se dizer o tal profissional, quando na verdade seria um “isso”ista. E se fosse realmente um filósofo, faria com que a consciência se tornasse o interlocutor de um infinito diálogo, onde por muito pouco não se consegue a resposta, pela simples razão de se estar vivo e acordado; porém para isso o sujeito teria de se desfazer do seu trabalho, e logo os outros profissionais das salas vizinhas o considerariam um entrave, mesmo sendo com certeza o mais proveitoso de todos, pois daria um, pelo menos, único sentido à existência do elemento: que seria eternamente perguntar o mesmo: valor não falta e por isso admirei esse lado da minha divagação enquanto andava pelo corredor em direção da minha sala, que não era minha... Porém o final fardo de tudo foi o que mais me fez falta naquela final conclusão: eu queria somente a mãe, para a que ao final das portas do corredor ela surgisse então e abrisse os braços numa sala macia e o sujeito (eu) pudesse descansar do encalço sem achar o sentido do depois e finalmente pudesse sumir de tudo ou voltarse ao trabalho, sem a resposta, mas com intento, calmo. Talvez até fora do mundo.... Quando cheguei à porta a qual deveria entrar, me vi terminando aquele pensamento realmente dentro daquela sala macia, e a coisa mais próxima da qual podia enxergar aquilo no real foram as salas alcochoadas dos hospitais 500
psiquiátricos, e a mãe seria a camisa de força?... - Bom dia. - Alguém disse... Estava solto nos meus passos ao entrar, mas me trouxe de volta, e pude retribuir o cumprimento matinal devidamente. Que tragédia minha e de minha geração a procura do que havia me referido; se não todos, a grande parte que agora convivem comigo, e eu mesmo. Fui quem primeiro estava ansioso por saber como as vidas dos outros tinham se mostrado naquele recente fragmento de fim de semana. Não pretendia conscientemente readquirir o gosto por qualquer coisa que eu haveria de ter perdido entre os caminhos dos meus dias mais inúteis do passado; como agora reconheço cada dia como único de feliz incidência de mim mesmo num ponto de única felicidade, pois: “Este dia me é inédito, pois nunca o vivi, tão pouco o amanhã, mas aprecio o reconhecimento de cada novo momento estranho, pois ainda existente, mas claramente meu. E único.” Mas tal ciência só existe sob certa via, que não era a minha.... A intenção por outras pessoas ao questionar seus ausentes momentos de minha pessoa era apenas um leve despertar do que eu começava a considerar como necessidade dos dias que se seguiam; como aqueles que vinham mais adiante, re-assentando os que vieram antes, de onde havia sobrevivido cheio de perdas e danos da maior idade psicológica, tão 501
rara de fazer-se atravessar em dias de um atual e tão fatal desdém pelo que é de fato importante ao jovem coração humano em desenvolvimento: arrogância procurar resposta para tanto ainda nesse mundo... Somente perguntei a Simone o que tinha feito no final de semana... Pequena surpresa assombrou-lhe o rosto. Minha jovem colega de sala. Estava em experiência, mas fazia o mesmo serviço que eu: duvidava eu ser capaz de superá-la em talento para aquilo. A partilha de clientes ainda era favorável a mim, mas logo ela me superaria. Sua capacidade aflorava com a beleza, tinha confiança, vontade, esperança; coisas que começavam a me fazer falta.... Situação difícil àqueles que se fazem concorrentes de um ritmo de vida que afeta qualquer antecipação por dúvidas além do presente. E nunca acreditaria que tais dúvidas afetassem-na; e por isso ela e seu trabalho ascendiam.... Tinha passado os dois dias com o namorado e mais outro casal amigo em uma bela casa de praia alugada, em uma das praias do litoral mais afastado e mais nobre do conteúdo dessa região. Garantia-me ainda ao pecado da luxúria em pensamento ao imaginá-la em trajes mínimos sobre um corpo escultural, espreitando a beleza do sol em seu forte e delicado rosto, de lindos e sedutores traços; algo que também a fazia confortável 502
a clientes apreensivos sobre seu ardoroso capital de investimento; tudo sobre a vertente de juventude, e talvez um pouco de desejo, ou atração. Já não me preocupava em garantir um sorriso fora da realização do trabalho, ou das situações diárias, pois fazíamos e vivíamos a mesma função: eu indo e ela vindo, ou próximo do que isso fosse em uma empresa de serviços do moderno estilo de capitalização perfeita da força de trabalho bem preparada, interessada, inteirada e bem servil, mas com boas idéias. Era o que tinha também, mas me perguntava demais o porquê, e isso não é uma atitude bem vinda na qualidade total dessa ignorância, pois nela só o resultado importa, e disso a aparência; e minha aparência também começava a cair, do fruto inevitável de uma alma sem rumo... Simone simplesmente achava que eu devia sair mais: o que era compreensível, pois também queria ter tais respostas para o depois, tão certas quanto o simplório sorriso sobre ela ao proferir-se: mas não era, mesmo que eu quisesse, e mesmo que ela acreditasse. Restavame sentar, com os olhos atravessando a sala sobre os dedos entrelaçados de minhas mãos em percalços de fraqueza ao sentir as articulações, seu rosto e seu olhar dizerem à minha próxima pergunta; sem ela nunca atentar que não há sentido algum, porém encerra todo desejo de cada um no dia-a-dia, inclusive eu.... Com 503
um alegre sorriso: - Claro que sim. Adorei. Me diverti muito. - E fiquei feliz pela resposta dela, porque fazia todo sentido do mundo, e talvez todas as coisas encontrassem tal elementar resposta pela medida do tempo. Sorri por dentro e por fora, sem dose de uma linda mulher estar presente, mas outro ser humano, que mal conhecia, trabalhando juntos há apenas quatro meses, e que conseguia alcançar aquele nível de amplo belo para os dias, sem mais muito que somente outros seres humanos, que de fato não precisavam nem existir na situação, apenas serem concebidos no pensamento, como o eram para mim. Sentia que algo de confiante podia emergir daquelas minhas perdas internas, pois sorrir da simplicidade dava qualidade à própria; também Simone sabia disso, talvez sem saber; e eu começava a aprender porque algo que se escondia começava a surgir, e isso só surge como agora: sutil e com nitidez somente para aqueles (ou este) que aqui se veem. Simone era loira. Ela tinha se divertido no fim de semana. Eu queria algo; ainda não sei o que é, só uma coisa tem nitidez... E tive um razoável dia de trabalho, seguido por um boa semana. Trabalhos e dias. 504
### Num bar novamente, mas sem a responsabilidade do que eu apresentava antes. O escuro era vago de uma noite menos fria. Eram Simone, o namorado, eu, três pessoas do escritório e uma tal de Silvana... Todo pessoal da empresa havia sido convidado para um grande evento de executivos no centro de convenções do Estado. Minha intenção nunca fora de ir, mas apenas de não voltar para casa para mais um fim de semana sozinho em afloramentos de memória e temor pelo presente, passado e futuro. Desde muito sentia a necessidade que a própria Simone me mencionara anteriormente: sair mais.... De fato não era solução; como o sei hoje, mas um agradável anestésico para algo que começara a despertar talvez no dia do meu nascimento, mas que só depois daqueles dias me vieram a atormentar tanto.... Por isso estava lá.... Após o evento, saímos o grupo mencionado para um bar, prosseguindo os momentos antes que estes terminassem no mesmo que sempre surgiram: do meu dia seguinte eterno, que após concluirei.... Conosco levamos uma das jovens atendentes do evento; de fato a que havia nos atendido, pois cada grupo era assessorado por uma pessoa exclusiva: através dos imensos salões do centro de convenções, com estandes diver505
sos, homens e mulheres bem apresentados, com todas as grandes representações de suas empresas tão já bem vistas no mercado, mas que não perdem nada em querer estar nos cabeçalhos e manchetes do mundo financeiro, como aquele o era, e como fazíamos parte; e que na verdade me parecia somente uma coisa para se fazer numa sexta-feira à noite sem se admitir que era somente isso... E se fosse realmente isso que se erguesse em nós.... Ou em mim.... Não. Era muito pouco para ser tudo isso: e às vezes me via desajustado por ver tanto, e talvez nunca fosse tanto. Silvana não tinha mais que vinte e cinco anos. Tenho certeza disso. Nunca quis saber a idade dela realmente. Sua facilidade em se expressar e guardar informações fora a possível razão de sua contratação para aquele trabalho. Tinha uma incrível agilidade em lidar com pessoas e o trato conosco naquele preciso dia não fora diferente do seu talento demonstrado posteriormente. Soube apresentar dados contundentes e de fácil entendimento sobre quase todas as empresas presentes no evento naquela noite, das quais três se tornaram clientes nossos após um mês da hábil negociação da loura... e o mesmo se estendeu por mais dois dias, o resto do fim-de-semana... Penso hoje na maneira irônica como as coisas se apresentaram naquela noite. Eu só tinha olhos para a guia que nos 506
carregava suavemente pelos labirintos do estandes... Sei agora o que me atraiu nela, pois posso analisar as razões de tudo com a frieza de um metal gelado em meu punho trêmula que se suaviza do medo pelas rajadas últimas do amável vento da manhã em minha pele; no pouco tempo que pude ver no rosto apaixonante que me lembrava uma pessoa do passado recente a qual eu ainda queria esquecer, mas sei hoje que é impossível e não é necessária de o ser... Silvana não era Suzy. Era uma jovem cujo olhar também me atraía para ela, como ela assim o quis, e eu quis...: Sentia do peito e da mente surgir as boas imagens de um novo despertar, que é o mesmo de antes, que tinha e tem de ser detido; mas naquele momento me dava muito prazer poder olhar para ela e gozar na sensação afável do desejo. Do espaço entre mesas e cadeiras, e pessoas, que nos separavam surgia um vão, um canal, de sons e vozes estranhas que nos (ou me) faziam agir a cada momento com o pensamento na ação e reação do outro; de como seria visto no instante em que terminasse o gole do copo e o abaixasse com charme, ou talvez desdém pelo interesse. Um tipo de jogo que normalmente eu abominaria, mas que começava a fazer fluir de mim, a partir daquele momento, o mesmo tipo de ânsia e desprezo pelas consequências 507
que normalmente se tem quando se deseja ter o prazer do esquecimento, ou talvez fosse apenas em mim: como verdadeira imaginação aperfeiçoada... Um toque do real no que se costumava sonhar... E ela era um sonho: linda, inteligente, sedutora, e também interessada em mim, e o pouco que eu tinha vivo dentro de mim começou a se tornar o ator principal daquela representação de vida real... A pior parte... Sei, agora. Simone via e sorria satisfeita por aquele acontecimento: se julgava boa amiga e com boa ação completa naquele dia. Um ser humano com ações aquelas tais como esta descrita, não dela, mas por ela: o que não é a prepotência humana dos problemas resolvidos somente por não estar mais sozinho... e algumas vozes, em boa parte dessas minhas ocasiões, foram as situações em que eu me encontrei realmente solitário, clamando por um socorro invisível e silencioso de quem quer que estivesse comigo, e muitas vezes, como agora, só restavam a mim, o eu e mais ninguém, eternamente refugiados no meu mesmo que era e sou... Para Simone eu simplesmente precisava de alguém.... Lembro-me agora: Aquela noite foi especial... Todas seriam... desde então... Não estava acabado ainda no bar... Continuamos depois nos minutos e horas seguintes: “aqueles primeiros minutos”; e após... Nunca tinha sentido 508
um gosto como aquele. O calor envolvia todo meu rosto. Um alma de desejo se elevava sobre nós dois saindo dos nossos poros. Os dezenove músculos da minha língua procuravam se aperfeiçoar mais e mais naquela arte à medida da penetração; toda aquela umidade escorrendo como uma fonte de indescritível aproximação entre essas duas pessoas. Sentia o sexo com Silvana, e o sexo de Silvana, gerar algo que já crescia de mim... Podia mesmo sentir minha anatomia interna mudar com a exploração da contenda: melhor diferente, eu podia achar, que as minhas memórias longínquas do passado; mas não era... Era capaz de fazer o que havia imaginado há tempos; quando o sangue da juventude corria fértil em minhas veias de adolescente: uma capacidade além do que eu realmente era e podia ser, mas estava sendo, acontecendo diante de mim... em minha cama, no meu quarto, no meu apartamento, na minha vida... Uma mulher com todas as fúrias que se podia imaginar para a prática do sexo, ainda normal, mas comum a todos... menos a mim, e que estava e não estava sendo: o corpo nu, suado e macio de alguém no reencontro dos poucos momentos... de alegria...: Eu podia achar... Porém eu sei agora que fora algo mais que se erguia dentro de mim a cada instante daquela deliciosa sensação: Eu não podia admitir como real. E só via no prazer 509
os golpes, o movimento, a penetração, a sensação, o poder... da libertação... do aprisionamento... de mim, dentro de mim, dentro dela, outro eu com a voz do adormecido. Meus olhos se fecharam. Nada tinha visto desde então. E meus olhos se abriram novamente. O que os corpos traziam de um no outro além da lembrança da carne satisfeita era algo, ou é algo, que ainda tenho dificuldade em descrever: o prazer tinha um jazigo cativo dentro do meu corpo até então, pois havia me resignado num sentimento aparentemente há muito perdido... Mas o prazer também despertava o sentimento; não o mesmo exato, com certeza; porém algo que precisava ser ressuscitado dentro de mim. Por isso não há ainda como descrever o sexo simplesmente como sexo, porque no fundo é sempre a mesma coisa fisicamente: química e mecânica dos corpos que procuram se equilibrar na pressão que fazem uns nos outros de hormônios, pensamentos, escolhas e rejeições. A dificuldade maior, e importância também, repousam no fato de que eu estava acordado, alerta, e ainda assim, pouco convencido de que ao meu lado, naquela cama, naquele momento mesmo em que meus devaneios sussurravam as absurdas verdades de meus sonhos realizados e por se realizar, como este o era antes de ocorrer, estava uma linda mulher, que 510
eu acabara de conhecer, com quem não tinha nenhum vínculo anterior, de quem não ficara amigo por anos antes, por quem não sentira nada além do calor da paixão num dos momentos sublimes de uma vida com muito pouco a ser fatorado em nome da realização... Pude sentir como na viva sensação da realidade o que nunca tive em minha imaginação, que começava a parecer muito menos ameaçadora que de fato o era: algo de muito mais poderoso se desenhava no cenário onde me encontrava: era eu mesmo, a minha presença no mesmo momento em que consumiam as imagens do que eu queria imaginar, e que de fato imaginei, e que de fato se consumara: os prazeres com Silvana, as lembranças vivas de poucos minutos antes se encaixando como num desenho sobreposto em papel vegetal com a imagem que já tinha na cabeça desde que havia começando a olhá-la ainda no bar com o grupo... Que estranho ser que eu via se erguer; o adormecido acordando e liberando ainda seu resto de sono numa premonição do que seria capaz de fazer quando estivesse totalmente desperto e livre... Fora do medo o que me tinha quando senti aquilo; e sabia que seria só a primeira vez... Meu quarto estava fechado. A escuridão era enfeitada por leves rajadas de um prenúncio de amanhecer misturados ao resto de luar. Todo ambiente cheirava a sexo: algo 511
de inconfundível, talvez somente em mim mesmo: suor dissipado somado a outros fluidos. Meus olhos não conseguiram mais fechar naquela noite. Silvana dormia tranquila em meus braços. Seu corpo tocando o meu deixava-me semi-excitado constantemente, mas meu pensamento não se transmitia ao que meu corpo ensaiava querer sentir assim que ela acordasse, o que de concreto ocorreu no correr daquela manhã de sábado, várias vezes... prendia-se mais no fato da força que parecia cada vez mais emergente: uma capacidade de realizar e transformar nunca antes sentida por aquele pedaço de mim mesmo que parecia se enterrar naquele novo alvorecer, cedendo lugar ao que surgia... O que vomitava o desprezo por aquele que se ia, que sentira o prazer com Silvana e em Silvana na presença de um ser humano; e que agora sendo o mesmo, é o que despreza a paz do sono da linda mulher ao seu lado com o calor carnal de sua nudez sobre ela, como num insulto programado de realidade, revelando de algo longínquo o prazer de sua verdadeira natureza... Despertei-a como num pesadelo: penetrando-a com força e ferocidade; sentia que seu corpo se atraía para tal, para mais: algo do instinto animal que restava, do irracional que se erguia em todos no sono e que estava em mim como razão, e eu podia sentir com determinação para o que devia fazer, o que estava 512
fazendo... até despertá-la completamente, com o poder dentro dela, o assombramento da primeira medida, a surpresa e afinal a rendição. Continuei a consumação... ### Estava eu frio?... No prato havia o desenho do pouco que eu realmente consumava de necessidade de alimento. O meu alimento há muito parecia ter se tornado a vontade de sentir as verdadeiras emoções, e estas começavam a fluir para o interior de minha alma de modo que o que havia realmente no prato do meu almoço naquele dia, naquela mais uma segunda-feira de trabalho eram as imagens da satisfação que começaram a surgir nos dois dias antecedentes... Alguma coisa de muito pouco aparente; somente no meu interior podia reviver o levantar do meu novo e desconhecido ser: o ser que para o mundo, e naquele exato instante para Simone que me acompanhava em mais um almoço de colegas de trabalho, não se mostrava de nenhuma maneira a não ser para mim mesmo em minhas costumeiras atitudes... Muito provavelmente por essa razão a não reação de Simone a nada de diferente que eu fizesse, pois para minha cara amiga eram as mesmas ações 513
de um eterno e sisudo homem calado, de expressões muitas vezes triste, e quase constantemente gelado para todo e qualquer elemento exterior... Mas não era mais assim. E nunca foi... - E aí... ( Alegria do seu ser era sempre radiante. Simone.)... Como foi o lance de sexta... Eu tava vendo tudo...: você hein!! - O que você pode imaginar que aconteceu, Simone?... Algo de tão extraordinário quanto possa ser o que você pode realmente imaginar?... Ou algo mais que você não possa nunca imaginar apesar de querer que sua imaginação seja a real representação de tudo que possa ter acontecido? - ... Você vai ter de repetir, querido!... O que você acabou de dizer só tem um receptor para a mensagem... (Ela sorri e vira a cabeça para o lado direito em sinal de reprovação quase didática, e com um pouco de ironia.)... Você próprio! - E com toda certeza do mundo que me permito aferir hoje sobre aqueles tempos: a questão se dirigia somente a mim, e mais ninguém. Impressionei-me com a harmonia e facilidade com que me apresentei por meio daquelas perguntas; numa vida inteira só aqui não iria gaguejar em algo tão complexo para expor no momento a minha maior dúvida... Era aquele novo ser quem falava: com a frieza e o desprezo que lhe eram contidos no 514
momento de sua aparição: da realização do que me era imaginado para a situação. Admirável situação! Fiquei calado. - Eu só quero que você me diga se ficou com a moça... Se você gostou dela... Se você se divertiu... Se vai casar no próximo fim-de-semana... (Simone ri novamente.)... Qualquer coisa com a qual eu possa ficar feliz por você. Sem precisar de análises. Expressões num rosto de excelência. Simone, minha linda amiga loura, viajava dentro de sua gostosa irritação com seu amigo. Eu não me importava com o que ela imaginasse. Nem queria me importar; mas dentro de mim, atrás da minha visão sobre ela, podia ver o quanto aquilo era agradável e confortável para nós dois; pois em mim de invariável posição não gostava de me abrir para o mundo, não importasse o quanto de tudo eu tivesse de reter dentro de mim... Nesse momento me vem claramente meu sentimento por Suzy: tão bem escondido dentro de mim até tal ponto; mas o que mais eu poderia querer além do próprio sentimento se sua realização se resumia a isso, agora... Ou semelhante ao que foi com Silvana... E no final alguém ficaria feliz, e essa seria a razão certa, mas não o que compunha o que eu realmente queria entender como amor, o que talvez realmente seja: uma palavra, sem significado, e com todo 515
significado do mundo... E por isso, para Simone, eu só iria vender o que ela queria, o que a amizade pedia para se sustentar simples até então... - Tudo bem... (Uma pausa mastigando e bebendo para elevar ainda mais a ansiedade.)... Acho que você pode ficar feliz... Isso é claro o suficiente??... - E foi a primeira vez que meu sorriso de dentro surgiu. Com a integral satisfação por deixá-la na dúvida... E por não se importar. - Esquece!... Eu desisto!... Voltemos a falar de trabalho. ( Balançava a cabeça com certo repassamento, mas acho que feliz.)... Estou preocupada com a conta do Alfredo Guilherme... Nunca vi uma quantia daquele tamanho aparecer tão depressa. Não consigo imaginar de onde possa aparecer tanto dinheiro e tão rápido... o volume do investimento vai ser um dos maiores da região inteira... - Do país, moça... - Ela aproxima o rosto do meu para falar em baixo volume algo que eu já especulava mesmo antes de entrar na empresa: na oportunidade em que tive de programar os investimentos da Alfredo Guilherme Ltda.; e fui até eu mesmo quem registrou todos os bens do Sr. Alfredo Guilherme como pessoa jurídica: fora sempre o ponto máximo do meu currículo: ainda na faculdade e com um nome como esse indicando a forma do meu talento... Era o que 516
era antes, pelo menos... E já não mais o era. E agora? (Sorriso.) - Será que tem algo de ilegal?... - Mas eu nunca perguntei... e muito menos iria eu responder... - Eu não sei. O que fora aquilo com Silvana?... Ainda me perguntava. Importava-me muito pouco a procedência... e o destino... que o dinheiro do Sr. Alfredo Guilherme tinha ou tomaria; pois muito pouco do meu trabalho era a minha vida naquele tempo... Voltamos para o escritório e prosseguimos... O que me ocupava a mente naqueles momentos era o que havia se representado da minha própria pergunta, para Simone, e que foi para mim... O valor de alguns momentos na relação entre duas pessoas. Tinha como no sexo sempre as inconformidades das minhas poucas realizações nessa área até aquele momento: eternamente passional aos extremos durante toda aquela primeira fase da vida, em que a única coisa que parece realmente fazer sentido é o prazer de estar com a pessoa amada; deveria ser assim durante toda a vida; mas no meu caso tinha mudado; eu sentia de uma maneira mudada; via o nível de importância que eu dava à nova relação se diluir com o crescente prazer que tirava do mesmo: uma antítese do poder que era ter alguém sempre a sua espera, mesmo sem 517
saber o que esperar. Quando abri a porta do escritório a nossa recepcionista estava ao telefone, e seus olhos mudaram de expressão no instante em que eu e Simone entramos. Enquanto andávamos na direção dela, pôs a mão no bocal do fone e se curvou um pouco por sobre o seu balcão para nos dirigir a palavra: - Simone... O Sr. Alfredo Guilherme na linha; para você... - Falara do sujeito desde o restaurante: especulações, acusações, admiração, tudo contido sobre o mesmo homem e sua misteriosa fortuna: nesse ponto de tão pouca importância para minha pessoa, a imaginação da loura realmente ia muito mais longe que qualquer possível real que tenha se tornado, apesar de muito surpreendente, de fato... Mas enfim seu entusiasmo pela trama financeira mal pode se conter à sala de espera: com seu largo sorriso correu para a sala pedindo que a conexão fosse feita de imediato. De volta a mim... Ainda observava Simone entrar na nossa sala e pegar o telefone. Conseguia vagamente recordar de como foi o meu entusiasmo quando trabalhei para aquele mesmo elemento... Trabalhava em casa; com quase nada em minha mente além da vontade de servir bem aquele filho-da-mãe rico de doer. Minha mãe perguntava porque eu não 518
estava indo para a faculdade regularmente. Eu nunca tive uma resposta aceitável para minha mãe, mas se não fossem aqueles quatro meses de sacrifício eu não teria hoje a mesma facilidade que tenho para arranjar trabalho... e essa sempre fora a prioridade: curioso como o nível de importância de uma coisa pode decair tanto em apenas dois anos... O Sr. Alfredo Guilherme só tinha ido para lá porque sabia de mim: eu fui a referência para a vinda dele para a empresa, e todos sabiam disso. Em outra época seria razão suficiente para eu pedir alguma promoção, ou até parte na sociedade por fazer surgir um faturamento tão alto e tão rápido... É claro, os dois sócios da empresa nunca perguntaram de onde vinha o dinheiro... Mas eu não tinha interesse em nada daquilo; nem mesmo na própria conta: passei todo serviço para Simone, e ela própria se fez de confiança para Alfredo Guilherme... Não mais precisavam de mim. - Oh... (Me voltei para ela.)... Pra você tem essas duas ligações: Silvana... Disse que podia achá-la nesse número aqui. - Tomei posse do pequeno pedaço de papel onde estava escrito o número. Agradeci... E fui para sala. Simone se entretia com seu fabuloso trabalho, e de certo o Sr. Alfredo Guilherme também do outro lado da linha: os sorrisos fluíam como o dinheiro dentro da conversa... Mas meus olhos 519
estavam naqueles sete números tão bem representados no pedaço de papel em minha mão. Só que eu não sabia o que eles realmente representavam... Dentro de mim ainda havia duas correntes que eu podia sentir com nitidez como sendo os opostos dessa mesma pessoa que agora é uma só com tanta dificuldade para se regenerar vivo da própria decisão de cumprir os desejos... Era o antigo sonhador apaixonado que se entusiasma com um nome de mulher dentro de uma construção na memória que carrega todo o desejo contido por anos. E era o novo que se erguera durante o prazer: quando da realização de um sonho incompleto, pois aquela nunca fora a pessoa que eu queria, que eu quis: o nome e a pessoa sempre foram outros; mas neste ponto quem surgia era o antigo falando em Suzana e o passado... Mas o novo é quem queria comandar e eu não tinha o menor afeto por aquela nova mulher: somente o prazer surgia Silvana: ela nua, agarrada comigo em meu quarto e me emprestando momentos não realmente meus, mas que fizeram surgir este que sempre foi... o mal. O mal que pensava com desprezo sobre os outros ao redor e só distinguia em Silvana uma mulher com sexo disponível para ele, para mim... Penso nesse momento... nesse exato instante... no que fiz e no que deveria ter feito; dentro dessa criatura mal criada por mim mesmo; de tão pouco sentimento 520
por si mesmo, e que sou eu... Talvez sendo aquela época a verdadeira criação de minha imaginação, pois via as dores surgirem nos outros como em mim, na mesma medida cruel do que surgia em minha mente...: o papel em minha mão, na sua textura, seu contexto (aqueles sete números), tudo que a voz me dizia naquele momento, e mesmo a distante conversa de Simone na mesa próxima... Um verdadeiro sonho real, de imagens somente por mim construídas... E como penso hoje: o novo (e mal) tinha de ser o feliz vitorioso naqueles dias, para exposto sair perdendo, mesmo que ainda disputando com afinco o controle de mim mesmo e de minhas ações... Naquele dia ele venceu: rasguei o papel e joguei no lixo... Eu sabia que Silvana voltaria a ligar... Logo. ### A música dizia: “Nós não precisamos disso, é tudo criação!” Imagino que quando eles criaram isso não imaginavam o quão faria sentido para mim agora. Meus amigos de banda Gridlock... A letra era em inglês. Mas fazia sentido para mim, mesmo que eles tenham alterado a letra depois para a gravação da música em estúdio. O que me importa ao lembrar agora deles, e principalmente dessa mensagem 521
contida naquela canção, é o que tem em verdade nela em mim: em todos esses miseráveis dias de vida que agora se recompõem na memória de um verdadeiro monstro... Nunca precisei de nada daquilo, referindome a Silvana e todo aquele período, pois na verdade era tudo uma criação: tinha que ser pelo que acabou representando, se tornando até o fim como foi... Porque tudo que sempre precisei fazer foi apenas criar: somente quando a criação, ou criatura, se tornou maior do que eu próprio, criador, foi que outras necessidades surgiram... E neste começo de lamento de memória onde se encontram Beto, Marco, Romero, Suzy e outros... é aqui que consigo visualizar o exato momento quando eles começaram a desaparecer do meu interior, como a perda de um órgão vital para minha sanidade: estava os matando a cada momento em que não estava com eles, e mergulhava num trabalho que não mais me comovia ou entusiasmava; e na pior das imagens do que começara a fazer com Silvana nos poucos momentos de nossas visitas de um ao outro... Pois não conseguia mais deixar inerte este monstro que agora enfrento com arma em punho e coragem, e medo, no coração para ver quem realmente será o merecedor da vitória, e este nunca poderá ser eu, pois é para mim que ele sobrevive... A música estava certa: não precisava disso, era só 522
criação... E o que eu criei estava vivo, ascendendo para outras regiões, de prazer, não mais de desejo; querendo viver junto comigo a realização do sonho...: o meu maior medo. Mais um dia no escritório... Pelo interfone: -“Silvana novamente!” - Abaixei o fone e fixei minha visão. Estava calado e pensativo no que podia e não podia dizer... Simone observava com alguma apreensão: já vira a expressão antes em meu rosto, comum nos últimos dez dias, e começava, com razão, a não mais compartilhar do meu comportamento. Também aguardava... - ...Eu não disse que ia ligar. Disse que ligaria quando pudesse. Você mesma se convenceu de que seria hoje... O dia nem terminou ainda... - Como você pode afirmar isso?... Eu me importo sim. Só não faço disso o centro de minha vida... - Não faça isso! Se você vier aqui, eu termino... Não preciso nem falar nada... - Eu sei. Eu faço... Não insista... Somente amanhã à noite. - Não. Eu não vou dizer isso... - E ela desligou em minha cara. No momento que pus o fone no gancho senti as perguntas e repreensões surgirem 523
na cabeça de Simone. Tentava fingir que só estava prosseguindo com meu trabalho, mas seus olhos ofendidos de mulher solidária atravessavam o espaço entre nós e me encontrava sem desculpa para o que vinha constantemente fazendo com Silvana, também sem o menor propósito de importância para o que quer que tenha sido pensado por qualquer um. Estava com a satisfação comum e estranha dentro de mim por encontrar aquela resposta no final de quase todos os dias. Parecia como se a memória não mais funcionasse para aquele intento, pois o momento de cada realidade era o que deveriam ser as lembranças e a imaginação... Somente que só funcionava para mim o tal danoso jogo de carne e sentimentos, no qual para mim era somente a carne... e para Silvana eram os sentimentos... Posso ver olhando para trás que realmente não sentia nada além de prazer no corpo, mas nada me importava em querer admitir que ela pudesse estar apaixonada por mim. Talvez estivesse, e provavelmente muito magoada também estava por ser deixada sozinha na cama todos os dias após o sexo... Nunca nem dormi ao seu lado. Além da primeira vez... Pois, ou sempre levantava e ia embora, ou a levava embora... Posso sentir como o desprezo surgira de dentro de mim nas poucas palavras que usava para me dirigir a ela, e o quão triste eu a via silenciar diante 524
de mim. Imagino o quanto em mim de amor restou naquele tempo: de tudo que eu havia acreditado para estar perto das pessoas que amava, mesmo com dor... para uma fabulosa distância de corações quente e gelado presos à mesma cama em tantas ocasiões... Penso no quanto fantástico e fantasioso pode ser o amor para aqueles que se vêm apaixonados; como se tornam crentes nas visões do impossível em suas mentes tão cheias de uma química inexplicável, que nos derruba e faz lutar ao mesmo tempo que nos toma para a força de um simples gesto: como um beijo, ou uma palavra... Naquele dia Silvana tinha me pedido para dizer que a amava... Eu não disse. Nunca disse isso para ninguém, verdade ou mentira; não esse “sacrilégio”, no que eu vejo que é o amor... Pois nele ainda falarei, e com ele estarei. Deixado de lado o que quer que Simone tenha pensado de mim; o que provavelmente não era nada de bom, pois nossa amizade se comprimiu rapidamente em seus pensamentos e ações, muito menos antes do trabalho. Mas que este continuasse... Ambos ficamos frios... A conta do Sr. Alfredo Guilherme se avolumara, como era esperado. Mas dúvidas estavam surgindo de para onde estava indo o dinheiro, pois era tanto... Os dois sócios haviam convocado uma reunião para segunda-feira à tarde; comigo, Simone e o Sr. Alfredo 525
