mente de um assassino. Tentava se convencer que tinha feito a sua parte, mas sempre perdura um certo ressentimento. Carol, também lá, o olhava em silêncio e ele podia sentir como a memória dela estava voltada para a noite passada: Frida ainda “inteira”; eles dois; o encontro desavisado no Pelourinho; o modo como Luciano havia chamado Frida de intrometida. Não via senso em mais nada. Luciano não tinha dito nenhuma palavra desde que chegara ao hospital, mas Carol via aquele ataque a Frida como sendo mais que uma coincidência. Sua mente aferia a mesma coisa que Luciano já tinha como certeza: quem atacou Frida foi o assassino de Ilena. Ele se sentiu ameaçado por ela. Mas pior de tudo, Carol não se perdoava por pensar; também o mesmo Luciano pensava; que o causador de toda aquela dor e violência era Fernando. Tentava desesperadamente procurar uma resposta contrária; um erro nas mãos de Luciano; algo que a lançasse de volta à imagem do amigo triste e frágil, que mesmo 148


sofrendo por ela, ainda a fazia rir e sempre lhe dizia algo que seu ego não podia evitar de gostar. Ela olhava ao redor, Frida, os pais dela, os outros amigos presentes, Luciano, o quarto de hospital, a tristeza, a dor... Mais do que todos ela sentia uma angústia tão grande que mal conseguia se aguentar de pé. Era forte demais. Irreal: “Como Fernando pôde fazer isso?” Ela pensa sem querer pensar. Luciano sai do quarto seguido pelos olhos de Carol. Se encontrou no corredor com o médico que atendeu Frida e com o policial que a encontrou e a trouxe para o hospital. Sua mente já tinha os passos do que havia ocorrido, mas ele tinha que juntar todas as partes. Queria apresentar o suspeito com a melhor quantidade de fatos possível. Ele se lembra do corpo de Ilena... Que outro fato mais deveria ser necessário? - Imagina com revolta. O médico disse que a maioria dos ferimentos causados pelo atacante tinha sido no rosto e no tronco. Uma costela foi quebrada e a mandíbula foi deslocada. Não houve nenhuma hemorragia interna; foi o que provavelmente a manteve viva. O atacante, apesar de claramente perpetrar uma alta dose de violência, soube deter os golpes no limite para conservá-la viva. Havia uma clara intenção de fazê-la sofrer. O cirurgião, apesar de sua experiência, admirava a capacidade 149


humana de produzir tal dor. Era realmente alguém de poder surpreendente. Luciano ouvia e figurava em sua cabeça a real imagem do assassino. Um monstro revoltado envolto numa fachada totalmente irreal que não inspirava suspeita nem nos mais perspicazes dos mortais. Quanta ironia; afinal a insanidade podia ser detida e controlada. Isso liquidava com todas as possibilidades de padronização. Apesar de se ter, agora mais do que nunca, um suspeito; ele seria quase que inalcançável... O policial disse que ela tinha sido encontrada ao lado do carro, inconsciente, de madrugada, por um grupo de pessoas que passava no lugar. Luciano sabia muito bem a que lugar o guarda se referia. Com a informação dada por Carol na noite passada ele tinha quase certeza que Frida, cedo ou tarde, iria enfrentar a cólera de alguém por sua intromissão. Ele não imaginava que seria tão cedo e nem tão grotesca... A pessoa central do caso estava se esclarecendo a cada informação, mas ainda lhe fugia a percepção de toda aquela agressividade e detalhamento. O controle que esse elemento consegue exercer é algo que coloca em dúvida o próprio sentido da existência da carne... A fascinação. Luciano agradece ao policial e ao médico, e volta seus olhos para dentro do quarto. A visão de 150


Frida naquela cama lhe dava uma sensação incômoda de fraqueza e temor. Para um policial investigador, tirava muito de sua perspicácia, tal sensação. Enfrentar tal monstro... Ele vê Carol; novamente se remete à noite passada. O que eles sentiram juntos era muito importante e seria dificilmente esquecido. Também temia por ela; a proximidade de Carol, a compaixão que ela tinha e o que ele sentia, mesmo sem querer... Ele anda até o quarto e a puxa pelo braço. Em voz baixa: • Eu tenho que ir. • Você vai ao Ateliê? • Vou! • Eu posso ir junto? • É melhor não. Vá para faculdade. Tente ter um dia normal... pra variar. • Acho difícil. • Eu sei. Mas vá! Mais tarde eu devo passar lá. - Carol tentava declinar ao seu pensamento, mas sabia que Luciano provavelmente iria lá por causa de Fernando. De certo modo ela até duvidava que o próprio aparecesse, mas ela não sabia o quanto a situação era incomum. Eles se olham por um segundo e a viva memória da noite passada lhes fornece a coragem necessária para satisfazer suas vontades, mesmo em público; não 151


havia porque esconder. Eles se beijam, em despedida. • Até mais tarde! - Carol o observa entrar no elevador e tenta manter claros seus pensamentos. Até quando teria que viver à sombra daquele monstro... Quando poderia ser completamente feliz? Quando?... Ela volta ao quarto.

2 Outros olhos surgem na manhã para visitar Frida. Seus pais estavam fora do quarto e os amigos tinham ido embora. Ele se sentia deslocado e constrangido para aparecer ali em público, mas estava no hospital há tempo suficiente para ver seu provável algoz beijar a mulher que ele não conseguia evitar de desejar, cada vez mais. E mesmo diante daquela situação, alimentada pelos momentos da noite anterior, Fernando não podia deixar de querer ver Frida no hospital. No dia anterior ele a desejou morta por tanto desagrado. O encontro com ela no Pelourinho estaria sempre em sua memória como um dos mais desconfortáveis momentos de sua vida. Mas ele sabia o que era dor, todas as dores. A fragilidade que ela se apresentava agora não podia deixar de consterná-lo, também. Fernando olha para a imagem de Frida, 152


desacordada, ferida, maculada; à sua frente. Também não queria acreditar... • Me desculpe, Frida. Eu sinto muito mesmo. Ela não ouvia mas ele tinha que dizer. Toda sua vida se protegeu de qualquer sinal de fraqueza. Eram preços pagos por se ser sozinho, mas ainda restava muita compaixão em sua consciência. Uma consciência extremamente ferida e calejada, que tanto o fazia sofrer, quanto o protegia das maneiras mais fortes. Se sentia mais só ainda ao estar naquele cenário; queria ele estar em outro mundo... Mas tem de continuar, ir embora; não há muito mais tempo. Ele sabe. • Adeus, Frida...

Última atenção A palidez e a congestão do rosto de Cláudio não dão margens a dúvida a respeito do que ele fez na noite passada. Luciano chegara no Ateliê e teve que esperar um bom tempo até que a ressaca do jovem músico permitisse que ele se levantasse. Nesse período ele pôde receber dois recados do seu superior. Teria de comparecer no Complexo de Delegacias ainda na manhã. Já imaginava qual seria o assunto: um suspeito. Mas ele sabia que teria uma resposta. A visita a Cláudio era só a peça final para ele se 153


apresentar. Mas ainda era o primeiro passo. Todas as facetas apresentadas por aqueles elementos davam a margem para as dificuldades que ainda viriam. Novamente ele sente a desconfortável sensação de temor... Mas o momento o faz seguir na profissão: • Frida estava com alguém? • Acho que não. • O que mais ela disse? • Falou sobre os telefonemas para Ilena e ... • Quais? Aqueles que você mencionou? • Não sei. Pode ser. Eu não lembro muito bem... • Você se lembra dela ter dito algum nome? • Sei lá... Leandro. Não... Fernando. • Você conhece? • Acho que não. • E você não viu ninguém olhando ou seguindo Frida? • Eu nem vi ela saindo! • Tudo bem. - Não estava sendo de grande ajuda, mas a confirmação do nome era tudo que ele precisava. Ele precisava confirmar o motivo... A voz arrastada e a expressão cansada de Cláudio pediam cama. Ele estava muito diferente da noite passada quando expôs sua confusão e demência musical e alcoólica. Luciano sabia que só tinha que apresentar aqueles fatos e teria o elemento comprometido. Olhava o detrimento do 154


músico e se admirava de tanta repúdia. Toda aquela dispersão e ainda assim um nome. Não havia mais o que fazer. • Obrigado pela atenção! • Ah... De nada. Espero que ajude. • Vai ajudar! - Luciano já estava perto da porta. • E ela vai ficar boa? • Claro. Só está machucada. - Luciano parte. Cláudio olha ao redor seu bar vazio. Ainda tinha na memória a noite passada. Talvez Frida estivesse “inteira” se tivesse dançado com ele, ou mais. Tentava não sentir culpa, mas não podia. Tentava se desligar mas não podia. O álcool não estava mais em sua cabeça. Gostaria de um dia se desculpar com aquela jovem mulher, que só queria entender melhor as atrocidades cometidas na amiga. Mas ele sabia que nunca o faria. Como o mundo pôde se tornar tão terrível, tão de repente. Ele olha para o palco, lá está sua guitarra. Sua alma em “blues” procura a lembrança de uma música. Ele se senta e uma profunda depressão o atinge. Não podia fugir de novo. Lágrimas surgem em seus olhos. Seu rosto já abatido olha o vazio procurando algo em que se segurar. Não fez nada e por esse nada estava doente. Culpa. Entorpecimento. Dor. • Meu Deus, Ilena. Como você faz falta! 155


Ordem / Fato As circunferências de corredores que formam o Complexo de Delegacias dos Barris sempre terminam em alguma sala, minimamente maior que os cubículos dos investigadores, onde se encontram os delegados. Sentados em suas posições de autoridade, eles regem seus nobres e sacrificados investigadores para dentro do mundo do crime. Muito além da compreensão de seus reais valores está a inevitável necessidade de ordem. São todos heróis e vilões. O último traço para o sub-mundo. O delegado Adroaldo Macedo vive o “conforto” de sua sala, enquanto aguarda a chegada de um dos seus investigadores. Homicídios! Essa é a vida deles. O detetive Luciano está a cargo de descobrir o assassino de Ilena Fernandes e o delegado Adroaldo está a cargo de lidar com o Secretário de Segurança Pública e também com a imprensa. Com a expressão ele podia dizer que o assassino ainda está solto e que na noite passada atacou outra vítima?! Por sorte ela estava viva. Ou por escolha do assassino. Mas a experiência dizia que o elemento estava começando a abusar da demora da polícia. Ele se sentia poderoso; não só por ter tirado uma vida; mas também por conseguir se safar. O vivido delegado sabe que a 156


imprensa e a opinião pública irão usar mais um argumento para demonstrar a ineficiência do poder público. E o Secretário irá detonar no homem que é o responsável... Ele. E ele, agora, quer uma cabeça... Luciano chega. • Quando é que vai me trazer esse assassino?! O fervoroso cumprimento do seu chefe revelava que a notícia sobre Frida havia se espalhado. Ele foi o primeiro a aferir que o assassino de Ilena era o mesmo atacante de Frida; tomaram como verdade; apesar de somente ele conhecer todos os fatos e as razões. Era impressionante ver o poder de sua autoridade pessoal. O seu próprio chefe estava irritado por causa de uma simples informação que ele emitira. Era uma grande ironia... Tal poder! • Mais cedo do que pensa, chefe! Hoje mesmo eu trago o suspeito para um interrogatório oficial. • Por que demorou tanto? • Há certos problemas de circunstâncias que ajudam mais a ele do que a nós. Eu tive de esperar até a última informação para ter certeza. E ele não vai ser fácil... - Com um leve sorriso no rosto, Luciano diz o que o delegado mais queria ouvir: • ...Mas trazê-lo vai acalmar a imprensa e o Secretário. - Já mais aliviado, o delegado refaz sua carranca; voltando ao seu estado normal e se propondo 157


a contribuir... • Do que você vai precisar? • Bom... Eu gostaria que o psicólogo da polícia assistisse e avaliasse o interrogatório. O elemento tem um grande poder de auto-alienação e creio que vamos precisar de toda ajuda. - O delegado, já se expressando como um velho amigo, admira a requisição daquele procedimento. Se o suspeito era tão dissimulado, como Luciano conseguira expô-lo? - A experiência policial do delegado agora toma sua mente. Com a exclusão dos problemas políticos, a velha perspicácia de rua voltava a dominar. É um dom de vivência... • Como você pegou esse sujeito? • Eu ainda não o peguei, mas sei que é ele. Na verdade, foi graças a um envolvimento pessoal meu que consegui focalizar todos esses traços no suspeito. • Que envolvimento pessoal? - Luciano hesitava, mas a autoridade de seu superior lhe impedia de manter pessoal, sua vida pessoal. Teria de se sacrificar. Cedo ou tarde. • Bom! Ele é um “amigo” de minha namorada. - O delegado Adroaldo observava a tentativa de seu policial em manter a situação firme. No trabalho policial, lidar com situações de alto índice de desumanização, de certo modo, fortalece o lado emocional do ser (um tipo de alienação); mas quando 158


a vida pessoal de um policial se encontra com os choques mórbidos de seu trabalho, geralmente, acontece um tipo de obstinação que prejudica a todos. E mais ainda quando a história cai na imprensa... As marcas na vida do delegado diziam isso e ele podia ver as marcas começarem a surgir no policial à sua frente. Temia pela investigação, mas queria confiar em Luciano. Conhecia a história dele com Cristiano... Ele conseguiu superar. Agora, ele teria de se superar, de novo. • Tudo bem. Eu vou chamar o psicólogo que está encarregado do caso. Mas eu vou querer um relatório com os passos de sua investigação. Com tanta repercussão, eu não vou admitir a prisão de um homem errado. • Não se preocupe. - Luciano sai da sala. Se preocupar era o que o delegado mais fazia. Tensão... parecia ser o preço de seu cargo. Via as certezas do policial, quase vinte anos mais novo que ele, e o invejava. Até atingir aquela função tão conturbada passou por diversos momentos incertos; a vida em risco. Também ele perdeu companheiros por meio de balas criminosas, e agora tinha que fazer política. Era combater o crime por dois lados: o errado e o que deveria ser o certo, mas também é errado... Sentado em sua pequena sala, o nobre delegado pensa sobre 159


aquele caso e sobre sua vida: “Estou velho demais para idealismo!” Era triste, mas parecia ser verdade. Ele torce pelo futuro de Luciano. É o melhor que ele pode fazer.

Exposto O centro das atenções. Fernando sente o “stress” do momento em sua coluna. Sentado numa cadeira desconfortável, dentro de uma sala extremamente abafada e com três homens ao seu redor. Sentado atrás dele está o psicólogo criminalista que assim que se apresentou começou a analisá-lo. Ele pôde sentir pela postura do homem: cada coisa que ele dissesse seria interpretada e analisada. Queria estar em qualquer lugar; mesmo sozinho; menos ali. Sentado atrás de uma mesa à sua frente estava o delegado Adroaldo. Não podia aferir muito a respeito daquele homem. Com certeza analisaria cada afirmação sua, só que sob a ótica policial. De certo modo confiava mais no julgamento dele, por ele estar mais fora da situação... Confiaria em seu comandado, mas seria muito mais imparcial do que ele; e Fernando sabia disso. À sua volta estava Luciano, andando muito enquanto lhe fazia as perguntas. Era sem dúvida um algoz de ferrenha determinação. Não poupava 160


Fernando de nenhum constrangimento, mesmo com ele se defendendo de todos com diligência. O que mais Fernando queria era esquecer o que estava se passando, mas a todo momento se lembra do fim da manhã na faculdade: sua exposição... “Todos saiam da última aula. Fernando pegava seu material com desânimo. Mais do que o normal ele se sentia abandonado. Sua própria vontade de viver parecia não estar mais se sustentando. A visão de Frida na cama do hospital parecia ter capturado sua sensibilidade para vida. Também pela presença de Carol no seu dia. Mesmo sozinho e à distância, ele conseguia sentir e até apreciar, mesmo sofrendo, o amor que lhe era presente. Mas as circunstâncias do tempo modificaram tudo. Parecia ser uma avalanche inevitável. Ele não podia mais evitar o que viria à frente. Se sentia conformado, até morto por dentro. Na noite anterior ele acumulara dores diversas: ciúmes de Carol com Luciano; raiva de Frida; sua própria frustração. Imaginava se algum dia haveria um melhor caminho a seguir. Nada mais parecia fazer sentido... Mesmo no momento que ele focalizou Luciano conversando com Carol e os outros, olhando para ele; sabia o que vinha pela frente. Sua mente já montava toda situação e mesmo não fazendo sentido ele iria cooperar. Não tinha mais nada a perder. Ele 161


mesmo já se sentia condenado. Luciano vinha em sua direção devagar. Todos parados atrás observavam aquela cadeia. O olhar de todos julgava Fernando. Conheciam ele pouco, mas resistiam em crer na proposição. Os que viram o estado de Frida continham certa revolta pela falta de certeza. E Carol... Ela tinha múltiplas visões de tudo aquilo. Sabia que Luciano viria “pegar” Fernando e de certo modo admirava a passividade dele. Era como se ele, simplesmente, estivesse de acordo; sendo ou não culpado. Aumentava ainda mais sua consternação ao ver Fernando naquele estado... Como compreender ou julgar alguém daquele modo? ...Um aperto no coração de Carol se formou quando Luciano chegou a seu suspeito. Ainda se punia por acreditar em alguma coisa. O olhar de Fernando chegou até ela. Não tinha como fugir. Ela não tinha certeza de que lado estava. Aqueles dois homens, completamente diferentes, a atingiram, de maneiras diferentes. A busca de um por amor e compreensão lhe dava uma vertente de fragilidade, mas Carol sabe que as circunstâncias são motivadores poderosos. De uma maneira diferente, também ela se sentia perdida; amedrontada com o modo como as coisas se deram. E o outro... Lembrava do toque de Luciano. A atração que ele lhe proporcionava. O prazer que 162


ele lhe dera... Luciano estava atrás de um assassino e naquele momento estava levando Fernando para ser interrogado. Como as coisas podem ter um caminho tão triste; tão confuso? - Queria Carol voltar a ter simples sensações de conforto... Mas o que ela via era o seu namorado levar Fernando e ele simplesmente olha para ela; triste, passivo, parece morto. Como pode ser?” Fernando pensa em como será julgado agora. Pensa se liga para o que seja que lhe aconteça. Sente culpa pela própria existência. Sente dor por estar vivo. Sente remorso por todas as dores do mundo... O policial/algoz ao seu redor despejava todo tipo de alusões que maculavam tudo que ele um dia poderia ter acreditado. A própria privacidade de sua vida parecia ser de interesse daqueles homens. Nunca imaginou ser tão importante. O vazio dentro dele crescia à medida que era exposto e de certo modo, se sentia preenchido pelo vazio. Tirava poder daquilo. O policial parecia julgá-lo e rejulgá-lo a cada pergunta. Ele não se importava. Sobreviveu ao reencontro com Carol. Não disse uma palavra, mas tinha visto com o olhar que estava “livre”. Uma espécie de morte interna o levara àquele momento. Também sobrevivera à visita a Frida no hospital. Sabia que nunca mais seria a mesma... Sabia que nada mais seria o mesmo. 163


Fernando se libertara do julgamento de todos aqueles olhares. Se sentia auto-condenado. Sabia o que tinha de fazer. Ele, agora, seria o monstro; mas ele não liga. Não se importa mais, apenas se desprende... • Que importância tem isso afinal? - A voz de Fernando não demonstra uma emoção. • Foi notado o seu envolvimento emocional por ela! • E daí!? Isso me dá motivo? • Ela o rejeitou! Você se enfureceu! • Eu nunca me enfureço. • Não brinque rapaz. Há muitas circunstâncias contra você. • Mas não há provas. Eu não via Ilena há muito tempo. - O delegado via que Luciano não tinha argumentos para aquilo. Ele notava que havia algo não mencionado entre os dois... Mas ambos sabiam o que era: Carol. Luciano sabia que se expusesse o sentimento de Fernando por ela, tiraria todo o crédito de sua investigação sobre o assassinato de Ilena. Ele não queria deixar Fernando escapar. • E quanto a ontem à noite? Onde você estava na hora do ataque a Frida? • Pelo horário mencionado eu deveria estar chegando em casa. • Pode provar? 164


• Não senhor. Eu moro sozinho! E também... eu não tinha motivo para querer machucá-la. • Ela o enfureceu publicamente no Pelourinho. • Ela enfurece qualquer um. Sempre foi o jeito dela. Nem por isso as pessoas a atacam o tempo todo. • Talvez ela tenha descoberto algo sobre você e você não quis que ela contasse. • Se fosse o caso não seria mais seguro tê-la matado? - Novamente Luciano tinha ficado sem resposta. O delegado Adroaldo e o psicólogo também começaram a notar a capacidade de Fernando em se auto-alienar. Ele conseguia encontrar forças na sua própria obscuridade. Todos, inclusive Luciano, notavam que não seria tarefa fácil lidar com tal pessoa. Ele tanto dava margem para a culpa, quanto dava argumentos para a sua inocência. O raro poder de não se expor. Dentro dele o vazio e fora, o poder... • Voltando a Ilena... Os telefonemas... - A exaustão aparecia no rosto do obstinado investigador, enquanto Fernando continuava a se sentir forte, pelo vazio dentro dele. Entre as respostas se refugiava no seu passado, quando até sua solidão parecia ser um parceiro melhor que o vazio. Tinha as imagens de Ilena, Frida e Carol na memória. Em seu íntimo ainda procurava um sentido naquilo, mas parecia não haver... 165


• Pode repetir a pergunta, por favor. - E a tarde passou arrastada. Incertos, todos se prendiam à procura da paz. Fernando foi liberado... Não pode deixar a cidade. Não liga. Tudo parecia ser uma grande e inesgotável fonte de falta de sentido...

2 Ele sai pela porta. Sua transformação tinha realmente atraído as pessoas. Os seres humanos tanto necessitam de heróis quanto de vilões; e ele era o vilão. Estava livre, por enquanto, mas para o mundo do lado de fora ele era quem tinha sido levado pela polícia. Um suspeito; praticamente um monstro. Por trás do pequeno cinturão de repórteres que o cercava com perguntas tão ou mais constrangedoras que as de Luciano, Fernando localizava quatro pessoas e uma delas invadia sua memória de maneira devastadora: ele não lembrava seu nome, mas já o tinha visto e o seu olhar frio demonstrava que também se lembrava. Era o irmão mais novo de Ilena. Por dedução Fernando imaginou que as outras três pessoas eram o pai dela e suas duas outras irmãs... Imagina o que eles foram fazer lá: conhecer o rosto do monstro. Ele... Sua visão estava fixa com a visão de Carlos. As perguntas que lhe eram feitas não 166


importavam. Ele não seria um espetáculo televisivo ou jornalístico. Uma aberração no mundo dos que se acham intocáveis. Simplesmente se calaria... Começa a andar em direção à saída; devagar; terá de passar pela família. Talvez o irmão de Ilena lhe bata. Não se importará... Se aproxima. Os repórteres ainda estão ao seu redor. Ele sente os olhos dos quatro sobre si, enquanto ainda olha para Carlos. Havia algo diferente no olhar dele. De perto Fernando podia ver que havia não apenas a acusação, mas teorias da polícia. O que ele poderia saber? - Pensa Fernando. Carlos não irá atacá-lo. Está analisando. Procurando... Fernando lembra de Ilena. Não pensava nela há um tempo. Tinha somente se fixado na profundeza de seu vazio. Se esquecera que outras pessoas também gostavam dela... Finalmente deixa para trás a visão daqueles rostos desolados. De todas as dificuldades daquele dia, encarar aquela família foi o momento mais doloroso. Seu rosto se enrubesce de leve; sente uma modesta vontade de chorar. Nunca teve família de verdade; nunca teve por quem chorar. Queria sofrer como todos, mas já estava à frente. Estava num momento mais visceral. Um período de dor inimaginável.

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3 A porta se fecha. Quem estava dentro não tinha a mesma capacidade de enfrentar a mídia e não queria enfrentar a pergunta óbvia: “Por que deixaram ele ir?” O delegado Adroaldo olhava perplexo para a seriedade de Luciano, sentado no sofá da sala. Teve de liberar o suspeito. Luciano simplesmente não conseguia mais encarar o rapaz. O delegado sentia que havia mais do que se havia aferido durante o interrogatório, mas não sabia até que ponto esse mais envolvia o seu policial. A aproximação dele com o suspeito através de Carolina tinha alguma outra conotação mais forte. Talvez Fernando também esteja envolvido com Carolina! - O experiente delegado sabia chegar às conclusões certas, mas não queria aborrecer mais ainda Luciano, que ainda se sentia traído por si mesmo, não sabendo de todo potencial dissimulador de Fernando. Não queria acreditar, mas o estudante o havia deixado sem base; além de não querer revelar seu próprio envolvimento... E Fernando sabia disso, usando esse poder com destreza. • O que o senhor acha, doutor? - O delegado se voltava para o psicólogo e chamava a atenção de Luciano para a dissertação. Talvez fosse o único ganho do dia. 168


• Devo confessar que estou impressionado. Aquela é a pessoa mais fechada que já encontrei. Deve ser uma experiência interessante analisá-lo. Não há dados sobre seus pais e os pais adotivos parecem não ter tido nenhuma influência drástica sobre o comportamento dele. Suas respostas foram todas diretas e duras. Não houve hesitação na hora de responder a nenhuma delas. Tanto tudo pode ser verdade quanto mentira. (Ele folheava anotações enquanto falava.) Suas expressões não diziam muito. Algum desconforto, talvez. Mas a maior parte do tempo parecia que não havia ninguém por trás do rosto. Eu consegui notar algum pesar quando o detetive mencionou as duas garotas atacadas. Ele podia estar fingindo, o que com certeza seria com perfeição, mas eu não duvidaria de ele estar realmente sentindo. Como eu já disse antes, esses assassinos emotivos sofrem muito remorso, apesar de não conseguirem evitar de sentir prazer com a agressão. É como um compositor e sua música: ele sofre mas gosta. É um som inevitável e ininterrupto... - Luciano ouvia as afirmações do psicólogo. Se lamentava... Não havia muito mais que ele já não tivesse aferido sozinho. Para os observadores de convivência, Fernando era somente um solitário, mas quem se aprofundava podia ver a sua força. Ele se defendia com tanto empenho 169


e se escondia tão bem em seu próprio mundo vazio, que se tornava quase inalcançável. Talvez por isso ser tão solitário. Ele tinha em sua consciência seu maior aliado e amigo, e era ela mesmo quem lhe empurrava, tanto para a auto-preservação quanto para a sólida e mórbida tristeza. O psicólogo não conhecia a fundo a situação emocional de Fernando. Suas paixões e conseqüentes frustrações constituíam também outro grande motivador para a sua alienação do mundo... Estavam todos numa progressão. Luciano, inevitavelmente, pensa em Carol. Como ela reagiria a esse outro lado do seu mundo? Como acertar sobre tais situações da vida? - Ele pensava, enquanto o psicólogo prosseguia: - Não há como garantir seu envolvimento. Eu acredito que o tempo que ele tem sozinho, o que parece ser muito, o treina na arte da introspecção. Ele passa tanto tempo se auto-analisando, que sobrevive com facilidade às análises externas... Analisá-lo deve realmente ser fascinante... - Enquanto o psicólogo admirava os detalhes comportamentais daquela pessoa, Luciano e o delegado Adroaldo contorciam suas idéias dentro de toda aquela trama. Eram dois lados de uma mesma fascinação pelo crime... Psicologia e investigação. • Bom... De qualquer jeito é difícil prever o que o inconsciente dele está preparando agora. Ele 170


parece estar tão dentro de si mesmo que a sua própria consciência deve interferir nos atos inconscientes... Se ele for o assassino, esse ego deve estar se regozijando por ter nos vencido e ele sabe disso. Se ele não for, por dentro ele até pode estar um tanto satisfeito, mas também pode estar sentindo-se um tanto humilhado... • Ele é o assassino! - Exclama Luciano com segurança. • Eu não posso afirmar isso, detetive. Acho que o único jeito de pegar esse rapaz; se ele é realmente culpado; é pegá-lo no ato. Ele não vai se revelar. Ele não é burro; sabe o poder que tem e vai usá-lo, sempre. Você afirmando isso já devia saber, pelo estado das vítimas, como ele é minucioso e frio no momento de se esconder. • Ele vai cometer um erro! Cedo ou tarde! - O delegado Adroaldo também conhecia essa regra. • Talvez. Apesar de tudo, ele ainda é humano... - Luciano olha para o delegado Adroaldo. Uma idéia surge em sua mente. Toda segurança de Fernando podia ser a falha que ele procurava. Alguma coisa não vista por ele em si próprio talvez fosse a arma que Luciano procurava para pegá-lo... Um ato. • Delegado... Eu preciso de um mandato de busca! A casa de Fernando. 171


4 Os três saem da sala. Não havia mais nenhum repórter; somente a família Fernandes. Pai e filhos se mantinham esgotados, enquanto Carlos não perdia um movimento e não parava de pensar. Desde o momento que falara com o detetive Luciano notara que aquela situação não era normal. O encontro de olhares com Fernando tinha lhe dado a certeza de tal anomalia. Ele viu dor em Fernando, enquanto que o policial tinha lhe passado apenas uma falsa certeza de justiça. Ver o “suspeito” sair dali mostrava o quanto ele estava certo em não acreditar no policial... Toda aquela aparente força e segurança. Pensa no que podia se basear tal segurança. Sentia uma força e uma tristeza naquele ambiente que rodeavam seu raciocínio; o deixava confuso e fascinado. Não queria estar errado: o que mais os olhos de Fernando poderiam estar dizendo? - Pensa... Talvez Carlos estivesse superestimando sua capacidade de observação, sendo apenas um garoto; mas nada conseguia lhe tirar da cabeça a desconfiança de que tudo aquilo estava trilhando um caminho que não lhe fora totalmente revelado. Queria se confortar com o pai, mas via que ele não tinha muito a oferecer... O que Carlos mais queria mesmo era conhecer aquele 172


homem com quem cruzara olhares. Queria conhecer Fernando Vainarde. Ver o que Luciano não via; ouvia e ignorava. Achar o verdadeiro monstro... Quem matou Ilena.

O Monstro A humilhação e o constrangimento que não pareciam transparecer no dia anterior, se mostravam com força agora. Cada olhar acusador reconhecia o rosto familiar, que sempre esteve perto, mas nunca notado. Fernando não sabia porque fora à faculdade. Notava em cada pessoa que o encontrava que tudo que aprendera sobre o poder da mídia era verdade. Na tela aparecera por menos de três minutos; calado, sóbrio, inexpressivo; mas um texto e um contexto qualquer o faziam já idealizado. Nunca foi motivo da atenção de ninguém além dele mesmo. Sentia como se seu mundo tivesse sido invadido. Ele era cheio de vazio; verdade! Mas era dele... E agora todos estavam querendo entrar, acusá-lo, julgá-lo. O que todos podiam saber? - Uma fúria súbita o toma. (Luciano!) No dia anterior sobrepujara toda a indolência da polícia; especificamente Luciano. Agora passava por aquelas pessoas e se sentia despido. Até mesmo a leve culpa que o tomara no dia anterior tinha 173


desaparecido momentaneamente; dando lugar a uma imensa vontade de explodir... Perderia parte de sua proteção, talvez... Mas não queria se importar. O vazio de toda aquela situação parecia agora inflar em seu peito. “Por que vim cá?” - Pensa. Nunca imaginou a faculdade sendo um ambiente tão opressivo; mais até que o lugar onde estivera no dia anterior. A beleza da vida acadêmica nunca fora algo atraente. Os prédios e a natureza rodeados dos mais diversos tipos de pessoas transmitiam um certa angústia à sua solidão: tantos rostos se cruzando e muitos não se viam. O campus era um grande centro, que naquele momento só parecia querer transportá-lo para fora... Talvez por causa da mesma opressão; talvez sentisse falta. Estava perdido... Que terrível angústia podia se atingir ao final de tantas imposições. Era um monstro. Uma criatura detestável. Era ele. Parte do dia se passa. Os olhares persistem. Fernando se sente sozinho em meio a toda aquela atenção adversa. A cada minuto sente vontade de ir embora, mas não sabe onde ir. Em casa iria se perder em lembranças; voltar em depressões do passado e piorar as do presente. Se sentia aprisionado. Preso no vazio. Imagina ele o que mais lhe pode vir que piore o momento. Não parecia haver resposta para nada. Somente os pesares da vida e sua própria exposição... 174


• Fernando! - A voz fez parar seu caminho para saída, mesmo sem destino sabia que tinha que sair dali. Tinha medo da voz. Era conhecida. Talvez devesse ter saído mais cedo. A fúria ainda o tomava e temia fazer algo que a expressão em seu rosto já parecia transmitir... Ela com certeza já sabia de tudo; mais até que os outros. A última lembrança dela é na companhia de seu lépido algoz; alguém que Fernando queria esquecer. Ele havia desmanchado a sua vida, mesmo sem se garantir disso. Mas mais do que tudo: Fernando sabia que Luciano tinha tido Carol; a dor, a frustração, o ciúme e o constrangimento desenhavam no rosto o que Carol nunca gostaria de ter visto ao chamar o seu nome: • Fernando! Não ouviu!? - Era tarde demais. • Ouvi, mas preferia não ter ouvido! - Carol se espanta com a rispidez de Fernando. Tentava manter uma perspectiva de compreensão. • Como foi ontem? - Machucava o coração de Fernando ver aquela mulher em sua frente e não poder tocá-la. Era a única pessoa capaz de sentir muita resposta para tal afirmação. Era verdade... Tudo. Queria poder dizer algo confortante, mas a incerteza também pesava em sua consciência. • Eu sinto muito, Fernando. É triste ver você assim. 175


• Guarde seu ressentimento. A vida que foi maculada foi a minha e você já escolheu o seu lado... - Carol começava a se incomodar. Era difícil para ela também, mas ele parecia não ligar. • Você tem que entender que era necessário. Mas agora você está livre... Quanto à minha... - Ele interrompeu raivoso: • Livre!... Olhe ao redor, Carol. Eu sou a aberração do campus e você também acha isso. • Fernando, eu sei que você é mais que isso. Se você se sente lesado, procure um advogado... - Um sorriso compulsivo atinge Fernando. Ele não podia crer no rumo daquela conversa. Carol não fazia sentido algum; como tudo mais. Ela parecia expressar tanto culpa quanto medo; se prendia em defender o namorado de maneira esquivada e se desculpar por não corresponder aos sentimentos de Fernando. Se transformava numa estranha mistura de paixão e raiva, que de certo modo dava poder a Fernando... A mulher à sua frente; que por meses o fez tremer calado diante da rejeição e da atração; ela estava com medo dele. Podia-se sentir seu incômodo e desagrado diante dos insultos indiretos, mas não havia revolta, ela não se expunha; apresentava argumentos sobre argumento, mas na verdade não sabia o que dizer. • Eu não preciso de advogado! Eu não preciso de 176


nada! - A imponência e segurança no tom de Fernando davam mais medo ainda em Carol. Ela tentava se sustentar: • Eu imagino como tem sido difícil, mas você pode contar... comigo.- Sua voz parecia se arrepender do que dizia. Fernando a olhou por um minuto. Direto nos olhos. Estava sério; não havia mais sentido nem em sua paixão. Ela simplesmente desviava o olhar. Toda sua luminosidade e beleza pareciam morrer diante da situação. Se sentia totalmente perdida dentro daquela trama. Parecia não ter mais função. Ela falava com o monstro e todos no campus eram testemunha... Estava totalmente tolhida. Aquele lugar parecia girar em expectativa, e ela ainda tinha que ouvir mais uma coisa: • Carol (ela olha/Fernando ainda consegue queimar um pouco por dentro), eu teria feito qualquer coisa por você; qualquer sacrifício seria válido; minha própria vida, mas agora eu estou longe, distante demais para ser alcançado. Você e seu namorado podem ficar com suas vidas... Eu vou me afastar. Vou encontrar a distância onde já estou. Nada mais importa: se eu sou o monstro, dane-se! Serei o monstro; eu não ligo... Não dou a mínima. - Ele se afasta de costas alguns passos. Ela observa sua expressão. Não parecia restar muita coisa daquele jovem que ela admirava e que a 177


fazia sentir-se tão vaidosa por seus sentimentos por ela. Um dia Carol viu em Fernando algo que ninguém mais via; e agora ela via o último vestígio do que todos, agora, conheciam. Fernando continuaria triste e solitário, mas não mais frágil. Carol vê ele se virar e atravessar o portão principal do campus; ela fica parada em meio às pessoas, às árvores e os prédios. Não via muito sentido no que havia acontecido. Pensa em Ilena e Frida: não conseguia ter certeza nenhuma nas teorias de Luciano. Aquele rapaz, que acabara de despi-la de sua imagem final a respeito dele mesmo, não parecia representar nada. Não conseguia imaginálo matando ou ferindo alguém, mas toda aquela nova face fria e segura dava uma margem de dúvida. Ela se lembra do “estrago” em Frida: como ser capaz de causar tanta dor... Não havia culpa em seu rosto. Apenas um leve ressentimento do passado se esvaindo no presente; e o vazio. Ela imagina o que pode estar nesse vazio: talvez a resposta. Carol se sente muito só naquele instante. Não queria nunca estar assim, mas era verdade.

Paixões e retorno Sete da noite. O telefone na casa de Carol toca. Ela mesma atende. Estava sozinha e se preparava 178


para ir à academia. Era um relaxamento para ela além da vontade de sempre manter o corpo em forma; e naquele dia em especial, não só a faculdade e o trabalho a haviam consumido. As palavras de Fernando ainda rebatiam sua confusa mente... • Alô! - A voz do outro lado da linha trazia tanto esperança quanto ressentimento. Um mundo de possibilidades poderia se apresentar; inclusive mais consternação: • Carol!?... É Fernando. - Seu corpo e sua mente queriam saber o que dizer; acabara de pensar nele... Após o desabafo da manhã, não imaginava o que ele teria para lhe dizer. Talvez ele também não soubesse... • Oi! • Oi! Eu estou ligando para me desculpar. Eu sinto por ter explodido com você hoje. Passei todo o dia pensando em você e no que eu fiz... • Eu entendo! - Ela admirava a honestidade dele, novamente. Sentia, como antigamente, o tom sensível de sua voz. Envaidecida, de novo, por ter a sua atenção. Era, provavelmente, a última vez que ouviria aquela voz; a última memória do Fernando frágil. Ela sentia que a mudança dele era irreversível; com certeza se tornaria uma pessoa mais dura, fria... Mesmo assim, não conseguindo evitar, ela sente uma leve atração por esse novo ser; não o que lhe falava 179


pelo telefone, mas o que explodira naquela manhã. Ela ouvia: • Mas como eu disse de manhã, eu vou me afastar por um tempo. Eu estou me sentindo exposto; vulnerável. Acho que o pior vai ser me afastar de você... Mas eu não tenho mais retorno. • O que você quer dizer? • Eu estou preso num mundo sem volta; meu mundo. É uma coisa difícil de entender... Eu quero que saiba que eu nunca... vou... esquecer você... Foi pra isso que eu liguei. Espero que você fique bem. - Carol não tinha palavras. Segurava o telefone e sentia a tensão em seu corpo. Não conseguia fazer uma distinção racional de tudo pelo que ela estava passando, ou do quão real era aquilo que ela ouvia. Talvez estivesse se enganando com tudo aquilo... Ela se lembra da atuação de Fernando de manhã... Só restava, agora, se despedir. • Adeus, Carol... • A ... Adeus, Fernando. Até um dia... - Ela desliga o telefone. Se espantava com o que sentia. Como podia estar triste por Fernando? A suspeita ainda rondava seus pensamentos: ele nunca mencionara nada de seu envolvimento com Ilena. Talvez ela tivesse sentido o mesmo tipo de compaixão por ele e acabara daquele jeito: a imagem do corpo de Ilena 180


voltava à sua cabeça... Seria mesmo Fernando? Talvez fosse um jogo de sua parte: envolvê-la, trazê-la para seu lado... Tentava desesperadamente racionalizar a situação. Procurava em sua mente algum traço do raciocínio de Luciano. Alguma razão ele deveria ter para suspeitar de Fernando. Assim como Frida: ela o acusara indiretamente e agora estava no hospital. Imagina se teria coragem suficiente para se arriscar em tais situações: se fosse dirigida... Seria essa pessoa, e aquela com quem acabara de falar no telefone; tão triste, tão emotivo e verdadeiro; a mesma pessoa? - Carol se sentia intuitivamente culpada por simplesmente não saber o que pensar ou o que sentir. Definitivamente ela precisa se libertar: a academia...

2 “Eu nunca senti isso por ninguém! É muito forte.”- Essas foram as palavras. Sentados numa das escadarias do campus, Fernando revelava para Carol seu mais profundo sentimento. A breve sensação de medo e insegurança era rapidamente substituída pela vaidade e admiração. Nunca imaginou alguém se declarar para ela de maneira tão direta e honesta. Ela tinha sido apanhada de surpresa pelo forte sentimento de alguém, que ela sempre vira como amigo. Ela 181


imagina como aqueles últimos dois meses devem ter sido realmente dolorosos para ele, culminando nos últimos dias com a morte de Ilena, o seu envolvimento com Luciano e a suspeita sobre ele... Carol tentava manter a sanidade enquanto repassava todos os pensamentos e sentimentos em uma avaliação pessoal e sóbria. O suor escorria pelo corpo. Cuidar o corpo era sempre uma prioridade para ela, mas nesse momento, mais do que nunca, era uma terapia... Ela ouvia novamente as palavras de Fernando ao telefone e as comparava com as da manhã, no campus... Pensava em qual seria a reação de Luciano. Por observação ele sabia que Fernando sentia algo forte por ela, mas nunca houve contato. Nem mesmo quando ele soube que Fernando estava no Pelourinho, observando-os, ficou irritado ou preocupado. Talvez ele só enxergasse Fernando como suspeito, e não como homem. Deveria se preocupar, pois Carol estava preenchendo muitos de seus pensamentos com lembranças de Fernando; mesmo que ligado a toda aquela complicada situação: Ilena, Frida, violência, morte... Cada movimento de Carol no aparelho de ginástica trazia uma imagem diferente, e sempre continha Fernando na mesma... Pensava em Luciano como forma de repreensão. Sentia perder o sentido das sensações de seu corpo 182


e não queria entrar em nenhuma situação fora do seu alcance... Se sentiu vulnerável, pois o suspeito de um assassinato povoava os seus pensamentos; e isso assustava. Ela está no último aparelho. Já se sente muito melhor. Queimar energia traz muito alívio, tanto ao corpo quanto à mente, mas alguns pensamentos conturbados ainda estão em sua cabeça: Fernando... • Carol! - Ela se vira. Quase pôde ouvir a voz da pessoa que ela tinha na cabeça; mas não o era. É justamente o seu oposto... • Oh, Luciano... Oi! - Não o vira desde o dia anterior quando foi buscar Fernando, mas não conseguia demonstrar muita excitação. Ele não pôde deixar de notar a falta de entusiasmo dela... • Oi! Eu passei em sua casa e disseram que você poderia estar aqui. • Aconteceu alguma coisa? Ela continuava o exercício. • De certo modo. Eu fui à casa de Fernando com um mandado de busca e ele havia desaparecido. Os vizinhos disseram que ninguém tinha estado na casa hoje e na faculdade disseram que ele saiu cedo e que você foi a última pessoa a falar com ele. - Luciano tinha um tom profissional, mas Carol sabia que ele deveria estar afetado por ter aquela informação. Não 183


queria atrair constrangimentos, por isso seguiu o exemplo de seriedade... • Bom... Ele disse que ia se afastar por um tempo, mas... • Ele não disse para onde? • Não... mas ele me ligou agora de noite. (Luciano alterava levemente sua expressão.) Ele parecia normal; meio triste, mas normal. - Luciano começava a ver que Carol também estava começando a ser afetada pelo “toque” de Fernando; o mesmo que o derrotou no interrogatório e que provocou tanto fascínio no psicólogo. Luciano começa a odiar Fernando. • E por acaso ele disse aonde estava? • Não! - Certa frustração atingia Luciano, além da raiva emergente. • É! Bom... Amanhã eu vou ter de arranjar um outro mandado que me permita entrar na casa sem que ele esteja... - Carol termina o exercício. Pega uma toalha e começa a enxugar o rosto. Luciano volta seu olhar e seu pensamento para Carol. Como no dia em que se reencontraram, ela está de malha, desenhando com perfeição o seu corpo. Luciano se lembra da noite em que estiveram juntos... Vendo aquele gesto, de enxugar o suor do rosto, ele não consegue evitar de desejá-la; do mesmo modo que antes. Mesmo à sombra de Fernando e seu desaparecimento; e o seu 184


telefonema; Luciano sente uma vontade louca de possuí-la, novamente... Ela olha para ele. • O que você pretende encontrar lá? • A arma do crime; talvez! - Ele se aproxima. • Você tem certeza que... - Ela sente a aproximação dele e interrompe seu raciocínio. Seus olhos já diziam o que seu corpo desejava. Carol vira a mesma expressão no Pelourinho. Era quase irresistível. Ela não se sentia muito a fim, mas se ela estava procurando relaxar e esquecer todas as confusões de sua cabeça, não haveria solução melhor... • Você não quer fazer sauna comigo?? - A expressão e a imagem de Carol não davam margem de dúvida para a resposta que Luciano daria... Eles seguem para o vestuário e depois para a sauna. Já passava das nove da noite e a academia estava quase vazia. A leve tensão que a situação traria seria um acréscimo às suas sensações. Seria algo novo para os dois... Uma nova libertação.

3 O calor rege o momento. O ambiente eleva a transpiração e seus corpos conseguem produzir tanto calor quanto a sauna. Suas peles e poros se contraem juntos à medida que seus desejos tomam forma. Os 185


movimentos contínuos são agraciados com as lisuras de seus suores. Luciano acompanha os movimentos de Carol, sentindo seu peso. Sua pele lisa, molhada do calor, escorrega pelo corpo dela. Ele é um homem, e um policial; não consegue acreditar no que está sentindo. O prazer que aquela mulher dá a ele é muito grande... Se sente dependente. Seu coração bate rápido, enquanto seu corpo aguarda impaciente a explosão no final. Ele olha para ela. Seu rosto iluminado e seus cabelos, acompanhando seus movimentos, o instigam ao prazer... Toda aquela beleza! Sente o desejo com muita força. Suas mãos envoltas na pele dela sentem cada curva daquele corpo. Não consegue acreditar no que está prestes a sentir. Vai vibrar mais forte que da primeira vez. Aquele ambiente branco e esfumaçado; o presente riso de uma inconveniente testemunha... Como podia sentir isso por uma mulher? Como Carol podia ser tão perfeita!? Seu olhar a capta em meio aos momentos de olhos fechados... Estavam diferentes. Ela estava visceral; talvez fosse o local ou a agitação do seu corpo. Ele estava cativado, preso. Não importava o que havia a mais ou diferente. Luciano só nota Carol em seu colo; seu movimento; o prazer... Sua fonte parece diferente, mas ele se punha ao final... Seria um universo. 186


Carol também sente, mas não é como da primeira vez. O prazer que ela mostra está com outro peso. Ela curva o corpo para trás. Vê que Luciano se satisfazia. Evitava beijá-lo. Não queria admitir, mas estava atuando com outra pessoa. Gostava; tinha lampejos da vez anterior, mas outro nome vinha à sua garganta e ela o transmitia como gemidos. Temia que Luciano descobrisse. Não podia evitar. A nova face estava em sua visão: não era o homem à sua frente; era Fernando. Eles terminam. Sorrisos ao além, ambos tinham paixões a esconder. Revelar a verdade parecia ser algo não permitido. Sórdido.

Armas? As batidas na porta são de lei. O mandado permitia invadir o lar de um cidadão sem a sua permissão ou mesmo presença, mas eram exigidas batidas de advertência. Luciano se afasta. Os outros dois policiais se aproximam para arrombar a porta. À todos aqueles gestos e movimentos policiais, a memória de Luciano começa a remetê-lo ao momento mais trágico de sua vida como policial. Muito semelhante à situação, ele e seu parceiro, desde a academia, Cristiano, se preparavam para entrar na 187


casa de um suspeito. Diferente do momento, eles tinham um mandado de prisão para um traficante. Não era um grande criminoso. Era apenas um rapaz, filho de pais ricos, que traficava para manter o vício. Mas era a primeira grande batida dos dois; era como a primeira grande aventura... • Abram! É a polícia! Temos um mandado de prisão! - Cristiano olha sorrindo para o amigo. Era como nos filmes: tinham armas à mão; criminosos; drogas; tudo... • Nós vamos entrar! - Luciano observava a “pose” do amigo enquanto ele faz o tipo policial durão da TV... Eram como irmãos. Se conheceram na academia; ficaram amigos e Luciano praticamente foi adotado pela família de Cristiano. A perda da sua, parecia algo distante, algo que comovia, mas era esquecido à medida que ele se ajustava àquela profissão e àquela nova família... • Lu, se prepara! - Armas em punho, e uma vitalidade e heroísmo, que só se vê em jovens; nos seus corpos... Tudo estava pronto... Do outro lado: • Você é rico! Seus pais vão livrar sua cara na maior! Eu é que vou me... • Cala essa boca, Martin... Toma, pega a arma! • Não, David! É melhor a gente se entregar... 188


- David dá um pulo sobre Martin e agarra-o pelo colarinho já rasgado. Seus olhos viajavam todas as viagens. Martin não estava tão longe, ainda havia um leve sinal de sanidade em suas ações; não havia mais nada em David... • Escuta aqui... (falava saltado, idéias descoordenadas) uma picada a mais vai levar pra desgraça! Cala essa boca, pega o “berro” e o primeiro desgraçado que entrar você apaga; eu pego outro dali... - Martin não tinha muita condição para argumentar. Entrou naquilo por acidente: estava um dia num bar e amigos de amigos dos amigos o fizeram experimentar uma primeira ida ao paraíso... Se tivesse um pouco mais de juízo; sentado naquele chão, com uma arma na mão, no escuro, com dois policiais a ponto de invadir a casa e um lunático prestes a explodir, os aguardando para matá-los; talvez ele pudesse ver que na verdade estava era no inferno. Do outro canto da sala, David esperava. Se pudesse “enxergar” veria Martin chorar no outro canto. Ele não existia mais, ninguém mais existia... Só ele e a arma em sua mão. • Tô pronto, Cris! - Cristiano dá um último sorriso para Luciano. A simpatia dele dava confiança a qualquer um. Alto, forte e gentil. Mesmo com uma arma na mão e prestes a dar um pontapé feroz naquela 189


porta, ele ainda parecia aquele amigo da academia, o irmão de sua casa, tendo sempre ele ao lado em todos os momentos, lhe dando as razões certas para se manter naquela carreira... Luciano pensa na família de Cristiano; em Carol; ele agora tinha ela; seguiu a carreira como o amigo o indicara, mas perdera um pouco da vitalidade, mas agora tinha Carol; era uma nova força. Ele se lembra do dia anterior na sauna da academia... Toda aquela energia; a vitalidade de volta... O policial dá um forte pontapé na porta de Fernando. O barulho inicial é logo cortado pelo silêncio sepulcral da parte interna da casa. Está escuro e há um cheiro de podridão que incomoda todos os três experientes policiais... Uma pergunta óbvia atinge os três: • Será que tem alguém morto aí?! - Luciano nutre tanto esperança quanto o oposto: outro corpo, o próprio Fernando (Carol disse que ele iria se afastar... Não há lugar mais distante), ou simplesmente era parte do cenário da vida de Fernando... Eles entram... Luciano volta a se lembrar: a porta se abre violentamente ao chute de Cristiano. A luz da rua ilumina a escuridão da casa. Da parte iluminada se revela um rosto pálido e assustado. Suor e lágrimas brilhavam azulados em sua face quase morta; era Martin. A arma em sua mão 190


foi a primeira coisa vista... • Cuidado, Lu! - Cristiano se põe à frente do parceiro, o tiro ecoa, foi mais o susto de uma mão trêmula do que uma real intenção, mas foi fatal da mesma maneira... Luciano aponta instintivamente para o atirador e dispara diversas vezes. O azulado agora estava coberto de vermelho. Martin estava morto. O silêncio volta... Luciano olha aos seus pés; Cristiano não tinha movimentos. Também estava morto. Um tiro no peito de um viciado sem controle e um jovem perdia a vida, fazendo outro, ele mesmo, de certo modo, perder o recomeço que tinha tido: família, amigo, tudo. Olhava para o corpo do homem que ele acabara de matar, era o primeiro; não queria se importar. Imaginara várias vezes qual seria sua reação ao matar alguém, fazia parte da profissão, e agora ele tinha a resposta... Seu amigo estava morto. Luciano caminha pela casa. Sua bagunça parece metódica. Cama desarrumada e parece nunca ter sido arrumada antes. Espelhos quebrados no quarto e no banheiro: não era psicólogo, mas parecia sinal de frustração e complexo de inferioridade; ou talvez apenas azar... Não é supersticioso, mas é baiano; não pode evitar de conviver com tantas crendices e superstições; ainda mais sendo um policial, em contato com todos os tipos de gente... O mau cheiro 191


vinha da cozinha. Quem comandava o lugar eram as baratas: aqueles pratos e panelas pareciam nunca ter visto água na vida. Luciano tenta interpretar mais como deve ser o comportamento de Fernando, através da observação de seu habitat; procura pistas, ou provas, indicativos de sua personalidade... Os outros dois policiais rondam a casa... ...Não havia outros policiais daquela primeira vez! Ele salta o corpo do amigo; precisa continuar o trabalho. Um já estava morto... Ele anda pela casa à procura do outro. A escuridão daquele único cômodo se tornava familiar e revelava o outro elemento daquela peça. David treme. Sua expressão era vazia. Seus olhos pareciam enxergar outro mundo. Ele repete: • Vou pegá-los! Vou pegá-los! - Ele parecia não ter visto nada do que acontecera. Luciano se aproxima dele. A arma em sua mão treme no mesmo ritmo do corpo. Luciano tira o revólver de sua mão e ele nem sente; seu cérebro está completamente entorpecido... Luciano aponta sua arma para a cabeça do elemento. David nem ao menos sente o perigo. Ele olha novamente para o corpo de Cristiano. Seu último momento foi primeiro sorrindo e em seguida levando uma bala no peito, salvando a sua vida... Já conhecia, agora, a sensação de matar! Por que desperdiçar o 192


momento? Um viciado/traficante a menos...? O ódio e o rancor estão dentro dele pela morte do amigo; mas não é essa a sua função. Ele ainda acredita... Luciano não acredita tanto agora. Acumula! A justiça não precisa ser algo que devesse ser mais levada a sério. Ele se lembra de David, o jovem viciado/ traficante, saindo livre do tribunal. Sua família era rica... Que importância podia ter seu parceiro morto, ou até mesmo o outro rapaz morto naquela noite, Martin?... A justiça teria que vir de uma maneira mais firme. Ele morreu de overdose, dois meses depois: essa parecia ser a justiça... Na cozinha, onde ele está olhando: na pia. Todos podem ver... O erro: • Ei! Eu acho que achei alguma coisa! - Um punhal. Era a possível arma do crime... Estava limpa como nova, mas deixá-la ali foi, ou seria o erro fatal de Fernando... Luciano tem seu último pensamento com Cristiano: “No final a justiça é sempre feita!” - Volta a pensar em Carol: “A paixão, o amor; a lembrança, o prazer!”- Luciano agora tem a arma.

