NUM QUARTO ESCURO NO PALÁCIO DA ALVORADA
Direitos autorais, capa e diagramação FABIANO VIANA OLIVEIRA
Fabiano Viana Oliveira
NUM QUARTO ESCURO NO PALÁCIO DA ALVORADA
Salvador 2017
OLIVEIRA, Fabiano Viana. NUM QUARTO ESCURO NO PALÁCIO DA ALVORADA. 2ªEd. Salvador: Edição do Autor, 2017. 104 p. ISBN: 978-3-330-72947-6 1. Romance brasileiro. 2. Ficção política.
É tudo invenção, mas se passa no mundo real.
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Estamos em uma cidade brasileira. Uma capital de estado. É um cemitério e ele está lotado. Alguns dos presentes cantam em homenagem a pessoa morta, já outros só foram lá para vaiar e gritar palavras de ofensa. Heróis e vilões são apenas uma questão de tempo na história... Não há como saber o papel desta pessoa na história futura do Brasil. A cobertura da mídia é ampla, como não poderia deixar de ser. O conjunto de incidentes que antecederam este funeral começam de fato a tomar corpo cerca de dois anos antes, em 2013. A medida do tempo é um inexorável lavador de memórias e este povo, presente neste cemitério, parece realmente não ter memória nenhuma dos anos anteriores aos últimos dois. No entanto uma história dessa magnitude começa bem antes do presente... Neste caso, como qualquer data de referência iremos começar a história no dia 14 de julho de 1789. Naquele verão francês de fins do século XVIII tudo parecia sombra e a luz da esperança surgiu com a voz da razão guiando o povo em direção a um novo alvorecer, repleto de justiça, esperança e luz. No entanto nos anos que se 7
seguiram a queda do antigo regime, houve uma cisão no seio dos revolucionários: o que é mais importante para homem contemporâneo é a liberdade ou é a igualdade? A resposta não virá simples e talvez nunca virá.
22 de dezembro de 2015, de volta ao funeral, as pessoas se dispersam. Em vários pontos do cemitério, dignatários de várias cores do espectro político brasileiro dão entrevistas aos meios de comunicação. Suas opiniões variam e divergem umas as outras, mas são basicamente uma expressão do vazio de mentalidade dos poderosos diante de situações limite: querem basicamente tirar proveito da situação. Foi uma grande perda. É hora da reconstrução da unidade nacional. Seu legado será sempre lembrado. Bobagens e clichês que não querem dizer nada. Que não dizem nada! Mais importante do que demonizar ou santificar, era preciso voltar no tempo e entender as ações.
10 de setembro de 1989, auge da campanha eleitoral, nossos principais personagens já aqui estão exercendo papéis muito distintos, alguns notórios e outros obscuros, mas todos com seus destinos traçados pelo deus da memória e do acaso. 8
Em uma casa de classe média a televisão está ligada na propaganda eleitoral... “Rede Povo!” e assim terminava mais um horário eleitoral gratuito. Um pai e um filho se entreolham. - O senhor acha que esse pessoal é mesmo a solução para os problemas do país? (Gosto de acreditar que sim, meu filho. Por isso vou votar nele.) - Mas o outro cara parece muito mais confiável, mais culto e jovem. (É uma fachada para o continuísmo dos poderosos que mandam no país desde sempre... Mandavam no país durante a ditadura e querem continuar mandando agora.) - E o negócio de ele ser caçador de marajás, não indica que ele vai acabar com os corruptos? (Você é jovem e se engana com facilidade, quem trabalha no meio jornalístico há tanto tempo quanto eu sabe que os interesses dos donos da mídia vem antes do interesse pela verdade... de William Hearst até hoje.) - Que pena que ainda não voto, pai. (E em quem você votaria?) - No Afif. Risadas altas do pai desconcertam o filho. Ansioso por ter algo em que acreditar numa idade de muitos conflitos e incertezas, seguir a ideologia do pai parecia errado, mas ele não queria deixar tudo que o pai dizia relegado ao erro. Basicamente o jovem Label tinha uma vontade de acreditar no discurso dos políticos, que beirava o ridículo se comparado ao cinismo de hoje. A crença de seu pai não era suficiente, pois era seu pai e o questionamento adolescente não permitia uma adesão franca à ideologia paterna. E também não fazia sentido naquele momento aderir ao lado oposto, apesar de tentador acreditar no discurso da mídia hegemônica que queria eleger o futuro presidente tirado do cargo sob acusações de corrupção apenas três anos após essa prosaica discussão entre pai e filho.
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13 de julho de 2005, é véspera da celebração do Dia da Bastilha, na Paris moderna as coisas transcorrem normalmente. Pessoas andam pelas ruas com seus afazeres cotidianos, nem vultos espectrais ao longo das calçadas lembram da convulsão que tomou conta desta cidade há pouco mais de dois séculos. Dentre os passantes está Label Marques, 30 anos de idade e estudante brasileiro de intercâmbio universitário, fazendo o curso de doutorado em Sociologia pela Sorbonne. Engraçado, ele pensa, todo estudante de sociologia que aporta naqueles corredores é logo taxado de socialista. Seria esse o legado do ex-presidente FHC? De repente uma palavra numa manchete de jornal lhe chama atenção numa banca de revista: “Brésil”. Aproxima-se com curiosidade e começa a ler o texto. “Ni le Brésil ni les Brésiliens ne méritent cela”, a déclaré, accablé, le président brésilien Luiz Inácio Lula da Silva. Il faisait allusion au scandale de corruption qui, depuis quatre mois, secoue son pays, et éclabousse des ministres et des dirigeants de la formation dont il est issu, le Parti des travailleurs (PT). Dévoilée avec jubilation par les grands médias, l’affaire a pris des allures de feuilleton télévisé. Avec la violence d’un ouragan dévastateur, toute la scène politique s’en trouve bouleversée. Il semble désormais avéré que l’entourage de M. Lula da Silva, et en particulier M. José Dirceu, ministre de la maison civile du président (sorte de premier ministre), avait mis sur pied un vaste système de pots-de-vin pour acheter le vote de députés des partis alliés au PT. Prélevés dans 10
une “caisse noire” alimentée par les finances publiques, quelque 10 000 euros étaient versés à chaque parlementaire corrompu... Par ailleurs, dès 2002, un mécanisme sophistiqué de détournement de fonds aurait permis de financer la campagne ayant abouti à l’élection du président Lula. Seria possível que tudo aquilo você verdade? Será que o sonho de um país mais justo que seu pai tinha lhe vendido por quinze anos, fazendo-o votar no “presidente operário”, era uma grande ilusão? Estava ali no país da revolução, rodeado pelas memórias da busca popular por justiça e igualdade, e refletia nas possíveis consequências daquela corrente de notícias aterradoras. Chegando a universidade, encontra um professor brasilianista e o indaga a respeito da notícia em suas mãos. O mestre, com uma visão de Brasil, mas de fora do Brasil, lhe responde com tranquilidade: “A acusação pode até ter fundamento, mas a prática é corrente em seu país. Não acredito que cause nenhum dano ao sistema político ou ao presidente.” - Mas como assim, professor? Todos que votaram nele acreditaram que seria diferente... “Não se muda mais de um século de uma república cheia de irregularidades, corrupção e autoritarismo com apenas três anos de governo. Olhe a nossa república francesa, só conseguimos nos estabilizar em nossas instituições após a quinta tentativa, passando por monarquias, repúblicas jacobinas de terror, Napoleão Bonaparte e até o colaboracionismo com os nazistas.” - Desculpe professor, acho que é porque queremos resultados rápidos para demandas antigas. “Você ainda é jovem, vai descobrir que os melhores caminhos são os longos... aproveite o Dia da Bastilha, amanhã!”
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17 de agosto de 2015, em frente de um computador na sala dos professores de uma universidade privada, o professor Doutor Label Marques se propõe a mais uma sessão de tortura intelectual. Aprendeu recentemente a usar a Internet como ferramenta de informação jornalística e também de participação em redes sociais. Antes só usava a rede de computadores para pesquisar temas mais teóricos, diversos das atualidades que cobrem o dia a dia de computadores e celulares do mundo todo. Sua maior divergência com a realidade mostrada na tela de computador a sua frente é como os pontos de vista são tão variados. Sua maior dificuldade é não saber em que acreditar. A mídia dos grandes portais de notícias diz uma e mesma coisa: corrupção no governo! Já as redes alternativas de notícia informam do esforço golpista da mídia corporativa em tirar um governo progressista do poder e colaborar com os interesses estrangeiros. Repercutindo com esses dois grupos de fontes de informação distintas estão as redes sociais. Os jovens de direita se inflamam com a repetição das notícias sobre corrupção e “gritam” palavras de ordem e de ódio contra o governo: a presidente é isso; a presidenta é aquilo; ela sabia; eles sabiam; eles roubaram... Fora todos eles! Já os militantes de esquerda transbordam teorias de conspiração, xingam os oposicionistas de entreguistas, hipócritas (pois sempre roubaram também), donos da mídia e golpistas. “Afinal, em quem acreditar?” Pensa o pobre professor. De que adiantou tanta dedicação ao estudo e a compreensão da 12
sociedade para nos meados da vida adulta trabalhar muito, ganhar pouco e ainda não ter a certeza se está sendo traído ou não por uma ideologia que sempre lhe prometeu mais igualdade, justiça e felicidade para todos. Uma profunda tristeza se abate em seu rosto já começando a envelhecer nos seus quarenta e poucos anos. Lembra de outra ocasião similar mas diferente na história do país... E finalmente toma uma decisão: “Eu tenho que saber a verdade!”
7 de setembro de 1992, o povo estava nas ruas para comemorar o dia da Independência, porém, muito mais que isso, estava nas ruas para pedir o impeachment do presidente da república. As acusações que vinham acontecendo desde o início do ano e a perda dos apoios políticos minaram a capacidade do chefe do executivo de permanecer no ofício. O maior medo das pessoas era que a situação de instabilidade trouxesse de volta os militares ao poder no Brasil. O medo era justificado, pois eram apenas poucos anos de redemocratização e ele tinha sido o primeiro presidente eleito diretamente desde 1960. O jovem Label estava mais preocupado com suas provas na faculdade de sociologia e também com seu relacionamento que ainda estava no começo com sua futura esposa, Rose, na época estudante de psicologia. Quem estava nas ruas gritando “fora collor” era seu pai. O jornalista aposentado tinha praticamente rejuvenescido com todo entusiasmo das ruas que lhe fazia lembrar dos tempos de movimento estudantil. Mal sabia ele que seu entusiasmo seria fatal naquele dia e que esse fato seria fundamental para o 13
modo como seu filho iria encarar dali em diante a política, os movimentos populares e as manifestações de rua. Deixou Rose em casa por volta de oito da noite. O cinema no fim do feriado tinha sido um fracasso, mas a sessão de beijos e pegação durante o filme foram revigorantes, fizeram ele até esquecer da discussão com o pai sobre os protestos e notícias de corrupção que assolavam o presidente ainda no meio do seu mandato. Como estudante de sociologia estava cercado de pessoas de esquerda, que o tempo todo execravam o presidente representante do liberalismo. Com a piora da situação do país, inflação chegando aos 80% ao mês e toda mídia só falando no assunto, parecia ser a única coisa que acontecia no Brasil. Assim, em casa, o que mais Label queria era esquecer os problemas... Mas quando é para acontecer, a desgraça sempre vem. Quase pegando no sono na frente da televisão, o telefone toca. Era o inexorável fim de tudo que avisava que tinha chegado para seu militante e apaixonado pai de esquerda. Ataque cardíaco no meio da passeata. Fora collor, fora vida, Label agora era órfão de pai e mãe.
9 de setembro de 1992, um outro funeral, bem mais prosaico, com muito menos pessoas presentes, apenas parentes e amigos do jornalista de esquerda aposentado que morreu durante uma manifestação de rua contra o presidente da república. Morreu feliz, mas deixou seu único filho sozinho. Restava a Label sofrer e estudar.
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(desespero pela verdade) O perfil de vida de um cientista social que segue a carreira acadêmica é de muito pouca ação. A prática de sua vida pode ser resumida em ler, pensar e escrever. No meio tempo entre uma coisa e outra ele precisa ministrar aulas, pois é a única atividade que ainda lhe dá remuneração. Label está justamente neste perfil: não é um homem de ação. No entanto, no dia 13 de maio de 2015 ele precisa planejar ações que nem de longe se assemelhavam a sua prática cotidiana. Ler, pensar e escrever já não era mais suficiente para dar conta do problema de pesquisa que tinha em mente: como ter certeza sobre se a situação corrente do país era fruto ou não das ações da presidenta da república? Seria tudo um esquema de matriz de opinião arquitetado pela mídia corporativa com apoio de setores reacionários da sociedade e interessados estrangeiros? Ou o governo que se dizia de esquerda estava realmente num mar de lama de corrupção, envolvido até o pescoço com desvios de dinheiro público e agindo de acordo com uma agenda de direita para se manter no poder? Ao telefone com a sua ex-esposa, Rose, ele discute angustiado: “Não consigo aceitar simplesmente, querida...” (Não me 15
chame de querida. Nosso filho mal te vê e você só fala de política!). “Mas não foi você mesma que disse que queria meu envolvimento... Levou o menino para os protestos contra a presidenta... Agora toda vez que converso com ele é só pra brigar sobre isso, aí eu prefiro nem começar!” (Pois é, a culpa de tudo isso é de sua presidanta.). “Espera um pouco que estou abrindo a porta de casa”. (Tchau, Label!). “Mas, Rose....”. O silêncio promovia uma sensação de inacabado. Nos quatro anos anteriores, o relacionamento com sua esposa (agora ex) havia deteriorado por várias razões. Para ela, o marido, que era na juventude um intelectual tão promissor, se tornara um inerte fazedor de perguntas sem resposta. Suas aulas em universidades privadas não geravam nem renda e nem status suficiente para compensar os anos de mestrado e doutorado. Na faculdade eles namoraram e num momento de fragilidade e perda de Label, Rose resolveu aceitar seus pedidos de união e logo tiveram um filho. As dificuldades advindas da paternidade aos 24 anos, ele sendo professor de sociologia e ela psicóloga recém-formada, tornaram tudo mais complicado. Quando ele viajou para França para fazer doutorado, foi praticamente uma separação tácita, pois pouco se falaram e trocavam e-mails apenas sobre problemas práticos. Ao retornar já doutor em sociologia, a chama se reacendeu um pouco, com o filho já maior as coisas melhoraram, mas quando a situação econômica dele, dela e do país começou a piorar, a relação ficou insustentável. Para Label, que a todo instante estava a formular o plano que o levaria a uma resposta final sobre suas dúvidas, ficava a angústia de não ter tido aprovação afetiva de praticamente ninguém na sua vida. A perda da mãe na infância o fez ficar muito ligado ao pai. A perda do pai num momento de efervescência política o fez apelar para a namorada dele no momento, que mais por piedade que por paixão, cedeu às suas súplicas. Agora ele vê 16
o quanto fez mal a ela, exigindo nela uma substituição das figuras paternais ausentes. E também vê o quanto ela foi cruel ao exigir dele um brilhantismo acadêmico, que ele nem mesmo almejava, apesar de ser uma eterna promessa. A sua pouca importância nos papéis que exercia: como pai, como marido, como professor ou como pesquisador da sociedade, o deixavam numa situação de quase imobilidade. Mas ele iria com certeza mudar isso, pois o plano que se formulava em sua mente... e que ele iria executar nos próximos meses daquele mesmo ano.
20 de janeiro de 2015, estava assistindo televisão na rara companhia de seu filho no pequeno apartamento de dois quartos no centro da cidade. As notícias não eram nada promissoras a respeito do segundo mandato da presidenta. Ele lembra de como foi complicado para ele em 2007 retornar ao Brasil após o doutorado na França com tantas reclamações a respeito de corrupção na política. No entanto, diferente daquela época, os resultados econômicos de agora eram terríveis e a previsão era de muita piora antes de ano de 2015 terminar. “Pai, não sei como o senhor consegue assistir a jornal de televisão.” - O que quer dizer, Vladimir? “Não dá pra confiar neles!” - Seu avô dizia muito isso. Mas que alternativa tenho? - Com olhar incrédulo e desaprovador, o jovem diz ao pai: “Já ouviu falar em Internet?” (risos) - Claro, mas não sei usar direito aquelas ferramentas todas de notícias e redes sociais... Me bastam as pesquisas acadêmicos que tenho de acompanhar... - Vladimir puxa o pai pelo braço até 17
o computador. “Pois agora o senhor vai aprender a usar a Internet como veículo de informação... de muita informação!” Se arrependimento matasse realmente mataria Label, pois foi a partir daquele dia que as angústias dele pioraram muito a respeito da vida, do país e de tudo mais. O jovem Vladimir também deve estar arrependido de ter dado aquela aula para o pai, pois daquele dia em diante poucas vezes viu o pai e quando via ele estava com a cara enfiada no computador, acompanhando as notícias e discussões na Internet.
17 de fevereiro de 2008 foi o dia que conheci Label Marques numa reunião de professores de uma universidade privada. Estava entrando no quadro e ele já estava lá há cinco anos. Licenciou-se para fazer o doutorado fora do país, informação que por si só impressionava os ouvintes de fora, pois era o modelo de acadêmico bem sucedido. A única exceção era ainda não ser professor de universidade pública, algo de status muito valorizado no meio acadêmico brasileiro. Ela já havia tentado passar em concursos algumas vezes antes de se doutorar, mas não foi feliz. Agora, de volta ao país, com todo peso da Sorbonne no seu currículo Lattes, achava que as oportunidades cairiam do céu e as ofertas surgiriam para ele escolher. Mas as coisas nunca são assim. Algo muito valorizado nos baremas de concurso público para docente é a quantidade de publicações que o pesquisador tem e o meu amigo Label tem uma séria deficiência de publicações no seu currículo. Não é por falta de brilhantismo: seu pensamento 18
crítico e poder de argumentação sobre a sociedade e a teoria sociológica clássica e contemporânea são extraordinários, porém ele não consegue tomar decisões muito facilmente, pois pesa muito as diversas variáveis numa situação. Ficamos amigos por sermos de áreas similares e por partilharmos alguns gostos, mas logo vi que ele era uma pessoa de difícil convívio. Estava com problemas com a esposa e prestes a se divorciar. Não conseguia se relacionar com o filho adolescente. E o pior de tudo, via a situação do país como algo pessoal, um problema de pesquisa quase, que ele tinha que resolver... Imagino agora, anos depois de tudo ter acontecido, de onde vinha essa necessidade por uma verdade de tudo.
Outono de 1886, em algum lugar da Itália um pensador muito influente na vida de Label escreve em uma das suas obras sempre enigmáticas: “Nada é mais necessário do que o verdadeiro: tudo o mais, em relação com ele, tem importância secundária”. Nietzsche colocava tal frase em um dos seus aforismos d’A Gaia Ciência e mal sabia ele que seria um determinador do futuro comportamento de um jovem no Brasil, o Label ainda no colégio, com 14 anos de idade. Ou talvez até ele (Nietzsche) soubesse, já que tinha a pretensão de ser um excelente escritor e um pensador de influência milenar. Pode ser, pessoalmente não gosto, mas Label gostava, citava-o constantemente, usava-o em epígrafes nos trabalhos escolares, de faculdade, de mestrado e doutorado. Acho que isso é o resultado de ter sido criado apenas por um pai intelectual e sem uma mãe que lhe oferecesse mais fantasia e ilusão na vida. Label nunca acreditou em papai noel 19
quando criança, sempre aprendeu que essas comemorações burguesas só servem para estimular o consumismo. E muito menos acreditava em deus, o ateísmo de segunda geração era também sintoma de uma pessoa que teria dificuldades na vida de aceitar informações sem a devida comprovação.