Guilherme... Ambos foram corretores financeiros quando jovens e começaram a fazer consultoria para alguns clientes de fora: algo como o que eu e Simone fazemos, só que sem a propriedade do nome de uma verdadeira empresa como é hoje, com seus próprios nomes emprestando a notoriedade e a credibilidade. Estavam os dois à mesa. Todos nós em conjunto para ouvir os fatos do que vinha acontecendo com a conta em questão, do Sr. Alfredo Guilherme... Até hoje consome um fato interessante sobre a situação... Seus relatórios de situação e acompanhamento não passavam pelos dados entregues por nossa atividade, principalmente por Simone que autorizava ou recusava a maioria das recomendações de aplicação. Eu não vinha sendo muito atento naqueles últimos dias até que notei a recusa dela a uma de minhas recomendações: ainda tinha a confiança do Alfredo Guilherme, e sabia que a ação em questão seria muito lucrativa, mas de algum modo fora simplesmente suprimida das informações apresentadas na reunião... O que de interessante me fez atentar em toda ocasião foi o silêncio de Simone... Eventualmente ela seria responsabilizada pela insatisfação do cliente, pelo nível de confiança depositado nela, mas ainda assim persistiam as acusações sobre a empresa e o seu “inocente” silêncio. “Muito dinheiro parecia 526
ter sido desperdiçado. Não é permitido!”. E de uma maneira surpreendente eu via a empresa onde eu estava tão bem empregado começar a desaparecer do mercado; os dois sócios perdiam os seus fôlegos em poucas palavras contra os números tão verdadeiros apresentados; e o silêncio da loura que começava a me revelar que a minha importância em outra vida não ia muito pouco além do que achava de mim: o colega de trabalho... Mal nenhum Simone me faria, e pouco ela estava se importando para o que eu fizesse: outros planos já completavam sua mente; e admiro muito sua esperteza, apesar da pouca ética e fidelidade na ação... Naquele momento de tão singular cenário: uma morte e um nascimento, no mundo financeiro, somente aos meus olhos; tratei de sorrir e deixar, com muita satisfação, que minha imaginação começasse a trabalhar: sem razão que nem sei porque... - Vocês me dêem licença, por favor. - E com um inconfundível olhar de apreço, tive a confirmação nos olhos da loura, saindo da sala de reuniões em seguida; deixando o algo de extraordinário que vinha por lá fluir normalmente sem minha presença, para que o que vinha pela minha cabeça pudesse fluir melhor... Na minha sala... Esperando Simone... “Podia ver o Sr. Alfredo Guilherme falar e falar. E podia ver a loura Simone sorrir feliz com 527
a “desgraça” dos futuros ex-patrões. O poderoso homem de dinheiro botava para fora toda sua digna infelicidade por ter tido prejuízo com os investimentos promovidos por aquela nobre empresa que só tinha em mente o ajudar; mas a mente que estava para essa capacidade tinha as obrigações alteradas para si mesma e por isso não fora dada a importância necessária para a conta por meio de quem essa pessoa queria realmente favorecer...ela própria. Pois eram os dois sócios que começavam a se tornar transparentes e invisíveis, que começavam a sumir do mercado para tentar ainda no futuro, se vivos, montar uma sorveteria: uma trágica história... Mas que não parecia ocupar a mente da loura com culpa, pois via, como eu vejo, as palavras do homem do dinheiro se transformarem em dinheiro, e saírem de seus lábios de maneira suave e bela, e aos milhares de notas, sobrevoando como aves em uma revoada circular por toda a sala, e principalmente em volta da sorridente e realizada loura, que teria em suas mãos para controlar toda aquela fortuna, e somente ela teria o poder de opinar... Muito mais do que ter o dinheiro para ela; ansiava ter o poder sobre o dinheiro, a fortuna, as decisões sobre ela em tamanha satisfação e liberdade de movimentos; como sempre quis; para poder prover e aplicar tudo que sabe, e em sua capacidade... Na sala só havia Simone e o dinheiro 528
voando em sua volta, e a satisfação era grande: a velocidade aumentava e um grande rodamoinho de dinheiro começou a erguê-la no ar, como a força de seu poder em sua providência: o que de físico que ele realmente faria por aquela mulher... Fazê-la voar pela sala e pelo mundo, carregada pelo dinheiro do Sr. Alfredo Guilherme. Girando com o eterno prazer, sem a menor culpa pela negação ou traição à empresa que a havia acolhido, somente, sempre voando, cada vez mais alto e mais longe nas possibilidades do vento do mercado; com o grande e fabuloso volume das ações de uma mulher loura feliz dentro de um turbilhão de mais e mais dinheiro... até que sumisse da minha vista, e restasse somente o mar de dinheiro por sobre todo o cenário, como sempre somente se vê nas aparências dos jornais e revistas financeiros... Mas eu saberia quem está por baixo, e por trás, e por toda parte daquele dinheiro: Simone... realizada(?).” A porta se abre e a loura entra. A mensagem terna ainda de um silêncio que eu somente podia compreender... Mesmo por saber que por pouco tempo sobreviveria meu emprego nessa vida; o trabalho parecia pouco importar: até orgulho podia sentir, mas a constante repreensão de quem nunca faria tal coisa, mas que também eternamente contribuirá com a omissão de quem realmente sabe e compreende o 529
que aconteceu naquele escritório naquela tarde... De qualquer maneira nunca me arrependo, pois no fim são todos os mesmos que se alimentam uns dos outros... E os dois sócios provavelmente fariam o mesmo se tivessem a oportunidade... E talvez até o fizeram: trazendo para si próprios os clientes da velha corretora onde trabalhavam antes de se juntarem em favor de um só momento; que ironicamente acabou se tornando este: derrubados por uma loura quase recém contratada, passados para trás e “queimados” diante do mercado... Porém sempre mantendo a arrogância de um poder não mais existente... Só eu podia ver... - E aí?... Foi demitida?? - É claro! - Ela me responde de costas, arrumando as coisas de sua mesa, já se preparando para sair. Podia sentir que ela não queria esconder a satisfação, mas não seria prudente expor-se ali, e agora. - Tenho certeza que logo você se arranja. Seu talento é inegável... Só lamento não poder vê-la mais... - É uma pena!... Mesmo.... Acho que é só isso. - A loura dá uma volta de rotação com os olhos sobre seu pequeno território de tão pouco tempo e de tantas realizações para certificar-se de que só está deixando para trás mais um degrau em sua carreira; talvez para 530
ter certeza que o passo dado fora o passo correto, de que está realmente indo para cima, e não o seu oposto convexo, onde agora vão estar seus dois ex-patrões: que lástima teria sido desperdiçar uma trama tão boa, de um sonho tão emocionante.... Nunca eu soube ao certo. Só me lembro da expressão dela ao deixar a sala, ainda com um olhar circular e dizendo adeus para mim, apenas um velho amigo, um colega de trabalho e profissão, que de certo modo também foi usado, mas que cuja importância dada a tanto não foi nada, até inversa; pois sempre saberia que todo meu conhecimento e experiência seriam muito melhor aproveitados por ela, e por nenhum outro, mesmo que fosse para enriquecer ainda mais o dinheiro duvidoso do Sr. Alfredo Guilherme... - Um beijo... Se cuida, e..... Até.... - Talvez fosse mencionar o que tinha feito, ou agradecer o apoio, ou falar sobre Silvana (uma última chance de defesa para as mulheres)... mas simplesmente fechou a porta e se foi; como sei o que aconteceu. Logo estaria eu dali em diante em outro trabalho... Mas antes, ou pelo que viesse a ocorrer primeiro, precisava resolver meu problema com Silvana; e como agora, preciso despertar daquele sonho, que naquele instante se constituía em agora separar o real da imaginação, mas sem ainda a certeza 531
de um outro ser o que devia sobreviver, e como não seria expor o pior lado?... Pergunto agora, mas agora saberia que seria necessário, pois a sensação no momento era de fácil assimilação da realidade: algo que nunca o foi, e o estava sendo para mim: viver... mas sem sentido. O que fora de utilidade para descobrir como fazê-lo aparecer: de mim para o eu. ### O cruel é o que mais sofre por sua consciência sempre insone dos crimes sempre cometidos por todos nós... E de nós me vem a razão do que viria a ser a extrema crueldade com alguém vivo que somente sempre quis algo de todos o mesmo que eu queria, mas me recusava a conceber pelo presente ou para o futuro... Com quem realmente eu estava sendo mais cruel: comigo ou com a vítima dos destemperos da alma... do monstro?.... Pude facilmente nomear com fascínio aquilo que vinha de dentro de mim sem realmente saber sua origem; ou mesmo acreditar no que era ou podia ser se eu acreditasse que seria capaz de trazer em mim tal voraz criatura..... No momento em que vi trazer as coisas de sua tão doce preocupação: memória de uma Silvana que deixou de existir naquele dia; mesmo, 532
pois quando era a minha frieza e orgulho que tinham que se expor por razão daquela/dessa nova criatura: vive em todos nós provavelmente, mas a superstição transforma em algo de fora, e é supra humano, somente que menos que o Deus. A força extra que o fez se erguer em uma alma já frustrada de tanto se contorcer por regiões da consciência que só parecem ter dor a oferecer.... Sempre me transformando num triste ser. Os demônios que visitam os sonhos e os transformam em pesadelos desesperados: são as maneiras que estes seres interiores encontram para tentar fazer sucumbir a nossa armadura de normalidade e sair livre de dentro de nós; nos deixando capazes do inimaginável cruel concebido por eles, mas realizados por nós.... por mim, quando no momento de sua liberdade. No entanto, porém, a voz da velha consciência começa a ser a antiga personalidade, e se apresenta nos sonhos e nas lembranças imaginárias do quanto tudo aquilo dói quando trazido para o outro lado. A conclusão daquele dia foi o prazer da triste culpa causada em Silvana, por não saber o que fazer para de fato me satisfazer. O cenário foi um grande “hall” de shopping center. Uma quantidade de pessoas no calor de vários momentos pouco significativos na vida de cada um, pois eu via todo o meu redor azulado, como o gelo dos meus antigos pesadelos: sentia como 533
se não tivesse mais memória de nada com esse estranho congelamento de tudo que estava dentro e de repente estava do lado de fora pedindo para se vingar de todos que nunca deram a oportunidade a esse de se fazer real, porque todos sempre negam a presença de seu próprio interior inracível e descontrolado, e que é um só: e as pessoas entravam e saiam, e eram as mesmas; e ele sempre estava lá... Sentado em um dos bancos fazendo tais observações que provavelmente todos já estariam mortos por dentro, e fossem suas vísceras que caminhavam vivas por lá, como eu começava a estar só que em transição, e capaz de desprezá-los e destruí-los a todos com um simples olhar, do modo como alguém não dá a mínima para os monstros que imagina ver a sua frente, deformações, aberrações e pequenos detalhes que lhe não mais assombram, pois lhe são do mesmo mundo.... Via meu reflexo no chão lustrado do lugar, e o que era aquilo?.... Só me pergunto agora no detalhe do meu rosto espelhado junto com o nascer do sol no metal moldado sobre meus dentes e os estrangulando com a pressão e o gosto de quem não repara mais na sua própria beleza.... Mas lá no chão do shopping eu reparava, e admirava com orgulho tudo que eu faria Silvana não mais ter. Aquele reflexo não era mais eu.... Este sim o é. Ela chegara. 534
- Você parece triste. - Eu estou triste.... (Minha reflexão começou a se instalar em mim mesmo; sobre mim.).... Na verdade.... Eu sou triste..... - Só porque você quer! - Não. Não é por isso, Silvana. Eu tenho sentido que em fases dessa minha história, que também é a sua, pessoas comuns têm compondo o equilíbrio de seus mundos a partir do modo com elas vêem os outros. Parece ter sempre existido seres que tenderam a representar tudo que é temido ou julgado como contrário ao que está notoriamente estabelecido: criaturas sacrificadas pelos seus dons, suas visões além do que se pode ver.... Como eu no que vejo agora tão facilmente expresso por estas palavras; que ditas não dizem nada, mas divergem do estabelecido, do normal... E é o que revela o sacrifício, o cansaço e por fim a tristeza. - É um personagem bem árduo este que você está tão arrogantemente assumindo. - Um suspiro bravo e abafado se compõe em sua voz. - Mais que isso, tenha certeza.... Arrogante, contraditório, metódico, paciente, egocêntrico e vil para com um mundo que sinto amar.... mas com desprezo... - Por que tenta fazer isso? - Sua voz tomava 535
um fio de medo aos brados que aquela realidade começava a apresentar. - Fazer o quê?.... Você se refere.... - Você tenta me fazer acreditar numa pessoa que parece não existir nesse mesmo mundo que você sabe descrever tão bem, como amado por você.... Eu só vejo as palavras frias de um homem que tenta fugir.... Eu só não sei ainda do que.... - Fugir era o que queria fazer, pois sentia um imenso prazer em sentir e ver aquilo: no rosto de uma mulher jovem e bonita, a tragédia da incerteza.... E talvez não fosse um erro fazê-la aprender e se afastar. Seu medo se transformou aos galopes em frases gaguejadas de alguém que olhava o tempo perdido no amor de um ambiente hostil de um homem com muito pouco interesse em partilhar sua vida... com qualquer um; em uma opinião: ela teve sorte. -.... Será que eu faço realmente tão pouca diferença pra você?... A tão forte o ponto de você se representar em outro mundo como sendo somente seu....? - É somente meu! - Tive certa dúvida no que Silvana estava começando a pôr para fora além da tristeza. Eu vi a primeira lágrima escorrer por um rosto que começava a viver um pouco mais de uma vida já naturalmente cruel, mas que de mim tinha que 536
vir prover um pouco mais e sem a real necessidade do que eu era: gostava e não gostava e sentia a criatura se aborrecer comigo, fazendo revelar na minha mente imagens novas de velhos sofrimentos.... Lembro da visão da lágrima se cristalizar e refletir todo meu rosto, completo e inteiro como não poderia numa gota tão pequena da dor de uma mulher: era o espelho que surgia do meu quarto e eu estava nele, dentro do espelho, começando a não mais admirar a mim mesmo e sim admirar o interior do quarto. Escuro mal iluminado, pouco claro como a confusão em minha mente que ainda sentia as pessoas passarem no hall do shopping enquanto fazia o corpo se mover em direção para fora do espelho. Preso ao guarda roupa como uma pequena janela de observação de um presídio, somente que o suficiente para quase todo meu corpo passar. Senti toda minha transparência evoluir para o lado de fora onde somente pude ver no conteúdo azulado da cama a criatura escura que podia me transformar, mas que na verdade não era o eu que se expunha, e sim o que se escondia do mundo com medo da dor: este outro quer dominar, e a visão minha e deles dois me acobertaram de luz com a lembrança de mim mesmo sentado em frente àquele espelho chorando.... chorando por Suzy, pela falta que me causava e que me causou naquele dia.... Fazendo a 537
lágrima também escorrer em mim, mas não para fora, e sim para dentro.... Talvez a lágrima de Silvana fosse tão fiel e dolorosa quanto a minha, mas eu não queria mais saber.... A lembrança já tinha se ido. - Eu só queria fazer parte dela também.... Mas bem se vê que sua resposta já se fez. - Não..... .... É - De fato era verdade; eu só não sabia porque. - Saiba que esse seu mundo não é só seu.... E ele faz doer muito nos outros a medida que existe.... Não é o que você diz? - Você não pode... estar.... - Bom.... Afinal, você nem sabe..... Ou está fingindo não saber. - Você deve ir, Silvana.... Deve ir. - Ela se levanta arrumando a bolsa. Limpava o rosto com um certo ar de graça que tocava o meu olhar quando eu percorri no mesmo instante do seu movimento para se levantar.... As lembranças de múltiplos rostos como aquele me percorreram naquele momento e me percorrem agora: há neles um gosto estranho de desespero que faz tremer e amedronta os mais fortes pelas consequências que podem causar simples palavras nos ouvidos sensíveis dos seres humanos que amam, vivem e sofrem no mesmo momento em que outros, como eu naquela hora, só têm a oferecer o que 538
não têm de bom dentro de si, e de esperar que todos paguem, menos ele próprio por simplesmente ser mal.... Queria não ter tanta dor em minha consciência, e sempre vai parecer, como parece, que nunca fui eu.... - Quantas.... (um sorriso sarcástico).... É um elogio pelo seu talento.... Quantas mulheres você já fez chorar?..... - E ela se foi sem ouvir a resposta.... - Você foi a primeira. - Afastava-se de onde eu estava, mas era eu quem estava cada vez mais longe, num anti-zoom da realidade.... na medida dos passos de Silvana até desaparecer completamente na multidão de minhas visões, como somente mais uma visão, e eu permaneci.... engolido pelas minhas próprias consequências. Não saberei nunca o que senti naquele dia.... A segunda mulher que faria chorar nunca chegaria a ver.... Se não tudo do que corre aqui for o fim da batalha real que há em mim agora.... será em vão. Sinto por ela, e sinto por Silvana, agora. Mas a batalha precisava ter um oponente que se pudesse identificar, visualizar e encontra uma fraqueza a altura de seu incrível poder sobre mim, que era alvo.... Os dias seguintes àquele foram como uma espécie de desgosto contínuo; uma fadiga, ou preguiça de fazer qualquer coisa. Estava sem 539
trabalho, como havia previsto sobre o ato meticuloso de Simone em cima da empresa onde estava. Não estava tão preocupado ou ansioso com isso ainda: logo teria meu próximo e último emprego, e fora o que se tornou aquele trabalho: emprego. Pois meu trabalho se construía em renda, e só faria sentido se fosse para mim, e isso nunca me interessou; nem mesmo antes, quando comecei. Nunca entendi onde estava o fascínio daquilo, se na verdade não se construía ou se criava nada... Somente depois deste meu lamento seria de tal maneira respondido como assim agora o ajo.... Somente dependente e definido no próximo emprego... As descobertas teriam de vir antes por outro modo: daquela maneira enlouquecedora que me abreviava poucas horas de paz, pela culpa do ócio; talvez eu merecesse, e precisasse, conhecer um pouco mais de mim mesmo antes de responder. Minha casa parecia o cheiro da nova geração que surgia dentro de mim com os símbolos dessa nova presente década decadente de tantas perguntas sem sentido para todos, tanto como para mim, sobre a necessidade do instinto de sobrevivência nesse tão amplo momento de tão pouca perspectiva de depois. E assim eu não via o que o depois podia me oferecer: olhava para o meu redor e via o meu interior: algo de um ambiente desajustado, frio e pouco coerente com 540
a condição de se estar; pois aparentemente as reações psico-sociais das minhas tão inóspitas visões tratavam de ser o trancafiamento da alma do ente que deveria dominar: preso às próprias decepções com o mundo real, e preferindo o mundo da minha imaginação.... O problema era o que estava começando a se expor em seu lugar.... Lembro-me bem desse período de reflexão. Não só porque traduziu minha queda final para o fim da beirada em que me encontro por hoje; encarando os fatos, para ter a certeza da melhor ação... Pois nunca fora da minha índole verdadeira fazer as pessoas infelizes. Acredito que a melhor maneira de ser feliz é tornar uma outra pessoa feliz.... Devo ter tentado fazer isso; viver assim por muito tempo em minha vida, sem realmente ter nunca alcançado a felicidade; pois que eu me recorde com garantias francas e claras do sucesso nesta missão.... nunca fiz ninguém feliz; nem mesmo pessoas por quem morreria para lhes construir um sorriso no rosto.... E nesse ponto não mais uma vez deixar de pensar em Suzy, e no que eu fiz a ela, ou poderia ter feito.... por ela; e também a todos próximos..... além desse meu, meu crente, sacrifício, de decisão tão difícil.... Mas as razões das reflexões vêm de muito mais longe: naquele dia; mais distante que mim mesmo, acredito. 541
Minha dificuldade era acreditar no que queria sentir. Andava pelo apartamento ignorando tudo que pudesse me desconvergir do meu ponto de partida inicial daquele momento tão glorioso de descoberta..... É dessa época que tenho a lembrança dos meus “belos” cabelos castanhos escuros se tornando grisalhos como um distinto senhor com muitas preocupações para com o seu; mas que de fato só eram mais uma parte da transformação: refletia, tinha medo.... diferente do pavor de antes, e do temor de hoje; mas a construção da imagem talvez pedisse aquela / esta tal distinção.... Pois aqui estou agora: um senhor grisalho de apenas 23 anos. Quem imaginaria que o olhar para tanto não revelaria tal coisa, e mesmo pelos quais motivos de aqui estar.... Porém sem o propósito na minha aparência agora, pois tanto bem fez para ele, como angustia fez para mim; pois no fim isso pouco importa: era o monstro que vinha de dentro que eu via, e minha “beleza” muito pouco o camuflava: talvez para os outros, mas o ser real que não se via só era visto por poucos, e era o eu que se escondia acuado naquela época: e esse não mais se via... Nem mesmo por mim. Não eu.... A reflexão.... Tão forte é esse instinto de sobrevivência que fazem atravessar uns aos outros sem se verem como 542
se fossem as portas de suas casas vazias.... Como esta.... Não deveriam se preocupar tanto com esse tão sonhado amanhã banhado no ouro dos deuses que eles próprios criaram para seu conforto.... Parece que eu costumava acreditar nisso também, há muito anos atrás...: o que era mesmo?.... crescer, ganhar dinheiro, casar, ter filhos.... Havia aquela menina de cabelos dourados, na verdade deveria ser no diminutivo, mas não gosto.... O coração de uma criança que batia sonhando com todo aquele futuro dourado que mencionara: usava uma farda (diminutivo) azul e branca, uma mochila gigante para seu tamanho e uma vasilha para o lanche.... Quem preparava tudo era sua mãe. Que visão seria essa então de garoto entrando numa escola com as mãos dadas a um adulto que não consegue reconhecer como o pai, mas que sabe que o é, apesar de nem mesmo chamá-lo de o tal. Ele o cumprimenta e deixa o garoto entrar na construção estudantil. Parece realmente grande para o seu tamanho diminuto. Na entrada, na sala de aula, mais um dia; mas a revelação vem daí.... Nunca mais houve “mais um dia”, porque ele envelheceu, e se tornou a mim.... Lembro que nunca beijei a menina; acho que nunca quis: queria casar com ela e ter filhos, e trabalhar. E não vontade de voltar a trabalhar por tão cedo. Sei que terei, pois sei que tenho de sobreviver: só não sei 543
porque... E estou sozinho....: o que era mesmo que eu tinha acabado de pensar?.... Não importa! Se vejo realmente que é verdade que as pessoas precisam se sustentar de sonhos do amanhã para suportar o hoje; o que vem a ser então a minha tão minuciosa imaginação, que vê através da verdade, e transforma tudo da maneira que eu quero que seja.... Penso nisso: quem me garante que Simone realmente não saiu flutuando pela sala naquele dia carregada pelo dinheiro do Sr. Alfredo Guilherme... Eu posso imaginar qualquer coisa e fazer sentir e vibrar a qualquer um tudo que eu conseguir imaginar.... Acho que talvez seja alguma megalomania supra humana que me faz pensar nessa fuga tão rápida e óbvia do ser.... Preciso pensar um pouco mais sobre isso. Não deve ser somente uma reação psico-social normal de defesa pelo fato de eu me sentir tão confuso entre a dor, a solidão e o prazer. Imagino como é fácil tentar ser superior a todos, quando a única coisa que eu tenho é a mim mesmo. Talvez eu deva procurar mais; estudar o assunto; conhecer alguém.... O que me faria realmente ser uma criatura supra humana?.... Gosto demais de pensar assim..... “Minha imaginação”.... Devia ter me respondido naqueles dias mesmo. Já bem antes que agora: onde mais pergunto onde está o meu instinto de 544
sobrevivência maior, pois são outros que dependem. Ou por apenas problemas psico-sociais, como eu mesmo notei; mas era mais forte que isso...: a tristeza e a solidão podem trazer a loucura a muitos, realmente; porém algo de muito mais sério começava a se erguer ali; com a minha sanidade de fato prejudicada, mas com a inconformidade de sempre de uma criatura viva que se reconhece como tal e se recusa a ser posta de volta ao seu estado de inerte.... dentro de mim: como todos nós.... tenta sobreviver..... E ele se perguntava o porquê desse tão forte intento, quando o que tentava fazer era se realizar no tal.... Ainda me lembro da sensação no olhar de Silvana, e era como o despertar.... Triste foi apenas ter de caminhar tão longe para encontrar a resposta tão perto: na imaginação. Lembro no sonho, a data. Eu tenho problemas psico-sociais. Não só pelo que vou fazer, mas também pelo fato de querer sobreviver a mim mesmo sem poder para manter o que venha a viver dentro de mim sob o real controle.... É também pensar somente em mim, e na resolução simplesmente traçar o problema com apenas uma solução.... talvez agora seja; mas não antes.... Pois continuei a refletir, e vi o que vinha a surgir.... Mais daqueles dias... Imaginar a minha frieza: o poder de trazer o 545
que não é representado pelo meu rosto, em algo que só é revelado por palavras pouco ocasionais de mim mesmo, com uma intenção não qualquer, mas a minha que devia se sobrepor a do outro com a aparência de real pouca importância no que eu estava tentando dizer.... Não demonstrar o que existe em si. Está na imagem do que eu posso fazer simplesmente estando sentado aqui... pensando. O estímulo que me vem daquelas velhas imagens é que só me deixaram fraco, debilitado, vulnerável; pois tinha que permear essa necessidade por todos, e não por mim. Não consigo evitar de pensar que o fim do que eu fiz com Silvana fora uma “evolução”, um aprendizado para o que eu poderia realmente realizar se me liberasse dos outros.... Só sinto que os estímulos contém duas vias: a que me faz querer saborear o prazer pelos outros, mas para mim.... E a que me faz querer cegar-me para o que realmente quer representar dentro da minha mente: alguma coisa que realmente eu sei que quer se libertar e fazer-se em outro, completamente diferente, e talvez, sem mim.... Sem dúvida, somente tenho, que me tornei muito mais forte, ou talvez melhor, mais resistente, durante aquele tempo. E tive o estímulo também de começar a estudar, pesquisar sobre o que em mim se prendia como a teia de uma doença terminal: da 546
origem... para entender o presente. Lembro-me bem do som dos resultados não em meus ouvidos, mas em minha já tão desajustada mente de profanos e amargos pesadelos, onde as respostas já pareciam surgir de outro mundo; porém de nunca o convencimento ter sido tão forte, na crença do que eu queria acreditar muito mais além do que minha imaginação; pois esta só queria ser capaz de tudo, porém o outro, e a crença, queriam ser uma resposta: algo de som verbal que fizesse sentido, mesmo apesar do absurdo que foi, o que pareceu... Hoje me sinto no causar das reais consequências, pois as deveria assumir, e as verdadeiras razões do tal, apenas destruir o que quer tão solenemente se convencer.... De volta ao cinza apartamento de “horror”. Meu horror, de desprezo pelo que eu tinha de humano: o amor; pois eram todos que eu parecia querer desprezar... Escondendo-me de mim mesmo, e fazendo ele se revelar. Ele... Guiando-me pelo que estudei: parece me desprezar. Sutil.... O ser supra-humano é um monstro, diferente de todos. O monstro é um demônio. A ancestral vontade de ambíguos encejos entre querer e poder, de medo e realização; de mim não mais traz a voz além do que posso ouvir e eu não sabia ou sei, e com certeza não saberei, o que esta realmente é ou 547
quer representar em minha cabeça: como a batalha (bem e mal): o monstro é um só e parece ser somente eu, em mim, o demônio realmente vibrante que anseia despertar.... Pois em mim o que eu vejo é o confuso tentando se revelar. Onde eu havia estudado sobre tais entidades interiores não importa muito, pois qualquer um pode invadir uma boa biblioteca e fazer o mesmo; como eu fiz: sentado naquele tempo entre perfilhações de mofo e papel, preocupado pouco em se alimentar, ou em como se trajar, para simplesmente descobrir, dentre tantos outros, que criamos o que não existe, ou parece não existir, e por isso poderia se criar do mesmo modo, e se espalhar, e sobreviver... como quando meu pai contou sobre aquele artigo do anticristo nascendo num lugarejo qualquer de um país pobre, e por essa razão todos correndo para batizar os filhos.... De onde surgiu?.... De onde surge agora, e naquele tempo, tanto gosto pelo que se cria dentro de você... Em mim, no caso.... E eu criei, através do desprezo. Foi uma maneira cruel sem dúvida de usar meu ócio naqueles dias contra mim mesmo, pois a tortura permanecia e permanece até hoje, mas porém, mesmo não sendo a resposta, como provavelmente nunca haverá, foi a melhor maneira de fazer revelar uma 548
necessidade de procura por expressão; a expressão de como revelar aquele mesmo monstro, que eu parecia haver descoberto tão vivo dentro de mim, como a dor do amor e da verdade, que eram o primeiro alimento do mesmo.... Admito que no começo fora uma fuga.... Consequências!!! Refiro-me ao que estava começando a pensar, não como em atípicos sonhos de antigamente, naquelas violentas imagens, mas em transposições de dor e... culpa: “A quem....?” Porque se admiram tanto em estarem vivos, estes seres humanos, que nem sabem o que ser?.... Comecei por dizer: “Que não me permita (eu mesmo) descer tanto ao meu nível de pouca humanidade; submerso no lamento de um corpo cansado, uma mente apagada na torpe melancólica do meu ser. “Pois o que eu realmente seria?.... Como conseguem suportar a si mesmos?! (Monstros). Me amedrontei.... Mas o medo maior é quem devia correr agora. Sinto pela minha tão nobre ingenuidade naquele dia. Derramo uma lágrima por este/aquele ser que tanto sofria, e que tanto procurava em propelir tais palavras no pensamento, e acreditar como elas são, de sua.... minha criação, e por isso merecedoras de tal crédito de dar inveja.... Pois eu mesmo me amedrontei..... Criaturas dentro de nós deveriam ser apenas 549
nós mesmo, e nada mais. E eu continuo a chorar.... por não ser. Quem eu estava desprezando? ### Em algum tempo depois....Não podia desprezar o fato de que precisava de um novo emprego. Foram sem dúvida construtivas para a criatura aquelas semanas sem nada por fazer além querer começar a acreditar nas próprias invenções; não podia ver como mentiras os fatos de que começava a gostar de mim mesmo, e que o que ele estava começando a representar dentro de mim era uma sensação de poder: nunca imaginada de ser sentida por mim antes.... Porém, passado aquele anormal parto de um bom moço aos cegos olhos de minha visão feliz, ambos concordávamos que precisávamos continuar a sobreviver..... E eu ainda não tinha encontrado aquele modo para me expressar, e de o revelar. Mentiras.... Talvez sejam o que tentamos construir todos os dias para sobreviver aos mesmo citados, contínuos e sinuosos.... dias. Não houve então abertura na qual não me achasse capaz de penetrar com a plena capacidade de bem suceder. Não me imobilizariam mais os mais difíceis percalços e 550