Incompleto Estar sozinho sempre foi um exercício de autoanálise para Fernando. Ficar distante de todos e de tudo dentro de si mesmo era uma atividade comum em 193


toda sua vida. A perda da família quando criança o fez aprender a sobreviver a quase todo tipo de provação, sempre preso dentro de si mesmo. Sua família adotiva não pode ser considerada nem má, nem boa; sua atitude independente e fechada a manteve distante. Ela pode ser considerada uma estadia temporária até que Fernando pudesse assumir os poucos bens de sua verdadeira família. Não pode ser considerada o tipo de vivência emocional que prepara uma pessoa para vida, apenas a protege dela. Como uma armadura construída aos poucos, por ele mesmo; sua consciência, que o cerca, protegendo e também isolando; podendo a qualquer hora desmoronar e liberar tudo que há ou pode haver de hostil, suave; terrível e adorável, dentro de sua alma... Duas vezes ele tirou a armadura para revelar seus sentimentos. Nas duas vezes foi rejeitado. Expondo, de dentro de sua face sempre séria e triste, o ar de desolação... Em ambas as oportunidades fora digno de compaixão e respeito. Às vezes não entendia que razão poderia haver para tal sofrimento. Agora ele sabe que seu nexo humano de dedicação e fidelidade possui a mórbida fachada de monstro. Foi preciso Ilena rejeitá-lo para expô-lo pela primeira vez ao mundo real. Fernando a odiou por isso: se sentia desprotegido, vulnerável; mortal... Como 194


agora. Não podia acreditar que alguém pudesse ver sua transparência tão facilmente: alguém que muitas vezes era temido pelos que estavam próximos, naquele momento estava sucumbindo nas mãos daquela mulher; mas houve o doloroso afastamento... Como agora: ele se afastaria de tudo, fisicamente; se sentia exposto mais do que nunca: sua fragilidade, força, hostilidade e paixão eram razões de comentários para todos; seu rosto em jornais e TVs; ainda se lembra da família de Ilena na polícia (expostos, também)... mas na verdade se afastara de Carol: vê-la temendo sua presença, pondo em dúvida sua sinceridade, desdenhando sua dedicação, se entregando para o seu algoz (Luciano)... Era demais para ele. De todas as dores por ter sido revelado como o monstro, a pior era ter os olhos de Carol sobre ele sem a admiração daquele que é alvo de sua dedicação... Acima de tudo, Fernando se afastou de Carol, por temer que tudo acabasse do mesmo jeito que acabou com Ilena... Ele não se importava consigo mesmo. Estava visado de qualquer maneira; mesmo preso em seu mundo vazio, Luciano acharia um jeito de alcançá-lo. Ele quer isso... Da primeira vez o subestimara, mas não vai ser tão ineficaz da próxima vez; talvez seja definitivo... De todas as culpas que Fernando sente ao caminhar sozinho; afastado do mundo em que vive, e onde até 195


não deveria ir (a polícia o proibiu); mas ele não se importa; é o “monstro”... a culpa mais terrível é a de nunca ter podido oferecer o que Carol (ou Ilena antes) poderia querer. A incapacidade em descobrir o que elas desejavam... Só podia oferecer dedicação; talvez elas estivessem erradas, mas o mais provável é que ele estivesse errado; antes, agora e sempre... Fernando anda sozinho por lugares que ele não conhece; vê pessoas também desconhecidas: algumas o reconhecem da mídia (o julgam). Ele não gosta, mas suporta; não quer ser mau, mas é o monstro: não pode evitar. Ele está sozinho, como nunca esteve; até sua consciência, tão companheira, parecia perdida... Ele pensa no futuro: provavelmente tão vazio quanto o presente... Não pode evitar: ele pensa em Carol (seu julgamento é o que mais importa!). Fernando se sente... incompleto.

Reflexos laminosos A ausência do ser incomoda, mas a sua sombra está presente e Luciano a consegue enxergar, e até sentir... O punhal é levado de mão em mão para peritos que no final só conseguirão dizer o evidente: a arma se encaixa, mas somente o fato de ter sido encontrada na pia da cozinha do suspeito a liga com ele. Não há 196


sinal de impressão digital e muito menos de sangue da vítima. Não só na cabeça de Luciano, mas na de todos presentes uma voz dizia que seria estupidez demais Fernando manter a arma do crime em sua casa; e num lugar tão exposto... O delegado Adroaldo é o primeiro a por a voz para fora: • ...não seria tão burro! Principalmente depois do que nós vimos. • Talvez seja culpa!... Não pode ser culpa, doutor? • Não sei. Ele me pareceu tão seguro de si durante o interrogatório... talvez ele queira jogar conosco! • Ele é um garoto, doutor! - Luciano percebe a mágica de Fernando, novamente. O delegado Adroaldo era o policial mais experiente que conhecia e mesmo assim parecia não enxergar a totalidade do poder agressivo de Fernando; além de sua dissimulação. O psicólogo podia ver mais; podia-se sentir. Ele se colocava em dúvida, mas fazia parte do seu trabalho; analisar todos os pontos... Somente Luciano possuía a certeza; isso incomodava a todos... Certezas são riscos demais para evidências humanas demasiadamente fracas. Ninguém queria se arriscar; só: • Não, delegado! Ele é um animal! O senhor precisava ver a casa do elemento; parecia a toca de 197


um bicho... • Não quer dizer nada... Você já viu o quarto de meu filho?! • Deus! - A frustração era física. Em voz e em atos. • Desculpe, Luciano. Não podemos pedir prisão preventiva. Mas você pode ficar de vigilância. • Eu nem sei aonde ele está! - O delegado avivalhe o ânimo... Também queria respostas; talvez até de perguntas que o próprio Luciano ignorava. • Ele vai voltar pra casa!... Espere lá! • Sim, senhor. - Luciano não possuía mais argumentos para exaurir sua raiva: Fernando parecia se safar de cada situação; mesmo saindo da cidade e com aquele punhal sendo encontrado em sua casa, ele ainda parecia intocável; e pior: todos pareciam entorpecidos por aquela falsa fragilidade e introspecção. Acima de tudo, o que mais incomodava, era o fato de Fernando ter tido o seu último contato com Carol. Ela tinha sido dispersiva, desinteressada; fugia a imagem da garota que queria pegar o assassino a qualquer custo. Justiça por Ilena. Luciano tem medo do que ela pode vir a sentir por Fernando, agora: sua nova e terrível influência... Mais importante, talvez: o que sente por ele... Não aguentaria perder de novo. (Não queria...) Os lampejos de solidão o atacam 198


novamente... O punhal em sua mão, que ele carrega para a sala de arquivo de provas, o lembra da sombra que ainda tem de sustentar nas suas costas; não seria derrotado: tem que pegar Fernando.

2 A lâmina está na prateleira. Seu brilho quase novo; só tocado por mãos cuidadosas que não queriam deixar nenhuma marca pré ou pós exame; reflete a memória do arpejo... Foi forte e consciente inconcebível pela racional mente humana... Como um instrumento final de uma orquestra arpejante também formada por mãos e braços poderosos, ela penetrou num peito já quase sem vida; e pela vontade de um corpo (de certo modo) também inconsciente, ela experimentou o sangue de Ilena. O calor em sua frieza metálica. As mãos e olhos que a examinaram não foram capazes de ver nem uma ponta do que ela foi encarregada de prover: provavelmente, apenas a sua forma. A lâmina se encaixa no formato, mas podia ser qualquer outra coisa; aos olhos dos especialistas; mas era ela: seu brilho é inegável. Ela foi parte do arpejo... Sua ponta final. O instrumento que foi usado para tirar a vida de Ilena. 199


3 Luciano sai do Complexo de Delegacias. Olhos experientes o seguem: o delegado Adroaldo tanto sentia orgulho pelo empenho de seu comando, como também um forte senso de curiosidade... o porquê do empenho. Cai no delegado a lembrança da namorada de Luciano; ele a mencionara. Via que o incomodava ter o suspeito tão perto, e livre. Provavelmente temia pela garota... Ainda era jovem; não viu tudo que ele vira: tantos rostos desolados e tantos outros amedrontados; criaturas que vivem em todas as cidades, nas entranhas da sociedade, afetadas pela cultura ou não, e que só não se impregnavam mais na comunidade por causa de homens como ele. Luciano aprenderia que está além do pessoal; é maior! Tenta não ter ressentimento; o delegado acredita ter feito a sua parte; e acredita em Luciano. É um homem de meia-idade, que viu horrores, provocou horrores e que agora vê Luciano agir sob sua influência... Todos precisam de influência. Ele sabe. Esse é o ponto: ajudar! Luciano vai para uma vigilância. O “velho” delegado não faz mais isso, foi parte do aprendizado, mas sente como se também estivesse lá: observando 200


seu comandado, ajudando-o a aprender, como ele... “Não haverá surpresas.” - Ele pensa.

4 O rosto que surge no caminho: Carol!... Admiração? Beleza? Atração? Esquecimento?... Está de volta! - Ela.

De dentro para fora Nazaré é um bairro do centro de Salvador habitado por classe média quase em extinção. Sobreviventes! Levemente comercial, o bairro vive passo a passo; todos os dias... O “monstro” vive nesse bairro. Luciano vigia sua casa (esconderijo). Ele não pode fazer nada, apenas observá-lo, esperando que em algum momento ele traia sua própria segurança e fidelidade; saia da armadura por alguma razão... Já traiu em um momento: não sabe que Luciano está ali... Destruiu sua auto-observação; olhos o veem sem ele ver. Fernando chegara em sua casa no dia anterior. Um dia depois do delegado Adroaldo ter-lhe afirmado que ele voltaria. Era memorável a destreza do seu superior. Ele mesmo duvidara... Luciano tinha certeza 201


a respeito de sua presa, mas não conseguia entender algumas de suas ações: o punhal (foi o mais fácil, apesar de sem utilidade); sua disposição em não negar nada (proteção, ou talvez um clamor...); a viagem para fora da cidade e o principal: a volta. Se imagina, também, influenciado por Fernando: o que ele realmente sabia? O que ele realmente pretendia? Luciano pensa em alguma razão para seu suspeito ter voltado e (infelizmente) só consegue pensar em uma: Carol; a necessidade... Nas duas últimas vezes que falou com ela por telefone, em meio às trocas de vigilância, notou uma crescente distância entre os dois. Tenta manter os pensamentos em um nível profissional, mas não conseguia parar de imaginar o motivo daquilo... Imaginava se ela teve algum outro contato com Fernando; outro telefonema; outro “toque”. Luciano pensa se talvez Ilena não tinha tido o mesmo tipo de envolvimento: apreciando à distância; desejando o retorno; querendo após rejeitar... Provavelmente não! Luciano não consegue evitar de pensar em Carol também morta; a outra vítima que a polícia esperava que aparecesse para assim pegar o assassino. O jovem policial tem dúvidas do que eles seriam capazes de fazer se Carol morresse... Ele tem dúvidas sobre o que ele próprio faria... Com os olhos atentos naquela casa, Luciano tenta ver seu interior para buscar a razão de 202


tanta morbidez; não só nas atitudes do assassino; mas em seu próprio pensamento: Ilena, Frida, Carol... A frieza dos tratamentos daquela profissão; inclusive com as pessoas queridas: pensa em Cristiano; como sua família era especial; como havia uma vida e agora só parece haver a dor.

Segurança Duas vezes. Dois telefonemas foram atendidos por Carol nos últimos dias. Ela estava em casa. Nas duas oportunidades ela correra para o telefone com pensamentos confusos na cabeça e desejos incertos no corpo... Parecia atitude de sua “distante” adolescência; correr esperando o telefonema de alguém: ela responde a si mesma por essa suposta regressão. Se segurou em mais uma oportunidade, quando o telefone tocou e não foi para ela. Deitada em sua cama, no seu quarto, sozinha ela reflete sobre essa atitude nos últimos dias: nos dois telefonemas atendidos o interlocutor fora Luciano... Ela recorda do telefonema ao meio-dia: estava almoçando no horário entre a faculdade e o estágio. Ela saíra da mesa para pegar o aparelho; no momento em que falara e em seguida ouvira a voz de Luciano se arrependera, tanto de sua atitude “pouco madura” quanto da pessoa do 203


outro lado ser quem era: Luciano... Passara toda tarde se ressentindo do modo como falara com ele. Não demonstrara interesse ou entusiasmo por falar com ele... O jovem detetive não deixou de notar; toda sua perspicácia policial não o deixou com dúvida. No primeiro telefonema ela não tinha sido tão alheia... Mas algo estava presente na consciência de Carol; e era o que Luciano não queria admitir que podia ser (e é) verdade... Carol olha para o teto de seu quarto; não é normal dela passar tanto tempo ociosa; mas a situação não é normal; ela pensa nos últimos três dias: o estranho modo como as coisas se encaminham; a mudança dos seus sentimentos e de suas atitudes; achava que nunca mais se surpreenderia... Fica até um pouco feliz por sentir que algo de novo e “bom” ainda pode acontecer em sua vida... Se sente também culpada por Luciano: se lembra das duas vezes em que estiveram juntos: foi um prazer supremo; mas agora não consegue se negar ao que está em sua cabeça... desde a última vez: em duas oportunidades nos últimos dois dias foi traída por sua vontade; deixou transparecer sua decepção para alguém que ela ainda queria muito; não tinha intenção de machucá-lo; mas via uma inversão de papéis se formar em sua vida: que estranha relação podia haver entre aquele algoz e aquela “vítima” que a afetava antes com consternação 204


e dúvida, e que agora a confunde mais ainda só que com uma inversão de sentimentos: atração por um e compaixão pelo outro?!... Talvez fosse assim desde o começo, mas diferentes conjunturas não a deixaram notar essas diferenças. Luciano aparecera como uma forte imagem do passado; ligado a uma época mais completa, quando Cristiano ainda estava por perto. E a outra imagem era recente em relação ao passado do policial com seu irmão, mas muito constante, agradável em muitos momentos; lhe provocava satisfação por ser apreciada; atingia sua vaidade. Por muito ela o considerou uma dedicação incômoda e compassiva; mas agora que ele “não mais existe” e Carol sente que sente a sua falta... Não o tem visto. Suas últimas lembranças são a imagem de um novo ser mais forte e seguro, e a despedida do antigo ser que por tanto tempo desconsiderara... O teto branco à sua frente traz à sua mente as imagens daquele rosto em todas as situações que ela consegue recordar: parecia uma pessoa diferente, mas eram os olhos que estavam diferentes... Foram mudados pelas mudanças do mundo ao seu redor, as dúvidas, as incertezas, as palavras fortes, as suspeitas... Carol recorda de Ilena: gostaria de falar com ela para saber como ela reagiu à mesma dedicação em sua época... Nesse momento parece uma coisa completamente impossível para 205


Carol pensar em Fernando como o assassino de Ilena... Pensar em seu nome parece algo de criminoso em sua cabeça; mas ela sabe em quem está pensando. Tenta algumas vezes ligar aos pensamentos do crime; mas eles se tornam cada vez mais escassos. Cada vez mais seus pensamentos estão em Fernando; e cada vez que ela se repreende por isso, mais tudo volta e com mais força. Põe em dúvida a própria sanidade. Suas reações não parecem normais. Se sente fora de controle: por que pensar que Fernando ligaria? Já quase nem pensa em Luciano... Só pensa que não vê Fernando há quase três dias e gostaria de vê-lo de novo; nem que fosse só para dizer que acredita nele, mesmo ainda sustentando dúvidas distantes e persistentes. Remeteria ele de volta à sua confiança nela. Teria sua atenção novamente. Talvez ainda a tenha, então espera que ele ligue; mas ele foi magoado. Carol não acredita que está se culpando por Fernando ter se afastado; mas seu ego está intuindo certo... O que Luciano pensaria? Onde ele estaria agora para não ver isso em Carol?... Ela está rindo sozinha; sem aparente razão; está se sentindo leve. A segurança que se apresenta em seu coração agora é tão grande que tudo aquilo que gerou essa situação tão conturbada que se tornou sua vida parece não mais existir... Se repreende novamente por Ilena: ela está morta e o 206


suspeito da morte povoa seu pensamento... Frida está hospitalizada e novamente o possível culpado está em sua cabeça... Ela continua a sorrir; os seus olhos enxergam o rosto desse homem: ele começou agora e está em seu coração como parece ter sempre estado, mas nunca visto... Fernando! - Carol pensa como nunca pensou. O telefone toca na casa de Carol. Ela sabe quem é... Sente.

A última visão Era a espera do inesperado que não se queria prever... Mas Luciano podia ver a cada momento. Não tinha raciocínio que pudesse conter a sensação de medo e dor ao ver o carro de Carol parar em frente à casa de Fernando. - Será que ela não tinha o mínimo de senso! - Era a mesma situação, como a de Ilena: foi descrito e revisto; Carol conhecia cada momento, mas mesmo assim estava a caminho de encontrar o monstro... Luciano olhava e derramava seu último lamento para dentro de si mesmo... É um policial e o trabalho precisa ser feito!... Suas mãos suam e torcem o volante do carro; não conseguia crer nos seus olhos. Ali estava a resposta para o distanciamento de Carol. 207


Estava também a consolidação do seu pior medo; algo que Luciano se negara a pensar desde o momento em que sentara de guarda em frente daquela casa, desde que sentiu a decepção de Carol ao telefone por estar falando com ele; algo que Luciano teme desde o dia em que a reencontrou na estátua do Cristo e começara a se sentir vivo de novo (se lembra do Pelourinho, do motel no mesmo dia e da sauna da academia...); algo que dizia: Carol é a vítima. A porta se abre e um sorri para o outro (CarolFernando versus Luciano)... A dor.

Situação em cena “O carro parou em frente à casa às nove e trinta. A... vítima entrou na casa sem maiores restrições. Passaram-se vinte minutos e movido pela suspeita e pelo prévio comportamento do elemento, decidi fazer uma observação aproximada. Eu olhei pela janela da frente e não vi sinal de movimento. Dei uma volta cautelosa pela casa e cheguei a uma pequena janela nos fundos. Era o banheiro. Dela pude ver o elemento por sobre a vítima e com algum tipo de faca na mão direita... Acreditando estar acontecendo um crime, dei a volta rapidamente para a porta e a arrombei... Ao 208


entrar, o elemento, com o susto, se levantou despido e com a arma na mão... Eu olhei para a vítima e ela estava com a garganta cortada, sem sinal de vida... Eu, já apontando minha arma para o suspeito, ordenei que ele largasse a faca; ele não o fez. Claramente fora de controle ele correu em minha direção com intenção agressiva: sem ver alternativa eu atirei no suspeito; duas vezes; e ele caiu morto.” O delegado Adroaldo ouviu todo aquele relatório: conciso, direto e claro; e observou a expressão de seu jovem comandado. Era uma expressão abatida, desolada. Seus lábios proferiam as palavras com destreza, mas o resto de seu rosto não estava presente ao momento. Como ele poderia estar se sentindo?... Estava lá o tempo todo, mas ainda assim a perdeu. O delegado não via muita esperança no rosto daquele rapaz: uma dose forte de culpa e dor; e acima de tudo havia a perda... Como manter os dois lados daquela vida em separado? - Imagina que esforço sobrehumano Luciano deve estar tendo para não explodir naquele momento: podia-se ver ele tremer em meio ao suor... Que futuro mais poderia haver: ele pegou o assassino, mas deixou escapar algo extremamente simples e importante: o empenho dele não parece ter sido suficiente. Não conseguiu evitar que outra vítima fosse atingida pelo toque do monstro, 209


antes de pegá-lo... Não conseguiu evitar a morte de outra pessoa; outra garota; sua garota: Carolina. Havia um estranho senso em tudo aquilo. O delegado via a imagem de um policial extremamente eficiente e honesto; e também via um rapaz muito confuso. Lembra da situação que teve no começo da carreira: a perda do seu parceiro... Por que para crescer ele tinha que sofrer tanto? Ele próprio teve suas decepções e desastres, e com nó na garganta ou orgulho no peito ele enfrentou cada momento... Vê aquele jovem passar por tudo aquilo; via que sempre haveria algo mais, algo irrevelável; o consumira até o fim: deixar escapar pelos dedos uma vida importante; alguém muito próximo... Ser um policial não é uma aventura nas ruas... é uma batalha de emoções e de consciências. Não resta dúvida: Luciano é um grande herói; não por pegar o assassino, mas por também conseguir sobrepor aquela contenda interna. - O delegado Adroaldo se orgulha!...

2 O que pode estar passando na mente de Luciano agora?! Ainda não acredita! As imagens se recompõem em sua cabeça; repetidas; insistentes. Alguns minutos teriam sido suficiente. Ela ainda estaria viva. Poderia 210


ter evitado, mas não pôde... Poucas horas antes imaginou o que se confirmou depois: Carol morta! Queria Luciano horas antes conseguir chorar por ela, mas se sentia apático, como se estivesse num sonho, ou melhor, pesadelo: via as coisas acontecerem e simplesmente não podia interferir... O barulho dos outros policiais ao seu redor não o incomodava, nem o barulho dos repórteres do lado de fora, nem mesmo o olhar de seu comandante... Imagina qual a reação da família de Carol: primeiro o filho e depois a filha; todos dois com ele próximo; todos dois sem ele conseguir evitar. Perdera totalmente aquela família; não mais poderia olhar para eles; já tinha dificuldades antes, agora seria pior, impossível... Carol estava morta. Seu corpo podia estar em melhor estado que o de Ilena, mas o choque seria o mesmo; talvez maior. Ele seria visto como herói, mas uma corrosão interna dizia que ele não era nada, mais nada; nem policial, nem homem, nem mesmo uma pessoa... Ele revê a cena, se lembra da situação: não há mais nada naquilo; é o fim. O fim de tudo.

Xeque A casa parece mais vazia que o normal. Tira a arma e põe sobre a mesa. Acende somente a luz do 211


abajur; não quer ver muita coisa da própria solidão... Olha em volta: “Carol nunca veio aqui!” - pensa. Olha para o pobre bar; não há muito, mas há muita vontade de esquecer tudo... Se lembra de Cláudio: não quer ficar como ele; não quer fugir. A situação já parece suficientemente irreal; não precisa de subterfúgios entorpecedores... O que havia de errado? Pegou o monstro. - Ou o monstro o pegou? “Carol.” - Luciano pensa. Alguém bate na porta. Mesmo querendo não sentir nada vindo do exterior, Luciano ouve as batidas. Ele olha para porta; está parado: talvez seja Carol vindo visitá-lo em sua casa; como nunca veio. Fazer amor no seu ambiente: a memória das duas vezes que estiveram juntos surge no fundo de olhos praticamente sem vida... Seus braços cansados, caídos na poltrona, tentam fazer movimentos, mas não há vontade suficiente. Ele é quem parecia morto... Queria estar, mas as batidas continuam... Ele se levanta. O corpo parece não sentir nada. Abre a porta: • Carlos?!- Não havia muita clareza no que Luciano pensava, mas o irmão de Ilena estava à sua frente, e parecia real... • Oi, detetive Luciano. • Somente Luciano, por favor. - Carlos não sabia interpretar direito aquilo. Parecia uma sombra do 212


“super-policial”, que alguns dias antes saiu de sua casa dizendo que iria pegar o assassino; e assim o fez. Luciano abriu a porta e em seguida voltou para a poltrona semi-iluminada. Era como uma criatura sem vida; lenta, sem motivos... • Eu vim aqui para agradecer... • Agradecer! - Um grunhido semelhante a um riso é liberado pelo policial. Era óbvio que o garoto não sabia nem metade da história. Toda aquela esperteza de quando Luciano o entrevistou parecia ter virado uma nobre ingenuidade adolescente. A irmã dele estava morta; não havia retorno: a morte do assassino não a trazia de volta... nem Carol. A motivação para a verdade parecia ter ido junto, para ambos; em extremos diferentes. • Tudo bem, garoto... É o meu trabalho. - Por que ele deveria saber mais? Mas ele sabia... • É uma pena que a moça... - Luciano olha para ele. Parecia um olhar repreensivo, mas ele concorda com o que Carlos estava para dizer... Mesmo sendo além do que realmente era: • É... Eu sei... • Meu pai também mandou agradecer. • Obrigado, Carlos... - Carlos sentia que não tinha mais função naquele cenário. Era o momento do policial. Só: estava tudo acabado... Só queria ir 213


para casa e recomeçar tudo de novo: ajudar a mãe a se recuperar; as irmãs a continuarem vivendo; e o pai a se manter firme, como já o é. A batalha que ele sentia que tinha tido de enfrentar estava terminada, talvez até antes do previsto; agora tinha em seus corações, mas pelo menos agora podiam se despedir com dignidade de Ilena; enviá-la para a paz: e com o tempo... ter paz. • Adeus, detetive! - O peso do ambiente parecia já se despedir. • Feche a porta ao sair. - Luciano fala isso fazendo gesto quase invisível de despedida com a mão. Não conseguia imaginar como seria o futuro daquele garoto daquele momento em diante, nem o da sua família; mas sabia que, com certeza, nunca mais o veria. Imagina, como Carlos verá tudo isso um dia: se entenderá; se conseguirá ser feliz; pelo menos ele não está sozinho. - Pensa Luciano. Com o tempo ele irá aprender. Pelo menos, por enquanto, poderá ser um garoto novamente; não exatamente normal, mas na medida das perspectivas; e ele sabe que é um pouco responsável por isso; não é uma reparação... A culpa permanece: “Carol!” Carlos vai embora. Tenta se livrar de todas as lembranças ruins que ainda restam. Demorará muito ainda para ficar livre de tudo, mas saber que o monstro estava destruído era o suficiente... por hora. 214


E o último pensamento que tem é a visão de Fernando na polícia, no dia do interrogatório. Ele o encarou como ele próprio o havia encarado. Sua expressão não dizia nada. Era vazia... Tenta se lembrar daquele rosto: é um julgamento, uma finalização... Aquele assassino não só matou Ilena, mas também tirou um pedaço de sua vida, sua juventude; e não só Ilena, mas também isso, jamais seriam entregues de volta. Sua morte só diminuía o peso, mas nunca eliminaria o fardo a ser carregado... Carlos sabia disso e à medida que crescesse aprenderia ainda mais; procurar por paz e auto-alcance, naquele momento singular, como aquele “fantasma” que ele acabara de deixar... Carlos dá um último suspiro de lamento: não mais quer sofrer; nem irá mais chorar. É o fim da dor... A dor do desconhecimento.

2 Luciano está sozinho. Está sentado na casa semi-iluminada lembrando a cada momento, cada momento daquela mesma noite: cerca de uma hora e meia atrás. Ainda parece um pesadelo. Ele não consegue acordar, contorcido em pensamentos. Sua visão se aprofunda cada vez mais em si mesmo... Está sozinho. Carol está morta. O monstro estava 215


destruído. Não resta mais nada, apenas...

...O Arpejo Ele a conheceu há dois anos; num bar chamado Ateliê. Um lugar onde se toca “blues”. Estava sozinho; não como agora; mas estava... Ela era namorada de um dos músicos: um guitarrista, e ele a desejou desde o primeiro momento que a viu... Ninguém notou sua presença; estava numa mesa ao fundo e só falou com o garçom que o atendeu; mas desde aquele momento quis saber tudo sobre ela; seguindo-a, depois a cortejando e por fim revelando-se... Mas as coisas não correram como planejado; Ilena o rejeitou e através de um mórbido período de incubação ele fez algo que se auto-julgou como sendo natural, mas sabia que não era; era o arpejo em sua cabeça, gritando: Desejo... “Eu matei Ilena!”

2 Ele a conheceu há pouco tempo; numa faculdade, em meio à conturbada investigação. Era amiga da vítima. Conhecia muito pouco dela, mas ela o enfureceu. Se intrometeu demais aonde não deveria; ia fundo em coisas que lhe incomodavam; 216


tirava sua paz... A dor pode parecer menor, mas é de quem menos vê motivos, talvez por isso não a destruiu; completamente. Foi uma necessidade que surgira após o sexo com sua amada; seu corpo parecia satisfeito, mas sua mente se recusava em separar um prazer carnal daquele outro prazer visceral. Precisava de violência... Foi uma escolha política; mas estava lá...: Frida estava inconsciente num hospital e provavelmente ficaria desfigurada para sempre... Não pôde evitar; era o arpejo em sua cabeça, gritando: Raiva... “Eu espanquei Frida!”

3 Ele a conheceu há mais de seis anos. Era irmã mais nova de seu único e melhor amigo. A outra filha da família que praticamente o adotara. Com a morte do amigo ele se afastara, mas há pouco tempo ele a reencontrou e seu amadurecimento o havia atraído como nenhuma outra mulher antes: se aproximou, se sentiu bem novamente, a teve em duas vezes espetaculares, e a sentiu se afastar aos poucos pela presença de uma criatura que ele simplesmente escolhera para ser o “monstro”: Fernando... Não consegue acreditar no que aconteceu; no que fez: “Carol parou o carro em frente à casa de 217


Fernando. Seus olhos não podiam suportar tal visão. Era como uma pancada no meio da cabeça. Ele sai do seu carro e se esgueira até uma janela; ouve a conversa: • Eu nunca quis acreditar, Fernando... • Eu sinto muito, Carol... Por tudo. Nunca quis magoar ninguém, somente quis me dedicar à pessoa... que... eu... amo. - Ele imagina como ela deve estar olhando para Fernando nesse momento... • Eu amo... você, Carol! - Sua respiração aumentava a cada palavra, a cada imagem que via, a cada uma que ele não conseguia ver... • E quanto a Ilena? - Era uma pergunta intencional, como uma possível razão; mas era mais: era sua própria descoberta... • Eu também a amava, mas não foi tão forte... • Não é isso... - Ele ouvia a porta da racionalidade se abrir em Carol, talvez se revelasse... Era a última chance de evitar; o fim... • Eu não fiz nada! - Era a voz do vazio. Era a primeira vez que Fernando negava alguma coisa e soava tão convincente quanto a própria voz da verdade: era a verdade... Ele sabe. Não pode mais evitar. Carol se aproxima de Fernando. Não pode deixar acontecer! Não quer perder, mas sabe que 218


também não vai ganhar... Nunca mais. • Eu acho que também te... - A porta é arrebentada. Não queria ouvir aquilo. Os lábios de Carol nunca disseram aquilo para ele. Luciano a teve, por duas vezes, mas era Fernando quem tinha seu coração... Não queria ter que ouvir seu inimigo, seu perseguido, ouvir da mulher que ele próprio ama, as palavras: te amo... • Não! - A surpresa aparece nos olhos de Carol; ela se assusta; mas não Fernando. Sabia que cedo ou tarde seu algoz e rival viria à sua procura: era o monstro. Tinha tido o rápido pensamento, ao voltar para casa, de que alguém o estivesse vigiando; ainda era visado; mas sabia que Luciano estava ali sendo mais que um policial atrás de um suspeito: era um homem apaixonado à procura de uma retratação, com o rival e com a mulher amada... Vitória! - Ele pensa. Ao ver aquele homem invadir sua casa no momento em que Carol ia dizer que o amava: a primeira mulher, pela primeira vez... Fernando sabia que tinha ganho, não importava o que acontecesse; ele sabia que era amado; vivo... Ele só não podia imaginar o que estava por acontecer... • Se afaste dele, Carol! - Ele aponta a arma para Fernando. Sua expressão é séria e tensa. Aparenta o policial, mas algo de dentro (o arpejo) dizendo que 219


havia mais. Seus atos o revelariam... • Ele é inocente, Lu! - Ele olha para ela. Carol sabia que, de certo modo, o tinha traído, Mas ELA estava totalmente inocente para a real situação... Não havia outra solução ou esperança... Luciano estava “condenado”; por si mesmo. • Eu... sei, Carol. - Ela se surpreende novamente. Ele olha para Fernando; seus olhos pareciam dizer sua intenção... Agora, Fernando olha com surpresa... Entendia tudo. • Meu Deus... Foi você! - Carol olha confusa para ambos. Não sabia do que aquilo realmente se tratava: não era um policial invadindo a casa de um suspeito... Era mais. Era a remontagem da verdadeira trama. • Você matou Ilena! - Seus olhos não conseguem mais se fixar em Carol, ele só consegue ver o “monstro” que o fez se revelar. Ele já perdeu; sabe disso. Perdeu Carol... Perdeu tudo. • Tire a roupa! - A visão de Carol começa a embaçar (a dor das lágrimas): ela também entendia tudo; não tinha mais palavras; não tem mais nada... • O quê?! • Tire a roupa! - Ele grita abafado para Fernando. A imagem já estava em sua cabeça. Não pode haver roupas com manchas de sangue... Sabe o que tem de 220


fazer; já foi tão longe; tem que atingir o ponto final... Fernando tira a roupa. Sua vergonha se estampa no rosto. Seu conhecimento carnal é pouco maior que seu conhecimento emocional: sofre por isso; nos seus últimos momentos; despido de roupas e também de falsidades; ele vê e sabe o quanto ama Carol e quanto ela também o ama, mesmo sem terem nunca se tocado. É a única coisa que resta; muito além do embaraço... O instinto: Carol se desvia para diminuir o constrangimento de Fernando e o seu próprio, mas ele não dura tanto... São os últimos momentos. Serão... Fernando olha para Luciano. Sabe o que ele vai fazer. Só há um leve temor; está frio... Olha para Carol, seu rosto está inflamado; ela chora por dor, decepção e amor. Ela também teme; é o choque. Fernando sabe que, de um certo modo, ganhou: com segurança ele enche o peito e começa a proferir; sem medo; sem ressentimento... Sabia que Carol acreditava nele, mais que nunca. Voltava a admiração e com a carga maior da verdade, ela também o amava. Nunca a terá, mas é a última e melhor sensação. • Amo você... - O tiro atinge seu peito, calando sua redenção com a vida; vida que ele nunca teve... O atirador é impiedoso; queria o mínimo... Luciano anda até o corpo e dá outro tiro; não queria falhas: policiais 221


sempre dão mais de um tiro. Ele é um policial. Age! Do outro lado da sala os soluços de Carol abafam qualquer tentativa de grito. Ela parecia simplesmente não estar mais viva. Não acreditava no que via; no que sentia. Havia como uma corda de forca em seu pescoço... Agora era sua vez. O monstro estava exposto; o verdadeiro: Luciano a agarra. Ela não tem forças para resistir; ainda está em choque; seus olhos vislumbram o corpo de Fernando no chão próximo (o fim) e isso enfurece Luciano mais e mais; faz dele um perdedor maior ainda; ele sabe... Ele a prende pelo pescoço; é forte; como fez com Ilena, a deixa inconsciente, mas desta vez o plano será cumprido como planejado; é o arpejo quem comanda os atos agora. Do início ao fim... Ele matou Fernando porque era preciso; por ciúmes e porque era uma testemunha (porque tinha ganho)... Agora o verdadeiro monstro assumira; não havia mais volta: a despiu (sua nudez não era a atração), cortou-lhe a garganta com uma faca da casa do recém-finado (seus olhos não pareciam ver o que faziam, era algo que fazia parte da trama; o fim dela; o contexto) e por fim a possuiu depois de morta: precisava de um crime completo; tanto ele quanto Fernando tinham sangue tipo O-positivo, ele sabe, sempre soube; e sua palavra seria, com certeza, suficiente. O monstro já estava destruído, de qualquer 222


maneira; só agia por instinto; a sobrevivência final. O cenário estava pronto, perfeito. Era o fim do arpejo; não havia mais para onde ir, não havia a quem mais recorrer: só restava agora o pesadelo para ser vivido.” Não pode evitar. Sentado sozinho em sua casa semi-iluminada, Luciano vê o futuro: só a vida num pesadelo. - Ele próprio. O monstro estava morto, derrotado; não tinha mais poder, mais nada. Ele agia pela ordem do arpejo, e ele gritava: “Amor!”“Carol...” FIM Fabiano Viana Oliveira 1995

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A SUA HASTE MAIS CURTA

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Viver é morrer

1996

O fim para uns é apenas o começo para outros; numa sofrida vida onde nada se perde além da própria noção do que a realidade apresenta como sendo a evidência de uma escolha do destino... Olhos se perdem longe de uma pequena multidão que se aglomera em lamúrias e fofocas para o final adeus de uma pessoa que estes mesmos olhos que observam de longe também conhecem muito bem sem nunca ter sido próximo: o enterro prossegue de uma jovem mulher que cometera um suicídio muito tempo depois de já ter morrido para quase todos... É um dia cinzento que recobre com a frieza dos olhares a certeza de que a mulher fizera o certo por si mesmo, queimando no inferno da vaidade, e por quem estava perto, suportando sua auto-intolerância pelo mesmo tempo em que se tornara de uma linda mulher de germânica decência em um rosto desfigurado, e alma amargurada pelas mais diversas perdas erudidas a partir da desfiguração. Há tristeza nos gestos dos presentes; lembranças de alegrias; lamento e rancor... como bem haveria de ser... mas também há a garantia da paz de quem não tinha paz, e que não mais permitia a paz a nenhum outro... Apenas para os olhos 226


que observam de longe o enterro de Frida é que um lamento diferente corrói outras estranhas que não as da normalidade da perda. Ninguém mais se lembra; ninguém mais quer lembrar, mas o policial que fixa o seu pensamento naquele caixão que se afunda na escuridão profunda se lembra muito bem como tudo começou... Ele observa de longe; fuma e embaça os óculos escuros em pleno dia nublado; (civil)... pensativo: “Frida chega ao carro um pouco mais aliviada. O ar frio da noite espantava o calor úmido do dia, do Pelourinho e daquele bar. Ela sente o vento por um segundo. Tentava lembrar que ainda estava viva... - Ah... Ilena... - Isso mesmo. Ilena! - A fonte da voz não pôde ser vista por Frida. Antes que ela se virasse um golpe na nuca a faz apagar. A rua deserta não apresenta testemunhas para o atacante; ele podia liberar toda sua hostilidade; com a ferocidade de sempre... - Agora você vai aprender, desgraçada... Com Frida caída no chão o feroz atacante começa a projetar chutes em seu abdômen e costelas. Os únicos sons que ecoam são as pancadas abafadas. Ela está inconsciente; não pode agonizar com os golpes; mas ele sabe o quanto vai ser doloroso quando ela acordar. Ele para os chutes e se agacha para dar socos no rosto 227


da pobre vítima. A pele branca de Frida começa a enrubescer com as pancadas. Logo se tornariam terríveis hematomas. Esse pensamento o excita e aumenta a sua violência; mas ele só tem intenção de machucá-la... Ele quer aliviar o arpeio.” (ARPEJO) Luciano recorda daquela noite no começo do verão há dois anos atrás, e sabe que é por causa dele que Frida tirara a própria vida com um tiro de revolver na cabeça: tanta angústia, tanta tristeza, tanta culpa... mas a escolha foi dela... Luciano estava vivo, e o arpejo não toca mais em sua mente... é apenas uma memória... sem escolha. O bipar retinido soa com o mesmo despertar dos olhares ao longe que observam o desconhecido, de onde o irritante som se origina... Um homem de pele parda, cabelos castanhos cortados bem curtos, estatura média e um rosto frio sem expressão que se esconde atrás das lentes do óculos escuros. Todos observam com curiosidade e algum aborrecimento por ter ele cortado o silêncio daquela despedida, mas ninguém o conhece; Luciano tem a certeza que os olhares o interrogam como quando ele apanha um bandido e tem de fuzilá-lo com semi-contradição para pegar em meio a muitas mentiras, e algumas pancadas, a verdade da situação... mas sabe também que ninguém irá perguntar: nada sobre o estranho na 228


distância que se distancia mais ainda sob o som de seu celular... livre dos olhares e dúvidas dos outros, mas nunca livre de si... - “Adeus, Frida.. Diz “oi” para Carol e para Ilena..”- Esse é seu inocente pensamento, com os nomes que eternamente o povoam, e que ele sempre tenta esquecer... mas não pode... não tem escolha... Apenas lhe resta o trabalho, que é o que o chama. - Um médico?... - Alguém dos presentes perguntou...

& O carro cortava a avenida entre o cemitério Jardim da Saudade e as vias que alcançam o centro da cidade de Salvador. O destino deste é alcançar o Complexo de Delegacias dos Barris, mas o destino de seu passageiro/motorista repousa nos campos insondáveis de um grande mistério há muito iniciado por razões desconhecidas de um coração sem controle e uma mente que encontrou no desajuste psicótico a maneira de expressar seus desejos e emoções... Luciano tenta continuamente se auto-analisar para descobrir o que houve de errado afinal no meio do caminho de sua vida para que tudo aquilo por final acontecesse: dois anos depois, quando já podia 229


começar a acreditar na própria mentira de que tudo havia acabado, a terceira e última vítima dos seus atos atinge o estágio final de sua decadência humana... As imagens da cidade e da vida a sua frente não respondem as questões; e nem nunca responderão... Sabe disso, somente tendo em seu coração gelado a certeza de tudo ser passado (“Estou curado.”), e de que; como sempre, desde aqueles outros momentos de morte, dor e polícia; viver é morrer... O celular de Luciano o havia chamado de volta para o Complexo de Delegacias. Pelo número, somente aquele, sabia que tinha de retornar, apesar de ter saído de lá naquela manhã mesmo, deixando o plantão, e indo direto para o enterro de Frida, quando deveria seguir para casa; porém não tinha muita vontade de retornar para a casa vazia que o saudava com poeira, bagunça, uísque e muita solidão... Mergulhava no trabalho: assistindo a podridão da sociedade, em seu lado mais deprimente e violento, para esquecer a própria podridão do interior... Rápido, estava chegando. O rosto de detetive Oscar acolhe Luciano assustado e excitado ao mesmo tempo, antes mesmo dele apresentar a identificação na portaria. Os dois caminham rápido pelo corredor em forma de curva do complexo: Oscar tenso e Luciano, calmo e frio, 230


ouve... - Mais uma, Doutor Luciano... Mais uma exatamente como eu havia previsto! - Pelo jeito que foi descrito a ocorrência... sem dúvida! - E aonde foi dessa vez?... - Eles chegam ao gabinete: na porta o símbolo do que fora alcançado por Luciano nestes últimos anos: o nome: “Delegado Luciano”... Eles entram, Luciano na frente, tirando o paletó e o Detetive Oscar atrás, fechando a porta... A conclusão do curso de direito foi o que pode ser considerado de normal, em intenção, a melhor coisa que realizara: toda a experiência na polícia e o auto incentivo para continuar presente nesse mundo, fez do interior atormentado e paranóico de Luciano algo de regular e expositoriamente bem definida ascensão... Seu exterior frio e duro demonstrava a firme direção em algo, quando para o interior era apenas o reflexo do preenchimento de um profundo vazio. Não fora incapacitado, na estranha versão de uma suprimida e perigosa psicopatia... Mas ninguém sabe disso: só Luciano. Senta-se na cadeira que um dia fora de seu mentor, o Delegado Adroaldo, para viver e reviver os pesadelos da época do mesmo na forma de duas bizarras fotos: os dois corpos de mulheres, nuas, 231


penduradas de “cabeça” para baixo, como foram encontradas; com a genitália estufada para fora por uma deformada violação, e o mais atordoante: sem as suas cabeças... Enquanto isso o detetive Oscar, sentado a sua frente agora, vasculha com os olhos a nova pasta, um outro relatório de ocorrência... mas muito parecido com os que o antecederam... - Ah... Está aqui! Achei... O corpo foi encontrado na segunda rótula do aeroporto... nas dunas... - Foi bem longe dessa vez. - Sem dúvida... - Qual o nome da vítima? - Não sei... Aqui só tem a ocorrência do corpo encontrado em via pública. - O pensamento de Luciano se enche de natural revolta pelo que lhe cerca de incapacidade e incompetência. Levanta-se de sobressalto, com as mãos pressionando a mesa, e se curvando na direção do detetive, seu comandado... - A polícia técnica ainda não foi lá?... Quer dizer que o corpo continua no mesmo local??... - ...É... Nós só recebemos a informação há uma hora atrás. - Uma hora Oscar?... É tempo suficiente... Eu imagino a loucura que deve estar lá agora... Quando foi feita a ocorrência? 232