Três de outubro de 2006 foi a data de dois grandes eventos na história pessoal de Label. Naquele dia mesmo ele foi votar para presidente da república no consulado brasileiro em Paris. Como sempre na dúvida sobre se ouvia a voz do passado de seu pai e votava novamente no operário ou se atendia ao apelo das notícias sobre o esquema de corrupção que havia sido descoberto no ano anterior e que feriu profundamente a confiança do pesquisador na idoneidade do partido e do presidente. As conversas com o seu professor brasilianista ajudaram, mas ainda assim votou com dúvidas. Votou novamente no operário. A outra grande coisa seria a defesa da tese de doutorado de Label, que aconteceria no dia seguinte, na Escola de Estudos Sociais. Após mudar de tema umas quatro vezes, terminou ficando com a tese de título: “Revoluções burguesas: um estudo comparativo entre o Brasil e a França do século XIX”. Fica evidente para quem conhece a história e para quem conhece Label que o tema foi fruto de suas reflexões sobre como o Brasil de hoje era resultado de um atraso contumaz em relação a Europa. Atraso econômico, político e cultural que ao invés de mobilizar forças revolucionárias progressistas, como foi o caso do processo da revolução francesa ao longo do século XIX, 20
sempre mobilizou forças reacionárias. Numa simplificação grosseira seria como se na França toda revolução viesse de baixo para cima e no Brasil sempre de cima para baixo. A defesa foi um sucesso. A tese foi muito elogiada e recomendaram a sua publicação. Mas para variar, Label não conseguiu tomar as decisões na hora da revisão para publicação e o seu trabalho nunca virou livro. Eu mesmo só tomei conhecimento do conteúdo do texto porque ele se dispôs a me emprestar uma cópia do original. Testemunhei mais de uma vez sua esposa Rose brigando com ele por nunca terminar a revisão e por isso não ter essa publicação garantindolhe alguma projeção acadêmica. Era algo humilhante de se ver: um homem maduro, intelectual respeitado, sendo chamado de fraco e indeciso pela própria esposa, e com seu filho assistindo tudo. Ainda bem que não sou casado!
15 de março de 2015 foi um dia de domingo memorável, em primeiro lugar para o Brasil, pois milhares de pessoas foram para as ruas protestar contra o governo. O fato em si revela uma certa maturidade da democracia, tão frágil e recente, pois a insatisfação de muitos estava se tornando em alimento para uma prática cidadã saudável de desobediência civil e tomada das ruas para protestar. De outro lado havia uma sensação, já percebida por Label e transmitida a mim neste dia, que as pessoas estavam assumindo como verdade uma série de especulações bastante incertas, promovendo não só insatisfação com a situação econômica e política, mas também uma série de 21
demandas esdrúxulas, que seriam cômicas se fossem também perigosas: “volta da ditadura”; “intervenção militar - nacional e estrangeira”; “fim do comunismo no Brasil” (que comunismo?); e outras loucuras que a história não deixará esquecer tão cedo. Em segundo lugar para o próprio Label. Neste dia meu sofrido amigo descobriu que sua ex-esposa Rose iria se casar com o antigo advogado dos dois, e o amigo mais antigo de Label (desde os 11 anos de idade), Valner. Era constrangedor e irônico ao mesmo tempo, pois ele cuidou dos interesses dos dois durante o divórcio, que foi amistoso, mas sempre ficou em mim, e provavelmente também em Label, a estranha sensação de que os dois já estavam tendo algum tipo de relacionamento íntimo ainda durante a estada dele na França. Depois que seu filho Vladimir lhe ensinou a usar a rede social digital para pesquisar, ele pode ver no histórico (a chamada linha do tempo) das postagens dos dois (Rose e Valner) que as trocas estavam indo muito além dos comentários a respeito da situação política do país. Rose era de direita, sempre foi. Isso me incomodava muito mais que a Label, pois na verdade, apesar do histórico familiar, ele não era exatamente de esquerda. Para se assumir como esquerda ele tinha que admitir como verdade algumas crenças básicas que dependiam de fé. E isso ele não tinha o suficiente para abraçar a causa. Então, o que mais incomodava Rose não era o esquerdismo mitigado de Label, mas sua falta de posicionamento claro. A necessidade de verdade era maior que a necessidade de acreditar. Porém, como a maioria das pessoas de direita, o conjunto das crenças conservadoras é mais importante que a argumentação em contrário. Para Rose não importava que o histórico da atuação dos meios de comunicação de massa fosse sempre manipulador e de direita, ela acreditava porque queria acreditar, até nos editoriais mais abertamente contra o governo, ela via como mensagens jornalísticas verdadeiras. Claro, isso 22
não impedia a todos de acharem ela uma mulher atraente e interessante, especialmente porque era culta, uma psicóloga mediana, mas dedicada e capaz de ouvir pacientes sem se envolver demais com seus problemas e opiniões. Mas quando se tratava de política era uma avalanche cega de bobagens. Label não enxergava desse jeito, sempre via esperança de que ela visse algo além da superfície e também buscasse a verdade, mas era um erro pensar assim. Com a união com o seu amigo Valner, viu que o interesse dela era no sucesso, no status e na projeção social. E isso o advogado poderia lhe dar. O professor doutor nunca. Valner não era nem de esquerda e nem de direita, era apenas uma pessoa em busca dos seus interesses e naquele momento o que lhe interessava era ganhar mais dinheiro e, no rastro, estar com uma bela mulher ao seu lado. No caso, por obra do acaso, era a mulher que tinha sido a do seu amigo... Mas acho que já concordamos que o casamento de Label e Rose foi um erro e que só aconteceu devido as circunstâncias da vida dele e do interesse dela na promessa de homem acadêmico de sucesso que nunca se concretizou. E nesta história toda restava o jovem Vladimir. Neste dia 15 de março de 2015 ele estava com mãe, nas ruas, pedindo o Impeachment da Presidenta. Não que ele ligasse muito para isso, estava mais interessado nas paqueras dele pelo telefone e nas garotas bonitas que estavam por lá também. Ele tinha aceitado bem o novo casamento da mãe que estava por vir, mas estava preocupado com o pai.
18 de agosto de 2015. Vladimir não via o pai há mais de 23
cinco semanas. Eu, mesmo trabalhando com ele no mesmo local, só o vi rapidamente na sala dos professores umas duas vezes neste período. Era estranho até mesmo para Label, que costumava se isolar de vez em quando para pesquisar seus temas de interesse e escrever algo... infelizmente sempre inacabado. Rose ligou para mim perguntando por ele, dizendo que o filho estava preocupado, mas o que pude informar foi pouco. Fiquei também preocupado pelo meu amigo, pois para Rose ligar para mim, era porque a coisa era séria. Cheguei ao apartamento dele por volta das 17 horas. Toquei a campainha e bati na porta por cerca de vinte minutos. Liguei para ele nos dois números, ouvi tanto o telefone fixo quanto o celular tocarem no interior do apartamento, mas nada de resposta. Pensei o pior. Desci nervoso até a portaria. O porteiro disse que havia um registro dele saindo de casa há dois dias, mas não havia registro de retorno. Porém disse que nem todos os porteiros registram as entradas e saídas dos moradores, preocupando-se mais de registrar os visitantes. Perguntei se havia alguma chave mestra ou se o síndico poderia intervir para entrar no apartamento. Ele disse que só com a autorização de um parente. Imediatamente liguei para o Vladimir. Uma angustiante espera de vinte e cinco minutos foi suficiente para eu já imaginar meu amigo morto, deitado na cama ou no sofá, com um pote de pílulas ao lado. Intelectuais não costumam se matar de forma barulhenta... Pensei que podia ter simplesmente ter desmaiado na frente do computador, sem comer direito, e entrado num quase coma... Mas não, o pior podia ser pior do que eu conseguia imaginar. Vladimir finalmente chegou. Subimos até o apartamento e o síndico abriu a porta. O que testemunhamos vai demorar um pouco para ser descrito. Ele não estava em casa, mas algo aterrorizante sem dúvida tinha acontecido ali... 24
20 de agosto de 2015. A polícia foi chamada para investigar o desaparecimento de Label Marques, professor doutor em Sociologia pela Sorbonne, pai de um jovem e meu amigo. Lembro de ter sido convidado a depor para atestar os hábitos dele como professor e colega de universidade, pois as evidências encontradas no apartamento dele demonstravam uma personalidade obsessiva e paranoica que podia representar um risco para a sociedade e para a segurança nacional. Evidentemente não tinha como eu concordar com aquela análise feita pelos policiais, pois tanto eu quanto seus conhecidos (Vladimir, Rose e Valner inclusos) dificilmente caracterizariam Label como paranoico e obsessivo, muito menos como ameaça à segurança nacional. É verdade que muitas vezes ele se dedica demais a coisas bobas, como o contínuo questionamento sobre a verdade dos fatos em relação às acusações de corrupção contra os políticos e do papel da mídia em tudo isso... Volta e meia ele estava construindo argumentações muito lógicas sobre tudo isso que o país vivia, mas não conseguia chegar a conclusão nenhuma. E isso era frustrante para ele, sempre apelando para a história, para as teorias clássicas e contemporâneas da sociologia, mas não conseguindo extrair uma verdade mais segura sobre o conjunto de fatos... Mas daí chamá-lo de paranoico obsessivo era uma grande diferença. A delegacia estava cheia de repórteres, isso porque através do síndico do prédio de Label ficaram sabendo do que fora encontrado em seu apartamento. Se fosse por mim, não iria fazer tanto alarde sem saber das reais razões de tudo aquilo que 25
testemunhei. Eles tentaram me entrevistar, mas não dei atenção. Vi que Valner também recomendou que Rose e Vladimir não falassem nada para a impressa... Afinal ninguém queria se comprometer com as possibilidades futuras de tudo aquilo.
1º de janeiro de 2003 foi um dos dias mais inesquecíveis na história recente do Brasil. Como havia dito o próprio presidente operário eleito no dia em que ganhou a eleição: “a esperança tinha vencido o medo”. Nunca antes na história desse país a população mais pobre tinha se sentido tão representada na cadeira da presidência quanto a partir daquele dia. As largas avenidas da capital tinham sido tomadas por pessoas de todas as cores e origens, que foram lá para afirmar que suas caras e expressões de alegria é que tinham finalmente chegado ao poder. Eu me lembro que estava voltando de viagem de réveillon e um taxista estava muito feliz com a posse, informando orgulhoso que o preço da gasolina já havia baixado... como se isso tivesse algo a ver com o novo presidente em processo de posse. Já Label estava em casa, assistindo tudo pela televisão e com uma discreta lágrima no olho, lembrando de todas as esperanças que seu pai tinha naquele homem barbudo, simpático e sem um dedo mínimo em uma das mãos. “Queria que estivesse aqui para ver isso, pai!” Pensou consigo mesmo.
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21 de abril de 1985 foi uma também uma data de grande comoção nacional, mas por razões tristes. Deitado na rede na sala de um modesto apartamento, o pai de Label assiste também lacrimejante, ao cortejo fúnebre de outro presidente, também recém-eleito, mas nunca empossado. Diferente do presidente operário, este sempre foi da elite política brasileira, responsável por muitos fatos importantes na história do país desde a década de 1950. Porém, naquele momento histórico, ele representava também as esperanças de milhões de brasileiros, inclusive o pai de Label, é claro, da construção de um país melhor, mais justo, com liberdade de expressão e sem medo. Era o homem símbolo do fim da Ditadura Militar. Mas havia morrido. Ficou doente na véspera da posse (15 de março) e morreu no dia 21 de abril do mesmo ano, fazendo companhia histórica a outro brasileiro famoso por ser um mártir de um pensamento revolucionário, apesar de também elitista, o Tiradentes. E os dois eram do estado de Minas Gerais. Os relatos pessoais de Label a respeito deste momento histórico da vida do país e de seu pai ao mesmo tempo advém muito do modo como ele encarava a família e a sociedade, sempre me falando das conexões entre o individual e o coletivo. Pessoalmente lembro pouco destes momentos do país ou se houve algum impacto pessoal em minha família... Talvez seja porque na época eu tinha apenas cinco anos, enquanto ele já estava com quase doze. Para alguém como Label, que apesar de tudo era de uma inteligência brilhante e tinha memória espetacular, doze anos significava uma compreensão bastante ampla e profunda a respeito da realidade a sua volta. Talvez por isso mesmo fosse tão difícil para Label se desprender da história e entender os comportamentos imediatistas de algumas pessoas. Para ele o iluminismo e a revolução francesa, a 27
inconfidência mineira e a independência dos Estados Unidos, o governo de Juscelino Kubitschek, a ditadura militar e a eleição de Tancredo Neves, os governos de FHC e Lula, e a crise política agora em 2015 tinham um mesmo fio condutor histórico que só ele enxergava... Então ele não entendia a revolta extremada das pessoas, duvidava das notícias tão facilmente propagadas pela mídia corporativa e pela Internet e ele gostaria muito de compreender, de ter a verdade de volta (se é que algum dia teve), e principalmente de contribuir para que as pessoas conseguissem enxergar também, e com naturalidade, o que ele via... Talvez fosse mais fácil escrever um livro... Mas será que alguém iria ler... além de mim, é claro.
O mês de outubro de 2014 foi o auge da eleição presidencial. A presidenta que iria se reeleger disputava com o neto daquele presidente que morreu sem tomar posse, outro mineiro, é claro, a eleição mais concorrida e confusa de todos os tempos no Brasil. Para Label não parecia haver nada de excepcional na disputa presidencial. Como sempre cheia de acusações e mentiras com aparência de verdades dos dois lados. O ataque da mídia corporativa por um lado, contra a presidenta, investia cada vez mais nas acusações de corrupção como matriz de opinião para minar a popularidade da mesma com as classes mais pobres. Enquanto isso a chamada militância digital atacava sistematicamente o candidato opositor, sendo taxado de elitista, de playboy, além das também acusações de corrupção advindas de seu governo no Estado de Minas Gerais, só que estes sem destaque algum da mídia corporativa. 28
A grande novidade na vida de Label naquele momento era a ruptura cada vez mais definitiva com a sua ex-esposa e o filho, por tabela. Rose se tornara uma ferranha militante de direita, apoiando o candidato mineiro e gastando muito do seu tempo livre, entre um paciente e outro na clínica de psicologia, atacando a presidenta e toda a esquerda do mundo com os maiores absurdos possíveis. De fato, tinha se tornado o esporte nacional daquela eleição: reproduzir informações doidas, de fontes desconhecidas, a respeito dos candidatos a presidência. Ou era isso ou era a repercussão de coisas totalmente sem importância para o pleito. Como exemplo, Label me falou de dois casos: “Que importância tem se o candidato mineiro fez intercâmbio no estrangeiro na juventude? Acusar o político de ser de família rica não é desmerecimento nenhuma como político ou como gestor.” Do outro lado: “Ficar chamando a presidenta de assaltante de banco porque ela participou dos movimentos de guerrilha urbana contra a ditadura é de uma ignorância atroz, pois desmerece não só o esforço dela como militante de esquerda contra a ditadura, mas também o esforço de parlamentares como o avô e o pai do outro candidato em participar da aparente democracia do sistema ditatorial, para aos poucos construir um retorno à democracia, o que acabou acontecendo.” Era triste também para Label ver seu filho tão facilmente influenciado pela posição extremista da mãe. Não seria incômodo Vladimir votar no candidato de Minas Gerais, isso era perfeitamente lícito... Bem lembrava como discordava do pai sobre em quem votar na eleição de 1989... O problema eram os motivos. Não era pela alternância de poder, nem por se ter uma proposta clara de mudança, na verdade o programa do perdedor acabou sendo adotado pela vencedora, era apenas por desgostar (e em alguns casos até odiar) a presidenta e o partido dela. Label não via motivo para tanto antagonismo. Olhava para os 29
vinte anos anteriores do Brasil e via muito pouca mudança, tanto na sociedade quanto na política. No máximo havia mais acesso de mais pessoas a produtos de consumo, que na opinião dele eram na sua grande maioria supérfluos. Algumas instituições também foram reforçadas, buscando superar modestamente ainda a presença do patrimonialismo no Estado brasileiro. Mas no final das contas ainda eram as mesmas famílias, as mesmas siglas e as mesmas corporações que mandavam no país... Então, novamente, por que tanto antagonismo? Quando observava mais ao longe ainda, todo século XX, lembrando inclusive de sua tese de doutorado, mais ele via a manutenção franca de um mesmo sistema, com pequeníssimos avanços em direções mais progressistas e promotores de justiça e equidade. E com isso tudo ele se perguntava, e às vezes me trazia para suas reflexões sem conclusões: “será que estou errado ou cego em não enxergar o motivo de tanto ódio?” “Será uma expressão menos óbvia da luta de classes de Karl Marx?” Não tínhamos resposta para isso. Apenas opiniões entremeadas com algumas certezas pouco convincentes a não iniciados nas ciências sociais. E acredito que nenhum ato drástico de Label resolveria essa questão. Mas a opinião dele terminou sendo outra...