obstáculos de um mercado com o qual havia crescido com o mesmo período de uma vida útil na qual tanto ele quanto eu chegamos aos máximos padrões das aberturas de possibilidades com as máximas desconsiderações sobre ética e moral.... Somente que o meu único interesse era sobreviver ao dia de amanhã, e dele, do mercado, como por exemplo a bela Simone, era ser cada vez o mais poderoso e significativo. E nesse ponto eu e a criatura concordamos desde o início, pois saímos à rua numa daquelas manhãs de segunda em que ninguém agüenta olhar para cara de ninguém; principalmente nesta cidade que vive e respira um fimde-semana eterno que começa na quinta feira e tem ressaca até as noites de quarta; e atravessamos quase satisfeitos todos aqueles monstros inocentes com dezenas de currículos brilhantes à disposição, para que no fim do seus fins tornassem impressionantes as impressões de todos que fossem capazes de ler aquela tal obra de arte das capacidades profissionais de um mero ser humano; e quem não diria o mesmo.... pois só bastavam nele duas coisas: meu nome e o nome de Alfredo Guilherme. Andar pelas ruas fazendo aquilo só me fazia pensar quão frágil eram as opiniões de todas aquelas pessoas. Ruas cheias de milhões de rostos estranhos que fielmente crêem que são de fato importantes para 551
o mundo e para si mesmos.... Realmente também era um, mas que com crescente desprezo por todos eles via que o que os afastava e os fazia querer serem algo mais do que eram (sem saber o quê) era o que me fazia temer por todos... Tornaram-se estes os momentos em que conseguia despertar da mentira e talvez querer voltar a minha humilde ignorância. Porque se eu era um deles... não deveria poder notar como tal; e essa palavra a ser a razão do desprezo, e eu novamente sucumbia à criatura.... Naquele dia vi os mendigos, como todos; vi os defeitos e preconceitos de uma sociedade em caos, do mesmo modo como em outros dias; vi a insatisfação com vidas amarguradas em sinais de trânsito e elevadores apertados, quentes e velhos, como sempre; pessoas caídas nas ruas imundas, e ignoradas, como a verdadeira imundice que se encontrava lá; eu vi.... as coisas que se vêem todos os dias, e todos ignoram, e se revoltam intimamente se sentido indignados por terem de suportar tais coisas, que não são nada mais que elas mesmas disfarçadas de um mero momento... E admito, agora, era a única pessoa realmente feliz e satisfeita a andar por aquelas coisas e criaturas: satisfeito de contemplar as imagens de um sonho perdido (azulado) e que agora nem é mais o pesadelo que fora há tempos atrás.... Estava sendo somente o mais um momento, e mais assustador do 552
que todos.... Estava gostando! E o que eu tinha de tão especial.... Por somente um nome em meu currículo?.... Não sei a resposta, mas, na segunda feira seguinte eu estava, de fato, empregado. Nada de muito diferente daquela empresa anterior, falida já, a essa altura... Somente que essa somente lidava com rendas advindas de artistas. Pela verdade daqueles fatos naquela época poderia dizer que o talento dos artistas era: pintar, cantar, escrever, representar, e o que mais fosse considerado arte.... Mas nunca era cuidar bem do próprio dinheiro ganho com a arte que tanto lhe dá glórias e respeito, ou não: Muitos desses eram artistas de artes sem nenhuma glória, e não me refiro à arte de roubar.... A primeira foi a sensação quando entrei por aquele novo corredor de escritórios de tantos profissionais liberais quanto me lembrar que existem cursos para tais.... Pois quem ainda parecia comandar era a criatura, e eu queria começar a mostrar a ela que as minhas lembranças de antigos pensamentos podiam ser realmente causticantes para a consciência “boa” que ainda queria existir e respirar dentro do monstro. Salas claras e escuras que se seguiam inaugurações após falências, e a mesma sequência do percurso logo após para dizer que os melhores vão sempre assumir 553
os lugares dos piores e assim por diante; somente que no final só sobrarão os piores, pois se só os melhores estarão lá.... onde todos os piores que foram depostos estarão? No final dessa linha não restariam mais nenhum digno de tal honra, por si mesmo ou pelos outros a quem teriam de servir com seus serviços: e desse modo todos parecem ser completamente inúteis, pois não o seriam?.... Já que os melhores se tornariam tão exclusivos que acabariam por servir apenas si mesmos.... E no final desse passeio novamente eu apelei para a imagem DA MÃE que teria uma sala no final do corredor para abaçar-nos confortavelmente para dizer que estava tudo bem; e mais ainda que da última vez isso me pareceu uma daquelas salas alcochoadas e uma camisa de força... pois no final da imagem só sobrava eu... Cheguei à porta que devia entrar e literalmente consegui ver o futuro daquele modo que acabara de imaginar... E por mais esta... Estava novamente satisfeito... Feliz?... Mais uma vez o monstro venceu: eu vejo na lembrança... Como pude tão facilmente me engrupir com tal mentira, e agora ter de admiti-la como verdade, e ter de destrui-la para poder novamente fazer sobreviver. Admitir como um perigo tão grande que no risco da incompreensão e da dor ter que me livrar das chances no final para ter de matá-la... A 554
criatura que deveria viver. Estava em meu coração... Era quem ocupava a verdadeira e única opção, mas esta tinha que ser absorvida por tudo mais, e falo de Suzy, pois então, tive de pagar... e agora estou tendo de retribuir. A mentira foi ter de acreditar que o amor podia infinitamente ser substituído pelo prazer, e a dor, no outro... Mas não pode, e é a única coisa que deveria importar... Amar. Entrar no trabalho foi a mesma indulgência de sempre, pois logo então estava presente no plantel, e no qual eu me mantive até praticamente hoje... para sobreviver. O momento no corredor não fora apenas mais um. O nome da empresa mistura Arte e Finanças, apenas que em outra língua mais comercial e atrativa, para os aplicadores. Tinha uma sala só para mim. E minha assistente (nunca secretária) se chamava Joana. Minha função sempre fora a mesma. Naquele momento foi que comecei a tratar com a arte literária, ou melhor seus provedores, e especificamente alguns de seus melhores novos talentos que vinham a se emergir no tempo e espaço de suas épocas, em áreas diferentes, e com grandes promessas para o mundo que ainda se exaure pelo novo sem saber porque, e na verdade seja porque nunca conheceu o velho, não entendeu e não quer entender, assim é melhor passar adiante para ver se é mais fácil: pensamento coloquial, mas verdadeiro, 555
de pessoas simples a quem sempre encontramos e negamos sermos nós mesmos... E afinal também aqueles que tive de começar a atender, porém, apenas por um, com todos sem conseguir ter essa tão simples compreensão... E eu que não entendo... Até aquele momento só sabia como pegar o dinheiro e transformá-lo em mais dinheiro sem dar a mínima importância do porquê de onde ele vinha, e a razão porque surgia daquela maneira; e na verdade era o ser do mais profissional... Eu ficava sentado em minha sala, eles vinham um a um, com seus temperamentos dos mais variados, geralmente trazidos por alguém não eles próprios, que se preocupava com as finanças provindas da tal arte, e finalmente o que começava agir era a minha pré-suposta arte... Poderiam chamar de artificio do dinheiro que o digere e o reproduz para a causa somente de outrem, e daí tira sua comissão e seu senso de realização... Mas como já disse pouco se parecia estar se produzindo algo real e útil; o que realmente parecia se erguer eram as acomodações das vontades destes outrens, clientes, que tinham em mente apenas o quão mais fácil ainda poderia ser suas vidas após conquistar uma certa quantidade de divisas... Não via dessa maneira, nem que toda a satisfação do mundo fosse resumida a uma gorda comissão, nunca poderia considerar aquilo uma arte. 556
Tinha na pauta que Joana havia me trazido cinco nomes que deveria atender durante aqueles primeiros cinco meses de trabalho... Era uma prática normal desse mercado, e ainda é, testar novos elementos com clientes difíceis, pessoas de temperamentos instáveis que sempre exigiam demais e se tornavam problemas para o controle da empresa: se o elemento conseguisse dobrar tais criaturas, então seriam provavelmente capazes de lidar com tudo... Não acredito que se possa padronizar comportamentos de seres humanos, principalmente se tratando do dinheiro dos mesmos, mas nunca tive jeito para Psicologia, e essa era a prática regular do mercado... Do meu ponto de vista não muita coisa se alterava: atendia com profissionalismo a todos, não importava o quão antipáticos fossem, ou se tornassem pelo meio do caminho. Minha mesa tinha 2 metros de comprimento por 1 de largura. Era feita de um material que eu nunca gostei, era uma daquelas plataformas de vidro fumê. Preferia a de madeira, como as do meu antigo escritório, com Simone. O vidro está sempre frio, e a frieza do vidro me trazia desagradáveis lembranças de volta: com fortes imagens de sensações em sonhos azulados, igualmente gelados, que como uma forte expansão causada por choque térmico, me faziam rasgar o coração: tudo por uma simples sensação 557
térmica nos braços e nos cotovelos, e que por fim terminava numa mente de recordações adormecidas no calor do tempo... E desse modo eu não sei como ajudou... a mesa; pois também nela eu me refletia... E o rosto no frio, e o frio, só vinham por dar no que é agora... E na época eram ambos com medo... O sol já se ergue pela metade do mar do horizonte leste. Sempre preferi o calor. Eu e Joana dividimos na mesa naquela primeira manhã, na ordem em que viriam durante o dia, os materiais e documentos referentes a cada um dos cinco clientes. Todos me seriam apresentados no decorrer da mesma data, para daquele dia em diante eu poder tratar de seus interesses financeiros: Me incomodaria, e já sabia que iria ocorrer, uma contínua e comum frase desses tão inesquecíveis momentos de profissionalismo e depressão... O momento viria com “o chefe” dizendo após a apresentação: “Qualquer coisa é só falar comigo?”... E eu seria somente um completo incompetente... Não importa! O primeiro seria um típico autor de uma só obra; acredito eu por ver e saber hoje que uma simples biografia da época, muito bem posicionada no momento certo e no lugar adequado, pode realmente provocar um rápido e fulminante enriquecimento daquele que o escreve. Para quem seria já uma pessoa 558
afortunada talvez não importasse, mas no caso deste sujeito o que lhe havia sido de oportuno não veio do alto, mas sim do fato de ele ter freqüentado os mais baixos momentos da desgraça humana de alguém de notória imagem, com a recente imagem abalada por um incidente que de impressionante só era o fato de ter sido ocorrido com ele, a tal pessoa: pois então, somente o tal biógrafo de oportunidade com o poder testemunhal de um grande juiz foi capaz de ver e expor a tal qualificada situação, tirando ele por fim do amargurado empobrecimento, e colocando em paradoxo, o outro, na berlinda dos terceiros julgamentos: uma simples fotografia, uma frase de efeito, e muita publicidade gratuita... culminando por fim com sua total auto-destruição; tendo sido este seu último ato o maior fator de todos para a explosão de vendas do dito-cujo, o qual teria de atender: a qual, mesmo após 12 edições, não tinha dado nada de tão suntuoso quanto a fortuna do senhor Alfredo Guilherme, e sua misteriosa origem, mas de fato em si considerável, pois o elemento nunca mais precisaria trabalhar: isso se é claro seguisse as minhas recomendações, e não começasse a ansiar por excessivo luxo... O que de fato deve terminar por acontecer, pois jamais terá outra sorte igual, e sempre será lesado pelas editoras e distribuidoras... E também 559
não mais me terá por perto. A reunião foi às 10 horas e 30 minutos. Carlos Noberto Paranhos é o nome do sujeito. Fora sem dúvida a reunião mais simples e produtiva; financeiramente falando, pois me oferecera um exemplar de seu livro e fora um dos primeiros que doei à biblioteca pública do estado... Não tive o menor interesse em ler sobre como um famoso e notório político moralista tinha sido flagrado na companhia de três homens muito bem dotados, dentro de uma casa de veraneio, e em posições comprometedoras... Sempre me dá vontade de rir... Mas o caso é que acredito que por mais bizarros que sejam os fetiches das pessoas, contanto que não invadam as liberdades dos outros, cada um deve poder fazer o que quiser... Mas o problema é que também somos dependentes destes outros, e algumas vezes suas liberdades significam o cerceamento dos nossos fetiches.... Talvez todas essas sejam as razões para o auto-flagelo e a auto-destruição; mas nesse caso vejo que ambos: ser o biógrafo, foram longe demais, e pior por isso ambos são culpados.... Só que de crimes ainda não inventados, ou melhor descobertos.... A minha culpa neste caso foi que nunca protestei, somente atendi o elemento, e ele sobrevive, enquanto o famoso tema de sua biografia se matara.... Enquanto também, minha única absolvição fora que 560
hoje o livro que me fora dado está longe de mim. De uma considerável variedade de livros meus, uma grande parte eu doei ao longo desses últimos meses para a biblioteca pública deste meu estado. Imagino eu que estão muito melhor sendo aproveitados, pois em muitos já não via nenhuma utilidade... E nesse primeiro caso: não vi utilidade desde o primeiro momento, e por isso nunca o li, e por isso fora o primeiro que doei, e não me arrependo... E recordome que julguei isso certo. E olhei e senti, e pensei, ao ver o simplório biógrafo partir satisfeito com sua “fortuna” muito bem aplicada... Sobre mais um dos participantes desse mundo... - “Então isto é um escritor??... Que grande valor que há nesta tão bem conhecida nobre arte, que agora tanto te consome, escritor.... Da frágil imagem humana sucumbida por seus desejos, e o oportunismo de mais um!...” E por muito bom que o destino me veio.... naquele dia mesmo descobri que ser escritor não é assim, não é só isso, e que havia algum valor. Muito.... Imagino....: “o jovem e curioso Carlos Norberto surgir numa das janelas da afastada casa de veraneio daquele eminente político. Corpo e mente pequenos que se ajustam cautelosos ao ambiente para fotografar e logo após descrever algo que provavelmente o 561
excite também, por tanto conhecimento que tinha em apresentar os detalhes daquelas aventuras (partes foram colocadas em jornais e revistas, levando a mais e mais vendas) e também por estar no lugar tão certo e na hora mais certa ainda.... O que não veriam os olhos dele ao estarem brilhando com animação ao assistirem quatro homens despidos, de moral e preconceitos também, se tocarem de um modo que o mundo não quer ver, mas quer ver e paga por isso... Talvez, ainda acho, todos mereçam. E o brilho nos olhos dele iria dominá-lo a tal ponto de ele participar da ação, e por fim se queimar totalmente e se consumir no próprio brilho que o tomaria em que ele seria o fotografado, o exposto, o alvo....” e não o oposto. Deve ser mais um lamento por nós todos. Mas começo a entender que as pessoas não são personagens: elas sentem por algo mais que não pode ser exposto. E deve-se esse respeito, escritor, ao ver que não são todos como aquele que acabara de atestar e representar em minha imaginação: algo daquilo talvez jamais acontecesse.... E só fora mais tarde naquele dia que conheceria este porquê, de respeito, que o primeiro não tinha tido, e que por isso me revoltara; e de responsabilidade na intenção.... Outro homem: o escritor. As coisas que aconteceram, e que foram 562
verdade, principalmente nos sentimentos; e também as que estavam acontecendo: talvez uma autopiedosa mentira.... Foram apenas o caminho para o que vinha. E o nobre retorcer da realidade misturada em sonhos e uma virtual imaginação acabariam por se encontrar agora nesse final processar de verdades bem expressas.... Mas ainda assim era só a metade do caminho.... O que tenho de ter em mente agora é que a mentira maior não era ou é a do escritor, e sim daquele que o estava por dominar, quase completamente já.... O monstro já vinha com poder, mas o pior da mentira ainda estava por vir.... O que é a verdade; e não mais minto para mim mesmo..... Respeitar a quem quero amar: e morrer por isso. Mais três vieram. O primeiro destes, e também os outros dois não tiveram nenhum grande atrativo que mereça a grande decisão de serem por aqui logo citados; pois só via em todos algo de muito familiar em relação ao Carlos Norberto estreante: algo de alvo em oportunidades e pequenas convenções que só traziam à época vigente um grande poder e possibilidade para quem tivesse a chance e a circunstância para fazê-lo. De fato seus sonhos e seus temas pouco importam, pois logo seriam esquecidos e substituídos por outros, que fariam mais ou menos dinheiro, mas que teriam a mesma utilidade: no mercado literário.... Toda. E na 563
literatura.... Nenhuma! Porém todos tinham um grande zelo pelo dinheiro gerado pelo seus tão nobres e grandiosos trabalhos, quando o que funcionava era a utilidade da obra, e não eles.... Mais tarde, e agora, poderei dizer que uma obra literária não precisa ter utilidade: é auto-sustentável, e em qualquer época, por si só.... E por esse grande zelo, todos decidiam que conheciam muito sobre investimentos e mercado financeiro. Quando não, na verdade: e nesse momento só consigo me recordar de um dos indivíduos dizendo: Eu pesquisei muito sobre isso! - Sua aparência pouco importa. Só se importava de fato em parecer extremamente culto... sobre tudo. O tema de sua obra era algo que passava pelo tal não citado e pouco importante mercado, e por isso ele se achava apto em dizer que o seu volume de investimento era suficiente para tanto; quando no entanto era ridículo para tanto.... O que ele tinha na verdade feito era observar os procedimentos e os comportamentos de os seus verossímeis personagens e acontecimentos, e isso não ensina muita coisa sobre nada, apenas lhe dá o poder de descrição, e comportamento... Enfim nas capacidades e talentos, verdadeiros, terminou ele por se calar; somente após longa incursão neurolingüística que o fizera entender que o que eu sugeria 564
de seguro para o dinheiro seria realmente o melhor para a sua feliz durabilidade, rentabilidade, e no caso dele, utilidade: que nobre no final, seria talvez... Fazer seu próprio selo e continuar escrevendo, pois talvez soubesse que não mais seria capaz de produzir outro produto de consumo como aquele outro, e sim teria de começar a se repensar e sobreviver... Talvez para isso consiga, pois conhece; ou não, pois como ele existem já outros, e outros existirão: Editoras de pouca posição e oportunistas.... Vinganças e falências dos pequenos autores... Seria um deles?... Se não!... Mas ele fora embora. E eu o vi sair. Já com boa parte da minha paciência por se esgotar com esses falsos intelectuais, que dos mesmos só tinham o semblante do estereótipo das palavras arcaicas já não mais usadas, e o arrogante “poder” de querer saber sobre todas as coisas... Como antes, agia profissionalmente, mas já minha pouca esperança se esvaia de ter algum momento de sentido em tudo aquilo: seria realmente apenas sobreviver?.... Olhei novamente para o livro do Carlos Norberto estreante, e pensei repetidamente que sim... E me ouvi novamente, na voz do monstro dizer que o que valia não estava nunca ali, como em nenhum lugar... E acreditava.... Talvez esteja agora aqui, criatura, quando você se tornar real. Não fora imaginação quando Joana me veio e da 565
entrada da sala notara uma deprimente expressão em meu rosto. Deprimente e cômica talvez aos simples de coração, pois dela me veio outra capacidade... E eu estava realmente distante naquele momento: nos pensamentos do que deveria esconder, expor e ser o que devia ser no real... Joana era uma jovem branca, pálida ao extremo, de cabelos lisos pretos, muito pretos ao total contraste com a pele; usava óculos e tinha um sorriso tão inocente que de mim agora dá pena saber alguém no mundo como ela... Pois com os horrores da realidade aquela face não nunca combinarão... Entrara na sala sorrindo. E com o auxílio dela estava tranqüilo para a mesma função. Dizendo: Com esse foi quase uma “queda-de-braço”!.... O senhor quer alguma coisa da copa? - Aquilo de tão normal me foi tão distante que pareceu-me uma eternidade o tempo que demorei para responder... Joana era formada em Secretariado Financeiro, algo de oportuno também, mas no caso dela a dedicação e talento eram transparentes, e reais. Não era natural daqui mesmo, essa cidade, mas já vivia bem aqui há mais de oito anos, e gostava.... Não posso infelizmente dizer “gosta” porque há bem pouco tempo de agora a vi sair com um rosto bem diferente daquele feliz; sair da empresa: provavelmente lesada de suas capacidades profissionais por uma sua particular triste história... 566
Ninguém notara, pois, apenas eu que trabalhava diretamente com ela vi quando uma depois muitas lágrimas a liberaram do seu mundo de fantasia. Aos poucos tive de vê-la sumir e sumir, até me dizer que estivera por um curto e oculto espaço de tempo grávida de um rapaz, e que era algo nunca planejado, e tirara todo gosto do prazer quando o mesmo a convencera de que não estavam prontos para tal, e que a melhor coisa seria realizar um aborto. E Joana o fez. E o mesmo mais clandestino seria impossível. E o rapaz há muito já havia sumido, fugido, quando muito um invasor de outros corpos, como muitos nós homens: não importando muito este... Joana ficara estéril. Com as entranhas retorcidas, uma criança morta e todo seu valor aparentemente desaguado na falta da família distante, e um mundo que pouco ligava para ela, ou qualquer um.... Somente diminuíra de produtividade, e por isso se fora, antes que a mandassem para fora... E isso não foi o pior que aconteceu com ela. Quem sabe onde agora está, Joana?... Logo eu também estou fora, e sinto falta dela. Por pouco a única coisa naquele trabalho; de tanto cuidado e atenção que tinha comigo... Aquele sujeito havia realmente me irritado, e já no primeiro dia ela isso notara por minha expressão e silêncio; e nisso fizera aquela oferta... E fora esse 567
zelo, atenção e eficiência por todo período, enquanto lá esteve... - Não. Nada. Obrigado, Joana.... Entre; vamos estudar os dados do próximo... - Era quem eu queria ter esperado, e agora vinha... O escritor vinha por uma porta que nunca havia existido. Joana abrira a porta de minha sala para a sua imponente entrada. Estava acompanhado de seu advogado: Valter Lázaro, um que de mais tarde apresentará mais que sua importância.... Era homem negro, de razoável estatura e tamanho, com um alinhamento impecável por ser a sua representação, e uma seriedade no tratar dos assuntos de seu cliente que mais ainda me surpreenderá sua amizade pelo mesmo. Numa proteção que já pela sua presença fizera notar que algo de mais sério poderia vir acontecer... Como fora e como é. Sentaram-se a minha frente logo após os cumprimentos e apresentações devidas ao momento e ao protocolo. Joana se retirara após os praticados oferecimentos e reverências: nada quiseram além de água para o advogado, que sede tinha pelo calor. E logo me surpreendi com o silêncio do escritor. Falara muito pouco de seus bens, ganhos, obras, ou qualquer outra coisa que se tratasse do assunto da reunião. Toda temática financeira da reunião fora tratada por intermédio do advogado, que 568
tão profissional quanto eu, somente tentava procurar os melhores investimentos para o seu cliente, e também meu... E mais tarde descobrira a amizade dos dois: tão longa quanto as suas respectivas carreiras, e extremamente fiel. Valter verdadeiramente, e como consciência, sabia do que se tratavam cada um dos elementos discutidos; e por isso, por fim, as melhores soluções foram encontradas para os problemas ali propostos: o que de fato não são tão importantes quanto o próximo, mas há de se ressaltar que este, o escritor, era o que menos volume de renda tinha para ser aplicado, e logo há de se compreender porque; pois talvez por isso o tão sério cuidado e seriedade no seu tratamento, e também a importante menção e reconhecimento do que era aquela amizade.... Algo que não posso deixar de confiar: meu advogado, meus amigos, e este último momento por eles, sem eles, na memória, imediata.... Somente o escritor entenderia. Era alto. Com os olhos de uma visão que podia ver além do que algo mais atrás de nossas sombras pobres mortais. Havia uma relação penetrante entre ele e o ambiente que me faziam facilmente escorrer para sua mente, e de repente estar em lugar tão diferente quanto qualquer um outro, menos o lugar onde estava, no caso o meu escritório. Quase perdido entre o meu trabalho e a curiosidade que era 569
ser observado e estudado por aquele tão estranho ser. Tendo a pele totalmente descarnada por aquela mente e imaginação assombrosos ao ponto de ser a verdade, na verdade, tudo de absurdo que ele podia pensar... E no fim de tudo sempre era... Era pálido ao extremo cinza; bastante diferente de Joana ao abrir da porta: era mais algo de parecer sem vida, para assim poder absorver as vidas dos outros, e assim escrever tão bem o que vinha de tão segredo nas dores de nós todos... E eu sentia como se pudesse ver os dois que lá estavam: por um movimento ambíguo de cabeça, uma frase cortada ao meio pela hesitação, ou um simples olhar de lado para o estudo de seu objeto; sentia-me dissecado por dentro, mas com um prazer imenso de começar a fazer parte daquele mundo tão particular... Talvez quem poderia começar a se incomodar seria o monstro, mas nem assim o fez, pois também fascinado estava: seduzido, como eu, pela diferença, e pela semelhança.... O jeans rasgado, a camiseta preta lisa, o tênis já muito usado, os cabelos compridos já de um antigo padrão de descuido, e um resplandecer de aparência que vinha de dentro; e por ser de certo modo sombrio sem ser clichê ou parecer um estereótipo fabricado; que deixava-me louco e irritado com a paixão ardente do monstro e com o extremo pavor do outro ainda em mim... 570
Com o quanto poderia se descobrir sobre mim, ao me observar, aquele a quem deveria monetariamente auxiliar, pois era meu trabalho.... Mais que algo em que eu podia me ver, sem dúvida: principalmente após a minha leitura: aquele era realmente um escritor... Das dores possíveis vividas, das várias mentiras tão bem verdades quanto a própria da vida, um senhor jovem de olhar firme e morto ao te atravessar para imaginar o que te está pelas costas por trás de uma alma que mais para ele está, que o próprio corpo em frente.... O que não era ele, o escritor?.... Fora no momento pouco antes deles saírem que tinha que me predispor a dizer o quão curioso eu estava por razão daquele misterioso ser de um comportamento tão fechado e inóspito quanto um poço escuro e sem fundo de interrogações e dúvidas, e ao mesmo tempo de uma aparente iluminação no modo de ver o mundo que só podia me ver como a escolha de entrar dentro daquilo.... ler uma sua obra. - Será que eu podia ler alguma coisa sua? - O escritor e seu advogado se reservaram um momento de olhar e palavras não ditas para depois voltarem até mim. - Claro! - Disse o escritor. Já de pé ele se aproximou da borda da mesa que estava do seu lado e apanhou um pedaço de papel em branco, dos que 571
eu uso para pequenas anotações como um nome ou telefone. Observei-o escrever duas palavras curtas no papel, e logo em seguida ele se erguera e estendera o braço para me entregar o papel do outro lado da mesa. Estava de pé perto de uma das extremidades da mesa: estava indo ao encontro deles quando falei, e eu peguei o pedaço de papel. Estava escrito o título de um dos oito romances do escritor. Largou a caneta de volta na minha mesa e me assistiu admirar o pequeno pedaço de papel e as duas palavras nele escrito. Voltei a olhar para os dois.... - Está à venda em quase todas as livrarias. Disse com um simpático e despretensioso sorriso no rosto.... Era evidente que eu iria comprar, mas ainda naquele momento admirei uma coisa: o verdadeiro valor de um escritor e sua obra, que não simplesmente oferece o sofrido retorcer de sua mente em palavras que querem dizer alguma coisa, como muitos outros. E este como poucos que a isso valorizam sabe que o primeiro é o interessado, e não o interesse pelo que vem de fora: palavras que realmente tinham significado, e não apenas... um livro, um produto. - E sobre o que é este aqui?.... - Disse, me movendo meio desconcertado na direção dos dois, já perto da porta. Estava começando a me sentir um pouco estabanado com a situação, que penetrava 572
em minha cabeça com uma lentidão particular, de quem parece ver e sentir um momento de estranha semelhança com um outro mundo de tão familiar frieza e naturalidade, que assustava e atraia para mais, a cada momento mais, tudo ao mesmo tempo: negócios fechados e momentos sublimes de decoração de como tudo começava a ser como é hoje... Pois nele também, o escritor, as coisas vinham naquela velocidade e alucinação: não mais nenhum momento simples, pois em cada um, e em todos, tudo estava acontecendo, e eu estava começando a querer viver assim também: como um eterno último amanhã, com todos os momentos presentes inertes, sem nunca depois, que sempre tanto temi... - Sobre todos que vivem na escuridão e não sabem... Você vai aprender em minha linguagem... (Na pausa eu olhei para o calado e atento advogado.)... Sobre um mundo que tem que se ver de outro mundo... fora de si... Para se entender melhor visto de fora: estar ausente na própria presença... De uma mente inovadora que ninguém compreende, e a qual todo mundo teme... Sobre mim mesmo e este círculo que você começa a ver com tanto fascínio... O outro mundo onde você tem de penetrar, temer, entender e se apaixonar... para ver, no final, o mais óbvio... - Sentia-me num absurdo e paralisado momento 573
de expectativa para o que aquele homem iria dizer. Gélido pelo seu olhar, despido e contaminado pelas suas palavras e modo de dizê-las; como não podia ser aquilo... - O quê? -... Que é sobre você. - Meu olhar se perdia. - Até logo! Nos veremos! - E saíram ele, o escritor, e o advogado: sério, mas também admirado, pelas palavras do amigo, e pela minha expressão... Nunca conseguiria expressar a sensação daquele dia, além de ser uma grande transformação: como que arrancado de vez de uma cama quente e jogado no gelo como o corpo completamente nu... Algo só superado... depois... por aquela leitura... Joana entrou naquela sala naquele fim de meu primeiro dia naquela empresa, e presenciou o fim de uma época, o fim de uma pessoa ainda inocente e amedrontada com o que poderia vir pela frente; o que eu já sentia que não seria nada de muito agradável, mas algo do qual não poderia nunca fugir... - O senhor está bem?... -... (depois de muito hesitar)... Não! Naquela noite mesmo passei numa livraria e comprei o livro. O que não poderia ter sido de outro jeito, muito além do interesse e curiosidade: uma descoberta para esse resto de vida inteira, que 574
tinha não como não ser visitada naquele momento: admirado com o escritor e seu tão particular mundo, do qual hoje farei parte com uma imensa satisfação: quase esquecendo a dor da transformação, fazendo da mentira verdade, e nas palavras por ele providas a final resposta, de conseqüências, para o depois. A história tinha seu percurso no real interior escuro das grandes cidades; não houve nenhuma grande identificação física, mas uma extrema identidade psicológica que estava em minha volta: está, talvez, em volta de todos nós. Agora... Mesmo no dia... Tratava de estranhos extremos, de extremas virtudes e amoralidades, que se apresentavam inocentes para revelar a fundo um conjunto de almas perturbadas, um desajuste coletivo de comportamento, que se dirigia diretamente a ele, o escritor... E para mim, o leitor; pensando... Quando uma absurda realidade tão obscura consegue ser tão facilmente absorvida por uma mente desprovida de qualquer cultura maior que a sua própria do dia-a-dia, então é o momento quando deve persistir uma tal selvagem identificação que termina por construir, dentro daquele tão terrível imaginário, uma realidade já vivenciada, e presente... Pois foi o momento em que penetrei naquela gótica e instigante história, e me vi sendo a própria história, sendo tão detalhadamente contada de um artífice para 575