- Deixa ver... Às sete... Diz que um comerciante estava chegando para abrir o seu estabelecimento e notou algo parecido com uma mulher pendurada de ponta cabeça... em um amendoeira... Imagina o choque do sujeito!... Logo depois chamou a polícia. - Alguém foi pá lá? - Ronaldo. - Ronaldo... Tudo bem... Só espero que ele segure a pressão... - Luciano se endireita, passa a mão no rosto e dá a volta na mesa para voltar a pegar o paletó. - Já deve estar cheio de repórteres... Droga... Vamos embora, Oscar! - O detetive se levanta depressa. Coloca a nova pasta na mesa de Luciano. E sai atrás dele. Andam rápido novamente pelo corredor. - Antes de sair, ligue para o Nina e diga para mandar alguém o mais depressa possível... Não quero um corpo decepado exposto na rua o dia todo. - Certo... Esses caras... Nem pra deixar as mulheres no chão... Assim a gente podia por um lençol em cima. - Não é tão simples. - Luciano sai do complexo, enquanto Oscar se desvia rapidamente para ligar para polícia técnica, no Nina, onde é a sua sede... Ele já havia feito isso mais cedo, porém no momento em que ligara lhe disseram que não havia ninguém de plantão 233


para atender o chamado... Segundo o oficial atendente na polícia técnica, outros corpos e perícias tinham requisitado a presença dos mesmos profissionais; ou talvez não houvesse combustível para os veículos... Como às vezes é muito comum em uma instituição tão precária quanto a polícia civil desse país. Mas de fato, aparentemente o amanhecer na cidade de Salvador estava trazendo cada vez mais vítimas dos monstros da noite para os olhos do dia. Estranhas criaturas, de estranhos momentos de total blecaute na alma, que fazem emergir na normalidade do julgamento de todos que dormem tranquilos à noite, a loucura de um novo dia... Luciano aguarda no carro, enquanto Oscar telefona. Logo irá assistir a mais um novo momento em sua profissão, que trará as memórias do que parece viver todos os dias... Pensa no porquê de nunca ter desistido; e talvez saiba a resposta... Crime serial nunca fora realmente novidade em Salvador: somente com outros nomes, a presença de uma loucura convulsiva no caso é também a eminência de um grande conflito interno; venderia a alma para estes crimes não estarem acontecendo... A primeira vítima fora encontrada, pendurada de cabeça para baixo numa velha mangueira no Parque da Cidade, há quase um mês atrás. O fato chocou a todos na cidade: nua, 234


completamente maltratada e sem cabeça. O servente do parque que a encontrou disse que ainda gotejava sangue; o que indicava que a decepção da cabeça não tinha sido há muito tempo, e talvez tivesse ocorrido nas proximidades; mas nenhum sinal foi encontrado na busca que foi feita: havia somente o corpo... e ninguém viu nada durante a noite: os guardas de segurança do parque. O nome dela era Patrícia Costa Brasil; foi identificada pelas impressões digitais. Idade: 22; recém formada em nutrição; trabalhava para o pai: médico respeitado, que tem uma pequena clínica num bairro nobre da cidade... Havia desaparecido, a família pensava se tratar de sequestro, mas não houve pedido de resgate; dois dias depois surgia pendurada naquela árvore. A natureza bizarra do homicídio trouxe Luciano para o caso... A saber: devido a sua experiência no caso do jovem assassino psicótico: Fernando Vainarde... Assumira o cargo de delegado a menos de quatro meses, e via pela frente um grande enigma... Prosseguira com a investigação normal: com as suposições e hipóteses de praxe: de certo modo conhecia o comportamento de alguém metódico o suficiente para realizar aquilo... A cabeça nunca fora encontrada, e uma família completamente chocada fez o enterro com o caixão fechado... Dentro outros fatores... Nunca querendo ignorar seu 235


passado oculto, em prol da investigação, vivendo as lembranças de todos os dias... Aproximara-se de pessoas próximas de Patrícia: amigos, parentes, etc. Os detetives designados procuravam pistas, seguiam pessoas e perdiam tempo.. Pois tudo foi em vão... Quando surgiu a segunda vítima... Oscar chegou e eles partiram. - Conseguiu? - Perguntou Luciano quando já saia do vale dos Barris e entrava na avenida Vasco da Gama em alta velocidade, indo na direção da orla. - Positivo. A equipe que cuidou dos outros dois casos estava fora desde cedo por causa de um maluco que se matou aos pés do Cristo da Barra... - A lembrança de Luciano ia mais longe que a de qualquer policial da cidade que recordava desse lugar como sendo... onde tudo começou... - Mais um?... - Isso mesmo... Depois dos assassinatos daquele psicopata que você fechou... uma porção de outros começou a usar o pobre Cristo como palco para as suas doideras. - Eu sei... - E ele de fato sabe, quando recorda mais além do que o corpo de Ilena Fernandes sendo lá encontrado, completamente dilacerado, há mais de dois anos... O delegado Luciano recorda do seu próprio dilaceramento... O silêncio toma parte na 236


conversa dentro do carro que “voava” na direção da região do aeroporto... Depois... - O pessoal da limpeza pública já deve estar de saco cheio de limpar o sangue desses suicidas babacas... - Não julgava corretamente os atentados dos homens contra as próprias vidas, pois atentar contra as outras é que era a grande mutilação... Na visão simplista do detetive Oscar: morte era morte, e quaisquer consequências sociais e psicológicas sobre ela era apenas matéria de jornal de fim de semana... Talvez ele nunca soubesse conscientemente que um dia poderia se tornar um daqueles “babacas”; qualquer um... Mas a soma das partes no comportamento humano não faz o todo: não é matemática, não é exato... Se era para a polícia, e para a sociedade civil, apenas estatística... Para Luciano era uma dor para ser vivida a cada dia de vida... Desde o caso de Fernando, há dois anos, oito pessoas decidiram se matar naquele local: o morro do Cristo da Barra. De dentro do carro os dois já podem ver a primeira rótula do aeroporto, as dunas, o amendoeira, a pequena multidão, e o corpo... Como as outras duas vítimas: decepada, nua, torturada, pendurada de cabeça para baixo. O carro estaciona. A visão do corpo é aterrorizante, mas o grande número de pessoas rodeia 237


com mórbida curiosidade o local, mesmo já cercado pela linha da polícia civil, e com uma guarnição da polícia militar para garantir a ordem. São pessoas que surgem sempre do mesmo lugar, do nada das esquinas da cidade, para observar a decadente miséria de si mesmos com os olhos das pobres vítimas... Os ombros nus da vítima sem cabeça já pendia perto do chão de areia branca do pé da pequena duna a beira da pista; devido ao peso e a estrutura frágil da árvore da amendoeira, não suportando por tanto tempo e a uma altura razoável o corpo... não era uma mangueira como a primeira vítima: Patrícia. Luciano sai do carro jorrando a ira dos que sabem carregar junto com a razão, uma imensa responsabilidade... e culpa... Grita, atravessando o povo e repórteres... - Ronaldo!... Que porra é essa?... Você é mandado para controlar a situação... E onde está o caralho do controle?! - Ele se aproxima feroz do detetive Ronaldo, de pé, próximo do corpo que pendia com um leve movimento provocado pelo vento do litoral... De imediato, observando o corpo, Luciano pôde observar uma diferença com as outras vítimas: os braços estavam amarrados, presos ao corpo, de modo a não pender livre para baixo, onde nesse caso já estariam tocando o chão... Mas não havia muito 238


tempo para pensar agora... - Eu não tenho culpa, Doutor Luciano... É muita gente! - E os macacos da PM estão aqui pra quê? - O comandante deles disse pra ninguém fazer nada com tantas câmaras aqui... Com tanta coisa rolando sobre a violência da Polícia Militar, eu não tive muito argumento... O senhor sabe como é o povo... - E os repórteres... - Isso... Luciano olha o aglomerado de pessoas atrás dos cavaletes da polícia; PMs guardam imóveis as passagens para a área da ocorrência; fotógrafos tiram diversas fotos do corpo pendurado, câmaras filmam tudo que podem e repórteres tentam colher qualquer tipo de informação... aos gritos no meio do povo. Luciano sabe que o pior de tudo aquilo não são as reações dos outros abutres da miséria alheia que ficaram em casa nessa manhã; nem também qualquer imagem já denegrida a respeito da competência da polícia: disso aprendeu a muito suportar... O que mais o faz irar-se é qual será o tipo de reação para a família da vítima: recorda o quanto dói não conseguir olhar nos olhos de pais, mães e irmãos, enquanto diz que sua filha é aquele pedaço de carne ali encontrado em qualquer lugar, sem ter a menor idéia de quem 239


foi, ou se um dia saberá... ou pior: sabendo quem foi sem poder dizer, pois o mesmo é ele... São todas as posições de um olhar frio que vê além daquela insensível multidão, um grupo de pessoas que não terá mais a alegria de ver sua ente sorrir, pois nem mesmo morta, rosto mais tem, para um último sorriso. Aproxima-se da cerca de cavaletes para tentar falar às pessoas. Os mais próximos o veem se aproximar. - Por favor... Por favor.. Senhoras e Senhores: peço que se dispersem para que a polícia possa conduzir a investigação... - Um dos repórteres o questiona? - Delegado Luciano... Esse é o terceiro assassinato... Quantos mais serão necessários para a polícia se mexer? - Não fale o que você não sabe, rapaz! - Era um jovem repórter de jornal, carregando o seu bloco de anotações. - Salvador já tem um novo assassino serial, não acha?... - Luciano olha furiosamente para o jovem; tentava não dizer uma palavra sequer para não demonstrar o quanto estava irritado... mas seu olhar já demonstrava o suficiente... Um fotógrafo, de já aparente experiência, se aproxima do rapaz. - Pare de falar besteiras, garoto!... Não vê pelo 240


que o doutor Luciano está tendo de passar... - É notícia, não é?... A polícia não faz nada mesmo além de espancar pobres nas periferias... - O fotógrafo dá um leve e sarcástico sorriso... - Você não devia acreditar em tudo que vê na mídia, garoto... Venha...- Os dois saem pela tangente; o velho fotógrafo de reportagens policiais dá uma olhada para Luciano... Reconhece aquele olhar: uma mistura de desculpas com sacanagens: “É só um foca...” Mas ainda assim restava a raiva por ser questionado de uma maneira tão arrogante por um mísero rapaz sobre coisas tão fora do seu controle e conhecimento... Desde o caso Fernando Vainarde, Luciano vinha sendo respeitado pelo jornalismo policial: a despeito de envolvimento pessoal; ou a verdade em si, que só existe para Luciano; sua atitude fora muito bem recebida; e tornando-se delegado, seu respeito e reconhecimento por parte da mídia só fez crescer: considerando honesto e competente, até o momento... - QUE POLÍCIA É ESSA ?! ... QUEREMOS JUSTIÇA!... - E outras coisas o povo dizia, sem querer de modo algum se dispersar: a maioria dos repórteres e cinegrafistas já havia se dado por satisfeito; sabiam que logo uma resolução prática seria tomada por Luciano... E assim o fez... 241


Virando-se de costas por um segundo apanha a arma que estava atrás da parte interna do paletó, e com outro giro se volta para os cidadãos e começa a atirar com a pistola automática para cima, gritando: - Saiam daqui!... Saiam!... Vão embora! Caralho! - E a reação imediata da multidão: correndo nas mais diversas direções, se escondendo, fugindo, atropelando-se por suas próprias mórbidas curiosidades... Limpando todo ambiente... Luciano finalmente cessa o seu método de controle da multidão. - Minha nossa... - Diz Ronaldo meio abismado; enquanto Oscar acende um cigarro com um sacana sorriso no rosto... Oscar conhece bem os métodos de seu chefe: são oportunamente pouco ortodoxos, mas evidentemente eficientes; sempre contando com o apoio e o seu prestígio dentro dos meios de comunicação, que nunca mostrariam tal ato... ou mesmo o mencionaria... Luciano guarda a arma. - Ronaldo... Vá ver junto com os PMs se alguém se feriu na correria. - Sim, senhor. - E vai. - Muito bem, Oscar... Vamos ver o que temos dessa vez... - As marcas de tortura pelo corpo eram idênticas as das outras vítimas; a perícia iria confirmar isso, mas uma simples observação dos dois policiais podia antecipar isso. O fato diferencial era realmente 242


o dos braços estarem amarrados ao corpo: de algum modo não podia admitir que o corpo tocasse o chão; provavelmente devido a fragilidade da árvore: único tipo presente naquela região; fosse qual a razão da escolha daquele local: nas dunas; o importante do fato era que o método se estabelecia: o ritual... - Pelo menos dessa vez teremos uma pista física para analisar... - Disse Luciano apontando com uma caneta para a corda que atava os braços da vítima ao seu tronco; somente pendia para baixo as pequenas mãos da mulher: como uma estilizada posição de bailarina... De tudo o que, ainda, mais impressionava e chocava era o estado da genitália: quase três centímetros de tecidos da vagina explodiam para fora da vulva num incômodo formato de flor; tinha, em todos os casos, uma cor acinzentada, como num estado anêmico, com pouca circulação de sangue, e extremamente arranhado... As pancadas e hematomas se repetiam por todo corpo: trazia quase de volta ao silêncio da duna os gritos de dor da pobre jovem mulher; todas as outras eram jovens, de boas famílias, começando a vida em carreiras promissoras, e segundo as famílias: muito felizes; fazendo em todas emergir a revolta, e uma frase: “Como puderam fazer isso com ela?...” E Luciano já supunha ter de ouvir isso mais uma vez; talvez mais de uma... Todas as hipóteses 243


de padrão provavelmente seriam confirmadas pela polícia técnica; porém Luciano sabia reconhecer na obsessividade metódica daquele ritual a presença de razão que não poderiam ser entendidas pela ciência dos mortais da luz fluorescente: dentro de seus laboratórios e gabinetes procuravam uma solução na evidência física de um crime, para achar a razão e um perfil do assassino, ou assassinos, como começavam a parecer pela amplitude que as duas últimas ações haviam alcançado... Porém razão seria inviável para justificar alguém (ele sabe) que possui em si uma razão própria, muito distante da do resto do mundo... O que torna também o perfil ineficaz; principalmente se for um grupo; porque o perfil traçado é determinado pelas evidências das ações, mas as ações são realizadas por pessoas de perfil desajustado e consciente, e se for coletivo, com uma variável muito maior de capacidade dissimulativa: a prática do ritual faz ele (ou eles) se conhecerem muito melhor; e com um propósito: o que seria mais perigoso; e um perfil traçado de sombras de atitudes não leva a um novo fato... somente quando, e se, de sua revelação. Por isso foi tão fácil compor o perfil de Fernando Vainarde, como sendo o certo, depois que foi morto. As evidências mostravam assim, e o ser desses evidências não mais existia; estava revelado; e era mentira... Então; excluindo a corda, 244


que seguia um tipo diferente de evidência: física, não comportamental; Luciano sabia que continuava sem pistas... Era a determinação; com propósito ou não; que o mais preocupava: um impulso psicótico planejado... Perguntava-se porque ela não devia tocar o solo... Olhando fixamente para o corpo que pendia ao vento... - Se o pessoal da técnica não chegar logo, ela vai começar a feder... (fala Oscar, baforando a fumaça do cigarro)... Aliás; acho que já está fedendo... - Luciano olha em volta devagar, em silêncio, pensativo... A segunda vítima surgiu para dar um nó em todas as teorias apontadas como certas por todos os especialistas envolvidos na investigação preliminar do primeiro crime. Encontrada nas mesmas condições, 14 dias depois da primeira vítima: Patrícia, o corpo de Inez Rezende fez uma sombra no alvorecer da cidade baixa. Estava pendurada na mesma posição no alto de um dos grandes postes de iluminação da pista que vai do porto de Salvador até o túnel Américo Cimas, uma das passagens para a cidade alta. Apesar de todas as condições semelhantes; outros fatores se juntaram para fazer cair por terra as primeiras teorias dos peritos e psicólogos... Imaginou-se que seria a ação de um homem sozinho; depressivo e frustado, principalmente em relação às mulheres: o fato do 245


modo, e onde, a primeira vítima fora encontrada fez-se pensar que era uma vingança contra todas mulheres, com um retorno ao estado natural do homem: sozinho e livre... dentre outros detalhes mais absurdos. Mas logo que foi encontrado o corpo de Inez se fez pensar de como um homem sozinho poderia ter içado um corpo de quase sessenta quilos a uma altura de mais de 13 metros... A meticulosidade ainda permanecia; o que era um fato da teoria do solitário, pois manter tais níveis de suposta frieza nas atitudes levava a crer que o controle só poderia ser mantido por um homem só... Nenhuma impressão digital fora encontrada; e não havia prova que desse maiores respaldas à segunda teoria...o que seria (e é) mais assustador, pois teria que se imaginar um grupo de pessoas agindo daquela mórbida maneira, frias, cruéis e sem qualquer moral social... Porém as evidências ritualísticas se tornaram mais fortes a medida que os exames e testes foram expondo seus resultados... E agora havia mais uma interrogação: elas não podiam tocar o chão... - Oscar... Tem quantos dias que o corpo de Inez Rezende foi encontrado? - O detetive se deteve alguns segundos pensando seus cálculos no calendário das atrocidades diárias... - Tem duas semanas. - Duas semanas... De Patrícia para Inez foi 246


exatamente isso... - Custava não lembrar também agora das faces das duas famílias: e logo teria de enfrentar uma terceira. Inez seria uma moça de 24 anos. Seu pai era um eletricista que lutou a vida inteira para criar os 4 filhos: duas mulheres e dois rapazes. A mãe também trabalhava como uma micro empresária autônoma, no ramo de doces para festas infantis... Após anos de esforço Inez tinha conseguido se formar em Contabilidade pela Faculdade Visconde de Cairu; tendo de trabalhar enquanto estudava para ajudar a pagar a própria educação. Estava praticamente empregada numa bem requisitada firma de contabilidade de Salvador, que atende inclusive empresas de outros estados do nordeste do Brasil... Tudo estava dando certo; um carro novo com as prestações a pagar; um namorado apaixonado e igualmente promissor (foi investigado); e certo dia não chegou em casa à noite... e dois dias depois onde estava: sem cabeça, nua, pendurada num poste na cidade baixa, totalmente violada... para o desespero de uma família que derramou junta as mesma lágrimas de uma dor contínua que nunca acaba... - Espere, Oscar... Tem menos que isso... São treze dias. - Como é? - De Patrícia para Inez foram 14 dias, duas 247


semanas... Mas de Inez para essa outra pobre coitada são 13 dias... - Vai ver o sacana não aguentou esperar mais um dia... - É... Talvez... Ou, talvez... - Oscar o interrompe repentinamente. - Olha... Eles chegaram. - Era o carro do IML, com os técnicos... e para levar o corpo. - Já era hora. Não esqueça de procurar saber que tipo de corda é essa. Parece linha de pesca!... - Positivo, chefe. - Luciano sai de cena, quando os peritos chegam. As características de portas que fechavam numa imagem conturbada de pequenos detalhes preenchiam os pensamentos de Luciano: 31 anos de idade e uma carreira observada há muitos de brilhante, frieza, e ascendência; o que vira os obscuros olhos de si mesmo desejando matar outro ser humano tinha fluido numa camada após outra de dedicação; porém sabia esconder-se de si mesmo e de olhos tão raivosos quanto os dele diante daquele jovem repórter... O que fazia despertar nele tal ímpeto... E fazia outros seres humanos agirem como agem: três vítimas se erguiam de diferenças extraordinárias para satisfazer o desejo comum de algum grupo cheio do forte propósito, desconhecendo os limites da carne, e 248


chamado de loucura... Aquela tal coletiva existência e convivência de tais seres na sociedade: provavelmente os mais normais cidadãos do apartamento ao lado, e no entanto, veementes seguidores dos próprios rituais “malignos”... Mas o que é o mal?...: filosofa inconsciente Luciano... Três jovens, três corpos sem cabeça, uma frieza e dedicação capazes de não se deixar perceber no mínimo detalhe: uma matemática da psicose coletiva, que faz a promessa de vida promissora e feliz se tornar o símbolo de uma total falha de esperança... Novamente recorda das duas famílias; antecipando o nome da terceira... Dirige o carro sem saber direito para onde ir, vivendo as mortes de cada dia, tanto de um delegado da polícia civil (homicídios), quanto do próprio Luciano... No Complexo de Delegacias dos Barris... Sozinho em seu gabinete... “...e as trevas cobriram a face do abismo,” “...a serpente era o mais astuto de todos os animais...” “...serás maldito sobre a terra,” “O mal espírito não permanecerá para sempre no homem, porque é carne;” “...e eu os exterminarei com a terra.” “Tudo que se move e vive será vosso alimento;” “...diante do Senhor, o qual nos enviou para que os exterminemos.” “Ai da terra e do mar, porque o demônio desceu a vós com grande ira, sabendo que lhe resta pouco tempo.” 249


“Quem tem inteligência, calcule o número da besta, porque é número de homem: este número é 666.” Corta a leitura de imagens perturbadoras com a chama do isqueiro. Luciano acende o cigarro e contempla o “mapa” em sua mesa dos possíveis caminhos do crime: crescente de uma necessária pesquisa... O que se acredita e o que se calcula para alcançar os motivos de uma loucura: nunca são o suficiente, porém é a sugestão que surge dos cânones em referência para as mentes insanas construírem suas ações... Uma contagem regressiva de números que justificam o fim dos tempos: para aqueles que crêem no final do sofrimento; em comportamento que pouco revela a procura de todos por fé: em quê eles querem acreditar?... A Bíblia Sagrada está presente na mesa de Luciano; é material de pesquisa. O laudo das autópsias de Patrícia e Inez estão expondo suas diferenças e semelhanças aos olhos do policial: querendo entender as vitimações da irrealidade para localizar os criminosos, reais: A imprensa já batiza de Headhunter (caça-cabeça) para montar o espetáculo vendável do bizarro presente em Salvador: a novidade da miséria alheia; porém há mais que o circo de aberrações... Há os preliminares relatórios psiquiátricos: o que tentam revelar são os pequenos sinais, rastros, deixados nas marcas de uma profunda e 250


demente violência, cheia de um metódico propósito... O comportamento obsessivo de um criminoso só se torna válido e útil quando se capta no seu padrão algo que antecipe o seu próximo movimento; Luciano sabia ser isso uma faca de dois gumes (muito bem); porém caso o perfil da terceira vítima seguisse o padrão das outras duas, Luciano sabia que poderia de certo modo prever como seria a seguinte: jovem, bonita e começando uma vida/carreira... O problema é que existem milhares de garotas nesse estágio descritivo, e aparentemente não havia nenhuma outra distinção visível... É o propósito que mais preocupa e assusta o sério delegado... Novamente a pergunta do porquê de tais obscuras atitudes do interior humano: se pouco compreendia dele mesmo, do que fez, sabe ter feito, e não sabe se fará de novo; como poder confiar no que é dito de um grupo inteiro que age assim... Ou mesmo como qualquer um age nesse mundo louco... Também sobre sua mesa estão a coleção de outros oito relatórios de “homicídios”: o mais recente, requisitado por ele, tinha chegado ali nesse dia. Não é a sua real alçada, mas desde o primeiro suicídio aos pés do Cristo da Barra seu interesse tinha que ser visto e revisto naquele local: sabia da razão porque aqueles pobres infelizes (sua conclusão) tinham escolhido tal local para terminar com suas vidas: tornara-se o 251


símbolo rígido dessa era de turbulenta insanidade em Salvador... O corpo de Ilena, o modo como fora encontrada, e as consequências... do arpejo... Tudo que ele conhece muito bem... Mas também não sabe porque o passado tinha de voltar constantemente para lembrar-lhe que viver é morrer... Sabe e não sabe... Compreende e não compreende. Está sob controle, mas não tem controle de nada. Traga o fim de mais um cigarro e o enterra no cinzeiro, sem ainda ter nenhuma resposta... Apenas, talvez, as perguntas certas: “Datas, detalhes, escolhas... Não podem tocar a terra...” Oscar entra no gabinete desviando a atenção de Luciano; uma pasta está em suas mãos... - E então... Já temos uma identificação positiva? - Sim. - O detetive anda até a beira da mesa e deposita a pasta parda no meio daquela confusa bagunça organizada; seus olhos captam a Bíblia que está sobre a mesa; uma versão não muito grande, como as antigas; está aberta no Apocalipse. E então volta a olhar o delegado... que abre a pasta... e observa.. - Nome: Caroline Medeiros. Idade: 23. - E o resto... “Caroline... Caroline.. Carol... Viver é morrer!”

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Enegrecido À margem de um mundo que discorre a falsa normalidade de todos os dias iguais a todos os dias: mortais criaturas presas à fé de que um Deus benevolente virá e os salvará de si mesmos... E a malvada inconsciência desses que se guiam pela própria densa escuridão dentro de si mesmos: enegrecidos pelo tempo envolto na anti-crença, na anti-benevolência, no sucumbir ao diário dissimular diante de um mundo que não os conhece, mas os teme por serem diferentes; e também não os conhecem porque eles são seus vizinhos, colegas de trabalho, e pegam os mesmos transportes coletivos: é cada olhar envolto de mistério; uma sedução advinda do desconhecido... que não mais valoriza a vida, pois não são cada um: todos são um só, são um propósito, são a crueldade sem rosto... seres pacientes que acreditam e aguardam, numa só alma maligna, que o mal maior prevalecerá, será vivo, e os terá como o seu mistério no inferno da Terra. Num prédio de fachada verde, com seis andares, no bairro da Barra; a luz da sala do apartamento no último andar pisca incansavelmente. É o tom de uma lâmpada fluorescente que ilumina e desilumina o cômodo... Não se vê ninguém no apartamento; 253


apenas a luz piscando incessantemente... Mas não há ninguém comum para notar isso... Noutro apartamento a cerca de dois quilômetros de distância, ainda no bairro da Barra; também no último andar, mas de um prédio com 10 andares; negros e frios olhos assistem a repetida atividade luminosa do primeiro apartamento: é um aviso que este e muitos outros indivíduos pertencentes à mesma alma conhecem tão bem quanto seus próprios interiores cheios da mais pura e limpa crueldade... Desumanos sem consciência diriam as almas mais simplórias que convivem com os mesmos elementos na inocência de suas virtudes e morais do ocidente; mas toda ela, a alma, todos eles, constituintes da alma, tem a plena consciência do que são, do que estão fazendo, do que querem, do que acreditam e do que escolheram para dedicarem suas vidas. O sinal luminoso renitente é um aviso que será alcançado por todos. A alma é formada por homens. Homens brancos, bem sucedidos social e financeiramente, nenhum passa dos quarenta anos e nenhum tem menos de 24. São criaturas sem alma própria, que se fizeram o que são por suas frias crenças no absurdo da decadência do mundo em que vivem. Todos têm origem semelhante, desenvolvimento também semelhante, numa conjunta caminhada 254


pelos passos que os fizeram escolher em algum momento entre a loucura, o fanatismo e a total falta de sentido em suas existências... este caminho. Visto em todos os dias: os ícones ascendentes da sociedade dominante e dominadora, formadora de opiniões e consumidora dos melhores e mais caros produtos; sorrisos e eloquência pré-fabricados, conhecidos e desconhecidos presentes na normalidade, as partes da alma... que seguem o sinal. A alma segue para o lugar que fora marcado desde onde terminara a cerimônia anterior. São os carros importados; carros do ano; luxuosos e espaçosos; com ar condicionado; cada um com somente um motorista; que cortam a noite escura da cidade do Salvador... Convergem dos bairros nobres, e ignoram suas outras vidas. Vestem seus verdadeiros rostos gelados para caminharem em direção dos seus verdadeiros presentes... É tudo uma coisa só, uma teia, que cobre a bela cidade somente com uma intenção: matar a esperança!... Os rostos da alma não a tem... Não mais... Nunca teve. Chegam num velho hangar particular; cujo dono não mais usa para guardar seus aviões: ele está lá... É afastado, próximo aos limites da cidade. Os carros estacionam ao redor. A coisa mais próxima é a sede do clube de paraquedismo, que está temporariamente 255


fechado, e fica a quase três quilômetros. O que há muito em volta é o cheiro do mato, e da morte, com a alma próxima do seu mais novo deleite... Uma escuridão dos homens que amedronta a própria escuridão da noite, e fazem as estrelas não quererem aparecer... A alma está presente, e completa. Todos penetram no hangar. A grande porta é fechada. Todos os carros foram devidamente trancados e nenhum telefone celular está presente. Apenas a alma que são todos, muitos deles. Há escuridão fora, e dentro somente uma pequena fonte de luz: uma pequena fonte de esperança que logo se extinguirá. É 23 horas e 13 minutos de uma terça-feira.

& Seu corpo é pequeno. Os olhos da alma observam com mórbido brilho a expressão de pavor da jovem no centro. Sua completa nudez já a enfraquece: despida diante de quase quatro dezenas de homens sem expressão, com a frieza do apetite insaciável iluminando seus rostos gelados; são semi-sorrisos torpes, ansiosos pelo tipo de crueldade que sabem que vão cometer... com prazer...e com propósito. Ela está deitada numa espécie de mesa, mas com a parte onde estão estiradas suas pernas inclinada 256


para baixo. Não pode escorregar porque está presa: suas pernas macias e de um branco pálido estão presas em extremidades opostas da largura da mesa, deixando-as separadas, abertas; e seus braços estão estendidos para cima, cruzados na altura do pulso, amarrados e puxados para cima e para trás, com a outra extremidade dessa corda estando atada a uma forte viga de concreto. A viga está a cerca de cinco metros da mesa. Não faz parte da construção original do hangar; somente está presente para a cerimônia... Lá está ela, sob o olhar dos abutres que formam a alma: olhos que ardem frios a espera do início... Não se agitam: não conversam; somente respiram o cruel caminho que escolheram, e a observam com os olhos da morte. O tempo escorre lento, em expectação... tanto para ela quanto para a alma. “Eu me chamo Adriana. Se há realmente um Deus, espero que ouça estes meus pensamentos... Olho para um lado e para o outro, e sinto incontrolável o meu pavor quando enxergo cada um destes olhos dementes, fixos no meu corpo, no meu rosto e no meu interior... Não posso gritar porque estou amordaçada, e creio que não muito adiantaria se pudesse... Como pessoas podem se conceber realizar tal coisa: qual a razão?... Não posso me perguntar isso agora: algo 257


tão profundo do comportamento humano coletivo... Não farei terapia para os meus carrascos!... Saí ontem à noite do consultório do Dr. Marcelo, o psiquiatra que está ajudando em minha pesquisa de mestrado em psicologia: queria saber e falar sobre psicoses urbanas... E que ironia, estou no extremo de uma... Algo se torna evidente na final clareza de meu medo ainda intocado: não sairei daqui ilesa... E mais provavelmente, sairei morta... No ataque não vi rostos; somente sombras na noite: vozes abafadas e lacônicas que só expressam o necessário para se fazer cumprir a tarefa... Fui presa e amarrada tão rápido que não pude lutar: foram três homens; fortes, grandes e implacáveis. Nunca gostei de me deixar sentir frágil por ser mulher: o orgulho por ter sucesso sozinha; uma mestrando do último ano, com apenas cinco anos; sempre achei superar obstáculos: meu tamanho e aparência frágil, e uma inteligência e perseverança sem tamanho. Estava protegida do mundo, não me deixei ser tocada pela sensibilidade flácida da vida para ter uma vida intelectual completa... Mas ainda assim eles vieram e me trouxeram para cá, não sei onde; sempre acordada, assistindo eles assistirem o meu medo... Nunca eles saibam que eu penso... O que eles forem fazer farão com um objeto, um símbolo do que seja que eles procuram; mas em mim só tenho 258


a perguntar sem resposta... Se você, Deus, existe... Onde está, quando não me resta mais nenhuma esperança?... Só me resta não saber...” Da escuridão de um dos cantos vazios do hangar surge uma nova figura, fora do padrão dos constituintes da alma. Em meio ao silêncio e à agonia; desvelado das sombras, revela-se um manto negro que parece deslizar-se sozinho em direção ao centro: há um rosto que não se vê sob as sombras do capuz; é um sacerdote do medo presente nos olhos da vítima; a representação do caos ritualístico; da sobrevida do horror, na claridade feliz da cidade Salvador: o enegrecido que cobre a vontade de viver e arranca o grito dos bravos... por nunca revelar totalmente o seu rosto: é a imagem do pesadelo enegrecido da alma. Ele para ao centro; perto dela; sob os olhos de todos; e chupando o pavor dos poros e pupilas da vítima. - São todos os bem vindos da morte secreta que logo o revelará. A medida da escolha dos nossos destinos repousando em mais um corpo da cerimônia... A beleza que dá esperança à vida... E a consciência que dá esperança à existência... Domemos nossos ódios para a revelação final. Tirem do rosto da criança mais uma peça para a libertação do nosso chefe executivo: o senhor das trevas que abomina a esperança. - A 259


prece termina e o sacerdote da escuridão recua para o seu interior; a voz suave de um homem bem educado, mais um dos daqueles que nunca se reconhecem como sendo o tal... parte da alma. Ao redor a alma começa a se movimentar. A pouca luz que existe diminui mais ainda e se concentra sobre a presa. Ela sente ao seu redor as criaturas se aproximarem; mesmo sem poder vê-las com clareza, sente seus frios rostos gelados a rasgarem na alma... antecipando o que devem fazer. Um corpo começa a ser envolto pela luz; está logo a sua frente. O rosto ainda não surge, somente o brilho dos olhos; ele está nu; seu membro está ereto. Caminha mais na direção da mesa: transforma medo e antecipação em raiva... Ela sabe o que terá de suportar; mas ainda não é tudo. - “Venha logo, desgraçado!... Faça o que...”O pensamento é interrompido. A postura de seus predadores sempre deixou claro esta brutal intenção; a exposição do seu corpo, a posição em que fora colocada e o estado do homem a sua frente... Mas nunca pensara na morte dessa sua expressão: numa eterna dúvida de esperança dentro do enegrecido... O calor de muitos homens ao seu redor, transpirando o prazer pelo horror... Ela reconhece o rosto a sua frente que se mostra a luz: - “Dr. Marcelo...” - Seus olhos muitos abertos 260


não acreditam no que veem. O horror sobrepõe a tolerância e a razão. Ela começa a se debater. Há muito mais nela para ser violado do que os próprios carrascos imaginam poder. A retina finalmente se umedece. A visão finalmente embaça. As lágrimas da morte da esperança escorrem para um rosto que aprende a ter fé agora, no mesmo momento em que vê que nenhuma fé a irá ajudar... - “Deus... Não!!!” - Da escuridão ao redor uma mão surge violenta e desfere um soco; seu rosto balança para o lado oposto encontrando a dura madeira do local onde descansa. (Pow! Bam!) Outros punhos então surgem, desferindo golpes por todo corpo. E uma dessas mãos lhe arranca a mordaça: todos querem ouvir seus gritos... A alma quer possuíla por completo. As pancadas se sucedem, com mais violência e mais empenho. As manchas de sangue começam a surgir. Os sons de sua dor ecoam pelos ouvidos da alma. E em cima dela, num instante, está o que era um seu tutor. - Não... Por favor... - Seu último clamor, entre lágrimas, pancadas e dor. Mas aquela parte da alma já a penetra com violência; fazendo, sem perceber, que sangue também flua dali... - “Sou virgem... Sou virgem...” - Mas o mal na alma já se fizera conhecer: o sexo com extrema 261


dor e crueldade, para alguém que nunca o conheceu... Preferível morrer a viver com tal memória... E assim ela escolhe... Enegrecido... Sem esperança. Mais e mais violência naquele hangar. São todos. Toda a alma. Com o tempo correndo para trás. - AAAAHHH!!! - Desaparecendo na noite. Enegrecido: a alma vence.

Véspera Mortal A solidão é uma amiga cruel, mas é a mais fiel companheira do policial que nunca pode confiar em ninguém além de si mesmo. Normalmente um policial é parte de uma corporação que se ajuda, unida, para o pior que há no mundo para ser posto de volta no esgoto da sociedade quando a descarga de alguém jorra para o lado errado, o lado de fora, e a sujeira aparece nos jornais: todos eles se juntam para limpar a porcaria alheia, e muitas vezes se sujam, pois acabam fazendo parte da merda... Mas tendo uns aos outros... Luciano não confia em ninguém; muitas vezes nem nele mesmo... O instinto do passado assombra o diadia de seu presente lhe dando nenhuma escolha senão ser o que ninguém mais é: ninguém para todos, e um só para ele próprio. Sente-se só estando em casa à 262


noite; não tem coragem de procurar nenhuma maior amizade ou envolvimento: não pode confiar, não tem escolha, a escolha já é feita... Desde Carol não se envolve com nenhuma mulher por um período maior que duas semanas: mulheres sem futuro, com ou sem ele; seres humanos com corpos para serem satisfeitos, como o dele próprio... porém na maioria das vezes não pergunta nem os seus sobrenomes... Não quer saber; não quer conhecer; não pode confiar; não tem escolha. O que lhe ocupa é o trabalho. Nesse último mês foram as três... O apartamento de Luciano é a sombra vazia do que ele tem em sua vida; poucos móveis, poucas coisas... Na madrugada que anda lentamente ele assiste a si mesmo, sentado numa velha poltrona no meio da sala; além da luz translúcida do abajur, somente a luz da rua que entra pela janela ilumina a casa. Um homem que tem eterna insônia; consciência eternamente perturbada; passa a maior parte das noites no gabinete de delegado... Porém algumas vezes vai para casa. Anda e pensa muito, mergulhando na escuridão; bebe em algumas ocasiões, e apaga bêbado no sofá, mas isso não tem sido muito... Acende mais um cigarro nessa noite. Paira sem camisa pela sala. A fumaça às vezes sobe até o teto e se desfaz num suave tapete transparente; a casa tem o clima de seu dono. 263


O cinzeiro está cheio. Madrugada longa demais para se suportar... Na mesa de centro estão papéis. O que ocupa a mente do policial Luciano é a sensação de estar vivendo uma lenta e arrastada antecipação. O homem Luciano sabe que está vivendo esta expectativa: sua parte que já esteve do outro lado conhece quando uma noite chama “a alma” para cometer atrocidades... A carne pede e tem saudades; e longe dele, o policial sabe, que o momento está chegando... Foram 14 dias de Patrícia para Inez; e 13 dias de Inez para Caroline... Seu palpite é que seja uma degressão, uma contagem regressiva; provavelmente guardando uma outra razão numérica por trás, mas que não importa no momento... No momento o que é importante é que a madrugada que avança penetra no 12º dia desde que o corpo da Caroline foi encontrado... E tanto o homem quanto o policial Luciano sabem que o outro lado está agindo, neste momento... Nas vísceras da quarta vítima. Nos relatórios do detetive Oscar sobre a mesa, as palavras carregam as lembranças de Luciano quando sob o comando do delegado Adroaldo, um mentor: os passos de uma investigação; um reflexo melhor e mais duro do que ele era... Muito mais frio, sem dúvida, o detetive Oscar não se envolve... é apenas policial... 264


“Patrícia saíra às 7 horas da manhã naquele dia. Seu caminho levava a uma primeira parada numa academia de ginástica, ainda no seu bairro. Quarenta e cinco minutos depois saía de lá; após modelar mais ainda o belo corpo... como fazia todos os dias úteis da semana. Deixa o nobre bairro onde morava, dirigindo seu carro, e segue para o bairro nobre onde trabalhava: na clínica do pai... Lá chega por volta das 8 hr e 25 min. Chefiava uma espécie de departamento de nutrição e medicina preventiva: posição criada por ela, e para ela, dentro da clínica do pai... Era uma bela jovem que acreditava que podia educar a saúde de todos... Provavelmente sorriu, se alimentou, se aborreceu, sonhou um pouco mais e passou todo aquele último dia como apenas mais um... Às seis e trinta da tarde Patrícia informou na recepção que já estava indo para casa... E nunca mais foi vista viva, e inteira. Seu carro não deixou a vaga onde estava estacionado desde de manhã, num estacionamento pago não muito distante da clínica. Perto de oito horas da noite, o pai de Patrícia, dono da clínica, andou até o mesmo estacionamento; já próximo do seu carro, o telefone celular em sua mão tocou: era a sua esposa... Perguntava se Patrícia estava vindo com ele para casa. Casualmente ele disse que não... Então olhou algumas vagas depois, também de maneira casual, e viu que o 265


carro da filha continuava lá no mesmo local... nunca mais tocado desde a manhã... Fora quando o medo começou; e não mais deixou de mostrar sua presença para aquela família.” Imaginando: houve um evidente conhecimento prévio e estudado dos hábitos da vítima; o que sustentava no começo a teoria inicial de sequestro. A zona em que fora apanhada não era movimentada, mas não de todo deserta. O elemento da captura teria agido na caminhada de Patrícia da clínica até o estacionamento: são menos de 600 metros. Provavelmente agindo num carro grande (van ou besta), a abordagem poderia ou não ter sido testemunhada... Porém não se é descartada a possibilidade de que alguém conhecido a tenha persuadido de forma a não haver nenhuma forma de coerção física visível... Mas tudo isso eram apenas teorias... Luciano acende mais um cigarro e volta a sentar na poltrona. Eram histórias de ficção baseadas em hipóteses e possibilidades; mas não havia um caminho claro a ser seguido. Os “headhunters” estavam agindo de uma forma totalmente insuspeita: com calma e discrição... Não havia nenhum tipo de ansiedade ou desejo ardente que os fizessem agir de forma conturbada: não era como o arpejo que surgia do interior e materializava as agressividades... Eles têm um propósito. Escolhem 266


as vítimas com muito cuidado, observam seus movimentos dia após dia... E então atacam. Alguns pontos de vigilância foram montados em locais ditos de possível atuação dos criminosos: análises psicossociais do perfil das vítimas, e dos fantasmas que as pegaram, haviam determinado alguns padrões de comportamento na escolha das vítimas: a palavra seria ascendência... Mas Luciano pensava que seria muito mais sorte, muita sorte, se algo realmente acontecesse nos locais onde os especialistas diziam ser possível... A dificuldade era deter um frio propósito, o qual se desconhece... Luciano se levanta novamente. Já começando a amanhecer... Sente com mórbida certeza que uma vítima já existe. A pedido de sua investigação, todos os desaparecidos de pessoas que se encaixavam com o perfil das vítimas seriam a ele notificados: nos últimos três dias foram registrados três... Os locais supostos para os desaparecimentos foram checados; e também as circunstâncias... Com variações leves, os três serviam para preencher essa tal lacuna... Esperando... Com olhos firmes na passagem da escuridão: o mundo ao seu redor não se tornava claro, com o acendedor do dia. Os desaparecimentos de Inez e Caroline seguiam a mesma linha. Um o quê das dúvidas não esclarecidas dentro de si mesmo, 267


para as questões não esclarecidas dentro de si mesmo, para os quais continuam a viver em suas vidas. Pensa que os assassinos parecem ter mais sentido em suas vidas do que ele próprio, e é uma forma deprimente de se pensar no começo de um novo dia... A análise da corda que amarrava os braços de Caroline ao seu tronco revelou que era realmente linha de pesca: um tipo bastante comum mas o fato de ter sido usada, provavelmente, de uma maneira improvisada: para não permitir que nenhuma parte do corpo tocasse o chão... Era um fator que revelava que talvez... um dos assassinos pesque... O que não é grande coisa se pensar quantas pessoas nessa cidade devem praticar a pesca... Porém, tê-la a disposição, provavelmente dentro do carro, revelava um comportamento de alguém que pratica pesca sempre: o lazer constante de um homem “de bem”... As marcas de aprisionamento das vítimas demonstravam que fora um outro tipo de corda... E são mais as informações do delegado povoando o pensamento... E ele para e pensa em si mesmo: são as coisas que não vê, mas imagina, que mais o assustam... O rosto das garotas que foram decapitadas; suas expressões vivas até o último instante; e o pouco sentido que faz a ciência dos seus pensamentos policiais: “Como elas foram escolhidas?” “Quem 268


escolheu?” “Paciência! Por que?” “Não parece ter sido a vida a coisa mais importante que eles queriam tirar delas... O que, então?” - “Acho-me cansado... E pensando demais...”Luciano volta a sentar na poltrona. Apaga o último cigarro no cinzeiro. Coloca o papel do laudo pericial da corda de nylon sobre a mesa, junto com tantos outros papéis... As fotos dos rostos esperançosos de três jovens repousam junto das fotos de seus corpos decapitados: numa mediana composição do horror de várias noites sem dormir do delegado Luciano... Adormece. Seu corpo se exauriu; sua mente quer descansar... Mas o terror nunca dorme... Da madrugada à luz de uma véspera mortal.

UM À noite o rosto do ser humano se torna diferente. Quando está sozinho na presença da escuridão; muito vê de si mesmo; e é o que pode haver de perigo nos outros seres humanos... São os dias desses dias em que o ser humano vive. Há medo e angústia em sua expressão. As sombras se tornam monstros: a lembrança que surge é de um tempo frágil da infância, quando tudo em redor parecia ser tão estranho... como agora... A madrugada tende a ser fria. A noite cortou 269


lenta o corpo do homem que espera sozinho a luz do dia para salvar-lhe de mais um inferno astral de escuridão na cidade grande e cruel dessa Salvador. Ele veste roupas simples. O olhar triste, sóbrio e cansado lhe condena os pensamentos... Por qualquer razão está ali: esperou um ônibus que nunca passou; não sabe o caminho para onde quer ir; não quer ir para lugar algum; está completamente só; esqueceu quem é e foi esquecido por todos; nunca realmente existiu, mas naquela noite apareceu de pé embaixo de um abrigo para pedestres num ponto de ônibus do Vale de Nazaré, início da Avenida Bonocô, mais um ponto da cidade, da cruel Salvador desses dias... Está abraçado consigo mesmo para espantar o leve frio da madrugada: as roupas simples e a deserta solidão da avenida vazia intensifica o frio... Nessa noite, talvez, o ser humano teria pensado que gostaria muito de um abraço; que o calor de outra pessoa seria a coisa mais valiosa de toda a sua existência: algo de inconcebível, ao pensar-se em abraçar-se com outro ser humano... Completamente desconhecido... Talvez já tivesse andado muito naquela noite e por isso resolveu parar naquele abrigo para descansar enquanto o dia surge e o calor do sol logo retorne, trazendo novamente o brilho e a alegria de viver nessa cidade, e nesse planeta; outros rostos olhariam para ele, e ele olharia para 270


outros rostos... e não mais a escuridão os travestiria de medo, sem razão e com sentido, pois seus rostos teriam faces de seres humanos e não sombras de monstros... Apenas um ser humano. Desde muito antes já se podia ouvir o som do carro se aproximando; o silêncio da alta madrugada permitia isso. Ele veio, foi tomando sua forma, enquanto sua aproximação era constante. Não era um barulho, era um ruído. A cor escura transmutava entre o azul e o preto. Sua velocidade não passava dos oitenta quilômetros por hora na pista da avenida completamente vazia: madrugada calma de meio de semana... É um tipo de van. Sua velocidade diminui. Está a uns 50 metros do outro lado da pista, onde há um abrigo de ônibus, e onde está um ser humano de pé encolhido junto à pilastra de sustentação da mesma construção pública, imóvel, quase invisível. A van estaciona do outro lado da pista da avenida. Debaixo de uma das grandes árvores que ainda existem ao longo do Vale de Nazaré e parte da Avenida Bonocô. Uma árvore de caule grosso, raízes poderosas que arrebentam o limite do chão e com muitos galhos também grossos e fortes; folhas verdes e algum fruto... O carro está a pouco mais de trinta metros de distância do homem... Algo do seu interior o faz 271


prestar muita atenção ao palco que se constrói: talvez por não ter mais nada o que olhar; talvez porque seja um sinal de que a noite já está terminando e o medo da escuridão vai finalmente dar lugar à esperança do dia; ou talvez não seja nada de bom... O ser humano se esquiva da possível visão de quem quer que esteja na van. Permanece atrás da pilastra, consumido por ela, e com os olhos presos os acontecimentos... As duas portas do lado direito do carro se abrem. Dando para a calçada e para a árvore. Um homem surge na extremidade. Olha os arredores por longos segundos. Não vê ninguém... Sua forma humana é apenas uma sombra. Voltando para o lado oculto do veículo, alguns sons são produzidos e quatro manchas negras surgem carregando algo na direção da árvore... O objeto não passa de um metro e meio; não parece ser muito pesado; porém os homens que o carregam são devidamente fortes. Está enrolado em alguma coisa, o objeto. Eles chegam o pé da árvore. Três deles ficam em volta do objeto, fazendo algo; enquanto o quarto sobe habilmente na árvore. No carro algo se move. Há um quinto elemento dentro do veículo. Mesmo em meio à escuridão pode-se distinguir alguém sentado no banco do motorista: era o que vigiava... Voltando aos três: põem-se de pé e lançam algo para o outro na árvore. Esse, faz movimentos trepado a um dos 272


galhos da grande árvore. O objeto está aos pés dos três elementos no chão... Então, o sujeito na árvore começa a puxar o objeto. Vai se formando finalmente o encenamento da final compreensão daquela noite de um só homem sozinho naquela noite... Pés, em seguida as pernas, depois o tronco, logo após os braços que se estendiam para baixo... e... e não havia uma cabeça. O corpo decapitado fora completamente hasteada no ar... até encontrar os pés com o galho onde o quarto homem estava esperando para prendê-lo à árvore. O objeto era um ser humano. Era o corpo de um ser humano; como a testemunha do outro lado da rua... Estava nu, o corpo; mas não consegue identificar se é um homem ou mulher, até que o vento o faça balançar... Toma a frente a imagem do terror noturno de Salvador: o corpo pequeno de uma mulher. Seus dedos se agarram à pilastra do brigo. O frio é tão intenso quanto o pavor que lhe recobre a pele. O homem olha intensamente para o pequeno corpo que balança inerte e sente suas vísceras saltarem de espanto: o que havia de um temor do desconhecido, atravessada toda aquela noite sozinho na estrada de um mundo inóspito, se tornou o horror cru de outros seres humanos... que mataram, e arrancaram de si a fé de qualquer coisa... O corpo continua lá. O quarto homem começa a descer da árvore, enquanto 273


os outros três recolhem os seus vestígios; parecem se corromper de nenhuma tensão enquanto içavam o corpo, ou enquanto ensaiam suas partidas: numa parte final de uma peça recém representada... onde o homem oculto do outro lado da rua apenas entrou por engano no teatro do horror, e pegou o final do drama... sem entender nada... apenas apavorado com o tanto que o ser humano pode alcançar para causar dor a outro... Pois são pessoas que partem em seu carro carro de transporte: uma van preta importada, placa: ABI 1997. E foram pessoas que mataram aquela mulher lá pendurada do outro lado da rua, numa árvore, de cabeça para baixo, sem cabeça, chegando no fim de uma noite de terror sem mais existir: também uma pessoa; um ser humano como ele... A van se vai. Mesmo na tomada da distância o homem permanece grudado à pilastra: há um frio tão grande em seu corpo, que se sente quase petrificado, observando o corpo balançar... flutuando ao vento como um pedaço de carne branco, inerte... Pensa na expressão que aquela pessoa teria quando fora decapitada; o horror dela se torna seu horror: desmontada toda esperança que ainda resta no simplório... Sem saber o que fazer com sua vida após assistir aqueles atos de demônios... Sem a clareza da razão pela qual a vida lhe pôs ali, naquele 274


momento: nenhuma, provavelmente... Mas alguma, por ele próprio, com certeza... Precisava sumir dali.

& “Só o que vejo são pessoas mortas. Pessoas mortas que giram ao meu redor... e eu as matei a todas. O sangue ressecado que marca os buracos de balas em seus peitos e em seus crânios escrevem os nomes de suas infelizes identidades... Aquelas sem cabeça fazem brotar de suas decapitações rostos sorridentes de pessoas que já conheci; exageradamente desproporcionais aos seus corpos originais... Dizem meu nome porque me conhecem. Suportam a normalidade de suas vidas, felizes, até que eu os matei... Só o que tenho vontade de fazer é matá-las de novo, para assim se calarem. Vejo sobre o corpo decapitado de Patrícia a cabeça quase gigante de Ilena: ela olha para mim, dizendo não; enquanto o braço do corpo aponta para o meu lado... Está de pé ao meu lado um jovem que me lembro reconhecer: é Carlos, irmão de Ilena. Ele olha para mim sorridente e faz um gesto com a cabeça apontando para o centro; eu olho. Vejo no corpo de Inez a cabeça de Frida: está desfigurada... da maneira que a deixei naquela noite. E logo ao seu lado está o rosto de Carol; a minha 275


Carol: seus olhos estão tristes... Eu também a matei... Ela é ela própria, mas a consumição é a pior... Pessoas retalhadas passam; mais mulheres decapitadas andam nuas ao meu redor... Mas eu só tenho Carol para olhar... Todas as pessoas que vejo estão mortas. ‘Você fez um bom trabalho!’ - Diz Carlos ainda ao meu lado. Eu vejo ele novamente... Só há pessoas mortas em todo lugar.” O telefone toca na sala da casa de Luciano um e duas vezes. Ele acorda de seu sono perturbador com o espanto no olhar de muitos sonhos como estes... Muitos outros, e muitos os mesmos, que o fazem despertar com tanta dor nas entranhas, que novamente prefere não continuar a dormir; sempre na vigília de si mesmo... Deve ter dormido apenas umas três horas até este momento em que desperta com o toque do telefone: o susto já passou. E se levanta, do jeito como se encostou na poltrona, para atender ao insistente chamado... Sua mente já deduz o que deve ser a mensagem que vem ao presente, para compor mais um pedaço de sua tragédia: a vida desta cidade... já muito sem a alegria de antes... e por sua causa. Anda até o telefone; no seu sonho, povoando a realidade: é sempre o único personagem a ainda estar vivo... Porém agora, ele sabe... Atende ao telefone... há mais uma vítima... 276


Só o que vê são pessoas mortas.