18 de agosto de 2015. O síndico do prédio onde Label morava tinha aberto a porta e à medida que entrávamos no apartamento, nossos olhos foram ficando mais e mais estarrecidos. O ambiente era a expressão do caos doméstico normal multiplicado em uma centena de vezes. No primeiro olhar só se via a confusão 30
de papéis, roupas, embalagens de comida, linhas coloridas, fitas adesivas e quadros para tachinhas nas paredes e no chão. Se fosse uma cena de crime poderia ser olhada em caracol com o epicentro sendo a mesa do meio da sala com o computador ainda ligado, mas em hibernação. Os espaços ao redor eram cobertos por livros entreabertos, significando consultas tempestivas. Na segunda camada estavam as revistas semanais e jornais diários. Havia também muitas versões impressas de jornais e revistas estrangeiras, especialmente em inglês, espanhol e francês, mas também em alemão e russo. Depois aparecia um longo círculo de recortes grudados em diferentes quadros de feltro, cada um tinha uma aparente classificação segundo critérios que somente o próprio Label poderia explicar. Olhando a partir da posição em que ele estaria se estivesse ao computador, o primeiro quadro trazia uma série de recortes com manchetes nacionais sobre os casos recentes de corrupção em plena investigação e que pareciam cada vez mais minar a legitimidade da presidenta. Indo para a direita estava um quadro com recortes de notícias sobre o mesmo assunto em jornais estrangeiros, este quadro estava dividido em “a favor” e “contra”. Não fui capaz de determinar se era a favor e contra a presidente ou às acusações. O mural de feltro seguinte parecia apresentar uma série de textos e postagens impressas da internet sobre como a mídia corporativa estaria manipulando a opinião pública através de matriz de opinião sobre os mais diversos pretextos: uma nova Guerra Fria entre ocidente e oriente; a capitulação da riqueza nacional do petróleo por empresas estrangeiras; especulação financeira que favorecia rentistas e banqueiros; conservadores fascistas que queria retomar o poder perdido após o fim da ditadura; a classe média ressentida pelas perdas de status nos últimos vinte anos; movimentos sexistas que não queriam 31
uma presidente mulher; movimentos separatistas que queriam separar o Brasil em duas nações... e muitas outras maluquices. Já quase atrás da visão de quem estivesse no computador começava uma série de quadros com fotos de pessoas supostamente envolvidas em tudo aquilo que se falava na mídia e na Internet. Começava o primeiro quadro com figuras obscuras e desconhecidas. Nas legendas das fotos dizia o nome e o que a pessoa fazia: gerente do setor de finanças da empresa X; receptor de mercadorias do órgão público Y; assessor parlamentar do deputado W; funcionário Z do Palácio do Planalto; e por aí vai. Passando para o outro lado estavam as fotos das figuras mais notórias dos casos de corrupção recentes. Alguns nomes exaustivamente citados na grande mídia e outros também reincidentes das mídias sociais e blogs. De um lado e de outro havia uma intricada trama (literalmente, pois havia linhas coloridas ligando estas figuras ao quadro colocado abaixo) que ligava a diversas empresas privadas que pareciam ser os financiadores de suas campanhas e vidas cotidianas. Uma legenda abaixo desses dois quadros dizia: “os donos do país”. Finalmente, no último quadro, quase fechando um círculo de quatro metros de diâmetro ao redor do computador, estavam as fotos dos cinco presidentes vivos do Brasil. Legendas classificam uma série de frases menores coladas abaixo. Na primeira legenda dizia “teve responsabilidade” e na segunda “não sabia”. E abaixo as frases menores descreviam uma série de escândalos e acusações aventadas ao longo de quase trinta anos de república: sivam, marajás, PC, banestado, mensalão(ões), anões, sanguessugas, pasta rosa, tremsalão, aeroaércio, mensalinho, escândalo da mandioca, merenda escolar, furnas, violação do painel do congresso, compra de votos e, dentre outros, o famoso petrolão, o mais recente e aparentemente o mais lembrado pelas pessoas, já que era o da moda. 32
Nestas frases havia uma série de linhas coloridas (sob algum critério indecifrável) ligando cada caso aos personagens dos quadros precedentes e também às empresas e órgãos do penúltimo mural embaixo. Pegando aleatoriamente qualquer um dos fios se chegavam em uma série de nós e conexões entre as pessoas de todos os quadros e finalizando com um dos presidentes. Partindo destes se chegava às empresas privadas financiadoras de campanhas. Saindo das frases, quase todas títulos criados pela mídia para chamar atenção do público, se chegava também aos jornais e revistas nos dois primeiros quadros. Alguns fios se misturavam às roupas e caixas de comida delivery que estavam espalhadas pelo chão, provocando uma confusão maior ainda. Pude notar que os elementos mais manuseados por Label foram as legendas abaixo dos cinco presidentes que diziam “teve responsabilidade” e “não sabia”. Essa manipulação constante das legendas indicava mudança constante de posição. E pelo resultado apresentado, acho que ele não conseguiu chegar a nenhuma conclusão. Estagnado aos olhares dos presentes naquela sala, aquela explosão de elementos visuais pareciam indicar que uma mente muito atormentada estava procurando respostas obsessiva e compulsivamente. Aproximei-me do computador e apertei a tecla space para tirar o computador da hibernação. Quando a imagem que estava lá ficou inteligível para nós foi o momento em que o síndico do prédio sacou o telefone celular do bolso e ligou para a polícia. Vladimir que já estava atônito e perplexo não resistiu à agonia e correu para fora do apartamento. Quem poderia imaginar!
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15 de dezembro de 2015, quase três da manhã na capital do Brasil, o silêncio rodeava a residência oficial do Presidente da República. O Palácio da Alvorada é uma edificação de estilo inovador, patrimônio da humanidade, assim como toda a cidade de Brasília. Voltado para o Sol nascente, o amanhecer por trás dele, do ponto de vista do visitante, é algo deslumbrante. Podese imaginar o quanto o seu morador temporário possa admirar de tal beleza de dentro, se é que há tempo para isso na vida de um presidente de um país tão idiossincrático quanto o Brasil. Porém, nesta madrugada escura e silenciosa, não é o olhar do turista visitante que perscruta o horizonte do palácio e sua entrada pobremente vigiada por apenas dois guardas. O Brasil não é um país de tradição em atentados contra autoridades. Diferente dos Estados Unidos, que tem toda uma subcultura a respeito de tentativas de assassinato e assassinatos contra presidentes e outras autoridades e celebridades, no Brasil o único presidente que sofreu um atentado foi contra si próprio: Getúlio Vargas cometeu suicídio em meio a pressões insuperáveis tanto de dentro do país quanto fora, acusações de corrupção e curiosamente diversas questões a respeito da Petrobrás, situação até certo ponto similar ao que acontece neste momento no mandato da Presidenta. É claro que agora não mais o medo irracional da Guerra Fria e as instituições da república brasileira parecem muito mais sólidas, o suficiente para tal incidente ou o conjunto de incidentes que levaram ao Golpe Militar de 1964 não mais levarem a caminhos trágicos ou insolúveis. Mas tal percepção não pareceu suficiente para dissuadir Label de seus intentos... A busca da verdade era mais importante que o bom senso. A fraca segurança no palácio já era esperada. Os meses anteriores de pesquisa e estudo colocaram isso como algo previsível. Label era agora um vulto escuro em meio a 34
sombras. Aproximou-se da guarita sem dificuldades. A luz que tremia lá dentro iluminava uma visão surpreendente... mas conveniente. Os dois guardas estavam cochilando na frente da televisão. Label estava dentro do Palácio da Alvorada. Página 38 do inquérito policial nº 1800.5678. Acessos a páginas na Internet no computador do suspeito em nove de agosto de 2015. O computador pessoal do senhor Label Marques teve a página identificada como “locais públicos de fácil acesso no Brasil” acessada vinte e cinco vezes no período de doze horas. As páginas que por mais tempo foram visualizadas foram as do Palácio do Planalto e do Palácio da Alvorada, sede e residência, respectivamente, do ocupante do cargo do poder executivo federal. Apesar das informações não serem restritas, o tom desafiador do site e seu conteúdo textual indicam uma possível inclinação do suspeito em realizar uma invasão furtiva em uma dessas edificações oficiais. 15 de dezembro de 2015, três e cinco da manhã. Label avançou silencioso e cautelosamente pelo interior do palácio. Parecia um local muito familiar para ele devido ao exaustivo estudo das plantas e imagens do mesmo ao longo dos últimos meses. Era imponente tanto em arquitetura quanto em decoração, mas até humilde comparada a outras casas de pessoas ricas e/ou poderosas pelo mundo. Estava escura e silenciosa e Label podia ouvir sua respiração ofegante e seu coração batendo intensamente. Sabia que a presidenta estava dormindo lá naquela noite. Página 45 do inquérito policial nº 1800.5678. Foi encontrado dentre os arquivos criptografados e bloqueados com senha no computador pessoal do suspeito Label Marques um texto em formato de cronograma com detalhes a respeito dos hábitos dos cinco alvos pretensos do mesmo. Toda a agenda prevista para aquelas figuras públicas estava disponível no documento, o que indicava envolver pelo 35
menos mais uma pessoa com acesso a essas agendas e que provavelmente vendeu a informação para o suspeito. 15 de dezembro de 2015, três e dez da manhã. A porta do quarto da presidenta se abre lentamente. Label entra sem fazer nenhum barulho. A fraca fonte de luz da lua que vinha da sala penetrou rapidamente o ambiente revelando o semblante adormecido da chefe do executivo federal. O invasor sentou ainda hesitante, mas também exaltado, na poltrona no canto oposto à cama. Seu coração agora estava mais acelerado do que todas as partículas de um acelerador nuclear... Pelo menos era essa a sensação. Nunca antes na história desse país um professor de sociologia foi tão longe além do gabinete de estudo e da sala de aula em busca da verdade verdadeira dos fatos... Label tomou mais um fôlego com coragem e falou com voz suave: “Senhora Presidenta...” “Quem é você?” “Um eleitor, presidenta...”
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(a Evasão) O delegado responsável pelo caso era o doutor José Nilton Ferreira. Filho e neto de autoridades policiais, sempre conviveu com as especulações sobre o crime, os estudos sobre a investigação criminal e a exaltação da lei com princípio norteador do comportamento humano. Sempre honesto e um combatente ferrenho da corrupção na polícia, na política e na sociedade brasileira, era o homem certo para assumir o caso do desaparecimento de Label Marques e as circunstâncias em que seu sumiço se deu, relacionado a uma possível conspiração de assassinato e/ou terrorismo contra cinco figuras públicas nacionais. A saber, os cinco presidentes da república ainda vivos: a atual e os quatro ex-presidentes. O conjunto de evidências circunstâncias encontradas no apartamento de Label somado ao seu perfil psicológico foram os pontos de partida da investigação de doutor Nilton. A teia criada por Label em seu apartamento indicava a princípio que tinha ocorrido um esforço de pesquisa bem intenso. Nada de anormal para um pesquisador compulsivo que sempre se dedicara ao máximo na busca dos fatos que pudessem transformar hipóteses sociológicas em teorias. O que chamava 37
atenção do delegado era a obsessão em encontrar uma verdade e os responsáveis por todos aqueles eventos suspeitos ao longo da cadeia de tempo montada por ele. Investigados cerca de trinta anos de nova república, no que ela mostrara de pior, isto é, os casos de corrupção envolvendo políticos, órgãos públicos e empresas privadas, Label se concentrara em descobrir os centros geradores de poder, e por consequência de corrupção, e enfim a indicação (ou não) dos responsáveis como sendo os cinco últimos presidentes vivos do Brasil. Era um mistério para doutor Nilton, especialmente após ler a tese de doutorado de Label, porque se engajar em um caminho possivelmente criminoso, quando ele tinha produzido um material tão farto para a publicação de vários materiais científicos de valor inestimável. Tendo sido estudante e acadêmico sabia bem do valor dado à publicação e quanto eram valorizados materiais instigantes e potencialmente bem sucedidos, inclusive do ponto de vista comercial, podendo chegar a vender até centenas de cópias, especialmente no exterior onde se estuda a sociedade brasileira mais do que no Brasil. Os depoimentos de Rose, Valner, Vladimir, meu próprio e de outros colegas acadêmicos deram um pouco de luz para esse mistério. Como nós já sabíamos, Label tem como traço psicológico muito forte o fato de não conseguir tomar decisões muito facilmente. O próprio texto da conclusão de sua tese de doutorado é cheio de pontos de interrogação. Posicionar-se com segurança era algo muito difícil para Label, pois em seu brilhantismo de questionar incansável, ele sempre conseguia aventar novas possibilidades de respostas plausíveis para as situações. O que para a filosofia cética seria algo primordial, para a vida cotidiana era um grande atraso. Nota-se isso no seu casamento fracassado com Rose, na amizade perdida com Valner, na falha de orientação 38
paterna com Vladimir e na incapacidade em conseguir terminar a revisão da sua tese para ser finalmente publicada. Algo de interessante que o doutor Nilton observou durante a sua conversa comigo foi que revelei que eu e Label partilhávamos uma paixão por cinema, especialmente o cinema de ficção e espionagem. Como bom investigador criminal, também o delegado tinha inspirações nas figuras da ficção policial: Sherlock Holmes, Hercule Poirot e Auguste Dupin, os incríveis detetives com extraordinários poderes de dedução criados por Sir Arthur Conan Doyle, Agatha Christie e Edgar Allan Poe, respectivamente. Deste fato residiu a atenção dada por ele ao que poderia ser um traço de personalidade pouco observável em Label, especialmente para quem vê nele apenas um sociólogo desajeitado e indeciso: ele sabia construir enredos ou tramas como as histórias em um filme. Restava saber a partir da continuação da investigação do doutor Nilton que tipo de enredo de filme Label estava construindo a partir daquela cena deixada em seu apartamento.
18 de agosto de 2015. Na tela do computador estava um texto e uma imagem. O título do texto dizia: “Caminhos do Justiçamento” e a imagem era um diagrama circular contendo os nomes dos cinco presidentes vivos, com linhas convergentes até o centro, onde estava escrito “verdade ou morte”. A expressão justiçamento faz parte do jargão histórico do Brasil e das lutas clandestinas contra regimes autoritários. Significava promover uma justiça contra supostos crimes 39
cometidos por autoridades de Estado, mas que não eram reconhecidos pelo Estado como crimes. Como não havia julgamento legal e nem direito de defesa, passava muito mais por uma execução em retaliação a ações diversas. As traições de militantes também eram razão de justiçamento. Naquele momento somente eu tinha consciência do significado do termo, do ponto de vista histórico, mas o síndico e Vladimir apenas se atentaram às pessoas envolvidas no diagrama e a indicação no centro. Em outro contexto não significaria nada, mas no conjunto daquela confusão que era o apartamento de Label, podia ser uma coisa muito mais séria.
21 de agosto de 2015. Doutor José Nilton começava a ler o documento encontrado aberto e acessível no computador de Label. Também ele conhecia o termo justiçamento. Além de ter sido delegado durante o período da ditadura militar e conhecer a expressão, era também um estudioso da história e da conjuntura brasileira. O texto continha os passos do plano para promover a retratação dos cincos presidentes diante de suas possíveis responsabilidades nos diversos casos de corrupção ocorridos na história recente do Brasil. Para cada presidente havia uma página com todos os escândalos relacionados aos seus mandatos e que ações poderiam ter sido tomadas para evitar tais ocorridos. Era também relatado uma série de ações de punição para aqueles “crimes” apontados por Label em sua pesquisa. Doutor Nilton admitiu que tinha alguns que ele nem mais lembrava que tinham existido. A 40
tradição de impunidade e rápida notoriedade facilitavam os escoamento dessas informações pelo ralo do esquecimento. Finalmente doutor Nilton chegava numa página do texto de Label que apresentava com detalhes o cronograma das atividades que seriam usadas como momento do justiçamento dos presidentes. Ao longo dos cinco meses seguintes haveria de três a cinco oportunidades de agir contra cada um dos cinco presidentes vivos, pois havia todo tipo de descuido nas seguranças e situações de multidão. Uma reavaliação dessa escrita de Label pelo doutor Nilton trouxe dúvidas sobre seu suposto traço de personalidade calma, tranquila e indecisa. Parecia muito mais a minúcia de um gênio psicopata. Gênio por causa do nível de detalhamento. Psicopata por razão das consequências que aquilo trazia. Como um professor de sociologia praticamente sem publicações relevantes, fracassado na vida pessoal e profissional, se dedica a descobrir tantas informações, algumas inclusive sigilosas, em tão pouco tempo. O arquivo tinha sido inciado há apenas dois meses. A crise política no país e as suas necessidades pessoais por verdade foram o motivador inicial da pesquisa. Talvez ele quisesse enfim apenas produzir algo de relevante na sua área e ser finalmente reconhecido, mas tudo aquilo acabou virando um plano mirabolante de justiçamento contra cinco figuras públicas, até certo ponto inalcançáveis, mas sem dúvida influentes o suficiente para dar a Label as respostas que ele queria. Somente uma coisa poderia levar ainda ao acerto fatal de contas: a resposta deles poderia não lhe agradar...
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1º de setembro de 2015. Primeira data no cronograma de Label. Um dos ex-presidentes, o mais velho de todos, estaria na sua cidade natal de Pinheiro, no interior do estado do Maranhão, para receber uma homenagem. Após sua saída oficial da vida pública, restava a ele para ter um pouco de atenção da mídia local... que por sinal era a família dele a dona da mesma... receber homenagens e honrarias sem importância. Para ele era como um lazer de aposentado, viajar com tudo pago para locais diversos e ouvir um monte de elogios exagerados antes de receber uma medalha ou diploma. Neste dia, a homenagem era a de Filho Mais Ilustre da cidade de Pinheiro. Na praça principal da cidade toda população estava reunida. O prefeito havia decretado feriado e ofereceu a toda população um grande banquete para que a praça estivesse cheia em nome de seu filho mais ilustre. Ter sido presidente foi o máximo que ele conseguira chegar e até hoje a população lembra orgulhosa de tudo de bom e ruim que aconteceu em seu mandato. Assim, de todo modo, a população presente estava feliz em receber seu filho mais ilustre e ex-presidente da república. O carro chegou com uma comitiva de aparência oficial. As pessoas começaram a aplaudir quando a porta se abriu. O frágil senhor de mais de 80 anos saiu do carro com um sorriso e acenava para os presentes. De longe um olhar curioso e atento queria ver um pouco mais naquele momento que apenas a festa programada da população pinheirense. Era Label que observa telescopicamente o desenrolar da situação que ele havia planejado tão cuidadosamente... Enquanto o ex-presidente acenava sorridente, uma faixa gigantesca se abriu no meio das pessoas com uma frase enigmática: “O senhor sabia?”. E do meio da multidão saíram correndo duas mulheres jovens e bonitas, usando apenas roupas íntimas sensuais, gritando e correndo em volta do ex42
presidente. Perplexo, ele olhava as duas garotas, que foram em seguida detidas pela polícia local, e depois a faixa foi retirada e removida das suas vistas. O prefeito veio se desculpar por aquilo e continuar a homenagem. Mas o olhar perplexo ainda dominava o ex-presidente e Label conseguiu perceber isso em seu olhar. Era o que importava. Havia sido causada uma sensação desagradável e uma expressão facial muito mais honesta que qualquer depoimento oficial sobre qualquer coisa. “O senhor com certeza sabia, senhor ex-presidente. Vai ser esquecido da vida pública ciente que alguém mais sabia sobre tudo aquilo que mais temia que todos soubessem, mesmo que ninguém nunca realmente saiba.” E uma sensação de satisfação e tranquilidade invadiu Label. Havia certeza no seu olhar e em sua interpretação da verdade. Aquele pequeno homem idoso não poderia ser mais nada que apenas mais uma lembrança da história... esquecido por todos. Três de setembro de 2015. Doutor Nilton recebe uma informação vinda do interior do Maranhão que trazia uma sensação de complementaridade com mais um dos arquivos encontrados no computador de Label. Duas mulheres foram apreendidas na cidade de Pinheiro durante um protesto contra o ex-presidente José. As duas usavam trajes mínimos e foram acusadas de perturbação da ordem e atentado ao puder. Nenhuma das duas acusações procedia já que no Brasil não há cerceamento a expressão pública e elas não estavam realmente nuas, apenas em roupas íntimas. O interessante foi que vendo as fotos das duas durante o fichamento na delegacia de lá, Nilton notou uma certa semelhança com duas fotos que ele estava pesquisando num site de acompanhantes, ostensivamente acessado por Label nos últimos quatro meses. Num de seus arquivos de texto havia uma lista das garotas de programa com quem ele aparentemente teve relações, 43
constava o link para o anúncio dela, o telefone, o preço e uma descrição física e outra comportamental. Se confirmada a ligação entre os dois fatos, seria o indício de que Label vinha sistematicamente recrutando prostitutas de valor mediano para o plano dele de justiçamento contra os cinco presidentes. O delegado decidiu convocar de volta Rose e Eu para prestar novos esclarecimentos sobre o comportamento e personalidade de Label.