uma criatura; sendo tragado e pertencendo à mente de um terceiro, que pouco após se tornaria o primeiro e único, nos momento seguintes em que comecei a não estar mais onde estava e viver com perfeição uma fascinante e violenta alucinação do meu passado, logo após se transformando em presente, e em seguida no trágico futuro que conclui o livro... E foram os mais angustiantes e prazerosos segundos de minha vida, já amanhecendo, como agora, sem conseguir tirar os olhos daquelas páginas, até que o final me veio naquelas palavras, e eu me sentia assustado, frustrado e aliviado, pois conseguia sair daquele mundo ainda com vida, apesar de ter morrido várias vezes, com a mesma dor dos personagens, o mesmo sofrimento dessas vítimas, e também com o mesmo prazer louco da noite que vagava, tinha em mente outro mundo, e que olhando a partir do mundo em que ele se encontrava, na história, era este, o nosso, no máximo paradoxo do absurdo de um lugar que não existe e são todos os lugares, e onde tal homem é um herói, pois livre, e na sua única forma de expressão que restava naquele lugar tão desgastado pelo odor dos mesmos dias no dia-a-dia dos desprezados pela luz (todos nós)... Ele matava, e criava da morte obras de arte e dor; e tinha seguidores, admiradores também, e pessoas que se ofereciam para a sua última contemplação nas 576
mãos do “artista”... Não admiramos a morte?... O escritor via o extremo da admiração. E o louco via o seu extremo desse outro lado. E o leitor se sentia o próprio extremo de toda essa loucura, morte e dor. Foi assim que naquela noite me transformei naquele livro. Após encontrar o escritor tantas vezes me falara sobre um outro romance, de outro escritor, que nunca provavelmente lerei... Pensando bem, aliás, com certeza nunca lerei... Onde num curioso título que recorda altas temperaturas, os personagens, cada um de relevância, se “transforma” em um livro, pois aparentemente ler era proibido, por isso eles tinham que absorver todo o livro, e assim se transformando no tal, pois o tinham, e o eram completamente... Da maneira como fui massacrado por dentro por aquelas tão fortes palavras, talvez, não sei, me transformasse no mesmo... Hoje devo ser este!... O escritor nunca se alterara por nada que dissera: parecia sempre prever todo aquele dilaceramento da lama e dos pudores com suas palavras; mas uma coisa interessante me dissera em um de nossos encontros... que fez todo sentido hoje: - (Você precisa sair de você mesmo e do mundo para conseguir revelar o que está dentro de si e presente no mundo: o que devem ser a mesma coisa, pois são ambas suas criações... Mas é da mais radical 577
ilusão (ou mentira) que se consegue reconhecer a maior das verdades... Ou não!) - E o escritor sorria... com seriedade. Na verdade pensei naquilo e só fiz me amedrontar com as lembranças que me traziam: ter de me propor àquelas imagens (ilusões?) novamente. Mas talvez fosse o único jeito... Pensava: “Tinha um mundo tão incrível assim dentro de mim, quanto dentro dele?... De modo que eu conseguiria expor o quer que estivesse lá dentro... E se havia tal realidade, como poderia querer eu pô-la para fora?.... Para quê?...” E somente uma imagem veio depressa à minha cabeça: o corredor. O que tinha visto e imaginado naquelas duas ocasiões; de tão forte e semelhante com uma grande travessia premente, que revelaria ao que é agora; pois aquele era a criatura tentando encontrar uma saída, uma resposta para os dias e os sonhos, as visões.... E essa era escrever. O escritor se proporá a me ajudar, e isso me dava mais medo, pois via sem entender o interesse.... Talvez ele já via que era um caminho para “a” realidade.... Em mim. “A porta do elevador se abrira lentamente para mim e revelara toda longa extensão do corredor. Portas se”.... 578
### Escrevia. Não tinha nenhuma outra resposta oposta para o que tinha de fazer; de um trabalho contínuo com as únicas virtudes de uma criação: a minha... Somente para um só par de olhos que conseguiam ver o sofrimento exaurido em palavras amargas e românticas a respeito de um mundo que o envolve em desespero e pavor; provocando todo um excesso de visões mórbidas: de morte e destruição, desprezo e vingança, dor e ressentimento para com tudo, e um reprimido segredo do porquê a ser revelado... Sentia-me como num treino. Mas num obscuro conhecer de mim mesmo que só via a luz do meu próprio significado através dos olhos do escritor: talvez até inveja ele tenha sentido... (Me desculpa!)... Pois de mim eu começava a não ver nada além da própria criação pronta, e somente me assustava: como vísceras expostas na manhã de primavera e causando a náusea dos inocentes: destruído o aroma do amor e da paixão... Mas ainda era o começo; pois de tudo aquilo só queria alimentar, e a mim mesmo re-descobrir, uma besta ultra-inflada... pela sua própria imagem. Em noites para mim, naquelas primeiras semanas só havia o prazer de escrever; enquanto nos dias o cansado arrastar no trabalho do dia-a-dia: Joana 579
me questionava e eu não tinha nada a dizer. De seu tão doce e simples rosto, além daquela terrível outra lembrança do destino, só tenho sua eterna e contínua atenção comigo e com os clientes, e a irrepreensível eficiência no modo de tratar cada situação que surgia: cada um daqueles quatro “horríveis” clientes, e o escritor, no qual ela via o imenso prazer de periódicas e constantes visitas: algumas vezes com Valter, para tratar de negócios; e na maioria sozinho para tratar comigo o que tanto me sobressaltava de entusiasmo: o resultado das noites, o resultado das incursões, e o começo do fim... E não sei o que me assustava mais: a noite, ou os dias... Pois via o que tinha, e ainda assim perseguia o fim... E escrevia sobre tudo... Como agora aqui estou (impossível) a transformar minha parte desta extraordinária história na verdade que é (absurdo)... Como o escritor mesmo diz... Tão do lado de fora... No começo... Em mais um dia no escritório o escritor aparecera de surpresa. Não estava com Valter, o advogado, cuja importância tornarei a atentar... Mas não estava também sozinho. Era um nome: Adélia, de uma face com a sincera beleza de quem fazia daquela história, afinal, o seu verdadeiro tom... Com tudo que minha carne tinha para apresentar naquela 580
época, e que veio a muito mais, eu me apaixonei por aquela mulher: ao ponto de me rasgar de desejo, ou o monstro... A namorada do escritor, meu amigo, parecendo a reprise de uma mesma história, mas o personagem já não era eu... Era o toque oposto que tinha que ter aquele gênio soturno para enfim ser o equilíbrio que era ao viver em livre contato com tantas coisas tão estranhas: ele próprio, e gente como eu, e o resto do nosso tão desajustado mundo. O casal entrou. O escritor a apresentou a mim e a Joana. E ambos se sentaram à minha frente. Ele se vestia com o que normalmente veste: não muda, mas sua expressão tinha algo de notável atenção... Em como eu me comportava; e ele sabia, reconhecia o que vinha acontecendo da minha alma até a pele, queimando com a nova criação: na verdade a sua criatura, que ele tentava expor... Mas tinha em mim que deveria ser feito, e não me ofendi... Adélia: ele era uma pessoa diferente no meu mundo, e no dele também; usava jeans como ele, mas no fato e na imagem era uma moldura para um corpo que era realmente uma escultura. Era elegante acima de tudo: no trajar, por mais simples que fosse; e no agir principalmente... De uma impecável educação e delicadeza que seduzia a todos. E atingindo o extremo máximo na 581
sua descrição: a beleza de um rosto inigualável... E fora quando comecei a me ver querer usar aquele rosto para cobrir outro, um do passado, que ainda era presente, mas que naquele estágio da transformação ainda se pronunciava dolorosamente: querendo e não querendo ao mesmo tempo o esquecimento... Deixava toda e qualquer mulher e somente vinha Suzy... Pois que naquele momento começou a surgir Adélia. Naquele dia, era uma quarta-feira, o escritor usara como desculpa para ir lá a devolução de duas pequenas histórias que tinha já terminado de ler... Havia as anotações de sempre: textos, um para cada história; obras de arte em forma de pseudo-críticas, que simplesmente radiografavam a minha inocente carne viva e expunha algo que eu mal via, pois de tão profundo em mim... E era aquilo mesmo: exato no momento em que lia os textos e “me” relia... Algo como o que ele dizia: “O que é isso que rasga seus dedos e risca o mundo que você tem com o próprio sangue coagulado; te provoca tanta dor; e que nunca te mata por completo, por que você a esconde tão bem?... Talvez fosse o que realmente procurava a querer começar a revelar...” Seus comentários sempre me deslumbraram, e sempre eram concluídos com uma interrogação: o que sempre me fez querer a recomeçar a escrever, procurando a resposta... Mas 582
esta nunca surgiu, e nem ele queria que surgisse, acho eu, pois a intenção nunca foi a de revelá-la completamente, mas sim fazê-la discutir: ambos, nós dois, no mesmo ambiente, só que com ele no controle da situação, até hoje... Para que enfim essa então epopéia de destruição... como ambos planejamos... se realize. A conversa nunca se estabilizou em literatura, por não conta de mim mesmo, mas do escritor... através de Adélia. Via que ele a utilizava como personagem para a situação, e ela por si, atuava tranquila como si mesma, trazendo em pauta os assuntos diversos que me levariam à exposição: a importância dos tais não existe além das suas utilidades, pois nos serviam como um enlace três olhares que se prendiam e se aprofundavam cada vez mais... Eu seria a tensão: a apreensão que constituía o território a ser conquistado de uma maneira mais consciente que o que o escritor já havia encontrado no que eu escrevia (a criatura a ser exposta). Adélia seria a tranquila afinidade com o meio por ele construído: uma beleza deslumbrante e uma contínua, mas sutil sedução, que elevava os encantos e as revelações de coisas simples em minha personalidade: peças a serem montadas para construir a verdadeira conquista: eu... Só que, como o escritor já esperava, a conquista vinha do coração (e eu me 583
apaixonava)... E ele era a frieza do ser que vinha com um sabre flamejante para derreter o que já existia dentro de mim há muito tempo, e que lá deveria ter sido deixada com a paz da minha feliz ignorância, que nunca consegui ter... Mas que com muralhas de dureza havia sido ocultado do meu mundo vivo, vivendo em sombras, sonhos e imagens... Ele tinha descoberto, naquelas minhas palavras; mas em mim: o trabalho, as forças de cada momento, a sobrevivência, alegrias e frustrações, tudo havia sido de grande ajuda para a proteção, nada mais que isso. Algo que, pelo fascínio dele, e que o meu medo nunca conseguiu deter, tinha que ser completamente abatido, derrubado e destruído, mesmo que aos poucos, até que restasse apenas aquilo que estava dentro do gelo: a monstruosidade, a paixão, o de apavorante na imaginação, e que se tornava real. Era o começo desse colapso final... Agora... Antes. Três horas se passaram. Encontrava-me completamente tragado por aquela conquista. Era o final do dia no trabalho: Joana entrara na sala pedindo desculpas pela interrupção; lembrara-me que um dos meus outros clientes havia me procurado via telefone, e que informado da minha não disponibilidade voltaria a ligar em outra oportunidade: não tinha muita pressa ou entusiasmo para tratar com nenhum deles. - Se o senhor não precisa mais de mim, irei 584
embora. - Disse ela entre a porta e a sala, sob o olhar de nós três presentes, à sua singular simpatia. - Pode ir , Joana... Eu também logo irei partir. - Por alguns instantes ela me olhou com uma consistente seriedade, meio que pensativa com todo aquele “modelo” de comportamento que parecia emergir do ambiente: notava que sua preocupação era comigo, mas também sabia da importante presença do cliente ali, o escritor... E era dele que se fazia surgir a preocupação dela para comigo, pois sempre o observara com estranheza: talvez como todas as pessoas que o observem atuar na realidade: tão misantropo quanto esse mundo para as suas histórias... E notava que inexoravelmente eu estava começando a me assemelhar com o mesmo: pelas emoções e pelas palavras, pelo fascínio como começávamos a cultuar um pelo outro, e por nossas “obras”... Ainda séria nos olhos, sorriu para todos antes de sair fechando a porta e logo em seguida partir. Voltando-nos uns para os outros, o escritor comentou: - Ela parece temer muito por você! - Acho que ela “gosta” de você! - Acrescentou Adélia, deslocando-me um pouco, mas de fato sendo a verdade: era uma agradável sensação de proteção, que por muito pouco não me punha de volta no mundo 585
real... Porém a minha companhia eram aqueles dois, e no escritor, de outras intenções... - Venha conosco... Valter estará nos esperando para um jantar daqui a uma meia hora. Com a noiva dele... E assim podemos continuar. - É isso mesmo... A não ser que ele tenha outro compromisso... - Eles falavam em minha presença e sem a minha presença: algo de premeditado na mente do escritor, pois devia saber que não tinha nenhum compromisso: nas últimas semanas tinham sido só o trabalho... e escrever... E acho que de fato era isso que eu e o escritor estávamos fazendo, a cada instante daquela vida, como agora; a cada palavra de todos aqueles diálogos, como este... Quase temia pela certeza que tinha a respeito de tudo que poderia acontecer o quanto mais eles se aproximassem, mas começava a temer muito mais permanecer a situação de sombras nas trevas da incerteza: e encarar a imagem dentro de mim começava a atrair tanto a mim quanto já atraía a ele, o escritor... Imagino o porquê de tão criteriosa curiosidade, e tão cuidadosa prospecção: o verdadeiro poder da imaginação. - Eu “quero” ir!... Será um prazer. - E ouvimos após o silêncio a porta do lado de fora bater: era Joana indo embora... Sentia um círculo à minha volta se fechar cada vez mais rápido para uma singular 586
representação de momento que era finalmente fazer parte de um mórbido teatro de verdade, que terminaria por construir esse final ato... Talvez a interpretação dos papéis seja eternamente confusa, pois razões, lógica, ou mesmo sanidade não remetem a esse brilhante fascínio da criação que tomava, e toma... E do escritor: ele é assim mesmo, e no final concordamos... Rapidamente já estávamos no jantar. Era um bom restaurante. Notei primeiro nos hábitos ao redor que uma longa fila de clientes o frequentava com frequência. Provavelmente reservados em um grupo de hábitos que me faziam recordar de todos os grupos dos quais já tinha participado: nunca muito diferente de um para o outro; apenas pessoas que gostam de passar horas juntas sem realmente terem de ser elas próprias, apenas aquilo que lhes é próprio ao coletivo: comer, rir, brincar, beber, ser ser humano... Estava sem beber há um longo tempo, e no grupo onde me encontrava somente Valter bebia: tomava cerveja com prazer inigualável de quem tem o controle sobre a hora e o momento certo para consumir o tal. Com um largo sorriso após dias duros de trabalho: tratava mais ele de causas trabalhistas, e tentava junto com alguns outros jovens advogados sobreviver no mercado: tinha com certeza a confiança daqueles que o mantinham próximo: refiro-me ao escritor, a mim e à noiva ao seu 587
lado, carinhosa, atenciosa e inteligente... Pondo o tom da realidade em dias longos para a transformação da vida no que ela deve ser para pessoas comuns: aquilo: o que havia em nossa mesa de um modo calmo, o que havia na sequência de mesas vizinhas, com excessos e alegrias, que provavelmente causaria grandes dores de cabeça no dia seguinte, mas daria a sensação de normalidade de que todos eventualmente precisam... Encontrar amigos, beber, comer, passar da conta e contar no dia seguinte com a ressaca e a satisfação de contar a todos como foi bom: provavelmente os mesmos que com o mesmo lá esteve. E de tão fácil assimilação por todos, e de difícil compreensão por mim, agora; e fascínio do escritor, sempre: lá estávamos nós cinco... Valter contara sob olhar atento de todos nós, e do apaixonado da noiva, como tinha sido uma aventura dele naquele dia ao tentar levar uma petição referente a um de seus clientes menores para os olhos do juiz trabalhista em ordem no tribunal a tarde. Os reclamantes de menor porte aparentemente tinham uma certa tendência a produzir junto aos seus documentos uma estranha pesagem extra, que os fazia atrasar cerca de um ano na sua tramitação: fato curioso já que os que estavam sendo acusados tinham seus documentos de defesa e pedidos de atraso já 588
presentes na mesa do juiz antes mesmo do caso ser aberto em sessão: função essa do reclamante, e do seu advogado: Valter... Pequena empresa contra grande corporação, algo de mais comum para o começo da denominação do que seria a extinção da pequena... Mas que pelas mãos de Valter não aconteceria tão fácil, pois eles tinham razão: os documentos dos acusados foram considerados inválidos, e sua petição foi aceita em mãos, leve como uma pluma nas mãos do juiz, e caindo como uma bigorna de desenho animado nas cabeças dos poderosos do outro lado, que tiveram que ceder às exigências: ainda não terminou, mas o advogado mostrou seu talento em sua narração... - Essas injustiças realmente deixam o mundo muito mais feio... Pelo menos existem pessoas como você, Valter. - Adélia se pronunciava em respeito ao empenho do amigo... Mas esse era o nosso palco, e era mais uma deixa para o mestre da cerimônia, o escritor falaria: Após os vivos sorrisos... - E o que há de tão belo no mundo, Adélia?... Que precisa de algo mais para enfeiá-lo, além de nós próprios seus cidadãos crentes e organizados na fé de um dia sempre melhor... - ...Quando o dia que passou foi sim sempre melhor. (Eu comecei a completar sob os olhares 589
curiosos e espantados. Quase inconscientemente.)... Nobre ilusão de um amanhã perfeito, com ondas de amor nos preenchendo o peito e dando a harmonia um dia sempre perdida, e nunca jamais reencontrada. - Um momento de silêncio. - Muito bem... É isso mesmo. - Essa frase... é minha!!? - O olhar de Adélia penetrava em meus olhos surpresos: havia uma instantânea admiração por aquela tão pessimista alocução de tempos incertos, e quase sem dono de tão lugar comum, mas de difícil representação para pessoas comuns que sonham, sempre negando aquilo... - É verdade!... Valter, será que terei de pagar alguma coisa a nosso amigo pelo uso de sua criação? - Sorrindo, os dois. Enquanto eu, sério de admiração... - Só se estiver registrada... Está? - O escritor olhava para mim com uma hipnose que envolvia meus olhos e minha alma numa fabulosa descoberta de mim mesmo: na confiança de uma capacidade quase insuperável. - Não, Valter... Não está! - Ele próprio respondia por mim. Sentia-me tenso e absoluto, como que um prisioneiro recém libertado que não entende o que pode fazer com a liberdade e fica parado na porta da prisão olhando o horizonte, sem ver nada, pensando 590
no que fazer. - Acho que você encontrou um rival, querido. - Disse Adélia se desviando de mim, e completando a tensão da cena toda e completamente ensaiada na mente do escritor: com somente a intenção de me deixar perplexo... e eu estava: quando a respeito do mundo me via preso e ao mesmo tempo capaz de criar tal sugestão: a citação. Uma entre muitas que construirão toda essa situação... Do meu presente e futuro, alguns entorpecidos momentos perdido sob a razão da frieza daquele homem, não muito mais velho do que eu, com muitos pensamentos parecidos, quase um vilão para minha angústia inicial, mas que me introduzira ao mundo daquele modo, e sem nenhum arrependimento, da trama, da mentira, e da verdade... até o monstro, eu mesmo e essa manhã. Sentei-me para escrever mais tarde naquela noite. Pensava nas paredes e imagens que me perseguiam, e me deixavam todo o meu redor cada vez menor em espaço única, até quando eu pudesse começar a sair, e escrever... Era como começava: preso. Então arrebentava mais uma corrente: do que eu via lá dentro... Só conseguia ver Adélia, e o seu escritor: talvez outro homem. Minha casa já parecia sumir, como nunca mais existira, uma premente 591
sensação de escuridão e desespero. Tantas dúvidas e o cansaço. Uma paixão que iria se construir pela presença e “ordem” de outro... Naquela noite, só uma coisa consegui escrever: talvez o prólogo de uma história que era escrita longe de mim, fora de mim, mas para mim, e que se tornaria o que tenho... “O estranho é revelar a mim mesmo a tal sensação que veio tão subitamente que meus olhos me atiraram naquele abismo do desconhecido familiar de outros olhos que só me vêm na memória para ser loucamente atraído por um sorriso e beleza tão magníficos quanto a própria razão da criação e existência minha nesse planeta tão fascinante. O que Adélia pôde ser naquele momento foi não muito mais além do que pode ser visto pelo resto do mundo, mas meu mundo, eu, foi dilacerado em 13 mil pedaços e recomposto tão rápido que por aqueles tão mínimos instantes tudo fez sentido e o meu peito se ergueu e se convergiu numa nova forma de vida, um novo mundo que se refaz a cada dia em contradição, certeza e amor.” Surpreendido pelas quase duas horas depois que começara, olhando-me naquelas palavras e acreditando nelas: com certeza oculto, mas se tornava visível por mim mesmo, pois sentira cada palavra que escolhera escrever... E não era apenas isso. Não 592
era apenas uma mulher que via... De pessoas comuns que vivem em seus próprios mundos: vendo suas pequenas importâncias, mas desprezando a todos com toda aquela violência de antes; para isso agora... Não mais escreveria todos os dias, como o escritor antes vira, para o final do processo... Era preciso acordar e reconhecer que algum tipo de maturidade teria de surgir para que toda aquela espécie de obra de ficção tomasse seu critério final de mensagem, e nesse tom tomasse as vertentes da verdade: e assim por mais absurda que fosse a ficção, a obra teria a sua verdade... Era a primeira vez que usava um nome e um sentimento, algo de reais, e construía uma outra situação de inverdade. A sensação se tornava curiosa, não só pelo constrangimento de sentir aquilo e ter consciência do mesmo, mas também por que sabia que era algo que o escritor havia planejado acontecer: já fazia parte de sua história. E acima de tudo eu ansiava que tudo se tornasse verdade, por simples que fosse, nada de agressão: um sonho bom; mesmo na presença do escritor... Porém o que viria seria uma grande obra em peças... Para todos nós. Os pedaços começaram a se juntar nos dias seguintes. Naquele dia Joana e eu estávamos preparando as remessas e os extratos do Carlos Norberto. Havia aplicado o dinheiro dele em vários 593
títulos pré-fixados de média rentabilidade, mas com a segurança que ele exigira: muito acertado, sabia que não deveria arriscar seu dinheiro em nada arriscado, principalmente porque era tudo que tinha... Nunca quis saber o que faria se perdesse aquela “renda”... Acho que ouvi mencionar em uma ocasião que trabalhava com segurança: talvez fosse vigia antes de dar o salto... A mesa e as duas cadeiras da minha sala estavam com os papéis que tínhamos de relatoriar: separados por instituição financeira e por tipo de aplicação... As menos rentáveis não seriam apresentadas, pois por ter sido o prejuízo mínimo, como era a intenção, no período seguinte seria compensado por outros investimentos mais rentáveis: Somente o lucro e daí a comissão da empresa, que seria descontada, era apresentada... e com entusiasmo, sempre. Joana estava sentada no chão, com os joelhos dobrados, com o corpo sobre as pernas, elegante como uma moça; trabalhava numa das pilhas de extratos com a máquina de calcular indo e voltando em somas e subtrações até encontrar os resultados finais. Que seriam adicionados juntos com os meus, que também fazia do mesmo jeito, a mesma técnica para alcançar o mesmo intento... E foi quando ouvimos a porta da ante-sala se abrir. Paramos e olhamos um para o outro. Joana se levantou calmamente para ir recepcionar 594
quem fosse, e já com a mão direita próxima da maçaneta da minha porta, a mesma se abriu... - Me desculpe! - A voz veio entre a porta se abrindo e os dois passos que Joana dera para trás, mas a identificação surgiu antes da imagem, na voz: primeiro dúbia: pensei na voz de Suzana, mas logo me veio de fato quem era: era o presente e não o passado... O nome que estava em minha cabeça era Adélia, e era ela quem surgia na porta totalmente aberta. - Por favor... Entre. (Eu me levantei.) Desculpe a bagunça. - Ela entrou dois passos. Joana prontamente providenciou uma das cadeiras, colocando os papéis que ali se encontravam em algum canto separado do resto. E então nos sentamos. Joana se aproximou dela e disse: - Você deseja alguma coisa? - Não nada. Obrigada. - Ela olhava para meus olhos com uma imensa perplexidade e expectativa... Joana se retirou levando uma das pilhas de extratos para a sua sala, mas antes de sair e fechar a porta deu uma olhada curiosa para mim, com Adélia de costas para ela, e um maternal sorriso para todo o ambiente, dizendo: - Com licença... Qualquer coisa estarei aqui! - Indo... O que aquele pequeno momento de silêncio não me causou de tensão. E posso me lembrar. Adélia 595
se tornava uma sinuosa imagem do cenário único do momento em que se tornara real e entrara em minha vida... Como há muito tempo não acontecia me tornei nervoso e um pouco descontrolado sob o efeito de uma mulher. Uma pessoa que diria que só surgira das circunstâncias e do acaso para vir até mim com uma tão modesta intenção: inesperado, que por muito pouco não me deu o medo da virtude anterior ao ocorrido, que logo se seguiria, mas que sem dúvida muito me fragilizou... Eu perguntei o que podia fazer para ajudá-la... - Não é nada de sério... Eu só queria saber mais sobre você! - A minha poltrona recolheu todo meu alívio quando para trás recostei, e senti todo relaxamento que tal conversa sugeriria. Evidente que o porquê de tal interesse me emergiram como dúvidas, mas o modo suave de sua abordagem havia me tranqüilizado... Pelo pouco que conhecia de Adélia via que sempre seguia muitos de seus instintos; principalmente quando se tratava de descobrir novos e diferentes personagens atuantes desse mundo... Não era por acaso que namorava o escritor: sua extrema curiosidade levava sua mente a momentos de paixão por aquelas tão estranhas criaturas criadas muito além do seu amor. Vi-me sempre como um de seus personagens, e ele sempre criara com essa intenção: 596
automática identificação com um ser interno superior sempre vivente nos nossos corações... E naquele momento o que eu pensava era que havia me tornado uma criatura de alto interesse para ela, e por isso a visita, pois o que os livros do escritor, e o que eu começava a escrever, estavam fazendo mutuamente era me fazer expor, de maneira imprevisível: só não imaginava tanto... naquele momento do que era eu, e como tudo se transformou. Adélia é uma ótima psicóloga, e pesquisadora: que dupla eles sempre foram... E serão! - Que histórias você tem para contar... sobre você?!! - Escolha de palavras interessante e bem devida, mas resumirei na substância, pois como uma boa analista, não podia interferir: apenas em questão sobre questões, e respostas já contêm perguntas, dentro da forma de narração... No mesmo ambiente, em momentos sérios e descontraídos, com uma mulher que me atraía, mas fazendo eu me abrir... E eu sabia que também na presença do escritor; mas nisso tinha de me ignorar e apenas apreciar, e me consumir com o que tinha dentro de mim... como é toda essa história. Verbal... “Não já é mais coincidência que eu viva entre lembranças e criações de minha mente, e não seria mais coincidência ainda começar a misturá597
las, pois terminavam por serem as mesmas coisas: anseios em confrontos com frustrações... Então digo: meu pai morrera. Não tinha muito tempo. Na verdade era ainda bem recente, mas a minha já distância tal que o nível de importância fora mínimo... De construtivo talvez tenham sido suas singelas tentativas de entrar no meu mundo para compreendê-lo, mas sem poder: um fascinado por tudo na vida, mas que a perdera por um excesso de descontrole... de seus instintos sexuais. Pois não era mais que de fato que a forma encenada de sua morte fora o outro algo de construtivo para este que aqui está... e eu já estou contando demais... Pois ele nunca morreu... Imagina que no ápice de sua traição aos olhos de minha mãe: eles, já há algum tempo separados, ela bebendo muito e em excesso suficiente para tal loucura muito anunciada durante a minha terna juventude, tomara para si na completa torpe a arma que fora já do meu pai antes (um velho 38 cano curto) e seguindo o caminho dos amaldiçoados pelo resígnio da paixão fora até o apartamento dele e o fizera tombar ao lado da outra mulher: numa brega e proeminente aventura de todas as famílias que por aqui viajam: na minha imaginação, lembrando desse assassinato, e o mais trágico final dela ainda... Mais real que o fogo os consumindo no meio da rua de há muito tempo atrás... Encarcerada na prisão por duplo 598
homicídio, quase já esquecida por mim, tão cruel; se sentindo culpada e incompreendida, dando por fim de sua vida um fim em sua vida: a terceira e última... Mas de onde estariam as lágrimas: não em mim... imagine: Mesmo antes de tudo isso, um dia ela se aventurara contra os dois amantes, e em defesa meu pai a esbofeteara, com força... Vergonha e tristeza nas marcas do tempo e das frustrações nos dois, pois muito mais que desculpas e rancores tinham de se visitar nesta história: na repreensão de ambos os dois por seus atos, e por suas vidas... Quem mais por isso poderia responder além da senhora morte dona de todos os momentos de paz dos mortais que por aqui são obrigados a viver... com tamanha raiva, revolta e frustração. E olha que o escritor só vira a parte da imaginação... Mas essa toda ficção sem lógica obviamente tem uma razão... Só que não a conheço, e por isso não posso falar dela... Na minha memória surge que talvez tenha uma irmã. Causticante do passado tais imagens uma vez criadas e jamais esquecidas, para que outras reais se fossem da imaginação... Mas essa não é uma delas, apenas algo normal porque apelar, e acho que é real... Mas do que é real?... E a pergunta do amor pareço não querer me responder: uma via estranha parece surgir e não admitir que 599
alguns difusos rostos apareçam e queiram representar algo de tão pouco admissível... por quem sou eu... Talvez pessoas me amem: talvez hajam pessoas que me amem:, mas os nomes querem me escapar ou eu quero escapar dos nomes: pessoas com quem tinha uma pequena afinidade até certo momento que não lembro mais qual, e que parece este... Eles tão perto, ainda por aqui, mas ao mesmo tempo tão longe quanto o meu pensamento... Talvez tenha sido um sonho com eles, e agora eu acordei; ou vice-versa... Eles... Quem são eles?... Mas porém... quem sou eu?... O que sou eu?...” A doce filosofia de uma descrição: de uma fria mentira cheia de verdades emocionais muito bem escondidas, que Adélia tinha intenção de precipitar... Quem melhor ela poderia ser, a namorada do escritor, para lá ficar e me ouvir falar: dizer que meu mundo era o caos, inventado talvez, e somente no que eu escrevia, e escreveria, surgiria a verdade... De certo modo, tinha certeza do que dizia, que de fato até eu mesmo acreditaria... e me faria seduzir. Duas horas fora o que se passou. Joana havia ido embora. E eu feliz em meu mundo me encontrara, tendo na atenção de Adélia por ele só, de tão estranho, a velha e quente sensação da paixão: humana além de minha própria mentira em frente daquela linda 600
mulher... E me considerando no controle da situação... Enganado, pois no medo após me sobressaía a memória do escritor, e o que eu não poderia fazer, e imagino que até isso ele imaginou... Em até naquele final de dia no escritório, quando ela veio, e se sentou, e em mim vibrou novamente a emoção de amar: nada que não mais exponham tanto que isso: uma loucura que vinga do lado de fora dos muros da sociedade, e me faz feliz; pois mais que naquele dia, por enquanto, quis ter Adélia, e ela me tinha em mais do que podia imaginar... Conhecia-me. Tudo que ouvira, ela também, e presa de admiração: verdade... Mas minha “culpa” ainda estava pelo escritor... O dia terminara, e eu já estava em casa, sozinho... O escritor e suas obras eram a mesma coisa. E não pode ser melhor definido o que tinha de tão excepcional naquela pessoa, se não o efeito que tinha sobre todos ao transparecer toda calma e sisudez de um monge que tenha feito voto de silêncio: Suas palavras sempre me pareceram algo de planejado quanto as suas histórias... Sempre presas em ambientes e situações onde o que havia nunca era o que parecia, e o que se alcançava nunca era o que se esperava; somente que de uma forma tão envolvente que ao término de horas de desespero, tensão e incerteza... o leitor ainda se vê frustrado por não haver mais, sentindo efeitos 601