& Não existe mais nenhum momento para o qual não haja uma mancha de sangue na cidade de Salvador, o futuro do provedor de tantas coisas, as quais se teme por se repetirem... com mais e mais freqüência. A dor, o horror, o prazer da similaridade com o dia anterior na página policial dos grandes jornais: “Mulher encontrada morta dentro de uma lata de lixo num bairro da periferia de Salvador.” “Dezoito adolescentes são chacinados em favela do Rio.” “Policial morto por traficantes.” “Cinco bandidos morrem em tiroteio com a polícia.” (Executados.) “Padre estupra fiel depois se mata de culpa.” “Loteria da morte nas penitenciárias.” “Headhunters ainda a solta...” Ronaldo toca no ombro de Oscar. Os olhos do detetive se desviam da mórbida atenção para as notícias do jornal e se dirigem inexpressivos para o rosto do colega... O lugar é a sombra daquela árvore no Vale de Nazaré. O carro está parado em frente à bela e frondosa árvore; no acostamento da avenida; bem próximo ao cordão de isolamento da polícia. Detetive Oscar está encostado no carro, lendo o 277


jornal... Ronaldo é um homem de meia idade que ainda se assusta quando vê o corpo de uma bela moça pendurado de cabeça para baixo, e sem cabeça, bem no meio da rua, nua, e à vista de todos os transeuntes: gostaria ele, com todo respeito que acha impor com sua cabeleira grisalha, de fazer o mesmo com sua esposa, e ao mesmo tempo levar uma daquelas garotas para o escuro, e arrebentar-lhe mais ainda as vergonhas já tão dilaceradas: é o monstro que cada um tem de carregar com a ironia da profissão que conseguiu arranjar... O detetive Ronaldo faz apenas o que lhe mandam, e se pudesse apenas interrogaria os bandidos, sem nunca ter de deixar a delegacia... onde não seria, como é, tentado a expor a ridícula inutilidade de sua vida: um masturbador compulsivo, que tem de suportar um colega como Oscar (que é mais jovem)... - Notícias do chefe? - Dobrando o jornal. - Falou para você seguir com as investigações! - Ele não vem ver o local? - Acho que não... Disse que iria ver um lance pessoal. - Lance pessoal?!... O sacana não tem ninguém... - Oscar pensa na intensa introspecção do delegado Luciano; na sua capacidade de dedução; no seu empenho de pesquisa; na sua quase psicótica dedicação ao trabalho... Era um assistente quando 278


Luciano resolveu o caso do Fernando Vainarde. Bastante diferente de seu antecessor, delegado Adroaldo, agora Deputado Estadual, Luciano assumiu a homicídios com empenho, e com uma cega, e também anormal, vontade de pegar os assassinos desses crimes estranhos... Sem dúvida algo de curioso ocorria no comportamento do seu delegado... - É... E você é muito íntimo dele, não é? - Ronaldo despertou a criatura para sua própria desgraça... - Vá se foder, Ronald... Pelo menos o IML recolheu o presunto logo. Só vi uns dois fotógrafos... - Por minha causa... Fui eu quem estava no plantão. - Deixe de ser filho da puta, Ronaldo... Você só dá plantão para não ter que encarar aquela coisa em sua casa. - O rosto de Ronaldo se contorce entre o desanimo da verdade e a ofensa também da verdade... Certa vez sua esposa “invadira” a delegacia alegando que o marido não aparecia em casa há mais de dois dias; acontecimento este, ainda na gestão do delegado Adroaldo: a mulher assombrava tanto pelo cacarejo quanto pela feiura, e o pobre do detetive Ronaldo teve de suportar a humilhação calado... pedindo uma confirmação do delegado Adroaldo de sua real presença nos dois referidos dias como de plantão... e 279


não na farra. No final a verdadeira vítima foi um ladrão miserável, que caiu nas mãos de Ronaldo naquele mesmo dia: saindo carregado do “interrogatório”... O qual ninguém filmou. - Pelo menos eu tenho uma coisa... E você que... - Não diga não; nem ouse... Você faz o mesmo, tendo uma mulher em casa... E deve ser até mais... - Esquece!... (frustração) Você já sabe quem é a vítima? - Só vou poder confirmar depois da identificação das digitais... Mas se as desaparecidas baterem realmente com estes doidos... Deve ser uma tal de Adriana não se o quê. - Como pode saber? - Pelo tamanho, otário... Era a única baixinha... E quanto a ligação? - Nada... Pensei que o sujeito fosse ligar de novo. - Ele ainda vai nos procurar... É a primeira testemunha que temos. - Mas ele só disse que viu um corpo... - Às quatro da madrugada, Ronald... Acorda... O sujeito deve tá morrendo de medo... Ele deve ter visto o corpo da garota ser içado lá para cima... Oscar aponta o galho da árvore onde o corpo estava. O 280


cenário agora tem outros frutos que não um cadáver. Ronaldo entra de volta na viatura em que veio desde o Complexo... Ambos partem. Somente alguns policiais militares permanecem no local... onde o sangue jorrou, onde muito do que é escuro no interior humano se tornou claro... nos olhos de um homem: o ser humano... Oscar viaja... Apontam-lhe nas próprias deduções as coisas dessa violência que lhe vem: mais uma vítima que consome a imaginação e apaga-se em nada na mente dos simplórios que ainda acreditam na inocência do homem para as ações contra seus semelhantes... Quanto mais o ser humano vê o outro sofrer, melhor para ele que tem um sofrimento menor; risível ao comparado à miséria alheia tão visada e divulgada quanto a mentira da felicidade do dia-dia. Segundo o que seria a confirmação das descrições das garotas desaparecidas, dentro do perfil, essa seria mais uma cuja a jovem e promissora existência tinha sido cortada bruscamente nos pedaços da inclemente vitória da intolerância: sobre a prosperidade do outro... O extremo era ter de notar que as peças do quebra-cabeça da violência humana só se encaixavam na base do martelo: nunca o crime é considerado isolado, quando não se revelava como tal, se revelava completado em sua plenitude e realização; pois o 281


único com a capacidade de enxergá-lo dessa maneira era o próprio criminoso, quando consciente de seu mórbido propósito... A introspecção de Luciano diante da obscura situação tinha esse intento; algo que para Oscar se transformava em mais um tipo de anti-loucura: uma tentativa de ser o monstro para poder então pegá-lo... No caso real, em Luciano, as motivações do aprofundamento era um buraco muito mais profundo, o qual Oscar não teria acesso em consciência... Porém o método se tornava correto, se a imaginasse ser um só elemento: o que tudo indicava era que uma absurda coletividade tinha decidido por dar sentido à existência através dessas tais atrocidades: o mundo, então, das manchetes de jornal o impressionava mais ainda... No pseudo-heroismo dos bandidos sendo mortos em nome da segurança do cidadão; o certo e errado se tornavam obsoletos pois no fundo do seu coração não dava a mínima para as vítimas... Oscar nunca vomitou ao ver um corpo; muito diferente de Ronaldo, que quando presenciou o hasteamento do corpo da lª vítima, Patrícia, caiu de quatro num canto qualquer e pôs todo seu café-damanhã para fora... Dirige em direção ao Complexo. Mais tarde teria de verificar o laudo pericial preliminar do corpo da vítima; provavelmente com a confirmação da 282


vítima como sendo a tal da Adriana... Mesma coisa: saiu de manhã para o trabalho, local onde prosperava em algo muito promissor; no final do dia deixou o tal local de trabalho... e nunca mais foi vista... O que realmente provocava o delírio no detetive Oscar era a investigação, o caso, conseguir ver no final toda a obra de arte da violência humana estampada em fotos preto-e-brancas do vermelho sangue que foi a resolução do crime... Sua admiração por Luciano atingia seu ponto máximo nessa descrita situação: depois de ter acabado com o Fernando Vainarde, quando no seu relatório constam todos os detalhes, nuances e deduções; os suspeitos, as vítimas, o modos operandi; a arma, as dilacerações, o estupro necrofílico... todo cenário típico do seu novo dia... Porém Oscar está preocupado com Luciano: seu delegado parecia estar fora do mundo; era aquele cego empenho em encontrar o propósito nas atrocidades... as palavras, a leitura, os artifícios da teoria do comportamento violento. Ele parece querer entender mais do que qualquer um; além mesmo da real intenção que seria pegá-los; entender as tais razões do que um dia Oscar ouvira falar como sendo... psico-patologia da criminalidade; psicopatia sociológica; e outras coisas que nada mais são do que a tentativa normatizante de querer normatizar o que 283


não é normal... e não tem razão. Ronaldo disse que Luciano tinha ido resolver problemas pessoais; e Oscar sabe, como todos na força que conhecem o episódio Fernando Vainarde, que o último sinal de vida particular do delegado Luciano tinha sido justamente a última vítima do assassino: a tal da Carolina... Porém para ele não ter ido no local onde a moça fora encontrada, deveria haver alguma outra forte razão... Nem mesmo o fato de ter havido um telefonema anônimo, o qual estava sujeito a se repetir, o havia levado a se interessar. Eram saltos muito grandes no que surgia na mente de Luciano para Oscar conseguir perceber: sua arte ainda era a atividade... A introspecção o deixava com dor de cabeça... Chega ao Complexo. Estaciona o carro. Sai, acende um cigarro. Ajeita a arma na cintura... Imagina-se arrebentando a cabeça dos safados que vêm pendurando as garotas: seu maior prazer seria pegar os caras sem nenhum medo de ser o que é... Todos com um fantasma na consciência, desejando algo que não podem ter; Oscar vê pessoas vivas que gostaria de matar para ver o caso resolvido... A sombra do interior do prédio o engloba, com a fumaça fluindo por suas narinas: um homem cheio de dúvidas e agitação na mente. Chega ao gabinete de Luciano. Está vazio. 284


Paira, a sala vazia, numa das muitas interrogações: todo aquele material; logo chegaria mais um... A figura de Oscar parada na entrada... Um som corta o seu pensamento: um fax está chegando... (ATENÇÃO)

& É o campus da Universidade Católica de Salvador: cenário cultural de muitas entre muitas coisas para o delegado Luciano que agora aqui está... Foi na faculdade de Direito onde se formou, e agora, por isso, é delegado; mas a visita não é por saudades do lugar... pois há outras recordações por aqui que não são tão construtivas... Anda por pátios e corredores, onde quase todos o reconhecem... por diversas razões: um presente em seu nome, de um lugar que só fez para sua vida o mal para o bem, e o bem para o pior... Nesta manhã resolveu vir aqui para visitar um “amigo”. Estão sentados num dos bancos do pátio principal. Professores que passam cumprimentam o homem de terno, e se prendem à surpresa por veremno falar com um garoto. O policial não se prende à política que teria de fazer no meio jurídico: são poucas as amizades que mantém; e nesse meio... menos ainda... Grande parte dos profissionais que foram seus 285


professores aqui, hoje são as pessoas com quem tem de lidar no dia-dia... E se lamenta muito às vezes por isso, pois vê que, como sempre, o pior é resolvido na rua; longe das leis; fazendo das mesmas uma grande fantasia do normal... Ele próprio é evidência... da fantasia. ...Ainda não entendo porque você escolheu direito... Depois de tudo que viu... - Foi justamente por tudo isso... que vi... - O irmão de Ilena Fernandes, Carlos está no primeiro ano do curso. Luciano sempre manteve contato com o rapaz; na estreita manutenção da sanidade, culpa e tentativa de benevolência; algo que sua consciência escolheu logo depois de ver a gratidão nos olhos do rapaz... por uma grande mentira... Nesse dia Luciano sentiu a necessidade de ver a única pessoa que realmente permanecia viva para ele; quase um fã... mesmo que seja tudo irreal. - E como está? - Legal! - E o latim? - Carlos sorriu... - Já estou começando a pegar... - É tudo pompa - Começo a reparar isso. - Ainda quer entrar na promotoria e pegar todos bandidos do mundo? 286


- Já sei... Bastidores... Você já me disse isso antes. - Exato. - Eles conversam... Luciano gostaria de poupar-lhe mais de coisas como a verdade do mundo das leis... Mas nem ele mesmo sabe direito o que isso seria: poucas palavras de verdade ali, e aquele rapaz provavelmente voaria no seu pescoço e arrancaria a pele de seu rosto com os dentes... ter esse “garoto” como “amigo”... Eles continuam a conversar. O corredor vazio o leva para a saída do campus. A visita carrega a ambiguidade das sensações: Carlos e sua admiração; Luciano... o homicida da irmã do garoto... Quanto um insano paradoxo pode ser um seu único vínculo com o sabor do mundo normal: amizade...? Não sabe, o homem policial... Andando pelo corredor, pega um cigarro; lembranças de dias aqui percorrem sua mente... Sentia-se uma sombra deslocada em meio à juventude do lugar; queria apenas concluir o curso e chegar a delegado: só tinha (tem) na vida sua carreira... Mas sua face inexpressiva esteve por muito tempo nos jornais, e a fama pela “falsa” verdade foi uma escolha que não fez, mas uma carga que teve de carregar nesse mundo aqui dentro, protegido, do que ele realmente era (é)... Acende o cigarro. Guarda o isqueiro. Saindo à luz, uma mão em forma de arma o toca nas costas... 287


desavisadamente... - Parado aí, Xerife! - A voz feminina não alcança tanto os ouvidos de Luciano, pois quase antes, entre o depois... sua adrenalina correu quilômetros de veias para por em si a atitude de reflexo. Gira rapidamente; enquanto a mão esquerda agarra a suposta ameaça, a direita pega com agilidade a pistola que carrega na cintura, num coltre, do lado esquerdo... Logo, num rápido relance, ele está segurando firmemente uma mão desarmada, com força; e apontando sua pistola 9mm para o rosto de... - Andréa! - Treme por alguns segundos antes de abaixar a arma, ainda segura a mão da jovem: alta e elegante; de finos cabelos negros; e uma pálida expressão de surpresa... - Meu Deus... Você devia relaxar um pouco, Luciano... - Respira profundamente o policial; finalmente larga o braço da moça e põe a pistola no seu devido lugar... Pega o cigarro da boca, tragando-o, tenso... - Droga, Andréa... Não brinque desse jeito de novo com alguém que você sabe que anda armado... Sua cabeça podia ser uma mancha vermelha na parede agora. - Sorridente, a moça parece não ter passado por nada além de uma manhã de quarta-feira... normal. - Que nada... Você tem péssima pontaria. 288


Luciano não contem o sorriso. Desde os tempos de academia de polícia, tudo em que ele apontou... acertou... nas mais diversas situações: sua primeira batida fora um exemplo: fechando o viciado que atirara em Cristiano, seu amigo... E àquela distância, com suas balas de ponta oca, a cabeça da amiga teria realmente desaparecido... Amiga é um termo confuso... Ela o abraça. Meio surpreso, Luciano retribui o abraço. - Como vai você, advogada? - Bem... E você, delegado? - Luciano sorri de novo. Andréa fora sua colega em três disciplinas. Como tinha o curso inteiro ainda por concluir, ela só se formou em semestre depois de Luciano... A intimidade dos dois vinha de algo muito mais simples, que o próprio Luciano não queria lembrar... E muito mais complicado, que a jovem não queria esquecer... mesmo não tendo alterado sua vida por isso... Considerava, ele, Andréa Bernardo: jovem de família de tradição no meio jurídico de Salvador; linda e inteligente; uma coisa além de sua compreensão... Na época, apenas sugeriu que ficassem amigos; afastando-se logo depois... Sentir o corpo dela contra o seu trazia memórias doentias demais para querer se lembrar de novo da sensação... E ela simplesmente 289


compreendeu, mas ainda sente a atração... Quando conversavam, ela o chamava de delegado, e Luciano, conhecendo a tradição familiar e a escolha dela, a chamava de advogada... A ambiguidade de sensações permanecia, mesmo não sendo no mesmo elemento. Pois era tudo que Luciano era quando recordava do arpejo... Só um. - E a velha rocha do seu pai? - O mesmo!... Estou trabalhando com ele. - Meu deus... - Não entendi... - Suas alegrias se degladiavam, pois em certos momentos estão em lados opostos da mesma instituição: a justiça. - Não falemos disso. - Você ainda é o charme em matéria de sair fora dos embates. - Por isso eu não fui para promotoria. - Curioso, Luciano... Seu silêncio às vezes é mais difícil de derrubar que um discurso inteiro. - Pode ser, mas não é isso que conta num tribunal. - Sem dúvida... Mas... - O que você faz aqui? - Andréa se admite ser interrompida por Luciano... Sempre fora da maneira dele: somente o outro é que fala... - Eu vim trazer alguns papéis para papai... Só 290


ficaram prontos agora no meio da manhã, e ele terá de ir ao tribunal logo depois da aula. - Ele está ensinando o que agora? - Criminal... como sempre... - Ela vaga o olhar para o pátio de saída à frente. Conhece os seus sentimentos, e ainda deseja manter aquele momento; Luciano não seria um bom amigo, se se considerar a presença física nos compromissos, pois nem em sua formatura ele fora... Mas uma grande sinceridade residia, para os desavisados, no seu afastamento: nunca tinha muito tempo perto de ninguém... Um desconhecido para o lado que mais se negava, nele, em querer aparecer... Luciano pensa num fracasso em sua vida: o relacionamento com Carol; a agressividade correndo-lhe nas veias junto com o desejo... Andréa é uma linda mulher a sua frente, com a qual não consegue imaginar nenhuma coisa além de sexo... Porém foi assim que tudo começou; e o fim nunca é esquecido... Os rostos no silêncio: e o medo no interior daquele que sabe ser erroneamente julgado por todos... suportando o pior dos julgamentos: o próprio. Andréa não encontrou mais nada o que falar: - ...Eu ouvi que outra vítima dos headhunters foi encontrada hoje de madrugada. É verdade, advogada... - Ela sente satisfação na 291


naturalidade do “amigo” ao lhe chamar pelo apelido/ profissão. Luciano falou sem sentir; ainda pesando em seu julgamento: Andréa também seria uma pessoa morta, e isso o apavorava, pois sentir a imensa felicidade em vê-la como vítima... do mundo com o qual convivia. Dá uma tragada no cigarro para forjar a normalidade... - Ainda sem suspeitos? - Não! - E pistas? - Não! - Olhava para ela com tamanha profundidade, dizendo coisas que não queria dizer, que também ela se perdeu nas palavras que dizia... - Quer sair comigo? - O olhar no silêncio permaneceu o mesmo em minutos da eternidade... Luciano sentia a vaidade. E a Andréa refletia no que não mais podia consertar: ascendente, dedicada ao trabalho, realmente linda e apaixonante... Que mais um homem poderia querer?... Não posso, advogada... (hesitou) Estou trabalhando tempo integral no caso. - Não era isso... Luciano é aquele prisioneiro do desconhecido dentro dele: o que tem de esconder de todos para que não surja de novo... Sombras despertas por paixões, que transformam a falsa felicidade na verdadeira violência de todos os dias que lhe correm as veias. Para a Andréa 292


era a misteriosa pedra de gelo de sempre... - Bom... Eu tentei... de novo... delegado. - Droga, Andréa... Você não muda... - Os dois riem novamente. Luciano pensa de novo no julgamento dos mortos em seu mundo... E diz... - Vamos ver o que acontece... (pausa) Eu preciso ir... Dê lembranças ao seu pai por mim. - Claro que dou... Ele até falou de você outro dia, quando você apareceu na televisão... - Que lástima... - Ela ri. - Disse que iria te procurar... - Não imagino para quê?... - Nem eu, delegado... - Luciano a beija no rosto e sai andando. Ela: - Largue esse cigarro! - E ele já distante: - Hã... “Há coisas piores com as quais tenho de conviver... advogada.”- Luciano quase sente um suave gosto de felicidade... Mas há mais um corpo para ver; outro corpo morto; outra pessoa morta: e nunca serão apenas... um.

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Colhedor de Tristeza O fax dizia: “Segue informações de série de crimes ocorridos na cidade do Rio de Janeiro, no período entre 1990 e 1992. Descrição: assassinatos com mesmo modos operandi. As vítimas foram encontradas com as gargantas dilaceradas por poderoso instrumento cortante. Total de seis garotas. Idades entre 20 e 25 anos. Nenhuma ligação explícita entre elas, além da idade; e classe social: média. Nomes: Patrícia... Inez... Caroline... Adriana... Débora... Andréa... Não foi encontrado nenhum suspeito. Informação sobre períodos que separaram um crime do outro não foi possível encontrar devido a contradições entre: momento da morte e quando corpo foi encontrado... Em todos os casos. Atenciosamente,...” A coincidência ou relação poderia ser o 294


material para um melhor trabalho do policial, e será, porém o policial Oscar começa a se perguntar o quão longe deveria realmente se ir, quando o que começa aparecer no horizonte é qualquer coisa maior que a compreensão de outro ser humano que não o próprio conceptor daquela tragédia do massacre... Oscar está sentado no velho sofá que fica no gabinete de Luciano. Há aquele conhecido som de muitas pessoas ao redor, e uma cidade inteira em volta, tudo encobrindo um silêncio que sai de sua modesta imaginação: é mais como um zumbido que incomoda quando olha e percebe aquelas informações no papel de fax; e sabe que se lembra daquelas coisas... vagamente: algo do tipo “há muito tempo atrás”, ainda nos seus 20 ou 21 anos, pensava no que faria da vida; entre um emprego e outro, preso à pobre família... ainda não podendo gerar nada do que é a miséria que tem de consumir como um bom policial, que é agora.. Já distante o suficiente da família para querer de vez em quando visitar a todos... Nesse tempo aqueles crimes aconteceram, e do mesmo jeito, de repente, pararam: uma coisa tão longe, na violenta Rio de Janeiro... Agora é a violenta Salvador que faz alvorecer da escuridão de noites invisíveis quatro daqueles seis nomes: não desejando crer, mas já esperando, que os outros dois irão sem dúvida aparecer... O círculo 295


de quem nunca sabe o que é nada além do próprio desejo; impulso; doença... Luciano parecia ter visto isso de uma maneira mais longe, de um outro ponto de vista mais interior, mais envolvido, o qual parecia poder enxergar que a escolha não era por acaso... Mas Oscar ainda não sabe o que era... O detetive olha o relógio. E preguiçosamente dá um bocejo. Levanta-se e põe a mensagem de fax na mesa de Luciano... Dá uma última e curiosa olhada nos nomes de vítimas listados na mesma; fica impressionado ao ponto de um sorriso, por realmente ser verdade uma coisa tão misteriosa, pouco convencional, mórbida e certa... - Só pode ser o mesmo um grupo!... - Pensa, ainda meio descrente... Mas o tal propósito que Luciano tanto falava lhe fugia mais ainda... Tenta se refazer. Acende um cigarro. E ensaia sua saída... Tinha que ir ver o corpo no IML; continuar vivendo no meio dessas loucas constatações das atitudes de gente muito doente... Ao seu ver... Sua expressão se torna cínica sobre ele próprio; como normalmente é a respeito de tudo: - “Nunca vou ser delegado... Droga...” - E sai da sala sorrindo, sem lamentar por nada. No estacionamento do Complexo de Delegacias se encontravam três carros parados e um estava 296


chegando à vaga dos delegados de plantão: Luciano saiu do carro e avistou Oscar na entrada do prédio. Enquanto era observado por este seu detetive; de um dos carros no estacionamento, uma viatura de serviço, desembarcou o detetive Ronaldo, pouco notando as presenças de Luciano e Oscar ali perto... Andou de seu carro e foi até o outro que estava lá estacionado: falava com o sujeito ao volante com alguma desconcentração... quando os dois também olham para Luciano e Oscar que se encontram em frente à entrada do Complexo... Nem Luciano nem Oscar se importam com a presença de Ronaldo e seu amigo no cenário, conversam: - Está indo assistir a autópsia? - Isso mesmo... Chegou um fax do Rio para você. - Você o viu. - Oscar hesitou por um instante. Não sabia até que ponto todo aquele lado obscuro da introspecção de Luciano poderia afetar seu comportamento e confiança nos seus comandados... mas tinha de arriscar... - Sim, eu li. - Luciano estuda o detetive e sabe reconhecer os desvios do raciocínio policial, quando as determinações de tudo que venha a ser aferido acabar por recair num lugar bastante comum: o de pessoas que agem “de tal maneira” com pessoas... e nesse 297


momento a única coisa que resta é a boa fé de colegas policiais; a despeito do que a verdade seja ao se revelar para o homem que conhece a mente psicótica como conhece a própria, que em determinado momento não o deixa de ser, principalmente se confirmadas as suspeitas de Luciano... - E o que você achou? - Oscar pensa tragando o cigarro e voltando a olhar o estacionamento, onde Ronaldo e seu conhecido estão juntos começando a se encaminharem para a entrada. Lembra que já vira aquele sujeito antes, provavelmente ali mesmo no Complexo, mas ele não era policial... E imagina como Ronaldo vai aproveitar o delegado Luciano ali na entrada para uma gloriosa puxação de saco... Sorri... - Eu... Eu acho que a gente tem de pegar esses sacanas logo, antes que as outras duas vítimas virem presunto. - Pensamento dedutivo em parte correto; mas ainda se encontrava num patamar bi-dimensional para os padrões de Luciano: Oscar pegou as informações que tinha e as fez fazer sentido junto às novas, quando as novas tinham um sentido independente, único, e muito mais nocivo... - Os nomes bateram, não foi? - Perfeitamente! - Luciano raciocina de forma que penetra na mente do mentor da história: a polícia 298


nunca se estabelece contra o crime, enquanto se mantiver a margem dele... Os melhores policiais são aqueles de comportamento quase criminoso... Todo palco montado nessa fantástica cidade do sol não era apenas algum tipo de fanático culto de propósito sangrento: o arquiteto da história representou seu prólogo no bom e velho Rio de Janeiro, onde o crime vivia até descobrir que terra maravilhosa era a cidade de Salvador e seu “serial killer” Fernando Vainarde... Sim, morreu; foi pego; mas todo o espetáculo fez da passionalidade uma arte: uma arte muito copiada... Luciano colhe a tristeza que plantou com as sementes do arpejo: e sabe que é a sua função... Fala: - Imagino que você já sabe o nome da vítima dessa manhã, não sabe? - É o que vou confirmar no Nina, também... - Também bate, não é? - É sim, delegado. - E quais são os outros dois nomes? - Ronaldo chega. E o conhecido: um homem de aparência distinta; um terno alinhado; cabelo e modos muito bem tratados ao longo de seus trinta e poucos anos; e uma simpatia no seu rosto que chagava a incomodar os dois policiais acostumados aos maus elementos do dia-dia... Ronaldo o introduz: 299


- Marcos Abrantes, advogado... Detetive Oscar e Delegado Luciano, da homicídios. (os devidos cumprimentos) Marcos e eu fomos colegas de colégio... - O homem observava Luciano com certa, e desconcertante, admiração. Fala: - Eu sempre quis conhecer o senhor, delegado. - É mesmo?? - É sim... Eu também adoraria ter defendido o Fernando Vainarde. - Pois é... Nem todo mundo pode ter o que quer... - Luciano se virava para Oscar... Mas o advogado: - Com certeza, mas alguns conseguem... tudo. - Luciano olha atravessado a expressão do homem; algo como “ainda vamos nos encontrar” saltava pela face e fazia o delegado perder-se naquela pequena construção que lhe ausentava a razão: “Quem é esse cara, afinal”... Se dirige para Oscar: - Assim que terminar, volte com as novas. - Tudo bem... Até... - Oscar se vai, está indo para o IML. No momento em que Luciano se vira, o advogado, conhecido de Ronaldo, está também se despedindo e entrando pela porta do prédio do Complexo... Luciano se volta para Ronaldo: - O que seu amigo veio fazer aqui? - Ver um cliente... Foi o que disse. - Cliente... 300


- É... Eu quero falar com você sobre o telefonema... - Eles entram lentamente, conversando sobre o ser anônimo que ligara na madrugada para avisar do corpo encontrado nessa manhã, a qual já anuncia seu fim com o calor do meio-dia... Luciano ainda conseguia lembrar do seu encontro com a Andréa, naquele campus de universidade: suas vísceras que contavam o tempo para não ter que se preocupar com mais nada, além... do trabalho... Mas não pode... O cinza manchado do prédio circular do Complexo de Delegacias brilha com essa intensa luz do sol, que torra boa parte da população de Salvador nesse horário... A tensão do cenário que se desfaz com a saída dos personagens em seus vagos pensamentos; não podendo antecipar nada além do próximo passo que têm de dar... Detetive Oscar foi para o IML a pé. Não longe do Complexo.

& - A porra já tá ligada! - O doutor Emanuel Pedral se volta para o ajudante ao seu lado. O jovem, meio assustado, olha as cabeças escuras que flutuam atrás da fonte de luz da sala de necropsias; dois 301


especialistas envolvidos no caso e o detetive Oscar estão ali presentes... Os dois homens comentam sobre quando quem chefiava aquele trabalho era o velho, bom e educado doutor Manoel Azevedo; aposentado e meio fora da realidade desde que a filha fora estuprada e morta em sua frente; o homem que assumira o cargo tinha também uma grande habilidade na área da patologia criminal... mas nunca a elegância e os modos do velho doutor... A filha era médica. Numa noite, voltando de um jantar juntos... Ele é viúvo; só tinha a filha como parente próxima... Os dois foram bordados quando estavam entrando no carro da moça; eram dois homens... Aparentemente tudo começara como um assalto, mas o impulso surgira no interior violento de um dos elementos, e ele resolveu violentá-la... Após anos tendo de dissecar corpos dilacerados pela loucura humana: inclusive o corpo de Ilena Fernandes; quando mais chocado ficou, e quando começou a pensar na aposentadoria... O velho doutor teve de suportar os gritos de agonia da filha enquanto era penetrada com violência pelo doentio monstro de mais um dia em Salvador... Não satisfeito, no momento do término de sua mórbida violação do corpo da jovem, atirou em seu rosto; e ainda suspendendo as calças vira com prazer o desespero do pai, ao cair de joelhos, ainda sob a mira do seu 302


comparsa, chorando as irônicas lágrimas de quem sempre viu o pior no final de um corredor de horror que começa nas ruas, e termina no necrotério... Nessa “mesa de trabalho”, onde agora trabalha o açougueiro Pedral, como é chamado pelos colegas, que adora seu trabalho e se orgulha do sorriso e do apetite que tem no final de cada “sessão”... O doutor Azevedo nunca mais foi o mesmo após o episódio. Foi também espancado e largado ao relento junto ao corpo da filha... Os bandidos nunca foram pegos... pelo menos por esse crime, pois o velho doutor nunca foi capaz de reconhecê-los... Talvez estejam mortos: um dia predadores, noutro dia presas... - “GRAVAÇÃO”... Estou cortando agora a região pélvica frontal. O estado exteriorizado da genitália da vítima já revelam um grande número de lacerações devido a um grande número de penetrações.. Como nas outras vítimas, se revelará uma quantidade tal de sêmen que se tornará impossível uma identificação positiva do tipo sanguíneo dos inoculadores... Inoculadores... Eu gosto dessa palavra... - Ele faz um corte do umbigo até a vagina do corpo. Algum sangue se faz corrente. Vísceras se expõem. Junto com a abertura da caixa torácica, feita pouco antes, revelando os pulmões ainda avermelhados e o pequeno coração 303


imóvel; e a abertura na parte superior do abdômen, expondo estômago, fígado e intestino;... a jovem sem cabeça, começava a se transformar num composto de pedaços de carne escuro; o vermelho forte do sangue coagulando; com pernas e braços muito brancos... Continua o açougueiro: - Jorge, meu jovem aprendiz... Você tem “inoculado” satisfatoriamente nesses últimos dias?... - O sorriso do homem de meia idade, considerado charmoso com seu cabelo sempre bem arrumado, preto ficando grisalho e rosto de muita presença e alguma simpatia... se realizava diante do encabulamento do rapaz... Assistia ao serviço e auxiliava o doutor; passando instrumentos e contando as mudanças com uma prancheta para o trabalho de embalsamamento do corpo após a autópsia: deve achar, o jovem, especialmente desconcertante ver a descontração do Pedral diante do corpo de uma mulher decapitada... Talvez a forma impessoal com que trata os corpos normalmente se torne algo mais acentuado ainda quando não existe nenhuma expressão “morta” para “observá-lo”... Ele apenas continua o trabalho, ainda rindo da brincadeira que fez com o rapaz... Do lugar lá de cima... Oscar pode ver também o desconforto dos dois homens com as atitudes do doutor Pedral durante o trabalho; ele próprio não se 304


importa... Liga-se em algo curioso a respeito de que expressão a vítima teria em seu último momento: em todos os casos foi constatado que a causa da morte foi a decapitação, e que pelo tonos muscular, estava consciente: seja como for, ela devia ter visto a própria decapitação com a expressão inimaginável do horror, o qual Oscar tenta imaginar agora... Já pode chamá-la pelo nome: Adriana; confirmada... E parte daquela lista... O açougueiro Pedral apenas fazia o seu trabalho... - ... Epa, Epa... Parem tudo... (atenção de todos)... O hímen da figura não se encontra em estado local comum... Ele foi rompido na primeira penetração... Temos aqui uma heroína: fodeu a primeira vez mais que uma prostituta na carreira inteira... - E de lá de cima veio a exaltação: - Seu comportamento é lamentável doutor Pedral. Que tipo de lição o seu ajudante poderá ter trabalhando com um indivíduo assim... - Assim como? - O trabalho está parado, e toda a discussão está sendo gravada... - Sua irreverência e falta de respeito não condizem com a posição que ocupa nessa instituição! - Não leva a mal não, mas se eu tenho de lidar com gente morta 16 horas por dia, é melhor que eu mantenha minha falta de respeito, se não os vivos é 305


que vão perder a importância para mim... - Não diga tolices... Seu trabalho tem... - Tem o quê, meu irmão?... Tem um cacete de um mal cheiro para todos, mas eu o adoro... Faço ele muito bem. Não me importa ser chamado de açougueiro... Você acha que meu respeito por essa pobre coitada vai ajudar em alguma coisa: duvido que o que quer que vocês inventem seja mais útil que o que eu faço aqui... Nesse monte de carne! E a discussão permaneceu; antes que a autópsia terminasse... E as conclusões que Oscar já esperava pudessem ser postas novamente no papel: um novo laudo, uma nova perícia, e as mesmas situações... Quem teria realmente ficado louco?: presenciar no seu mundo tudo que acontecera com o doutor Azevedo: a vida que leva o doutor Emanuel Pedral... Criminalistas e Psicólogos que pensam e repensam o crime: muitos homens que se deleitam com a destruição de uma mulher... Não quer se importar, mas como Luciano... também colhe muito da tristeza e horror dessa vida em que vive... O detetive Oscar. Deixa o IML, com o laudo na mão; ainda a pé. Está no meio da tarde e o sol queima o raciocínio desse detetive... Quanto desse tempo pode se passar com a resposta velada por uma violenta ausência: o que seria feito com as cabeças dessas vítimas fugira 306


de seu pensamento por um bom tempo, antes que notasse que as ditas deviam ser guardadas como troféus... Ícones do horror e do medo; a fonte da imaginação levava a se pensar como na margem da decência deve se estar para agir de tal maneira, por isso são chamados de marginais: o estereótipo de pobreza e crime não funcionaria nesse caso... até que o indivíduo ou indivíduos mostrassem o seu comportamento psicótico e obsessivo. Confiava, o Oscar, na imagem do horror nos rostos das vítimas... gravado para sempre na última expressão de olhos aterrorizados com a capacidade humana em ser... cruel. Terminava de atravessar uma das pistas do Vale dos Barris, indo no sentido IML - Complexo, quando ouviu a batida. Voltou os olhos para onde viera o barulho; os pensamentos foram cortados; um cruzamento entre a pista que vinha da saída do NINA e a que dava na Avenida Vasco da Gama. De onde via não parecia sério: dois carros, um motorista em cada carro, danos pequenos... Os guardas de trânsito se ocupariam... Mas um momento se passou e o homem do carro que vinha do Nina deixou seu veículo, e Oscar viu que o sujeito era conhecido: era um dos especialistas em criminologia do Instituto, e que estivera naquele lugar lá em cima, com o detetive, 307


durante a autópsia de Adriana... Oscar pensou: - “Que droga. Estou armado... Tenho pressa. Que droga, mas vou lá.” No cruzamento... O pequeno caos estava instalado. Os dois carros batidos cercados de curiosos. O engarrafamento que ensaiava suas primeiras buzinadas. Três guardas de trânsito presentes: dois, verificavam os dois veículos batidos; e o terceiro tentava coordenar o tráfego em volta do acidente. E os dois motoristas que discutiam: - Você precisa é trocar de óculos. - Não fale o que não sabe, meu senhor. Estou bem ciente de estar no meu direito da pista preferencial... Mas ninguém dessa cidade é suficientemente educado para saber obedecer qualquer Lei. - Eu obedeço a Lei, meu velho... Pago a porra dos meus impostos e dou de comer para minha família... E eu nem terminei de pagar a porcaria do carro ainda... Vem você e faz essa porra... - Contenha seus modos, senhor... Sua agressividade não vai desamassar seu carro, e nem o meu... - Que se foda... A culpa foi sua! - Nada disso... - Enquanto isso os dois policiais estão alheios à discussão, tentando preencher o papel da ocorrência: 308


- Você já fez um desses antes? - Ainda não. - Porra. Que negócio complicado... - Esses dois podiam calar a boca... - Atira neles, otário. - Eu até pensei nisso, mas pode ter alguém filmando. - Os dois riem no meio da confusão. O educado criminalista, mas já perdendo a paciência, diz aos guardas: - Vocês poderiam se apressar com isso. Eu tenho o que fazer. - E o doutor acha que nós não?!... - Tenho certeza que sim: rindo da desgraça alheia... - Acho melhor o senhor ficar calado. - De modo algum... Não existe mais ordem ou respeito para nada nessa cidade... nem transitar pelo tráfego livremente se pode sem uma mula velha vir e atravessar sua carroça em minha frente. - Mula é o cacete... (fala o outro motorista)... E eu dei duro para comprar meu carro. Se você acha carroça é porque teve sua porcaria importada de maneira duvidosa... Não teve de suar por ele. - O que o senhor está sugerindo?? - Eu sugiro que você cale essa porra de boca! - Ora, seu... - Os policiais intervêm rapidamente 309


na modesta investida do criminalista bem arrumado contra o homem de roupas simples e suadas pela tarde quente de trabalho, o que quer que ele fosse... Oscar está bastante próximo quando pode testemunhar isso: os dois policiais segurando o homem o qual ele conhecia (vagamente) do Nina, criminalista que está ajudando na investigação do caso; e um homem com a agitação e a revolta de um cidadão que se sente insultado e ameaçado... Ele está bem próximo, mas ainda não chegou lá... Lá: - Seu filho da puta arrogante. Que merda é você?!... - Sou alguém muito acima de você, seu porco. - Nesse, esse, momento, o homem se dirigiu para a porta do carona do seu modesto carro; e fora num relance inesperado que uma arma surgiu em suas mãos após emergir do interior do veículo... Seu rápido gesto não fora percebido por nenhum dos guardas; ele apontava para o criminalista, e iria atirar... Meio da tarde de um dia no qual qualquer coisa poderia ter acontecido a qualquer um; e aquele homem suado pelo seu trabalho, ou simplesmente pelo calor da tarde, possuía uma arma dentro de seu carro: nunca deveria ter imaginado atirar em ninguém, ou talvez o tenha; comprou uma arma, legal ou ilegalmente, para se defender de marginais na noite ou no dia da 310


Salvador de agora; ou talvez estivesse planejando matar alguém naquela tarde tão quente, e saiu com a arma que sempre manteve em casa; ou a estava levando para limpar; ou talvez só estivesse esperando aquele momento para não ter mais nada em sua consciência além de um monte de vísceras de um desconhecido expostas pela bala de seu revolver... Não se sabe... Mas o detetive Oscar pode ver tudo que iria acontecer... E já estava bastante próximo... Pegou a sua arma. Alguém disse: - Ele está armado! - Os dois policiais se voltam para o homem tardiamente. O criminalista olhava direto para o rosto do homem. O terceiro guarda de trânsito colocava a mão em sua arma e estava para sacá-la, mas sua visão era limitada. O povo todo começou a correr. Carros buzinavam e se desviavam: o terceiro policial quase fora atropelado. Outra batida quase aconteceu... E o tiro se ouviu em meio a já armada confusão no centro do Vale dos Barris... O corpo do homem caiu. Ficou deitado ao lado do carro ainda vivo por alguns minutos, mas o tiro que Oscar deu não deixou possibilidade de sobreviver. Morreu... Detetive Oscar correu na direção do criminalista. Os dois policiais o deixaram e sacaram suas armas, apontando-as na direção de Oscar, que logo se identificou. Ele chega; coloca a arma de volta 311


na cintura; coloca a pasta do laudo sobre o carro importado do criminalista; e fala: - Tudo bem com o senhor? - Obrigado, detetive... Aquele animal teria me matado. - Não duvide disso... - E Oscar sabia que seria a mais pura verdade, em mais um dia louco na Salvador dos seus dias: olha para o corpo do homem; tenta não lamentar, mas o faz um pouco... Mas mais ainda quando se lembra que consequências isso terá para o seu trabalho no caso... Nem sabia quem era o homem; teria de relatar tudo, dar explicações; se houvesse família: pior ainda... Sentiu-se um herói durante um longo minuto e meio, mas agora tudo acabou... Acende um cigarro; olha em volta; olha o corpo; vê o criminalista enxugar a testa de suor: quase foi morto; pega a pasta novamente... e pensa: - Que droga!”- Era a colheita de violência de mais um dia.

& Mais cedo, algo mais deveria vir a acontecer com esses poucos trágicos personagens da vida em Salvador... Dentre muitos estes são: o delegado Luciano, o detetive Oscar e o detetive Ronaldo. Este 312


último tomara um bom tempo de Luciano, confiante em uma sua inovadora ideia: algo mais na ação policial de investigação para se poder encontrar os maus elementos... Caminharam juntos pelo corredor circular; ao mesmo tempo ouvindo, e ao mesmo tempo já querendo ceder, pelas medidas de sua tolerância: pouco gostaria de ouvir nesse dia para lhe estragar os pequenos prazeres da manhã, mas nenhum ser humano está livre dos obstáculos de um dia vivo e livre nessa terra sem destino. Ronaldo lhe entregara a transcrição da conversa dele com o anônimo pela manhã, e dizia ele saber onde era aquele local, o telefone público, pelos sons, e pelo onde o corpo fora encontrado de manhã cedo... e algo mais. E Luciano disse: - Vá em frente, Ronaldo... Pode fazer. - “Que pode haver de mal em dar confiança a ele?... Que absurdo.” - E Ronaldo se foi, com sua teoria; no mesmo momento em que Luciano entrara em seu gabinete, tirara o paletó olhando para sua mesa, curioso; e lá estava o fax que Oscar mencionara, aquele o qual estava esperando: os nomes... Porém havia uma coisa a mais, que antes não deveria estar... Naquele mesmo dia o detetive Oscar fora afastado do caso. Sua surpresa teria de ser maior, mas o que era construído a sua volta não mais o surpreendia 313


tanto... Olhava Luciano com algum forçado descaso: não queria ter de explicar algo de tão inexplicável como um dia nas ruas de Salvador desses dias... O inquérito sobre a morte do tal homem o arrastaria por muito tempo entre relatórios e depoimentos... Apenas um incidente do acaso, poderia ser afirmado entre os dois policiais que se olhavam, mas no final da passagem por aquele gabinete, e na entrega de sua arma para a promotoria, como prova, e até o seu desvelamento diante de um tal “incidente” tão pouco oportuno... seria um desfalque num time feito basicamente por um homem só... E Luciano ficaria mais só ainda... - Foi mal, doutor Luciano... - Uma lástima... Oscar... Que porra! - Você ainda tem Ronaldo... Luciano sorri divertidamente... - Não brinque, seu porra... A última foi que ele decidiu carregar um pessoal da Técnica para tirar impressões digitais dos telefones públicos da região: para ver se acha o anônimo da madrugada... - Oscar repete o sorriso que foi de Luciano. - Quem sabe dá certo... No máximo ele encontra umas duzentas pessoas para interrogar. Só! - Saia logo daqui, Oscar... Já que você não vai poder ajudar, não atrapalhe também. - Claro!... Aqui está o laudo. 314


- O nome bateu, não foi? - Foi. - O açougueiro descobriu alguma coisa, além do “normal”? - Na verdade sim... Descobriu que a moça era virgem! - Os dois policiais se olham com estranheza e cumplicidade... No momento em que entrara, Oscar sabia que algo já estava completamente errado, mudado, desde o último instante em que ali estivera... A notícia do tiroteio e morte no meio do Vale dos Barris já tinha corrido meio mundo; só se passou meia hora; Luciano ficou sabendo ao mesmo tempo que liberava Ronaldo para fazer o tal infeliz serviço, depois de muito ter aguentado as teorias do detetive... Entusiasmara-se com a possibilidade de ir mais fundo; seu pequeno debate com Oscar pela manhã o fizera querer tomar um atitude, uma iniciativa... mesmo que pouco “inteligente”... Luciano deixou-se levar. Seria algo muito mais sério o ar do gabinete impregnado pelo cheiro de nicotina e mofo... Luciano vira o fax deixado por Oscar e o guardara: já conhecia o valor daquelas coincidências: dois nomes são apenas dois nomes até que uma mente como a tal qual vinha a aparecer pudesse erigir suas lembranças do passado na transformação das fantasias psicóticas do presente: numa escolha que se torna o pesadelo de seis 315


mulheres, seis nomes, seis famílias... Porque seis?... Mas também ainda não era isso: o que Oscar vira nos olhos de Luciano quando entrou meio acanhado no seu pequeno mundo da lei e da bagunça era o mais próximo que aquele rosto frio e inexpressivo podia chegar... do medo. Oscar nunca saberia as razões dessa loucura, mesmo que antes voltasse ao serviço externo... Pelo que viu e fingiu que não viu naqueles olhos escuros, o detetive quase havia esquecido que tinha acabado de matar alguém... Porém, logo que foi visto, ouviu: - Que porra você pensa que é, Oscar... Dirty Harry?! - Não mais havendo outro teor senão os percalços de uma lei humana e contingente, que não entende o ser de sua própria criação e atuação... Oscar se despediu e foi seguir mais um caminho... Mas Luciano... Foi o momento em que o seu interior estava sendo invadido. Por curiosidade nele mesmo... pois esconde de si mesmo o que mais teme no seu interior: o impulso era um segredo, da grave culpa que carrega por ter feito o que fez; por ser o que é, sem conseguir realmente se reconhecer, sob controle... até que alguém de fora o reconhece, e o chama pelo nome: O bilhete dizia: “Sei o que você é. Deixe-nos terminar nosso 316


trabalho.”

Os olhos do delegado se encheram de algo que há muito não mais falava de ressentimento por ter no interior o que faz... A expressão do que realmente era o ser do homem/policial desvirtuado de qualquer coisa aprendida como sendo o certo ou o errado: quando o valor da vida humana não parece interessar tanto quanto o prazer de destruí-la; e ele sentiu prazer... sabe disso com a extrema clareza da dura consequência que tem de carregar na consciência... sempre. Luciano se via no pouco espaço físico de seu gabinete, de onde muito ocorrera em seu aprendizado e amadurecimento como policial, fantasmas o rodearam com berros de vingança, rasgando-lhe o peito e as vísceras com a corrosão do aço derretido... apenas pela presença de algumas poucas palavras, sem o seu total significado, talvez: um palpite por seu comportamento tão obsessivo e obstinado... Criou-se a fama; um estranho mundo lá fora o aguarda com a alma do assassino estando presente; e o seu forte interesse o trouxe a isso... A selva nessa cidade que não faz sentido... Luciano é o colhedor da tristeza que recolhe o pior de todos do seu mundo para ver o que há de pior dentro de si. Levanta o pequeno bilhete no ar e acende 317


seu isqueiro por debaixo da folha de papel branco. A chama rapidamente toma conta da frágil folha de celulose; tomando o aspecto negro das cinzas que logo ele deposita dentro do cinzeiro... Aproveita para acender um cigarro... Observa ambas as fumaças do cigarro e do papel queimando tomando conta da sala... Sua voz no interior, quase um arpejo, reconhece que tem problemas: causas sem solução de propósitos sem sentido... A contradição em sua vida; a morte em cada esquina; o impulso violento que controla os nervos de repente e mais um corpo amanhece trazendo o cheiro da podridão da noite, do homem, do ser humano, para os olhos amedrontados de mais um dia... - “Devo estar realmente perto... Que vida louca que não escolhi... Nem mais sei o que sou... Um policial?...”

O Olho do Observador Mais dois dias que se foram. A investigação se encontra no melhor ponto do termo: estagnação. Luciano se recobria de uma inexplicável ausência de interesse no que se tratava do que devia ser feito e aferido... Delegara dois novos detetives a continuarem as investigações: a situação constrangedora que afastara Oscar do caso, não o afastara por 318


completo dos procedimentos internos... porém algo continuava a não mudar... Os dois novos detetives e ele resolveram pesquisar por garotas chamadas Déboras e pertencentes às características das vítimas: a possibilidade do nome seguinte da lista de algum ser humano doente era o melhor caminho para tentar fugir além dos fúteis procedimentos comuns da investigação... Luciano simplesmente dissera: “vão em frente...” Oscar ficou impressionado, e surpreso. Apenas indicou dois homens... para se fazer o que todos fazem. Enquanto isso Ronaldo estava passando a maior parte do tempo na sede da Polícia Técnica, no Nina. Sua ideia de coletar impressões digitais nos telefones públicos tinha alcançado o fim de sua primeira fase: a coleta... Foram cerca de 35 impressões claras, em quatro telefones, ao todo... Agora seria o trabalho de averiguar as identificações e em seguida, talvez, surgir com algum nome para ser investigado... do possível anônimo que ligou naquela madrugada. E o delegado Luciano... É como o impulso de todo maldito animal que recobre a Terra viva e mata uns aos outros quando o primeiro se sente acuado. Nesses anteriores dois dias Luciano ouvira as vozes acusadoras dos piores elementos de toda sua pouca existência: as vozes de 319


um interior que ainda ressoava a estranhos sons que lhe relembravam a todo momento o que ele era... Seria a sua parte da alma que domina a noite do homem que surgia para lhe dizer que alguém mais sabia de seus crimes, seus pecados de mórbido prazer esquecido pela culpa... por ter... há muito tempo... matado... pessoas. Não são os bandidos, maus elementos, que de vez em quando tem de apagar: isso já é parte de seu trabalho, de sua rotina... Pensou em um desses momentos, desses dias, sentado em seu gabinete, que já faz até algum tempo que não o faz... Porém ainda tinha medo, de si mesmo no primeiro momento; e do eco das palavras no bilhete logo a seguir... O telefone toca, nesse momento, hoje, em seu gabinete, ainda: - Delegado... É uma advogada chamada Andréa Gouveia. - Eu atendo!... Advogada... - Delegado... Como vai... esse belo som de sua voz? - Andréa, você às vezes me surpreende... O que posso fazer por você? - Se lembra que eu disse que papai queria vêlo?... - Oh, sim... - Pois bem, como você não ligou... ele pediu que eu ligasse e marcasse com você um encontro... 320


- Você vai marcar um encontro comigo, advogada?... - Não se faça de besta, delegado Luciano... Um encontro de vocês dois. - Luciano percebia-se sentindo uma estranha tranquilidade ao falar com aquela voz amiga do passado ressente: uma boa mistura, como ele poderia dizer... de novidade... com um bom tempo. Pensa o que o doutor Gouveia poderia querer com ele; mas diante das circunstâncias pouco aprazíveis dentro da própria delegacia... por razão dele próprio, e ele sabendo bem disso... e a razão porque... Não via mal algum... - É só dizer quando e onde. - Muito bem, delegado. Ficou marcado um almoço no dia seguinte.