Quatro de setembro de 2015. Num quarto luxuoso e de decoração brega na cidade de São Luiz, capital do Maranhão, um senhor idoso agoniza sozinho em meio de pesadelos e palpitações no fim de seu sono na madrugada. Era o ex-presidente, que depois de tantos anos de vida pública começava a sentir o cheiro do esquecimento, mas muito mais que isso, a sensação de que poderia ter feito muito mais pelo país e pelas pessoas. A conivência e a convivência com a corrupção deixaram uma marca cancerosa na alma desse senhor. A culpa era tamanha porque ele afinal sempre soube de tudo. As decisões tomadas apenas por razões eleitorais em 1986. Os avisos do Ministro da Fazenda na época. Ele poderia ter sido o presidente que acabou com a inflação, mas acabou se tornando apenas aquele que assumiu no lugar do outro (o mineiro) que morreu e levou as esperanças junto com ele. Herdeiro do sistema político criado durante a ditadura militar, do qual ele também fez parte, não soube transformar nem mesmo na hora da promulgação da nova constituição. Quatro horas da madrugada de quatro de setembro de 44
2015, morria o ex-presidente sozinho em sua cama, com um último pensamento lhe corroendo a alma: “Podia ter feito mais pelo povo. Por que não fiz?” Dez horas da manhã eu chegava à delegacia a pedido de doutor Nilton. Rose já estava lá, de cara amarrada, como sempre, esperando ser chamada. Na televisão na sala de espera da delegacia (e nos celulares de várias pessoas) veio a notícia: “Ex-presidente é encontrado morto em sua cama... Especula-se parada cardíaca.” Fiquei um pouco temeroso com as possíveis consequências daquela notícia para o futuro de meu amigo. Rose olhou com desprezo e comentou: - Já vai tarde, velho bandido. Só podia ser aliado da presidanta. O delegado saiu da sala e, removendo os óculos meia armação do rosto, procurou por nós e mandou que entrássemos. Estava nervoso, diferente da calma e paciência com que conduziu as entrevistas anteriores. - Vocês viram essa loucura que aconteceu no Maranhão? - “O senhor não acha que tem algo a ver com Label?” - Não sei, meu caro... Senhora Rose, tinha ciência que seu marido mantinha encontros com diversas garotas de programa nos últimos cinco meses? - Rose olhou para o delegado e depois para mim com um certo espanto, mas depois deu de ombros. “Senhor delegado, estamos separados há mais de dois anos, por que afinal teria conhecimento e interesse sobre com quem ele anda se encontrando?” Havia sentido na colocação dela. Nilton olhou para mim e fez pergunta similar. Alguns instantes de silêncio se passaram... Conhecimento desse hábito de Label eu não tinha, mas desconfiava que muitas vezes ele estava se encontrando com alguém. Pensando bem, com certa frequência ele ficava sem dinheiro ao longo do mês, provavelmente porque estava gastando muito com essas profissionais. Mas nunca tive interesse em perguntar sobre isso na vida dele. Para 45
mim ele era um solitário convicto e conhecendo um pouco do que foi a experiência marital dele com Rose, intendia porque ele não queria se envolver com mais ninguém. Nilton nos revelou que duas das profissionais mais requisitadas por ele, de acordo com seus arquivos do computador, eram também as duas moças que foram presas no Maranhão após a manifestação contra o ex-presidente. Com a morte do mesmo a situação havia se agravado. A polícia federal agora iria se envolver no caso e as duas mulheres seriam trazidas de volta para interrogatório. Ele nos advertiu que se algum de nós soubesse alguma informação a mais sobre o paradeiro de Label e não informássemos estaríamos talvez na posição de cúmplices numa conspiração e crime contra figuras públicas nacionais. Era evidente que nenhum de nós sabia onde Label estava. E tanto eu quanto Rose duvidávamos da veracidade de tudo aquilo em relação a Label, pois para mim ele era um homem tranquilo e incapaz de elaborar algo tão meticuloso em prol de justiçamento. Doutor Nilton também contou sobre isso. E Rose simplesmente não via como seu ex-marido banana, segundo ela, poderia ser capaz de qualquer coisa mais ativa que simplesmente atravessar a rua. Intimamente também tinha ciúmes ao saber sobre as garotas de programa, pois também lembrava ela que Label não mais a procurou para sexo por praticamente seis meses antes da separação. É claro que ela não ligou muito, pois já estava de caso com Valner e sempre encarava esse desinteresse de Label como parte de sua personalidade indecisa. Agora ela podia ver que não era simplesmente o caso. Ele tinha muito mais em mente do que ela podia sequer imaginar.
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Algum dia de 1794. É a época do terror na Paris revolucionária dos girondinos. Na noite uma marcha de soldados da revolução se dirige a casa de um de seus maiores líderes. Um complicado caso de denúncias e chantagens havia chegado aos ouvidos do comitê central da revolução (uma espécie de poder judiciário de emergência). O eloquente Maximilien de Robespierre conseguira com seus discursos levar centenas de pessoas à guilhotina e nesse mesmo caminho de justiçamento revolucionário ele também terminaria com a cabeça rolando em praça pública. Apesar de ser chamado de “o incorruptível”, boatos surgiram de que ele estava favorecendo uma mulher e um grupo jornalístico particular, que sempre publicava seus textos, e que este favorecimento estava corrompendo os princípios básicos da revolução. Quando foi preso em sua casa estava em companhia dessa mesma mulher, que na história ficou sendo conhecida como prostituta, mas tal informação nunca se confirmou... podia ser apenas uma amante do líder revolucionário... Ela também foi presa e também guilhotinada, mas sem o mesmo glamour do julgamento e execução de Robespierre, que foi amordaçado por ordem do comitê central, justamente por ser considerado um homem perigoso e influente com as palavras e que poderia tornar seus captores em aliados num piscar de olhos. A voz que moveu a massa de trabalhadores para revolução francesa, que pregava a liberdade e igualdade entre todos os homens, agora era apenas um prisioneiro mudo de suas próprias palavras, pois o processo da revolução era inexorável, as ideias eram maiores que seus idealizadores e o seu relacionamento com uma mulher da vida era uma ameaça ao bem maior... Na busca de Label pela verdade, ele também se encontrou com prostitutas, mas agora como instrumentos úteis numa mobilização ainda incógnita e precisava da colaboração interessada, mas 47
inocente, tanto das profissionais do sexo quanto dos meios de comunicação. A melhor camuflagem era a exposição.
Cinco de setembro de 2015. As duas garotas de programa chegaram à delegacia atraindo olhares masculinos e femininos. Renata e Jéssica eram seus nomes de guerra. Ambas altas, bonitas, uma loira e outra morena. Estavam cada vez mais entusiasmadas com toda aquela atenção da mídia. Havia muitas equipes da impressa em frente da delegacia quando elas chegaram. E doutor Nilton as aguardava com certa apreensão, pois sabia que todo aquele circo midiático só fazia atrapalhar suas investigações. Elas sentaram em frente ao delegado. Ele começou: “Quando vocês conheceram o senhor Label Marques?” – Quem? – Disse a loira Renata. “Label Marques. O homem que planejou isso que vocês fizeram no Maranhão.” – Ah, o nome dela é Joca. – Disse a morena Jéssica. Nilton refletiu por um momento e decidiu mostrar a foto de Label para elas. “Era esse o homem que as convenceu a fazer aquele show?” O tom moralista de Nilton não as assustou. – Sim, ele é o Joca. – Afirmaram as duas. Estabelecida a identificação visual e anotado que o mesmo usava um pseudônimo para tratar com as garotas de programa, o delegado voltou a perguntar sobre o relacionamento delas com ele. As meninas contaram que atenderam Label a primeira vez em abril. Primeiro ele esteve com Renata e depois com Jéssica, com poucos dias de diferença. Depois ele pagou para estar com as duas ao mesmo tempo, foi quando elas se conheceram e acabaram se tornando amigas. 48
Segundo as duas, ele era um bom cliente, não fazia muitas exigências, apenas sexo normal, pagava sem regatear preço e era muito limpo. Com a continuidade dos encontros ele começou a deixar as duas confortáveis para lhe contar sobre suas vidas. Porque faziam programa, anseios para o futuro, pretensões de fama, se tinham laços familiares em outros lugares, ideologias políticas (praticamente ausentes) e principalmente disponibilidade para fazer viagens. Finalmente eles informaram que nas últimas vezes em que estiveram juntos os três ele contou a vontade de pregar uma peça numa figura pública qualquer e que precisaria da ajuda das duas. Disse ainda que com certeza haveria uma boa cobertura da mídia e que seria a chance delas aparecerem e se tornarem celebridades fast ao estilo Geyse Arruda, Bruna Surfistinha e todos os ex-BBBs. Doutor Nilton notou logo que esse argumento fez brilhar os olhos inocentes das duas prostitutas. De certo modo admirava a habilidade persuasiva de seu sujeito investigado, pois enquanto elas vendiam fantasias sexuais para ele, Label estava lhes vendendo ilusões. “Saiu ganhando duas vezes!”. Pensou o policial. Com certeza nunca mais iria subestimar um sociólogo. O perfil de fraco e indeciso passado por seus amigos e familiares definitivamente não combinava com as habilidades desse mestre do ardil que começava a se descortinar. A maior ironia de tudo aquilo era que ninguém havia, de fato, cometido crime algum. As garotas não podiam ser enquadradas nem no atentado ao pudor, pois não estavam nuas. E Label, no máximo, pode ser considerado o benemérito que ajudou essas duas jovens a tentar alcançar seus sonhos de fama fácil. Renata e Jéssica se levantaram depois de terem sido dispensadas por Nilton. Ele as agradeceu pela colaboração e apontou a saída da sala. Elas já iam saindo quando ele resolveu perguntar: “Vocês sabiam que o ex-presidente da manifestação de vocês 49
morreu?”. Elas se entreolharam e Renata perguntou: – Que ex-presidente? – O delegado olhou para as duas analisando suas expressões de perplexidade e ignorância, depois pensou em conclusão: “O senhor Label é mesmo um gênio!” “Não importa... Podem ir!” As duas saíram. Nilton deu uma última olhada nas pernas delas. Muitos policiais pararam para assistir as duas desfilarem na saída da delegacia. E enfim o prêmio delas estava pago: as câmeras e jornalistas avançaram para saber delas tudo sobre o depoimento e sobre elas. Era a atenção que Label tinha prometido para elas, muito além do que qualquer pagamento que ele pudesse lhes dar. O desejo por visibilidade e audiência cumpriu seu papel de atrair as duas jovens para uma trama muito maior do que elas. O futuro agora só depende delas mesmas e do quanto a mídia vai considera-las atração interessante nos próximos dias.
12 de setembro de 2015. Havia naquela data duas vítimas prováveis, seguindo o cronograma de atividades públicas dos quatro presidentes restantes. Na cidade de Maceió, no estado de Alagoas, o ex-presidente do impeachment estaria dando uma entrevista na sede do canal de televisão que pertencia a sua família. O grupo de mídia com TV, rádio, jornal e portal na Internet controlava boa parte da opinião pública do estado e tinha também a maior audiência. Ele tinha sido convidado, estando no cargo de senador agora, para dar um depoimento exclusivo e esclarecedor a respeito das diversas acusações de corrupção que tanto a chefe do executivo federal quanto muitos 50
representantes do legislativo nacional estavam sofrendo. Enquanto isso, na sede do Clube dos Empresários Muito Ricos na capital do estado de São Paulo, o ex-presidente sociólogo iria fazer uma palestra falando sobre seu novo livro Os Pensadores que fizeram o Brasil, uma apresentação que construiria um novo reconhecimento do papel da burguesia empreendedora paulistana no processo civilizatório brasileiro... para o bem e para o mal. Era difícil antecipar qual seria a lógica de Label para a sua nova investida contra os ex-presidentes. Ambos estavam em momentos públicos, expostos e então vulneráveis. Com o incidente ocorrido no Maranhão e a intervenção da polícia federal no caso, ambos homens públicos tiveram suas seguranças reforçadas diante da ainda branda mas real ameaça de um homem que tinha um objetivo em mente e dissuadir tamanha determinação parecia pouco provável, especialmente depois do relatório que doutor Nilton entregou a polícia federal sobre o caso e o novo perfil psicológico de Label. Neste não estava mais o fraco e indeciso professor de sociologia rejeitado pela mulher e ignorado pela maioria dos seus pares, constava um astuto e manipulador mestre de uma possível conspiração sem precedentes no país. Nas duas capitais, nas duas situações em que os dois ex-presidentes se encontravam, ficou-se no suspense. Polícias e seguranças privados aguardando por algo que ninguém sabia o que podia ser... Apenas Label.
Algum dia de 1991. Label e seu pai caminham pela areia da praia e conversam sobre política. “Para este tipo de gente, meu filho, 51
a maior punição é perder o poder, ficar pobre ou ser esquecido”. Ele estava a lamentar o fato do presidente estar promovendo o desmonte da estrutura estatal, abrindo a economia para o mercado estrangeiro e criando novas formas de enfraquecer os movimentos sociais através de conceitos como terceirização, desregulamentação e privatização. O sequestro das poupanças no ano anterior já tinha promovido grande sofrimento e até alguns suicídios sem conseguir a meta desejada: a redução da inflação. E agora a continuidade de um governo desastroso para os direitos trabalhistas fazia o pai de Label se ressentir ainda mais do pensamento hegemônico de direita que havia dominado o país mais uma vez. A derrota do candidato operário ainda era amargada e o pensamento de oposição sistemática ao status quo modelava esse tipo de anseio fantasioso. Não havia revolução a chegar. As coisas não iriam mudar tão facilmente. O tempo de vida de uma pessoa não era suficiente para perceber as transformações na história. Ainda era adolescente, mas o ceticismo de Label a respeito das consequências das ações individuais no curso de uma história feita pelos poderosos era bastante vívido. Temia que seu pai se tornasse apenas um velho rancoroso por ter vivido a vida inteira sem conseguir ver realizado o sonho de um mundo mais justo, um país com verdadeira representação popular e o capital derrotado. Mal sabia ele que no ano seguinte teria a oportunidade de participar de amplas manifestações e colaborar com a retirada do poder daquele presidente, mesmo morrendo em pleno protesto. Deve ter morrido feliz, com a impressão de que finalmente estava conseguido fazer a diferença e promover a transformação.
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12 de setembro de 2015. “A transformação não veio, meu pai... Não no nível e profundidade que ansiava. Mas acredito que EU possa fazer a diferença agora!” Pensava tranquilo Label enquanto se preparava para o novo golpe em busca da verdade e do justiçamento. Estado de Alagoas, sua capital Maceió. Em frente da saída lateral da sede do maior grupo de mídia do estado aguarda um carro preto com vidros escuros. O carro típico de autoridades medrosas de serem vistas, pois sabem que a população comum os despreza. Da porta saem três seguranças, observando todo o entorno. Logo em seguida um comando de rádio deles faz com que o atual senador e ex-presidente deixe o interior do prédio. Pouco antes de sair, um mensageiro do grupo de mídia entrega um envelope para a autoridade. Ele aceita o envelope e o abre automaticamente na mesma medida em que caminha para a luz do dia do lado de fora. Ao alcançar metade do caminho (poucos metros) entre a porta do prédio e a entrada do carro escuro ele para ao ler a mensagem. Está super visível para qualquer pessoal que estivesse olhando para aquele local naquele momento... Ele ainda olha ao redor e numa pausa eterna de poucos segundos lhe chega o acerto de contas pelo ar, atravessando mais de 800 metros, do alto de um prédio próximo, uma picada leve mas perceptível, que o leva a dar um tapa no pescoço, como se mordido por um mosquito. Label acertou bem no alvo. Nem ele esperava tanta sorte e precisão. O senador retoma os passos rápidos e entra no carro, largou o papel com a mensagem na calçada, carregado pelo vento para ser 53
mais uma vez esquecido como lixo urbano, mas no fundo uma sugestão para efeitos psicotrópicos, cujas consequências são até aquele momento totalmente inesperadas. Dizia: “Você é pobre!” Nove horas da manhã. Doutor Nilton entrega toda documentação da investigação para o delegado da polícia federal agora responsável pelo seu andamento, seu nome é Protógenes Outro. Ele ficou famoso nacionalmente por ter tido coragem de investigar, prender e levar a justiça um grande banqueiro envolvido com uma série de crimes financeiros. Nunca antes na história desse país um banqueiro tinha sido condenado a prisão, mesmo que fosse culpado até de genocídio, e esse tinha sido condenado por algo até prosaico na história do Brasil: enriquecimento ilícito e lavagem de dinheiro. Ele até já cumpriu a pena e continua na ativa como banqueiro, mas com certeza vai ser mais cuidadoso com as falcatruas daqui por diante. O doutor Outro agradeceu o empenho de Nilton e também a sua colaboração. Eles se cumprimentaram e cada um foi para sua jurisdição. Estavam de prontidão diante das duas possibilidades de ataque, em São Paulo e em Alagoas, mas evidentemente priorizaram São Paulo. Afinal o ex-presidente paulista era mais importante e o alagoano já tinha uma forte segurança particular. Dez horas da manhã. Já no avião de volta para a capital federal, o delegado começa a ler algumas partes do relatório de investigação de Nilton. Chamou-lhe atenção os acessos na Internet de cursos de tiro. Aparentemente nos últimos meses Label não só tinha aprendido a atirar como também tinha treinado o suficiente para se tornar um exímio atirador de longa distância. Havia até um certificado digital de uma escola de tiro israelense. Após passar com curiosidade e atenção pelas páginas de acompanhantes já relatadas por doutor Nilton, chamou-lhe atenção agora o registro de um site em russo. Não sabia ler aquela língua, mas reconheceu algumas fotos de plantas, que eram 54
usadas para fazer drogas. Acessou a Internet e pediu a tradução do texto para o inglês. Sabia que se pedisse para português sairia cheio de erros, assim pediu para a língua franca do mundo, pois a incidência de erro do tradutor universal da Internet seria bem menor. A leitura do conteúdo foi algo surpreendente. Eram explicações detalhadas de como sintetizar a partir de plantas, algumas muito comuns, drogas psicotrópicas capazes de promover alucinações tão realistas que poderia levar a pessoa mais sã para um estado de loucura total em poucos minutos. Onze horas e trinta minutos, o carro preto de vidros escuros do ex-presidente deixava a sede do seu grupo de mídia. Dentro do carro, o senador começava a sentir um certo desconforto. Suas mãos começaram a transpirar. Logo depois uma leve sensação dormência nas pernas faz ele relaxar. A mente começa a se desligar da realidade física presente e logo a calma e a tranquilidade tomam conta da consciência. Uma buzina de carro estridente o assustou. Ele desvia na direção oposta e olha para um carro caro que tinha buzinado com o motorista gritando e chamado ele de barbeiro. Está dirigindo agora. É um carro velho e barulhento. Uma música brega toca no rádio e tem um monte de balangandãs de pobres pendurados no retrovisor. Continua dirigindo por reflexo, mas se sente complemente inerte e confuso. De relance olha o próprio rosto no espelho e como reação pisa nos freios e para o carro no acostamento da avenida por onde transitava. A face morena escura e o cabelo crespo desarrumado, bem diferente do seu topete impecável de sempre, não deixavam dúvidas. O carro velho e os sintomas de pobreza e do mal gosto erram inegáveis. O cheiro de suor predominante num carro sem ar condicionado, sinônimo também de trabalho braçal, tudo indicava que a mensagem no papel se tornara real, uma profecia e uma maldição: “Eu sou POBRE!” 55
A imaginação do ex-presidente viajava tentando recuperar o sentido das coisas. Do ponto de vista do homem negro parado ao lado de um carro velho na beira de uma avenida movimentada era como se a vida de ex-presidente, senador, filho do privilégio de gerações, dono de um grande grupo de mídia e de muitas outras riquezas que fazem com que o dinheiro em si perca o sentido fosse apenas um sonho, um delírio de poucos segundos que pareceram uma eternidade. Ele atinge o nível da extrema prostração diante da situação insustentável, senta ao lado do carro velho e começa a chorar desesperadamente. Um carro da polícia para atrás do carro dele. Os dois policiais se aproximam e o abordam. “Cidadão... Não pode parar seu carro aqui.” Desculpe, seu guarda. Já vou sair. Passei mal e não queria provocar um acidente. “Tudo bem, mas vamos logo!” Ele levanta e parte. Nunca fora tratado daquele jeito por ninguém. A sensação de ter se tornado um João Ninguém que foi abordado pela polícia, uma pessoa pobre e sem importância no mundo, sem poder, sem influência, sem nada. “Não quero viver assim!” Ele acelera o carro velho. Aumenta o som brega no rádio. O carro é muito velho e faz muito barulho. Uma parede está visível e é o suficiente. O ex-ex-presidente joga o carro contra a parede e morre, pois não aguentou ser pobre. Seus olhos abrem em novo desespero. Um grito ecoa no ar. Está agora num quarto de hospital. Ao seu redor o ambiente asséptico típico lhe chama atenção. Pensou que tinha sobrevivido ao “acidente de carro”. A batida proposital não foi suficiente para acabar com o sofrimento de ser na verdade um homem pobre, negro, trabalhador braçal que dirige um carro velho. “Sou um senador da república, rico, alto, branco, uma elite oligárquica presente na política brasileira desde o fim do Império. Não quero viver assim!” Ele levanta da cama 56
apressado, nem nota que está na verdade num quarto de luxo de hospital particular. Corre em direção a janela sem perceber que tinha voltado a ser ele mesmo. A ilusão em sua mente permanecera mesmo depois do efeito do psicotrópico passar. Não sabia como conviver com o novo sigo próprio. Esse seu novo eu ilusório era incompatível com o seu Eu anterior de complacência e ignorância quanto ao que é ser trabalhador, brasileiro, gente simples que luta para ter seu carro simples e velho. Para o ex-presidente era uma vida insuportável, mesmo tendo sido um delírio... ele não podia ver a diferença. Saiu voando pela janela do quarto do hospital. O chão veio veloz em sua direção e logo o ex-presidente era uma massa disforme, um boneco ensanguentado esparramado na calçada.