posteriores que o tentam constantemente a querer voltar ao livro e rever tal parte: sempre imaginando que aquilo poderia ter sido diferente, mas preso numa eterna dúvida não consegue se desprender daquele mundo: algo como que envolvido pela escuridão, mortificado por uma hipnose; e o mesmo, e pior, quando na presença do autor... Muitas vezes ele se calava por horas, observando o mundo, e em seguida golpeava impiedosamente a todos com algo que o ser próprio não podia nunca explicar, sempre presente na própria discussão, e sempre com tanta certeza... Imagino que por isso os melhores momentos do escritos sempre foram na presença de mais de duas pessoas... Uma capacidade incrível de absorver do ambiente o necessário para construir o todo: algo de incalculável poder, que seduzia, irritava e presenteava o mundo com pequenas ações de um grande conjunto, perfeitamente bem montado em sua cabeça provavelmente, mas de muito pouco sentido para mortais. E disso reluz a minha certeza, quando me proponho a escrever, quando somente ele consegue entender... E quando sei que foi ele que montou o meu cenário, para minha história, no momento em que me conheceu... Inclusive a vinda de Adélia, naquele dia, e depois... Mais que de mim em admiração sabia que estava sendo parte de uma história: e para a minha 602
própria depois, mas algo de semelhante sempre havia entre nós dois... Suas obras parecem sempre tratar de algo oculto, não revelado na própria obra, que costuma invadir as descrições de estranhas violências e fetiches urbanos, coisas muito absurdas e ao mesmo tempo extremamente próximas das fontes psicológicas dos seres humanos médios das grandes cidades: ambientes e personalidades obscurecidas pelo falso sucesso que se mostra para a sociedade; aqueles que trabalham, que constróem e vivem suas vidas de rotina , quando na verdade fecundam monstros dentro de si, que quando se mostram só anseiam por destruir, tudo aquilo que o manteve preso... Sempre. Contudo, em meu lado, algo de mais na origem começou a surgir em cada pequeno trabalho anterior... E desta, venho a revelar minha própria gênese... Por um hábito quase insensível estava sentado em frente da minha máquina de escrever: a havia comprado com aquele propósito: nunca tinha necessitado de tal aparelho em minha casa... Fora mais um aprendizado e recomendação do escritor: usar uma máquina de escrever, mecânica de preferência, para que o som das teclas fosse mais um composto do momento da criação: o que dava o peso e o ritmo da obra nos seus próprios ouvidos enquanto sua mente viaja por 603
outros mundos dentro dela própria... Funcionava com ele, e comigo também exerceu essa influência tal instigante barulho, e com algo mais por mim mesmo acrescentando: a música... Disse ele que muitas vezes utilizava música clássica; mas eu, em todos os momentos só vi um tipo de som, além do da máquina, o tipo que puxava para trás das máscaras do passado, e que eu não conseguiria parar de ouvir, pois também gostava: o rock louco que agitava o sangue, e move os músculos da garganta até doer... Somente para lembrar que o que eu tinha era um, dos muitos, horrores do mundo... Mas ambas, músicas do universo... Naquela noite foi só o que consegui ouvir: já ocorrido, não mais escreveria daquele modo de antes, porém o hábito permanecia; o que ocorreria depois seria a transformação disto, que agora se dispõe... Mas os fatos do ambiente e da criação permaneciam... Para os seus propósitos: quando a mente viaja e eu sinto tudo ao redor desaparecer: é ele querendo despertar... É semelhante quando os sonhos chegam, e eu começo a imaginar... “As tochas acesas ao meu redor começavam a brilhar e a aquecer com tanta força, que eu sentia que o fogo que crepitava dentro daquele ambiente queimava era dentro de mim. Uma contínua imagem galopante de um outro ser disforme que dançava dentro das chamas e se aproximava 604
com empenho para dentro de mim mesmo, e a minha visão. Podia ver de fora e ao redor que nada mais existia além de mim e do fogo. E só podia dizer que um som também existia: a música de um demônio distante; daquele tipo que havia encontrado nas enciclopédias: criaturas supra-humanas superiores. E algo mais que podia ver e não sabia o que era, que continuei a imaginar...” Tudo sempre presente dentro de mim: sem refutações. Um processo que se dirigia a ambientes pavorosos e lúdicos, que se assemelhavam muitas vezes no mundo real aos conhecidos filmes de T. Gillian: criações absurdas tiradas do onírico; sonhos, sem dúvida... E que provocavam um medo petrificador no despreparado deslumbrante de suas imagens de delírios mórbidos e repetidos, pois se cinquenta vezes mostrada uma imagem comum do cotidiano, como uma criança maltrapilha pedindo esmola, então essa imagem se torna goticamente absurda, em vários ângulos e repetidamente no horror que é a realidade, mostrada de uma maneira surreal, bizarra, mas extremamente assustadora... Talvez por isso seus filmes, e também minhas obras, se limitem a um público muito pouco vasto, que entenda e consiga apreciar o assombro que é... ver tais coisas. No meu caso sei que tenho pelo menos um leitor: o escritor. “E mais uma vez de dentro do rio azulado, uma 605
chama divergente corta o corpo de minhas imagens, não sendo esta mais em mim... e sim agora outra, que povoara a realidade neste dia: era Adélia, saindo das chamas com tranquilidade e expressão, transformando drasticamente os pensamentos, e presenteando o corpo com uma sensação, que metodicamente fazendo-o acordar das estranhas criaturas e lembrando que ainda era um homem, ascendia uma agradável ereção, que fez diluir o fogo e o onírico, trazendo de volta a música próxima e a claridade da luz da sala... E ao meu rosto um gostoso sorriso.” Era a visitante que me chagava à porta naquela noite, a própria Adélia do sonho na imaginação, mas na realidade de mim. Eram mais de doze da noite quando ela tocou. E menos surpreso que deveria estar atendi... Nunca perceberia antes o prazer de estar realmente atraído, e apaixonado, por uma mulher... até o momento em que veria naqueles olhos a mesma sensação parecida. Homens e mulheres no mundo inteiro, e logo na sala do meu apartamento, eu e Adélia: importava muito pouco de que ordem ela viria para aquele momento, pois meu coração já se inflava o suficiente para cobrir qualquer das acessões sobre a história que poderia prover se não estivesse tão entorpecido pela sua imagem: e de fato era verdade, tudo que havia imaginado, pois o fogo já me recobria por completo. 606
Quando a porta fora lentamente arremessada, e batendo com força suficiente para o seu trancamento... Logo onde aquelas duas pessoas estavam a se estudar pela eternidade, sem saber ao certo porque ali estavam, e se perguntando centenas de vezes do sim ao por que não, do que em verdade estariam por produzir... Lembro-me perfeitamente e transporta o momento com perfeição, para a emoção que realmente fora, ao absorver aquele olhar, e esquecer dos “outros” presentes, sabendo que o mundo iria desabar por suas razões e causas, para finalmente num beijo tão profundo conseguir sentir tudo que deveriam sentir os dois seres humanos que de presentes se perdiam, para jamais esquecer aquele momento, e talvez sempre se arrepender... O fogo dela surgia em mim, e estávamos os dois em chamas, do nosso fogo em comum daquele momento, e muito mais que minha imaginação... sangrando uma verdadeira paixão pertencente a uma mentira, uma outra... Adélia apagara todo o passado, e me fizera consumir junto com ela, durante aquelas horas em que o amor se fez. E o lar do meu cenário mais uma vez se tornara presente... Sinto mais uma vez agora a dor daquele imenso prazer: em uma pouca memória de valor duvidoso, pertencente a outra criatura, cuja descendência tive de suportar... Da criatura e da paixão que senti naquela única vez 607
com Adélia, só me fiz encontrar da felicidade um grande erro humano, na própria: estar vivo para ver o depois... Naquele dia: o monstro estava feliz. No dia seguinte... Levara alguns minutos antes de me dar conta de quem estava deitada ao meu lado, em minha cama, naquela gloriosa manhã. Era quem eu deveria estar por querer que fosse. E olhara mais uma vez para ter certeza: era Adélia... Seu rosto repousava tranquilamente onde eu ainda não queria acreditar; alguns fios de seus cabelos castanhos brilhavam ao amanhecer da janela do meu quarto, caindo sobre parte do rosto. Movi-os com carinho, deixando as pontas de meus dedos deslizarem por todo seu contorno. Sentia e ouvia sua lenta respiração ir e vir pelas narinas. Recordava com prazer de como por aquelas narinas ofegaram com os momentos da noite passada: não nada lentos como aqueles, mas ferozes como em mim as batidas de um coração selvagem que há muito ansiava por algo como aquilo... Antes por outrem, irrealizável, mas agora satisfeito com Adélia... Por toda aquela estranha paixão, de estranhas razões... Por toda aquela paixão, de estranhas razões... Mas continuava a sentir por aqueles momentos, a estranha emoção... Ela acordara. Lentamente então. Calma. Com um sorriso... Durava tão pouco de tudo aquilo, e 608
eu só conseguia me lembrar de toda a minha história de realização: havia se terminado os tempos. - Bom dia!... Acho que temos um problema. - Um estranho pensamento para o primeiro dia, mas era o que era a verdade. Adélia tocou meu rosto e me beijou suavemente. Nunca saberei sobre seus planos planejados, mas me aguardava a ser naqueles dias a vítima... Ela não se preocupava, no entanto... - Temos é um compromisso... (Surpreendeu minha expressão.)... O almoço da organização. - E era verdade. Havia me esquecido que este evento havia sido marcado pela empresa para confraternizar clientes e funcionários, quando a coisa que menos queria fazer era estar talvez em público com Adélia e o escritor. Ele me conhecia demais para saber, e ela, provavelmente, então... Mas de fato não era essa a minha preocupação, ou mesmo a calma da mulher... Nos levantamos para continuar a viver: o fato... Minha preocupação era o que tinha em mim dentro da trama: tão bem receptiva à minha própria: A verdade parecia pouco importar para alguém que já vivia como eu... Quem da verdade em alguém como eu podia se erguer, se o que pensava passava por ser o que mais se quer: consigo lembrar de mim naquele tempo com essa dúvida nebulosa do porquê, e sem razão, dos pontos extremos de uma grande emoção... 609
Vida e morte em meu coração, para pensar em tanto na presença social. No almoço e depois. Assisti Adélia se vestir, com os olhos de quem apreciava o demônio: aquele da comum superstição; sentia-me como que meio convertido por toda aquela despretenciosa beleza que me enfeitiçara, já, de certo modo, me fazendo compreender das conseqüências... Mas, pois, pelo antecedente que sempre saberia ser a intervenção do escritor... naquele acontecimento, e em minha vida... Como quase sempre a via, estava colocando o jeans: sensual sensação presa àquele toque do tecido à sua pele, e antes à minha pele; e era toda conspiração do meu corpo e do meu coração ao me sentir tão bem e satisfeito, quando o próximo momento seria o da depreciação da história... Porém com tudo aquilo, não conseguia mais temer o passado e as lembranças... por tudo aquilo que assistia e acreditava ser meu... eu; e não o era. Feliz... Finalmente partimos. No almoço... Antes, posteriormente, tomaremos os olhares dos momentos em uns dos outros heróis e anti-heróis desta história, que por fim serão os vilões. Pois depois, recordo-me bem... Impressionou-me muito o mundo naquele dia de vento tão intenso e de debates tão extraordinários entre pessoas do mesmo estilo; sobre os assuntos de um momento de existir não 610
mais tão jovem quanto eram aqueles que apreciavam os momentos de seu aprendizado com os prazeres e dores indubitáveis de um tempo que nunca deixa de correr: um paralelo, sem dúvida, e um paradoxo; pois outra vez, foi de um impressionante espanto ter tais estas questões em mentes tão confusas, jovens e audaciosas; artífices e profissionais; como eu, menos em minha maior parte de silêncio, em só observar e de participar... quando da escolha. Num pátio improvisado após a refeição, onde os negócios e as negociações ficariam para trás, para melhor procurar as razões... da arte... - Mas para que a arte serve a este propósito, se o propósito anterior ainda é descobrir pelo que viver? - A minha questão surgia numa conspiração daquelas estranhas mentes. O grupo era formado mais por artistas: não tive nenhuma afinidade em querer “relaxar” junto com alguns dos grupos de outros elementos do mundo financeiro: meus colegas de trabalho. Joana ficara com alguns outros presentes a este mundo; falara comigo, e mesmo de longe demonstrava sua preocupação por eu estar sempre perto do escritor, e também de Adélia.... Com cuidado sempre tratara isso, mas nunca interferira.... Estava sentado ao lado dela, o escritor era o seguinte: calado e inexpressivo, só fez a medida de se exaltar durante 611
a minha pergunta, que eu fizera ao ouvir um outro jovem artista, um pintor, dizer que a obra dele retratava sua eterna própria morte durante a vida. Talvez fosse uma surpresa maior para eles saberem que eu não era um dos artistas: dos clientes que eu atendia somente o escritor estava lá, e sabia, eu soube quando ele se interessou, que minha pergunta fazia sentido, apesar de não ter nunca em tempo algum resposta entre os vivos.... Tanto a vida quanto a morte, tão exaltada por aquelas criaturas, eram uma total obscuridade para todos... E isso também era uma surpresa para todos: reconhecerem-se tão frágeis quanto eu.... em suas criações.... E isso também me impressionou. Porém na satisfação do meu novo ambiente, e no prazer de Adélia ainda ali; lugares em que a vaidade se depositara com tanta facilidade, pois calados todos eles ficaram, e desprezados por mim em minha inicial humildade: também não sabia nada sobre a vida e a morte..... Algo do mais inicial ainda me recordava do monstro: e talvez fosse com a satisfação com que mal conseguia lidar... A presença dos olhos do escritor, com o qual pressentia desde o almoço à mesa, no reencontro dos dois, por Adélia... O que não conseguia ver que continha aquele par de buracos negros e profundos. Sentir o mar deles me jogar longe ao ver os dois se beijarem, com os olhos dele sempre 612
abertos a me observar: massacre dos massacrados ao que se percebia na sua frieza a incerteza do que vinha para lá adiante daquela escuridão tão intensa: uma vida quase sem coração, somente com em palavras escritas podia-se ver o que tinha realmente lá.... e não era muito bonito a olhos comuns.... Antes e depois naqueles momentos sociais eu tive de suportar aquela leitura, aquele novo dissecamento de uma alma que se encontrava querendo ser feliz, mas que ele próprio não deixava, por sua causa, pois ele era o motivo da culpa, da consequência.... Mas o que havia naqueles olhos de tão profundo a ponto do silêncio transportar tanta dor e sofrimento quanto uma facada; e o escritor só se restringia a mim: nunca em Adélia.... Onde por todo aquele período estava a simplicidade que deveria permanecer: ele sempre soube.... eu sabia.... Mas dentro dali, daquela escuridão de olhos profundos também estava um monstro, uma criatura, diferente da minha, mas tentando um emissário conter.... E neles começaria a penetrar para encontrar a mim mesmo depois: preso naquela escuridão: da maneira como e escritor me veria, como ele me verá; porém nela irei encontrar o que tem em mim mesmo, e nesse ponto não mais serei eu mesmo quem vai concluir esta história.... Eram os meus olhos também que eu conseguia enxergar. 613
Era o monstro quem se encontrava feliz, por todos os momentos em que tocara em Adélia.... Mas das reais razões, era do que eu iria me lembrar: todas aquelas por que temer e voltar, e enfim fazer-me renascer.... De toda aquela vaidade e beleza de um demônio dentro de mim, a recordação, a lembrança.... de um momento.... lá dentro dos olhos do escritor, onde ele dizia: “ O que você tem tanto a esconder?” E eu tenho! ### ### Foi então desde aquele dia que tive de observar viver dentro de uma redoma de olhos... Dos vigias do meu próprio interior aos interiores expostos da criatura que tinha que destruir. Terminada a célebre confraternização, vi-me de pé no largo pátio do nosso ambiente a observar com atenção aqueles dois: Adélia e o escritor. Nos outros vultos que passavam ao fim de todas as correntes de assuntos e conversas, sobre o dinheiro e a fama, aqueles de todas as artes; não os realmente via apesar de sentir: um mar calmo indo e vindo, com todas as pessoas que aprendera a não ver e desprezar, como com grande esforço me fizera a 614
mim mesmo esquecer os amigos do passado, somente no encontro da utilidade e da memória.... E já podia antever a revolução advinda daquela calmaria, pois como o presente me mostrava somente no começo daquele fim a angústia do meu próprio olhar.... ao ver Adélia e o escritor juntos como sempre pareciam estar: nunca um casal comum, pois pouco se tocavam, mas nas artimanhas de um moderno Maquiavel, adorável e macabro como ele era, se podia ver a estranha união dos dois.... E em mim podia sentir a tamanha batalha na qual acabara de entrar ao deixar-me vencer pelo monstro e me apaixonar por ela num instante de tão pouco saudável transformação.... Tê-la tido me provocava mais que culpa e revolta, como era parte de uma trama; mas algo que me fazia repovoar os vazios de quem não mais conseguia escrever e se importar com a terrível certeza de um demônio articulador renascido e dominante dentro de mim, o qual me fazia ter ciúmes do escritor, por uma mulher que não queria amar, e guardando ainda assim o grande afeto por ele.... E enfim fazendo lembrar o que era aquela dor, que por gênese tinha sido a dela própria há muito tempo atrás, mas agora reconhecida como a mesma: o que estava escondido na escuridão das memórias esquecidas e acorrentadas... e exatamente naquele momento libertas de um peito gelado e fazendo sentir 615
a mesma coisa: libertando-o e expondo-o do primeiro instante e revelando a sua dor ao mesmo tempo que seu poder.... Uma triste e gloriosa estrada que todos teriam de percorrer, só que para mim de olhos abertos tinha que enfrentar o grande mal, com o temor de ser ele a mim mesmo. Antes de continuar dentro das falsas e verdadeiras paixões me faço notar que na real clareza e utilidade da situação presente daquele momento até hoje o que se tornaram reais foram duas coisas, paridas vivas de onde só deveria existir uma fértil imaginação de um pretenso escritor: duas coisas que o verdadeiro escritor já tivesse talvez concebido muito antes até de eu saber que ele existia, pois são coisas que se tornam óbvias na violenta imaginação de nós dois, cheias de paixões extremas, criaturas monstruosas e vozes que fazem os solitários depressivos se tornarem suicidas bem ou mal sucedidos.... Eram as duas coisas que quando transportadas para a minha realidade já tão sofrida e auto-piedosa, quase já cheia da falsa esperança que o monstro fazia sentir por ter feito Silvana chorar por exemplo, carregado de vaidade pela própria beleza e insensibilidade, e por ter conseguido possuir uma mulher que muito desejava, quase com a mesma paixão com que desejara Suzana (e desejo).... Mas que no final se tornava apenas uma 616
certeza ao vê-los “juntos”: que quase com absoluta milimetragem tinha sido tudo um plano do escritor, de sua imaginação para os corpos: meu e da sua namorada. Adélia.... As duas coisas: criatura, monstro ou demônio, não era eu quem estava se satisfazendo com aquela vida, e só fazia aumentar a profunda tristeza. E outra: não importava o trabalho, a fuga dos amigos que queria esquecer porque os amava demais e tinha medo de machucá-los quando a criatura se erguesse na escuridão e tomasse conta completamente do mundo que nos rodeia, não importava ter o sexo convertido em realização, a imaginação se tornando uma memória real de tudo que pode ser, ou mesmo qualquer das decisões que tomei por achar demais estar amando e sozinho.... Existe realmente a criatura dentro de mim. E por mais que eu não queira.... Ela sou eu. Que contradição, então, me tornei.... Tudo após as reflexivas despedidas de nós três: estranhos, amigos e amantes..... Com olhares nunca acusadores, mas sim indagadores do que havia realmente mudado: talvez nada, talvez tudo, talvez uma nova e estranha forma de vida que começaria a surgir dali em diante. O escritor continuava a perseguir os meus olhos, e estes só permaneciam na quase inútil tentativa de não olhar direto nos olhos de Adélia, e destes últimos a 617
atitude quase inocente de simplesmente sorrir sem saber do que fora vítima, do que será cobaia, e do que é realmente nas mãos destes dois: o escritor e eu. Mas então eu fui para casa, sozinho. Olhava pela janela da sala do apartamento o pedaço de mundo que convinha aos meus olhos daquela distância e daquela posição: não muito. Sentia o vento ainda frio de final de inverno na cidade tropical litorânea. Tentava me garantir uma certa paz para antes do sono ao observar sem pretensões alguns dos apartamentos vizinhos artificialmente iluminado por seus desconhecidos e estranhos moradores.... Seria que em qualquer um daquelas mentes que transitavam despreocupadas dentro de seus lares seguros e quentes podia imaginar o quanto de suas fragilidades estavam sendo observadas e absorvidas por um diligente par de olhos que vêem: o homem magro da janela da frente que trabalha silenciosamente, sem camisa e de bermudas azuis, debruçado sobre sua prancheta num incógnito trabalho que pouco significava para mim, mas que provavelmente para ele era a única coisa que lhe tinha real importância..... Muito além do fato de sua vizinha de porta, e de janela para os meus olhos, estar pendurando roupas lavadas na janela, se importando muito pouco com a possível chuva que pode chegar naquele meio para fim de Setembro anunciando o 618
começo da primavera, pois muito provavelmente as roupas não são dela, são de sua antipática patroa que vive às voltas com um marido que quase não aparece em casa, provavelmente a corneando com vontade dentro de uma mulher mais jovem e mais feia.... E ela também não deve se importar com a ponta de grafite que tinha acabado de ceder à pressão excessiva do seu usuário no outro apartamento, deixando-o profundamente irritado com a mancha causada no papel pelo leve incidente.... Imaginava que importância podia ter de um ao outro em suas vidas completamente diferentes que tinham em um observador curioso a forte ansiedade de torná-los um monte de vísceras expostas, por iminentes inutilidades para qualquer coisa que fosse além da mesquinharia de uma empregada para com sua patroa, também de pouco caráter para com ela, por causa de um marido traidor e consequentemente uma vida infeliz. Ou além da mediocridade por ter em seu miserável trabalho para o dia seguinte uma pequenina mancha a mais de grafite borrado. E aí então, ambos transformados em vísceras expostas, teriam definitivamente uma coisa em comum, como agora o tem sem perceber: estariam mortos por força de minha imaginação..... A visão destronou-se da paz que desejava ter. Mais uma vez o monstro me fazia sentir prazer com 619
suas mórbidas visões. E quase me irritava ver que os dois pobres infelizes das duas janelas antagônicas e semelhantes estavam ainda vivos, fazendo o que faziam, vivendo com viviam, mesmo estando ambos em minha mente totalmente transformados em vísceras..... O vento também passou a me incomodar, aquele pedaço de mundo todo começou a me aborrecer, simplesmente pelo fato de eu não conseguir conceber que ele existia, mesmo sem que eu existisse, e continuaria do mesmo jeito: com o vento soprando, noites e dias se sucedendo, e os vizinhos ainda existindo, insistentes e perseverantes em estarem vivos naquela vida.... A minha. Fechei e tranquei a janela com um sonoro baque nervoso. De quem não aguentava dividir com o mundo ali fora, o que quer que houvesse do lado de dentro. Estava no quarto logo depois. Sentei-me em frente do espelho que fica no guarda-roupa em frente à cama. Como mais uma vez naquela mistura entre lembrança e imaginação, via a sensação renovada daquela lágrima descendo pelo rosto de Silvana e congelando até começar e me refletir e fazendo-me ver chorando também, em frente daquele mesmo espelho, por uma razão que desconhecia fronteiras e fazia abortar dele, da dor da paixão por Suzana 620
fazendo o coração rasgar em sangue e vísceras, a sua verdadeira razão... e naquela noite era justamente o que faltava. O que havia de estar acorrentado na escuridão daqueles olhos no reflexo do espelho: uma lembrança... o que o escritor vira como escondido por trás de tudo aquilo que via e que produzia. Das minhas mãos que conseguiam prover dinheiro aos homens e uma arte para si mesmo de duvidosa alegria, mas certa verdade... Mas ainda assim era algo terrivelmente oculto, como num pesadelo mal lembrado que assusta sem mesmo precisar se mostrar na memória do amanhecer e que não me recupera, e fez-me temer a noite naquela noite, como nunca foi, ao olhar-me no espelho novamente e me ver sozinho novamente, onde na noite anterior estivera com Adélia, sob as delícias do amor, e onde em muito tempo não sentia a tamanha certeza que algo estaria por vir logo após o sono... Deitava com o doloroso pesar de que o amanhã, isto é, o dia seguinte demoraria a chegar; e quando eu o alcançasse desejaria que nunca tivesse chegado... Como desejei. ### “Não era realmente um pesadelo. A sensação surgia na semi-consciência. Centenas de imagens 621
surgiam em alta velocidade ao mesmo tempo que nomes de pessoas eram pronunciados dentro de minha mente, nomes todos desconhecidos e que existiam mesmo que não desejasse não esquecer o que eram ou o que foram na minha vida... E então, de repente, o zumbido começava. Os sons dos nomes e as frenéticas imagens começavam a desaparecer à medida que o zumbido crescia em volume e em agressividade. Quando então tudo sumia e só vinha o agudo rugido daquela furadeira que era o zumbido na origem, e se tornava insuportável, fazendo meu corpo tremer, todo meu crânio vibrar com a velocidade da furadeira e tendo a nítida impressão de que tudo estava sendo destruído ao ter minha cabeça perfurada com aquela broca interna... E por fim a vibração voltava ao zumbido, deixando-me imobilizado, inerte, mas acordado, pois podia perceber tranqüilamente o som ir sumindo até quando eu tinha de me pronunciar alguma palavra que em comprovasse que ainda tinha o controle do corpo... E como era difícil dizer aquele grunhido dentro da solidão escura do quarto enquanto a vibração de leve ainda ficava à espreita para retornar no momento em que as imagens voltassem.... E então eu me movia na cama, respirava fundo, mudava de posição e tentava novamente fechar os olhos e dormir.... Com a boca e a vibração continuamente voltando: não me deixando 622
adormecer de fato, e tornando aquela uma das noites mais longas e exaustivas da minha vida.... Dormindo um pouco, depois de muito sacrifício e tendo a nítida impressão de que não queria chegar no dia seguinte.... de modo algum. Mas chegando, “morto”, com medo, mas num novo dia.... Sem dúvida num novo dia. Da metáfora posso tirar que o quer que fosse do eu vindo de dentro com a boca para não me deixar dormir, o que posso dizer é que queria destruir o que quer viesse de imagens em minha cabeça.... Seja lá o que fosse: rosas ou sangue de recém-nascidos.... Para que nunca se tornassem reais.... E como eu não morri: também não era um aneurisma.... Era a guerra entre o eu e o monstro: não duvido!.... Mas quem era o quê?.... Não sei! Antes de prosseguir com a entrada daquele dia de tão gloriosa decadência, posso me referir a uma coisa que resta dentro do nosso espírito adolescente, que emerge naquelas situações de maior desconforto e descoberta com o desconhecido. Sob os olhos externos parece sempre ser uma insanidade que o tempo das explosões passionais possa ser comparado aos demônios de todos nós, amantes da vida, seres humanos.... No meu caso podia me ver sendo os sonhos materiais dourados da maioria dos adolescente: 623
crianças distantes de onde eu me encontro, com vinte e três e as rugas e os cabelos brancos de alguém que já devia beirar bem mais... Podia ser uma expressão de maturidade, mas não era bem isso, como nunca é quando se descobre viver pelas razões erradas e num plasma de uma criatura que sonha realmente viver, criar e destruir como num mesmo verbo.... Naquela projeção o que podia ver do sonho dourado era um apartamento de dois quartos, todo decorado de bagunça organizada, sob nenhum toque de outro ser; uma carreira que seria muito longe mais que um começo se não sofresse de um quase total desinteresse de seu delineador: curiosa ambiguidade; e mais de uma quando ver que o que o adolescente sonhara não era mais um sonho, mas sim realidade, porém muito pouco apreciada como seria se ainda fosse um adolescente, de problemas simples e descomunais na mesma proporção de escala, de paixões extremas, mas que não traziam à tona revelações do futuro, coisas tênues e comuns em todas as lembranças dos corações sofredores desse mundo. Todos.... Mas nenhum como o meu... naquele dia de descobertas.... Pois lá estava meu rosto novamente refletido no espelho pela manhã. Um rosto que se vira muitas vezes, e como naquele momento não se reconhecia como sendo a mesma figura das lembranças e das interações 624
com o mundo... Era um rosto de expressão cansada muito além da noite má dormida, de cores e luzes transgressoras de uma imagem de muito pouca força para continuar a viver.... Faz-me rever nesse mesmo instante da expressão desses olhos apavorados diante do metal brilhante do futuro carregado em chumbo no seu interior, extremamente polido e bem cuidado por mim mesmo. E ao mesmo tempo da vaidosa beleza que conseguia enxergar no chão brilhante do shopping no dia em que fiz Silvana chorar.... Não seria a mesma expressão quando chegar o momento de fazer a segunda pessoa chorar, pois será o momento em que meu rosto será o mais próximo possível ainda daquele rosto que eu via no espelho naquela manhã: retorcido, deformado, excessivamente pálido, quase doentio... Muito longe do que fora naquele mesmo quarto na infindável distância do dia anterior.... quando acordara com Adélia.... Eram ou foram no final, agora, uma conjunção dos verdadeiros reflexos do que eu era, do que estava sendo no interior da criatura: adormecido ao estar longamente desperto. E do meu rosto tive de me reascender para o dia. Mais um dia.... Existem pessoas que gostaria de esquecer. E eu deveria ser uma delas quando me assistia passo a passo dentro de minha casa, sob os preparativos matinais normais de um homem qualquer, mas com a memória 625
fervilhando das minhas imagens.... Quem eram aquelas pessoas que tanto me atormentavam enquanto a água do chuveiro correia o meu corpo fazendo os poros se abrirem e se fecharem na alegria do começo do calor da primavera... Quem fora aquela mulher que me provocara um início de ereção somente por pensar na noite passada, fazendo-me ter vislumbrar o reflexo no acrílico do box fosco e no próprio chão molhado do banheiro.... Como podia o gesto de me enxugar com uma toalha marrom me lembrar que meses antes daquela sensação só queria fugir da presença do mundo daquelas pessoas que mais amava, e da pessoa que mais amava (amo).... Poderia olhar-me novamente no espelho, já completamente renovado para aquele referido novo dia, ter o significado real da mudança.... O que realmente eu teria de lembrar naquele dia que tinha que provocar tanto assombro nas lembranças daqueles outros dias, quando os nomes e os rostos, também estes presentes no frenesi da noite recém má dormida, estavam tão claros: Beto, Marco, Rodrigo..... Suzy, e tantos outros que não via há quase tanto tempo quanto me lembrava tentar esquecê-los pelas razões do amor, ainda achava... Mas me vestia, penteava o cabelo e continuava a me olhar, e ainda via que o tom de todo aquele horror era de outra origem.... Como em cada dia as realizações 626