& No dia seguinte... Luciano apareceu pela manhã no Complexo com o seu melhor terno: uma postura sempre tão desleixada com relação à estética, e a sisuda aparência de quem sempre tem na “mira” o assassino mais cruel de toda Salvador, estava tudo em nome de algo não visto. Como é, uma suave fuga para o outro lado da lei... Ao passar pelo corredor circular, notado por todos, e dizendo “bom dia” a alguns, 321


seu caminhar tinha passos firmes, mas com algo de hesitação... somente percebido por ele: sentia-se meio perdido fora do seu traje para sempre conhecido do policial sério e obstinado... Eram os pensamentos confusos, que queriam ser esquecidos por algum tempo, até que a solução pudesse transparecer... e talvez não...Aproximando-se da entrada de seu gabinete viu um dos detetives (novos) do caso Headhunter sair de dentro do mesmo ambiente; sua expressão, ainda muito séria, atingiu o rosto do outro policial... Também ficou surpreso com o traje do delegado... - ... Boa dia, doutor Luciano... Eu vim procurar o senhor para mostrar o que a gente conseguiu a respeito do nome que Oscar nos deu: Débora... Foram... - O detetive dirigia o papel na direção de Luciano e ao mesmo tempo já revelava o total de seu conteúdo... Luciano logo rejeitou o papel... - ...mais de cem... - Luciano o olhava com aquela estranha mistura entre desinteresse, desprezo e impaciência. Esforçava-se para não se manter no verdadeiro teor do trabalho para realmente se importar com as informações que lhe chegavam... Primeiro sabia que em menos de nove dias outra vítima iria aparecer cheirando à carne morta no amanhecer; e seu nome seria Débora... Não sabe porque e tem de 322


resistir a si mesmo para não continuar perguntando: o propósito, a razão. Porém, segundo, tem absoluta certeza de que alguém ali de dentro o está coagindo, ou querendo coagir... desde o bilhete em sua mesa... Por isso... - Imagino que vocês já têm um brilhante plano para vigiar e proteger todas essas mocinhas antes que os monstros do mal venham e lhes tirem a alegria... e a cabeça. - Não, senhor... Na verdade achávamos que poderia nos ajudar com alguma ideia do que fazer. - O delegado Luciano respira com alguma profundidade dando um meio sorriso impaciente; passa a mão direita pelo rosto de barba bem feita e rugas precoces; olha atentamente o detetive... Distantes sons são ouvidos pelo corredor do Complexo. Diz: - Acho melhor vocês aprenderem a se virar.. Pesquisem mais. - E o delegado entrou em seu gabinete. O detetive se observava meio perdido antes de decidir que deveria apenas seguir a ordem do chefe. Saiu dali andando lentamente... No papel havia uma lista de 174 mulheres entre 23 e 25 anos, residentes em Salvador a maior parte da vida, com registros de boas moradias, carreiras notórias em várias áreas, etc... Porém ainda poderia se considerar nada se imaginar que o critério para escolha da vítima 323


pelos assassinos pode ser qualquer coisa entre essas todas 174 possibilidades...até mesmo nada. Quando detetive Oscar soube da reação de Luciano sabia que alguma coisa estava faltando... E talvez o delegado soubesse, mas não queria dizer... Por que?... Foram os momentos de desânimo que tomaram conta dos dois novos detetives do caso, antes que Oscar lhes dissesse que o que quer que tivesse de ser feito, teria de ser feito o mais rápido possível... Pois então os dois logo voltaram a pesquisa: a meta era diminuir as probabilidades de 1 em 174, para 1 em 20... no máximo... em, no mínimo, cinco dias. Quase meio-dia desse mais um dia de sol na terra da alegria: Salvador, Bahia... É da tênue semiescuridão do gabinete do delegado Luciano que surge a ausência de razão pela alegria: Salvador está ao redor daquela pequena sala, mas a sua escuridão noturna, a roupagem das criaturas da noite de toda a doce cidade ilusória, o verdadeiro caos de tempos como agora... está em um: está nele assumir o papel de policial correto e vigilante da lei; como também está nele as dúvidas e contradições de um homicida oculto, que desconhece o seu opositor... Controlar a cidade louca lá parece tão fácil quando é a violência a principal linguagem de todos com quem tem de lidar normalmente; ou mesmo os inocentes... como 324


Fernando Veinarde, cujo o único crime fora ter se apaixonado pela mulher errada... duas vezes... “Pobre miserável... Está melhor morto.” Porém agora teria de lidar com criaturas, literalmente, como ele: jogadores, artifícios de verdade... e eles já possuem um dom mais: o conhecem, e ele não a eles... “Será que não?” Já a hora do almoço se faz, e Luciano tem um compromisso. Veste o paletó, e olha ao redor o horrendo pequeno gabinete, parecendo cada vez pior a medida que mais tem de conviver consigo mesmo... Sem a luz fluorescente fica mais escuro ainda... Vai. Novamente no corredor, sabia Luciano que estava por caminhar em novos lugares além da sua curiosidade, desejos e segredos. Por estranha ironia do seu obscuro interior, após o bilhete, o pensamento de rever a “advogada” Andréa lhe agradava muito mais que o próprio mistério que envolvia o convite do pai... Pelo tom do encontro marcado com o renomado advogado da cidade de Salvador, não sabia se a intermediária iria ou não estar lá... mas sem dúvida gostaria que sim. Andando um pouco mais pelo corredor circular, Luciano é abordado por um entusiasmado detetive Ronaldo, que diz: - Doutor Luciano, o pessoal da técnica conseguiu doze impressões positivas... E já foram 325


todas identificadas. - Que bom, Ronaldo... Continue com o bom trabalho. - Luciano tentava seguir em frente, mas ainda era retido por Ronaldo... - São só doze: vou verificar cada um... e descobrir a nossa testemunha. - Tenho certeza, Ronaldo... Mas agora eu preciso ir. - Sabia, com absoluta certeza, que Ronaldo deveria ter tomado conhecimento do que ocorrera da outra pesquisa... dos nomes... Parecendo sempre existir uma competição entre Ronaldo e Oscar; porém isso não mais interessava Luciano, que via apenas o agir dos dois, mas sem demonstrar o possível, e coerente, interesse nos acontecimentos e descobertas... Há a preocupação a mais... que surgia de outro lugar. - Ah... Tudo bem... - E mesmo Ronaldo consegue perceber o comportamento alienado do seu delegado: imaginaria ser as complicadas políticas internas que corroem a instituição para qual trabalha, mas sabe que Luciano não é o tipo de se submeter... se assemelhando muito mais ser uma insistente dúvida interna. Luciano se vai; deixando Ronaldo e seus doze nomes para investigar: teve muita sorte. Faz-se saber, Luciano, que um fato mais lhe vem corroendo os pensamentos já tão atormentados 326


por ele próprio na voz do acusador: é o que faz dele um investigador, e que conhece a beleza e o horror das coincidências da vida... Sai ao sol de meio dia da cidade de Salvador: causticante como o próprio inferno em que parece se tornar a cada dia para o policial; coloca os óculos escuros e acende um cigarro... O último nome da lista de vítimas do assassino do Rio de Janeiro: Andréa. Mais do que nunca, Luciano se sente sendo observado.

& O restaurante de luxo; totalmente acarpetado. Que ironia um lugar onde sempre pode cair sujeira no chão ostentar o luxo com algo tão inútil quanto carpete... vinho... Não mencionando a poeira que deve acumular e se tornar bastante anti-higiênico comer nesse lugar... com mais ácaros que o normal. Luciano pisava nesse chão com seus modestos mocacins de policial experimentando a sensação de ter atravessado os portões de outro mundo: talvez até o inferno... pois a cor predominante no local é o vinho. Um ambiente meio escuro; projetado para ser aconchegante e reservado, mas para o pouco avisado sobre estas coisas do mundo dos ricos, Luciano... era 327


apenas um local não muito convidativo às refeições, e sim à politicagens muito bem arquitetadas. Falando com o maitre, e dizendo seu nome e com quem deveria se encontrar, conseguira avistar rostos conhecidos dos jornais e das telas de TV: deputados, vereadores, secretários do estado e do Município, jornalistas, artistas, talvez um contraventista, porém ele não quis ter certeza... e um dos advogados mais conhecidos da cidade, com quem estava por se encontrar, “A pedra”... doutor Gouveia. - Doutor Gouveia... Foi uma honra o seu convite... - O homem se levanta para cumprimentálo. Gordo, rosado, muito bem vestido, a caminho de se tornar totalmente calvo: um símbolo de “bem sucedido”; pouco mais baixo que Luciano... O advogado (famoso) pai de Andréa era o ser da simpatia... - Deixe esse negócio de doutor... Você só não é meu genro porque não quer. - Luciano se senta. De frente para o seu interlocutor. A colocação o deixara infinitamente deslocado, mas tinha conhecimento daquela verdade: só não imaginava que o pai de Andréa fazia tanto gosto daquele “relacionamento”... Delegado e advogada?... Não parece exatamente o par perfeito aos olhos do delegado; já a advogada, e, aparentemente seu pai... não pareciam se importar... 328


Porém Luciano logo se tranquilizou: além de conhecer “A pedra” dos meios jurídicos, também fora aluno dele durante um ano, na faculdade; e sabia do espírito de poucas medidas do doutor... quando fora do tribunal... Vira-o atuar numa audiência pouco antes de assumir o cargo de delegado; e como todos, ficara impressionado com o poder do homem, da Pedra, de carregar um mundo de mentiras para se tornar a verdade mais absoluta: e era, pois o réu fora absolvido no final do julgamento... inocente... mesmo que não fosse. Um homem admirável... Esse a sua frente. Que já comia sua salada... antes dele chegar. Continuam... - Você me superestima, Gouveia. - Você é que se subestima seu otário... Ela tem andado com um sujeito antipático... Um escritor, que acha que tem uma carreira e que a está começando. O debiloide nem ata nem desata; vive lá em casa... e não tem dinheiro nem para pagar um motel decente para minha Déa... - Por falar nela... Ela vem ou não? - Mais tarde, meu caro delegado Luciano... preciso falar com você a sós antes. - Eu estou até curioso sobre isso, Gouveia... A razão do encontro... - O garçom aparece e ambos fazem seus pedidos. - Vou falar claro com você, meu amigo... O 329


pessoal tem um grupo que faz umas reuniões de vez em quando... e gostaríamos que você pertencesse ao grupo... - Que pessoal, Gouveia? - O advogado termina sua salada e limpa os lábios, enquanto Luciano toma lentamente a água que estava na mesa. - Bom, somos um grupo de homens muito bem relacionados, com atuação em várias áreas de grande importância da sociedade... - Como assim? - Advogados, juizes, médicos, políticos, jornalistas, professores, universitários, economistas, publicitários, empresários... Assim, esse tipo... - Não entendo... O que vocês fazem afinal? - É como um clube de elite, Luciano... Pessoas de renome na sociedade que gostam de ter um lugar onde possam ser elas mesmas sem o julgamento dos outros... Se você me desculpa o termo... Inferiores ao nosso nível. - Há quanto tempo isso existe? - Tem uns sete anos, eu acho... Quase oito, na verdade. - E como é que eu nunca ouvi falar disso? - Se liga, meu amigo... Não é um Country Club... Nós pesquisamos e prospectamos nossos associados. 330


- Que loucura... Eu nunca imaginei algo assim... - Não é loucura as pessoas quererem encontrar um grupo ao qual se ajustem. De modo algum. Luciano pensou um pouco nas palavras do advogado. - É... Talvez... Mas mesmo assim... não é o tipo de “clube” que se vê todo dia. - E nem nós queremos que seja assim. - Tudo bem... Mas por que eu? - Nesse momento o garçom retorna com o carrinho com os pratos escolhidos pelos dois em cima. E começa a servir. - Eu já te respondo... - E faz um gesto com a mão. Coloca o guardanapo no colo enquanto o garçom continua a preparar o seu prato. Luciano faz o mesmo enquanto aguarda para ser também servido... Normalmente não teria cerimônia em “invadir”o carrinho e preparar seu próprio prato de refeição, mas toda aquela conversa sobre elite, e todo resto o fez esperar pacientemente pelo serviço do garçom... Mais tarde o maitre viria para perguntar se estavam sendo bem servidos e tal... Luciano conhecia os procedimentos desses locais caros e luxuosos, mas na verdade os detestava... principalmente porque a comida nunca era das melhores: tudo era só ostentação para seus “inocentes” olhos policiais... Pensa como Andréa não se encaixa de modo algum nesse cenário: sempre simples e alegre no tempo da 331


faculdade, ia a todos os lugares e com todo mundo sem a menor aparente restrição... Na verdade era ele, Luciano, quem nunca ia em lugar algum: além de estudar e trabalhar... não se permitia relacionar-se com ninguém, e os eventos sociais apenas o faziam querer se afastar mais... lembra de Carol e seus amigos de faculdade: todos sempre unidos... exceto pelo pobre Fernando... A lembrança do enterro de Carol invade a sua mente: nunca houve nem um dia mais infeliz em sua vida antes... e desde então os dias só tem se revezado entre o mesmo e o pior... Sua expressão está completamente alterada e distante: uma profunda e fria angústia parece engolir seus olhos, e sua visão vai mais longe que qualquer um conseguiria imaginar... O garçom termina de por seu prato... - Luciano... - Ele retorna. O garçom se vai. - Sim... Então...? - Bom, respondendo à sua pergunta... Nós o consideramos... honesto. - Como assim... honesto??? - É honesto... Você é o único policial conhecido pelo público como um herói... e não um espancador de “inocentes”, ou chacinador de famílias de menores delinquentes, ou exterminador de bandidos... Além do mais: temos conhecimento que você nunca aceitou suborno, e nem nunca fez nenhuma concessão a 332


bandido algum... - Certo... É verdade; mas isso não faz de mim nenhuma elite... - Agora você está se subestimando ao extremo meu caro. Você não é ingênuo, nem burro... Espero que não... Você não vê?... Hoje em dia as pessoas que mais se diferenciam são as honestas. São até taxadas de desajustadas, de ineficazes para a sociedade de consumo e competitiva... Pessoas como você são raras: ícones... Admirado por ser o que mais ninguém que ser: honesto... - Suas palavras são realmente entusiasmadas, Gouveia... Mas ainda não explicam o convite... Se você tivesse me convidado para ser candidato a alguma porra, eu até entendia esses argumentos sobre honestidade... Mas para entrar nesse clube que você falou, você não precisa de alguém com boa imagem pública. - Você é muito esperto, delegado Luciano... Não admira estar na posição em que está com tão “pouca” idade. - Obrigado pelo... pouca idade. - Em parte o que você diz é verdade, mas um outro lado você parece que ainda não captou... - Que lado? - Somos um grupo de pessoas influentes, 333


mas que quer privacidade... Lembra dessa parte?... Você deve saber muito bem o que é carregar as responsabilidades por tantos atos... influentes... Não sabe? - É, sei sim... Sei muito... - Façamos assim: eu vou te levar a uma de nossas reuniões abertas... As do grupo mesmo são fechadas... E ai você me diz o que acha... Tudo bem? O doutor Gouveia desvia os olhos por um instante do rosto de Luciano. Este percebe a repentina mudança de atenção. Responde... - Tudo bem... Não tenho nada a perder... - E se volta para a entrada do restaurante, para onde Gouveia havia olhado, e vê o que ele tinha visto: Andréa estava entrando, e já estava vindo a caminho dos dois. Estava linda. Sorria, e olhava para Luciano da maneira mais apaixonada possível: de entusiasmo estampado numa face perfeita... - É isso mesmo, meu amigo... Não terá mesmo... - A pedra percebe a hipnose do policial pela sua filha, e a felicidade nos olhos dela... Estava realmente linda e radiante: uma maravilha de juventude e esperança. Vê que não tem mais função nesse tão magnífico cenário que ele próprio montou; e afinal sua função, ele já cumpriu... - Bom, Luciano... Eu tenho que ir... Déa lhe fará 334


companhia pelo resto do almoço... E se o almoço se estender pela tarde... (o doutor coloca a mão no bolso e a retira em seguida)... aqui estão as chaves do meu apart: é todo seu... - Luciano o olha com desconfiança e ironia. O velho Gouveia dá um leve e subentendido sorriso de cumplicidade com os pensamentos que pairam nas cabeças de ambos... Luciano sabe que a Pedra é viúvo há algum tempo, e imagina quantas “mocinhas” aquele velho gordo escroto e simpático já não deve ter traçado naquele mesmo quarto de aparthotel, o qual a chave lhe era oferecida... na intenção da própria e adorável filha do dono da mesma chave: Andréa, que acaba de chegar... - Rapazes... - E Luciano mais uma vez pensa: “O que tenho mais a perder?...” - Pensamento que se repetirá... A pedra vai embora logo após os cumprimentos, e ficam só os dois.

& Aquela tarde se tornaria a última melhor lembrança na vida desse Luciano... Muita coisa além do seu controle viera e viria pela frente e bem antes dele encontrar as respostas que não queria mais perguntar, porque invariavelmente tratavam dele 335


próprio: todas as questões. Viver teria sido o mosáico das tristezas e decepções de um ser humano que por força das próprias escolhas... era um policial. Após aquele almoço realmente foram para o apart-hotel onde o velho e esperto doutor Gouveia tinha uma confortável suíte... Andréa, em parte, conhecia a natureza e os planos do pai: por isso não foi difícil concordarem, pai e filha, delegado e advogada, em estarem mais tarde lá, naquele local... fazendo amor... Pobre do escritor que não tomara uma decisão... Andréa estava nos braços de Luciano agora. Como há muito tempo ele não sentia, o sexo tão fantasticamente permeado de velhos sentimentos e sensações, e mesclado com as novas descobertas, se tornava o ritmo que seu coração não encontrava desde quando estivera com Carol pela última vez... O corpo de Andréa se encontrava com o dele de uma maneira que já imaginava impossível conceber dentro de uma relação sexual: flutuavam os dois um sobre o outro com vontades e desejos que não precisavam ser expressos com palavras... como nunca foram... ações e “barulhos” que se verbalizados se tornam sem o menor sentido para os amantes... Coisas que com um beijo na boca tão prolongado quanto a angústia de uma lágrima perdida na chuva, interminável calor... 336


se tornam tão claras quanto o aroma que exala do fogo que queima no interior da Terra: óleo de subsolo e suor da pele; e lava quente que jorra trazendo o enxofre que vem do inferno... o cheiro de esperma... ...Ações constantes e contínuas que lembram o medo da morte, com intenso louvor a mesma: desprezando-a em nome do prazer que os corpos geram... E Andréa e Luciano se tornam um só. Durou mais a tarde do que qualquer um os dois poderia imaginar. Talvez Luciano já previsse o que viria pela frente. Talvez, também, Andréa quisesse se dispor a conquistar Luciano, com quem sempre se imaginou estar como está... Estavam enlaçados um ao outro no centro da cama; quando a noite escura começava a invadir o ambiente... Do lado de fora, muito distante, soavam os sons paranóicos da hora do rush em Salvador... O fim de mais um dia, o qual Luciano, nem Andréa, queria que terminasse.

& Uma noite realmente escura que parece separar o mal do bem. Não há lua. Ela também se esconde no breu total que engole toda Salvador dos loucos e vadios: criaturas revestidas de sombras que atravessam o caminho dos mortais que se aventuram na cidade 337


desses dias... O bairro se chama Pituba. Há horas da madrugada tarde traz figuras que antes não existiam senão quando após serem descritas pelo personagem que as vê... Parte integrante da escuridão... De uma avenida que se prolonga além da visão uma rua se faz após uma curva. O asfalto escuro reflete umidamente as luzes tristes de postes solitários; longe uns dos outros; poucos ainda funcionam: sobreviventes de outras noites escuras como esta... Ao longe sons se fazem presentes; vidros que se quebram; medos irreconhecíveis que assombram como o véu negro que recobre o rosto da morte... Gritos agudos mais longe; gritos estridentes mais perto; familiar presença de um louco que procura a sua verdadeira e real identidade com a realidade... Esse ser, esse personagem, caminha por esta noite pela primeira vez, e se sente em casa. Seus olhos captam o horror do desconhecido e seu faro pressente a revelação: o “o que” dessa vida sem sentido... Perdeu-se um pouco do que o considerado o normal, mas se lembra do que tinha em mente quando para cá veio. Não parece ser novidade ter em mente uma vida que se desfaz em sua frente: alguém nasce, alguém morre... qual a diferença?... é apenas quem mata e fica vivo é que sabe... O cheiro da morte em seu ar que respira... O perfume doce de um sangue novo, que não é o seu: viu e reviu esse sangue jorrar em sua 338


imaginação; planejou sem medo e sem perdão... Por tudo aquilo que resta nos pulmões de um último ar da sanidade daquele a quem ele observa numa fantasia, o sonho que vê na realidade... para esperar o momento certo de se vingar contra si mesmo por não ter feito isso antes... com qualquer um, qualquer um outro... Mas que será este. Outro grito na noite, na rua, em qualquer lugar: o personagem vira a esquina da avenida no bairro da Pituba... e espera... Seus olhos conseguem captar a displicência de sua presa. Já vem estudando seus hábitos há dias... desde o momento que a onipotência dessa mesma vítima tomou a forma de um tão grande desprezo pelas qualidades do predador que lhe aguarda... Consegue se lembrar com perfeição daquele sujeito que agora deixa o pequeno prédio, o mesmo local onde o ocorrido aconteceu, e caminha sem pressa na direção do seu carro: tudo é novo e bem arrumado: o carro, o terno, a pasta de trabalho, os sapatos lustrados, o penteado de executivo... Um perfeito espécime da qualidade total de Salvador do novo mundo... Recorda do sujeito olhando-o de cima para baixo, superior, estudando-o, querendo julgar toda sua capacidade através de um mínimo olhar. Também fizera algumas perguntas sem sentido; situações hipotéticas devotadas ao consumo 339


exarcebado. Era uma sala branca; aquele sujeito de pé, com toda sua impecabilidade no vestir e no agir, aguardando para toma-lo pelos erros do nervosismo, da espera cansativa que foi aguardar pelo momento da entrevista... E aquele olhar arrogante, presunçoso, tornando e fazendo-se sentir, o personagem, num incapaz... com a revolta pela intolerância dos novos tempos correndo-lhe as veias... e fazendo-o desde aquele momento planejar os atos de agora... Observa... A história de um predador como este não importa, quando o ato que dará sentido a sua vida se torna a apresentação de toda justificativa necessária para a total falta de sentido que fora tudo mais antes: se tornará a notícia, o centro, a criatura da noite que salta aos olhos inocentes do dia... então não precisa realmente de um passado, pois a razão já se deu o suficiente, durante a vida toda, não agindo como vai agir sobre esse outro ser... E é nos pensamentos finais, que escoam tudo mais para o final sem sentido; quando o homem se aproxima de seu automóvel, talvez pensando em chegar em casa e não pensar em mais nada, pois o dia de trabalho foi longo (são 2 da madrugada) e extenuante; ou talvez pensando com desprezo na pessoa que ele humilhou hoje; talvez nada além do fato de ir embora... É que o personagem quer atacar e o salto do coração se torna o ato violento que 340


vem de seus punhos e vibram a vingança: esqueceu de tudo...

& O cheiro do amor que fora feito pelo sonolento casal recobre a luxuosa suite com um amanhecer suave, cheio das despedidas que logo virão para usurpar-lhes do templo do prazer e trazer Luciano para o despertar com o celular tocando insistente, como que sabendo que o casal não quer realmente acordar e ser o que realmente são: seres humanos, diferentes, não um dentro do outro se tornando um só... apenas criaturas das circunstâncias e ilusões da vida, desse mundo e dessa cidade... São cinco da manhã (mais ou menos). E Salvador morre mais um pouco, de homicídio... E o delegado de homicídios precisa ver o defunto! - Que porra de beep filho da puta... Devia ter desligado... (Luciano se levanta, e sentado na cama pega o telefone da mesinha, e digita.)... Que horas é essa?... (Pega o relógio.)... Mas que merda é essa?... Alô... É Luciano... O que foi?... - Está nu sob os olhos semi-cerrados de Andréa: a gostosa exaustão de sexo bom da tarde e da noite passada... Sente-se tão bem que tem medo, a advogada: nunca pensou que pudesse ser assim; como se fosse o carinho da última vez de 341


um condenado; cada segundo daquela maravilhosa atenção de um homem por ela: a mulher que vibra às lembranças, e sente uma mistura de medo e êxtase no interior de suas entranhas; com o coração disparado; e o sexo parecendo sonhar em querer mais... Luciano desliga o telefone, fica de pé e se veste rapidamente... sob o olhar doce e ardente de Andréa, que pergunta... ainda semi-descoberta do lençol, sem pudor de se mostrar ao amante... nunca... ama-o. - O que foi?... Por que você está indo?... - E para Luciano, que temia despertar algo distante; sentia-se perto de algo muito melhor, que parecia ter esquecido... Olhava e via algo semelhante ao sentido de uma vida velada para ele, e que, naqueles momentos, mostrou cruelmente sua face... para depois nunca mais reaparecer. O policial, novamente um policial, se curva para a mulher que lhe presenteava a visão com uma nudez perfeita, se ajoelha na cama como numa última prece... e a beija, num beijo quente... morno... do amanhecer sem culpa totalmente fora do mundo real e monstruoso que espera do lado de fora... Ergue-se de novo. - É uma emergência... na Pituba. Preciso ir... Parece que minha presença foi... exigida.

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& A violência aparece na cidade no mesmo momento que a luz do sol começa a brilhar com força saindo do fim da madrugada para o novo dia que conta mais, e menos, um na contagem regressiva de todos que aqui vivem... Salvador abre olhos cheios de remela, e no embaçado da neblina do sono mal dormido encontra mais um corpo estendido na rua... As pessoas que surgem na rua se aglomeram diante da crescente aglomeração; não se pode saber quem foi a primeira pessoa que parou, viu o corpo, e ficou parado lá... A polícia também surgiu... Passos de sangue atravessavam o que fora a calma rua na direção do prédio logo em frente do local onde ainda jaz o corpo, agora coberto por um lençol “branco” já totalmente ensopado do vermelho vivo do sangue quente que esfria ao invadir da morte naquele corpo: as marcas da violência se lançam em jorros por toda parte: no carro que era do indivíduo, na calçada, no asfalto... Em todo lugar não há melhor símbolo dos extremos da violência do que as manchas de sangue... A polícia isolou o local onde descansa o morto, e também já cercou o prédio para onde os passos ensanguentados se dirigem... mais cedo quando a primeira viatura chegou, logo o caos se instaurou 343


institucionalmente, descobriu-se que o possível causador daquele pesadelo personificado de sangue e carne num terno alinhado caído morto lá no chão de uma rua da Pituba, perto do seu carro... Que este tal, estava com um refém dentro do prédio para onde as pegadas de sangue se dirigiam: era a sede de um conhecido estabelecimento de ensino de línguas estrangeiras... Mais tarde, conhecendo-se a identidade do defunto, descobriu-se que também era ali, naquele prédio, para aquela conhecida escola de línguas estrangeiras, que ele trabalhava... como chefe de departamento pessoal do departamento de marketing... O refém era o vigia noturno. O nome do falecido era Alex Botelho de Castro. O suspeito estava armado, pois disparara dois tiros de aviso quando se dirigiu à polícia e disse que estava com o guarda noturno como refém, o qual fez som de ser verdade... Porém a causa da morte do Alex não fora por nenhum tiro; nenhum disparo foi feito da arma do suspeito na vítima já morta... E a única exigência do elemento era a presença do delegado Luciano lá, já... para lhe falar... ou mataria o vigia... E todo mundo teria uma história mais interessante ainda para contar sobre esse dia de hoje: um corpo ensanguentado e morto, um refém, a polícia, um assassino... e muito mais... Luciano chegou por volta de sete horas da 344


manhã, e atravessou o cordão da polícia... Seus olhos viam a visão de muitos dias semelhantes, porém uma semelhança diferente lhe aguardava dentro do prédio... Mais que o público de curiosos, que os jornalistas loucos pela carnificina, mais que a patética face da normalidade diante da loucura sem explicação de um ser... Esse seu semelhante, em profundidade, estava escondido lá dentro; sua face ainda era um mistério, mas seus atos (o corpo do Alex jazia ensanguentado debaixo do lençol, Luciano deu uma olhada no “pedaço de carne vermelha” e o mundo exterior revelava parte do seu mórbido propósito. Sabia, Luciano, que estar ali fazia parte de uma requisição desse novo propósito erguido da noite dos caçadores em Salvador... Ainda pensava em Andréa com ternura e paixão, mas era o seu verdadeiro EU que penetrava agora no interior do prédio; seguido e ao mesmo tempo se desviando das pegadas vermelhas que tomavam a entrada e porta a dentro do cenário do seu mais novo advento... da cidade de hoje. - Aqui é o delegado Luciano... Estou entrando para lhe falar... Eu não estou armado. - Pode entrar, delegado... Siga a trilha. - Veio a voz lá de dentro. A primeira sala onde Luciano entrou era a recepção do estabelecimento, todo seu interior estava 345


meio escurecido: naquela manhã as janelas não foram abertas e as luzes fluorescentes não tinham sido ligadas; o local guardava um odor carregado de sangue apodrecido (dos sapatos do elemento) misturado com o cheiro deixado pelos dois disparos de revolver que dera mais cedo... Não estavam longe dali; na verdade não parecia realmente estar escondido; os passos avermelhados de sangue se dirigiam para a entrada do que parecia ser um corredor, que estava completamente escuro de onde Luciano olhava, a uns sete metros de distância, no outro extremo da sala que era a recepção... Luciano começou a andar em direção do corredor. Faltando uns três metros a voz veio-lhe novamente para advertir: - Até ai está bom... - De mais perto Luciano passou a notar um tom semelhante na outra pessoa; um timbre e arrogância de irritante semelhança com uma voz que não ouvia há muito tempo... o que também já deveria ser uma voz morta... Luciano parou pensando na semelhança daquela voz: coisas que deviam perseguir-lhe desde muito tempo, quando encontrou aquela mesma suposta voz e a fez rapidamente calar, uma assombrosa coincidência que o fez parar ali... olhando as sombras e esperando por mais daquela voz... que veio: 346


- O senhor já esteve aqui antes, não esteve, delegado?... - Não entendi... Eu nunca... - É um açougue, não é?... O cheiro de entranhas expostas; o que é a vida na verdade... - Quem é você, afinal?... Porque você me chamou aqui? Eu sou o tipo de policial que nunca dá concessão a marginal. - É... Eu sei disso muito bem... (ouve-se um suspiro)... Sua primeira pergunta será respondida devidamente mais cedo ou mais tarde; agora saber quem eu sou não é tão importante quanto saber o que fiz. - Eu vi seu “artesanato” lá fora. - Aquilo é somente o fio que faz a trama, delegado... Eu o chamei aqui porque você será o único capaz de perceber a minha história depois que tudo houver terminado. - Tudo bem... Eu vou entender... Então você primeiro solta o servente, e depois me conta a história... - Não faça isso delegado. Você me conhece e sabe que não sou nenhum idiota... Só saiu daqui morto. - E isso quer dizer que...? - Uma pequena pausa se fez, e Luciano pode perceber, apreensivo, 347


algum movimento vindo das sombras do corredor. A semelhança na voz ainda o perturbava, mas algo que fugia diante da estranha dinâmica daquele diálogo: aguardava alguma coisa certamente óbvia, pelas palavras do sujeito, mas seu interesse estava indo além... por conta do que aquele homem realmente era... ou queria ser. - Foi naquela sala ali a sua esquerda, delegado... onde sentado nessa recepção por umas seis horas até aquele escroto filho da puta finalmente me atender... E na entrevista foi então que pude ver o que seria o sentido de minha vida... - Você matou o cara porque foi rejeitado para um trabalho? - Não... Você ainda não entendeu o que o sacana do Alex realmente era: ele era um demônio... A missão dele era enfraquecer a todos nós; tentar fazer de nós as criaturas submetidas que todos já são... Menos eu... Eu me recusei a aceitar a humilhação; me libertei do sistema desses executivos veados, cheios de merda “non stop”... - “Puta merda... que pirado!...”- Pensou Luciano antes do sujeito prosseguir. - Só houve outra pessoa nessa cidade que soube se impor... Um artista notável, que se recusou a se submeter aos caprichos e vaidades das mulheres... 348


(Luciano já pode reconhecer a semelhança; e também o engano.)... E você o matou, delegado Luciano... - Não sabe o quanto está errado... - Estive errado por muito tempo, delegado... Agora vejo que na verdade é o mundo que está errado... Mas ontem à noite eu comecei a consertar... (outra pausa)... Senti meus passos silenciosos. Corri veloz como um leopardo. O sacana estava abrindo a porta do carro. Quando me percebeu e se virou eu já estava sobre ele... Flutuei para cima do desgraçado... Quando o crânio dele bateu contra o vidro do carro aposto que ele se arrependeu por não ter feito aquele curso de defesa pessoal para executivos que a empresa ofereceu: quando se sente no topo do mundo... nada o parece ameaçar... até surgir alguém como eu... Agarrei a cabeça dele e arrebentei a nuca do veado contra o asfalto... Depois... (ouve-se uma rouca risada)... Depois. (pausa)... Reconhece isso, delegado?... Arremessado das sombras, arrastando-se pelo chão até próximo aos pés de Luciano, surge uma adaga; pontiaguda, nova e completamente ensanguentada... - ...Depois eu fiz tantos furos no sacana que parecia uma melancia depois de atacada por cem pássaros... O sangue do filho da puta esguichou para todo lado... Tudo com as mesmas armas que um dia Fernando Vainarde usou nessa cidade. - Luciano observa a faca 349


aos seus pés: era realmente semelhante a arma usada por ele (Luciano/Fernando) quando matou Ilena... porém Luciano ainda pensava no erro: a voz do sujeito começava a oscilar entre duas semelhanças: cruzava entre a voz de Fernando, desde o começo; e outra, que mais parecia ele próprio quando pensa no que fez, e começa a sentir prazer... E essa era a voz que mais lhe incomodava, pois fazia recordar dele próprio... como sendo o que aquele sujeito é... apenas excluindo as partes pseudo-messiânicas. Luciano já adivinhava o desfecho daquilo com muita nitidez; faltando apenas um rosto que deveria surgir da escuridão, mostrando não ser ele próprio... e nem Fernando... e nem ninguém somente mais um louco na cidade da loucura. - É bom que saiba, delegado... que está trabalhando para o lado errado.. (Luciano quase acha graça.)... Mas quanto a mim, já fiz a minha escolha... Espero que você, e todos os outros se fodam... E também espero que aprendam... de mim. - Das sombras emergem dois rostos. A frente, enlaçado por um braço ensanguentado, a face apavorada do vigia noturno daquele lugar: sua boca está amordaçada, seus olhos estão inchados e suas calças molhadas... Talvez aquela não seja profissão para o homem, afinal... Treme sob a mira da arma na têmpora. E o outro rosto... havia sangue em todo 350


corpo do elemento. Seu ataque fora de uma total visceralidade, indiscutivelmente... Um rosto pálido, de olhos fundos, escuros, expressivos: expressão de agressividade. Luciano conhece essa expressão de quando está sozinho em sua casa e é surpreendido por sua imagem no espelho... E era como começava a se sentir: olhando um espelho... A figura guardava as marcas de toda uma vida sem sentido até a noite passada: sua realização... Um homem jovem, mas de uma evidente carga nos ombros por muito tempo: dores e frustrações incontáveis de todos os dias na vida de todos... Até quando todos suportariam?... Pois este não mais suportou... Olhou para Luciano durante longos segundos, antes de empurrar o guarda para frente, fazendo-o cair no chão... e apontar a arma para a própria cabeça e atirar sem em nenhum momento piscar os olhos ou respirar diferente... Seu corpo logo tombou. A mancha de um novo sangue escorreu pela parede; o mesmo sangue que se misturou ao sangue já ressecado do Alex sobre o corpo do sujeito... Na verdade tudo um mesmo sangue... Luciano observou o vigia aos seus pés. Estava agonizando. Estava amarrado com as mãos para trás. Abaixou-se e tirou a mordaça do homem. Que logo vomitou tudo que tinha no estômago; sua agonia: estava quase sufocando com o vômito... assim que 351


o sujeito se matou. Luciano se ergueu depressa escapando da porcaria do vigia. Meio segundo depois a sala é invadida por vários policiais, que se surpreendem com a cena... O show já havia encerrado, e ninguém havia matado ninguém... Somente o assassino havia... “se divertido”... E as coisas iriam caminhar. Não era caso de Luciano. E ele não o queria. Saiu daquele local sem triunfo, sem nada mais que a incômoda sensação de estar sendo novamente observado; frágil; exposto... como as vísceras do corpo ainda estendido na rua... ou como o cérebro do rapaz caído lá dentro do prédio. Sabia Luciano... que o olho do observador estava dentro de si... E sempre estaria. E sempre haveria alguém como aquele rapaz... para lembrar-lhe... que está sendo observado.

& Enquanto isso no Complexo de Delegacias... Ronaldo, após uma breve pesquisa telefônica, resolve procurar o possível anônimo que tanto anseia encontrar: tinha um provável endereço e muita vontade... Deixa o edifício circular do Complexo no mesmo momento que o telefone de sua mesa toca, e como não estando... a ligação é transferida para Oscar, 352


que está em outra sala... mexendo com papéis... meio aborrecido. - Sim,... O que foi?...

O Pavor no Fim da Loucura Está num bairro pobre de Salvador; um entre muitos outros, dentro dessa cidade tão pobre quanto brilhante... para olhos externos. Os turistas que chegam na cidade da alegria não chegam - seus luxuosos ônibus de turismo não alcançam (e talvez os motoristas dos mesmos até vivam aqui) - nesses bairros pobres: subsub-urbanizados; que é onde, num deles de nomes estranhos e impronunciáveis, o detetive Ronaldo se encontra. Sua presença logo se torna um destaque. A polícia não costuma vir aqui durante o dia; e quando vem, usualmente à noite, corpos surgem nos terrenos inóspitos das proximidades... e ninguém quer saber quem foi, por que foi, ou se realmente foi. Ronaldo nunca esteve por aqui. A rua em que o detetive estaciona a viatura da polícia civil está repleta de rostos escuros, amedrontados e desconfiados. Bate a porta do carro não muito novo e olha ao seu redor. Pela escuridão das janelas semi-abertas sente os olhos dos moradores; à sua frente existe um pequeno armazém, onde dois 353


homens estão parados, um em cada uma das duas portas... Ronaldo se aproxima deles... - Bom dia... Algum de vocês poderia me informar onde fica esse endereço. - Mostra um pedaço de papel aos homens... A hesitação dos dois parece ser o extremo do que ocorre com todos na rua... no bairro. Os homens olham o pedaço de papel talvez já imaginando que aquele é o endereço de alguém que logo vai estar morto: alguém que rouba carros e usa o dinheiro para comprar drogas, para daí revender para jovens ricos. Ou talvez um pedreiro que ficou tentado pela mulher que tem o vizinho errado: ele... Porém, muito mais que isto nos olhos desconfiados das pessoas... atingem-se os extremos desse novo tempo em Salvador, de modo e terror... quando não se pode confiar em ninguém... Ronaldo espera sua resposta. - É o sobrado duas casas à frente. - Um dos homens aponta a direção. - Obrigado. É uma casa de dois andares que funciona como pensão. Uma tinta esverdeada velha e descascada cobre a fachada do horrendo lugar, onde seres humanos vivem pagando o preço de um pão por noite... O detetive Ronaldo entra no lugar e logo é envolvido pelo nauseante odor de coisa velha; que também é o 354


que precede a chegada da dona do estabelecimento: uma velha muito velha. A velha abre a porta do quarto onde supostamente morava o sujeito que Ronaldo procura. Ela resmungou alguns palavrões bastante lascivos antes de dizer que o sujeito havia partido há mais ou menos uma semana: nunca atrasou o pagamento, chegava tarde às vezes, trabalhava em algum subemprego no centro, era de algum interior; Ronaldo se lembrara de um sotaque... E desde alguns dias antes de se ir, de volta para terra dele (quem sabe?), ele parecia assustado... A velha achou que estava metido em confusão... mas ele continuou a pagar... O quarto estava arrumado, e “limpo”. Ronaldo olhou o antigo guarda-roupa de compensado, vazio. O cheiro de coisa velha permanecia... Olhou debaixo do colchão, nada. Na mesinha do canto também não havia nada... Só isso?...Também havia um pequeno criado-mudo, e dentro da gaveta do mesmo havia uma pasta-de-dente seca e torcida, e um pedaço de papel... onde estava escrito: “ABI 1997”. - “Placa de carro!”

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& Em um dos cubículos do Complexo; já é quase meio-dia. Oscar está sentado à mesa... - Débora, Débora, Débora... Qual de vocês?... Aparece, mulher... Eu só quero salvar sua cabeça... - O detetive ri de si próprio, de cabeça baixa observando os papéis. A voz de Ronaldo alcança seus ouvidos e pensamentos: - Oscar... Finalmente consegui uma pista para a gente investigar... - Os olhos de Oscar hesitam em demonstrar o que estão demonstrando. Ronaldo pode ver aquele natural desprezo: o policial de trás da mesa estava indo às ruas, enquanto ele, o detetive da ação estava atrás da mesa... Mas Oscar sente que pode ir além do parceiro mais velho... mesmo tendo ficado dentro do gabinete, enquanto Ronaldo estava na terra selvagem que é a Salvador por trás das portas do sol brilhante... - Por acaso é uma placa de carro?... - Ronaldo faz sua típica expressão de abismado, quando todo mundo mais parece saber há muito tempo o que ele acabou de descobrir: os olhos diretos para o rosto de Oscar... num óbvio silêncio afirmativo... 356


- Vejo que sim... Seria... (Oscar dá uma rápida olhada em sua mesa)... ABI 1997?... - Ronaldo fica mais abismado ainda. - Como você con... - Ele ligou, Ronaldo... Eu disse que ele iria ligar de novo... Mas não precisa fazer essa cara... Sua idéia também deu certo, não deu? - É... - Oscar se levanta. - Escuta... Luciano quer falar com a gente... Eu vou te falando no caminho... No caminho para o gabinete de Luciano, Oscar contou que o anônimo ligou logo depois que Ronaldo saíra pela manhã. Disse que o carro é uma van importada, preta, e com a placa tal... O homem também admitiu ter testemunhado o içamento da garota na árvore, e que eram provavelmente cinco homens... Percebera que o pobre coitado estava em lágrimas, apavorado; o sotaque de interior se intensificara e o tremor revelava que o sujeito, acima de tudo, não era nem capaz de imaginar tal atrocidade... Provavelmente não vai muito ao cinema, e só deve assistir programas de auditório interativos na TV: um ser humano que sonhava estar vivo, e que naquela noite, por um acidente de percurso, acordara no pesadelo do que realmente viver é: monstros humanos e corpos pendurados como num açougue... 357


Já perto do gabinete de Luciano... Oscar: - E agora estamos esperando a identificação do proprietário do carro no Departamento de Trânsito. - E quanto às Déboras? - Você vai saber!... - Eles chegam. Luciano está a espera deles. Quando dois desses três homens veem tanto quanto pode se suportar não enxergar o lado obscuro do terceiro: o difuso interesse dessa terceira incógnita sendo o delegado em quem devem confiar... Mais pressão que qualquer um dos dois, Oscar e Ronaldo, poderão um dia imaginar ter um homem naquela posição. Luciano: - Muito bem... - Oscar se adianta, sentando: - Eu soube de hoje de manhã... Que droga, não é? - É isso mesmo, Oscar... A manhã dos campeões... Escroto. Ronaldo apresenta sua audiência: - Que foi que rolou de manhã, afinal? - Oscar sorri. - Esquece, Ronaldo... (Se cala, mas fica irritado)... Quero saber o que já temos... Oscar?!... - Eu e os outros dois detetives conseguimos diminuir o número para 18... - E como foi essa mágica em menos de dois dias?... - Oscar hesita sua resposta diante de uma dura 358


expressão de cobrança de seu delegado encarregado do caso; há muito tempo ele já reconhece o que é o olhar de Luciano quando ele já espera algum tipo de absurdo: um descrente da maioria das teorias... por isso um ansioso por respostas como essa: - Palpites! - Baseados em?... - ...Em padrões anteriores de como as vítimas estavam sozinhas, e mais importante, pareciam conhecer, ou pelo menos confiar, naqueles que as capturaram. - Luciano, se desfazendo da expressão, e se recostando na poltrona: - Sei... - Ronaldo percebe a estranha interatividade entre o detetive Oscar e o delegado Luciano; é mais velho que Luciano, e é seu subordinado... ainda sente suas considerações sendo desprezadas... Rapidamente se refere à placa de carro encontrada na antiga moradia do anônimo, sobre a qual informações já estavam sendo esperadas por fax... Mas ainda faltavam as Déboras: - E então Oscar... O que você pretende fazer?... Aliás; eu esqueci... você está fora das ruas por um tempo. - É, mas... - Nada de mas... Vocês vão usar os dois caminhos... - Luciano tenta se fazer mais claro. 359


- Ronaldo... Você vai achar essa van e seguila... Enquanto isso vamos tentar manter essas Déboras sob vigilância...Oscar; providencie isso você! - Mas eu... - Porra! Nenhuma... Somente daqui de dentro! - Um fax anuncia sua chegada. - Pronto... As informações estão chegando... (Luciano apanha o papel)... Deixe-me ver... finalmente a sua última e penosa expressão se ergue num arco de horror tal que as lembranças e deduções se fazem vivas... Entre o que o homem Luciano conhece como sendo ele próprio e tudo que fez, e o que sabem como sendo uma coincidência larga demais para se tornar apenas a tal... o fax do Departamento de Trânsito dizia que o automóvel pertence a uma grande firma de advocacia do Rio de janeiro... Uma que também tem representantes aqui: o segundo nome é Gouveia. Oscar percebe o terror nos olhos do delegado, olhando o papel; é a mesma que vira naquele outro dia, quando do episódio no meio do Vale dos Barris, o tiroteio que o afastou... - Luciano... Você tá legal?... - Ele olha para os dois detetives. E tem absoluta certeza de que os dois nunca saberiam do que aquilo se tratava... realmente. Pensa: - “Meu Deus... A Pedra...” 360


& “Eu me apaixonei pelo homem errado... Devia te dizer isso, Doutor?... Não!... Não há com que se preocupar. Eu sempre o desejei... Mas agora que eu o tive... Não sei se posso permanecer longe... E talvez eu fique perto demais: algumas vezes ele disse que ficava longe das pessoas, por se considerar muito perigoso o seu modo de levar a vida... E realmente ele pode ser considerado um total inconsequente por si mesmo, mas com excesso de cuidados com estes outros que ele tanto teme machucar... A culpa que carrega parece ser realmente gigantesca... Mesmo considerando o sucesso que conseguira. Luciano... Você faz eu pensar demais... E mentir para o meu analista!” - Está tudo sob controle... - Andréa repousa seu corpo no sofá do consultório de um renomado analista... Conta, em sua sessão semanal, como foi o seu “encontro” com o policial que sempre admitiu ter uma grande atração: sentia-se realizada pela metade, porque sabia que as coisas não iriam mudar somente por causa daquela ardente tarde de amor... Comentava que o pai a havia advertido dos perigos de se envolver com um policial, mas que ela contrastara o conselho dizendo saber o que fazia: como um leve gosto de um 361


antigo desejo... Mas que... - Está tudo sob controle... - E seu rosto se enchia de uma estranha esperança... admitindo a paixão para si própria; e ao mesmo tempo se esvaziando diante da realidade... O doutor: - Parece que você está repetindo isso para si próprio. Não deixe seus pensamentos eróticos te enganarem novamente... Já passamos por isso antes. - Tudo bem, doutor Marcelo... “Mais tempo que passa longe e distante; mais do horror em meus olhos; não existindo Deus que possa explicar o terrível vazio... Não tenho nome ou identidade; perdido entre rostos que se contraem em expressões ameaçadoras... Imagino-me matando pessoas: meu gélido ambiente de atrocidades... Como alguém poderia gostar de mim?... Registro o meu desprezo; afasto-me de todos os nomes por muito amá-los... mas que por tempo demais desejo os seus sofrimentos.” Andréa pensa, após lembrar esta passagem de um dos textos de Luciano na Faculdade de Direito. - “Eu te entendo mais ainda, Luciano... Agora!”

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& Luciano, em seu gabinete, ao telefone: - Resolvi aceitar o seu convite. - (Isso é muito bom, Luciano... Sempre soube que você se tornaria um profissional de primeira linha; e agora você poderá entrar para a elite da lei.) - É bom se sentir ajustado... de novo... Parte de alguma coisa... importante. - (Sinto que você ainda está hesitante em suas certezas, meu amigo. Mas não se preocupe: enquanto você não descobrir você mesmo... as dúvidas ainda existirão.) - ... Sabia que naquele momento estava falando com um completo megalomaníaco; pelo menos parecia sentir desse modo as estranhas palavras ocultas no diálogo entre ele e o doutor Gouveia... A Pedra, para Luciano, um seu estimado professor, parecia se apresentar agora como sendo aquela eterna face de si mesmo dentro da noite de Salvador: um predador feroz, um homem que esquece de sua humanidade em nome de coisas tão estranhas para os olhos do dia, quanto também deliciosamente tentadoras para a mente do psicótico que se emerge... Porém ainda é difícil acreditar no que os fatos mostraram: a Pedra viveu com a família o Rio de 363


Janeiro durante um bom período do início da década; e isso o deixava apto a estar no local daqueles crimes... Porém não havia motivo, como sempre deve ser temido o propósito de uma mente criminosa... Não parecia haver... O último nome da lista era o mesmo nome de sua adorada filha... E recente amante desse delegado... Imagina, Luciano, ao ouvir aquela paciente voz do experiente advogado, que talvez algo de mais sórdido tenha acontecido àquela família enquanto passava parte da vida vivendo longe dessa terra natal... O que faz aflorar o instinto nesse homem de meia idade... com uma vida toda organizada... para planejar e executar esse armagedon particular, onde cabeças são cortadas fora... e esperanças de jovens são destruídas com a noite que engole o fim do dia... Luciano ainda duvida... - (...mas não se preocupe... logo vai se sentir melhor... Nos vemos lá, então...) - Até lá... - Desliga. E pensa... - “Eu nunca vou me sentir melhor!”

& Na noite sem lua o policial guarda as ruas do território desconhecido... Pois o detetive Ronaldo sabe que não é um policial de rua, mas sente ter alguma 364


coisa a provar. A van preta está parada em frente de uma casa de dois andares num bairro de classe média não muito afastado do centro. Nos últimos dois dias em que vem seguindo o mesmo carro, sempre os mesmos dois indivíduos têm saído, rodado a cidade e voltado a este mesmo ponto de origem. Somente as luzes do andar de baixo ficam acesas, a noite toda... Em sua viatura não oficial Ronaldo observa com tédio a mesma paisagem de todas as noites... Segundo os cálculos decrescentes de Luciano o sequestro da nova garota deve ser de hoje para o dia seguinte. A relevância do tempo e do propósito para o detetive são um tanto obscuras. Apenas sente ter sido deixado de lado, enquanto Oscar designa pessoal para a proteção das possíveis vítimas: 18 garotas de hábitos normais... Saem de casa; trabalham; algumas ainda estudam; visitam amigos; encontram namorados... Porém, pelo menos, não são apenas um cenário eternamente igual cheio de entrelinhas e sombras dentro da noite. Ele fala no rádio: - É isso mesmo, Oscar... A coisa aqui tá muito lenta. - (Pois aqui está muito pior... Pelo menos você tá na rua, pode ver alguma coisa... Aqui no Complexo 365


à noite é ainda pior: ou não acontece absolutamente nada, ou então aparece algum doido gritando que foi roubado e que a esposa foi estuprada...) - Quem é que está de plantão hoje?... - (Seria Luciano... Mas ele saiu.) - Saiu do plantão?!... Que estranho. - (Sem dúvida...) - Às vezes eu acho que... - As luzes da casa se apagam. Nunca haviam se apagado antes, durante a noite, nesses dias de vigília de Ronaldo. Sua atenção se volta para a casa... totalmente... - (Acha o que, Ronaldo, seu porra...) - Depois... - Desliga o rádio. Os dois elementos saem do interior da casa, e logo em seguida entram no carro. E partem... Para onde Ronaldo já começa a seguí-lo. Eles nunca tinham saído tão tarde, e a cabeça de Ronaldo já começa a viajar pelos meandros da ação policial noturna... Ele reporta a saída dos dois elementos e segue em frente para onde a van preta caminha: primeiro, mais no interior da cidade... em mais outras terras desconhecidas...