13 de setembro de 2015. As manchetes dos jornais de todo Brasil apresentavam uma situação muito além do esperado por Label. Não era seu plano a morte trágica do senador alagoano, pois sua intenção era promover uma crise de consciência no mesmo e não um episódio psicótico e suicida. Sua consciência agora começa a pesar diante dos fatos. E, além disso, sua busca por verdade e justiçamento não envolvia mortes. No pobre quarto de hotel próximo a rodoviária de Maceió, ele começa a arrumar sua bagagem mínima para talvez percorrer mais um caminho em direção ao próximo “alvo”, mas tem dúvidas em sua mente sobre se deve continuar ou não com sua missão auto imposta. Label não é um homem violento. A violência lhe causa danos físicos quando a assiste. Costuma passar mal com filmes ou 57
reportagens violentas. Apesar de nunca ter sido assaltado, tem o mesmo medo da violência urbana que todo brasileiro. Mas mais que isso, lhe causa repugnância quando as pessoas liberam toda raiva contra um ladrão, como se apenas aquele indivíduo fosse o responsável por todo um contexto de violência. Ele senta triste na cama do quarto após já ter arrumado a mala. A culpa lhe corrói as entranhas. Não estava preparado para aquela reação do senador. Não havia como antecipar aquilo. Do ex-presidente maranhense o efeito não foi de todo inesperado, pois era um senhor idoso cujos limites da culpa o levaram a falência cardíaca. Mas neste caso, o assalto contra a própria vida no que tinha sido descrito como um surto suicida incontrolável não era o plano. Pensa se não errou na dose da substância psicotrópica. “Foi demais?” Imagina se o processo de sugestão via indução realmente funcionou com o bilhete ou será que simplesmente provocou a morte do senador sem ter havido nenhuma redenção do mesmo. No jornal do grupo de mídia do próprio senador era afirmado que ele tinha simplesmente desmaiado durante o transporte após ter dado a entrevista na televisão do mesmo grupo. Como não conseguiram acorda-lo levaram-no para o hospital. Passada algumas horas ainda desacordado no quarto, justamente quando estava desassistido, ele acordou. Gritos foram ouvidos e logo a seguir o barulho da janela quebrando. Não havia testemunhas. Ele foi recolhido da calçada e atendido no próprio hospital, tendo sido dado como morto às 15 horas do dia 12 de setembro de 2015. Surpreendentemente a culpa de Label leva a uma tristeza profunda, mas essa dúvida momentânea também lhe oferece uma certeza: a de que chegou muito longe para interromper em seus objetivos. Afinal, não tinha certeza, mas seu pai sempre esteve certo: pessoas como o falecido senador não admitem a perda do poder, do dinheiro e da influência. E essa tinha 58
sido sua maior punição... Sua reação foi um complemento, uma inesperada fonte de culpa e certeza. Culpa pela morte e certeza de que ele era uma pessoa muito pouco equilibrada. Agora com certeza seria procurado sistematicamente pelas autoridades. Já era previsto diante do cenário deixado em seu apartamento, mas com essas duas mortes, agora haveria o empenho maior das polícias para encontra-lo e assim impedir que algo mais acontecesse com os três presidentes restantes.
Algum dia de 1918 na Rússia pós-revolução. Num gabinete do Kremlin o líder do partido bolchevique e chefe de estado provisório, Vladimir Ulyanov, mais conhecido como Lenin, delibera junto aos seus camaradas os rumos que a Rússia deveria tomar dali para diante. Muito a contragosto aceitava as sugestões e direcionamento tanto de radicais quanto de moderados. Dentre estes participantes estão Josef Stalin e Leon Trotsky. As visões revolucionárias idealistas do socialismo teórico não se encaixavam muito com a realidade vivida do cotidiano burocrático e pragmático da população russa. A tarefa mais difícil seria compactuar as mentalidades conservadoras ainda existentes no país com a proposta de mudança no modelo econômico. Vitoriosos do ponto de vista militar e popular, deveria ser possível demonstrar que o sucesso social e econômico viria com o tempo, até mesmo para os antigos ocupantes do topo da pirâmide social. Mas isso não ocorre... A visão conciliadora de Lenin não tem ressonância nas visões extremas de Trotsky e Stalin, este ainda com toda a truculência e 59
ressentimento de alguém com sérios problemas de autoestima. Ao final daqueles primeiros 20 anos de Rússia socialista vai prevalecer das três visões a mais pobre intelectualmente, mas também a mais eficiente do ponto de vista do funcionamento da máquina do estado. O grande expurgo de 1933 e suas milhares de mortes foi uma barbaridade necessária para essa visão de futuro, mas provou ser no longo prazo uma mácula nas tentativas de se construir um mundo mais justo via socialismo. Como se confiar numa ideologia que prega maior igualdade e justiça, mas executa dissidentes com tamanha impessoalidade? Será que as vozes de oposição não poderiam ser também aliadas para um mundo mais justo? Os fins justificam os meios, afinal?
13 de setembro de 2015. Eu estava lendo novamente a tese de doutorado de Label. Sentia que podia entender melhor o que pretendia meu amigo se conseguisse captar as sutilezas das suas análises históricas e sociais. Os valores da Revolução Francesa estão ainda presentes na mente dos pensadores sociais quando se voltam para analisar os erros e acertos da Revolução Russa. Label Marques é um desses pensadores. Sua visão de continuidade histórica conseguia perceber os avanços e retrocessos para um mundo mais justo para cada vez mais pessoas. Cada avanço era seguido de algum retrocesso e vice-versa. Gosta de acreditar que há um progresso nesse movimento histórico. Era evidente a influência hegeliana no raciocínio do meu amigo. O mundo agora era outro. É do Brasil de 2015 que trata 60
as ações de Label. Ele não é um revolucionário. Não é um homem de ação, é um pensador. Com a notícia da morte do senador alagoano, parecia quase uma vingança pela morte de seu pai nas ruas em protesto em 1992. Não havia evidências de intervenção externa na morte do ex-presidente. Apenas mais um suicídio. Mas eu conseguia aos poucos perceber que tudo aquilo era na verdade uma metodologia de pesquisa. Label é um sociólogo. Ele pesquisa a sociedade usando métodos, epistemologia e reflexão. Se ele estava ou não interferindo naquelas mortes, eu não sei... Mas com certeza ele estava construindo um conhecimento a respeito das ações. Não é um homem de ação, é sua metodologia de pesquisa. “Será que devo partilhar isso com a polícia?”
14 de setembro de 2015. Gabinete do delegado Outro na sede da polícia federal em Brasília. As informações sobre os conhecimentos acumulados a respeito das drogas psicotrópicas e alucinógenas que Label havia acumulado via Internet eram surpreendentes. Muitos dos sítios em russo foram primeiro traduzidos para o inglês e depois para o português. Pesquisar e conhecer sobre tal assunto não era em si uma atividade ilegal, imoral ou criminosa, porém o contexto daquela descoberta era aterrador. Poucas horas antes o senador alagoano e expresidente da república havia se atirado pela janela de um hospital onde tinha sido internado após desfalecer em seu carro. O exame toxicológico revelara que, além das drogas recreativas usuais de um homem em sua posição, havia 61
traços de dois elementos novos, pouco comuns em exames deste tipo com princípios ativos extraídos de plantas que dão em qualquer quintal do Brasil: ulumena e digravolta. Assim como o delegado Nilton, o delegado Outro também via a ligação entre as ações de Label e os acontecimentos recentes com os dois ex-presidentes. De certo modo admirava o esforço intelectual do sociólogo em promover justiçamentos com figuras públicas tão vultuosas, mas esse não era o caminho em uma sociedade democrática de direito estabelecido. O mais difícil era promover a conexão entre os fatos isolados. Não havia provas da presença de Label em nenhum dos acontecimentos. Se ele esteve no Maranhão e em Alagoas não foi com a identidade dele. Para todos os efeitos ele ainda estava desaparecido. Se fosse provado que ele está usando identidade falsa, talvez fosse possível prendê-lo sob acusação de falsidade ideológica. O delegado federal decide pedir alerta para a presença dele em aeroportos, ferrovias, rodoviárias e portos. Para isso enviou a foto mais recente de Label também tirada de seu computador. Os dois próximos alvos mais prováveis estavam ambos na cidade de São Paulo. Seria o momento mais complicado tanto para Label quanto para polícia, pois a cidade superpovoada, apesar de muito vigiada, oferecia uma facilidade de infiltração muito grande para alguém tão inteligente e determinado quanto o sociólogo parecia ser. Tranquilizava o delegado saber que ambos os ex-presidentes tinham seguranças privadas muito boas e que agora estariam ainda mais reforçadas.
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18 de setembro de 2015. Com o alerta a sua procura, Label teve que improvisar na criatividade em sua mobilidade pelo país. As viagens de ônibus no país não têm uma fiscalização muito rigorosa e a identificação do passageiro não é obrigatória. As pensões familiares em que ficou no Maranhão e em Alagoas não precisam seguir a lei de registro dos hóspedes, como têm que fazer os hotéis registrados. Porém agora tinha que viajar mais rápido e mais incógnito. Sobrevoava o interior do estado de São Paulo num avião monomotor totalmente irregular, sem registro e que sacolejava mais que uma britadeira. O piloto cobrara dois mil reais para uma viagem de três mil quilômetros. Mas a sensação de insegurança era muito grande. Tem momentos que o avião parece que vai partir no meio. Barulhos assustadores abalam a vontade de Label continuar seu plano. Sente falta do conforto de sua casa, das suas aulas, mesmo com os alunos sem interesse de faculdade particular. Olha para o piloto... totalmente impassível e indiferente. Se estivesse assistindo uma partida de xadrez não estarei tão calmo, beirando o tédio. “Estamos começando a descer... Olha a pista ali.” - Label olha para onde o piloto apontara e vê uma estradinha de terra cheia de poças de lama. Morrendo de medo, mas com a determinação de quem não tem escolha naquele momento, pensa: “Tudo pela verdade... É tudo pela verdade.” É o consolo da perseverança.
20 de setembro de 2015. A estratégia militar dita que a vantagem competitiva está do lado de quem conhece seus recursos, não subestima o inimigo e sabe a hora certa de agir. 63
E muitas vezes diante de um revés a melhor linha de ação é a mais inesperada possível. Label chegou a capital paulista após dois dias na estrada caminhando, pegando caronas e se alojando em lugares bem simples na beira das estradas. Tudo para evitar qualquer tipo de controle mais rigoroso das rodovias principais. Os noticiários e a Internet apenas informavam que a morte do senador alagoano estava sendo investigada pela polícia federal. No entanto, suas amigas garotas de programa já tinham lhe avisado que o delegado responsável era Protógenes Outro. Devido à notoriedade do mesmo na investigação com o banqueiro, Label sabia o quanto ele era minucioso e previdente. Então sabia que o alerta tinha sido dado para ele, e mesmo sabendo que nada de fato havia contra ele até aquele momento, preferiu chegar à cidade o mais incógnito possível. O plano original tinha que ser adaptado, pois já não seria mais uma figura desconhecida em certos ambientes. Precisava de uma estratégia mais arrojada que promovesse uma evasão mais eficaz de toda aquela atenção da mídia e da polícia. Assim, desta vez se hospedou num hotel normal, não muito caro, mas com a ficha de registro obrigatória no checkin. Aprumou-se no quarto e em poucas horas já estava recuperado da cansativa jornada. Saiu do hotel, fez uma boa refeição e depois andou alguns quarteirões em direção à fundação que leva o nome do ex-presidente sociólogo. Entra no prédio e chega à recepção: - Olá, tenho entrevista marcada com o ex-presidente.
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15 de junho de 2015. A fundação do ex-presidente sociólogo era bastante acessível a pesquisadores de todo mundo. Sendo Label também doutor em sociologia pela Sorbonne, era como se fosse um confrade de letras precisando da ajuda de um acadêmico mais experiente para sua pesquisa sobre os efeitos da conjuntura sociopolítica sobre a cidadania brasileira. Após vários contatos por e-mail e por telefone, foi essa a temática da entrevista marcada com três meses de antecedência na agenda do ex-presidente. A fundação cuidava muito bem do seu acervo pessoal e realizava eventos com estudantes e empresários, então ter um confrade pesquisando algo tão próprio da entidade, apesar da aparente demora na marcação, porém providencial, era muito bem vindo.
20 de setembro de 2015. O horário marcado com o professor doutor Label Marques passou despercebido. Afinal era um tipo de expediente simples e comum do ex-presidente dentro de sua fundação e em seu gabinete. Não era uma situação pública e exposta. Nas agendas do dia dos dois expresidentes visados que estavam nas mãos do delegado Outro, constava naquele dia encontros com grupos de empresários, participação de evento com sindicalistas, entrevistas em rede de televisão da Internet e finalmente atendimento interno na fundação. Não era discriminado quem seria a pessoa atendida naquele dia e naquele horário. Ninguém poderia imaginar uma abordagem tão direta e franca. Às 15 horas o ex-presidente chega à fundação. No almoço após 65
a entrevista para a rede de TV online estava presente justamente o delegado Outro e alguns amigos do ex-presidente. Foi comentado brevemente sobre a morte do senador alagoano, mas o centro das conversas ainda era a situação econômica e política do Brasil, com críticas a presidenta e aos rumos que o país estava tomando. Ninguém parecia estar dando grande importância à situação presente da investigação do delegado federal. 15 horas e 30 minutos. Após quase uma hora de espera de Label, os dois sociólogos são apresentados e apertam as mãos.
14 de setembro de 2015. Gabinete do delegado Outro na polícia federal em Brasília. Após quatro longas horas de leitura sobre substâncias psicoativas, em duas páginas traduzidas está a descrição de uma droga chamada demetrevizovasol extraída do caule de uma planta do Cerrado chamada voulpolena. Essa substância promove no inalante a sensação de relaxamento e confiança. Se deglutida pode levar a um sono profundo. Pelo que pode entender os criadores russos aprenderam a usar a droga para levar prisioneiros interrogados a contar toda sua vida sem inibição, revelando informações secretas sem nem perceber que o faziam. Quando a substância perdia o efeito não havia nenhuma sensação de culpa ou arrependimento, era como se o interrogado tivesse acabado de conversar com o melhor amigo.