parecem sempre ser diferentes e as construções de nós mesmos uma nova sensação, pensava que era algo de surpreendentemente novo, mas porém de familiar expressão na montagem daquele cenário de paradoxo ao me ver constantemente fora do que tinha de fazer.... Sair de casa, outro gesto, e mais uma vez penso no que tinha de pensar: nas duas coisas que tinha de lembrar: quem tinha de despertar e que o que despertava era o que voltava a fazer dormir, ou destruir.... Mas não pensei.... Só via os rostos que tinha de reconstruir para poder chegar aonde não queria.... Hoje. “Foi há exatamente um ano atrás. A data retomou-me à memória como a vingança dos fatos para o que eu deveria realmente fazer. Para atrair a atenção do que vinha de dentro, ressuscitar o que vinha de tão pouco acolhido em minha alma atormentada e adormecida, como o monstro que estava recém desperto. Precisava se tornar um alvo como agora o tornei para revelar o seu verdadeiro motivo de ser.... A desventura do dia começara a se revelar no momento em que passara de relance por um daqueles painéis eletrônicos que eventualmente nos dizem a data, a hora e a temperatura; numa cidade de excessiva poluição também indica a qualidade do ar, mas o que não é o caso por aqui. Uma calma e paciente velocidade me carregava ainda em dúvida na direção de mais um dia 627
de serviços prestados ao mundo ativo-financeiro. A dúvida ainda se compunha em revelar do porque de tanto em minha intenção inconsciente ter de reviver certos fatos de meses atrás como se fossem os ícones da procura do presente, naquele reavivar da emoção e da decepção, e do prazer diante das visões, quando começava a me acostumar com a ideia de que podia controlar o que pensava para não se tornasse mais do que algo útil, e sim o que fora antes e me assustara tanto aos gritos: a ambígua sensação de capacidade e incapacidade juntas ao ver o que criava, e não saber que o que criava era a resposta para os possíveis males causados por essas criações (criaturas).... O que era mesmo afinal que me apavorava tanto dentro de minha mente e que se revelara nessa mesma época, que queria querer esquecer.... por outras razões (achava.....)?..... Marcava o número oito antes dos dois pontos verticais que ficam piscando. O número seguinte, logo depois dos dois pontos era o um. E o último não consegui ver com clareza.... Mas era pouco mais que oito horas da manhã. Estava no horário; meio em cima, mas já chegando.... Logo em seguida de desaparecer as horas, vinha a temperatura: os quase agradáveis 25 graus centígrados. Digo quase, porque hoje, no mesmo dia um ano depois, mais cedo, no 628
amanhecer, devem estar fazendo uns 22 graus no mesmo termômetro, não muito longe daqui, e eu só não me sinto completamente desconfortável porque estou suando. A temperatura mais agradável para mim sempre foi a acima de 35 graus e abaixo de 38.... Sempre adorei o calor e transpirar.... Mais agora do que nunca, mas não convém ainda falar o porquê desse prazer singular.... Conveio naquele instante que em seguida surgira no rápido relance do fim da rua que se curvava para a direita, pelo canto do meu olho esquerdo, a repetição do ciclo do painel, que sempre começa pela data.... E como em todos dessa cidade, aquele também não apresentava o ano, apenas o dia e o mês, há um ano atrás, era o ano passado, e foi o suficiente para eu saber porque temia tanto chegar nele, naquele dia, há um ano atrás, bastando ver que dia é hoje que surge ao sol para ainda saber o que farei, com tanta certeza do que farei... Mas naquele momento somente a imagem da lembrança. A rápida recordação por trás dos zumbidos da noite má dormida. O que minha memória trazia junto com aqueles rostos tão frenéticos que tentavam encobrir o que tinham a revelar na mesma época, quando eu acordei e não quis acordar, e por isso prossegui a sonhar: era a imagem daquele sonho azul, aquele da tela que a tudo absorvia e em seguida me mostrava 629
uma data, fazendo-me revelar o porquê... E não era imaginação.... Ou é!.... Terminara a curva e só podia ter da minha expressão a certeza daquele medo que latejava e não sabia porque, pois via nitidamente no porquê se tornara o que era: a criatura que se via em missão e o criador que tinha que deter esta mesma missão.... Estava assustado, mas ainda incrédulo.... Hoje só estou assustado! Joana me vira entrar enquanto voltava da copa bebendo um copo d’água. Batera a primeira porta, e ela provavelmente ouvira quando bati a segunda que dava em minha própria sala. Visivelmente transtornado, me acho, procurara-me preocupada logo em seguida ao ver como de um dia para o outro as coisas pareciam realmente mudar. Devia ter sentido como que visse um animal acuado, na iminente e triste antecipação de sua destruição impiedosa por um caçador com sede de sangue e fome de vísceras. Encontrou-me observando com pesar e medo para o velho e surrado calendário; aquele mesmo que tinha as marcas em vermelho das datas em que deveríamos prestar contas, primeiro com os clientes e depois com a empresa, após as idas aos bancos e as captações dos extratos dos diversos mercados.... Em meio a tudo aquilo, apenas a data, o número em meio aos muitos, trinta nesse mês. Um particularmente sem marcas, antecipando os muitos 630
dos últimos dias do mês que são os de maior fluxo dos documentos referidos..... Quando um número pareceria representar tanto, num calendário tão cheio de convenções dos homens, mas o único que realmente importa, pois de mim “será” realizações de um homem. Mas ele se fechou quando meus olhos fecharam na memória, e o seu vermelho reluzente de uma terça feira se tornou um reflexo amarelado em minha visão escura, vindo logo atrás as verdades de suas possíveis conseqüências: minha imaginação?.... Joana não falara nada.... apenas senti sua rápida presença e logo a sua triste e perplexa retirada.... Olhos por trás de uma parede por demais grossa para ser penetrada, e compreendida: eu... Sentia-me completamente perdido naquele momento.... Ainda no mesmo dia. Joana me interfonava por volta de três da tarde. Quase não a tinha visto naquele resto de dia. Talvez notasse a impotência de ser alguém que se importava.... E por aquela outra razão, também descobrira que em certo ponto ninguém mais se importava.... mesmo. Quem ela informava que estava presente era o escritor: numa sombra de surpresa de alguém quase esquecido, quase novamente reconhecido, somente na volta da memória mais recente, ainda de mim mesmo.... Alguns minutos 631
e ele estava sentado a minha frente, observando.... Encontrar ou reencontrar com o escritor, o amigo que não mais povoava a minha mente desde que há muito tempo, no dia anterior, o vira sumir no passado de novas estranhas transmissões, como há muitos outros que encontramos em nosso caminho.... Eu realmente sentia como se muito tempo fosse. Revendo a história a partir do momento, como tenho de fazer.... Tinha lançado seu primeiro livro cerca de quatro anos antes daquele nosso encontro, ainda com menos de 22 anos: coincidência paralela, posso mencionar antes mesmo de começarem todos os reversos (aqueles dois), pois o lançamento fora exatamente nesse mesmo mês, ele me dissera antes, setembro.... O encontro foi do acaso, como vejo, um feliz acaso do destino em trazêlo até mim por via da nova empresa que procurava acolher os jovens talentos mais promissores da nobre arte, e me trouxera um amigo, soberbo e arrogante na criação de uma trama, que amedrontava, mas na perfeita fonte de uma realidade, da qual participo, e com a qual aprendo tanto quanto me espanto, pois é totalmente singular e sólida, ao mesmo tempo que fantástica e atemporal.... Agora voltando.... Ainda duvidava que era o mesmo do dia anterior por tanto que pareceu-nos atravessar do dia e da noite anterior também, e ele estava diferente.... Numa parte final 632
de uma de suas vértices dos novos conhecimentos e descobertas: Ainda estava eu ignorante, pois tinha outras preocupações, naquele dia.... Porém, ainda assim, atrasado em relação ao vértice dele, e estagnado em ralação ao meu, pude me surpreender com tudo que veio; e fiquei grato por tudo que pude aprender sobre sua nobre arte, que agora se tornava a minha também, em num definitivo marchar dentro de minha alma para tanto: mais dele, eu espero, quando sempre aqui vier me concluir no que direi até este instante que se aproxima, pois ele é o escritor, aquele que detém a arte em seu uso, em si, e não como uso nesse calor da emoção.... Eu soube então, como agora cá estou que apreendê-lo naquele instante em minha vida, naquela data (hoje há um ano), não fora tão somente a coincidência que pareceu ser, pois só ele agora é quem vai entender, e fazer entender, eu espero, como eu quero entender, vendo ele “ensinar” a partir da minha dúvida..... - Você já parece pronto! - Falara ele com tranquilidade de um sereno amanhecer de primavera, como aquele era ou devia ser, e este.... Mas me arremessando de volta à mesma equação por ser resolvida, do caminho angustiante a ainda ser galgado.... - Pronto!? - Ao escritor.... O preço de minha 633
atordoada imaginação nessas folhas de papel rebuscadas da beleza do que não existe e que dilacera mais que a bala que sai do revolver..... A arte serve para expor. De fato.... A arte é (era como o escritor falava e como me refiro) viver de um sofrimento que se consagra nas leis que os homens querem desconhecer.... “Para eu e você...” Dizia ele... Ser a transformação da criatura interior nas palavras que negam a felicidade. Dos felizes somente ter as imagens de rostos famintos e ávidos por novas e emocionantes paixões de fim-de-semana; sempre aguardando com ansiedade suas mórbidas ressacas doloridas, e suas doenças de almas arrependidas por terem dito sim... É ter de sofrer junto com todas essas criaturas; sentir mais do que elas todas e colocar-se na sombra para enfim descobrir as palavras e expressões que mais lhes convém para dizer: da perda, da dor, do amor, da paixão, do sexo, da doença, do descobrir as origens de todos os temores do coração e por eles viver em mais uma procura: de que podem eles conter diante de tanto horror que transmitem. E dor. - Mas é necessário tanto sofrimento? - Pergunto eu a um homem totalmente modificado pelo estranho entusiasmo. Pouco desdobrado nas articulações, como sempre é em sua fachada, mas podia notar o queimar em seus olhos do que ele achava que podia 634
revelar. Sentado em minha presença, penetrante com o olhar, incisivo, frio e seguro.... para querer falar da dor de todos nós.... - Sofrer! Meu amigo.... (um sorriso no seu pálido rosto).... Nunca tema o que o verdadeiro sofrimento pode lhe trazer de grande aprendizado para a arte. Só ela deve importar quando você sentir aquela marca no seu coração se transformar num talho tão grande quanto a vazão de um rio no mar, pois o sangue que jorra é o seu e do que você tem dentro de você.... E este é o único momento que aquilo que está dentro, tão bem escondido por você mesmo, se mostra para enfim a criação de uma grande arte.... E ela assim deve ser tratada quando a benção da loucura te trouxer essa imagem de revelação de dentro de você. - E parece que essa benção já te apanhou .... (risos) - Sem dúvida... E a você também... Posso ver! - Fora quando o escritor finalmente começara a discorrer sobre a imagem do que ele chamava sentido da arte. Algo que parecia, e parece, conter os valores do que realmente a arte de escrever deveria trazer para mim; e nunca fora a felicidade de escape, como deveriam imaginar os ausentes desse mundo, da nossa tarde.... Deveria enxergar e sentir nos outros a dor única 635
de todos os sofrimentos. Transformado em prazer o dom de ter todas as palavras possíveis para transferir da dor de fora o que realmente havia dentro, e que continua a origem.... Se havia violência naquela tal imaginação, provavelmente o que existia dentro de ter sido estimulado para esse tal intento: com a violência do mundo para tanto... Mas de fato com a origem no interior... E assim deveria acontecer com os outros sentimentos e emoções. Como o amor. E o amor. Mas ainda havia mais uma. Uma filosofia, no sentido próprio da palavra: amor pelo saber.... O escritor dizia: “É perseguir-se!” É perseguir a si mesmo.... Ficamos velhos e esquecemos como é a emoção, aquela sensação quente, distante da dissimulação, que traz à tona o que há de verdadeiro no sentimento. Quanto mais maduros nos tornamos, mais longe ficamos da origem daquela deliciosa erupção, tendo-a hoje como quase ridícula, digna de vergonha e embaraço diante de nossa própria lembrança: por todo fracasso que há no momento, e por sempre dizer a verdade.... Nós não fazemos mais isso. (“Fazemos?” Ele ainda perguntou ) E temos mais “sucesso”... Porém me trocaria por aquela pureza visceral, de certo... - Então, tem a ver com a juventude?.... E as coisas que aprendemos? - Esgueirava-me através 636
de suas palavras para me fazer compreender, e compreendê-lo, na construção da bela trama. Ele me respondia... - Não, exatamente. Tem haver com o ANTES! - As palavras que vinham de mim, e eram do escritor. - Antes??? O frio do ar condicionado ardia em minhas pálpebras cansadas. Das noites de insônia sem uma única linha escrita até o pesadelo da noite em que não queria chegar ao dia seguinte, e me descobrir novamente numa situação de extremos. Era o que vinha do escritor por admitir com um ímpeto e uma certeza que nunca vira antes, que tudo que havia não tinha realmente a necessidade de uma solução, mas de uma abertura para a origem: a erupção que ele mencionara de um momento antes, que explicava que deveria vir agora, mas não o depois.... Que é a minha questão.... Para ele o depois era o uso do sofrimento do antes, daquele passado original, escondido num instante para gerar tudo que havia nas mentes e pensamentos de nós outros: no caso... escritores. Eram as realizações dos amores nunca realizados no passado e no presente; transformados nas tragédias violentas de um romântico eternamente contido num homem obscuro. E era o que ele era quando mencionava que tudo se constituía na origem da 637
tristeza e na manutenção das frustrações.... Levadas ao extremo: submetido a si mesmo e carregando consigo o eterno impulso de dominar para não mais sofrer, pois do sofrimento se gerou a infelicidade.... E queria ser feliz. Naquela filosofia que se gerava do escritor, a gênese que vinha era a da contemplação do objeto a se amar.... Não conseguira mencionar nada sobre Adélia, mas notava seu pensamento nele, e recordava do seu aparente domínio em suas ações quando estavam juntos. E por mais que negue, e o admire, isso o incomodava; pois novamente a construção da trama era dele, mas o personagem era eu: Temia-o por isso também, mas o medo não vinha somente de mim... E inevitavelmente se contemplaria tudo mais que o fizesse adjacente, e sofreria com espanto por tanto mais amar quanto querer se afastar ( para evitar o sofrimento?). A arte para ele, o escritor, era dominar e controlar o próprio ser dele.... O que seria o paralelo do meu demônio, mas com a intenção e propósito diferentes: o dele era fazê-lo infeliz por sempre dominar.... E sua realização, a do escritor, seria encontrar o que fosse indomável: algo que mesmo com ele escrevendo se tornasse o que ele não queria: incontrolável: talvez eu. Não sei se o que o escritor vivia ao se expressar 638
era a realidade ou ficção dos temas com que convivia, tanto na sua obra quanto naqueles meus esboços... Não havia em nenhum de nós a necessidade por sucesso, mas sim a melhoria da arte através da experimentação. Porém, partindo do talento (o dom conservado), se a arte era tudo aquilo de sofrer para nós: de todos os outros para dentro de nós e canalizando a origem com as palavras da dor; então o que nos restava experimentar além de mais dor... O que se transformava numa idéia extremamente desagradável naquele momento de minha vida, mas tão próximo quanto as expressões dessa certeza vindas do escritor, que não sabia o que vinha a ser despertado ainda.... Duvidei! - E você sofreu tanto?.... - Sofremos a cada minuto, e você sabe disso (Sei!).... E o que nos preenche é criar: tocar no vazio e pôr nele um novo tipo de agonia que antes não estava lá. (Ele parece realmente sentir muito prazer com isso. O que será que há de tão diferente nele que as visões não parecem assustá-lo.... Talvez fosse como eu no começo....) Chocando as pessoas com o que mais nos assustava.... antes. Revelando a conquista de nós mesmos... E o que é realizar senão descobrir o propósito? (Ele disse propósito!) - Por aqui, aonde deveria chegar, seria o que se referiria hoje: o propósito. 639
- Mas que propósito? - Tornava-me tenso e curioso, me envergando na cadeira para poder acompanhá-lo com mais atenção por nossa incrível expedição pela arte.... e aquele dia. - O propósito da descoberta, meu amigo.... O que vem de dentro de você guardando um significado: posso lembrar e te fazer rever esta passagem da primeira coisa que você escreveu: “.... tendo dentro daquela última sala do corredor uma mãe. Deixar-se deitar no colo dela para nunca mais acordar... numa suave e alienante semelhança com uma daquelas salas alcochoadas dos manicômios e com uma camisa de força da qual nunca mais se separa.... Numa eterna dor de quem vive por atravessar todo dia aquele corredor.” - Você consegue se lembrar das palavras exatas.... Não entendo onde quer chegar. - O escritor volta a se recostar na cadeira desfazendo a gesticulação teatral que vinha usado para representar aquelas minhas linhas. Olhava para mim com extrema atenção e respirava passivamente sob a luz que brilhava fraca através da janela atrás de mim à direita. Parecia pensar algo de muito óbvio à respeito da passagem; algo que nunca conseguia ver.... - Me diga.... Quem mais era que estava lá com você quando você escreveu? 640
- Não entendi! Estava só o tempo todo. - Ah.... Você ainda acha isso.... (falou com lamento).... Então veja que tal visão realmente assusta, não concorda? - É verdade.... Desde o dia que a tive até o momento em que virou uma minha.... (me detive por um instante insignificante, mas eterno na revelação).... história.... - Tentava desviar do seu olhar, pois o que enxergava era outro fato do momento e não o que ele tentava acolher.... - Assusta porque é extremamente familiar. Todos se submetem em algumas ocasiões às pressões e tendem por retornar a um estágio mais confortável da vida: algo como o colo da mãe.... Mas todos sabem que tal anseio levado ao extremo pode trazer uma total fuga da realidade, e por fim a loucura.... onde a tal visão se confirmaria. - O que o escritor descrevera estava correto, mas era o outro instante que me preocupava: só me livraria do medo daquela visão quando a expus completamente, com crueldade e impiedosamente, levando o personagem em questão às mais atrozes ações e em consequência, por fim, ao encarceramento na situação anteriormente descrita no corredor.... Poderia ser um grande passo. (Foi o que pensei.... no dia.) - É o prazer de criar (continuou) o horror mais 641
obscuro a partir do real.... Como é o amor, antes já mencionei, dos que se apaixonam e se perdem....a se humilhar pela mulher amada até que se criar diante dela se torna o imenso prazer maior de ser uma verdade familiar a partir da grandiosa fantasia.... - Tentei-me a perguntar se fora assim com Adélia, pois com isso se tornara mais a razão que a paixão: tendo-a real a partir de uma fantasia. E novamente me formulava aquela idéia que tive antes: da exposição (da imaginação para o real).... Mas o que na verdade mais me veio foi o medo da vergonha por ver que o caminho que ele tomara era o caminho que levava de volta a Adélia, e àquela noite anterior, pois tinha certeza de que ele sabia; não sei como; mas tinha certeza de que sabia de tudo... E imagino, ao mencionar sobre ela, novamente, que havia algo mais... Há. Do escritor em Adélia via-a preenchida por um grande vazio móvel (o escritor em si), mas com um propósito, como o que parecia tentar me dar, o de se entregar: compreender-se e nesse empenho se prontificando a tudo... Imaginava também a que tudo pelo que ainda havia de acontecer... comigo... com nós três... Tive outra curiosidade... - E qual foi a sua origem? - Parecia perceber bem o que tinha de acontecer, pois não fugia do assunto ao perguntar dele, apesar da primeira impressão... O que 642
tinha de curioso em nós era a complementação, e ele bem reconhecia isso, com muito mais frieza. - Não sei. Provavelmente se soubesse já teria parado de escrever. Tenho nítida algumas diferenças e particularidades que conseguem me aproximar desse fim... Mas na verdade, como também deve ser para você, há sempre um começo: um ponto em que notouse a necessidade da procura... do propósito do novo... - Dava mais um leve sorriso antes de me reportar mais uma vez sobre aquele propósito ininteligível. - Certo... Então onde foi esse começo? - (Tão teatral quanto deve ser um mestre, mas que se esconde de si mesmo na terceira pessoa: como antes ao dizer: “notou-se”, quando deveria dizer: “notei”.) (Também sou assim!)... Fora de um corte no braço, num curioso acidente doméstico removendo o lixo, ainda com quinze anos. Não era apenas o sangue, como a violência que você bem sabe disso, o que escorria pelo braço marcado em seis centímetros de um sulco causado por um pontiagudo caco de vidro mal protegido. Podia olhar aquilo e enxergar tanto na parte que se coagulava com certa rapidez quanto na pequenina gota que descia em volta sem o peso suficiente para poder pingar até que houvesse outra remessa que não houve... o quanto aquilo nos era frágil: a pele, o sangue, e num outro momento... 643
a vida. E mesmo assim da mesma fragilidade podiase gerar a solução, a força, a recuperação... Não que tudo tenha me ocorrido de uma vez só, mas foi assim que começou. - Estou impressionado! - A mesma cena havia sido descrita com muito mais detalhes e perfeição em uma de suas obras, uma das mais recentes e também das mais cruéis, onde o garoto, já crescido, tem da revelação de sua origem um trágico e angustiante final dentro de sua própria consciência, preso ao verdadeiro monstro assassino que se tortura, e do qual não pôde se livrar, vivendo muito, mas morrendo um pouco a cada instante com a mesma dor de suas vítimas... Sorte ser apenas uma história. Espero... Joana abrira a porta pela metade e entrara também pela metade na sala para avisar que alguém chegara. Não era mais uma visita para mim... Era Adélia. - Eu marquei com ela aqui. (disse o escritor) Espero que não se importe. Pedi para ela vir me buscar quando viesse do instituto. - De modo algum... Por que me importaria? (“Meu Deus! Até onde isso vai?...”) - Adélia estava trabalhando no Instituto de Criminalística do Estado, e eu tinha pelas mãos um cenário do qual temia ter de encontrar novamente... eu, o escritor e Adélia. 644
Ela entrou. Estavam em minha frente, os dois, nos segundos de silêncio dos pesadelos, e via... Do que tanto tem medo, desta criatura, Adélia presa ao que esconde, que nunca o saberei: pois ela também sente e teme... Tratava-me com certo desprezo. Eu via que a história ainda não tinha chegado ao fim. - “Eu só quero ser feliz. Eu acho...” - Pensei em um dado momento sem a pretensão de alguma conquista para a gestante situação. Todos só querem ser felizes: é o que parece, mas o cenário do mundo se torna adverso, pois tomando os três como mortos sorrisos de um dia... o escritor é o único que pouco sorri, e é o início que parece realmente feliz... Sua própria trama, sua vida, sua mentira e com tudo que ele quer na velocidade do seu próprio pensamento. Em Adélia, daquele toque místico de alguém que sabe viver e compreender, para que o escritor tenta representar tão distante... Intocável: do que tanto, ela, tem medo se na verdade fora aquele meu símbolo de rápida libertação: “ter alguém por quem “amar” do meu lado”, mas não tinha sido real... já sabia... Lembrar Adélia significava ter novamente no corpo a sensação de seu toque; ter nas narinas aquele perfume que misturava ambos os nossos suores e fluidos, e também algo mais somente dela, que ela tem até hoje: um cheiro incomum que devia ser qualquer 645
um dos muitos perfumes que existem nesse mundo, mas que para mim, na minha doce e frágil lembrança de falsa realização, era o melhor aroma de toda existência do ser humano na Terra; e ainda, ter nos olhos aquele profundo olhar escuro e iluminado de olhos tão belos e apaixonados que quase assustavam pela verdade que transmitiam, quase, pois era uma mentira: aqueles olhos ainda em minha frente, naquele dia, quase rasgando-me de desprezo... Era, naquele momento, a nova lembrança: o afastamento que veio logo mais tarde, a partir dali; na verdade a partir de antes, recordando, desde o instante imperceptível em que nós terminamos na noite anterior e nos olhos dela não havia mais nada além do... alívio... Pensando agora na expressão: seria algo como “de missão cumprida”. E essa talvez fora a verdadeira sensação... Mas ainda assim olhar para Adélia era lembrar como tê-la tido por alguns segundos fora tão bom, além de tudo que reportava, de tão mau... a mais, uma parte de uma trama do escritor. Talvez o porquê que a fizera obedecer. De tudo aquilo que o escritor mencionara ao desejo dele de ter algo por realizar: um legado de “verdade” no seu mundo de mentiras que se tornam realidade. Sendo o colosso da criação como é.... Haverá sempre alguma coisa no domínio dele que faz-nos obedecer: como saber que eu a tive, 646
mesmo sob “propósito”, sem nunca ter de mencionar, apenas insinuar... Talvez haja algo sobre ela, sobre Adélia também, que nunca saberei, mas que há entre os dois, e a faz ser como é. E eu... Naquele dia pensei muito sobre isso e sabia que teria de procurar Adélia novamente à procura de uma resposta; praticamente esquecida a paixão daquela noite; mesmo havendo somente a hostilidade da omissão... Não sei se fora algum dia apenas submissão... sem o propósito... o que ela fez. Mas no fim, depois que eles partiram, ainda me restava a outra preocupação: a do dia que se esvaía em aprendizado e lembranças, nas construções à procura de um propósito, como o escritor diria, pois de um começo, como seria o antes, para enfim encontrar uma origem, ou o propósito.... O começo.... Uma leve penumbra me carregava lentamente pelo corredor que dava na porta do meu apartamento. Estava chegando em casa e eram mais de oito horas de uma clara noite bem ventilada. A iluminação do corredor estava como sempre pouco eficiente e por isso tinha de caminhar por aquela confortável penumbra, que a alguns assusta, mas a mim dava o conforto da sensação da gostosa semi-escuridão onde os anseios e medos não estão completamente expostos e por isso 647
não machucam os olhos; e nem é a escuridão total que iria trazer os monstros horrendos de muitos momentos deste futuro... Mas... Aproximava-me da porta, já a uns três metros e meio do retângulo branco, idêntico ao outro alguns metros atrás de mim, para o outro lado da saída da escadaria: é no segundo andar de um total de quatro, com dois apartamentos em cada nível... Pouco vi qualquer um dos moradores daquelas outras residências, e falei menos ainda, agindo do mesmo modo com todos os outros elementos do resto do conjunto, fazendo um total de cinco edifícios, quarenta apartamentos, e muitas vidas das quais nunca me dei conta da importância de suas existências: vizinhos, e talvez um lamento... ou não. Via-me enfiando a mão no bolso direito e pegando as chaves um milésimo de segundo antes de fazê-lo, finalmente apontado a maior delas na direção do buraco da fechadura pouco iluminado pela luz fluorescente defeituoso que piscava irritantemente. Tinha que ser apanhado o local correto para que aquela simples operação não se tornasse uma razão para o aborrecimento que sempre, às vezes, causava: enfiar a chave na fechadura e girar a mesma para assim poder abrir a porta do meu lar... Fora pouco antes de fazer isso que a sensação me veio... Certa vez chegando em casa muito tarde, há muito tempo, com pouco controle dos meus reflexos 648
secundários devido à exagerada utilização de droga recreativa muito popular, e legal, a cerveja, tive de confrontar a desagradável situação de não conseguir de modo algum que a chave penetrasse em seu devido orifício, forçando-me a ter de esperar do lado de fora do apartamento, no frio corredor, até que minha situação se tornasse mais a nível de controle e eu conseguisse em fim fazer a tão “desesperada” operação, mais de duas horas depois... Cômico me parecia lembrar de tal acaso se não fosse a outra renovada situação em que ia me encontrar... Quando a chave estava a menos de cinco centímetros do lugar... O primeiro espasmo veio de algum lugar entre o estômago e o fígado, causando uma imensa tremedeira e um arrepio que me impediram de chegar ao meu destino. Atravessando com força o esôfago, era uma surpreendente ânsia de vômito que trazia à mente a imagem de uma sombra que nunca mais poderia esquecer... No quanto de tão assombroso que poderia ser ter que sentir algo terrivelmente selvagem tentando sair de mim com extrema violência e ao mesmo tempo me fazendo enxergar sua mórbida silhueta... Não acreditava em tanta dor e me curvava realizando o barulho característico de alguém que tenta não vomitar no mesmo instante em que a vontade vem com tanta força quanto a própria erupção de um 649
vulcão há muito tempo adormecido... Fechava os olhos em agonia e lacrimejava com dor e ressentimento na tentativa de abortar aquela saída do que quer que houvesse dentro de mim tentando sair através das vias digestivas. Sentia o gosto amargo das substâncias químicas do estômago alcançando a minha boca; uma poderosa contração em minha garganta já garantia um terrível trauma por dias seguidos se conseguisse sobreviver àqueles momentos... Tinha que entrar em casa de qualquer maneira. O ar do corredor se tornara quente e fétido como que reconhecendo meus próprios odores e sentido por eles mais náusea ainda. Conseguiria apoiar minha mão esquerda na segunda metade inferior da porta, ainda permanecendo curvado e tentando manter precariamente uma respiração bastante profunda para tentar evitar outra qualquer onda de ânsia. Sentia minha cabeça pender para baixo e a trazia para cima em acompanhamento da dolorosa respiração; um movimento contínuo por aqueles eternos segundos até que pudesse me sobrepor e novamente tentar levar a chave que estava em minha mão direita até a fechadura da porta... Começava a erguer a dita mão, ainda me apoiando com a outra. A sensação do espasmo ainda queria permanecer como que esperando outra oportunidade para tentar lançar-se para fora. Tive outras imagens 650
na memória enquanto fazia aquele exercício de conservação do meu bem estar estomacal, mas a que mais chocava ainda era aquela terrível silhueta de sombra: como uma marca escura desenhada numa parede também escura, no formato de um homem, mas que eu sabia que não era um homem... Outra que me veio fora a daquele pobre homem bêbado que há muito tempo, num bar, com aqueles antigos amigos que teria de reencontrar, tinha sido um alvo de minha torpe imaginação somente pelo desprezo e nojo que tive de sua atitude: vomitar, e logo depois apanhar no próprio vômito a dentadura que havia deixado cair da boca durante o vômito... E daquela sua imagem adjacente que tive dele no banheiro daquele mesmo bar me vinha o arrependimento por lembrar de tudo aquilo: Senti a outra onda surgir quando vi novamente as vísceras do homem saltarem para fora do próprio corpo pela boca... só que dessa vez era a sombra, a mesma sombra, e não a linha de urina suspensa no ar a dançar, que com habilidade inseria o braço direito por inteiro na via oral do homem e trazia para fora todos os seus órgãos internos, tornando aquele banheiro em todo aquele palco de horror e sangue... Conseguira impedir a conclusão antes, para enfim conseguir pôr a chave na fechadura, num último esforço para me livrar daquele ar... De tão pesado quanto a força dos 651
meus pensamentos de medo sobre aquele monstro que era a sombra fazendo tudo o que havia imaginado há tanto tempo em um homem que provavelmente nunca mais veria: tão sem rosto quanto a sombra que o distrinchara de dentro para fora em minha mórbida e nojenta visão... O cheiro que sentia parecia ser o de todos aqueles órgãos, já em putrefação, derramados com tanta habilidade naquele chão, quase em minha frente, no meu chão, há muito tempo atrás, no meu pensamento, assim, no momento em que abrira a porta... Finalmente vomitando. Com dor, arranhando minha garganta como uma coisa só, sólida e viva. Revolvendo tudo dentro de mim como se fosse o homem naquele banheiro: atravessado por uma agonia, com um terrível gosto amargo na boca, e com a lacrimejante visão dos meus próprios fluidos recém jorrados para fora, bem à minha frente, em parte do chão da minha sala... Corriam em mim as verdadeiras lágrimas de um horrendo nascimento, da dor e do pavor, de tudo que havia dentro de mim e que queria sair para minha própria desgraça... Limpava ainda com as mesmas lágrimas a sujeira que eu mesmo fiz. Dormira afogado na dor e no cansaço daquele fim de noite. Do primeiro esforço físico não natural que deixava no trauma do meu tubo digestivo a certeza de que alimentar-me nunca mais seria a mesma coisa 652