& Mostra-se o que mais assusta e corrompe os pensamentos do homem bom que este policial é, se 366


não fosse o que realmente ele é para os seus próprios olhos: barreiras com o mundo desse ser angustiado que assiste algo como uma reunião dos Alcoólicos Anônimos, sabendo, ou querendo saber, se na verdade uma fantasia do homem sentado ao seu lado: “A Pedra”; o doutor Gouveia; o pai de Andréa... que o apresentou formalmente para este distinto grupo de rostos conhecidos e não conhecidos: doutores, senhores, caros colegas de um mundo que não é o seu para todos... Mas Luciano se imagina ser o cúmplice de todos na mesma loucura, e por isto pensa estar aqui... ter sido aqui chamado. É com certeza um local pouco suspeito: uma sala de estar do luxuoso apartamento de um desses que aqui estão... Luciano olha, observa, questiona e não acredita; não vê razão para tal fome de morte nestes senhores de respeito... Sente-se como na sala de recepção de um local novo: um clube seleto que só aceita gente como elas próprias... A chantagem também parecia uma arma pouco provável; era mais um ardil, um atrativo, um aviso de que ELES estavam próximos... e por isso o convite do doutor Gouveia... Mas ainda hesita em acreditar, o delegado Luciano, e o “homem-cida” Luciano... pois o que aqueles homens de respeito falavam era sobre... - ...da última vez foi aquela secretária cheia de 367


traumas de infância. A idiota vivia chorando pelos cantos... No dia em que resolvi investir nela... tentou processar a firma. - E você conseguiu provar a insanidade, então... (risos) - Exatamente... Que coisa fantástica é a capacidade dessas pessoas de culpar a todos por um acidente... Não admira também ela ter se tornado crente. - Crentes... (mais risos) ... Pode-se crer em qualquer coisa bem vestida, não é?... - Que tal nós?... (muitos risos) - Não falemos mais disso. - Gouveia se levanta para se dirigir ao grupo: - Quem quer mostrar ao nosso novo amigo que tipo de atividades recreativas nós temos aqui? - Todos calados esperam o próprio Gouveia se pronunciar... - Eu sabia... Vamos começar os estágios mais simples de integração, meus amigos... - Os rostos se tornam um tanto mais inexpressivos antes que a Pedra resgate um controle remoto na mesa de centro e aperte um botão... As luzes se apagam por um minuto... Luciano se imagina no pleno circo do divertimento dos ricos... O que mais seria, senão... - Mulheres! - Três garotas entram na sala e começam a fazer o mais exótico dos streep-teases... 368


A surpresa de Luciano se confunde com o alívio e a desconfiança: eles estariam com todo aquele aparato erótico exclusivo para homens bem sucedidos, somente na sua presença, se fosse pela terminologia do doutor Gouveia: “estágios mais simples”. O contexto então revigorava o corpo e o coração desses homens, mas ainda faltava alguma coisa... Luciano apenas assistia; e os rostos permaneciam imóveis: quase hipnotizados... As três garotas atuaram e inter-atuaram entre luzes e escuridão durante quase uma hora. Luciano se permitiu o prazer da excitação; pensou em Andréa; mas não se desfez da apreensão dos fatos do momento... A Pedra virava para ele com permanente atenção disfarçada... Era o único que sorria e se deleitava com as bundas, coxas, seios e bucetas das garotas... Seria mais um sinal de sua liderança; porém em certo momento se tornava a constrangedora sensação de descaso por parte do delegado... Pois aquele fora seu professor; aqueles eram “homens de respeito”; e todos eram suspeitos... cortejados além das próprias consciências; vítimas talvez... Mas não... Para Luciano havia algo mais que aquela simples confraternização... Pois os rostos continuavam os mesmos; menos a Pedra. 369


& Dois carros cortam essa noite da escura Salvador. A van negra risca o asfalto com cuidado penetrando nas ruas do centro da cidade. Atrás, a uma distância segura, Ronaldo dispensa curiosidade e desbrava o momento, seguindo o automóvel suspeito. As luzes da rua que ainda funcionam iluminam as voltas dos dois veículos... A tensão toma um confortável lugar no rosto de Ronaldo, que sendo iluminado e ocultado através do pára-brisa da viatura, antecipa qualquer coisa que possa ser um grande e inesperado sucesso. Pensa: - “Para onde esses sujeitos estão indo, afinal?... Não posso esperar que as coisas caminhem tão rapidamente; quando tudo se trata de um crime...” - O detetive apanha o papel que está entre as coisas da pasta no painel do carro: é uma pasta oficial. No papel está a lista de nomes e locais que estão sendo vigiados: as 18 Déboras... Sabem que os elementos não atacariam nas casas das vítimas, nunca o fizeram, porém Ronaldo tenta se conectar com as possibilidades de onde aqueles dois homens podem estar indo... Na lista, muito mais que os palpites e probabilidades dos policiais, estão 18 vidas... 18 esperanças que podem, qualquer uma, morrer nessa noite mesmo, ou 370


mesmo nos próximos dois dias... Mesmo os palpites e cálculos estando errados; o que já transformaria a vida dessas garotas num só caos; ainda haveria uma vítima a ser raptada hoje, pois a alma que se esconde na noite de Salvador, e no lado escuro de cada ser humano, pede por mais uma cabeça... E Ronaldo se sente responsável por esta.... porque é ele quem está sozinho na cola desses sujeitos... E não faz ideia de para onde eles estão indo. Os dois veículos sobem uma ladeira e estão num bairro conhecido como Garcia. Depois de rodar mais poucas ruas dentro do centro da cidade, eles estão no Campo Grande: é uma grande praça central, bem no coração da escura Salvador... Existe aqui uma magnífica construção, destacada do resto, é um grande edifício de formato irregular, e que abriga um dos últimos bastiões de arte nessa cidade: é o grandioso Teatro Castro Alves (poeta baiano do séc. 19)... É próximo a um dos portões do teatro que a van preta estaciona; o portão oeste, que dá na sala do coro do teatro; Ronaldo para a sua viatura logo em seguida, porém longe o bastante, ainda dentro da praça: o Campo Grande... As árvores são gigantescas elevações que assombram as sombras da praça deserta. O vento sopra e revela dentro do silêncio da noite o quanto a 371


escuridão tomou parte e totalidade do coração dessa cidade... Em outros tempos, nessa mesma praça, ainda por essa hora da noite, luzes e cores traziam as pessoas que deixavam seus rastros de vida e alegria: crianças brincavam em um ocasional parque de diversões, casais se agarravam sem pudores e idosos passeavam entre vendedores ambulantes de gordurosas e saborosas guloseimas... Porém agora só resta a escuridão, o vento frio, os mendigos e loucos que se amontoam se escondendo do frio e do medo, e o solitário policial. Ronaldo observa o carro. Uma das portas se abre. Ele usa o rádio e fala com Oscar: - ...Talvez eu vá precisar de reforço. - Tá todo mundo nas vigílias, cara... E Luciano continua fora. - E você?... - Você sabe que eu não posso... - Me diga... Todas as vigílias reportaram normalidade? - Positivo... Ou os filhos da puta passaram a perna na gente, ou Luciano errou nas contas, e não vai ser hoje... - Pois eu acho que Luciano não errou não... - O que está acontecendo? - Eles estão saindo da van... Vou segui-los... 372


- Espere... Para onde eles estão indo? - Estão descendo a rampa oeste... Preciso ir... - Ronal... - Já estavam desconectados. Seria o primeiro momento de uma estúpida impulsividade nas ações do detetive Ronaldo, mas parecia ainda ter algo para provar... Dessa vez o detetive Oscar é quem estava atrás da escrivaninha no Complexo de Delegacias... Mesmo que nunca morresse, esse cheiro de coragem em seu coração no meio da noite dos horrores fazia o detetive Ronaldo ser o que nunca foi... O verdadeiro policial que é, que sempre foi, e que desejaria estar ali com o colega Oscar... no momento em que tudo ocorresse... Realmente desejaria!... A descida da rampa contorna toda construção. O teatro fora construído numa depressão, e na descida dessa rampa oeste se alcança a parte de trás do teatro, equivalente a um prédio de 15 andares. Indo-se até o fim da pista se chega ao estacionamento inferior, mas lá não há nenhum movimento; apenas alguns carros parados... o que já seria uma razão para se suspeitar, porque nenhuma peça está sendo encenada no teatro... nesse momento... Ronaldo continua a jornada; do ponto onde está já pode enxergar um pouco além do previsto estacionamento o edifício circular do Complexo; quase esquecera que estava realmente perto de lá; bem no centro da cidade; nos arredores do 373


vale dos Barris, onde o Complexo ali está... Ele olha com cuidado qualquer movimento e presença, que não há; e pensa na ironia que é estar aqui, tão perto do Complexo, enquanto as tocaias esperam a ação nos distantes bairros nobres da cidade... E imagina também do porquê dele estar aqui; e porque aqueles homens para aqui vieram... Prossegue descendo a rampa; o estacionamento e a visão do prédio circular desaparecem. Pensa se Oscar não está vindo para cá, ou se talvez não esteja chamando reforço... E pensa, afinal, ao ver que a porta de acesso para a sala do coro está aberta: - “Entraram aqui!”- Apanha sua arma e com ela em punho penetra na escuridão. Armadilha!... Sua mente diria se não fosse a indócil bidimensionalidade febril desses homens que pensam normalmente a anormalidade das ruas do mundo... Luciano assim pensaria ao ver essa porta aberta no meio dessa óbvia escuridão deserta.

& Não haveria mais vida nos olhos de um homem como Oscar se ele estivesse prestes a fazer sexo com a mais bela das mulheres, pois não é esse o momento que na verdade se revela dentro dele, é a ansiedade 374


por querer sair do Complexo de arma na cintura e um mundo inteiro para ser apanhado em flagrante, e por isso receber um tiro pelo meio da cara... Um exagero não seria: está impedido de sair; não há mais ninguém disponível no Complexo; o celular de Luciano não responde... e Ronaldo está sozinho desbravando o novo território desconhecido das ruas escuras de Salvador... tão próximo daqui; não evita de pensar... Estaria menos imobilizado se estivesse baleado, como nunca fora... pois a imobilidade surge da ordem: a ordem que combate o caos... Não lhe resta muito tempo para pensar então, pois sabe também que Ronaldo não possui aquela que é a sua total compreensão e interatividade com as ruas dessa Salvador da noite, que torce de medo todos e muitos... mas para outros é o lar. Oscar não para de pensar no que pode estar acontecendo; Ronaldo se afastou do carro; não conseguiu restabelecer contato; as vigílias estão distantes do centro, nos bairros nobres... e ele está tão perto... Se o detetive sair pela porta do Complexo poderá ver a sombra grandiosa do teatro no alto de uma das saídas do vale... Mas também se sente tão inerte... Oscar acende um cigarro; está sentado a uma mesa; não há sons na noite de Complexo de Delegacias; nesta noite; marca pensativo a contagem de um tempo que pouco menos tem do que quer 375


admitir poder usar... Precisa decidir.

& Uma linha se faz da pequena lanterna do detetive Ronaldo até o balcão da fina lanchonete que antecede a entrada da sala de apresentação da sala do coro do teatro... A fraca luz azulada de lá de fora ainda penetra pela porta, mas o que existe a frente é apenas escuridão... O balcão deserto antecipa o presente silêncio, que é a sala do coro... Sala do coro é um teatro pequeno; uma sala de apresentação alternativa. Ronaldo passa pelo balcão de vidro e segue em frente; há também uma ante-sala e dois banheiros... porém seu caminho é pela porta dupla de acesso ao palco; é a porta que está aberta. O palco também está às escuras; com sua lanterna iluminando a área de apresentação, pode ver que não há nenhum cenário montado... Já faz algum tempo que nada é apresentado ali... mas algo se constitui na estranha sensação; quando pessoas estão reunidas no mesmo lugar... Nenhum sinal dos dois homens, e nenhum som além da existência de si próprio nesse local de comédias e tragédias sem fim... Finalmente dirige sua pequena fonte de luz para a platéia; um par de olhos sem expressão congelam a 376


luz do policial no meio daquela viva escuridão. Ele reage: - Parado! - O elemento já estava parado. - Quem é você? - A resposta era mais inexpressividade. - Responda!... - Alguns segundos dolorosos atravessaram o corpo do detetive Ronaldo como uma forte rajada de vento. - Respostas do seu mundo não têm lugar nesse palco, detetive. - As palavras de uma voz forte e estranha; uma monstruosidade rouca, arfante, segura e desconhecida; fizeram todos os membros de Ronaldo balançarem. O feixe de luz da lanterna viajou de um lado para o outro, a procura de um rosto para a voz... mas sua surpresa era muito maior ao ver que eram muitos os rostos... Muitos os rostos tão inexpressivos quanto o primeiro; congelados num horror que crescia no coração do detetive; a casa estava cheia, uma platéia quase lotada; e o espetáculo era ele: sua tragédia... e a comédia para eles... para aquelas faces sem expressão. - Quem falou?... Quem disse isso?... - As luzes se acenderam, e o verdadeiro cenário estava revelado aos olhos do detetive... Muitos daqueles rostos o observavam, e ao fundo uma criatura sem rosto que tinha, mesmo com o rosto obscurecido por capuzes, 377


a única expressão presente na platéia: o prazer, a satisfação mórbida do predador que acuou sua presa numa inexpugnável armadilha... A voz sem rosto da criatura ao fundo fala: - Largue a arma, detetive! - Ronaldo se lembrou que ainda estava armado. Apontou para a pessoa de capuz. Não vira ninguém armado. - De jeito nenhum!... Vocês... - Antes do policial conseguir terminar de dizer a ridícula frase: “...estão presos!”, um tiro surge não sabe de onde, e logo sua arma estava no chão, bastante longe, e sua mão direita é uma tocha vermelha de sangue que jorra e borbulha quente... sob o horror dos seus próprios olhos, que nunca gostaram de ver sangue, especialmente o seu... o qual nunca fora derramado em serviço. Ele grita de dor... A voz: - O senhor agora entrará para história, detetive... O senhor fará uma imensa contribuição para a nova ordem... O senhor cederá sua vida em sacrifício, por uma lição muito merecida... ao seu delegado... Luciano. - O horror se tornava agora maior ainda; segurava sua própria mão que sangrava, ardia e pulsava; não conseguia encontrar forças para tentar fugir; o frio e o choque tomavam conta do seu corpo; aquelas faces sem expressão pareciam penetrar-lhe a mente; a criatura de capuz lhe parecia ser a própria 378


morte com a foice apontada para seu pescoço... a vida lhe discorria suas últimas imagens, pois querendo desmaiar... e eram de um horror tamanho, que sua única reação foi cair de joelhos e chorar por sua vida. De trás de Ronaldo surgem os dois sujeitos da van. Ambos estão armados de porretes... E mais um homem, que logo que Ronaldo se torna capaz novamente, reconhece como sendo mais um instante de um interminável horror: é seu amigo advogado, Marcos Abrantes... Porém sua vista não permanece por mais tempo... As primeiras e segundas pancadas dos dois homens o fazem se curvar e se contorcer de dor: o palco era o lugar dos espetáculos... Gritava, grunhia e gemia o detetive... Porém nem a morte nem a inconsciência o abençoavam com a paz. Os dois elementos sabiam bater onde provocava dor, mas nunca onde possa fazer o horror acabar... Um vislumbre entre o sofrimento e Ronaldo é capaz de ver que Marcos tem algo alongado em suas mãos. As pancadas param. Ronaldo sente seu corpo como sendo uma grande hematoma vibrante; não consegue perceber uma parte em seu corpo que não esteja dolorida, pois todas as partes doem ao extremo... Volta-se lentamente para Marcos, e agora já pode perceber o que há em suas mãos: é uma espécie de machado; totalmente de metal, como em gigantesco e 379


brilhante instrumento cirúrgico... Talvez agora saiba o que vai acontecer... A voz: - Coloquem o detetive na posição! - Os dois sujeitos seguram Ronaldo deitado de barriga para cima, porém já não era mais um trabalho árduo... já se sentia morto... Vê seu amigo Marcos se aproximar com olhos sem vida, sem remorso; ergue o instrumento acima da cabeça; Ronaldo se desfaz do controle de suas funções vitais; a dor em seu corpo vai terminar... Vê a trajetória dos braços de Marcos e do instrumento virem em sua direção; sente uma fresca brisa, do movimento da lâmina; não consegue nem mais ensaiar um grito... A cabeça de Ronaldo rola para trás; sangue espalha por todo palco; seu corpo reage durante poucos segundos... Estava tudo resolvido... A voz: - Vamos embora, meus amigos... Esse espetáculo já terminou... E foi um sucesso... Não esqueçam de deixar a mensagem! - Isso último, falando com Marcos. Todos saem; todos se vão. A criatura lá do fundo ainda olha por alguns instantes na direção do palco, e também se vai. É o fim.

& 380

- Por favor, Ronaldo, seu filho da puta... esteja


bem... - O detetive Oscar desce a passos rápidos a rampa circular do lado oeste do teatro. Deixara a viatura ao lado da van preta; não vira ninguém; a aparente paz do local o fizera pressentir o pior; empunhara sua arma e já estava no mesmo caminho que fez Ronaldo... Prezava o colega, apesar das diferenças. Temia pelos fatos que ocorriam: deixara seu posto, e sentia ter sido em vão... Porém as perdas iriam permanecer, como na vida de todos... Oscar se imobiliza por um instante já na porta da sala do coro; no ar residia o aroma de gasolina queimada... como a partida de muitos carros ao mesmo tempo... Ao seu redor só há a escuridão da cidade; a imponente grandiosidade do teatro também assombra seus pensamentos; um outro odor lento e desconhecido recobria a noite sem luz de Salvador... O detetive liga sua pequena lanterna e repete os passos de Ronaldo para o interior do local onde a cultura dera palco para o pavor no fim da loucura de mais um dia nessa cidade; inacreditável a cada momento, Oscar podia prever... e quem não mais... escuridão após escuridão... até encontrar naquele palco mais um pequeno ato desse mosaico interminável de violência e horror... - Eles sabiam... Eles sabiam, droga... E fizeram uma armadilha... DROGA!!! - Grita Oscar para o 381


vazio e silêncio da sala de apresentações da sala do coro... Não mais pareciam importar autoridade ou lei. Porém algo de mais pessoal e questionável a respeito de tudo conhecido pelo detetive como confiança: algo que nessas ruas não existe; somente o lado escuro de cada alma; uma alma muito escrota... que fez isso com Ronaldo... Isso!... Oscar percebe que há algo escrito no palco... com o sangue de seu colega... De onde está, na beira do mesmo, não consegue ler... sobe alguns degraus entre as cadeiras da plateia. Apenas as luzes que iluminam o palco estão acesas; foram assim propositalmente deixadas, pois a mensagem havia. Oscar consegue imaginar cada momento daquela carnificina, e também pode quase perceber o calor da presença de uma hipnotizada plateia durante o mesmo drama: de prazer mórbido por tudo mais que é deixado aqui para trás para os homens poderem ler nas entrelinhas... principalmente um: Luciano. Ele olha para o palco; as marcas de um cenário cada vez mais comum: o que eles tentam fazer... E o próprio policial já sente que tudo quase se torna realmente causal... como eles querem... até ver esse outro policial, detetive Ronaldo, seu colega, pai e marido, nunca perfeito... decapitado; pela primeira vez pode ver a expressão da vítima: sua cabeça fora deixada; é um aviso... assim como a mensagem... 382


Feita com sangue, em mais de uma maneira dessa representação, dizia: “Nós avisamos. Fique longe, delegado!” Somente para Luciano. Oscar também consegue sentir o pavor no fim da loucura.

A Sua Haste Mais Curta Menciona-se o que se quer de mais claro ao se fazer uma simples pergunta; o alívio de um homem sem escolhas parece parecer tão distante quanto as memórias do passado... O policial que vira seu colega e comandado estar morto com um nome estampado nas marcas deixadas por uma lâmina de perversão. Quando vira o corpo de Ronaldo e a mensagem no chão... a noite ainda não havia acabado... Os homens chegaram; o ambiente se agitou; amostras foram tiradas; exames foram feitos... Oscar olhava de longe mais um momento desse mundo; mais um como outros que virão... Luciano sentou ao seu lado, na platéia da sala do coro; o ambiente movimento dos técnicos ignorava a verdadeira tragédia desses outros dois, que ainda estão vivos... Oscar assistia ao palco, vazio na face... Luciano se interpreta em frases: - Eu estou me afastando, Oscar. (um olhar franco)... Houve o desaparecimento de uma garota... 383


Não foi nenhuma das vigiadas... - Eles sabiam, Luciano... Eles sabem. - Também cheguei a essa conclusão. Estamos lidando com algo muito além do nosso controle. - Tenho certeza que você sabe disso... (um olhar desconfiado)... E o que vai acontecer comigo?... - Você será suspenso. - Sabia... - Você abandonou o seu posto, e estava restrito... - São eles, delegado... Eles estão em todo lugar... Posso sentir. (um suspiro de lamento) - Alguém do teatro falou?... (Oscar sorri ironicamente.) - Claro que não... Não tinha ninguém. Ninguém viu. Não havia ninguém aqui... Tudo estava normal... Ronaldo surgiu do nada e teve sua cabeça decepada por magia!!! (está irritado) - Não vai adiantar, Oscar... Temos de lidar como sendo isso uma nova linguagem. (um olhar de dúvida) - O que agora, Luciano?... - Agora... Mais um corpo vai aparecer... Amanhã!... E vamos enterrar Ronaldo... Isso. Agora...

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& Não chove nesse dia. Parecia mais um momento igual parado no tempo desses novos tempos de Salvador vítima da escuridão... A alma emergira sólida e a contagem de corpos fazia preencher mais os espaços do cemitério com a impenetrável tristeza das perdas desses que por aqui ainda caminham vivos. Os policiais usavam o colete da polícia civil; o preto dessas suas vestes era intensificado por muitos óculos escuros e ombreiras em luto. Olhos que não devem sofrer, mas sempre fazer vingar a justiça... Houve a salva de tiros. O caixão com os dois pedaços de Ronaldo baixou lentamente para o interior da terra; nada dele fora exposto... somente poucos souberam do real estado do corpo. Alguém da família tornou em pratos os momentos sofridos da vida; a vida de alguém não parecia mais existir... Pois os olhos do delegado (afastado) Luciano também estavam presentes. E os do detetive (suspenso) Oscar, também... Os fatos: a van preta fora dada como roubada; havia uma queixa registrada na delegacia de roubos de carro da cidade do Rio de Janeiro... Inegável acomodação e conveniência, pois um homem importante se mostrou bom e compreensivo, apesar do aborrecimento e insinuação, a Rocha... 385


Doutor Gouveia não parecia ser nada do que era, ou do que não era. Não foi encontrada nenhuma pista que valesse grande esforço da polícia técnica, na cena do crime: o assassinato do detetive Ronaldo. Em algumas horas outra vítima despertaria para a cidade, emergida da escuridão da alma... O raciocínio de Luciano se espantava com o vazio: talvez o tal propósito haveria se revelado... no momento em que eles se revelaram: o bilhete, a mensagem, a morte de Ronaldo. A dúvida era tão grande na mente do policial, sobre no que deveria acreditar, ou não; ou se deveria acreditar em alguma coisa... sendo ele como é... conhecendo ele o que conhece... A alma parecia superar a humanidade, e se desencavar da escuridão para extinguir a luz, através dos gritos de pavor e da dizimação da esperança. História triste, desse delegado Luciano: pois pouco se revelou desde então... Somente sente a falta de escolha.

& Imagina-se um dilacerante infortúnio da sorte, mas não é, é a vida dentro da podre escuridão: essa organização que se desfaz de qualquer noção de ética para se sobrepor a todos os outros que são contrários 386


aos seus propósitos: só há um propósito afinal... Não seria a surpresa por toda cidade do Salvador (salvador de quem?), e também por todo país que toma o mesmo aspecto mórbido das semelhanças entre a alma e o que é considerado normal... Quando a população assiste a um corpo que fora decapitado durante a refeição da noite, e as crianças estão fazendo birra para não comerem as verduras ou o arroz feitos pela empregada pobre e evangélica: primeiro esta mulher está em seu cubículo rezando enquanto ouve o seu pastor pelo rádio AM, clamando para que o demônio deixe o corpo do homem e vá habitar as profundezas do inferno... Mas ao mesmo tempo, enquanto isso, o inferno se revela ser a imagem que é exibida na tela da TV da sala, enquanto um casal e três ou quatro filhos estão comendo o que quer que aquela mulher no quartinho tenha feito... O corpo da Débora fora encontrado, no mesmo estado e condições das outras... E ninguém liga, pois o inferno já é aqui! Luciano também está vendo televisão. Sentado, sozinho, em casa, baforando fumaça e absorvendo nicotina, de calça jeans, sem camisa... e com a identidade de um feto: nenhuma. O corpo da moça fora deixado, pendurado de cabeça para baixo e sem a cabeça e com o sexo exposto para fora da vulva, no arco de entrada do Parque de 387


Pituaçu, em Patamares, na bela orla reformada de Salvador... Luciano se afastara oficialmente no dia seguinte à morte de Ronaldo; seus olhos perdiam qualquer brilho de quando tudo começou: seus cálculos ainda eram os mais certos... Mas não era o seu intelecto que incomodava; era a sua parte da alma pertencente àquela escuridão... Nada do que fizera, a não ser dormir com Andréa, o tirara do poder da angústia, da culpa, da cumplicidade para com todo esse cenário de morbidez que parece engolir a cidade e o mundo... Uma parcela de culpa que era admitida por todos os seus semelhantes, pois todos, de uma maneira ou de outra, faziam parte do mesmo caminho... Porém dele surgia a pergunta sobre si mesmo, que mais o incomodava: se negligenciara as disposições corretas da investigação por conta da “chantagem”?... Ou se havia realmente procurado se infiltrar num grupo, quando na verdade gostaria de se unir a eles?... Pois sente (vê) que são eles quem vão vencer no final. A família lá-lá-lá que assiste ao noticiário enquanto janta não mais será o modelo normal de vida; os filhos lá-lá-lá terão de matar gente para sobreviver, ou então serão mortos... Luciano pensa na pequena família que Ronaldo deixou sob os cuidados da ridícula pensão que o governo paga às famílias de policiais mortos... Talvez devessem pressentir o futuro negro ao chorar 388


a morte do homem, pois no fundo gastariam de estar descendo aquela cova, e indo para um lugar muito mais tranquilo: o interior da terra... Onde o sangue não jorra em nome de jogos, caprichos, dinheiro ou até mesmo na crença viva da vinda do anti-cristo... E é diante dos seus apáticos e perdidos pensamentos que o cálculo se completa na mente de Luciano... Levanta-se da poltrona num pequeno salto; nela ficou a marca de horas que o policial ficara ali, vendo TV, fumando e pensando. Vai até sua mesa de trabalho, que é a mesma onde comeria as refeições se tivesse hábitos alimentares regulares. Encontra uma folha de papel em branco e pega sua caneta no paletó, que se encontrava descansado na cadeira. Senta-se nessa última; deposita o cigarro no cinzeiro e começa a rabiscar números no papel: Foram seis vítimas no Rio de janeiro. Seis garotas deixadas aparentemente de maneira casual, mas que na verdade fora o aprendizado de um sistema... Após a morte da esposa, a Rocha e Andréa foram morar um tempo no Rio de Janeiro: Andréa lhe contara isso... Disse que o pai passava por terríveis depressões; e que os sócios até queriam que ele se aposentasse... porém com ajuda dela, ele conseguiu se recuperar, e voltar a ser a Rocha... Mas talvez essa recuperação não fosse por causa da filha afinal... e sim 389


por razão da descoberta da psicose dentro dele: dando nomes e números às coisas; aprendendo e inventando ao mesmo tempo como trazer para a existência miserável da Terra o Diabo em pessoa... Transformada sua doença: prazer em matar, que Luciano conhece muito bem... em o místico mal maior de todo homem: o demônio. Então eles voltam para Salvador. A Rocha escolhe cuidadosamente e vagarosamente o seu grupo de seguidores: pessoas importantes que no decorrer da vida expuseram suas almas escuras e deram vazão a diversos tipos de Arpejos, como o próprio Luciano, que assim deduz; e assim consegue permanecer influente e crescentemente poderoso durante muito tempo... Sabe de coisas, conhece o sistema, conhece a lei, controla as informações, tem acesso: tentáculos que tocam a tudo e a todos... inclusive a ele próprio: Luciano... E finalmente esse estranho grupo começa a por em prática seu plano... Mais cálculos: Já se foram cinco vítimas. Cinco garotas de nomes idênticos aos das garotas mortas no Rio de Janeiro. Todas mortas numa disposição, agora, claramente metódica; e seguindo uma progressão numérica cuja o cálculo soma: 14 + 13 + 12 + 11 + 10 (falta a última): 60... Seis, seis e seis (x 10)... E Andréa é o último nome. A Rocha irá matar a filha em nove 390


dias. Fechará o círculo da trindade do Demônio com o sangue da própria filha: a celebração da perversão; a vitória do horror sobre a esperança... E Luciano não tem ideia de como detê-los... Pois sabem sobre ele... Não tem escolha... Sua escolha já foi feita. O telefone toca e Luciano se assusta... saindo das suas tão horríveis deduções. Atende: - Pronto... - Na verdade era a própria Andréa que se identificava do outro lado da linha; uma voz que drenava de todas as forças do confuso e cansado Luciano a vontade para querer entender as coisas; queria simplesmente salvar o que poderia considerar de pessoa amada... Há muito tempo não sentia tanta tensão na cabeça por ouvir uma voz, e falar com alguém... Como explicar que tinha quase certeza absoluta que o pai dessa figura tão doce e apaixonante quanto Andréa era... não só um assassino doentio, como também o lider de um ritual mórbido e fanático... que acreditava na evocação e vinda do anti-cristo para o inferno vivo da Terra (mas é o nosso inferno). Por isso quase sorri... mas sabe que o assunto é mais sério, pois o envolvimento pessoal voltava a existir; e dessa vez o próprio Luciano estava envolto em si mesmo pelo que fizera, perseguido por todos, sem escolha e apaixonado pela “próxima vítima”... Andréa pedira para vê-lo. 391


- É claro... - Ela soube do afastamento, da nova vítima, do detetive Ronaldo... e queria ser solidária... Mas uma parte da razão do homem não compreendia a atenção daquela pessoa... Luciano e sua tensa performance se guiavam para dentro de uma relação que começava a assustá-lo mais do que tudo: dessa vez não era o monstro da escuridão; era apenas a peça do jogo (e não era ele o jogador), assim como essa mulher... Cercados pela trama de tecidos desconhecidos, ele e Andréa, eram os dois últimos ícones do que consideraria a normalidade. A linda mulher queria vê-lo... Ver-se-ão. O pai dessa mesma linda mulher planejava o seu revoltante assassinato num espetáculo de tortura e perversão. E Luciano apenas concorda, sem poder fazer haver maiores provas ou relações entre o que ele pensa como certo... e a verdade das viscerais ações da alma. Também quer ver Andréa.

& Luciano vira quando o carro de Andréa despontara pelo começo da rua. Vinha apanhálo. Lentamente ela parou o automóvel e seus olhos penetraram um desiludido Luciano; com relação a tudo que o cercava e com relação a ele próprio: segredos 392


demais de um coração que nunca foi puro, mas que sofre do mesmo modo que outros... ao lembrar de velhas paixões mortas (detalhe: por ele), e também ao ver a nova e ardente paixão desses dias... Entrou no carro. Beijaram-se levemente; seus olhos abertos davam o tom da dúvida a respeito de um com o outro, e ambos como uma história... Margem ao tempo: não se viram, ou mesmo se falaram, desde aquela tarde... juntos até a manhã seguinte... Juntos, em silêncio, no início dessa viagem, quem estava mais presente era a apreensão: Luciano exauria-se em perdidas deduções, especulações e pensamentos; como não tendo assunto para a mulher ao lado... Não algo de confortante. Acreditava na própria teoria sobre a Rocha; e não queria, não poderia de modo algum se deixar envolver por ela... Andréa... A incógnita calada que dirigia para algum lugar desconhecido. Seu rosto tinha a atenção na estrada; mas muito dela naquele instante pertencia à situação dentro do cenário... Sua beleza resplandecia em pequenas coisas e pequenos movimentos: o vento que soprava o cabelo negro; as pálpebras que se fechavam lentamente sob o olhar do policial; a expressão do calor e da inocência num rosto branco, pálido... calmo: um mistério apaixonante... Ela quebrou o gelo: - Que horrível o que aconteceu com o detetive, 393


delegado. - E de súbito o rosto de Luciano mudara já tendo assunto para falar. Horas e horas deveriam ter passado desde o momento em que entrara naquele veículo, e começara a admirar a beleza de Andréa, sem perceber... Estava fugindo o tempo todo das frustrações, da desilusão e da culpa... não vendo o óbvio... Sua expressão enfim mudara. Acordara. Não tinha idéia de para onde estava sendo levado. Somente o mundo foi por algum tempo a paixão por aquela mulher, e mais nada, e foi bom... Pois Luciano já sente como sendo uma lembrança... mais uma que tem de suportar... Na expressão de Luciano. No que viu, e no que vê. Luciano se mostra completamente desiludido... Responde gravemente: - Não sou mais delegado, advogada... - É verdade... (tenta sorrir)... Eu sinto muito por tudo isso, Luciano... Talvez meu pai possa fazer alguma coisa... - O olhar dele para ela é de extrema atenção. O que é tecido dali é muito mais do que poderia se imaginar... pois o policial continua a pensar no que deduziu... Continua a olhar: - Quem sabe... - Andréa o observa de relance; seu olhar é penetrante agora, e não apenas admirado e apaixonado. Está jogando... - Você parece cansado... - Em silêncio, Luciano apanha a carteira de cigarros... Não precisa 394


responder. Coloca um cigarro na boca e aperta o isqueiro do carro... Nesse momento recebe o olhar de desaprovação de Andréa: - Você não vai fumar em meu carro! - Vou sim... - Seus olhares novamente se encontram, e dessa vez são cúmplices de pensamentos muito pouco morais, pois pensam um no outro e na mesma coisa... Porém o embate tem um propósito para Luciano... Click!... O isqueiro alerta estar pronto. Luciano guia a mão lentamente, enquanto Andréa o observa... Ele apanha o isqueiro e acende o cigarro. Pela primeira vez ela olha com algum desgosto... mas não diz mais nada. Luciano sentia já ter sua resposta: vencido o jogo... Fuma prazerosamente dentro do carro de Andréa. Põe o isqueiro de volta. Mais senhor de si, porém permanecendo na expressa desilusão, fala: - Para onde estamos indo afinal?

& Olhos abertos do egoísmo ao reconhecer pela angústia das verdades apresentadas o novo mundo que emerge sem ninguém ver o que há em frente de outros olhos. Luciano penetra triste numa anti-sala de 395


algum lugar... Andréa o tinha deixado em frente de uma espécie de construção semi-nova sem janelas; já escurecido, de formas tenebrosas por tão regulares que eram: uma caixa no meio do vazio... Tinha viajado durante quase uma hora, mas o tempo fora mais uma razão da companhia: alternando, também, entre angústia e ironia, Andréa demonstrava insegurança, por sua paixão, mas também uma forte expressão de propósito... Ao deixá-lo em frente do local seus olhos deixavam-se ver pelos de Luciano o quanto da profundidade da alma já tomava conta deles dois, e tudo ao redor... Dias tristes de vidas tristes, e que só os filhos do horror estavam realmente ajustados... E eram todos aqueles homens bem vestidos e pouco expressivos que estavam na anti-sala, muito mais que da última vez (naquele apartamento luxuoso), os verdadeiros adoradores do horror, criadores do medo, tentáculos da alma escura... A Rocha, o pai de Andréa, veio recebê-lo; com honras, mas sem a “alegria” do outro dia: outra pessoa muito relevante do mundo dos normais, e que compunha sua obra de arte de sangue para os olhos angustiados de Luciano... que já previa a catástrofe moral final daquele dia... com o horror se revelando enfim... e deixando-o sem nenhuma escolha, pois inegavelmente era um daquele mesma espécie: recorda dos gritos de horror de Ilena; 396


da figura destruída de Frida na cama de hospital sendo um prenúncio da suicida; e a face da decepção de Carolina: a face de sua derrota ao permanecer vivo e dar espaço para que nessa cidade surjam tais monstruosas criaturas... de terno. A Rocha: - Esse é o grande momento, Luciano... Foi para isso que todos nós viemos, e finalmente você também. - Eu... - Não fale nada agora... Nós todos nos conhecemos muito bem... e poucas palavras usamos. - Era a justificativa da inexpressividade. Porém Luciano tem sua própria inexpressividade e frieza... Que marca maior da angústia e perda interior não são estes rostos sem vida. Luciano lembra que a Rocha tinha perdido a esposa antes de viajar para o Rio de Janeiro; mas também sabia ele que para tal idade as coisas já não são tão selvagens e viscerais: tal psicopatia não se gera tão rápido, a não ser por um choque realmente muito traumático do indivíduo... Pois logo... outro, e mais um, pensamento assombra Luciano... Inexoravelmente já se via como aqueles homens: “ajustado”... Mas num diferente patamar de insanidade, pois nele não há só uma representação de fanatismo... “O que eles poderiam querer comigo, além da cumplicidade da omissão?...” 397


Todos começam a se mover na direção de uma porta dupla. A Rocha: - Vamos indo... - Luciano seguia. Tinha absoluta certeza que não testemunharia um crime; conhecia bem os metódicos cálculos da alma (Quem?)... Porém seu interior era revolvido pela apreensão: um novo tipo de angústia pela incerteza, pela falta de informação... pela culpa de ser permitido estar ali... Atravessando-se a porta dupla se revela um grande salão. Cadeiras estão dispostas regularmente em três dos quatro lados que divisam o local; na quarta parede existe uma outra entrada, com uma cortina ocultando o seu interior. Há também algum espaço vazio no centro dessas quatro paredes. Os homens, muitos deles, semelhantes em aparência e em gestos, se espalham com absoluta regularidade pelos acentos do carismático ambiente. Luciano calculara cerca de 50 homens: todos homens... Achou este fato curioso... Todo lugar tinha um aroma abafado; as cores eram predominantemente escuras: marrom, preto e algum vinho. O teto muito alto se perdia na escuridão atrás das luzes; todo local era iluminado por luzes fluorescentes indiretas: nada brilhava em toda sala: elas apenas produziam aquela fria iluminação que ressaltava a opressão confortável do ambiente... O 398


som de muitas pessoas era mínimo. Eles pareciam ter uma natural organização e calma, ou melhor, frieza... Luciano se familiarizou com o local por todo esse interior frio, sem enfeites; forte e cheio de segredos... como ele próprio... Sentou-se ao lado da Rocha, entre outros. O que lhe seria introduzido agora teria semelhanças e discrepâncias com a sua realidade, mas acima de tudo lhe pronunciaria a abertura de um mundo completamente novo: algo próximo ao seu obscuro interior, talvez, mas nem por isso menos assustador... Uma figura de capuz, com o rosto totalmente ocultado pela fantástica manta negra penetra no salão através daquela entrada (a com cortina)... Logo o policial ficara curioso, desde antes, pelo conteúdo logo após aquela cortina... Esse elemento desconhecido e sobrenatural de capuz caminha até o centro, à vista de todos, e para. Está ele aguardando um homem que se levanta de um dos acentos da plateia, e trazendo sua cadeira, senta-se novamente perto de onde a figura está... Algo de semelhante, agora irá acontecer, em Luciano, para reconhecer e recordar... Observa atentamente os dois personagens no centro, e todo resto ao redor: apenas rostos mortos; e ele é a apreensão de uma mórbida identificação... Via que... Este fora aquele um que de semelhante 399


juventude àquele outro no caso da Rua das Acácias, na Pituba... Contavam com orgulho que o homem, agora com quase trinta anos, fora acompanhado por longo tempo em um sua atitude de elaborada, planejada e cuidadosa... cruelmente... Estes apreciadores desse novo mundo se entreolhavam sem rancor, quando se debatiam sobre suas perdurosas atuações: - Estamos nas mentes de todos eles, pois somos um só. - Falava com sonora imponência o mestre de cerimônia. Sempre de capuz; era considerado o idealizador daquela nova, porém antiga, convergência das dores da existência humana em pura carnificina... Diziam eles, que os normais deixariam de sê-lo, pois logo eles é que seriam a maioria: e estes outros primeiros seriam o sacrifício do deleite daquele que logo chega da longa jornada... Pseudo-loucura dos que veem com clareza o que são, e o que querem continuar a ser... O “sacerdote” sem rosto contava do mais novo: - Aquele outro não pudera ser alcançado a tempo: sozinho todos terminamos por sucumbir ao desespero de não querermos reconhecer o que nós somos de mais importantes... Aquele jovem se fora, por suas próprias mãos, como deve ser: uma perda para o novo mundo que nos surge, e que nós ajudamos a construir... Porém, existe este (o sujeito continua sentado numa cadeira 400


no centro do grupo); este que, como muitos de nós, foi consumido por uma paixão que não conheceu os limites da vontade, da realização, do sexo e da vida... Deixe-lhes contar, para aqueles que não sabem: foi num dia frio; as pessoas que regularmente estavam em sua companhia estavam reunidas: amigos tratados como tal, mas sempre indiferentes ao que realmente se passava... Ela estava lá... E mais nove pessoas ao todo. Era a comemoração do dia de nascimento de uma delas. O segredo lhe ocupara a razão por tanto tempo o quanto podia se lembrar de lembrar quem era: a paixão, a dor e o sofrimento que libertam nossa consciência do que é considerado o comportamento desses pobres mortais. Ele sentara, observara e esperara... Seu grato presente ao aniversariante fora o entorpecente da razão de todos. Os sorrisos do ambiente o forçavam a ser o que não era... É um de nós. E então vinha a rajada do fogo que gera nosso poder, e o senhor dono dos nossos corações se tornou vivo dentro do camarada... Horas se passaram e aquela roda de amigos, naquela casa cheia da falsa alegria dos mortais, se fez completamente bêbada e incapaz: o presente, a garrafa, estava completamente consumido; menos por ele que nunca o consome: líquido que nos tira do nosso verdadeiro momento de contemplação da violência... Estavam todos na sala; 401


normais... - Luciano ouvia com certo horror e hesitação o que poderia ser facilmente reconhecido como uma fantasia, mas sabia que os rostos ao redor estão sérios de plena e convicta crença no que era dito... O total ápice da insanidade nessa vida de eterna e complexa escuridão: a alma que vive no coração de todos esses homens, e guiados por uma mente como a tal que falava: ou o ser de capuz, ou o homem sentado... ou a verdadeira Rocha que era o homem ao seu lado... Luciano não tinha outra opção além de ouvir com atenção a conclusão do fato em discurso... Lembrava do outro fato narrado, e como estava muito perto, realmente, quando aquele jovem estourou a própria cabeça. Pensa que no final das relevâncias: talvez ele mereça estar ali, pois sempre estivera onde o horror está... (De maneira inconsciente, quem aquele jovem que se matara idolatrava era ele: Luciano... e não Fernando Vainarde. E Luciano sabia disso.) -... E finalmente deixando a casa, com o gás se espalhando, e com todos já inconscientes, olhou para trás e aguardou a contemplação de sua obra de arte... A chama preparada para o momento certo; por uma mente brilhante e prodigiosa nas nossas artes; trouxe enfim o brilho da explosão... e seu rosto foi coberto pela luz do batismo com fogo e sangue do nosso ser supremo... trazendo-o para nós... Onde sempre terá 402


o abrigo e a compreensão de seus iguais, de seus irmãos... na paciente espera do mestre... - E Luciano sabia de que mestre aquela criatura falava; e também não conseguia acreditar... estar ali: por que?... Seus pensamentos mais obscuros reafloraram ao ser capaz de conceber como fato os fatos ali descritos: verdade das mórbidas fantasias e loucuras desses homens considerados tão normais, tão influentes, presentes no dia-dia de todos, em todo lugar... A Rocha, ao seu lado, mais do que nunca, era a Rocha... e seu, agora visível, desespero importava nenhum pouco para ninguém ali: angústia solitária do homem sem escolha... Quando seu nome é pronunciado... - ... Ele nos foi trazido aqui hoje para uma devida e formal apresentação. Seu conhecimento de nós mesmos vem de um interior oposto; pois na pior das torturas tentava combater o que tinha de mais puro do seu ser... Um herói representado por um nome errado; um mártir; uma descoberta de pouco tempo que está aqui como conhecendo seu último refúgio... Nós te acolhemos, delegado Luciano... E sabemos que será grato por nossa confiança... - Era um momento de perplexidade quando Luciano olhava profundamente para aquele rosto sem face e reconhecia mil expressões do vazio; seu pasmo entendimento do que estava fazendo ali, e pertencendo a um jogo. Seu primeiro 403


impulso fora de pular naquele centro e revelar aquele rosto à luz; desmistificar o horror com uma face humana; mas sabia realmente não ter saída para tanto nesse momento: qualquer ação sua o arruinaria, mais ainda; e considerando a influência desses sujeitos presentes (e a falta de evidências), tudo não passaria de um evento ridicularizado, passado pelas mãos de alguém sem nenhum respaldo ou razão... E se mostrasse a sua razão estaria se entregando aos mesmos chacais da lei; muitos dos quais estavam ali presentes... como a Rocha, por exemplo, ao seu lado, observando-o com atenção... assistindo na transparência de suas expressões tudo que poderia estar acontecendo até o momento final da aceitação (que é esperado ou não)... “Se é para afundar, afundarei junto com eles, e com provas!”- Reconhecia... E via se formar nele, como um perfeito alívio, um plano para ser executado mais tarde: tinha ainda oito dias. O homem sentado no centro voltou ao seu local de origem, e o sacerdote prosseguiu a cerimônia. Pouco mais tarde ela terminou; o sacerdote desapareceu atrás da cortina; o que deu tempo a Luciano para se perceber ignorado ali... percebendo ter sido jogado no centro clímax do jogo daquelas criaturas, pois só esperavam as suas reações... e por isso o explícito desdém por sua “nova” presença... Não era como se 404


houvesse sido admitido no grupo, mas sim admitido na manutenção de um propósito sangrento... Não era por acaso! Todos partiam. O Dr. Gouveia, a Rocha, ainda lhe falou algo; ofereceu-lhe carona, e não estranhou a recusa... Começara a caminhar para longe, enquanto os muitos outros veículos também se iam distantes... Queria voltar...

& Mais tarde estava Luciano de volta àquele local de origem. A escuridão deixava todo contorno do prédio num tom sombrio tal que a própria morte em pessoa parecia percorrer as frestas da anti-cor daquele inóspito local... Como se fosse um portal para a antivida do mundo sem esperanças; o inferno de viver sem razão sob o julgo das criaturas que dali de dentro tramavam e executavam suas torpes perversões contra a carne inocente da vida... Luciano entrara sem maiores reveses físicos na escuridão interior daquela escuridão exterior que era o prédio... A porta estava aberta... E por isso o policial estranhou desde o primeiro momento. Pensava também no que tinha observado daquela despreocupada ignorância de todos sobre sua presença ali antes. Talvez não fosse 405


algo anormal, mas sem dúvida era de se desconfiar que tais criaturas tão metódicas e cuidadosos não haviam tomado nenhuma medida de segurança sobre si, presente... Pois conhecia bem os fatores e antiregras do jogo: a alma, seu lado escuro que tem o prazer do envolvimento e da perda da inocência, em nome do desespero... sabia bem disso. Chegou ao salão onde se realizara a cerimônia. Estava frio. Cheirava a terra e madeira abafados. Ocultava-se na escuridão e no silêncio, e penetrava na direção da entrada da cortina... Seus pensamentos e imaginação não se inibiam em provocar-lhe arrepios (o ambiente era propício também): pensava em Andréa e em seu pai... O que tornava a vida daquele jurista numa tal demonstração de aversão ao que era considerado normal (imagina também sobre todos os outros)?... A vida fora boa para ele. Perdera a esposa, mas não seria razão para tanto em tal homem (a Rocha!)... Semelhante muito mais a algo do mundo inteiro que se sobrecarrega de tantas ideias sem realmente apresentar as razões para a existência... Talvez nele, e também nos outros, fosse algo de anos, da vida inteira, como o Arpejo do próprio Luciano, mas que aflorado agora... na época propícia, e com a alma convergente adequada... Luciano enxerga o sacerdote em sua frente, logo atrás da cortina, a própria figura 406


do horror condensando toda aquela insanidade na forma do seu próprio pesadelo pessoal... seu fetiche... seu capricho... sua loucura... Luciano tem medo de pensar o que está pensando; e pensa no último nome da lista: Andréa... Em quem está pensando. Atrás da cortina outros horrores se revelam pela falta de visibilidade do que é visto; a densa escuridão domina o que parece ser uma pequena sala. Luciano puxa o isqueiro do bolso e o acende para ver melhor o que aquele cenário lhe apresenta... Existe uma pequena mesa com objetos estranhos sobre a mesma; duas cadeiras se dispõem ao redor da mesa; e uma espécie de armário se mostra com suas duas portas ao fundo. Luciano observa as paredes e o chão e nada vê de diferente. Dentre os objetos na mesa estão papéis em branco e um copo com canetas... Luciano imagina que tipo de textos não devem ser produzidos ali naquela mesma fonte de tanto temor para o estranho que se move sob a luz da chama... da incerteza. O isqueiro se apaga. Tenta repetidamente acendê-lo novamente. A chama não vêm. Uma inesperada apreensão surge “nas costas” do policial; vê-se perdidamente assustado, e tenso, por não conseguir produzir luz naquela mórbida escuridão... E isso o rasga por dentro durante intermináveis segundos... Uma presença além da dele parecia se 407


desgrudar da escuridão e impedir que a luz voltasse a existir... quando então... - Estava esperando você. - O isqueiro acendeu no mesmo momento da pronúncia, e o sobressalto de Luciano foi imediato para se afastar defensivamente da fonte da voz ao mesmo tempo que a iluminava no canto oposto da sala... surgida do nada... da escuridão... Olhava com pavor aquele contorno do horror do desconhecido... - Não precisa se assustar, delegado Luciano... O único verdadeiro mal que pode ser feito a você somente você mesmo pode fazer... Ficando contra nós... Um rosto escuro sem rosto, e que eram os muitos rostos do horror. Aquela criatura e aquela voz rouca e arrastada (abafada também) possuía a face, a verdadeira expressão, uma mancha negra, que era o medo em si; completamente puro; o fim, sem esperança... Luciano viu ali muitas pessoas; seu passado; sua vida; a morte viva de um mundo lá fora considerado... normal... Hesitante, falou: - O que vocês querem de mim?... - Apenas o que traz com você. - O que isso quer dizer?... - Permaneciam de pé, de frente, rosto contra escuridão viva. - Em alguns dias você saberá. 408


- O último nome da lista... - Não há mais nada para você aqui hoje... E saiba que estamos sempre perto de você... - É... Eu sei... - O isqueiro novamente se apaga; passagens de um pesadelo entre luz e escuridão; pois o “sacerdote” se vai... voltando a fazer parte de toda aquela escuridão como antes de aparecer: um elemento dela... Acende novamente o isqueiro somente para ter certeza: foi-se... Realmente, não resta mais nada para ele aqui... Novamente caminhando pela estrada. Distante está de qualquer lugar. Nem suas roupas o protegem do frio que sente, e que vem de dentro. Uma pouca sensação do que sente completamente perdido deslizando em seus pensamentos dessa noite tão absurda quanto conseguiria conceber que seria encontrar aquela “pessoa” daquele jeito: sombras da vida, da existência tão perdida quanto os seus pensamentos nessa noite: “Sinto cometer o pior dos erros, que é o mesmo erro de toda a minha vida; a revolta dos desejos não atendidos na reflexão de uma morte quase anunciada. Tal pessoal falta de sentidos ou de respostas felizes, por pessoas comuns; aquilo de ordinário e desejável que nunca tive... mesmo por tão próximo que quisesse estar do amor, do abraço, do carinho de outra pessoa... 409


que não essa face da morte que assombra e comanda meu caminho para o próprio holocausto da razão...” Luciano é o criminoso; é o assassino... E a alma tem razão: será dele, a haste mais curta... A escolha vital.

& As luzes se acendem naquela sala. O personagem de capuz observa o silêncio em volta, e consegue se certificar da total ausência do anterior visitante de antes. Quieto, o personagem apanha alguns dos papéis que estavam sobre a mesa; estavam escritos, porém Luciano não os percebeu: talvez o epitáfio do mundo ou do policial, mas sem importância agora... A criatura dirigi-se para o armário de duas portas... Na verdade o armário é uma porta em si, e se abre para revelar a ninguém além do dono de seu interior, uma câmara oculta. Penetra nesse outro cenário e a porta se fecha. Internamente; em tamanho se assemelha a anterior; porém não em utilidade... de ambiente... Enquanto a outra é apenas um local de espera para as reuniões... Essa... O personagem de capuz acende uma luz que ilumina amareladamente do chão para cima... Essa é a sala onde cinco pedestais se mostram sobre um longa mesa. São cinco representações da 410


morbidez do mundo dentro dessa criatura. São cinco expressões de horror e pavor solidificadas para sempre... São As Cinco Cabeças que nunca foram encontradas; das cinco vítimas; das cinco mortes das esperanças; das cinco portas para o inferno que já foram destrancadas... Cinco rostos mortos. Cinco vidas que não mais existem. A personagem contempla as cinco monumentais representações dela própria: o horror. E são apenas cinco...