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20 de setembro de 2015. Já passava das 16 horas quando a conversa com o ex-presidente começava a ficar interessante. No começo foram amenidades sobre as diferentes experiências na França. Label como estudante bolsista fazendo doutorado e o ex-presidente como exilado da ditadura e professor visitante. Seus status eram bastante diferenciados, mas os elementos em comum da vivência na mesma cidade e mesmo campus universitário davam um tom de camaradagem à conversa. “Você conheceu fulano? Teve aula com cicrano? Seu orientador foi beltrano???? Muito rigoroso, mas justo...” Label estava sendo tratado por Dr. Marques e chamava o expresidente de “presidente”. Assim que sentaram frente a frente, Label acionou o aparelho exalador. Sabia que a substância logo tomaria conta do ambiente e aos poucos faria seu efeito. Precavido, tomou o seu supressor de efeito antes. Não podia arriscar ficar totalmente relaxado durante a entrevista e se perder do seu propósito. Fez uma primeira pergunta teste para ver se o efeito já estava acontecendo. “O senhor é a favor ou contra a reeleição para presidente da república?” - Sou a favor... para mim, mas não para os outros. - Aquela resposta era claramente excessivamente honesta para ser dada a um desconhecido. Label poderia começar a verdadeira entrevista. “O senhor lembra da votação do projeto de lei que criava a reeleição no país?” - Claro, foi meu projeto favorito. “Houve compra de votos para a aprovação do projeto pelos parlamentares?” - Eu não tenho certeza. Acredito que sim. Lembro do Mota e do Luís falarem sobre como poderiam trazer 67
para o nosso lado alguns dos desgarrados da época. - “Então o senhor não aprovou tal ação?” - Não, mas também não impedi... Acho que finalidade maior justificavam os meios. - “O senhor não vê nenhum paralelo disso com o mensalão?” - Bom, é o que tem que ser feito para as coisas andarem... Azar o deles que foram pegos. Nós não fomos e ficou tudo bem, isso é o que importa. Novamente na história da humanidade, os fins justificam os meios é o termo chave para explicar as ações na política, na economia e nos negócios. Label conhece bem a filosofia e a história para saber que o que o ex-presidente falara é a mais pura e simples verdade, mas as pessoas comuns não querem saber disso. No fim ser pego ou não faz mais diferença do que o aspecto moral da ação. Se foi bem sucedida e levou a finalidade maior última, então a ação está justificada... e até mesmo recomendada. “E quanto a violação do painel de votação do congresso? O senhor teve algum conhecimento a respeito daquele processo?” - Tive sim, através do que os meus assessores me anteciparam. O senador baiano e o Arruda tinham a intenção de ajudar na aprovação de leis importantes, mas escolheram o caminho errado. - “E quanto à crise cambial de janeiro de 1999? Será que o senhor sabia o que estava para acontecer? Qual o motivo daquilo ter sido feito de maneira tão abrupta, prejudicando tanta gente?” - Ah, isso foi por razões eleitorais. Toda a equipe econômica já estava preparada para a liberação do câmbio desde 1997. Era a ação correta, pois segurar o câmbio no mercado demanda muitas reservas. Tínhamos o suficiente por causa das privatizações, que deu para segurar o câmbio e assegurar a nossa reeleição. Mas depois não dava mais, as reservas tinham se acabado e por isso tivemos de contrair novos empréstimos. Ele demonstrava ciência e até aprovação diante das ações durante seu governo. Podia ser também um efeito da droga inalada, já que a mesma inibe qualquer traço de preocupação 68
ou reserva. Label estava quase convencido de que o nível de conhecimento do ex-presidente era amplo, porém falta uma intencionalidade maior. No espírito expresso por ele como motivador das ações estava uma consciência de que nada de errado tinha sido de fato feito, apenas moralmente questionável, mas que as finalidades justificavam os meios para atingi-las. “O senhor acha que os governos posteriores ao seu foram piores ou melhores que os seus?” Essa pergunta não estava no roteiro de Label, mas quis testar o nível de honesta percepção do expresidente uma última vez antes de ir para o questionamento final: - Eu acho que eles foram mais felizes em muito mais coisas que eu nos meus governos. Fico até com ciúmes pela sorte que eles tiveram em muitas das coisas que não tivemos a oportunidade de fazer. Na verdade, eu gostaria muito que tivéssemos sido mais aliados que adversários, mas é a natureza da política. “Acredito no senhor... Uma última pergunta: a corrupção que vem sendo exposta agora no governo da presidenta é realmente o ápice da corrupção no país? Ou era a mesma coisa em seu governo e não havia instituições fortes o suficiente para combatêla?” - Eu não sei te dizer, dr. Marques. Com certeza ainda não havia instituições independentes o suficiente para o combate, como não acredito que haja hoje, pois o patrimonialismo ainda é muito grande nas entranhas do poder público. Você deve saber bem que apesar do quanto evoluímos como nação democrática, nossa mentalidade política ainda é a mesma de fins do século 19. O povo tem despertado para exigir seus direitos, mas muito lentamente, e a mídia corporativa ajuda muito na manutenção da desinformação. Isso foi até favorável para nós por um tempo, pois facilitava o trabalho no meu governo de promover a estabilidade da economia e garantir as metas acertadas com o mercado internacional. No entanto isso nos manteve muito dependentes. Acho que a situação agora é mais favorável 69
para um desenvolvimento sustentável e de longo prazo. Resta saber se as dificuldades políticas poderão ser superadas e o interesse público se tornar maior que o interesse dos partidos. “Uma confirmação apenas agora antes de encerrarmos... Para o senhor, então, há um grande processo de continuidade entre os seus governos e os três seguintes?” - Sem dúvida. Todos nós envolvidos na trama do poder sabemos quem são os grandes donos do poder realmente... E estes nunca são candidatos a nada, nunca são eleitos por ninguém e não têm nenhuma obrigação com ninguém mais que eles próprios. - “Sei... tenho um mural com todos eles na minha sala!” - Os governos vêm e vão. As coisas melhoram um pouco mais a cada geração, depois pioram de novo. Dois passos para frente e um para trás. Faz parte do jogo político a troca de acusações. Quem não aguenta deve procurar outra coisa para fazer. Você deve conhecer a Teoria das Elites políticas de Pareto e Mosca... - “Sim, senhor.” - Então sabe como as coisas funcionam. As respostas dadas pelo ex-presidente eram suficientes para Label ter certeza absoluta que boa parte do discurso dele era verdadeiro, mas ele tinha ciência de que eram palavras sem base factual para muitos argumentos. Novamente os fins justificavam os meios. O presidente sociólogo evidentemente acreditava que tinha feito o que foi necessário para que o país pudesse ter estabilidade econômica, mas foi conivente com muitas coisas, comprometeu-se em seus ideais intelectuais de juventude, admitiu fazer escolhas ou deixar escolhas acontecerem por razões puramente eleitorais... E quem não faz isso no país? A moral podia ser questionável, como quase tudo que se refere a política, desde muito antes de Maquiavel, porém a prática era irrepreensível, mesmo quando errada nas metas finais. Só se sabe que errou depois do erro cometido. Que justiçamento poderia ser adequado para essa figura tão simpática que o atendera tão 70
bem, mesmo antes do efeito da droga atuar em sua vontade. Seu sorriso no rosto era reconfortante, quase podia ser ver no futuro atuando com os mesmos dilemas... caso sobrevivesse àquela empreitada. Não poderia ser algo muito exagerado. Label não queria arriscar outra morte acidental, e afinal era outro idoso que talvez não resistisse a pressão de um ato público. Pensou por um instante e olhou para o ex-presidente com um sorriso... “Senhor presidente... Será que o senhor já praticou o naturismo?” E ele continuou com o mesmo sorriso, efeito da substância ainda em sua mente. Imediatamente começou a desabotoar a camisa. “Aqui não, presidente. Aí embaixo na Avenida Paulista.” - É claro. Foi um prazer conversar com você, Dr. Marques. - “O prazer foi meu, senhor presidente.” Eles se cumprimentam novamente. Saem do gabinete. Label decide descer num outro elevador para não chamar atenção para si. Despedem-se e logo mais ele está saindo do prédio e indo em direção ao hotel. Pouco depois de sua saída, o ex-presidente aparece na rua e calmamente se despe e sai andando pelado pela Avenida Paulista. O resto será só notícia de jornal e muitas brincadeiras na Internet.
21 de setembro de 2015. Reunidos no gabinete do ex-presidente, o delegado Outro e alguns assessores discutem como foi possível ter acontecido o que aconteceu. Muitos gritos e bravejo da humilhação sofrida pelo ex-presidente. “Como um terrorista desse entra aqui, passa mais de uma hora com o presidente e ninguém faz nada? Deixam ele sair andando normalmente enquanto sua excelência age em completo devaneio sob 71
o efeito desse... desse...” – Demetrevizovasol.” Informa Protógenes. “Essa droga aí???”. O assessor do ex-presidente demonstrava uma raiva intensa pela falha de segurança e pelo ocorrido, enquanto ele mesmo estava pensativo, respondia laconicamente as perguntas dos assessores e do delegado. Para os presentes, a situação de Label agora estava cada vez pior, pois havia agora testemunhas, filmagens de câmeras de segurança, e até o registro assinado de sua visita ali na fundação. No entanto, sabia-se que eram acusações muito frágeis, pois não houve violência ou coação visível. O próprio ex-presidente tinha na memória apenas uma conversa amigável, seu despertar de fato se deu a cerca de 100 metros da porta da fundação, quando se deu conta dos olhares e dos celulares com câmera direcionados para ele, logo retornando rápido para o interior do prédio e acolhido por seguranças. Apesar da vergonha, algo em sua consciência havia estalado, e após longo período de reflexão ele diz: “Não vamos prestar queixa nenhuma contra o senhor Label Marques!... (olhares surpresos o fitam)... Delegado, obrigado por sua presteza em vir aqui, mas pode seguir com sua investigação. Acredito que nada mais ele fará contra nós. Seu alvo agora é outro!” O delegado Outro aceitou o termo do ex-presidente sociólogo e partiu para outra fase de sua investigação. Pouco antes já tinha pedido o rastreio de sempre em aeroportos, rodoviárias e hotéis. Então esperava ter um pouco mais de sorte dessa vez.
20 de setembro de 2015. De volta ao seu hotel, na recepção já estava aguardando uma bela mulher perto dos 30 anos. Seu nome 72
de guerra era Luana. Era uma das dezenas garotas de programa que Label selecionou para ajudar em sua empreitada. Ele a vê sem surpresa. Ela, no entanto, admira sua aparência bem mais elegante que o normal, pois tinha se preparado para a entrevista com o ex-presidente sociólogo. “Olá, bem no horário...” – Você sabe que sou pontual, amor. – “Vamos subir para o quarto.” – Oba! – “Não é para isso sua boba...” Os dois pegam o elevador rindo. Das amizades com as garotas de programa, essa parecia a mais confiável... Mas ainda assim era uma relação comercial. No quarto, Label pergunta a Luana se ela trouxe o que ele havia pedido. Ela responde afirmativamente. Tira um pacote da bolsa e entrega a ele com cuidado. Logo depois ela começa a se despir provocativamente. Ele olha admirado, pois tinha deixado claro para ela que o serviço que pagara tinha sido apenas de entrega, aproveitando que ela atendia frequentemente clientes também na capital paulista. Sendo uma mulher bonita e elegante, quase nunca agentes de aeroporto desconfiam dela para transportes ilegais... pelo menos dentro do Brasil. “Luana, escuta eu...” – É de graça, amor, aproveita... e depois, se alguém me perguntar o que vim fazer aqui, não precisarei mentir.” Ela tinha razão. Eles transam. Menos de uma hora depois Luana está se arrumando para ir embora. Label está deitado na cama assistindo a bela prostituta e imaginando porque foi tão simples conseguir aquelas aliadas para uma trama tão complicada. Entender os perfis psicológicos de cada uma foi um caminho, mas fez também muita diferença entender os elementos sociais, culturais e consumistas que motivam aquelas jovens. Luana comenta que Renata e Jéssica estavam para assinar contrato com uma revista masculina: “as garotas que mataram o velho” era o tema do ensaio segundo as redes sociais digitais. Evidentemente ninguém teria coragem de usar isso oficialmente, mas o que fica é o que o povo lembra. 73
Para a maioria das pessoas, o velho ex-presidente maranhense morreu do coração por ter visto de perto as beldades... Não é assim que as coisas se vendem nos dias de hoje? Label agradece o empenho de Luana em realizar a tarefa para a qual ele a havia de fato contratado: transportar uma substância exótica entre duas capitais brasileiras de avião. E agradece também pela amizade profissional que ela lhe proporcionara. Era uma intimidade com as devidas distâncias mantidas que agradava muito uma pessoa como Label, que sempre teve dificuldades de se relacionar com as pessoas, especialmente depois das perdas do pai e o distanciamento da esposa e do filho. Definitivamente não tinha talento para uma vida normal, pois a normalidade exige certezas e decisões, e Label só conseguira conquistar a habilidade de tomar decisões justamente ao longo desta missão auto imposta de descobrir a verdade e promover o justiçamento consequente desta descoberta. Luana parte. Label olha então fixamente para o pacote que ela o havia entregue. Esse caminho traçado como evasão por conta das mudanças em seus planos era muito perigoso, mas precisa ser feito se queria chegar até final. Passa um tempo e do corredor do hotel se ouve uma descarga de banheiro, apenas isso e mais nada. Agora é só silêncio vindo do quarto de Label.
21 de setembro de 2015. O silêncio é rompido pela porta do quarto de hotel sendo arrombada. O delegado Outro, seguido de mais três agentes da Polícia Federal, entra no quarto em busca de seu suspeito. O mesmo está quase intocado, mas há uma mala semi-desfeita ao lado da cama. Debaixo dos lençóis 74
há alguém deitado e imóvel. O policial fala: “Dr. Marques, por favor se levante e mostre as mãos!” Continua imóvel. Um dos agentes vai retirar o lençol que o cobre. Os outros ficam a espera de prontidão. O sociólogo era considerado perigoso apesar não ter cometido, de fato, nenhum ato violento. O lençol é arrancado sem resistência. O que é revelado é um Label Marques inconsciente, usando pijamas e segurando um copo vazio. O agente se aproxima e sente a pulsação dele. Sem pulso. Naquele momento todos os policiais baixam suas armas e o delegado Outro chama uma ambulância pelo rádio. Anda até o suspeito deitado na cama e olha com perplexidade. Pensa ao olhar no fundo de seus olhos entreabertos e aparentemente sem vida: “Quem é você, afinal?” 21 de setembro de 2015, no horário dos jornais noturnos. A mídia estava adorando toda aquela trama de conspiração, prostitutas e ex-presidentes mortos. O ex-presidente que ficou pelado na avenida paulista era preservado, é claro, pois ainda estava vivo e é muito influente. Eu assistia as notícias incrédulo do que afirmavam com tanta certeza: “o terrorista Label Marques foi encontrado morto num quarto de hotel em São Paulo. Os sinais apontam para suicídio. Testemunhas contam que a última pessoa que o viu vivo foi uma garota de programa conhecida pelo nome de Luana. Em depoimento na polícia ela diz que eles tiveram relações sexuais e depois ela foi embora, o que foi corroborado pela recepção do hotel. A causa da morte ainda é um mistério para a polícia. A família foi contatada para autorizar uma autópsia, mas ainda não há resposta.” Tudo aquilo era uma loucura. Meu amigo nunca cometeria suicídio, ainda mais no meio de uma “pesquisa de campo”. Como aprendera a fazer com o próprio Label, devo duvidar sistematicamente de tudo que diz a mídia corporativa.
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22 de setembro de 2015. Vladimir dera autorização para a autópsia. Era o seu único parente sanguíneo vivo. Se fosse por Rose podia até jogar o corpo de Label numa vala comum e jogar cal em cima para não contaminar a terra com tanta incompetência. O documento assinado chegou no IML paulista às 17 horas. A equipe de legistas da polícia federal já estava à espera do delegado Outro para realizar o procedimento. Chegando na sala refrigerada, resgataram a gaveta onde estaria o corpo de Label. Ao abrirem o saco preto, lá estava um senhor de quarenta e poucos anos morto e com aparência decadente. Estava sem dúvida estranho, mas o trabalho foi feito. Autópsia realizada. O professor doutor Label Marques tinha morrido de uma ingestão letal de divonprozol. Não deixou nada a mais, além de um monte de dúvidas sobre sua missão inacabada.
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21 de setembro de 2015. Madrugada no IML de São Paulo. O silêncio frio e absoluto da sala refrigerada é gradativamente rompido pelo movimento em uma das gavetas mortuárias. Uma respiração que começara leve fica de repente ofegante. Com alguma dificuldade Label consegue abrir o zíper do saco e deslocar a gaveta o suficiente para abri-la. Com a pele meio azulada do frio e também do efeito da droga que tomara para parecer que estava morto, ele se levanta e começa a mover as articulações e músculos para recuperar a mobilidade e gerar calor. O pijama que colocara tinha sido estratégico para não ter uma hipotermia enquanto estivesse lá dentro da gaveta gelada, mas mesmo assim sentia muito frio. Rapidamente começou a vasculhar os seus vizinhos de necrotério em busca de alguém similar a ele em tamanho peso e aparência. A escolha foi surpreendentemente fácil. Havia o corpo de um homem parecido com ele, só um pouco mais velho, duas gavetas adiante. Seja qual fosse a causa de sua morte, não tinha nenhuma marca, então, contando com o desleixo dos profissionais técnicos, legistas e policiais, sabia que passaria facilmente por sendo ele. Trocou de roupa com o defunto. Devolveu o seu corpo substituto 77
a gaveta correta e saiu silenciosamente da sala refrigerada. Não foi difícil encontrar um caminho despercebido num prédio tão grande e antigo por onde pode evadir e ter garantido algum tempo de tranquilidade para executar a próxima fase do plano. Satisfeito consigo próprio ao alcançar a rua livre para caminhar, Label ria discretamente já imaginando as manchetes dos jornais informando sobre sua morte. Sentia apenas um pouco de pena por Vladimir e talvez por mim, mesmo sabendo que provavelmente não iria acreditar na notícia... Mas seu filho, que praticamente já não tinha pai há tanto tempo, ficaria realmente sem um para sempre. “Quanto egoísmo, Label...”.
23 de setembro de 2015. A pasta do inquérito policial nº 1800.5678 era fechada na mesa do delegado Protógenes Outro. Seria imediatamente arquivada com o fim do caso. A morte oficial de Label Marques encerrava a necessidade de se estudar mais a fundo as causas e consequências de todo aquele estranho esforço para expor, explorar e exibir figuras públicas, e até matar (talvez) acidentalmente duas delas. Algo ainda incomodava o delegado, do mesmo modo que também ainda incomodava o doutor Nilton no primeiro nível da investigação... Local! Label focou seu plano em cinco alvos: os cinco presidentes ainda vivos, a atual e os quatro anteriores. No entanto toda pesquisa dele encontrada em seu apartamento e em seu computador apontava para uma responsabilidade menor dos presidentes da república e muito mais séria e influente daquelas figuras de bastidores que conseguem manipular a informação, as leis, o poder e principalmente o dinheiro no país 78
e no mundo. Então por que os alvos serem apenas os presidentes. Deveria ser algo de propósito mais simbólico que de fato. Não era como decifrar a mente de um criminoso comum. Era como um supervilão de quadrinhos, daqueles muito bem elaborados. Pois era um doutor em sociologia com uma carreira medíocre e uma vida pessoal sofrível, mas, no entanto demonstrava um brilhantismo e habilidades de antecipação só vistas em personagens da ficção tais como o professor Moriarty, o arquirrival de Sherlock Holmes. A morte de Label se tornava um enigma tão indecifrável quanto sua vida e suas últimas ações. Se ele tivesse se entregado para as autoridades, facilmente sairia livre das acusações de conspiração e terrorismo, pois não havia provas de tais atos, e inclusive lhe daria exposição suficiente para ser publicado e referenciado tanto em meios acadêmicos quanto leigos. Tinha material de pesquisa suficiente para mais uns dois doutorados em história, em sociologia ou em ciência política. Por que se matar, afinal? “Deixa pra lá... Melhor sair pra tomar uma e esquecer essa maluquice toda!” Pensa o delegado ao deixar sua sala e guardar o arquivo.
31 de dezembro de 1958. A ilha de Cuba e sua capital Havana eram um caos. Todos os turistas americanos e os representantes das grandes corporações que lá estavam a festejar o ano novo buscavam uma rota de fuga. Para os seguidores de Batista, tudo já estava arranjado, pois desde muito antes já se sabia que a guerrilha de Sierra Maestra estava vitoriosa a se aproximar de Havana, mas para o povo e principalmente 79
para os estrangeiros era vendida a ideia de que tudo estava sob controle. A revolução cubana liderada por Fidel Castro não tinha a ideologia comunista no seu seio, mas era com certeza uma luta por mais liberdade, justiça e igualdade... nada mais similar que os dizeres da revolução francesa, apenas com a diferença de cores e ritmos da ilha caribenha. O que se queria de fato era maior independência do capital estrangeiro, fim das ingerências estadunidense que persistiam no país desde sua independência da Espanha no fim do século 19, no entanto por que tanto medo dos revolucionários? Seriam eles tão diferentes dos revolucionários da Independência Americana do final do século 18? De fato, a impressão que se tem quando se consegue se libertar de todo discurso ideológico promovido pela mídia ao longo desses 50 anos de Cuba comunista é que se não fosse a apressada e belicosa reação americana ao novo regime de Fidel, talvez o país caribenho não tivesse que ter apelado para o apoio da União Soviética, e talvez não tivesse se tornado uma república comunista de partido único. Todo fervor da Guerra Fria parece ter empurrado um país que estava em busca de sua identidade para o centro de uma disputa ideológica que na verdade nunca fez muito sentido. As conquistas sociais da ilha desde então foram fabulosas, mas a um custo material e humano muito alto. Talvez mitigados os extremos, a vida humana poderia ser mais puramente protegida e as diferentes vozes e opiniões seriam apenas mais um tom de discussão, mas nunca de conflito. Mas isso é um sonho de alguns poucos que vivem a margem, na inocência de uma vida em paz, de felicidade plena e fraternidade. Deve ser por isso que existem as religiões, para acalentar os corações aprisionados na ilusão de que o ser humano é capaz de viver em paz. “Não há paz enquanto houver vida em meu corpo. É o 80
desequilíbrio da dúvida que me parte ao meio!” – Eu sou Label Marques. Antes me definia pela minha formação e titulação acadêmica: professor doutor em sociologia pela Sorbonne. Isso parecia muito importante. Mas agora, querem me definir como terrorista, porém isso não se enquadra ao que estou fazendo. Minha identidade desapareceu no momento em que fui dado como morto. Não poderia voltar ao que era mesmo se quisesse. Sinto-me mais como um revolucionário. Não ao estilo de Fidel, Lênin ou Robespierre, pois eles eram líderes carismáticos com muitos seguidores. Eu apenas desenvolvi uma metodologia diferenciada para atingir um objetivo científico. Nesse caminho tive de manipular os informantes (os expresidentes) e usar pessoas com interesses adversos aos meus. Infelizmente duas mortes aconteceram por conta de minhas ações. Isso eu não posso mudar e admito que senti um certo poder ao imaginar que eles morreram por causa de algo que fiz. O caminho a seguir agora dependia de paciência e um pouco de sorte. Esse registro servirá para que as pessoas possam julgar por si próprias as minhas ações, mas não tenho ilusões sobre o nível de compreensão. Se a simples atenção a história lhes escapa na hora de protestar contra qualquer coisa que eles aprendem da mídia corporativa como sendo verdade, imagina o que irá ocorrer com um texto científico pouco acessível que tenta descobrir a verdade sobre a atuação promíscua entre o poder público, o capital privado nacional e internacional e a mídia corporativa. A corrupção como traço cultural do brasileiro já é um tema batido desde Roberto DaMatta, então tinha que ser uma busca por uma verdade diferente... com um método diferente... e infelizmente com um grande sacrifício pessoal. Hora de escrever.