depois daquilo... Além da própria dor imediata que ia desde a garganta até o diafragma sem perdoar inclusive uma parte de minha respiração: talvez pelo rápido e arrebatador alargamento do meu esôfago, cumprindo toda a região do meu tórax. E também do segundo, e extremamente arrastado, esforço de trabalho que tive de realizar limpando toda uma parte da minha sala... Com o corpo, mas principalmente os braços, muito cansados ainda do esforço do dia anterior, tendo de navegar por tudo aquilo, sentindo todo o terrível odor, até que a limpeza se fizesse completa... E como ainda estava, o quanto ainda estava, preso à exaustão dos dois últimos dias e da noite anterior muito mal dormida, tinha o direito daquele sono... de onde quer que viera e para onde quer que fosse, naqueles meus dias de extremo cansaço. Estou acordado agora! “Um corredor branco se abre iluminado para os meus olhos muito bem fechados. (São como sempre os sonhos devem ser.) Nele não se pode definir a parede, pois vem apenas luz, mas é um corredor. São pessoas que começam a aparecer ao redor de toda sua extensão, e é por onde eu devo caminhar. Eu vou... Sei que tenho uma informação na mente: algo de premente para o melhor entendimento do que ocorre, mas isso ainda não me ocorre, nem ocorrerá até 653
alcance a outra extremidade do corredor, onde deverá haver uma porta, mas eu ainda não a vejo.... Começo a andar e as pessoas começam a me cumprimentar, felicitar seria mais correto, pela razão a qual tenho na mente, a mesma informação que já tenho. Não sei se conheço as pessoas que me cumprimentam: parecem todas as mesmas e nenhuma em particular que eu deva reconhecer, como os representantes de toda raça humana, e é o que são... Vou caminhando até o fim, e sei que tenho a informação que vou ter. Quando é então que a porta afinal se apresenta: velha, descascada, com uma úmida aparência, azul escuro quase empretecido e clemente por ser aberta. Mas antes como sempre tenho que observar que atrás de mim tudo mais se fora: tanto corredor, quanto as pessoas, e quanto a luz.... Não há mais nada. E a informação que sei e que sabia antes de saber agora que aqui chegara é que tenho câncer, e estou feliz por isso, pois não mais terei de me matar, e por isso as pessoas me felicitavam, e eu sabia.... Porém tudo acabara, pois havia a porta escura e feia à minha frente(também suja). Como sempre nesse mundo, ela se abre sozinha, sem a minha ajuda, mas com minha intenção, pois sabia que tinha de fazê-lo, de algum modo, pois tudo era sempre a minha mente, como sempre é... Dentro, então, pude ver a cena. 654
Do chão visivelmente úmido eu podia ver brilhar os reflexos daquela estranha escuridão. Uma sala de clima abafado, como algo de pesado no ar e na temperatura eternamente comprimindo os presentes. Devia medir uns seis ou sete metros quadrados e não se via em seu redor nenhuma outra entrada ou passagem além da porta aonde me encontrava de pé, a observar.... Mas dentro do ambiente, daquele abominável cenário, o que tinha que importar era a mesa: uma mesa de quatro pernas preto-azulada muito velha, provavelmente do mesmo material da porta. Tinha um metro quadrado de área e a altura era de uns 90 centímetros a partir do chão. Tinha em meus olhos, então, a extrema atenção para aquilo que iria reparar de ver em cima da mesa, no seu centro perfeito, talvez sempre estando lá, mas absorvido pelo cenário o suficiente para somente ser dissociado do tal momento em que todo ele já fosse completamente examinado por mim. Era uma espécie de boneco. O formato se assemelhava ao humano, mas era disforme, sem rosto numa cabeça fora de proporções com o corpo, com membros finos e longos e com uma cor branca encardido semelhante às gorduras dos animais abatidos num matadouro. E o mais estranho, de um material que não conseguia identificar: entre carne ou pele humana e sabão, com um curioso brilho gelatinoso. 655
Assisti com atenção aquela pequena “criatura” se tornar aos poucos a única coisa realmente presente no absurdo cenário. Como que crescendo lentamente num estranho “zoom” do meu poder de visão. E me fazendo absorver também lentamente toda aquela crescente tensão sobre o que deveria acontecer a seguir, após toda aquela observação... E fora quando, surpreendendo minha visão, que só se enquadrava no boneco, surgira a mão. Uma mão comum. Metade do tamanho do boneco, como parecei dever ser de onde eu observava. Pele branca clara, mas não pálida. Dedos não muito longos, nem muito curtos. Unhas bem cuidadas. E gestos aparentemente normais.... Aproximara-se carinhosamente do que seria o tórax do boneco e com as pontas dos dedos começara a alisar o mesmo local, com aparente extremo afeto... Não vi quem seria... Só sabia que aquele era o meu fetichista: a criatura com aquele fetiche: ter as pequenas coisas às suas mãos: era o que queria controlar.... Acordei tranquilo naquela manhã, e quase já sabia todas as respostas. Quase já sabia o que queria saber. Quase que conseguia me enganar.... Quase.... Sabia o que era o corredor. E sabia quem era o fetichista. Mas meu maior medo era o boneco, que devia ser eu.... E se não for.... as pessoas do corredor não terão mais do que me felicitar.... ou nada.... nunca! 656
Reflexão do que eu deveria realmente sonhar; nos muitos dias que vieram a se passar após aquele, naqueles em que só consigo lembrar a tentativa de tentar esquecer... Não havia saída e eu sabia, como eu tinha reconhecido as mensagens do meu subconsciente após aquela noite, sabia que muito mais que minha saúde mental e felicidade estariam em jogo se falhassem em me encontrar.... Todo o mal estar das terríveis conturbações pelas quais havia passado me deixaram quase que apático à vida diante das ações que viria a tomar futuramente: como uma proeminente avalanche na neve só a espera de um pequeno e agudo grito de “liberdade” para manter-se em destruir tudo a sua frente.... Só dependia de mim mesmo: trabalhar, viver e reconstruir o que tinha de destruir, e para enfim, talvez, entender minhas próprias ações: passadas (as que iria revisitar) e futuras, as quais ainda estou tendo de enfrentar.... com o rigor de quem enfrenta a realidade que de si mesmo se inventa.... “Primeiro o passado....” Pois é sempre pelo meu coração apaixonado que irei morrer.... na certeza de expulsar do mundo tudo que resta de impuro, que talvez devia ser todo aquele doloroso vômito que saíra de dentro de mim naquela noite: com a verdadeira dor de um parto.... de um monstro. 657
.... É de um começo que se gera. O ser humano devia conhecer sempre a mais profunda e verdadeira solidão: muito mais além que seu próprio eu interior concebido como só em algumas ocasiões; mas a valorização de cada um dos momentos que a amizade lhe provém: os poucos, belos e simples instantes de gloriosa convivência, e que não se tornam nas ambíguas dores da ausência do que não se tem, pois o amor pode estar presente na ausência e ele só deve ser o suficiente para preencher o coração solitário... pois se não, o mesmo coração só é preenchido pela presença, e não pelo amor, e se este sempre está presente, o resto se consome na alegria da memória e no reluzir do reencontro... Na memória que seguia junto com a continuação da mesma vida. Porque é da minha solidão que vejo muito além das imagens: Não mais ninguém para gerar outras angústias, revoltas e alegrias, além das minhas próprias.... mais ninguém. Mas porém com todos os outros presentes de dentro de mim... Ia para o trabalho e observava com atenção a luz do dia, que vinha para dentro de meus olhos na falta da real imagem que iria reviver... O fetichista se trazia por sua magra e branca mão para dentro daquela tão pequena lágrima de quem nunca deveria ter sequer encontrado aquela outra bela face refletida na mesma 658
lágrima: a minha face de um tempo atrás, da qual deveria ter fugido no momento em que encontrara aquela dor... O sentimento era meu, e nunca deveria ter sido a dela a lágrima a ser derramada; deveria ter sido a minha... A lágrima daquela admiração, afeição, o que quer que fosse a sensação que ela tinha e que não podia ter sido por mim, pois naquele momento não era eu quem olhava para Silvana chorar, derramar aquela lágrima, era toda a vaidade da criatura que lá se encontrava para atrelar ao meu presente daquele instante o passado que estava, e estou, tentando lembrar para enfim formar, construir e destruir esse futuro... A partir de uma lágrima... Mas fora muito antes: Não sabendo quando num real tempo, pois que a verdadeiramente minha lágrima tinha descido por este mesmo rosto, que agora contemplava mais um cenário do meu dia-adia, o escritório tão bem arrumado por Joana, e de onde, no qual, eu revivia outras imagens somente em minha cabeça... Era o que reacendia o momento: outro período de dor... Quando da primeira vez que Adélia ali entrou: não pretendia ainda saber o que queria sentir por ela, e o que realmente senti; somente lembrava da emoção que praticamente esvaziara o recinto para a sua entrada em meu petrificado coração de tempos: um sentimento que eu queria reconhecer 659
como sendo meu... Podia-se talvez fazê-la ser somente uma sombra do escritor com quem minha afinidade se enfileirava para a atual conversão e interesses, alguns obscuros e assustadores na verdade, mas tão presentes agora quanto na inegável conservação da memória... do que eu deveria temer ao sentir o que sentia no corpo e na alma no momento em que a vi... Numa vontade talvez de me redimir com outros meus últimos atos noa quais se encontravam “a lágrima de Silvana”, e mais anterior a isso... todo amor que ainda sentia por Suzana... Mas ainda sem querer me prender no que viria pela frente, tinha era em Adélia, naquele mesmo momento em que me acomodava na vida real de todos os meus dias (meu escritório), a mesma imagem do referido dia, revendo com detalhes o seu rosto, seu corpo, uma aura emocional que emitia toda luz própria, própria das imagens de um sonho ao amanhecer que encobriu-me ofuscado diante do que realmente era nas mãos do escritor... com certeza a me observar desde aquele instante para o que ele viria a planejar: tudo que ocorrera... e que vai ocorrer. Mas não importando, ainda, diante do fato do que eu conseguia ver naquele rosto dentro da memória: toda uma fértil imaginação desabrochada numa imensa sensação de calor e desejo, algo tão forte quanto o meu manancial de emoção diante 660
da procura da origem, de uma origem para aquele tão real sentimento que revia do mesmo jeito que conseguia remontar a imagem, mas com muito mais força que então, pois vinha somente de mim mesmo e era muito forte; afetando-me fisicamente, muito além da preocupada dissimulação daquele dia sob os olhos do escritor; encabulando-me, pois mais nada havia de real, somente a sala vazia e eu, que lembrava com incrível ardor de uma velha emoção de todos os dias, mas naquele dia... por Adélia, agora não uma mulher, fragmentando até a imagem do escritor ao seu lado e “dominando-a”, apenas uma imagem em minha mente que me fazia ofegar e transpirar sem maiores preocupações: uma ilusão de minha memória: uma criatura viva dentro de mim... De onde veio primeiro a lágrima, e depois a emoção, tão forte, que se sobressaíra de mim mesmo... viria ainda o meu maior temor a ser lembrado... Mais um dia se passara, pouco vira Joana; ou mesmo, realmente trabalhara. Pensava sob mais um pôr-do-sol, chegando em casa, no real que podia ser a minha mentira de mais uma daquelas recordações: como ainda era capaz da tão fantástica transformação de imaginação... em “realidade”. Minha realidade foram todas aquelas imagens que se construíram em minha massa encefálica, mas devia ser na verdade o 661
dia, o trabalho que mal “vi”, e o pôr-do-sol... Aquele crepúsculo em especial que poderia ter sido o mais espetacular de toda minha vida, mas não era, não o foi, foi mais um... Como este amanhecer que ainda posso ver... Era inútil, já devia poder ver, tinha ainda o que aprender, ou apreender. Chegava em casa logo em seguida... Lembrando... “O primeiro momento era a sentença da continuidade por todos os caminhos, com a porta fechada dentro de um sonho real: os gritos enlouquecidos de quase cem pessoas num ambiente escuro e semi-iluminado pelo espetáculo que era o show daqueles meus amigos: “Gridlock” é uma expressão em inglês que designa uma corruptela extrema da sensação de se estar preso; não realmente encarcerado, mas sem nenhuma saída de onde se encontra, ou melhor, talvez, sempre andando em círculos pelo mesmo tipo de situação (e tortura) a qual o trouxera para tal... Muito afim com minha situação, me perecia, ironicamente: estava de volta naquela situação daquele show, e via novamente tudo que tinha que tinha que ver: os gritos, as imagens, aqueles pedaços de vísceras flutuantes penetrando em meus olhos como se fossem a primeira absorção da natureza da criatura que agora ainda contenho, gerando meus olhos e minha visão, para enfim encontrar a 662
verdadeira emoção do momento... Suspirava em alguns momentos, evitando pensar no que iria pensar, pois sabia qual a reação que já começava a tomar posse do meu coração: de suas batidas intensas e rápidas por causa de toda a violência do momento, misturando a música e o show com o que eu imaginei de tão horrível naquele momento, para a contínua dor retorcida dentro do peito, junto com as velozes batidas, pela razão da próxima imagem, que nem eu mais sabia o quanto doía, ou porque tanto doía... Era quando então estava sendo finalmente, novamente, o boneco nas mãos do fetichista... pois a percepção da imagem dolorosa me acariciava com suas mãos brancas e magras, deixando-me completamente vulnerável, talvez incapaz de rever, pronta para me revelar, para me maltratar com a coisa da qual fugira com tanto empenho por todos esses meses, quase um ano, trazendo-me de volta, preso... Misturando toda paixão que ainda nutria, o amor e a amizade, o desprezo e a ausência, o medo e a inesperança, com muito mais poder que da primeira vez em que tive de conter uma terrível imagem de imaginação por um grito inaudível naquele ambiente para enfim ter de ver, como vejo novamente em minha mente, com as mãos trêmulas e o insistente repicar do meu coração, agora sozinho em minha casa, mas cercado 663
pela presença daquela multidão ilusória... aquele primeiro momento, o que continha toda a mágoa e inveja, todo meu amor por Suzana: o beijo que enfim testemunhava, dela em Marco, longe do que eu queria realmente ter pensado, pois que o fora viria mais tarde a partir do medo, mas era sem dúvida o que mais marcava o começo da história; e doía, como dói até hoje, ao lembrar, não importando o quão diferente é a situação, nas mãos do monstro todo poder que veio e me derrotou na incerteza dessa construção, e do sonho da mesma noite ao me ser apresentado o teu ser... o do monstro na visão.” Podia então ver o que estava escondido num pequeno aspecto do todo: do monstro ao sonho, da visão ao beijo, do começo à origem, recorrendo ao mundo do escritor, desde antes e passando por tudo, e agora revendo sua pergunta: “O que está escondido...” Tomava emprestado de mim mesmo o que o escritor vira na escuridão de minhas palavras para poder retomar a decisão do reencontro. Das dores que teria de reviver a partir de então, desejava não ver mais nada além de mim mesmo, ver a capacidade de fugir para um interior tão obscuro que nem mesmo eu conseguia ver estando de olhos aberto: algo que lembrava a minha morte dia após dia, pois não me deixava esquecer as razões de um talento e de uma 664
arte... A dor tinha que ser sentida com o empenho que se prestava, para poder enfim trazer a razão para tal. Não como tinha tido de viver naqueles últimos tempos: tão duro quanto a própria dor para poder resistir a ela, sem es reais consequências medidas de com quem estava sendo duro e cruel para minha própria proteção, e tornando forte tão horrenda criatura quanto a mim mesmo em todos aqueles momentos em que me negava a pensar no passado e me imaginar de bem com o mesmo. Nunca deveria evitar, para não ter de cruzar com o mesmo de uma forma tão agressiva, como estava sendo agora, eternamente preso, ainda... Não podia mais esconder!... Não podia, e tinha um estranho barulho quase ensurdecedor dentro de todo aquele silêncio que era meu solitário lar... Uma batida rápida e cheia de diferentes ritmos, em nos momentos de alienação e agressividade: alguma coisa da poderosa lembrança em minha cabeça, que também doía com as mesmas batidas, junto com as dores que flutuavam entre aquele som e as minhas recordações cheias da imaginação de um triste sonhador que se reencontrava na sua arte, como há muito não fazia, somente com a intenção de ver expulso de dentro de si um monstro que o transformara, para enfim destruílo... Eu, já quase, sentindo o “sabor” das dores... Era o barulho da máquina de escrever dentro de 665
minha cabeça, colocando o tom das minhas imagens, sem ao menos me aperceber que estava sentado à frente dela, estando onde sempre esteve, de onde nunca saiu, mas por muito permaneceu em silêncio: e naquele momento, sem música, sem semi-toques, e quase sem reflexões, quando via a primeira linha e sem sentir já começava a escrever... a história de uma vida em primeira pessoa, para poder libertar outra, a mesma, começando por onde deveria começar: seu fim: sendo a interpretação de sua origem... O barulho prosseguia... “Ver o mundo e gritar na origem de uma imagem de terror. É como porém narrar o meu próprio fim conhecendo vivamente o começo de tudo que virá após... Eram as luzes dos carros...” *(ver o começo da história) UM FIM... Não podia prever o quão certo estava; mesmo nos mais ínfimos detalhes de minha imaginação, e no que eu deveria fazer... depois. Trabalhando por mais de três horas sem parar me encontrava num estado tal de exaustão (e felicidade... por voltar a escrever... e daquele jeito) que quis simplesmente me arrastar até o quarto e dormir... Estava por completar a décima nona página do meu 666
memorial de intervenções criativas na realidade, mas sentia precisar, além da necessidade contínua de escrever, de um banho e da escuridão calma da minha cama: de relaxar como há muito não relaxava... As imagens ainda me permeavam as ações, mas sentia serem em suas impaciências uma grande força para o meu conforto: como a angústia derrotando a própria angústia com sua face mórbida, e era o que era, como eu sentia tal estranha sensação, ainda repicando as batidas do meu coração no mesmo compasso da máquina de escrever... Tomei banho e finalmente me deitei. O perfume da escuridão e do silêncio me tomava por completo; sentindo em cada instante o calor de minha respiração, que se acalmava cada vez mais, em minhas narinas ainda semi-ofegantes. Meu peito se preenchendo e se esvaziando de ar cada vez mais leve e o meu coração liberando batidas calmas e ritmadas faziam começar a esquecer dos selvagens toques da datilografia na máquina de escrever; trazendo a suave sensação da sonolência naquele início de verão do hemisfério sul, que já era, confortável, quente e doce... Mas ainda não adormecia: fora em um daqueles pensamentos que antecedem o sono que revivi vindo do nada a pronúncia de uma pergunta que o escritor me fizera no dia após aquele evento de confraternização; no dia que fora a data; uma pergunta no meio da 667
conversa, ou quase melhor, no meio do monólogo, a que dizia quase sem pretensão, pelo menos aparente, e que fora seguida por um lamento à minha resposta: Ele perguntou: “Quem mais era que estava com você quando você escrevia?” De repente me via querendo tentar entender a tal pergunta, mas de modo a dar uma resposta que fosse ao ponto inteligente de minha própria compreensão: pois com certeza o escritor parecia compreender... Porém, simplesmente me perdia nas divagações... Meus olhos estavam por um instante abertos, como que a contemplar a ingratidão de minha “ignorância”; podia ver em meio aos vultos e sombras do meu quarto o quanto a escuridão podia ser tão vazia e tão “preenchida” ao mesmo tempo... Fechava novamente os olhos e vi o que não tinha que ver. Não era na verdade o que deveria ser: mais uma sombra no meio das sombras; pois como tinha de comprovar para mim mesmo depois da final constatação.... Não era ainda um sonho, absurdo, como poderia: ainda estava totalmente acordado apesar da sonolência.... Olhava na distância perto da parede logo a minha frente e tentava fixar-me com nitidez com algo que não deveria estar ali, mas estava, e me convencia em constatar tal realidade à medida que o medo surgira para fazer companhia à escura escuridão.... Olhava paralisado por mais tempo que 668
podia e me assustava cada vez mais ao ver que era eu a ser observado....Ainda pensando: “Quem estava com você....” Num eco das palavras do escritor.... Seria aquilo então, que eu sentia me observar na escuridão, em silêncio e imóvel, o que estava o tempo todo comigo a espreita de um mero sinal de fraqueza (e esperança) no interior para poder aparecer e começar a mostrar sua face para o seu criador: integralmente e físico como sempre gostaria de ser.... Real, como eu agora tinha de admitir sê-lo, pois o via em minha frente....? Era, sem dúvida: na forma de um homem real, mas não um homem real; feito dos restos de minhas sombras e se materializando segundo as minhas emoções.... agora expostas: com a mesma dor no olhar e agressividade na expressão mórbida de um observador/predador a espera de uma oportuna tocaia.... Olhava, olhava e olhava: a criatura continuava lá; escuro como a escuridão, imóvel como todo o ambiente, somente uma figura saída da dor; com o contorno da noite, com a minha própria expressão do espanto, sem ainda realmente ter um rosto definido, e francamente indeciso em suas ações: um observador ainda.... mas sem dúvida lá.... a me observar. 669
Olhava, olhava e olhava: continuava lá... E em algum momento eu adormeci. Mas sabia que estava lá! # Ouvia pacientemente o som característico do telefone tocando na outra linha, enquanto aguardava que alguém atendesse a minha chamada.... Contava a terceira vez daquele ruído dentro do meu ouvido e me faziam transbordar cada toque na expectativa de que a pessoa viesse de onde fosse dentro daquele mundo de ondas e fibras óticas, completamente oculto na escuridão da tecnologia, para ser um ser humano e falar comigo mais que aquele insignificante significativo barulho. Pois atendendo a me divagar por aqueles instantes me via novamente pensando nos dias que se passaram recentemente, quando a sombra de imagem viera me atormentar com sua obscura presença por angustiantes momentos sempre seguintes a eu escrever.... Pensava nisso com apreensão, pois era a ausência que instigava a fantasia: a minha angústia a qual com tanta satisfação estava aprendendo a enfrentar e ao mesmo tempo a usar como alimento para a arte, também estava trazendo à vida uma coisa que nunca deveria existir 670
além do plano das criações.... Por mais reais que fossem as minhas imagens, lembranças e descrições do bizarro fantástico mundo de minha mente solitária e triste; provocando, inclusive, todos aqueles horrores e ao mesmo tempo, mais tarde, prazeres; não deveria surgir à minha frente, com tanta insistência em me assustar com sua obscura imobilidade incógnita, toda noite, aquela mórbida figura da escuridão. E por isso não se tornava mais uma ausência que penetrava meu coração com a falta de uma voz amiga e amorosa: uma voz com um nome próprio, de depois a ser mencionado.... Mas sim, o que se tornava na versão do momento de minha ansiedade, uma presença, o era. # Atravessava o meio da tarde no escritório naquele momento em que aguardava atenderem aquela ligação: já vinha o quarto toque em meio à toda aquela apreensão, e não muito mais, e sim o bastante para tudo que viria, era o que não podia esperar de uma conversa que tinha que ter.... Ligava para Adélia. Sabia que era pelo momento em que ela costumava chegar do trabalho no Instituto de Criminalística do Estado: seu trabalho nunca me pareceria tão inóspito 671
como qualquer outra pessoa imaginaria, por ela ter de conviver e analisar criminosos e desajustados, como também suas evidências de futuras atitudes para poder traçar os perfis de tais criaturas; mesmo ainda sendo no começo de uma estranha carreira, na qual escolhera tal área do trabalho psiquiátrico, ao invés da psicanálise, com clientes comuns e ricos com problemas não muito sérios se comparar com a psicose de um assassino que mata mulheres, se utiliza de necrofilia e depois as desfigura.... Mas se tratava de Adélia: uma mulher que convivia (afetivamente) com o escritor.... e era o mesmo que conviver com o deus que criara o tal assassino de mulheres, pois de fato ele escrevera uma história assim: com esse impulso na sua índole (o personagem).... E por isso não me surpreendia sua escolha: estranha Adélia.... Já vinha, então, a quinta vez que o telefone tocava na linha, e eu já considerava a possibilidade de ela ainda não ter chegado, e logo iria desligar; mas ainda não o fiz, num momento de hesitação antes da sexta vez.... E foi finalmente que Adélia veio, e num momento eu estava novamente com ela.... por sua voz. - ...Não importa que tenha acontecido. Foi tanto o tempo quanto foi necessário! - Falava Adélia. - Necessário?! Para que?.... Não entendo, Adélia, o porquê desse afastamento.... De uma atitude 672
tão impetuosa para depois toda essa insensibilidade.... - Por respeito, talvez... Tente me responder como em momento algum você se deteve.... - A verdade no fato, pois do primeiro momento, até quando ela veio até mim, nunca fiz nenhum gesto de contra pressão; onde deveria surgir a imagem do escritor como o amigo a quem devo considerar.... Era muito, porém, para manter, Adélia, aquela fria atitude sobre o assunto; e era como eu sabia que seria, desde o momento em que soube que voltaria a procurá-la para conhecer o que quer que ainda restasse daquela noite.... Nada! Era o que parecia ser: à luz sombria de suas respostas. Sentia como que conversando com uma estranha, sem nenhum interesse verdadeiro: coisa alguma além de uma pessoa desprezando o que eu simplesmente pedia como resposta... - ... Mas por que, Adélia?.... Não posso nem saber porque houve tudo aquilo e logo depois mais nada além de suas evasivas.... - Da minha consciência de que o escritor tinha consciência de todos os fatos residia o único fato de favor pelo que eu com tanto empenho questionava, mas a cada revés, a cada palavra solta num mar sem sentido e frio das incógnitas daquela mulher, via que não me restaria muito, por qualquer que fosse a minha utilidade para eles (principalmente o escritor), a conhecer dentro 673
daquela intestina trama de um homem só.... Só mais tarde conheceria um dos fatos, porém, permanecendo fora de todo mistério.... Pois Adélia eu só tinha o adeus, a despedida de um momento, quase totalmente sem sentido, mais uma história do passado que ficava para trás.... - ...Então, adeus, Adélia... Só espero que tudo isso não ter sido em vão.... E que a razão seja uma boa razão.... Sendo sua ou não.... (Numa clara alusão à influência do escritor sobre ela.) - E ela: - Adeus! - Desligamos. Resistindo em mim somente a sensação que tinha aprendido muito pouco, saindo um pouco de mim mesmo e do meu mundo, sobre um mundo muito distante, o mundo do escritor.... Apenas refletia um instante, com calor, a respeito daqueles momentos dentro da lembrança de Adélia, e de como o palco se ajustava para ser apenas a minha atuação, sem os percalços das deles, dando mais um motivo para a solidão, para a imaginação e para mim mesmo: um verdadeiro eu. Ainda naquela mesma semana outro personagem veio de novo surgir depois de muito tempo fora para intervir em nome do escritor, seu cliente: o amigo incontestável e realmente fora de nós dois apesar da ligação.... Valter, o advogado, vinha representar seu mais antigo cliente e amigo em minha presença... 674
O escritor havia viajado e o deixara incumbido de fazer os resgates mensais de investimentos e resolver outros quaisquer problemas, mas que na verdade não haviam. Houve a suave amenidade de extratos e cheques trazidos por Joana, mediante dos sorrisos de pessoas que não se devem nada além da simpatia de suas presenças: não lhe ocorreria, a Valter, o quão importante era por ser justamente o ser imparcial da história.... Atravessados alguns minutos daquela manhã, e já praticamente concluídos os trabalhos que geraram a visita, sentia o olhar do amigo/advogado guardando alguma séria preocupação.... Joana saíra discretamente após entregar devidamente relacionados e justificados os relatórios de investimentos; antes de fechar a porta me fizera um característico sinal que significava que estaria à disposição para qualquer necessidade que houvesse dali em diante.... Ficamos sós. Devia notar ele, um certo abatimento que gradativamente me sobrevinha à medida dos meus dias, como até agora.... Já eram possíveis de se notar os incontáveis cabelos brancos que começavam a se sobressair entre os meus normais de cor castanha.... Indistintos agora por quase que pelo contrário.... Mas além disso uma aparência que eu sabia ser cada vez mais pálida, apática e assustada.... De modo algum podia me referir à 675
criatura que me visitava regularmente a cada noite em que sentava e escrevia: de apelos por minha sanidade, bastavam os meus próprios.... Mas tinha de fato que me referir a alguma coisa tão fortemente dentro de mim, que começava a ser notado, tão amigavelmente, por alguém de fora, e de certa forma tão distante, pois pouco o via... Era verdade sua preocupação. - Por que você está abatido?... Parece tenso... De um sorriso nervoso que só ele poderia notar: como alguém que há muito não via, e nitidamente naquele momento tinha vontade de ver, por ser tão vulnerável a minha poderosa apreensão.... Pensava no mundo, no geral, então, para lhe ser claro sobre mim mesmo: não sabia se ele poderia ajudar... ou não. Sentados como em muitos comuns momentos de nossas vidas: do advogado e do “conselheiro de finanças”... Mas somente dois homens, quando de nós veio o mundo. - Como entender a complexidade do mundo quando não mais conseguimos ver a beleza de nós mesmo e só vemos a beleza a partir de outros... Quem contém a razão, afinal; se a única beleza que vejo esta no meu amor e na minha arte, que me destroem ao mesmo tempo que eu as alimento... Feliz é aquele, por não pensar, que foge e não vê; não vê que foge e só enxerga o que vê.... Ansiaria então não pensar, 676
mas isso também significaria deixar de amar e também deixar de criar a minha arte... e disso, por consequência, eu também não existiria, nada haveria, nem arte, nem amor... Anseio então o sacrifício de ser como sou. - Vejo que um problema muito comum te alcançou desde o momento em que você decidiu seguir o mesmo caminho do escritor. Vejo seu transtorno por tudo isso que está tendo de passar: seja o que for de muito diferente de mim, ou mesmo do escritor, é algo de comum... Ele também passou; mas não se engane nunca: o escritor é muito forte: sobrepôs tudo isso e hoje é como é... Se posso lhe dar um conselho de justiça: não vá além de si mesmo, pois poderá atingir outros, e ai, a responsabilidade não estará somente em suas mãos... Os homens e as leis terão de intervir! Observava e absorvia o que o advogado dizia com o estranho reconhecimento de minha realidade. Não conseguia deixar de imaginar que o que eu tinha criado além de mim era a criatura, e que eventualmente esse monstro sairia do meu controle, e os homens e as leis teriam de intervir... - Mas o que são os homens e as leis, Valter?... Não sei se consigo acompanhá-lo com a exata perfeição do que fala, apesar de entender tudo que diz... - Ambos respiramos um pouco em silêncio: via677