...E Justiça para Todos Cada dia é o avanço do mundo que eles constróem. Tão poucos a se considerar, mas de tantas influências sobre o ordinário que acorda pela manhã e vai trabalhar feliz... e chama o monstro de chefe, enquanto este imagina o pobre coitado em chamas infernais, com a pele descamada, com rubras chagas de dor, e ardendo em gritos de horror... ao acordar em mais uma nova manhã e se descobrir estar no verdadeiro inferno... onde sempre esteve. Faltam apenas três dias para a justiça da alma se estabelecer em seus acordes finais... Luciano se declina preso em seu lar, na certeza de ser uma peça importante no jogo das cabeças que rolam na noite 411


escura de Salvador... Ele escreve em sua mesa; mesmo lugar das absolutas e assustadoras deduções daquela noite... Muito mais surgira naquele crepúsculo mesmo, da fé e da esperança que tinha de uma vida normal... Não tem saído de casa desde então; sente a gravidade de olhos desconhecidos recaírem sobre seus atos: o rosto negro do sacerdote lhe assombra a contemplação de qualquer rosto, pois desconfia de todos... Escreve e fuma... Estaria seu telefone grampeado? Estaria realmente sendo vigiado, ou era apenas uma sugestão, inocentemente aceita, do sacerdote?... Dúvida e muito mais dos seus pensamentos sobre o futuro estavam lhe preenchendo a angústia e a solidão daqueles dias de espera. O que Luciano escrevia a longos momentos de reflexão e silêncio era o que ele próprio poderia considerar como tudo... A necessidade de por para fora o mundo aterrorizante que carregava dentro de si desde o primeiro instante que o Arpejo tomou-lhe as ações e ele concebeu a morte de Ilena... há tanto tempo atrás quanto podia se lembrar que era um homem, e um policial, e um homicida... porém não sentia como uma comissão: não era essa a razão do forçado alívio de sua consciência atormentada... Como aquele jogo onde hastes são retidas por um elemento, e os outros retiram uma cada um, e o que pegar a haste mais curta 412


é o escolhido para se sacrificar... seja em que for... Luciano não retirara a haste mais curta... Mas ela sim fora tirada para ele; escolhida e entregue em suas mãos: sem escolha... para ele... apenas o sacrifício. E assim Luciano escrevia: tudo... até chegar a noite da cerimônia e o seu encontro com o sacerdote... Revelação...

& Alguém toca na casa de Luciano. Nesses últimos dias sem sair de casa, um rapaz, sempre o mesmo, tem feito a entrega de suas comprar. O jovem chega, deixa a encomenda e segue seu caminho... Assim tem feito nos últimos três dias. O policial assiste o rapaz partir e se distanciar. Observava os arredores do seu lar nesse mais um crepúsculo na direção da hora fatal... A fumaça do cigarro é carregada pelo vento que o corta janela a fora; tem estado nessa vigília há muito tempo: fazendo-se atento a tudo, mas nunca vendo coisa alguma, pois é o policial; o que Luciano é e faz procura dentro das incógnitas da escuridão a luz para elucidar o horror... Porém nesse exato momento se sente como se sempre fosse o alvo de toda a investigação; a instituição policial se assemelha a algo longínquo 413


em sua memória, pois sabendo que por detrás das glórias humanas haviam aquelas criaturas... e são elas que comandam essa cidade... e também o mundo... Está preso à terrível sensação de que sua vida inteira esteve exposta a este grupo, pois a identificação fora imediata... Estando tentado a se submeter ao mesmo fanatismo e loucura... por apenas uma longa fração de segundo, mas o tempo suficiente para se achar novamente perdido; peça do jogo; aquele cuja conversão seria a heróica vitória dos monstros contra a humanidade... Que humanidade?... É o que pensa Luciano, assistindo sua última esperança dobrar a esquina... com uma carta para o detetive Oscar (o que escrevia).

& Um novo crepúsculo cobre a cidade de Salvador. O momento em que rostos alegres se tornam envolvidos pela escuridão e as expressões se deformam; pois sendo a alegria do dia queimada pelo vermelho do anoitecer, ou mesmo a preguiça dos notívagos se transformando em boemia; em ambos os momentos as deformações surgem, e é o momento quando a alma se ergue do desconhecido do ser humano e invade as mentes ou de medo... ou de 414


prazer... Luciano se vestiu com cuidado e atenção. Carregou a pistola após limpá-la com bastante carinho; quase um ritual, pois sabia, sentia, ter de ir armado... para onde quer que fosse... Fumava novamente na janela a espera do começo... do começo do fim... A recordação que lhe vem àquela mesma janela é a espera que teve de enfrentar antes dos seus primeiros momentos de sonora loucura: o Arpejo lhe soava leve com o desejo de Ilena, e depois da chegada dela em sua casa, subjugada por ele, o barulho ensurdecedor de uma alma destruidora o fez revelarse para si mesmo... Ilena morrera, e um pouco do Luciano de agora também morre junto com ela e com Frida... e com Carol... E talvez agora, bem próximo da realidade, com Andréa... Um carro preto estaciona em frente a sua casa... É a Rocha, sozinho. O veículo e seu interior se movem em silêncio já dentro da noite. Poucos olhares foram trocados entre os dois viajantes; as dúvidas se faziam presentes pela ausência de palavras... Cortaram muitas regiões da cidade, mas para onde estavam indo não era realmente longe; parecia ser um desígnio do jogo provocar a expectativa... Deslizavam em direção da cidade baixa, pela avenida Contorno: uma avenida que contorna a falha geológica que separa Salvador em cidade alta e 415


cidade baixa... O rosto que Luciano observava ao seu lado no carro não parecia mais ser uma pessoa, ou a pessoa que conhecera, que lhe ensinara na Faculdade de Direito, que brincava com destreza com a lei e era a Pedra fundamental de qualquer defesa inteligente... Em que se tornaria o crime, se o representante da lei se tornava um dos seus mentores... Luciano pensa no que era ele próprio afinal nesse contexto; e por que está indo, junto com aquele senhor de respeito, também como ele próprio, para... (Luciano vê o destino)... o Mercado Modelo?... A construção é quase um vestígio dos tempos da colonização desse país. Passavam por Salvador, a entrada do Litoral, todo tipo de mercadoria e pessoas. Junto ao mar; próximo ao porto; o cheiro do oceano sempre toma todo esse local... Hoje de tão poluída que é a baia e o mar, o cheiro da água salgada se confunde com o odor do esgoto que se tornou tudo que aqui existe... Uma representação olfativa do que realmente se transformava: as formas de vida inteligente que aqui habitam e produzem o inferno... Nessa noite sombria a cidade baixa já se faz deserta; pela sensação que causa todo esse silêncio e escuridão azulada, toda cidade parece estar deserta, vazia de seres humanos por que vala a pena lutar, e se sacrificar... Mas Luciano não quer pensar assim... E sabe que o homem ao seu 416


lado, que sai do carro com a sombria expressão da frieza, pensa assim... Ambos contemplam a construção... Reformado várias vezes até o tempo presente, o Mercado Modelo é nesse momento um centro de comércio para turistas, onde se vendem todo tipo de coisas típicas da terra... No passado armazenava escravos negros trazidos da África para servirem de mão de obra barata para a colonização... Pensaria quão o horror também não estaria presente nos rostos desses outros seres humanos do passado, tratados como animais... E que talvez essas criaturas sempre existam no seio de onde o homem está, pois é ele próprio... estão apenas mais sofisticados, e têm o nome de “serial killers”... ao invés de escravizadores... Pois o que se faz ao se matar uma pessoa é apropriar-se da vida dela: e o que era escravidão então?... Ser humano dono de outro ser humano... Luciano duvida novamente de que seja humanidade; pensando em si próprio a cada instante. O doutor Gouveia se volta para ele: - Chegou a hora. Eles entram. As portas não estavam trancadas. Luciano observara que o posto da Polícia Militar também estava deserto; na entrada do próprio Mercado Modelo; “24 horas”; para atender ao público... E para o propósito do que quer que venha acontecer 417


aqui nessa noite: nenhum sinal de nenhum homem de azul... Até onde iria a influência dessas criaturas?... No interior se encaminharam para a escada que dá acesso ao subsolo do prédio centenário: são as colunas de sustentação da estrutura original; descoberto há bem pouco tempo, durante a última reforma, esse subsolo, esse porão com minadouros de água do mar, era mais um espetáculo da tortuosa história do Brasil para turistas do mundo inteiro... Porém agora... Agora era o cenário de uma estranha obra de alma... Ela resiste sozinha, em cada face sem expressão... Luciano desceu os degraus para o que poderia facilmente conceber como sendo o hall de entrada do inferno: um porão centenário com cheiro de oceano e que guarda em suas paredes os gritos de dor e tristeza dos milhares de escravos que aqui estiveram nessa construção: mais um ponto para o fim da esperança: o passado do palco escolhido para o ato final dessas nomeadas criaturas do horror... Todos estavam lá. Aqueles todos rostos da outra noite... Alguns tinham os pés em água. Alguns eram iluminados, e outros eram sombras. Eram uma coisa só: a alma... Todos usavam preto. A Rocha também. E por pura coincidência, Luciano também... O sacerdote estava no centro; o rosto ocultado pelo capuz não lhe 418


escondia a percepção da recente entrada de Luciano no ambiente... havia próximo ao sacerdote uma grande caixa de madeira; o que Luciano, ao perceber, julgava ser o conteúdo da perversão daquela noite... Apenas especulava sobre o que já imaginava... O personagem de capuz falou: - Podem trancar tudo! - Sons se sucederam, e informavam que o mundo lá fora se tornava ainda mais distante: quase um sonho... mas na verdade... aqui é que era o pesadelo... Luciano começava a temer algo: muito mais que ele próprio, a alma, e aquelas pessoas... O sacerdote fala novamente: - Aproximem-se... Você também, delegado... Aquela voz; aquele cenário; o que a loucura da vida se tornara para um simples policial; as perguntas... Luciano se aproxima do centro; pensa em duas coisas... e se apavora com os dois pensamentos... - Hoje... do calor desse porão... fechamos o círculo para a vinda do nosso mestre... A sexta vida extraída dos moldes da normalidade e transformada no desespero sem esperança que nos faz dominar está por ser revelada... - A personagem coloca uma das mãos sobre a caixa. O olhar fixo de Luciano lhe recai logo a sua frente; pode ver por dentro daquela monstruosa massa enegrecida as faces do horror... “Loucura...”Pensa, porém se reconhece... E reconhece no que é 419


assistido por aquelas faces mortas de vida e confiáveis aos olhos de todos os dias... O mundo é delas. É desse demônio... É da subvida gerada após a violência: as dores, as lágrimas, os gritos sem razão, os filhos sem pais, os pais sem filhos, o sangue que faz delirar a família durante o jantar assistindo o jornal da TV... “O mundo não pode ser assim... Não é... Eu posso pensar... Eu posso ver... E posso destruí-los também...” - E dos pensamentos velozes à ação, Luciano saca sua pistola e aponta para o sacerdote... Ninguém faz nenhum movimento... - Muito bem, delegado... - A voz começa a mudar em seus ouvidos. Luciano olha para aquela sombra e ouve a voz que vem do seu interior. Havia mudado... Sente o tremor nos seus músculos: confronta certezas e incertezas no jogo que foi feito com ele... Vive a tensão em cada segundo, e em cada nervo do corpo... O sacerdote ergue as mãos e começa a desvelar da escuridão para a luz sua verdadeira face, sua pessoal identidade, seu rosto produzido e moldado pelo horror... À medida do desvelamento Luciano enxerga o rosto de Ilena se revelando, e depois sendo o de Frida, depois o de Carol... o de Fernando Vainarde em sua eterna tristeza: o inocente cuja vida foi destruída por ele: Luciano... E finalmente o rosto do seu verdadeiro terror: o rosto de Andréa... Quem o era... 420


A mão de Luciano hesita. Seu corpo treme. Sua percepção não o prepara tão bem para aquilo... O rosto de Andréa reluzia, enquanto todos na sala se curvam para a revelação de seu rosto... Era ela afinal... Quando perdera a mãe, e foi morar no Rio de Janeiro com seu pai... Foi ela quem tudo começou por lá: matando aquelas outras seis moças. Criara tudo isso aqui então; seu pai a acompanhara; a palavra incesto surge; a quantidade de perdas em uma vida; sem razões; guiar-se por um propósito vago: destruição da esperança... Seu rosto era realmente satisfeito do que fez com a própria vida; no que acreditava (falso ou não); até onde chagara, e até onde imagina alcançar num devaneio sem proporções... Seus olhos se veem e são um só: - Vamos lá, delegado... Faça o que veio fazer... Posso quase ouvir os pensamentos em sua cabeça de policial, mas não lhe darei mais nenhuma resposta... O policial Luciano é um sujeito inútil e rejeitado; não tem propósito... Quero o homicida... Quero o verdadeiro você que só pensa em matar, ter prazer, se vingar... - Me vingar de que, Andréa?... Que direito tenho eu nessa loucura?... No tanto que tenho já sido conivente... ao me permitir continuar... depois de tudo que fiz... 421


- Você fez o que a alma pede, delegado... Apenas o que você mesmo deseja... Então, vingue-se! Andréa abre a tampa da caixa de madeira em um só movimento de braço, e revela o seu conteúdo para uma expressão há muito perdida; o Luciano... O que ele vê é o fim de toda esperança que tinha em que alguém ali apareceria para acabar com aquele pesadelo: é o corpo de Oscar... morto. Luciano volta os olhos para Andréa novamente; ela segura um envelope com a mão; um envelope que Luciano conhece: - Não se preocupe... Sua carta chegou... O Ministério Público vai adorar receber uma confissão assinada do delegado homicida Luciano. - O policial abaixa a arma. Tem a sua expressão de um profundo desespero; a amargura e a angústia de uma vida inteira perdida; jogada de um lado para o outro por um mundo que se torna a sua cara: sem fontes de esperança, apenas de dor... Acha talvez ser justo: a justiça deles que aqui estão. Justiça para ele... Olha novamente para o corpo do detetive Oscar. Observa os monstros curvados em obediência a uma total demente... E olha para ela; pensa: - “Não perco mais nada... que já não perdi no momento em que matei minha primeira vítima...” Seus olhos encontram novamente os de Andréa. Dá 422


mais um passo a frente na direção dela. Aponta-lhe a arma, e atira no rosto da mulher que por alguns momentos lhe foi uma esperança, e agora era nada: mais um símbolo de decadência, o fim... O corpo cai para trás. Seu crânio se tornara uma bola vermelha de sangue: as pontas ocas explodem ao contato; até mesmo no corpo de Oscar suas manchas respingaram... Luciano continua a atirar no corpo de Andréa: não está matando mais uma pessoa... está consumando tudo que a alma previra... Andréa fizera um círculo a sua volta e o fechara com ela própria: acreditando no que queria acreditar... como todos esses outros que assistiram essa consumação; sem um gesto, nenhum movimento, pois seu domínio está para sempre garantido... Porém Luciano não mais se importa com coisa algum, e se volta na direção do doutor Gouveia, e também o alveja com tiros de sua pistola... Há inexpressividade em seu olhar; a angústia tão profunda do seu mundo interior, que o deixa a ponto de não se importar com mais nada, mais ninguém... Pensando: “...E justiça para todos... Filhos da mãe!...” A Rocha e outros também são mortos antes que Luciano seja agarrado e nocauteado pelos integrantes daquele cenário: para o policial: aquela história estava terminada... As portas do inferno estavam 423


definitivamente abertas, e os ministros do demônio eram aqueles homens ali presentes: psicóticos loucos e bem vestidos, que podem fazer o que quiserem...

& O dia seguinte veio e se foi. Corpos amanheceram na cidade do Sol; muitos e muitos corpos... O detetive Oscar fora esquecido, assim como fora o detetive Ronaldo... Mais dias se foram... Junto àquelas cinco cabeças repousa o corpo de Andréa; envolto na própria escuridão que criou... e para seus seguidores... está na viva presença do Demônio... Porém o inferno ainda é aqui... Mais dias que se vão. Os homens que dominam continuam a dominar: o mundo é lar dos fortes... E eles são fortes... Outros dias se passam. Processos são reabertos. Investigações são feitas. Mais horror surge nas televisões dos lares do mundo... A verdade está em silêncio. Os donos da justiça são os homens; os homens que matam homens por prazer... Sem palavras: um delegado é condenado à prisão por homicídios qualificados em série, e com agravantes de crueldade... O sistema correcional o irá receber... A pena é de 65 anos, mas não importa, pois o que terá Luciano de carregar para a eternidade é muito mais que simples culpa... (seus olhos ainda veem no que 424


o mundo estรก se tornando)... ร a completa falta de esperanรงa... Completa falta de esperanรงa!

FIM

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24/09/97

MONSTRO EM MIM

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PRÓLOGO TRIÂNGULO COM A QUARTA PONTA A chuva tinha a cor da prata suja no meu sábado de outono. Muito pouco o clima dessa cidade me atinge. Eu prefiro pensar que como todo presente da natureza, chover e derreter no calor são prazeres insubstituíveis, inverbalizáveis, fora dos conceitos de prazer... É como o rosto dela visivelmente grato pela minha presença: chega a causar aquela velha ansiedade no meu peito calejado de paixões destruidoras; a respiração ofegante já treinada em ser camuflada pelas palavras sempre tão bem pronunciadas de um homem sempre apaixonado, sempre triste e sempre... feliz... Mas minha felicidade naquele dia chuvoso foi rasgada por uma pergunta: a voz dela pelo telefone trazia sempre o prazer simples da presença virtual numa vida tão vazia. De certo modo ela era minha, estava sendo; confiava em mim, acreditava em mim e gostava de me ouvir falar... Seu recente rompimento com aquele tinha aberto um breve e triste espaço no coração dela. Minha intenção naquele dia era saber o que eu poderia fazer para tê-la feliz... Mas acho que ela já tinha outra pessoa em mente: a pergunta doeu, ao ressoar tão inocente: “Você tem o telefone dele?” 428


Eu não tinha. E não tenho... Ele é um amigo, mas daquele momento em diante se tornou o ícone de um pesadelo: inocente vibração de um fim de conversa... Ela tinha o que fazer naquele sábado e de certo modo, após a resposta, eu também. ### O ensaio da banda reverberava o esquecimento que eu tentava construir obstruindo o que minha imaginação tão bem trabalhava. Tornava-se mais difícil na medida que estavam lá, bateria, baixo, voz, meu melhor amigo e ele na guitarra... Pilhavam-se entre timbres e acordes a imagem ligada ao nome conhecido e pronunciado naquela mesma manhã. Talvez naquele momento pensasse nela também com a intenção do meu ignorado malefício. O “set” de músicas se consumira. Rostos cansados, mas alegres se acolhiam e se separavam por entre os cômodos da grande casa onde tal evento ocorria: era a casa desse meu melhor amigo... Bateria e ele conversavam na cozinha; minha inocente presença parecia querer me trazer para esse mundo... -Vamos para a festa! - Clamava bateria. -Não sei. Eu estou sem mulher. - A linguagem rasteira me aliviava, mas meu ressentimento pelo 429


passado de sucesso de tais criaturas não me permitia deixar de conceber tal cenário. - Chama alguém! - Essa não. Essa não... - Nomes conhecidos e desconhecidos moldavam o tal algo fora do meu conhecimento. Eu tinha a paixão vibrante e crua; e ele, eu não conheço, mas parece sempre ter o toque... - Tem ela... - O nome chocou tanto o meu corpo que quase não consegui me manter em meu mundo: sempre seguro na onisciência de minha imaginação e a todo momento fragilizado por tais golpes exteriores... - É...eu tenho passado mais tempo com ela do que aquele quando eles estavam juntos. - E o patético sorriso do bateria ao ver a expressão do amigo... Quanto a mim restou retocar os fragmentos de imagens da figura que começava a surgir e engolir o primeiro sinal de agressividade que sempre começa a surgir nesses tão singulares momentos... Fui para casa mais tarde, suportando a mim mesmo nas divagações do esquizofrênico alerta que vive dentro de mim, sendo eu a vítima então do sonho que ele me mostrara nessa mesma noite: a me atirar no mundo da visão lasciva, da simplicidade visceral que machuca toda a existência desse monstro que aqui vive: nada além era, eram os dois, ele e ela, simplesmente de mãos dadas, entrelaçadas, e na minha concepção do que é um 430


pesadelo... mais uma morte de uma alma que parece ter prazer em sofrer, sangrar, gritar e fazer fugir seu ser para esse lado tão obscuro onde estou eu... Dormi muito mal nos dias seguintes, transbordando agitação e ansiedade, vibrando agressividade e intolerância, tendo de atravessar dias comuns penetrados pelo silêncio da ausência dela e pela contínua especulação do quão real tal imaginação podia se tornar... E foi.

### Tinha atravessado o domingo após o silêncio de duas semanas de sua voz. A imagem persistia. O ciúme ainda era preconcebido, mas forte como sempre. Naquele momento ainda, outras fatalidades me cobravam atenção mas nada subjugava o fato de eu senti-la distante, cada vez mais; nem mesmo minhas nobres tentativas de normalidade com outras mulheres funcionavam, nunca funcionaram, só me restava a culpa por tentar ser o que não consigo e por isso ser um criminoso, pervertido e atormentado. A segunda-feira vinha com a abertura de um tal evento: eu e meu livro (sou escritor; olha só!) ficamos expostos pela semana subsequente na biblioteca de uma faculdade, junto com outras atividades culturais. 431


Como a abertura desse evento seria à tarde fui almoçar com aquele meu melhor amigo na casa dele. Havia acabado de voltar de viagem e fiquei feliz por vê-lo. Trouxe-me um livro de presente (Os doze macacos) e alguns discos novos. Gostamos de “metal-thing”. Estávamos ouvindo músicas e conversando quando ele inocentemente largou a bomba no centro do meu peito fazendo-me quase perder a sensibilidade em todo tronco do meu corpo; meus punhos se cerraram ferindo as palmas e eu comecei a morder os lábios compulsivamente... Do seu jeito: - Ah! Ela namorando com ele... Ela, que parecia uma mulher equilibrada... - Muito mais que as palavras, solidificar tal imagem em minha mente fez tais estragos em mim que meu estômago mal podia resistir às contrações, até hoje, minha capacidade digestiva está reduzida pela metade e comer se limita ao fato de eu ter de forrar o fogo que surge na bolsa com algo mais que sua própria constituição, mesmo assim com imenso sacrifício. Nos momentos seguintes tentei agir de maneira normal, mas gesticulava de maneira exagerada, ria com força e comprimia objetos com agressividade... Tive de suportar vários assuntos até o ponto de ebulição da adrenalina, estava com tanta força... Aquele amigo em minha frente me irritava tanto que podia espancá-lo até a morte... Não pude 432


então suportar em libertar um forte grito, rapidamente abafado, mas muito forte... - O que foi? - Meu amigo que tanto sabia sobre mim e provavelmente nada do dilacerado ser humano em sua frente naquele momento não podia ser participado da dor... Menti. - Uma pontada aqui... - Almoçamos. Conversamos. Levou-me de carro até a abertura do evento e ficou um pouco... Adoro meu amigo... Mas eu só queria poder sair correndo dali e me tornar um selvagem a tal ponto de não existir mais nenhuma lembrança dentro de mim do que ela era, do que ele era e do que o amor sempre foi para mim: sacrifício... Agressividade cega, dilaceração, sobrevivência: a imagem das mãos entrelaçadas me levaram a pesadas lágrimas em frente ao espelho nessa mesma noite. Admirava a figura de tal pessoa irreconhecível, um monstro disfarçado que planejava com perfeição o seu próprio homicídio, com as manchas de sangue saídas de seu crânio por conta de uma arma tomando todo cenário de uma de suas histórias não publicadas, na lembrança e reconstrução daquele Arpejo, num novo contexto, com outro nome e agora com ele próprio morto e esquecido... Mas as lágrimas pararam e eu tive de atravessar toda semana com gosto amargo na boca, tratando de alienar meu ser do resto do mundo 433


e procurando lembrar o sabor do entorpecimento... e a cerveja veio na sexta-feira... O lamento, a lembrança, o pensamento, o ferimento continuaram a travar a batalha com minha procura por sentidos, mas não tinha sentido, em momento algum: por dúzias de vezes imaginei matar ele com dor, com vísceras expostas e garras manchadas de sangue... A visão das mãos entrelaçadas surtiam como o efeito de raios em olhos adormecidos... e por vezes também imaginei a transgressão sobre ela, por trás, triste e com dor, no desespero de mais um desejo... E da visão só me restava o auto-flagelo para ocultar o monstro criador que cada vez mais tomava a forma daquele rosto no espelho: o criminoso, com prazer de ser o errado, exposto de um mundo certo, admirando a morte violenta como a melhor amiga... No sábado então seria o encerramento do tal evento cultural e eu fazia parte do evento... Minha tão previdente imaginação sabia que teria a presença dos dois lá, o ato final da minha auto-destruição: dois quilos a menos naquela semana e diversas situações onde o risco vinha em dobro, além do fato de estar vivo. As longas caminhadas para desmembrar a agressividade e a figura provável do psicótico de olhos escuros na visão insólita dos passantes desavisados: um triste fim de decadentes 22 anos... Mas então... Eu consumi 434


mais e mais cerveja. Não sentia mais as pernas e meus lábios vibravam dormentes sem conseguir articular com clareza as palavras de minha devastação: poesia, expressão, o insulto de palavras claramente pensadas, mas que se tornariam incompreensíveis... e cegou o clímax do meu cárcere entre imagem e realidade. Focalizei os dois com meus olhos entreabertos pelo entorpecimento. Minha aproximação era lenta e imprevidente, não sabia o que iria fazer e então veio... - E aí, como está? - Tonto, servil. Não conseguia olhar para ela. Em resposta à pergunta dele o beijei no rosto: ele merecia, estava onde eu queria estar, suas mãos estavam entrelaçadas, eu queria gritar, mas acho que nem disso era capaz... Voltei-me para ela ainda sem olhar em seus olhos, dei o primeiro beijo, o par na outra face não foi completado... Eu somente revirava os olhos e os guiava para as mãos e os dedos entrelaçados, esquerda dela e direita dele... Queria sair dali... - O que tem feito? - Bebido! - Voz triste, inexistente. Afastei-me dos dois. Só queria ir embora, tentar esquecer da inocência dos dois diante do meu inferno pessoal... Meu último ato antes de andar para casa pelas ruas escuras e enlameadas dessa cidade, que naquele momento pedia que provesse um assassino para me 435


matar, foi arrebentar com um pontapé uma porta para poder pegar um objeto meu que ali estava guardado, agora sem pertinência. A caminhada para casa só me fez triste e calmo. Lembrei-me que aquele também estava lá. Lembreime como também sofria quando via ela com aquele, mas nunca fora tanto... Tive ela tão perto, achei que poderia ela também pensar em mim, resolvi dar tempo ao seu lamento, mas ela já tinha ele em mente, eu acho... O peso da noite trouxe frustração e dor, e pela cerveja acredito, sonhos de vôos livres que me fizeram só despertar muitas horas depois... no domingo. ### Meu melhor amigo me liga preocupado por saber que bebi muito no tal evento, ele havia contado, ficara assustado. Senti a doce ternura do amigo inocente do horror com o qual me cercara naquela última semana. Convidou-me para novo ensaio da banda no mesmo dia. ### Minha imaginação permanecia fértil no momento de figurar rever ele. Não conseguia evitar de 436


gostar dele. Tentava suprir animosidade irônica, mas seu sorriso era solidário e minhas palavras pareciam se tornar mais reais e menos ingênuas... Notou que eu vestia a mesma roupa do dia anterior, tornei a beber nesse dia e meu melhor amigo pediu para eu não beber mais: diligente, mas fracassado diante da minha desgraça fora de proporção... Interessante mencionar que ele disse que na noite anterior havia sonhado com alguém tentando matá-lo: difícil não imaginar que seria minha alma dilacerada à procura de vingança... No decorrer do ensaio percorri três transgressões: escrevi um poema de necroempatia e uma história nojenta na caixa de um dos pedaços da bateria, e além disso, durante as músicas agredi meu antebraço esquerdo, minha coxa direita e minha nuca com uma baqueta da bateria: a dor física surtia o efeito de cura à dor que era ver ele tocando, sendo admirado por ela, tocado por ela, e ainda também tendo meu insistente (quase irritante) afeto... E sorrisos e alegria, e ele inocente na história, como ela também. Voltei para casa. Sentia a sonolência alcoólica, mas queria assistir Superman... Recebi um recado: ela havia ligado duas vezes, duas vezes... O motivo era evidente; a preocupação pela minha decadência e auto destruição... Não conseguia evitar de amála. Não conseguia evitar de sentir o desgosto... Sua 437


afeição não era mais suficiente e eu não sou apto para jogos, simplesmente digo a verdade e suporto as miseráveis consequências de um mundo que não me suporta como eu também não o suporto... Triste sou, triste estou, ela ligou duas vezes e eu estou perdido no maior crime que posso conceber: liberar o monstro no mundo ou esperar seu amor, sentir pela primeira vez a paixão intensa, com ela, como nunca tive... Quando ela finalmente conseguiu falar comigo demonstrou toda sua preocupação. Gostaria de saber o que dizer a ela sem perdê-la de vez, mas pareço sempre perder a todos, numa tragédia fatal de uma mente criativa que sente amor e dor como um sentimento só... Ela disse que aquele quer voltar com ela. E ela está é com ele. E eu queimo no inferno por tudo isso, somente com a clareza dessas palavras, o conhecimento dos personagens e as reais possibilidades do que é o final... Agora...

NUNCA É O FIM...

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A paixão do homem é a razão porque ele vive... Sem a paixão o homem perde a razão para viver... O último pensamento.

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ANTES ### Ver o mundo e gritar na origem de uma imagem de terror. É como porém narrar o meu próprio fim conhecendo vivamente o começo de tudo que virá após... Eram as luzes dos carros cruzando a noite que eu via primeiro no ramo do observador companheiro na história das pessoas com quem convivo. O ar forte e frio refrescava o ambiente fora do carro em movimento. Sua cor escura refletia os raios dos carros vizinhos que ultrapassavam e eram ultrapassados na correria da noite cedo da sexta-feira de esperanças tão insólitas do que é viver um fim-de-semana ruidoso de aventuras incontáveis dentro de copos, banheiros e olhos envenenados pelo nosso combustível da alegria... Não queria estar melancólico num dia tão importante para todos, mas o ímpeto resguardava com tanto empenho no meu coração que o sorriso chegava a sangrar minhas ondas da falsa alegria que regia os presentes no carro. Os pensamentos de cada homem do veículo, nós quatro, divergiam no que mostrava, mas posso sentir com renovação o que de tão sério regia a verdade daquelas argumentações tão vazias; podia sentir a verdadeira convergência 440


do que se queria naquela noite e em todas as outras, provavelmente. Estão no carro comigo, Romero, Marco e Rodrigo... A banda havia praticado bastante durante toda semana para a apresentação no sábado que se emergia perante aquela noite. Junto com eles, os irmãos Beto e Breno, formam uma banda de “rock” chamada Gridlock. Parece agora uma reflexão do que eles tentavam fazer com as suas vidas tão diversas ao se juntarem para criar, treinar e tocar algo que eles consideravam tão agradável aos seus ouvidos: machuca o sentido lembrar que tocavam algo chamado “heavy metal”... Consumar a atitude criativa do mundo com uma tendência de som que arruinava os ouvidos daqueles e desse que se propunham a jorrar cabeçadas no ar com uns poucos sentidos e pensamentos em mentes povoadas por planos e desejos insatisfeitos; assim como eu... Imaginava avidamente em minhas divagações dentro daquele estúdio forrado de barulho e atitude como tais pessoas podiam se dedicar tão facilmente a instantes de vitória na existência em quais não havia a devida entrega do depois: respostas absurdas Beto pronunciaria: algo como: “Dormir.” “Comer.” “Beber água.” Sempre foi ele feliz em sua figura de mistério inexpressivo; nem uma ponta de sofrimento em tempo algum e agora me redobram a 441


sensação de ausência da visão que tive... Não! Eu diria, Beto. Absolutamente nada! Isso é o que resta depois. E o depois ainda está sendo preconcebido... mas todos se divertiam; até mesmo eu, sobrepondo momento após momento a dor, que os olhos azuis e os acordes de guitarra de Marco, me faziam relembrar; não por ele próprio, mas pela imagem que fazia sempre sugar da memória todas as alegrias e trazer à tona somente a imagem... dela; porém isso agora não é o mais importante... Marco toca bem a sua guitarra. Beto é o outro guitarrista: uma curiosa mistura de talento e dedicação sem muita didática, mas que porém estava sendo arrastada para estranhos caminhos do desleixo. Depois tinha Breno no baixo; Romero era o cantor e Rodrigo tocava a ruidosa bateria... E lá estamos esses dois últimos, Marco e eu cortando uma noite que seguia inocente sem o medo que se arrasta hoje. Rodrigo estacionou o carro. Descemos e estamos em mais um curioso bar de interior noturno na convivência desses com quem estou. É tal familiar situação que obedece seus padrões de vida: consumimos as bebidas; facilmente observa-se o prazer de uns e o cansaço de outros ao exaurir-se nas noites do que é um incógnito sentido de viver, pelo menos estava sendo para mim... Todos os olhos guiados e desviados do verdadeiro desvanecimento 442


que deve surgir no inconsciente de cada um de nós agora; perdidas inibições e resguardos, mas nunca deixado de lado a resistência em não confiar. Todos se sentem mais seguros ao realmente acreditarem no quanto são inocentes das dores dos outros, mas é um jogo de responsabilidade que vai muito além dos olhos que começavam a se avermelhar naquela noite não muito fria desse começo de outono... Meu pai dizia que o melhor de beber é perder a responsabilidade sobre as coisas; pesava então na cabeça desse que transborda sentimentos a total rivalidade do que estava sendo dito, com uma eterna e incansável procura do significado nos eventos que ocorriam em sua frente: mas há, não houve, não havia e eu sei que depois não haverá... Logo me veio a responsabilidade por tudo e era guiada por mãos suaves do doce caminho da amizade, do afeto e do amor de outros que escondem por trás de toques a realidade de suas personalidades destruídas pelo tempo, a falta da real inocência. Foi o bêbado que vimos numa mesa próxima. Aparentemente ele havia bebido o suficiente para incapacitar totalmente sua humana resignação em ser alguém, tornando-se algo digno dos comentários que ouvi. Ouço as risadas satisfeitas de outros bêbados, inclusive as dos que estão comigo, quando a criatura subjugada pela miséria da vida numa sexta-feira à noite 443


solitária deixe a gravidade e a flacidez carregarem até o chão, fétido de seu próprio vômito e escarro, sua dentadura... Qual patamar de degradação pode-se imaginar para um homem nessa postura; cabeça baixa, esquecido, inexistente até para si próprio naquele sublime momento em que seus braços se esticaram e capturaram de volta a dentadura, colocando-a sem cerimônia de volta a uma boca que provavelmente está em puro estado de anestesia, a considerar pelo número de garrafas vazias na mesa.... Que este pode merecer além do escárnio que todos ofereceram sem culpa ou compaixão ?.... Em outras mesas alguns o ignoram conhecendo a própria representação de futuro, recente, logo. Mulheres escandalosas sentem o vapor do que elas terão de suportar mais tarde em suas camas por conta dessas escolhas que fizeram; estômagos revirados em períodos latentes por não serem capazes de sentir ainda que tal nível de degradação só ainda não os atingiu por uma questão de tempo, pois a segunda-feira logo chega e a necessidade por mais só será suprida cada vez com mais e mais álcool, até que também não tenham mais dentes e suas dentaduras caiam nos próprios vômitos e suas mãos se estendam para pegá-las: o fruto final do desprezo que revelo dessa tal evolução humana, que chega a tal ponto, lhe dando tal imobilidade para 444


o instante seguinte que vinha. - Marco, vamos sair daqui... Clima ruim do caralho. - Romero falava sério apesar da mórbida satisfação ao contemplar o bêbado da mesa seguinte. Talvez sendo ele o mais velho já tenha visto cenas semelhantes demais para não formar um paralelo com a própria vida e com o futuro dos amigos ao redor: talvez até ele próprio... Meus três colegas de mesa somavam mais forças para o que surgia de humor e desgosto dentro do que eu realmente via na situação: Meu coração pedia pela imagem em minha mente.... O animal da mesa vizinha se levanta cambaleante para conhecer as vinte pernas novas que surgiam no seu corpo enquanto se dirigia ao esgoto chamado de banheiro que o bar deixava a disposição para seres de outras civilizações poderem estudar como os detritos químicos gerados por nossa promíscua existência se misturavam com tal perfeição gerando tão novas sensações em nossas narinas e estômagos extraordinariamente preparados para tanto. A degradação viria na forma primeira dos olhos entreabertos do elemento. Ele olharia fascinado sua urina escorrendo para o buraco marrom manchado, fazendo um barulho curioso que penetraria pelos seus ouvidos como uma música rítmica e hipnótica, deixando-o completamente paralisado. Seus olhos 445


continuariam a enxergar quando notasse que a linha da urina estava se tornando curva, devagar, no compasso da música, até fazer um semi-círculo, perfeito, com a estranha ponta do líquido em movimento pairando sobre seu rosto entorpecido e fascinado pela imagem e pela música... - Vamos nessa. Já paguei lá as cervejas. Marco voltava do interior do bar colocando a carteira no bolso de trás da calça jeans clara rasgada. Mesmo na concentração em que estava pude notar aquelas mulheres horrorosas do bar olharem o passeio do jovem de cabelos compridos e pose de “rock-star”; por mais este momento recordava a loucura da semana passada, quando me enveredei por aquele estranho caminho sem a claridade das sensações do hoje: reescrever aquela história fora o mais duro momento do qual eu me ressentia na vida; um período tão curto para ouvir falar de uma mulher com um homem, uma mulher que amo, e logo em seguida a visão dos dois juntos para minha infeliz inversão de desejos e capacidades. Ele olhava inocente para nós três enquanto eu percorria seu rosto sabendo o que sei de mim mesmo, do que sinto por ela e do que consigo fazer agora com minha imaginação... Rodrigo levanta ainda sonolento: não bebeu muito, era sono normal, antes de sairmos da casa de Beto ali perto, após o 446


ensaio, ele havia tomado café: estava dirigindo; mas como diz Romero: a vida de um baterista não é fácil... E além de tocar bateria para duas bandas, Rodrigo trabalha e estuda. Começamos a andar em direção ao carro; meus olhos se pregam ainda na porta do banheiro, o elemento ainda estava lá dentro; em minha maestria sórdida e infeliz, não conseguia parar de imaginar que a minha imaginação se tornara realidade, e não sei como , tudo esteve ocorrendo naqueles últimos minutos... “... A linha de urina do bêbado nojento e paralisado começa a deslizar o ar suavemente na forma de um pequeno círculo em volta do rosto do homem. Está perto e luminoso, ele pode até sentir o leve calor que é gerado. Um patético sorriso se forma, a boca entreaberta, gotas de vômito misturado com o catarro ainda escorrem pelos dentes artificiais da dentadura em seu local devido. Nessa posição, boquiaberto e sorridente, a linha amarelada começa a se envergar para trás, como a serpente tomando impulso para o bote. A música das gotas pára, o movimento circular se interrompe; e do sorriso um som da realidade lá fora o faz abrir os olhos em abrupto pavor: um carro partia em disparada; sua boca faz um último movimento premente da surpresa ( “Uah....”); a linha penetra com grande velocidade na boca do sujeito, 447


fazendo seus olhos ficarem saltados de expressão, em seu ventre ele sente o estranho e alucinado movimento que começa a causar-lhe extrema dor; tenta se curvar, mas não consegue, nada mais no corpo parece ser sensível; então começa a sentir a pontada para fora, seus órgãos começam a ser puxados para fora, de uma força só; suas cordas vocais forçam para sair juntas e o som se forma na largada final do corpo: Num único golpe, todos os órgãos internos do abdômen são arrancados, seus olhos ainda são capazes de vêlos flutuando por sobre o seu rosto, deixando passar os filetes da luz que já se escurecia e salpicando todo seu rosto com o sangue vermelho amarelado de quem não tem nenhuma consideração com o fígado; finalmente desvanece do choque e da hemorragia; sua queda é primeiro aparada pela porta do cubículo, fazendo-o em seguida cair sentado, e pela lentidão da queda, já chegando ao chão morto. A massa de órgãos desaba desordenada como uma pequena explosão, manchando todo o chão e parte da parede do fétido lugar de “higiene”. Fazendo-se o cenário do elemento; criatura virada ao avesso e revelando tudo que tinha dentro de si. Nada.” ### 448


Um som gelado invadia minha mente subadormecida. Imagens azuladas compunham o cenário de uma tragédia muito bem conhecida e desenhada pelo meu interior tão fortemente encarcerado pelos anos sem fim de servidão à incerteza e ao medo. São figuras póstumas de um passado eternamente presente em minhas visões diárias do que eu acreditava ser parte da minha realidade imaginária, mas como tudo que hoje, agora, se consome em verdades sem propósito, também o despertar daquele sonho vinha como o fruto do armagedon da noite anterior: vivido entre lembranças e outros sonhos, a atividade alcoólica e a prestação de honras aos sentimentos de adoráveis mas desavisados amigos; eu tive que transportar o que sabia, o que ocorreria no dia seguinte, este no qual estou começando a despertar, para um recanto do inconsciente de modo que pudesse sobreviver a tal provação que comparecia em se formar cada vez mais veloz e real a cada instante desse novo dia... Desconhecia a verdade iminente que o sonho se propunha a apresentar, mais cedo ou mais tarde, e por essa razão passei tanto tempo hesitando em querer acordar nessa manhã: o sonho se revelava, mas também a realidade queria se revelar... e eu temia as duas. Ter saído com Marco na noite anterior não ajudava a situação, por mais fraca que pareça 449


hoje e por tão forte que era na época.... Me lembro perfeitamente: não queria existir naquele dia. Abri os olhos. O frio gelava meus pés. O som do ar condicionado vibrava leve em minha cabeça ainda meio entorpecida. Sentia o ressecamento na garganta pela desidratação e pelo ar artificialmente refrigerado. Senti um gosto amargo na língua ao tentar engolir saliva. Minha garganta deu um tímido pigarro enquanto eu olhava em volta... Não é o meu quarto, me lembrava, tinha passado a noite na casa de Rodrigo. Sua cama estava vazia; imaginei que ele já havia se levantado pelo adiantado da hora que era: quase onze e meia. Marcamos de voltar para a casa de Beto antes dos acertos finais para o show de logo mais à noite. Minha presença nesse momento estava sendo um acidente: como tinha assistido ao último ensaio na noite anterior, saído com os três e tarde já estava quando todos se dispersaram, resolvi dormir na casa do personagem que dirigia o carro... Alguns relances ainda restavam em minha turva memória do que tinha visto nos bares onde estivemos: o nojo e o desprezo pelo bêbado no primeiro bar; e a simples e memorável sensação de rebaixamento que senti por outro ícone da moléstia viciosa noturna: o desgraçado parecia ser um conhecido de Marco; não conseguia completar um frase com sentido: ainda agora tento 450


imaginar como tal pedaço de carne semi-racional pode estar vivo nesse mundo, coexistindo com outros mais renegados ainda, de olhos semi-cerrados pelo peso da inutilidade, somente aguardando seus momentos finais nas mãos daquele único destino premente: senti pena do sujeito; mais uma vítima do nada.... Marco se sobressaiu nas alturas ao contracenar com tal pessoa com uma destreza de quem se reconhece muito superior, com seus pensamentos de esperança e com sua presença tão humanamente calorosa; demorei para me afastar do mesmo, mesmo que por razões ambíguas.... Romero ia calado economizando a voz para a apresentação de logo mais, e Rodrigo, como a bem pouco tempo, imagino, dormia... Coloquei meus pés embaixo do cobertor novamente. Queria aquecê-los antes de sair da cama. Procurei Rodrigo por uma parte do grande apartamento. Estava preocupado em dar de cara com algum outro morador, que provavelmente olharia assustado para um branco alto e magro de cara chupada e sem voz, e diria “quem é você ?” num tom intimidador. E do jeito que eu estava articulando, minha voz pareceria totalmente sem argumento, mesmo que o argumento fizesse total sentido.... Não o encontrei em parte alguma. Não conseguia imaginar ele tendo ido embora sem me chamar... Andei até a varanda. Dava 451


para uma parte da rua e para o mar. Da minha casa só se vê o mar subindo no teto do prédio, e mesmo assim somente uma ponta azul ao longe. Eu sempre adorei o mar. Contemplava-o com meus olhos ainda entreabertos e ofuscados pelo amanhecer atrasado. O gosto na boca foi quase esquecido pela brisa forte que acariciava o meu rosto..... Nesse, como em quase todos os momentos daquela época transbordei meus pensamentos para ela. Estava doendo mais do que tudo ver minha imaginação tão invadida por algo que queria evitar, mas aquele momento como em muitos, a conseqüência vinha sempre pesada a respeito do que eu deveria fazer: especialmente nos dois dias seguintes que estavam tratando de começar.... Não é mais um problema desse outro alvorecer tão bonito que assisto agora. O mar ainda faz parte do cenário, mas meu ser é muito mais povoado de extremos que naquela época. É algo tão vago e tão complexo que só poderei contemplá-lo perfeito depois que o sol nascer.... A conseqüência que tanto queria me apavorar era o fato de tão viva ser a tênue fronteira entre o que eu pensava e o que fazia ou às vezes, o que acontecia.... Estava apaixonado por Suzana. E ela estava namorando Marco. O fato só me havia sido confirmado há duas semanas, numa conversa casual com Beto, logo depois que ele chegou de uma rápida 452


viagem. A informação teve o poder de um raio no peito; mas mesmo antes tinha tido o pressentimento que tal relacionamento estava na iminência de acontecer, e por essa razão sofri na dúvida por dias até a confirmação, e sofri mais ainda após a confirmação. Durante uma semana meus olhos reluziram somente uma simples imagem que eu sabia que cedo ou tarde iria se confirmar eram as mãos de Suzana e Marco entrelaçadas.... Algo tão poderosamente simples na concepção de minha mente que quando tive a imagem real à minha frente senti como se fosse um sonho. Foi numa festa num campus universitário qualquer: quando avistei os dois meu nível de entorpecimento já assumia os limites do risco para outras vidas humanas, como eu costumava pensar; mal sabia eu que sóbrio seria pior... Minha atitude chocara mais a mim que a todos: evitei de pensar agressivamente todo tempo até meus olhos encontrarem os deles; e com os dois em minha frente parti dali sem deixar rastros, somente preocupações devidas a um bêbado qualquer atendendo sobre sua própria responsabilidade quando realmente não parece ter nenhuma. Fui para casa naquela noite. Dormi. Chorei no dia seguinte com as mãos entrelaçadas na memória. E hoje cá estou nessa varanda admirando o mar e sabendo que hoje à noite, no show, terei de ver os dois fazendo mais do 453


que estar de mãos entrelaçadas... Imagino que nível de importância teriam dado eles se soubessem como eu me sentia; ou qual será a importância que eles, ou qualquer um, hoje, riam para o que eu sinto ou sei, ou vejo, ou vi... A visão do mar novamente me emociona. Batendo com força nas rochas do quebramar, assim como meus sentimentos, batendo com extrema agressividade na realidade e se arrebentado do mesmo modo que as gotas de espuma que vejo se esvaírem mar a fora contra a pedra.... Rodrigo toca meu ombro. Volto-me para um rosto completamente alterado.... Dormira no quarto da mãe, disse ele.... Talvez eu ronque.... Não importa. Falei: - Preciso de um café. ### Metade da tarde do sábado se passara. Sentiame esmagado pela abertura de possibilidades do que poderia acontecer no show à noite. O momento estava chegando. Após voltar com Rodrigo para a casa de Beto nos encontramos todos na expectativa coletiva do que aconteceria: só faltava Marco chegar antes de todos irem para o local passar o som. Especulava em cada minuto como seria minha reação e comportamento... Havia prometido para Beto que 454


não beberia nessa noite do show. Éramos sem dúvida amigos muito chegados, mas tal divergência começara a nascer quando ele notou um crescente instinto de auto destruição se erguendo em minhas ações sob o efeito do álcool.... Acredito que ele nunca tenha imaginado que tal tendência sempre fora persistente em mim, mesmo quando eu ainda não bebia, na faculdade. Fizemos este mesmo curso juntos por quatro anos e por mais próximos que estivemos um do outro as incógnitas sempre nos recobriam de tempos em tempos: acredito que sendo a minha bem maior... Beto sempre liberara seus instintos na música, tinha um trabalho, produzia algo mesmo desconhecendo para que... Todos instigam em algum momento da juventude o que será ou seria o futuro: também ele, provavelmente.... Porém naquele dia específico, seu pedido preocupado para minha abstinência alcóolica poderia se tornar algo de extremamente incômodo para mim: era sem dúvida o que eu poderia considerar na época como o momento mais errado para ficar sóbrio. Marco já devia estar com Suzana. Viriam juntos para casa de Beto, e daqui para o local da apresentação... Olhar hoje para tão pretensiosa dedução e torná-la tão absurdamente fora de proporção consegue construir em meu rosto o sorriso que só me visitava nos momentos de maior desprezo por pessoas no decorrer 455


daqueles dias. Os momentos anteriores de uma antecipação que eu gostaria de ser capaz de dispensar agora e não sou. Tanto hoje quanto ontem. E o que mais incomodava era sentir a antevisão mais cruel e mais dolorosa que a própria realidade quando consumada. E nisso lamentei não quebrar a minha promessa naquele dia: o gosto da cerveja e o adormecimento das sensações seria a melhor das bênçãos: agora nem tanto, pela insignificância de tudo que vejo depois... Mas ainda ajuda... Só interrompi minha apreensão naquele momento quando Breno disse: “Ele deve ter ido buscar Suzana.” O irmão mais novo de Beto, e baixista da banda, não sabe como isso foi decisivo. Resolvi voltar para casa e só ter de confrontar minha situação a noite, quando a hora chegasse, como sempre imediatista, num uivo exasperado de um coração que nunca se libertou dessa prisão... por enquanto. Ouvi o som do telefone tocar três vezes antes de escutar a voz da mãe de Suzana atender e logo em seguida me dizer que ela não estava. Povoada já mente de conjecturas, tinha absoluta certeza de com quem ela estaria agora, nesse momento.... Meu corpo se contorcia imóvel vendo o tempo viajar sob meus olhos e a resposta alcançando o meu já tão sofrido senso... Facilmente invocava todas as memórias que era capaz de conceber a respeito de Suzana: a dor e 456


o prazer integralmente sobrepostos nos momentos que passei com ela, usufruindo cada pedaço da amizade como se fossem os presentes mais valiosos dos deuses para um pobre e inocente mortal. Sua voz e seu sorriso através do telefone: os contatos não eram tão prementes como são hoje: planejados e bem cuidados para não levantar a suspeita do que está querendo ser dito. Naquele tempo nunca soube com certeza se ela sabia ou não; provavelmente sentia que algo havia mudado no meu comportamento, mas nada tão próximo dos pospostos momentos que jorraram logo após; e no eco das palavras que fizeram por tanto tempo confundir a todos, inclusive a mim mesmo que as pronunciava com tanta destreza: era o que eu fazia de melhor... No final daquela tarde meus pais apareceram “juntos” em minha casa. Curiosa sensação ver aquelas duas pessoas juntas. Importância mínima dou agora à separação dos dois, mas a imagem de uma família completamente desmembrada geralmente jorrava em meus nervos como enxofre sobre o carvão em brasa; explodia em mim quando via o cinismo e a hipocrisia dos dois ao se tratarem como amigos tramando suas próprias vidas em separado, simplesmente com a sensação de desencargo de consciência nas costas: “Hoje fui legal com Fulano, portanto amanhã posso ser o mesmo 457