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17 de novembro de 2015. A festa era em homenagem ao expresidente operário. Esse seria o mais difícil dos cinco de abordar. Não era tanto pela presença de muitos seguranças. Isso todos eles tinham e têm. Era pelo fato de sua figura e personalidade estarem sempre atraindo e cativando pessoas. Seja por amor ou por ódio, era uma figura carismática no sentido mais weberiano possível: sua personalidade legitima a obediência. Seu histórico era conhecido. Até filme fizeram sobre sua vida de retirante nordestino que venceu na cidade grande: líder sindical, fundador do segundo maior partido do país, deputado, quatro vezes candidato a presidente e finalmente presidente da república por dois mandatos. Label Marques evidentemente não tinha convite para a festa. Afinal, pessoas mortas não são convidadas para eventos sociais. Mas José Garcia Vicco era um ordinário benemérito do partido nos últimos dois meses e estava na lista de convidados. Com pequenas contribuições online para o partido, acabou tendo direito de participar de alguns eventos mais populares. Foi um gasto pequeno, especialmente porque a única coisa que precisou foi de um CPF de um homem inválido e sozinho abandonado num hospital psiquiátrico e que não conseguia nem falar. Alguém que Label passou a visitar sistematicamente como forma de atividade filantrópica, alguém para quem levava livros, roupas e comida, mas que não conseguia nem expressar agradecimento. Não precisava. O favor era retribuído pela identidade falsa que Label pode assumir nestes momentos cruciais de sua missão. “Sr. José Garcia Vicco... seja bem-vindo, companheiro. Aqui 82
está seu crachá.” O segurança de controle da porta deixou Label entrar sem maiores dificuldades. Os sotaques paulistanos agora fluíam facilmente de Label, que praticou durante dois meses convivendo com pessoas simples da cidade. Mas ainda era estranho ao seu ouvido quase neutro de acadêmico trilíngue. O salão estava cheio, mas não lotado. Apesar de todo envolvimento da militância. O partido não era o mesmo de 20 anos atrás, quando, de fora do poder central do país representava a voz dos trabalhadores e oprimidos. Agora representa forças políticas importantes e influentes. Ainda tem um pouco daquela voz popular advinda dos sindicatos, mas o funcionamento já não o mesmo e falta um pouco daquela espontaneidade dos tempos de esquerda mais radical. Além disso, nos dias de hoje, carregar uma estrela vermelha no peito tem toda uma nova carga simbólica muito advinda da guerra ideológica que ainda vinha sendo travada na mídia e nas redes sociais. As acusações de corrupção, o desgaste de imagem decorrentes da própria presença prolongada no poder e dos ataques da mídia e enfim dos próprios tropeços do partido provaram ser uma grande temeridade ser abertamente seu seguidor. A paranoia era tanta que teve até o caso de um jovem que foi hostilizado nas ruas de São Paulo por estar vestido com uma camisa vermelha com uma estrela branca pintada, porém na verdade o jovem estava com a camisa da seleção turquesa de futebol, cujas cores são o vermelho e o branco numa estrela e numa meia lua. Mas naquele salão cheio, a cor predominante ainda era o vermelho e muitas estrelas flutuavam por toda parte. Estariam aquelas pessoas certas ao exibir aquela devoção ou eram inocentes por se manterem fiéis a uma organização tão negativamente exposta nos últimos 12 anos? Essa era uma das perguntas que Label gostaria de responder em sua pesquisa de campo. Sua estratégia estava traçada em sua mente. Dez 83
a vinte movimentos de xadrez a frente e tinha a vantagem de não estar mais sendo procurado. Dois meses depois ninguém mais lembrava como era sua cara. A mídia já tinha novas faces para expor. Parecia simplesmente passear pelo salão, tomava refrigerante tranquilamente. Ninguém poderia suspeitar de nada. Já passava das dez da noite quando o ex-presidente operário chegou no evento. Todos os olhares se voltaram para uma das portas. Todos diziam e passavam adiante a mensagem: “ele chegou”, “ele já está lá em cima”, “ele vai fazer um discurso”. Usava roupa branca e leve, afinal era um evento para afiliados do partido e não para empresários. Quem usava terno eram os seguranças e alguns poucos políticos. A música ainda continuou tocando durante um tempo, mas logo foi encerrada para dar lugar aos discursos elogiosos em homenagem ao expresidente. Os elogios exagerados e as palavras de ordem eram desconcertantes, pois muitas críticas indiretas eram feitas a atual presidenta, que era do mesmo partido. Era esperança de todos era poder contar com a popularidade do operário presidente para ultrapassar a crise atual e assim se conservar no poder por mais um tempo. É assim que funciona a política. Depois de uns oito discursos não muito longos, mas nem por isso menos enfadonhos, pois falavam basicamente a mesma coisa: “o Brasil precisa do senhor”, “o senhor foi o maior presidente que o Brasil já teve”,”foi uma honra trabalhar com o senhor”...blá, blá, blá.... ele finalmente se dirigiu aos microfones e começou a falar com sua voz grossa peculiar, o tom coloquial e amigável que encantava a muitos e levava outros ao desespero: “Companheiros, é uma alegria muito grande estar aqui hoje...” E assim foram 35 minutos de discurso. Perto das 11 horas da noite Label conseguiu se aproximar do ex-presidente. Estava sentado a mesa acompanhado de alguns amigos e dois seguranças rondavam discretamente a 84
região. Com a mão no bolso direito Label ativa um pequeno controle remoto que promove alguns efeitos em alguns pontos do salão, apenas sons para distrair as pessoas, mas para seguranças treinados um ótimo chamariz. Vê-se os dois seguranças próximos captarem as conversas dos outros e se entreolham... os dois terminam por se afastar com hesitação, pois deixariam o ex-presidente desprotegido, mas como estava cercado de amigos, eles atenderam ao chamado dos colegas. O ex-presidente operário é muito conhecido por seu gosto por bebida alcoólica, porém notava-se uma certa precaução dele naquele evento. Talvez o avanço de sua idade (67), talvez a atual visibilidade negativa na mídia que estava tendo naquele momento, talvez ainda cuidado com a doença que tinha sofrido algum tempo antes... O importante é que ele estava parecendo bastante sóbrio. Seus amigos, no entanto, eram alvos fáceis. Label se aproximou um pouco mais, todos davam risadas de várias coisas que um e outro dizia. Finalmente a cadeira ao lado do ex-presidente ficou vaga. O amigo saiu cambaleante em direção ao banheiro. “Presidente, o senhor permite que eu sente um pouco ao seu lado?” – Claro, companheiro! – “É uma honra conhecê-lo em pessoa...” Após amaciar o ego do político, Label lançou a isca: “Será que todos esses companheiros são realmente fieis ao senhor? Ou são apenas oportunistas?” – E sou lá pastor de igreja para ter fiéis? (rindo). – “Certo... O senhor deve conhecer o clássico de Shakespeare, Henrique V.” – Vi o filme. – “Pois bem, o senhor deve lembrar que o rei fez questão de andar entre suas fileiras sem ser reconhecido para saber realmente qual era o espírito dos soldados... É uma mensagem clara aos políticos de que devem ouvir suas bases, mas sem a barreira do poder que senhor representa.” – Mas isso não é possível hoje em dia, todos conhecem minha cara. – Label sorriu e fez uma proposta 85
irrecusável para o ex-presidente operário: andar pelas bases ouvindo das pessoas apenas a verdade que eles têm em mente. O semblante do ex-presidente ficou sério e reflexivo, mas era tentador realizar aquele exercício. Mesmo não entendendo direito o mecanismo que Label usaria para promover aquele efeito, queria saber o que aquele admirador tinha a oferecer. Como Label havia previsto, ninguém mais se lembrava dele. Apresentou-se como sendo a si próprio e não houve reação. Imaginava também que o expresidente sociólogo não quis fazer alarde de sua visita justamente para que o próximo também pudesse sofrer a experiência que sofreu. Mas essa seria bem diferente, é claro. Levantaram-se da mesa Label e o ex-presidente operário. Os seus amigos estavam ainda alegres e alcoolizados, por isso não se importaram muito com a saída. Os seguranças ainda não tinham voltado. Então dali mesmo começou. Lançou o primeiro jato da substância nas cinco primeiras pessoas que vieram falar-lhe. “Pergunte o que quiser, presidente.” Cochichou no seu ouvido. “O que está achando da festa?” – Está meio pobre, presidente. “Você está traindo sua esposa?” – Com certeza, presidente. – Essas foram perguntas teste. Ele começou a achar engraçado, mas a situação ficaria mais séria. Continuava caminhando pelo salão abordando um e outro, caras mais ou menos conhecidas, mas todos partidários e colaboradores dos seus governos e do atual. “Posso contar com seu apoio?” – Depende do que vou levar em troca. “O que você achou dos meus dois governos?” – O senhor teve sorte, presidente. Se o povão não fosse tão besta nunca teriam te elegido de novo. – Essa já deixou ele um pouco aborrecido. “Você... tirou algum proveito pessoal durante seu tempo em meu governo?” – Sem dúvida, presidente. Minha consultoria aumentou faturamento em mais de 1000%.” – Já essa 86
informação lhe deixou um pouco triste, mas não foi surpresa. “Você acha que nossos governos têm sido bons para o país?” – Para o país eu não sei, presidente, mas para nós com certeza foi... Lembra como eram nossas festas nos anos 80, cheia daqueles radicais de esquerda que só queriam falar de política, só tinha cerveja quente e pouca comida. “E os nossos companheiros presos no processo do Mensalão... você acha que são realmente culpados do que foram acusados?” – Ora, presidente... Comigo não precisa dessa história de que não sabia. Todos nós sabíamos e vamos continuar sabendo. É pena que só eles foram condenados. O partido ficou marcado. Eles fizeram o que sempre se fez... Que outro jeito num país como o nosso cheio de corruptos para todo lado? – O ex-presidente quis rebater a fala do colega, mas Label o advertiu que não era o momento de debate, pois as pessoas só continuariam a falar a verdade que estava em sua mente, sem inibições. Não estavam argumentando, apenas falando o que realmente achavam. Seguiu adiante. Parou um passante aleatório desconhecido. “E você, companheiro, acredita que eu governei para melhorar a vida dos mais pobres?” – Bom, presidente, sem dúvida muitas pessoas passaram a comprar mais coisas. O aumento da renda mínima e o maior acesso ao crédito no período proporcionaram isso... Mas de fato o senhor, como todo presidente da república governou para nós, seus partidários, e quem mais enriqueceu foram os que já eram ricos: bancos, empreiteiras e multinacionais. Seu discurso partidário é de esquerda, mas não agimos como tal há muito tempo. – Aquela tinha sido a resposta gota d’agua para o ex-presidente operário. Talvez ninguém tenha sido tão direto com ele para descrever com tamanha transparência o que acontece quando se está no poder, especialmente no Brasil. Mas essas distorções são traços da própria democracia liberal representativa. 87
“Senhor presidente. Não precisa ficar nervoso. Talvez no fundo sempre soube que era assim que as coisas caminham no Brasil. Não dá para consertar 500 anos de história de interesses egoístas em apenas alguns mandatos presidenciais.” – Tem razão, companheiro... mas fico triste ao ouvir tamanha falta de fé dos meus companheiros de partido, alguns de décadas, admitindo que se deram bem durante meus governos. – “Talvez o senhor já tenha ouvido falar da teoria do Big Boss dentro da Teoria das Elites Políticas...” – Não sei, acho que sim. – “Pois é, o senhor é o big boss do seu partido, mesmo que não esteja à frente do mesmo. As pessoas contam com sua popularidade e capilaridade política para ascender ao poder e ficar lá o máximo possível. Infelizmente, querendo ou não, o senhor também ajuda a enganar o povo, fazendo-os acreditar que todos os envolvidos estão trabalhando em favor deles... quando de fato estão trabalhando em favor de si próprios... Como pode verificar pessoalmente agora.” – Mas não tem outro jeito de fazer política nesse mundo, companheiro. – “Talvez não, mas se tem algo que valoriza muito a inteligência das pessoas é ouvir a verdade, mesmo que seja desagradável, e também o sacrifício diante das situações difíceis. Não posso influenciar suas ações daqui para diante... mas se fosse eu... procuraria outro caminho.” O ex-presidente operário refletiu por um momento olhando profundamente para os olhos de Label. Finalmente fez a pergunta que deveria ter feito desde começo, mas que Label sabia que ele só faria no final. “Quem é você, afinal, companheiro?” – Não preciso nem estar sob efeito da substância para te contar, presidente... Meu nome é Label Marques. Sou sociólogo e estou numa missão de descobrir a verdade sobre todos os esquemas de corrupção do Brasil nos últimos trinta anos. Fui o responsável pelas atividades que, infelizmente, levaram à morte o ex-presidente maranhense e o 88
ex-presidente alagoano. Fui também responsável pelo episódio de nudez na avenida paulista do ex-presidente sociólogo (apesar da surpresa, pode-se ver um sorriso maroto nos lábios do ex-presidente operário). E estou oficialmente morto. Ele abriu os olhos um pouco mais. Olhou em volta procurando os seguranças. “Eles estão ocupados agora, presidente. Só devem aparecer de volta nos próximos dez minutos. Daqui até lá eu já terei indo embora... e não se preocupe, não pretendo lhe fazer nenhum mal.” Ainda incrédulo, o político deu alguns passos para trás. Esbarrou na mesa de onde haviam saído alguns momentos antes. Os amigos não estavam mais lá. Label se aproximou novamente e disse: “Foram ao banheiro ou para o salão... o senhor sabe como são essas festas.” - O que você quer de mim, sr. Label? - “Apenas a verdade, sr. Presidente.” Sentaram-se de volta à mesa e com olhar penetrante, confiando ainda no efeito da substância que ainda exalava, Label perguntou: “O que afinal o senhor sabia a respeito de todos esses esquemas de corrupção que o seu partido está sendo acusado agora e no passado?” E com o tom amigável típico do efeito da droga no ar e também da própria personalidade do ex-presidente, ele contou tudo. Nove minutos depois, Label estava saindo do local da festa. Tinha as respostas que queria, todas: as que queria, as que não queria, as que nem imaginava e também algumas que lhe davam esperanças. As facetas dos ex-presidentes se assemelhavam mais do se diferenciavam. Pelo menos dos dois com quem pode conversar sem maiores inibições. Sabia agora uma boa parte da verdade. Estava convencido de que todos os ex-presidentes poderiam ter feito mais pelo país se tivessem tido a coragem de enfrentar os verdadeiros donos do poder, as custas inclusive da perda nas contribuições de campanha e sofrendo os ataques constantes da mídia corporativa. Mas como se diz no ditado 89
popular: “não se faz uma omelete sem quebrar alguns ovos”. Quando os seguranças chegaram de volta na mesa do expresidente, ele estava sentado calmo e sério, pensativo. Os amigos também começaram a retornar de seus passeios pelo banheiro e pelo salão. Estranharam a expressão um tanto vazia do ex-presidente, quase sempre sorridente. Label já virava a esquina da rua, andando em direção ao seu local de descanso atual: um pequeno quarto e sala alugado em nome de uma de suas amigas garotas de programa. E de qualquer jeito já tinha assumido a identidade falsa de José Garcia Vicco. Ao final da conversa com o ex-presidente operário tinha lhe feito a seguinte sugestão e que com o efeito da substância havia a possibilidade de ele realmente a considerar fazer, mas era de longo prazo, diferente da nudez do ex-presidente sociólogo, que acontecera imediatamente: “deixe a política, não se candidate a mais nada, saia da vida pública, mantenha uma vida frugal e honre a memória de sua popularidade neste país.” Label tinha poucas esperanças dessa sugestão realmente ocorrer, mas quem sabe com a ideia implantada, ele podia seriamente considerar mesmo tendo passado o efeito da droga. Chegando no seu modesto lar provisório, Label ligou o computador portátil onde estava escrevendo os resultados de sua pesquisa e imediatamente começou a escrever sobre tudo que lhe fora revelado pelo ex-presidente operário. Já tinha em mente o plano traçado para a fase final de sua missão. Agora precisava ficar atento para os efeitos da conversa que teve na festa, se voltaria a ser procurado e se devia tomar novas precauções. Ainda tinha um tempo antes de achar o momento ideal de abordar a sua última fonte de informações sobre a verdade. A agenda dela estava cheia até o final do ano. A presidenta estava agora mais ocupada do que nunca, pois era uma luta por dia para conseguir governar com tantos adversários trabalhando contra 90
tanto na oposição quanto dentro de seu partido e ainda mais fora do Estado, nas corporações estrangeiras e principalmente na mídia, que continuava sem tréguas a acusar ela e seu partido de corrupção, de incompetência e de imobilidade. A situação econômica estagnada não ajudava em nada na sua popularidade. As classes médias continuavam a destilar ódio e intolerância. O que era até um bom sinal, já que a mesma classe média tinha crescido nos últimos anos, era um dado sociológico de que pelo menos estavam mais críticos e preocupados, mas pena que com coisas tão fugazes como perda de poder de compra e contas mais altas. Certamente eram pessoas que não lembravam como eram as coisas nas décadas de 1980 e 1990. Jovens apressados da geração Y? Ex-ricos ressentidos? Inocentes úteis dos interesses do capital? Quem sabe... os discursos são muitos e são contraditórios. Mas uma coisa Label tinha certeza, agora podia fazer afirmações e tirar conclusões sobre a verdade que procurava. E agora só havia um caminho para seguir: Brasília.
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20 de novembro de 2015. Após três dias de produção intensa e acompanhamento sistemático dos noticiários e mídias sociais, Label se sentiu seguro novamente para sair na rua. Foi até a agência dos correios mais próxima e despachou um volume de 330 páginas, além de mídias digitais do mesmo documento. O gasto foi razoável, mas era um cuidado que precisa tomar para garantir que as suas descobertas sejam levadas a público da maneira correta. Temia que com tanta controvérsia no país entre esquerdas e direitas sem rumo numa ilusão constante de que estão falando coisas opostas, suas descobertas possam ser usadas apenas para benefícios de alguns. Curioso como estes grupos antagônicos não se vêm dentro do mesmo caminho histórico começado lá trás, com a revolução francesa e a americana, e com as revoluções socialistas do século XX. Voltando para o simplório quarto e sala no centro de São Paulo, Label começa a apreciar novamente o valor de coisas simples como uma caminhada. Aquele peso (literal e metafórico) que representou se livrar do volume, mandando pelo correio para alguém de sua inteira confiança, pode abrir seus olhos para algo antigo, mas que há muito tinha esquecido... a beleza da vida simples. Fez a caminhada de pouco mais de 800 metros em quase meia hora. Muito devagar e sem pressa. A lentidão típica de quem não tem mais nada a perder e se vê como um condenado ao desaparecimento. 92
27 de novembro de 2015. A campainha da minha casa toca. A entrega pelo correio devia ter sido mais rápida, pois foi enviado como expresso, mas demorou quase sete dias. Quando eu abri estavam lá o volume de 330 páginas e alguns discos e drives com arquivos digitais. Tudo que Label havia acumulado em sua pesquisa e mais tudo que ele havia escrito estava ali. Eram as evidências de que precisava para saber que ele ainda estava vivo. Comecei a ler imediatamente o material impresso. Estava assustadoramente bem escrito, com segurança e clareza, diferente dos esboços e versões da tese de doutorado de Label, com indas e vindas históricas que demonstravam uma grande insegurança. Talvez estar livre das amarras de uma obra escrita para obter título acadêmico tenha feito um grande bem para a produção de meu amigo. Ou ainda o fato de estar finalmente vivendo uma pesquisa de modo intenso e não só através dos olhos de outros (autores ou informantes). Ao fim do primeiro dia de leitura tinha decidido que iria partilhar aquela informação resultante com o delegado José Nilton, pois se Label pretendia que fosse o porta-voz de sua posteridade, tinha que me dirimir da possibilidade de ser considerado cúmplice de qualquer ação que ele ainda fosse realizar. Mais tarde, na delegacia, Doutor Nilton me recebeu com atenção, mas não deu muito importância ao fato de Label com certeza ainda estar vivo. Disse que se fosse verdade, nenhum crime realmente tinha sido cometido afinal. Escrever um livro e expor políticos era algo pouco nocivo na sociedade brasileira. O delegado pareceu descrente do 93
sistema e convicto da impunidade. Até demonstrou simpatia pelas ações de Label contra os três primeiros ex-presidentes. Gostaria mesmo é que o último, o operário, tivesse seguido o conselho de Label e desistido imediatamente da vida pública, evitando assim uma decadência cada vez maior de mais e mais submissão ao sistema corrupto do capital. “E se ele realmente tentar algo mais drástico com a atual presidenta?” Perguntei preocupado. Ele olhou num horizonte no seu interior, pois sua sala não vista para nada além de paredes velhas e armários, e sorriu: - Aí quem sabe é a revolução que virá, meu caro... - Respondeu-me com desesperança e cansaço. Saí da delegacia aliviado por ter cumprido meu papel de cidadão e por isso me dirimir de qualquer responsabilidade no futuro. Fiz questão até de registrar a informação como referente ao caso já encerrado, com cópia protocolada para mim, pois no Brasil tudo funciona com carimbos e protocolos. No entanto, fiquei preocupado com as ações futuras de Label e a que consequências essas a levariam. Voltei para casa para continuar a ler o seu material. Depois decidiria o que fazer. Uma coisa era certa: tudo seria revelado... esse era meu compromisso com Label.
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15 de dezembro de 2015 (três e vinte da manhã)... - O que você quer de mim?... - Perguntou a presidenta. Expressava um misto de assustada e preocupada, mas não inteiramente surpresa. “Na verdade, presidenta, tenho no momento a necessidade de ser convencido de uma verdade.” A frase que Label usou era enigmática por si só, pois se era uma verdade, por que ele precisava ser convencido? Pela primeira vez nessa sua aventura em busca da verdade através dos cinco presidentes vivos (quando começou) ele estava empunhando uma arma. Uma pistola de baixo calibre, facilmente adquirida ilegalmente nas ruas da capital federal. A presidenta já tinha avistado a arma em sua mão, mesmo ela estando discretamente encostada na perna e ele estando sentado em uma poltrona a cerca de dois metros da cama da presidenta. Apesar do aposento estar escuro, Label podia ver o rosto e os olhos da presidenta mirando a arma em sua mão. Seu rosto estava oculto pela escuridão e ele sabia o quanto aquilo podia ser intimidador. Ele se inclinou para frente deixando o feixe de luz de fora do quarto iluminar uma parte do seu rosto. Olhou para ela com olhar sereno: “Não é para a senhora.” - Tem certeza, meu jovem? - “A senhora só é 18 anos mais velha que eu... mas obrigado pelo “meu jovem”.”. Alguns sons podem ser ouvidos vindos de fora do palácio. 95
A presidenta e Label se entreolham como se soubessem do que se trata. Ela então pergunta: - Do que você precisa ser convencido, senhor Label? - “Não é surpresa a senhora saber meu nome. Imaginei que o ex-presidente operário iria lhe alertar da minha possível visita... (ela concordou com o olhar)... Pois bem... Vossa excelência deve conhecer a obra muito conhecida de Max Weber “As duas vocações”, não conhece?” - Sim. A presidenta não compreendia aquela abordagem de Label, mas já que ela pretendia tomar tempo dele até que o pessoal da segurança pudesse finalizar a mobilização do lado de fora do palácio. Apesar do aparente descuido da segurança na residência presidencial, as câmeras de segurança já tinham revelado a presença de Label e o pessoal já estava de prontidão. Àquela altura, todos em Brasília já sabiam que Label estava vivo e só esperavam o dia de sua próxima ação contra a única presidente que faltava. Melhor ainda que ele começou falando de maneira rebuscada e acadêmica, pois assim haveria mais tempo para a abordagem iminente... de muitos agentes de segurança da presidência. “Pois bem (continuou Label), nesse livro, que na verdade foi um discurso, Weber apresenta as características do político e as do cientista. O cientista tem a vocação para o questionamento e para a moral, já o político se apresenta ao mundo como aquele que resolve os problemas da vida social, muitas vezes tendo de superar as convicções morais para chegar a necessidade.” - Eu sei, senhor Label, a ética da convicção e a ética da responsabilidade. - “No momento a senhora está agindo de acordo com uma suposta ética da responsabilidade, no entanto o povo está precisando de uma ética da convicção... especialmente seus eleitores.” A conversa estava caminhando de acordo com os planos de Label, pois a presidenta ouvia atentamente a sua exposição. No 96
entanto a chefe do executivo nacional tinha também sua própria agenda. A advertência feita antes de que provavelmente ele iria praticar alguma ação com ela após a ação com o ex-presidente operário, criou um alerta sutil na segurança presidencial. A sua chegada na madrugada não passou despercebida, mas o tempo de reação calculado era de cerca de vinte minutos. Label usara sete minutos para expor a importância de um político com ação convicta diante de uma situação de crise. Lembrou a ela que o discurso de Weber tinha sido proferido justamente logo após o fim da Primeira Guerra Mundial e que a autoestima do povo alemão estava em baixa, pois tinha se rendido aos aliados sem realmente ter sido derrotado e tinha sido lhe imposto uma indenização absurda que afundou o país numa terrível crise econômica. Os líderes da república e do parlamento estavam fracos e discordantes, por isso era clamado uma liderança mais carismática, que conseguisse liderar o país para a reconstrução. Infelizmente para o povo alemão não surgiu um líder com tais características naquele momento. A crise se aprofundou, Weber morreu logo depois e com a crise mundial em 1929 tudo piorou ainda mais. Quem acabou ascendendo como líder carismático foi o Hitler e essa história não precisava ser recontada para ninguém. Label olhou para o relógio e esperou para ver se a presidenta iria comentar algo sobre sua fala... - O senhor está me comparando com Hitler, senhor Label? - “Não, senhora presidenta. Estou dizendo que se uma atitude de liderança não for tomada agora, talvez tenhamos no Brasil uma figura tão tenebrosa quanto Hitler no futuro próximo.” - Entendo... - “Não precisa se preocupar. Eles já devem estar ao redor do palácio. Logo logo o telefone vai tocar e se iniciará um processo de negociação, já que sou visto como terrorista e senhora como refém... Não precisa ficar surpresa, presidenta. Todos os procedimentos de segurança disponíveis no mundo estão na Internet. 97
Basta saber procurar.” - Foi também na Internet que senhor descobriu como ser um mestre das substâncias psicoativas? - “Foi sim. É incrível o que os agentes da KGB publicam na rede por puro ressentimento. Basta saber ler russo.” Ele olha novamente para o relógio. “Agora, presidenta, o que eu preciso que faça é que me convença de que todas as acusações que estão rolando na mídia contra a senhora e seu partido são tão falsas quanto as redes sociais querem nos convencer.” Ela demostrou uma expressão de surpresa com pergunta tão direta. - Pensei que já tinha resolvido isso com meu antecessor. - “A senhora é a presidente agora e precisa compreender que todo processo de minha busca pela verdade exige esse tipo de abordagem.” - Você irá usar alguma substância da verdade em mim também? - “Não senhora. Para esse meu projeto funcionar eu preciso agir diferentemente, pois uma coisa em comum deve ser mantida em todos os casos que envolvem a sua posição... A presidência precisa ser respeitada, mesmo que alguns de vocês pareçam não saber respeitar o cargo em todos os momentos... É mais um conceito weberiano: o da legitimidade do poder baseado na razão voltado para fins.” A presidenta sabe àquela altura que não resta mais nenhuma chance de sobrevivência do invasor, então não tinha mais como expor nada em suas publicações. Além disso, como o ex-presidente operário havia lhe dito: não tinha mais nada de novo a ser revelado. Ela conta para ele tudo que sabe e tudo que supõe. Label Marques respira aliviado após ouvir a presidenta. Uma tranquilidade sem precedentes invade a mente deste cientista social. Conhecer a verdade afinal era a mais prazerosa das drogas, pois não podia conter o êxtase daquele momento. Como há muito tempo Label não fazia, ele sorriu sem ser por ironia ou desprezo diante de uma situação, sem o cinismo do cotidiano de professor e também de cidadão brasileiro descrente de tudo. 98
“Muito obrigado, senhora presidenta. Fico feliz por ter cooperado com minha pesquisa... Agora eu preciso te fazer algumas recomendações. Tenho pouco mais que cinco minutos antes que tudo acabe em sangue e preciso ter a certeza de que fiz tudo que pude para melhorar a situação do país.” Amedrontada por aquelas palavras, a presidenta responde: - Que recomendações? Não é preciso que tudo acabe em sangue. – “Claro que sim, presidenta. Como em qualquer romance interessante, filme de sucesso ou novela de televisão, uma grande cena de ação no final é necessária para tornar a história popular, com o drama suficiente para que as pessoas se identifiquem e falem a respeito.” Diante do olhar de expectativa da chefe de estado, Label fez suas recomendações: “Até o momento o seu segundo governo tem sido um fiasco econômico, social e de popularidade. O legislativo chantageia o executivo o tempo todo e ao mesmo tempo está criando o ambiente ideal para um grande retrocesso do ponto de vista de conquistas sociais. O seu partido e a senhora se dizem de esquerda, no entanto tem aplicado uma agenda de direita com a justificativa de estar tentando superar uma crise mundial. Os eleitores da senhora estão insatisfeitos porque se sentem traídos em relação às suas promessas de campanha. Os eleitores da oposição se sentem confortáveis para tripudiar você e seu governo, acentuando ainda mais a diferença entre classes. Até aí nada de novo...” Ela acenou com anuência. “O que a senhora deveria fazer era assumir uma postura de liderança e acabar de vez com toda essa loucura no país. Deixe bem claro para todos que você é a presidenta e que em função da preservação das gerações futuras você irá usar dos recursos constitucionais para dissolver o congresso e convocar novas eleições parlamentares...” - Mas isso é uma loucura. É uma ação autoritária. – “Nesse 99
momento o país precisa de alguma autoridade, pois há uma falta de credibilidade generalizada na classe política. Será um período turbulento, mas será preciso para romper com os laços do poder financeiro estrangeiro. Será preciso mudar o processo eleitoral, o processo de concessão de mídias, a cobrança de impostos sobre grandes fortunas, a perseguição aos sonegadores, a contenção de salários de cargos políticos. O judiciário ficará todo contra a senhora, mas com o tempo e a renovação ver-se-á que somente os juristas honestos ficarão nos cargos.” Ela faz uma expressão de total descrença e dá uma leve risada de ironia. – (que louco, ela pensa). “Mais importante de tudo... Se a senhora quer salvar um pouco do seu nome e do seu partido, siga a mesma recomendação que fiz ao seu antecessor: termine este mandato e saia da vida pública, tenha uma vida frugal. Convença o seu partido a não lançar candidato para presidência na próxima eleição. Deixe a alternância de poder acontecer e permita que o povo enxergue por si próprio que o que vocês fizeram foi importante para o país... assim como todos os seus antecessores, vocês podiam ter feito muito mais, porém ficaram submetidos aos donos do poder... e por isso fizeram foi muito pouco, além de todos terem um monte de aproveitadores ganhando em cima das dificuldades do povo... nesse caso: banqueiros, empreiteiros, consultores com informações privilegiadas... Seja por conivência ou por ignorância, vocês deixaram isso acontecer. Então, é a hora de assumir o poder, presidenta... Isso... se a senhora quiser aceitar minhas modestas recomendações. Agora meu tempo acabou.” Nesse momento, como um relógio muito bem ajustado, o telefone no quarto da presidenta toca. Os dois se olham. “Pode atender...” Ela atende. Do lado de fora tem todo um cerco de seguranças e policiais prontos para negociar a rendição do invasor dos aposentos da presidenta. – Eles querem 100
falar com o senhor. – Ele levanta da poltrona e se dirige ao telefone. “Alô. Meu nome é Label Marquês e eu vou manter a presidenta como refém até que vocês chamem os juízes dos casos de corrupção aqui e toda mídia também.” Desligou. A mídia evidentemente já estava no local, pois com tantos informantes nos meios do poder foi muito rápido ficarem sabendo de algo tão inusitado na história brasileira. Os juízes a que Label se referia seriam rapidamente acionados e logo estariam lá, mas muito mais para compor a cena final dessa tragédia. Label precisava de um circo, um espetáculo midiático como forma de concluir sua obra de busca pela verdade e justiçamento. “A senhora lembra a morte de Carlos Mariguella?” – Claro que sim. Cercado e executado por mais de vinte agentes policiais e nem sequer sacou a arma. - “Pois é, infelizmente os jardins de sua residência oficial vão ficar um pouco bagunçados.” – Você não precisa fazer isso, senhor Label. – “Claro que preciso presidenta. Sem um grande final, uma história boa não se torna notícia. E sem ser notícia, não há fato histórico a ser analisado. No nosso mundo de hoje, o espetáculo é uma premissa para a atenção... Primeiro você aparece, depois você faz algo de importante.” - Não vai esperar que eles atendam seus pedidos? – “Não, os pedidos foram uma distração, preciso pegar eles de surpresa... Além disso, quem importa já está lá fora... Não está ouvindo os helicópteros dos canais de televisão?” Ela para e ouve realmente o barulho das aeronaves ao redor do palácio. Label caminha em direção da porta. A presidenta ainda faz um gesto para retê-lo, mas desiste diante da sua resignação. Antes de sair, ele a olha uma última vez. “Obrigado, senhora presidenta. E lembre-se que quem merece respeito é a presidência, seu ocupante é somente mais um cidadão. Esse é o princípio básico da igualdade estabelecido pela revolução francesa, ratificado pela ONU e presente em nossa constituição... Até o 101
momento, nenhum presidente brasileiro se comportou como tal, se colocando acima dos outros. Supere os laços com os donos do poder e seja a primeira a respeitar a presidência antes de tudo e o povo que lhe elegeu. Boa sorte!” Ele sai do quarto escuro onde a presidenta permaneceu ainda sentada na cama. Refletindo sobre as palavras de Label e conjecturando suas ações futuras. Logo ouvem-se os tiros. Label sai pela porta principal do Palácio da Alvorada. A postura agressiva que ele ensaiou por tanto tempo funciona perfeitamente. Os homens armados ao redor não esperavam aquela ação. Imediatamente se colocam em posição de atirar novamente. Label sabia que eles hesitariam por estarem expostos tanto pela mídia quanto pelo próprio simbolismo da residência oficial do chefe do executivo federal. Então Label começa a atirar, sabendo que haveria uma resposta a essa agressão. Consegue fazer três disparos com suas balas de festim antes que os oficiais começassem a revidar. O primeiro tiro lhe atingiu a coxa esquerda. Estava já andando pelo gramado a uns quatro metros da porta. Uma sensação terrível de calor lhe corto a carne da perna e sentiu como se tivessem lhe jogado uma pedra, pois tropeçou e grunhiu de dor. Manteve-se de pé e continuou a atirar. Dois tiros lhe atingiram o abdômen. Dessa vez o tranco foi mais forte e parou no meio do gramado ainda de pé, mas com dores terríveis e enjoo. A sensação de desmaio começava a lhe tomar quando consegue disparar mais um tiro em direção dos guardas e com isso leva mais cinco tiros quase simultâneos. Dois no peito, mais um no abdômen e enfim um na cabeça. Com os dois no peito ele já estava totalmente inconsciente, com o da cabeça foi suficiente para ele já cair no gramado morto. Da janela do quarto a presidenta observa a cena. Realmente o jardim do palácio ficou uma bagunça, como Label havia dito. Semelhante a morte de 102
Carlos Mariguella, foram muitos homens para deter apenas um outro. Mas diferente do mesmo, ele conscientemente fez o papel do agressor, pois queria que o resultado final fosse esse. Agora fica comigo a responsabilidade de passar adiante esse surpreendente legado de Label Marques. Quando aconteceu seu enterro, aqui na nossa cidade, eu já tinha encaminhado e feito um acordo para a publicação de seu livro através de uma editora portuguesa. Além disso, todas as informações que ele coletou foram publicadas em diversos sites na Internet com servidores em diversos locais no mundo. Tudo isso para garantir que houvesse a preservação da informação. Nas redes sociais era o que mais se falava, pois sua morte trágica no jardim do Palácio da Alvorada já rendia um monte de especulações de esquerda, de direita, de moralistas, de radicais e de loucos de todo tipo. Com a publicação e difusão das informações, mais ainda se inflou o debate. Queriam usar as revelações de Label tanto para crucificar o atual governo quanto para santificá-lo. Mas as consequências poderiam ir muito além desse trivial da última notícia recente no país... Muita coisa tinha sido revelada de forma a demonstrar o que Label já vinha argumentando desde seu doutorado: há uma continuidade no Brasil de mentalidades, de ações e de forças de dominação econômica, política e ideológica. O sistema estava fragilidade, mas ao mesmo tempo tinha uma oportunidade única para se reerguer e se fortalecer... Só dependia agora de nós mesmos. 2016 prometia ser um ano extraordinário de grandes possibilidades de mudança e esclarecimento. Obrigado Label, você nos surpreendeu a todos.
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