miserável de sempre”. Essa ambiguidade humana sempre me irritava; principalmente quando eu a sentia dentro de mim mesmo: sendo educado com pessoas que nem conheço, nem respeito, nem ligo, nem quero conhecer; fazia parte do trabalho de sobreviver a cada dia num mundo que vejo com tão pouca relevância agora: um lamento pelo que fui e fiz, e um gole de cerveja pelos meus olhos estarem tão abertos agora.... Os dois chegaram, falaram, reclamaram, riram e se foram. Minha expressão era tão distante quanto eu gostaria que eles estivessem naquele instante; não importava o que eles fizessem, juntos ou separados... Olhei pela janela os dois partirem de carro. Via o azul dele vibrar em vermelho logo após desaparecerem na curva... Era estranho sentir meus dentes rangerem na montagem de um cenário no qual aquele carro de classe média se tornava a última e eterna representação daqueles dois rostos que por tanto tempo foram os que mais surgiram a minha frente: infância e adolescência confusa, para desaguar agora nesse alvorecer. Como o céu brilhava naquele dia! Já começava a anoitecer e tudo se tornava meio róseo. O crepúsculo sempre foi para mim uma metáfora do que eu era: uma transição: havia o modo como as pessoas me viam, o dia; e havia a noite obscura e desconhecida da luz que sonhava e imaginava com o final perfeito para o tal 458


apocalipse, como é da sua conotação: revelação. Um exercício sempre me fez estabelecer a diferença entre os dois “eus”: apreciar a própria respiração. É o que faço neste exato momento sem precisar de nenhuma concentração... Mas algumas vezes não dava certo. Algumas vezes eu ficava perdido e o eu da noite surgia a luz, e me afastava das pessoas, inclusive as que eu mais amava... E uma imaginação tão rica de frustração e malefício vinha cruel e mais destruidora... a cada aparição dessa minha atual imagem.... Porém, ainda naquela época, estar apaixonado ajudava, e mesmo o ciúmes se tornava agradável, como ciúmes; tornavame mais humano e mais passional a respeito de mim mesmo, que antipático para os outros: lacônico, sensível e triste... O que mais doía era assistir o anoitecer sem ela, e isso ainda era normal. Logo a noite chegaria e mais. ### Existe um filme com um ator muito famoso. Na história ele é um traficante de drogas “aposentado” que é apaixonado por uma linda mulher. Por medo de seu outro lado ele não se revela a ela apesar de se manter sempre perto. Mas o sofrimento dele começa realmente quando um amigo dele, que é policial, 459


começa a sair com ela. E a guerra de afetos, paixões e drogas se dá num tom continuamente ambíguo. Até o fim. Antes de estar presente naquela situação houve outro personagem na vida de Suzana. Por algum tempo foi suportável tal situação porque ela já estava com ele desde bem antes de nós nos reencontrarmos: tínhamos sido colegas de ginásio e começamos a revisitar nosso passado meramente cordial. Tudo começara a queimar em minhas entranhas quando comecei a sentir muita falta de sua companhia, mesmo pelas poucas vezes que estivemos juntos sozinhos: seu forte braço e o cheiro de seus cabelos inundando meu rosto enquanto sentia seu braço em volta do meu pescoço; por milésimos de segundo desvanecia em suas mãos, pendendo meus braços em volta de sua cintura e desejando prolongar aquele abraço pela eternidade que me restasse nessa vida; e foram estes os poucos e melhores momentos que podia recordar naquela fase de minha vida: a forte e frágil sensação tão agradável que carrego até hoje como algo que talvez tenha feito sentido na vida.... Nisso acredito e quando me volto vejo novamente a imagem se formar nas lembranças de minha imaginação naquela noite. Por mais que a paixão fluísse em minha corrente vermelha como um terrível vírus de reações imprevisíveis, eu estava indo para a 460


apresentação do pessoal. A janela do ônibus refletia a mim com o frenético movimento por trás como se fosse um fotograma cinematográfico que emperra na frente da luz se debatendo com a projeção da imagem na tela, compondo um verdadeiro pandemônio turvo e indecifrável. Conseguia ver claramente meus olhos, acentuadamente escuros pelas sombras da noite do lado de fora, mas com certeza profundos no que viam no interior do ser e no que não queriam ver, e no que com certeza veriam. Diligente a advertência meus olhos captaram quando cheguei no local do concerto. Suzana foi a primeira pessoa que vi. O que era aquilo que veio rasgar meus sentidos naquele momento: mal conseguia olhá-la nos olhos... Estava linda como sempre eu conseguia me lembrar dela, mas minhas atitudes tinham outra estranha resignação ao observála sorridente cumprimentando um velho amigo: eu. Só consegui estender-lhe a mão para cumprimentá-la; muito distante dos fortes abraços que sempre dava com entusiasmo. Imaginava que talvez ela sentisse alguma coisa além dos meus problemas e olhos esvaziados, e dissesse com voz confiante e amorosa algo que fizesse com que tudo aquilo começasse a fazer algum sentido; mas não houve nada, nem poderia haver: só via em sua expressão o lamento por me ver tão perdido em uma 461


situação na qual mesmo sendo o suposto elemento chave, desconhece completamente o fato, ou talvez ignorasse... Não consigo imaginar qualquer pessoa no mundo fazendo alguma idéia do que passava em minha mente naquele instante, ou no resto da noite, ou mesmo agora aqui, pungente vendo nesse morro o sol nascer... Então talvez o que ela tivesse na cabeça seria, e será, algo de plenamente sozinho, individual, feminino e completamente desconhecido... Mas na rede de minha visão era apenas doloroso tê-la tão perto e senti-la tão longe ao mesmo tempo. Simplesmente entrei no estabelecimento; com os mesmos pesares de um corpo cansado que já parecia me acompanhar por tempo demais... Procurei me sentar até o pessoal aparecer. Ter os ouvidos tragando a música com a cabeça enterrada nos “speakers” daquele auto-falante deveriam fazer meus olhos pararem de enxergar a luminosidade do rosto dela ao contemplar Marco no palco, tocando. Estava na extremidade oposta do palco em relação ao lugar onde ela ficara; a luz era difusa, o movimento era intenso, mas as manchas de pessoas que eu via pelos olhos velozmente em movimento seguindo a cabeça no ritmo da música não eram capazes de confundir a visão ou imagem que tinha dela. Mesmo eventualmente fechando meus olhos já 462


cansados da mesma visão, não parava de observá-la na escuridão do meu pensamento e a cada fagulha do que eu sabia, e do que tinha heroicamente conseguido evitar de ver naquela noite, o tremor da vaidade subia às pontas dos meus nervos e músculos, e a tempestade de agressividade nos movimentos continham a extensão da vitória ressentida pelos valores dos meus sentimentos, e tudo que se revoltava no que eu via como única saída. Sentia as luzes e as vozes se esvaírem à medida do novo som que culminava ao final de cada refrão; podia sentir seguir a apresentação dos meus amigos em cima do palco, logo em minha frente, mas o que eu começava a ver realmente eram as deformações nos rostos e corpos de cada um: o forte cheiro de cerveja vomitada entrava pelas agora híper sensíveis narinas, parecia invadir também meu paladar, mesmo eu não tendo bebido uma gota; um forte enjôo logo tomou conta do meu abdômen, e junto com as batidas de cabeça que eu continuava a dar, vinham fortes convulsões que pareciam compartilhar do ritmo da música, agarrando os acordes altos e baixos como a marcação para os intervalos de ida e volta. Comecei a devanear meus olhos acima das cabeças de todos e não parecia haver mais vida por ali: o movimento de todos se tornava uma onda de cores e manchas, com uma textura indescritível que rompia 463


o veludo e passava a um tipo de sangue muito grosso, borbulhando lentamente no compasso da canção que era tocada. Do chão então se ergueram flutuando diversas latas e garrafas de cerveja, de diversas marcas, que começavam a se tornar pontiagudas e cortantes, quebrando-se e afiando-se umas às outras como que guiadas por mãos invisíveis, e em seguida começaram a cortar em diversos talhos e perfurações a onda logo abaixo. Daquela textura começou a jorrar vários tipos de pedaços de estranhas vísceras, humanas e não humanas, como pedaços de carnes salpicando dentro de um triturador de alimentos; tomando logo após a forma de um rodopio pelo ambiente, tomando conta de todo recinto com sua cor e fedor próprios, finalmente escoando para dentro de um orifício circular preto amarronzado que ao receber toda carga daquela devastação se fecha rapidamente, se abrindo em seguida e voltando a fazer o mesmo movimento até que não vejo mais nada além da minha própria visão: o olho do estranho criador daquela destruição... Eu... - ...Aaahhh! - ...Aayyeeehh! - Meu grito foi confundido pelo grito do final daquela música. A voz de Romero nos amplificadores e auto-falantes, juntamente com os sons finais dos instrumentos, foram o suficiente para 464


camuflar com eficiência meu assombrado retorno à realidade. As pessoas ainda estavam lá. As latas e garrafas ainda estavam no chão. E Marco estava lá, curvado, beijando Suzana, a visão que eu havia tentado evitar até aquele momento; e logo se tornara custosa: rapidamente o sorriso dela se voltara para meu rosto assustado e paralisado: não sei o que ela realmente viu, ou pensou, estava escuro, confuso; mas vi seu sorriso se derreter um pouco para algo que não consegui definir naquele momento, mas ao reconhecer a minha expressão na hora, sei que era algo simplesmente humano, de difícil compreensão e que nunca se menciona: é como ser pego nu: se um não falar, o outro fica calado... Porém algo do instante sempre restaria, e nada ficaria tão simples depois de minha imaginação ter sido tão absurda naquela noite; e dois mundos ficariam claramente expressos, toda vez que aquela dor me voltasse, e novamente eu estaria perdido... e todos morreriam.... no mesmo instante onde agora aplaudem os cinco rapazes sobre o palco. Minha cabeça doía. Queria poder me deitar no colo de Suzana e dormir no silêncio perdido da paz que seria possuir seu calor perto de mim como uma segunda pele que faz parte e é tão importante quanto a minha própria. O amor suave e o sono leve 465


de um sonho afastado há muito tempo de meu peito já tão exaurido pelas perdas dos anos e dos dias... Não tinha colo algum, só podia me debruçar na mesa escura do bar ainda vazia, pois todos ainda estavam no salão assistindo o final do show. Gosto da música, ela ainda ressoa agradável, apesar do alto volume em meus ouvidos já dormentes pelo zumbido que eu sabia que permaneceria por pelo menos dois dias: era um pequeno preço a ser pago por ter um gosto musical bem atendido: o rock sempre fala mais alto... O sono começou a chegar rápido num corpo tão abalado; sentia como num navio, flutuando em alto mar, sem conseguir definir bem onde era esquerda e direita, com o equilíbrio afetado, a cabeça latejando e a mente explodindo de imagens tão confusas... E eu não havia bebido... Somente a emoção do coração partido parecia persistir na realidade dos meus últimos pensamentos acordado: o começo da triste sensação do amor perdido; mas também ele se foi... “A cortina de chamas se abaixa para revelar a meus olhos uma avenida larga iluminada pelo sol forte de uma vibrante manhã de domingo.

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### Trafegando solitário por ela está o carro azul metálico que reconheço como sendo o de meu pai. Não surge de modo estranho que eu possa vê-lo de vários ângulos diferentes, indo em velocidade moderada na direção de um semáforo. Dentro dele estão meu pai, dirigindo, e minha mãe ao lado. Ambos parecem felizes e descontraídos indo de encontro a qualquer destino que o destino lhes apresentar. A velocidade começa a diminuir gradativamente a medida que se aproximam do sinal, até que o automóvel para. Logo abaixo, na margem de minha visão, vejo que o fogo da cortina continua a queimar brando, iluminando estranhamente o cenário de baixo para cima. O sinal se abre. O carro não se move. Meus pais começam a se movimentar de maneira estranha dentro do carro. O som do motor desaparecera por completo; há somente um tenso som reticente no ambiente, como algo começando a crepitar em meus ouvidos. Noto eles tentando abrir as portas, mas sem conseguir. Finalmente alcanço o fogo que começa a subir por debaixo do carro fazendo primeiro o chão enrubescerse e logo após o próprio carro em si, tornando sua cor fria em uma brasa viva e flamejante. De dentro do carro ainda posso ver os dois baterem nos vidros enquanto 467


suas expressões desesperadas se tornam máscaras derretidas de carne super aquecida. Não posso escutar, mas suas bocas já deformadas pronunciam meu nome: não sei ao certo se em socorro ou em lamento, mas algo que vai simplesmente desaparecendo a medida que seus corpos se tornam pastas inertes, ainda borbulhantes, dentro do “forno” de quatro rodas que termina por se queimar completamente e desaparecer nas chamas, fechando-se novamente a cortina sobre meus olhos; logo após se tornando escuridão e em seguida diversos sons amontoados que facilmente eu entendo como as pessoas ao meu redor, chegando, se sentando e conversando....” Já estava acordado, mas muito mais que isso, surpreso por continuar tão lúcido após testemunhar a morte dos meus pais, de uma maneira tão singular e de um modo, que também surpreendetemente, me era tão familiar quanto meus pensamentos naquele dia tão estranho, triste e estressante. Por que as coisas tinham de ser assim, daquele jeito?... Eu estava muito cansado. Estava com a cabeça pendendo para fora da janela do carro. Meio que de bruços. Com o rosto para frente, sentindo o forte vento em minha pele. Beto dirigia insólito em relação aos meus problemas, apesar de uma visível preocupação durante a noite. 468


Havia cumprido a promessa que tinha feito a ele de não beber, mas meu comportamento não tinha sido dos mais recomendáveis junto aos amigos; sem mencionar a minha particular esfera de sonhos, imaginação e realidade, que compusera aquele tão singular laconismo, e a agressividade: minha frieza com Suzy parecia doer muito mais que o latejar que ainda vibrava em todo meu crânio. Seus olhos perdidos na incompreensão, minha paixão escondida, minha dor... E não foram poupados os extremos de quem se aproximara de mim naquela noite: cada rosto que eu conhecia, desconhecia e reconhecia parecia flutuar em minhas lembranças do futuro, como nunca existentes mas sempre presentes naquelas minhas imagens tão nítidas e viscerais do jogo sem sentido que acabou se tornando tal madrugada tão fria quanto algumas de minhas ações... Tinha na lembrança as figuras de todas as faces alegres que cruzaram comigo antes, durante e depois do show: casais de amigos sempre agarrados, inclusive Suzana e Marco, que tive de suportar mais algumas vezes calado o espírito da convivência e do malefício em seus beijos e abraços de jovem casal recém formado... Felicidade tanta, que surgira inocente o mesmo Marco em minha frente para convidar-me para o seu aniversário no dia seguinte... Imaginava enquanto ele falava o quanto não deveria 469


estar realmente ofuscado pela presença de Suzy ao seu lado naquele instante: o suficiente para não ver que estava se dirigindo a um simples boneco quase inanimado, uma representação ainda viva do que eu já não era mais: alguém... Não precisava saber o que acontecia comigo. Merecia minha inveja, e também o meu abraço agradecido pelo convite. Tão morto quanto eu mesmo; um viajante inocente na troca de olhares com o seu par, pondo mais dúvidas nas perguntas ainda não feitas, mas breve pronunciadas... Sentia como aquilo marcava; não só a mim como aos outros: Romero sobrevoara embriagado nas minhas ações e se mostrara preocupado; achava ele que eu também havia bebido; talvez se o tivesse teria agido diferente, mas é um lamento sem pertinência agora... Também ele ficara feliz nessa noite, arranjara uma namorada. E tudo mais que eu conseguir ver... de real; além do mórbido real que eu podia sentir crescido em meu peito como um tumor de uma vida inteira: seguindo o movimento veloz do carro na madrugada. Faces sem expressão que habitavam as ruas escuras, inundadas pelo horror fétido da sobrevivência e da falta de sentido de todas aquelas coisas e criaturas: mendigos, prostitutas, drogados, travestis, meus amigos em seus próprios cenários, meu amigo dirigindo silencioso para sua casa, onde eu também dormiria aquele resto 470


de noite para poder ir direto ao tal aniversário de Marco..., a escuridão, o cheiro podre da cidade e os meus olhos perdidos, se inundando e logo escorrendo as lágrimas quebradiças de um momento de extremo medo, de dor e de vontade de descobrir o porquê de tanto sofrimento numa alma que só queria a paz. Agora sei e as lágrimas ainda querem correr.... ### Suave como a queda da montanha mais alta que um sonho consegue conceber, sem o alcance suposto de sua base mais sólida; não começa e nem acaba, apenas existe e trai meus olhos flamejantes do calor de um sono sempre consciente e sem nunca comportar o verdadeiro precedente do fim da fadiga: ela sempre permanece e fica, e traz no conjunto de imagens dos dias passado e seguinte o que mais tenho a temer... Depois da passagem cuja o vento frio fazia se auto anunciar com o temor das novas revelações de um novo dia decadente na história de nós seres humanos tão providos de clarividência que simplesmente morremos ao chamado do desconhecido. O portão se abria com peso, robustez e lentidão, como haveria de ser nas tristezas de seu escuro conteúdo. Sinto a umidade fria da rua semi-iluminada de uma madrugada 471


insone na vida de todos que aqui vivem. Os passos são largos e apreensivos; no corpo, a penetração constante daquele ar cortante em todos os poros, invadindo a alma dos calafrios vivos da memória de todos os dias... Como não pude imaginar o assustado e selvagem dos rostos que se escondiam na escuridão fétida e miserável daquela rua; eram os rostos de todos os dias como eu disse: ignoráveis figuras do dia a dia que me escoltavam com o olhar pelo meio daquela pista sem destino. Pareciam grunhir os estranhos sons de suas fomes diárias, mas com a estranha satisfação de estarem se mostrando contentes com suas tão desagradáveis ações diante de meus olhos: podia ver também, como o sentido obcecado de uma ordem cegamente obedecida, sugavam, arrancavam e engoliam suas próprias línguas: devoradas suas fomes e misérias com o aplacar da vontade no silêncio bem construído de todos nós que tapamos os ouvidos para o ensurdecedor barulho da verdade logo mais a frente... Porém também isso terminava e se auto concluía no consumo das loucas animalescas imagens que começavam a se alimentar umas das outras, em silêncio, com olhos até o final, fixos em mim e em minha caminhada... Não sentia mais o consolo por suas existências; como tudo que parecia haver: o toque do vazio se construía ao meu redor, e junto 472


com as lembranças fizeram aparecer a outra porta em minha frente, a azul com a qual estava acostumado, brilhante e luminosa, aquela que me fazia querer acordar tão vivamente, mas que também me deixava capaz de usurpar da realidade a capacidade de escolher... E mais do que nunca, naquele domingo, eu não queria acordar... Sabia, como sei agora tão sólido e frágil quanto a lata de cerveja em minha mão, que despertar era dirigir minha visão e pensamentos para o que eu não queria; enfrentar Suzy e Marco juntos, rostos confusos de amigos preocupados, pessoas de um mundo que eu já começava a não acreditar muito como sendo realmente meu... Ter o alumínio esmagado em minhas mãos já feridas me refaz dentro daquela situação, e a meu frio ver nesse momento, as escolhas nunca deveriam ser apresentadas de maneiras tão dolorosas: deveria ter simplesmente acordado, ido ao aniversário, abraçado minha “amiga” que tanto amava e visto que alguma coisa mais ainda existia, talvez incerto, mas alguma coisa... Pelo menos algum tempo mais, além da minha imaginação, além dos meus sentimentos e além das transformações de uma revelação tão cruel de alguém que acreditava na vida; que resistiu até hoje, por mais pouco que tenha restado do mesmo ser humano daquele tempo.... “Eram os olhos tristes que me recebiam por 473


traz das luzes da porta recém aberta. Ainda sentia minhas mãos trêmulas na maçaneta gelada, de algum metal forjado. O pouco que ainda vinha da realidade soava como um lamento, mas todos os lados tinham que conviver juntos dentro daquela confusão: era a minha mente... Ele havia brotado da luz azul, parte física dela, como que decalcado e reanimado pela minha entrada. Fez um lento movimento em minha direção e como que absorvido pela minha própria sombra, senti toda aquela luz escura azulada começar a vibrar de dentro de mim... Podia viajar dentro da luz, e ver muito mais além do que minha imaginação conseguia tão facilmente prover nos momentos de delírio e agressividade: era como se a fuga estivesse finalmente completada, num estado de total alienação de tudo que é considerado certo, e real.... E as imagens assustavam, como o medo presente na expectativa, como o que agora não há mais, nem nunca houve ou havia; como eu havia tanto temido dentro de um eterno antecipar da revelação: ela só trazia o vazio, nada além, nada depois, nada que reste... Terminada na tela o que sempre conhecera como a fonte da luz, mas na verdade apenas o condutor de mim mesmo para o retorno do que não mais iria conhecer como realidade; e no teor frio do vidro da tela para qual era encaminhado com velocidade só havia uma coisa: a 474


data; e por ela, se tornando cada vez mais gigantesca e disforme pela presença da luz, atravesso o fim, o fim de tudo, só me vindo a escuridão das pálpebras de meus olhos cansados”...., exaustos, muito mais que quando deitara na madrugada passada. De volta a casa de Beto, na cama para hóspedes, com o corpo dolorido, com o arrependimento clemente em minhas entranhas recém refeitas pela escolha que fiz; somente realmente consciente hoje; com pensamentos fixos na desilusão, no que fiz, no que faria daquele momento em diante, no que diria, no que creria, em o que seria. ### Não queria acordar naquela manhã. Ou em nenhuma outra. Mas já estava com os olhos abertos; via ao redor o quarto escurecido artificialmente, porta e janelas fechadas; Beto dormia o sono dos inocentes em sua cama logo à minha frente; não me movia; sentia todo meu corpo semi-relaxado por debaixo do cobertor, parecia ativo, mas inerte, com medo de si próprio como eu mesmo já sentia. Minha visão alcançou o rádio relógio na cabeceira da cama de Beto: eram duas horas da tarde. Havíamos deitado cinco da manhã, já previa acordar tão tarde. O aniversário de Marco seria um almoço, mas todos 475


sabiam que se estenderia muito, já que todos que estariam lá também estiveram no show da noite anterior, todos indo dormir de madrugada, colocando suas mentes entorpecidas e felizes em sua maioria; Marco eu sei que estava; sobre a responsabilidade de um “verdadeiro” mundo de sonhos... Algo que eu jamais não tinha; sentia não ter mais: mergulhado na própria tragédia inconsequente até aquela noite, sem ter a real noção do quanto as ações de uma vida inteira atingiam não só aquele meu círculo tão bem protegido que eu chamava de vida e que me orgulhava de trazer ocultado dos olhos de todos, mesmo aqueles mais solidários, mesmo daqueles mais amorosos que por tanto tempo ignorei, os quais hoje sinto tanta falta; pessoas que naquela manhã; com olhos abertos para um penetrante nada em minha frente, não conseguia de modo algum considerar como importantes ou mesmo até, existentes: surtiriam com a mesma imobilidade do meu corpo, como figuras além da representação, criaturas ignoráveis ou descartáveis, que na verdade não era, mas que eu não podia deixar pensar como sendo seres sem futuro, sem presente, sem nada além do que foram em minha vida, e na sua grande maioria... motivos para dor, mesmo que sem razão... Mover-me é que era o grande sacrifício. Desci com passos pesados as escadas da grande 476


casa de Beto. Os dois primeiros lances davam em duas salas, onde não havia ninguém; segui as vozes que vinha ouvindo desde que abrira a porta do quarto de Beto até alcançá-las, após o último lance de escadas que dava na cozinha antes passando por uma vasta área de serviço: eram Romero e Breno. - ... Bom... (Lembrei que já era tarde.).... Boa... tarde. - Mas que cara é essa?! - A voz de Romero vinha como um alegre alento para aquelas imagens tão terríveis que ainda residiam em minha mente. Sua amizade e jocosidade ao reparar meu rosto abatido e cansado tinha o verdadeiro tom do que eu deveria ter realmente apreciado na noite anterior: aquilo: a amizade... - Ressaca?! - Breno se conduziu nessa conclusão. - Mais ou menos... - Disse eu, lento e com pouca diligência na articulação das palavras: o contato com aquela realidade simplória de pós-noite divertida não me fazia reconstruir com clareza meu comportamento sobre tal, mas sim na absorção; tanto de Breno quanto de Romero... Um olha para o outro chapando breve sorriso: - ...Nada que uma festa não cure... - ...E mais álcool! - Completou Romero 477


transformando os sorrisos em gargalhadas arfantes e alegres... O aniversário de Marco: ainda me lembrava e ainda sentia; tentei simplesmente sorrir com eles... (Beber!). Imaginava que se a cerveja teria feito qualquer diferença nos acontecimentos daquelas 24 horas: provavelmente estaria anestesiado pela torpe frequência no sangue, mas na sempre clara vinculação com o que eu estava realmente sentindo... Talvez seria como sempre achei que fosse em meu coração e nos rostos de todos que me acompanhavam naqueles dias, apenas mais uma maneira de fugir às visões que provavelmente todos têm de confrontar nos dias após dias de tão confusa existência: ainda não sentia tão forte o desígnio como sinto hoje, mas decidi não beber naquele dia de tão forte vontade de fugir para qualquer lugar me fez ver que no fim, agora, não havia e nem há lugar para fugir... Entorpecer-me novamente com cerveja se tornou muito pouco prazeroso daquele dia em diante: somente a leveza que trazia ainda era algo a se considerar nos momentos das mais fortes necessidades de sobrevivência, enquanto aguardava... Mas minha imaginação sempre foi de ir muito além do que eu imaginava, e era nela que geralmente me perdia nesses momentos de tão singulares devaneios: a festa viria com o poder da passagem que era os jovens naquela tão crente ondulação de caráter e 478


personalidade que se constituía conhecer outras pessoas, aquelas pessoas, as de todos os dias e festas e fins de semana e shows... Senti a passagem daqueles momentos naquele começo tardio de dia só me vinha com o poder da vontade e previsão do que poderia ser tal memorial de comemoração: meu coração dividia espaço com o crescente medo das visões e as visões se tornavam cada vez mais presentes, como que tomando conta da realidade, e mais que o amor perdido em si que novamente teria de enfrentar, era o que me seria apresentado de tal extraordinária visibilidade durante os mesmos instantes de confrontação, isso sim começava a me assustar desde já, desde o momento em que eu não podia mais voltar atrás na decisão de ir àquele evento: mais uma vez o aniversário de Marco soava com a dualidade do que eu estava vivendo na época, desde quando nem me lembrava mais o que era tudo aquilo que sentia; somente nas imagens eternamente revisitadas é que o sentido se refazia até o sonho daquela mesma noite que se passara... E da festa vinha também o olhar de Romero, na percepção do ambiente, mas despreparado para o meu ponto de vista do real; e dele vinha a primeira imagem, e também a última: o olhar preocupado e as palavras lembradas desde o começo... ainda naquela cozinha: - Cara, sua expressão não tá nada boa... 479


Mas ele não sabia a razão. Estava preso na minha ambiguidade de pavores e incertezas. Só sabia que de imediato a realidade me dava Suzy longe... e a imagem perto, muito perto. O céu está passando do róseo para o amarelado. Estava mais ou menos assim somente que indo na direção oposta quando chegamos na casa de Marco. Éramos os últimos. Eu, Beto, Breno e Romero. Era mais uma reunião íntima, com pessoas bebendo muito e comendo algumas das coisas que a mãe de Marco tinha deixado prontas. Saíra para deixar o filho mais à vontade com os amigos... Todos cumprimentamos o homenageado. Permanecia de óculos escuros; me incomodava ter que encarar qualquer pessoa presente ali; não por desdém, mas por minha total necessidade de isolamento. Abracei-o com muita força: nunca deixei de gostar dele: ciúme e inveja sempre pareciam soar muito mais como um elogio; não sei se conseguiria sentir tais coisas de alguém que não gostasse... Sentir por alguém que não se gosta parece mais valorizar um sentimento oposto... Mas os meus olhos se entregaram diretamente a Suzana; com a proteção anônima das lentes escuras, tinha a segurança da escuridão para sentir com mais força do que nunca aquela paixão que se tornava o ícone daquele momento de passagem: como a última “boa” lembrança de uma vida tão 480


permeada de lances adversos; insignificantes naquele momento e completamente inertes agora; mas que buscavam uma derradeira aclamação de motivo: coisa de muito meu pouco conhecimento, se o que eu velo é nada... Ao voltar via o sorriso no rosto de Marco; definitivamente um bom amigo para se gostar, mesmo que por nada conseguisse evitar a minha incógnita... Porém o momento me derrubava, e com força... Romero bateu em meu ombro. - Não agarra demais não, cara... Se não a namorada dele fica com ciúmes. - Senti os olhos de Suzy quebrarem através da lente dos meus óculos a minha proteção. A organização das palavras da mesma frase traziam a verdade única daqueles gestos e olhares: todos perdidos nos sorrisos da brincadeira tão bem apropriada para todos, menos para mim, e para ela... E Romero é quem fora de provocar: sem prévia, sem amenidades, mas já muito tarde... Já podia trilhar o caminho agressivo surgindo no meu peito machucado pela verdade. Só me fiz mais sério. E por todas as perdas que a juventude tem de aprender a suportar em suas vidas sempre tão cheias de revelações e descobertas para caminhos continuamente divergentes, e quase sempre esbarrados no mesmo reconhecimento da própria mortalidade 481


com vias de fato do que vem adiante; nem sempre com o sucesso, ou o amor, ou com a vitória de todos os dias tendo de apreciar sua decadência... Paralisada ela está agora; comecei a freá-la naquela mesma noite eu acho: talvez no momento eu nem soubesse disso, mas no que via, via o fracasso, a submissão ao meu pesadelo do ontem inexistente nas vidas de nós todos, porém admissível em nossas mentes tão clementes pela volta do bom que passou e não volta mais... Mas naquele instante, por detrás daquelas lentes escuras já na noite caída de domingo, algo mais do ontem vinha na imagem que contemplava com morbidez continuamente livre à minha frente, como tentara evitar antes, mas com muito pouca importância agora nas profundezas daquela mente já perdida. Sentado, longe o bastante de todos que gostava tanto, perfeitos pelo álcool, sem a vontade que consumira; sentados a uma mesa na varanda larga de uma casa de madeira e concreto com cor de interior bem sucedido; não muito grande, mas confortável. E então vozes alegres, casais, brincadeiras e distância: Suzy e Marco estavam abraçados à cabeceira da mesa de costas para mim, uns dois metros. Seus rostos se encontravam, seus sorrisos se transformavam em beijos e suas figuras começavam facilmente a se desvanecer em minha imaginação: a dor que abatia sem sentido e nenhuma 482


resposta do depois; e pois... Romero estava sentado em cima da mesa, relaxado, entorpecido, vivo e contente como sempre, provocando e participando da alegria de todos... Perguntaria hoje o porquê dele e não do casal como centro da minha imaginação naquele dia, mas nunca houve resposta; somente no momento veio com tanto empenho quanto a realidade, e hoje duvido... Permanecia sentado, quieto, quase imóvel. Real... “Começara a tossir por sobre uma das gargalhadas. Um olhar sério se forma refletido pela lente dos meus óculos. A tosse se torna convulsiva junto com uma expressão apavorada de quem sentia que estava perdendo os contatos com as sensações do corpo. Romero se curva com o rosto para o tampo da mesa sob os rostos surpresos e assustados de um punhado de amigos que começavam a entender que aquela não era uma reação normal, nem a continuação de uma de suas brincadeiras: não havia diversão no desespero dos seus movimentos... Permanecia imóvel; não conseguia parar... Beto começou a bater nas costas dele enquanto Marco tentava manter a cabeça dele parada. Sua posição se tornou como que ajoelhado, mas com a cabeça sempre pendente: as convulsões no estômago advindas da forte tosse não o permitiam levantar por si próprio. O sofrimento se 483


erguia a cada instante com todos meio desesperados e inertes. Suzy olhava assustada sem ter muita certeza de como agir; na época era estudante de medicina, mas as razões de tão fortes explosões lhe fugiam à compreensão, talvez também pela lentidão dos reflexos, como em todos ali, devido ao álcool durante toda a tarde. E Romero continuava a se debater, com a tosse se tornando cada vez mais feroz, alternando os sons de sua origem.... até o momento em que veio... Eu somente observava imóvel, e sentia cada instante do que assistia... A primeira golfada de substância jorrou sobre a mesa banhando com abundância braços e pernas alheios. Era branco, bastante aquoso devido ao excesso de cerveja e cheirava a carne apodrecida; de diversas refeições semi-digeridas por organismo constantemente entorpecido. Todos representaram suas repulsas e se afastaram passos distantes. Compelidos em limpar aquela substância de seus membros e em se libertar do odor que começava a se alastrar do mesmo modo que o líquido pelo chão da varanda. Porém Romero continuava convulsivo sobre a mesa, liberando o terrível barulho da tosse junto com ininteligíveis grunhidos, que junto com olhos extremamente abertos de uma expressão aterradoramente apavorada, dizia que algo mais estava para sair dali... Uma das garotas presentes 484


gritou histérica, enquanto os outros começavam a se afastar o máximo possível da fonte daquele possível contingente de repulsão. As lentes dos meus óculos continuavam a refletir imóveis o deslumbre da imagem que era ver Romero começar a se erguer lentamente trazido pelas forças da convulsão centímetros acima de sua posição e com o rosto deliberante do terror fazer surgir a segunda golfada.... O som aberto veio com dor... o líquido vermelho jorrou com pedaços negros de carne. Levantou-se o odor daquela onda. A força foi suficiente para derrubar várias garrafas que se encontravam na mesa. Escorreu junto com o líquido branco e tomou todo chão da varanda da casa de Marco. Os cacos de vidro também se juntaram ao conteúdo. Rostos assustados e enojados observavam o cenário e gemiam os sons de suas dores... Ainda imóvel... Romero tombara morto sobre a mesa. A face deformada pendia para o lado junto com a cabeça. Uma expressão imóvel que não repetia sua eterna alegria. - Meu Deus... - Alguém disse.” Deus do céu! Como pude deixar acontecer em minha frente e não fiz nada para acabar com aquilo... Ofereço uma lágrima por você, amigo. Preso nesse único instante, só posso lamentar... Era o que eu mais temia de minha imaginação: a perda do controle, 485


sendo tomado, indefeso contra mim mesmo, e pondo todos em risco, acreditava... Minha presença ali, naquele ambiente tão repleto de calor humano, só me fazia lembrar que no frio solitário eu estaria bem melhor após saber o que sabia e após sentir que ainda sinto... Para todos e por todos daquele dia em diante, era melhor que eu partisse. Ainda via Romero rindo sobre a mesa, a atenção para toda alegria que eles ainda mereciam... Parti, antes que eu parasse de pensar assim, antes que os sonhos se tornassem realmente realidade, enquanto eu ainda os adorava, pois eram como eram, e eu estava aparte... Saí da casa de Marco sem ser percebido. Não queria me despedir. Não queria nada. Só um último pensamento por Suzana enquanto começava minha caminhada de volta... “Será que algum dia eu conseguirei falar?...” O amor teve vários nomes nesse peito dolorido. Mas naquela caminhada pela beira-mar, numa noite fria e chicoteada pelo vento, somente o seu nome existia. E somente as memórias serviam como grande conforto para o verdadeiro mar de dúvida que afogava o meu senso naquele momento, e sempre bastaram as memórias, somente elas... Os dias que me levaram àquele momento foram muito mais que uma carga de emoções em ombros já arqueados pelo cansaço. Sentir 486


com força os pesares de situações que eram muito além do meu controle, fora de minha antes tão segura imaginação, situações que traziam as capacidades de todos que me rodeavam com atenção ou ausência. Foram todos aqueles olhares abismados ou pouco preocupados com meu tamanho aprofundamento em uma simples visão de mim mesmo, perdido entre a paixão por Suzy e o medo pela incerteza de um porvir tão notoriamente predestinado, algo que me seguia há tempos, mas teve seu extremo como refúgio da realidade tão dolorosa, emocional, naqueles últimos três dias, antes e até o sonho, logo e durante, depois das visões: uma mistura de minhas criações com meus anseios e frustrações, e com minhas revelações, na trajetória do medo, ou pavor crescente, que me acompanhou naqueles dias até “a data”, até o momento aqui tão vivo, presente advindo daquele passado: não muito lógico talvez, mas com certeza necessário aos meus olhos cheios do vazio que isso trouxe... Mas foi, é, muito mais que a data; mais uma idéia... tanto mais em mim, o eu, durante e a partir daquela caminhada... Num lugar onde sempre adorei o mar. O meu. ### 487


### Quando mais se poderia especular que o fim estaria próximo dos nossos olhos do que agora? A pequena narrativa surgira do meu desavisado pai quando eu menos aguardava sua palavra: ele é jornalista, relativamente conhecido no meio e respeitado por aqueles que o conhecem; mas pouco isso afetava a vontade que tinha de não estar em contato com coisa alguma. A história que contara quando em breve visita a minha casa dizia respeito de um boato: ergueu-se no seio popular de um pequeno país, muito pobre, próximo ao nosso; não que o nosso fosse rico, mas muito maior. O que não importava muito em nenhum dos casos quando se tratava de absorver os absurdos falaciosos da vida quotidiana popular, porém nesse caso somente lá chegou o extremo daquela especulação. Admiro por tais fenômenos sociológicos, meu pai tratava com entusiasmo e fascinação o espanto às reação do público; admirado o quanto a submissão religiosa e inocente do povo, o levava a ações de desespero tão irracionais... aos seus olhos, pelo menos, como eu via... O dia de Corpus Christi do ano em questão, o passado, havia caído numa data que segundo os nossos escritos tradicionais básicos, a Bíblia, trazia o tal número da 488


desgraça total para todos que aqui na Terra habitam: 666. Tinha passado o feriado de 06 de junho em casa sem querer pensar em nada, muito menos que o ano em questão também terminava em seis... Porém sem absorver nada disso ele continuava proferindo sem restrição ao meu desinteresse como famílias de lá daquele país estavam epidemicamente determinadas a batizar todos os seus filhos recentemente nascidos; provocando um aumento nos batizados do país em cerca de 2000%. Não era exagero. Diferente de outros colegas de profissão muito entusiastas a respeito do que relatam, meu pai realmente se prendia aos fatos, pelo menos nos que tinha acesso: me mostrou um recorte de um respeitado jornal de circulação nacional onde tais dados e números eram confirmados à risca. Isso não pude ignorar, pois o pedaço de papel estava em minha mão, e não sei porque continuava comigo mesmo após meu pai partir... A bagunça do apartamento não impressionava tanto a ele quanto a minha mãe. Ele também vivia sozinho: era bem mais limpo do que eu, mas pensar nisso parecia uma nuvem transparente num céu essencialmente azul: se nunca gostara de limpar minha casa, naquele momento muito menos. Mas a questão é que ele fora embora aquele dia me deixando aquele pequeno artigo de jornal recortado; havia falado muito para alguém com 489


quem normalmente conversava muito pouco, mesmo quase que somente ouvindo sua história. Imaginava o que havia realmente compelido aquela ação tão... solidária... a seu modo: dividir o entusiasmo da sua admiração por uma coisa de certo modo tão banal, até comum em tempos apocalípticos como esses. Havia realmente algo de extraordinário no fato do seu alcance, já que o artigo dizia que o tal boato alcançara até o outro país vizinho, tão pequeno e pobre quanto; pelos seus números, e principalmente pelas suas coincidências: a data realmente batia, seja o que for que isso signifique para mim, ou para meu pai: para o tal povo era a confirmação de coisas escritas há quase dois mil anos e admitidas como verdade imutável até hoje... Mas no meu particular caso, o que tendia a impressionar eram as reações já ditas do meu pai, comigo, para mim: ele sempre fora mais próximo da minha mãe, mesmo separados, do que de mim... A imaginação do aprendiz então vinha conviver com o real na lembrança que causava ver o carro dele sumir na curva como daquela outra vez... e queimando em labaredas infernais logo depois na imagem de um dos devaneios sem sentido deste que agora estava finalmente com alguma coisa a mais na cabeça além da própria dor perdida no tempo de dias atrás. Achava realmente curioso que o que vinha novamente a me 490


instigar eram fatos que normalmente me trariam medo, mas que ao olhar as palavras impressas no papel novamente só me faziam ver o quão longe regularmente íamos em nossas divagações entre o real e o imaginário: o que acontece quando o segundo domina o primeiro, e o real se torna a incógnita, a virgem incansável que se recusa até a morte e que nos deixa gratos ao final de toda peleja por finalmente nos revelar o porquê. Talvez, na verdade, eu só quisesse anestesiar o medo, e a dor. Meu pai ajudou naquele dia; sem pretensão, mas definitivamente importante. Sozinho tendia a olhar o meu redor ao meu redor: uma situação muito pouco usual em alguém daquela idade estar solitário em dias seguidos de perda na própria imaginação abatida. Surgia uma questão natural de limites a serem atingidos pela natural tendência humana em ter sempre certeza absoluta a respeito do que lhe rodeia e sobre sua fé ou crença. Por mais irracional que parecesse tal crença para outro, era verdade total e absoluta para quem acredita. Um estudioso em lógica facilmente enxergaria o absurdo das ações de tais pessoas e saberia com certeza deduzir de onde havia surgido os argumentos para irredutível fé que admitia que o “seu” próprio filho poderia estar para ser o representante da destruição da vida na 491


Terra... Temer o desconhecido se torna a maior das proteções contra a diária e conhecida batalha pela sobrevivência, pois admite-se que o desconhecido existe e ele gera ações como aquelas descritas no artigo de jornal, porém há sem dúvida algo mais extraordinário em ver que pessoas pobres, comuns, simplórias, oferecem-se para penetrar em tal atitude, com desconforto para si e para os filhos, inocentes a tudo, tendo que rapidamente e sem razão receber uma água pelo meio da “cara”; tudo simplesmente para se proteger de uma admitida criatura, completamente estranha aos homens, que se ergueria a partir de uma daquelas crianças... Eu veria mais na situação se não fosse por mim mesmo: há esperanças, sem dúvida; vontade... Mas a que preço de uma imaginação coletiva tão crente que leva a isso... Vi-me naquele cenário. E estava realmente lá, corrompido pela certeza de um depois tão totalmente vazio, como talvez esteja agora, mas no momento foi uma pílula que custou a fazer efeito, e quando fez me pareceu como: se tão longe todos aqueles pais puderam ir , minha atitude comigo mesmo seria também um grande sacrifício, sendo “batizado” pela dor, pela lembrança e pela revelação: era um desconhecido, e como eu tinha concluído... era uma esperança. Não queria ficar mais sozinho. 492


### Começava com a necessidade em reviver as situações. Vinha sempre com a voz estranha que compunha os meus pensamentos mais reflexivos. Talvez fosse e é minha consciência: ela simplesmente conversava comigo com exasperado desejo de contrariar o que quer que fosse a minha vontade, e era essa que dominava as visões de minha imaginação; não que tivesse vontade de fazer aquelas atrocidades, mas foi através dela, a imaginação, que a vontade conseguia superar a voz (consciência?). Por isso então, provavelmente, a sensação de estar adormecido, não sabia se a voz, a vontade, ou eu mesmo... Com certeza alguma coisa de difícil expressão no mundo real, esse aqui tão diferente do que realmente era naquele tempo... A primeira memória que tinha era sempre a do beijo: Michelle foi uma presença notável numa época bem menos destrutiva que conseguia me recordar; um ano antes talvez daquela situação que começava para ser concluída hoje... Não havia terminado a faculdade ainda, mas me dedicava muito a um trabalho que me levava a muitos lugares diferentes e me fazia entrar em contato com um grande número de pessoas diferentes... não recordo com segurança o nome daquela cidade. Chegando de ônibus pelo alto de uma 493


serra podia-se ver toda ela; ficava num pequeno vale e se estendia por todo ele começando a demonstrar sinais de progresso comercial e urbano iminente: por isso estava indo lá, chegando: estava procurando novos clientes... As construções mais altas não superavam quatro nadares. Havia três praças principais, com muitas árvores e bancos para namorados. E é claro muitas igrejas espalhadas pelos cantos de cada bairro: sempre fora mais importante nessa terra estranha ter uma fé para alimentar o espírito fraco do que ter uma fonte de abastecimento para a carne mais fraca ainda, debilitada, na verdade... Eu tinha de procurar uma família que era dona da única “rede” de supermercados do lugar: eram somente três lojas, não muito grandes, mas estavam sempre lotadas, pois não havia escolha, nenhuma senão plantar para a sobrevivência: e era o que alguns poucos faziam, resistindo aos luxos do mundo exterior; ou melhor, aos preços extorsivos da rede... Essa família queria expandir para o resto da região, e por isso eu estava lá; também vendendo, e também cobrando um preço extorsivo só para dizerlhes de forma acadêmica tudo que eles já sabiam sobre comércio, vendas e promoção: foi bem rápido o encontro com os chefes da família (só homens) e a minha comissão foi razoável. O resto do dia que fiquei lá foi só para aprender aquela lição que há tanto 494


eu preciso concluir: era o que havia esquecido desde o colégio; já tinha os devaneios que sempre tive, que todo jovem tem; mas em mim chegava ao ponto de eu não prestar mais atenção nas pessoas que estavam ao meu lado: amigos, namorada, pais... Entrar na faculdade e trabalhar tinha me libertado um pouco disso, mas foi só durante aquela festa de formatura na qual entrei como completo estranho, convidado pela família, que tive de volta o gosto bom da realidade: a mais doce das realidades que realmente não pode ser superada por nenhuma imaginação, por mais forte que seja, e sempre foi a única imagem que nunca consegui sentir inteiramente ao imaginá-la... Fui abatido pelo olhar de Michelle (era formanda), e fui completamente nocauteado pelos passos dela em minha direção, e pela abordagem dela que me tirara do meu simplório mundo de visitante a trabalho, e pelo que ela disse: -.... (Não consigo lembrar o que foi!).... - Mas foi sem dúvida algo de admirável coragem e de muito poder de sedução; e me lembrava muito pouco o que tal coisa significava..... até ser novamente seduzido. Ao tocar nos lábios dela a memória se refez completamente a respeito do que era ser um homem novamente: minhas mãos se lembraram do que eu tinha de fazer, minha língua... tudo... Passamos a 495


noite juntos e parte do dia seguinte: avisei logo a ela que teria de ir embora no final daquele próximo dia, tinha faculdade, o trabalho, o..... Era só isso mesmo... Estar com ela foi realmente a melhor, ou mais normal, coisa que havia acontecido comigo nesses últimos anos que consigo me lembrar... Contara-me que estava cansada daquela cidade e que agora que estava formada iria para a capital trabalhar ou fazer faculdade, não importava.... O importante daquela recordação naquela época era a reticente sensação do beijo, a tão forte e rápida atração, o toque da realidade; ainda estava com Suzana na mente como figura feminina; mas a fuga que procurava era do que eu não conseguia mais reconhecer como realidade, e a melhor memória que me restava era essa... Voltei para cá no final daquele dia. A despedida foi emocional, mas suave: viajei todo caminho com aquela sensação nos lábios e no corpo: um prazer tão grande de estar vivo que me parecia completamente alienígena, e era, não era eu, era Michelle em meu corpo e mente.... Estava feliz. E queria estar novamente. A faculdade já havia terminado. Não trabalhava mais no mesmo lugar, por isso viajar estava fora de ordem; o trabalho agora era outro e tinha a responsabilidade sobre o meu apartamento, mesmo sem ter pedido. Estava só e 496


triste, assustado também. Não queria voltar ao velho grupo de amigos onde Suzy e Marco estavam e que me provocava tanta dor e todas aquelas visões. Restava cada vez menos contato com a família.... E de Michelle só recebera uma única carta, a qual respondi, e nunca mais nenhum contato: ela ainda devia estar por aí em algum lugar, mas eu não devia apelar tanto para o passado, pois rapidamente se tornavam na mesma fonte da imaginação; e era dessa que eu achava estar realmente fugindo; era então o que o meu ser estava mais procurando... Meu ser.... Ainda tento descobrir o que foi tudo aquilo: sem dúvida algo mais que o trabalho que ainda tinha de fazer todos os dias; afinal era a última ponta do mundo real que me restava... Mas o quê? A segunda feira erguia mais desaparecimento de um sozinho e sólido memorial de estranhas procuras para fora do que perguntava ser o extremo; pois para fora do que eu sentia tentar fugir seria o meu trabalho de há mais ou menos um ano e meio atrás: como agora ainda seria se não tivesse descoberto, como cedo ou tarde, e foi tarde, a minha arte; principalmente porque agora o que menos importava era passagem ao depois, como haveria de ser num ser de normal atitude diante do trabalho que tem de se encarregar nos seus dias aqui... Resumia-se a muito pouco em importância, 497


em virtude, ou em aventura; mas se assemelhava ao anterior, o de muitas viagens, em atitude: sempre fora da minha formação a área que tinha escolhido como para sobreviver à realidade, e então eles vinham, as empresas, e nos consultavam sobre todos aqueles aspectos que já havia tanto revelado em minhas viagens a pequenas cidades, brigando por reconhecimento e por comissão.... Que muito pouco sentido faz isso hoje para mim em igual situação de conforto diante do desconhecido depois de vazio completo, pois para isso procuravam tais, como eu, profissionais, para mostrar-lhes o futuro e depois dizer-lhes atitude, mas inevitavelmente desconheciam as próprias razões de tal insatisfatória procura, porque como eu não tinha conhecimento do futuro, muito além das reações de seus públicos consumidores, que também ignoram as razões, e principalmente como que naquele momento, menos agora um pouco, não tinham absolutamente nenhuma razão... As portas do elevador cor de metal fosco se abriram para o corredor de portas dos diversos escritórios que compunham a nata dos profissionais liberais daquele pequeno e limitado mundo do visível do sobreviver a cada dia com o empenho de seus músculos e mentes brilhantes: as diferentes e numerosas áreas de um mesmo mundo com muito 498


pouco a ser oferecido para qualquer realidade de tentativa alternativa. Até chegar ao recinto onde trabalhava passava por seis advogados, dois dentistas, dois contadores e um contato comercial de revenda de material pesado para agricultura industrial... Imaginava porque não deveria haver também um conselheiro espiritual, um filósofo e uma mãe em cada um daqueles longos corredores de pessoas desconhecidas. Trabalha-se, ganha-se dinheiro, alimenta-se e se volta para o mesmo no dia seguinte, passando-se rapidamente em casa para ver se os aparelhos eletro-eletrônicos ainda estão lá para que no fim de semana possa-se limpá-los da poeira da semana e em seguida deixá-los sós novamente para poder-se sair novamente procurando novamente, como no fim de semana anterior, alguém com quem usá-los, porém a última coisa que se faz quando consegue-se encontrar alguém é usá-los, e geralmente não se encontra, e não se volta, e tê-los perde completamente o sentido, se não fosse apenas para usá-los com alguém; mas quem?... O conselheiro espiritual diria que a alma tem que ser abrandada, pois o ímpeto do amor perfeito é que fará tudo se realizar, então trabalha até alcançar o outro, depois trabalha com o outro até encontrar o fim, a paz, o... Na porta seguinte o filósofo traria a versão do seu autor favorito se fosse cínico o suficiente para 499


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