me novamente em transtorno e expectativa dentro daquele escritório, e como das outras vezes tinha de conter mais um pequeno passo para o dia de hoje nas mãos de mais um personagem que agora aqui se dirige a mim, novamente.... E do olhar cansado me via outra vez transformado numa criança (excitada e com medo) aprendendo sobre o mundo e sobre si mesma. Ele disse: - Das leis se veem no horizonte a tentativa da ordem em mundo gerado do caos. O homem tenta de todas as maneiras sobrepor a sua natureza de destruidor para dominar a si mesmo... E dos homens deveria se ver o sacrifício em nome das suas próprias leis: o sacrificado não é somente o mártir da conquista de uma ordem universal; é também aquele que se despoja da própria felicidade em nome da de todos os outros sobreviventes de um mundo tão cruel quanto o próprio homem, mas capaz de guardar uma beleza tão inigualável quanto a do próprio ser... São dos homens e das leis, meu amigo; é do que se trata o sacrifício pela ordem.... Mas isso é apenas uma opinião filosófica de um mero advogado... - (Eu sorri reconfortado.) Você é brilhante, Valter. - Era o homem e a lei, na forma do simples amigo. Quando mais teria uma palavra como aquelas 678
de tanto sentido?... E na oportunidade realmente seriam, pois me davam quase um nome, um termo, a que chamar a minha inextinguível dor: sacrifício... O advogado se fora, mas eu ainda o veria além, porém o que dizia que seria uma tão importante participação se fora agora, em tempos atrás, de uma menção de memória após outra... Eventualmente voltava a escrever. Em mais um dia. Mais um... Estava em um momento da trama em que tinha encarado aquela forte dor, e decidira deixar tudo para trás: revivendo tudo... a cada palavra: (Era noite!)... “Deus do céu! Como pude deixar acontecer... Tinha...” Parara em silêncio, então; ainda sufocado por tudo aquilo que passara... outra vez. E com mais força, pois era só meu.... A dor era tanta que eu sentia esmagarem-se os restos do meu coração; imaginando trocar toda uma vida de insustentável tristeza e agonia por um único momento de amor eterno... Podia ver, via e revia, sentia em todos os poros a textura de uma pele que nunca mais encontrara, e sonhava com um leve toque nos lábios que nunca houve, que de uma lisura fria e leve se transformaria no encontro de minha alma com as batidas de um coração há muito perdidos nas 679
lembranças e em minha imaginação... Quase já não era mais uma pessoa real de tão forte que era sua imagem em minha mente, refazendo naqueles episódios a dor de um dia, que se transformaram em todos os dias, e que persistiu por todos os momentos de glória e desprezo deste que se desfaz em palavras... A dor reconhecida e vivida do homem que se debruça sobre sua arte (a máquina de escrever e sua obra) e sente o calor das lágrimas escorrerem como o sangue daquele que morre sozinho na chuva sem ter ninguém que o assista: solitário, enlouquecido e imobilizado por tal imensa tristeza e tal dolorosa paixão (Suzy...)... E dói tanto na lembrança quanto agora; mas mais ainda se fora na noite adormecida ao redor de meu leito insone... Dormi ali, debruçado na máquina, tendo como última sensação antes do sono o salgado das minhas lágrimas e a imagem de Suzana a me beijar, já quase tudo em um sonho só. A madrugada rasgava minha alma com a escuridão do meu sono, e a sombra já devia estar lá a minha espera... A luz estava acesa... “Era uma mulher linda. Perfeita como deve ser na linguagem de um sonho. Vinha para me revelar em lembranças o que eu tinha de tão especial por querê-la tanto: não porque a amava tanto (para isso não existe explicação), mas para me mostrar sua doce imagem 680
que emergia de toda a dor de antes do sono: a minha melhor parte de bom... Suzana estudava medicina e eu a amava, mas não era só isso. Era a melhor amiga que tive e talvez nunca tenha merecido ter. Via em sua vida tudo que existe na vida de uma pessoa comum e também uma certa fragilidade: não poderia protegê-la por mais que quisesse.... Não havia razão para tanto em nenhum momento ela observaria, pois em cada encontro, em cada momento, em cada conversa, só se fazia existir a confiança... mas se subestimava, e o que eu sentia e sinto, a amo. A paixão pode ter surgido em qualquer momento entre minha admiração por sua beleza e por seu caráter, e um abraço forte e carinhoso que me dera no pátio de entrada de um dos prédios onde ela estudava na universidade de medicina, numa das despedidas de nossos ocasionais encontros... Não sou capaz de acertar sobre este ou aquele sentimento que só sei que existe... Conversávamos a respeito de tudo que a medida do tempo ia permitindo: via algumas vezes transtorno em seus olhos, mas de seus lábios sempre me chegavam a alegria, que ela também parecia ter ao estar comigo.... E de outras imagens presentes desde antes até aquele momento: seus problemas com um certo namorado de muito tempo, suas dores escondidas em faces do que eu tentava representar para ela, mas nunca conseguia 681
além do poder um bom amigo.... Até o instante em que sua relação com Marco começara e uma dor muito maior me sobreveio, e não pude resistir, aguentando o máximo que pude, e me reconhecendo afinal como o que sou, e talvez ela nunca me perdoe pelo que faço comigo mesmo.... Ou talvez não ligue; o que sinceramente duvido ao ver seu rosto novamente a me olhar, como de modo de antigamente: antes dos problemas, antes dos monstros; mostrando para mim o quão bom foram aquelas lembranças de uma mulher que muito amava a todos, mas que era humana.... E um mistério como todos nós somos, e que não controlam o que sentem, e por isso geram “demônios” dentro de si, cometendo erros, se desculpando, se destruindo, e eventualmente aprendendo.... Certa vez disse que gostava muito dela. Certa vez ela disse que me ligaria e não ligou.... Que importância pode ter se o meu amor por “você” é tão grande que vive junto das dolorosas batidas do meu coração.... Sua imagem começava a se afastar na escuridão. Queria me sentir grato pela visita, mas queria mais, de mais que uma forte ausência que pressionava minha alma há tanto tempo.... Ouvia então meus pensamentos junto com as batidas do coração, e com o seu distanciamento, dizendo: Suzana.... Suzana...” - Suzana... - Eu ouvi. E parecia minha voz, 682
mas não o era. Mesmo dentro do sonho minha voz parecia a minha, e aquela que acabara de ouvir ao acordar não era a minha de modo algum.... Tinha um tom grave e interior; muito diferente de minha rouca, fraca e arrastada voz, quase sempre carregando anteriormente um pigarro de hesitação: algo com a necessidade de representar com cuidado o que tinha de falar antes de fazê-lo... Definitivamente não era a minha voz que eu ouvira dizer “Suzana”, de repente me acordando do meu sono, de um sonho onde eu pronunciava justamente o mesmo nome: na forma dos sonhos, somente ouvido dentro das nuances do inconsciente, e não capaz de me acordar no meio da madrugada.... Ou era por tão triste que se tornara?... Senti meus olhos se abrirem com espanto ao ouvir nitidamente a voz que me acordara: parecia um daqueles pedaços de sonhos que estão do lado de fora do subconsciente; como o som de despertador no mesmo instante em que se está no meio de um engarrafamento e todos os carros começam a buzinar de repente, e assim se acorda... Porém mesmo após abrir meus olhos era a escuridão quem dominava o ambiente. Por alguns instantes duvidei ter realmente acordado, e logo também duvidava estar de olhos abertos: a razão pois disso era que tinha na memória duas coisas muito importantes: a primeira era que eu 683
sabia que o que eu estava tendo era um sonho, e por isso eu poderia muito bem continuar no mesmo, só que agora, a partir daquele momento em que Suzana sumira no sonho e eu chamara por ela, eu não tinha mais consciência de que era um sonho (mas logo achei isso muito pouco possível, mediante ao meu breve raciocínio sobre o assunto, achando ainda estar dormindo); a segunda coisa era que eu adormecera enquanto escrevia, e tinha deixado a luz acesa, mediante da minha imobilidade, cansaço e tristeza antes (e durante) de me debruçar e dormir... Então o porquê da escuridão?... Imediatamente após duvidar de meu despertar notei que realmente estava acordado: meu peso e a minha posição sobre a máquina estavam me causando um leve, mas persistente, incômodo nos braços, antebraços e ombros. E talvez tivesse sido isso que me fez acordar, mas não era ainda forte o bastante para tanto: não devia ter dormido mais que duas horas; uma sensação muito mais forte se formaria mais tarde, se eu continuasse a ali dormir... E também havia outra razão para eu não acreditar que o que me acordara fora aquela pequena dor: a voz tinha sido a razão, e tomava consciência da certeza de essa ser a razão, cada vez mais que naqueles rápidos segundos eu ia eliminando as outras razões, e mais que tudo, continuava na escuridão.... Alguém ou alguma coisa 684
havia apagado a luz. E esse mesmo alguém ou alguma coisa tinha entrado no meu sonho para dizer o nome “Suzana” me trazendo de volta dele, estando do lado de fora, naquela minha sala, me esperando voltar (acordar), dizendo o mesmo nome “Suzana”, em naquela terrível voz... - Fraco! - A voz grave e interior novamente falou, e desta vez eu estava completamente acordado... Levantei a cabeça num sobressalto me colocando ereto na cadeira... E foi então que vi: de pé à minha frente, do outro lado da mesa, grande, monstruoso e truculento, numa imóvel pose ameaçadora; o que a sombra insegura dos outros dias se tornara: a criatura feita de horror e com expressão negra do seu propósito, agora totalmente agressor... Encarei com o imenso pavor de quem vê o próprio destino aquela coisa gigantesca olhando para mim: quase me atravessando com sua visão; podia distinguir a expressão horrenda e escura por dentro da própria escuridão de seu rosto, como nunca poderia ser em se tratando de uma sombra; mas permanecia ali, e eu podia ver esse rosto... E ele disse “fraco” com aquela voz... Temi em me ver pensar que aquilo não podia ser, mas estava ali, pronto a atacar; e sem dúvida guardava muita revolta... E nesse aterrorizante segundo a criatura se precipitou sobre mim, fazendo me cair para trás ainda na cadeira, onde 685
estava paralisado de pavor, e finalmente apagar.... Na manhã que viera acordara com a terrível dor que latejava minha cabeça e minhas costas.... Estava no chão, ainda temendo me lembrar o que havia acontecido, com a cabeça apoiada no chão duro de madeira e as costas repartidas entre o mesmo chão e o metal, também duro, das costas da cadeira. Não me sentia com nenhuma contusão além do desconforto da madrugada. Eram dez e vinte da manhã: sem dúvida já estava bastante atrasado para o trabalho, mas essa não era minha maior preocupação... Ainda via nitidamente aquele monstro escuro e selvagem voar em minha direção por sobre a mesa me fazendo desabar de costas... A luz do dia parecia me aliviar por instantes do pavor e do susto da madrugada que passara, mas essa luz também não trazia o remédio integral para o meu crescente horror... Levantei-me do chão com extrema dificuldade, pelas terríveis dores na nuca e na coluna. Olhei novamente com mais firmeza para o relógio de parede confirmando o adiantado da hora. Procurava em mim algum sinal do ataque, como num ato instintivo de procura também de um pedaço de minha sanidade que parecia ter perdido; mas nada encontrei. As dores permaneciam enquanto eu cambaleava. Levantei a cadeira que estava caída, e ao colocá-la no lugar dei uma olhada na máquina 686
de escrever: estava no mesmo lugar: também não parecia ter sido movida.... A última coisa escrita era: “O meu”... E então voltei minha cabeça (e olhos) para cima, vagarosamente, em atenção à terrível dor, e pude ver o que já havia observado antes, indiretamente, sobre a máquina e sobre mim, e sobre tudo, o que se tornaria um maior terror: o da dúvida... Senti em minha expressão A luz estava acesa. ### Estava determinado a continuar... Se era escrever o porto onde eu atracava minha imaginação com a crua realidade, para enfim ter alguma segurança nos caminhos que a vida estava tomando, então tinha de continuar aquele tão bizarramente estranho personagem o qual se tornava a mim mesmo a cada palavra, e a cada instante, em que eu consumava a busca pela minha “origem”... E se isso realmente trouxe à vida o demônio que agora tenho de enfrentar e destruir, então preciso ver todo o contexto como base de uma coisa só, que são as conseqüências de minhas ações... Por isso retornei o mais fundo que pude para me ver num dia em que um promissor e ajustado ser humano se tornava algo de assustador para 687
si mesmo... Partindo de um crescente desprezo pelas relações familiares, as quais sempre se mostraram turbulentas, com o resguardo de todas as desgraças por um longo tempo deter, acompanhando a tortura dos pais um dia após o outro de um casamento que por muito tempo esteve em seu fim; mas que na verdade nunca o chegou: passados presentes muitos episódios de desagradável ascensão de um forte desamor, corrompido este seu tão glorioso antagônico com todas as nuances das pessoas sempre a querer algo que não têm e que não sabem o que é... Explicou-me então tantos momentos de surpresa e desgosto ao vê-los suturar a infelicidade com momentos juntos que logo geravam momentos separados; assim como também esclareceu-me tal agressividade em tais momentos de minha imaginação.... São os momentos estranhos e conturbados da construção de um personalidade que cedo ou tarde se tornaria a minha: dúbia em muitos momentos: cheio de paixão pela vida; e no instante seguinte imaginando sangrar a todos em volta com seus sentimentos de revolta e dor... E ao nunca superar a perda de um lar desfeito e infeliz, permeado das mentiras dos lábios de todos que crêem que o que está na mente é apenas imaginação; mas não é, e eu sou aquele que sabe disso melhor do que ninguém.... Pois não mais além que muitas situações 688
cheias das minúcias que compõem a nosso psiquê: desconsideração por outros parentes, inclusive os que deveriam ser os mais próximos; desprezo pela amizade de amigos que sempre nos amam sem condições; fuga do amor desprezado como sendo a última coisa da vida; e ignorando tudo que há de sobre-humano em alguém que suporta uma carga afetiva tão grande dentro de si, mas sem ninguém para absorvê-la além da criatura que se aproveita de sua fraqueza, e toma para si o seu corpo, e o faz agir como não é, até descobrir que pode expulsá-lo, combatê-lo e destruílo... E mesmo no fim valendo a pena não deixar tal criatura vencer... Pois é sempre ela: o monstro de minha criação, e demônio de todas as noites, a criatura das sombras... quem estava sempre lá. Disputando comigo entre medo e agressão, quem suportaria por mais tempo a própria visão de mim mesmo... agora.... Porque era de antes que ainda se tratava enquanto eu continuava a escrever, trazendo de todo o passado a origem de todo presente (futuro, etc.)... Sempre no mesmo local, à noite, temendo a sua aparição, atravessando dias de transtorno e vontade, trabalhando sem muito empenho, mas me achando no meio de todo aquele mar de emoção. Descobria que todo aquele tempo tentando tão avidamente me defender só fez 689
contribuir para a fortificação da criatura, que agora só faz colher os frutos de toda essa acumulação de força, se expondo e fazendo eu ter que me destruir para poder também extingui-lo de sua tão ardorosa causa de agressividade e desprezo pela vida... Ao se tornar tão determinada dentro de mim, fora de mim (eu mesmo) pode significar toda uma triste devastação... E o meu maior medo era começar a gostar disso... Pois via que expor tão abertamente meus sentimentos para mim mesmo causava uma maior violência na presença da criatura: ela também sabia que a minha única forma de enfrentá-la era enfrentando a mim mesmo em minhas pessoais torturas de uma vida que a construiu... Porém momentos me desencorajavam por tanto me machucar de dentro para fora e de fora para dentro ao recordar, e muitas vezes caminhava para trás, mas na maioria das vezes eu estava indo em frente com a história, e mais também sofria, e em muitos momentos não conseguia mais acordar do pesadelo que era me enfrentar... noite após noite. Aquele maldito demônio queria ser eu! Eu queria ser um anjo; ou simplesmente normal... Certo dia, então, em mais uma noite, o vento soprou janela a dentro enquanto eu parado em frente da máquina de escrever sentia os efeitos de 690
uma prazerosa saudade... Concluíra de escrever algo de não muito referente a quem eu começava a lembrar, naquele momento até sua distância no momento em que se encontrava a história causava a sensação: a saudade com alento no coração do vento frio da madrugada que balançava suavemente a luz da sala, causando leves distorções em minha visão já embaçada pela procura da memória na parte branca do papel em minha frente; não que logo eu fosse escrever sobre isso, mas que me sentia como adormecer no rondar do amanhecer para num suave sonho acordado sentir, realmente, o quanto tempo já fazia que vira Suzana pela última vez: me surpreendia ao perceber que ainda conseguia construir seu rosto com tanta perfeição em minha mente... Com uma leve dor ainda no coração, pela distância que eu mesmo causei, de tantos sentimentos obscuros escondidos da luz como a sombra da criatura: só sempre esperando o momento de trazer de volta toda a sua face... No caso daquela saudade sob o desfocar de minha visão e sob a brisa suave da noite trazendo pela janela o cheiro da paz de um novo dia a ser vivido, a face era uma saudosa felicidade que nunca realmente houve, mas que sempre pareceu estar lá, em minha imaginação... Porém no caso da criatura era somente a expectativa de sua nova aparição vinda do breu noturno, 691
fortificando-se de minha fraqueza, e sempre tornando mais poderosa a sua presença: a face do horror... Triste, mas ainda assim, pensava em Suzana... E continuava no limite do meu desejo de reencontrála, no limite do sonho que vinha do passado, o que fazia se mover na escuridão o ser que mais temia; de tudo além que imaginei para mim (para você)... Sentia no torpe desfocar, entre a saudade, a dor e a imaginação; o forte calor da escuridão se apresentar à minha frente... - Sempre ela... - Era a voz grave novamente, menos interior do que antes, fazendo tudo mais se escurecer e desaparecer sem mais nenhuma lembrança das imagens (ou da saudade), ficando apenas o medo... Voltava minha cabeça para o lado direito da escuridão, onde deveria haver a estante de minha sala e uma parcela da parede que ia até a porta... Sabia que tinha de me virar para lá... Não havia mais o que deveria; como eu já sabia. Podia sentir o hálito quente vindo de uma parte mais profunda da escuridão, aquela parte a qual geralmente se recorta para nela se transformar: uma mancha negra em forma grotescamente humana, mas nunca humana... Vira então a expressão do real demônio em que a sombra se tornara. Emergindo da mais profunda escuridão em volta de todo ambiente, como nunca deveria ser em se tratando de um 692
apartamento com janelas abertas, existindo lá fora a luz da rua e do luar, e sendo uma sala de paredes brancas; como não mais pareciam ser, pois havia somente a escuridão e seu personagem principal além de mim... Vi o que poderia chamar de seus olhos me fitarem com a mais clara e delineada expressão de ódio e maldade: era como uma velha e esquecida expressão de mim mesmo, mas que com o tempo e todas as fugas possíveis daquele tipo de natureza agressiva e vil, se tornara a face de uma criatura do meu profundo interior... E agora, naquele momento de gelada tensão, em que eu sentia meu coração repicar de medo, com toda a adrenalina que meu corpo podia produzir saltando velozmente por todos os vasos e veias do meu nervoso sistema circulatório, eu via que meu profundo interior estava no exterior e pronto a me atacar com extrema violência e visceralidade... para fazer-me temer o que ela, a criatura, mais quer ser: eu... - FRACO... - Eu ouvia novamente pela voz grave. Completamente irada e cheia de poder; querendo sobreviver... Sentia que precisaria me proteger, mas naquele instante em que olhava para aqueles olhos no meio da escuridão, tão cheio de medo, e certeza, no meu coração; sabia que não tinha escolha se não enfrentar o monstro o máximo que pudesse... até que 693
amanhecesse... A última coisa que senti em seguida foi o súbito ataque da criatura, arrebatando-me de minha consciência logo em seguida. A última coisa que pensei: - “Não quero morrer!” Nunca imaginaria que sentar fosse se tornar tal dolorosa experiência numa vida tão plena de paz no seu exterior.... Nunca briguei durante minha vida toda; meus pais nunca me bateram; e eu nunca tinha levado nenhuma queda tão séria a ponto de sentir tanta dor em tantas partes do corpo. Porém via ter muito mais resistência para as terríveis dores do meu exterior naquela manhã, do que para as outras mais terríveis dores do meu coração.... Era esta a real dor que me incomodava na mesma citada manhã: onde a luz da janela do escritório penetrava iluminando minha sala de trabalho podia sentir a segurança que ela trazia, como nunca imaginaria sentir por uma simples fonte de luz: realmente aprendi a amar a luz do sol naquela manhã. Pois passara a temer a escuridão... Mas ainda assim via meus pensamentos tomarem outro curso.... Lembrava do estado em que se encontrava a minha sala, em casa, quando acordei encolhido num canto ao lado do sofá completamente triturado por tanta dor: não sei se o que me acordara foram os primeiros raios de sol que queimaram meu rosto logo no começo da 694
manhã, ou se foram as dolorosas consequências das minhas escoriações: mas sem dúvida me sentia grato por estar vendo novamente a luz do sol, por poder novamente abrir os olhos, por ainda estar vivo, com a certeza de que ouviram meu último pensamento lá em algum lugar muito distante do terror humano na terra, e por isso me salvando da fúria do terrível monstro que eu habitara em minha casa, em minha vida... E cada leve movimento meu fazia novamente recordar tudo isso e muito mais que eu ainda desconhecia a respeito da criatura: já que a ferida ia muito mais além que a dor: não se via: ninguém via.... Porém o caminho do pensamento que vinha era outro; era o caminho que vinha anterior ao terror do sol e o qual, cada vez mais, eu tinha a coragem de explorar entre as lembranças; o caminho daquela doce saudade que surgira na noite anterior, e a qual irritara tanto a criatura, já que a fizera se transformar diante de um simples pensamento, implícito no papel, mas sempre presente na história.... e agora novamente, na presença da luz do dia, e sem o medo da criatura da escuridão, apenas uma saudade... Queria muito rever Suzana! Era de todas as pessoas a quem queria esquecer antes de tudo começar o ícone de coisas, situações e sentimento tão conflitantes quanto a minha própria existência tão confusa; e que não conseguia de modo 695
algum esquecer: acho que porque sua maior referência dentro de mim era o amor; e se eventualmente eu esquecia dela, no mesmo instante me recordava do amor em si, e logo por isso sua imagem rapidamente retornava.... Tendo esta feito a maior ausência no curto período em que estivera com Adélia, logo se fazendo apenas o ardil em que se tornou... E retornando ao ponto.... Sabia que muito mais devia a todas aquelas outras pessoas que desconsiderei, mas que considero em minha memória. Sabia que teria de enfrentar uma grande e confusa vazão de estranhas situações.... Mas para quem tanto tinha apanhado de um monstro da escuridão, se tornavam simples tais proposições de confronto exterior: seriam normais.... Meu melhor amigo desde a faculdade, Beto. Romero, de quem só me fazia recordar a sua alegria, e que tinha cruelmente colocado numa tão visceral situação em minha imaginação (provavelmente sob a influência da criatura). E dentre outros, também Marco, de quem cuja memória e sentimentos conflitantes me fazia querer saber com imensa curiosidade e apreensão o que acontecera: sem realmente conseguir prever a minha reação a tudo de possível.... Porém quem eu muito desejava ver era Suzana. E somente por isso, que era esse forte anseio do meu coração, é que naquele dia eu conseguia resistir a dor. 696
Joana sempre iria estar presente naqueles dias antes do seu infortúnio anunciado para me auxiliar e ao mesmo tempo conseguir prever diante de minhas dores que alguma coisa de premente obscuridade em minha vida estava por ainda acontecer. Seu envolvimento não podia passar deste ponto, além de notar em algo da minha expressão que devia conter medo e esperança ao mesmo tempo: como de uma forma impossível de acontecer; de alguém que passa por um árduo caminho sem saber realmente o que vai alcançar.... Dos olhos dela eu só podia perceber meio perdido em mim mesmo o quanto estavam consternados por tudo, sem saber o quê.... Naquele dia antes de receber qualquer visita ou realizar qualquer trabalho pedira que telefonasse para um número, o qual eu me surpreendia por lembrar tão bem em minha cabeça, mesmo sem nunca mais tê-lo utilizado: vibravam neles, os sete algarismos, as lembranças de muitos e muitos telefonemas, de muitas palavras, e tanto sentimento quanto eu podia guardar em meu coração... Era o telefone de Suzana. (Fraco.... Eu podia me lembrar...) -.... Você liga, e se ainda for o telefone da residência dessa pessoa você deixa um recado meu.... Ela provavelmente não estará em casa nesse horário.... - Pelos meus cálculos sabia que ela ainda 697
estava na faculdade de medicina, e sua carga horária sempre foi vasta e cheia, principalmente em dias de semana, por isso já imaginava só poder encontrála em casa à noite.... Assim como era antigamente, quando regularmente conversávamos. - Tudo bem... Não esquece que o escritor e seu advogado vem aqui hoje. No primeiro horário depois do almoço. - A idéia de ver o escritor ainda conturbava minha mente, mas outras preocupações começam a me tomar com mais empenho: muito antes de sua vislumbrada presença.... Mas ainda temia sua reação ao meu estado, pois ainda sentia, como muitas constatei, que o escritor me via como um teste, seu espécime sendo trabalhado em sua imaginação.... Minha face não deve ter demonstrado isso.... - A documentação dele está em dia? - Perguntei. - Claro! - Joana responde com um sorriso.... É claro que estaria. Ela segue em sua função. Pensava comigo mesmo a respeito de toda aquela compaixão: talvez fosse Joana um anjo... Mas sei que não acontece com anjos o que acontece com ela, e agora me lamento de novo.... A tarde veio, e o escritor chegou.... Almocei no meu próprio escritório, sem me levantar em nenhum momento pela causa das dores que ainda sentia, fazendo o pedido da comida de lá: algo que não faço a mínima 698
intenção de lembrar o que foi: comida.... Joana havia realizado meu pedido. E em mim tinha a esperança de ainda naquela noite conseguir falar com Suzy; depois de tanto tempo, de uma tão dolorosa ausência, que ultrapassava as dores e o medo (Fraco....), mas que tinha como o meu principal sentido naquele dia.... Cortando meu coração e minhas entranhas com a forte expectativa... Porém outras coisas ainda existiam: Valter e o escritor estavam novamente a minha frente, como em outras ocasiões, mas numa nova, completamente diferente, então... (Cada momento é novo, pois nunca o vivi....) - Você está realmente abatido.... (o escritor) Valter mencionou quando voltei de viagem que você estava com uma aparência cansada da última vez que aqui esteve.... Mas o que eu vejo é muito mais que isso, caro amigo... O tom das palavras do escritor eram preocupadas, mas também beirando uma sonora ironia que trazia para o centro de nós três o conhecimento do quanto queria se saber a respeito do meu real estado.... Da causa do aparente tamanho dano, que provocava tanta curiosidade no homem... Valter era quem agora falava: - É verdade.... A expressão que noto em você é de dor.... Dor física. Uma certa apreensão talvez, e medo também.... 699
- (Dei um arrastado sorriso).... Mas medo de quê?.... - Não sei... Diga você! - Você está machucado? - Perguntou o escritor colocando as pontas dos dedos da mão direita sobre a mesa, como num sinal de súbito interesse... Pensei um pouco antes de responder: sabia/sentia, que a cada movimento meu minhas feições se alteravam pela dor.... Não podia simplesmente lhes negar a face óbvia do momento.... -.... Na verdade, um pouco.... Eu sofri um.... (sem dúvida hesitei muito à irônica expressão de mim mesmo).... pequeno acidente doméstico. Os dois, então, de repente se voltaram um para o outro consternados.... Algo como que tendo antecipado a própria reação à minha resposta, também antecipando-a.... - Nosso lar Uma arma carregada! - Disse Valter. Fez-me um tanto atento tal expressão pelo que representava o seu conteúdo para mim naquele momento: “.... arma....casa....” (Pensei!) - Unfh.... - Relaxou o escritor sobre a cadeira... Imagino se qualquer outra coisa lhe passava pela cabeça sobre o meu estado, além do que eu afirmara: sempre parecia haver em seus olhos de observador uma eterna dúvida a respeito das respostas que o 700
mundo dava sobre si mesmo.... Não se encontravam em exceção minha dor e minha aparência, creio eu; pois como sempre nunca nada falou.... Joana entrara logo em seguida a uma pequena pausa de silêncio. Estava com todos os documentos em mãos... - E os negócios?... - Perguntou Valter, abrindo o intervalo para o trabalho... Mais tarde o escritor, meio entediado, pedira um copo d’água. E o tempo passou... Joana lhe trouxera a água que pediu. Sentia em seu silêncio durante o tratar de seus negócios entre mim e seu advogado a persistente observação do seu mais significativo ser: o onisciente, que trata de compreender e trazer em si as razões de um visível sacrifício: o meu.... Eu e Valter logo terminamos, antes da final aparição de Joana trazendo os documentos que sempre pareciam ser assinados pelos diretores da empresa: diluir a responsabilidade pelo dinheiro dos outros era o melhor meio de demonstrar segurança e ao mesmo tempo preocupação com a situação financeira de cada cliente. Depois que ela se fora Valter perguntou: - Você devia se preocupar mais com sua segurança.... Incidentes como esse que você teve podem levar a grandes perdas.... às vezes irreparáveis. - O escritor virara lentamente com atenção ao que o 701
advogado dizia já fechando sua pasta e atravessando o olhar de assistência por minha situação em todo ambiente... Também via que talvez precisasse de algum tipo de proteção, mas não, provavelmente a que Valter sugeria, pois sabia eu ser algo totalmente fora do comum... e eles não! O escritor falou: - Você não está sugerindo que ele faça um testamento e um seguro como um dia você me sugeriu?! - Eu intervi surpreso e curioso.... - Você fez um testamento?.... Nessa idade?! - Não! (Ele falou olhando Valter em clara desaprovação de um à atitude do outro)... Eu não aceitei a sugestão... - Mas fez o seguro, pelo menos! - Acrescentou Valter se voltando para mim. - Bom!... Não custava tanto. E de qualquer jeito... só tenho Adélia a quem cobrir.... Por enquanto. (deu uma rápida olhada para mim) - A menção do nome dela me fazia alterar um pouco de expressão sob os olhos do escritor, pois ainda me continha do mistério daqueles dois, mas o outro assuntou permaneceu..... - Meu testamento é o meu trabalho, Valter... E você sabe disso... (Voltava-se para mim) Acredite: é o que realmente importa: deixar um legado de sua experiência e talento nesse mundo de tanta miséria 702
e interesse... Se você sofreu um acidente, faça disso mais uma razão para continuar até o fim, e deixar para o mundo o que você escreveu... Seu pequeno pedaço de coração arrancado com tanta força e violência pela exigência da arte: ela é o seu testamento! - E quanto ao seguro de vida? - Penetrou o advogado com a incisão de quem sempre viu a dualidade surgir no comportamento arrogante e agressivo do amigo; que ainda assim cedeu... em parte. - Se você tem com quem se preocupar caso morra... - O testamento serve para mesma coisa, não acha? - Valter, mais uma vez. - Talvez, mas um legado da arte se torna muito mais válido que palavras ditas em razão de bens! - E o seu patrimônio já construído?... E a futura utilização de suas obras?...E... - Enxergava então não pertencer mais a uma discussão de muito mais tempo a que posso compreender... Não queria me importar com aquilo: testamento, seguro, legado: não tinha mesmo ninguém para guardar... Além de mim mesmo, que era quem eu sabia que precisa proteger de alguma maneira... Somente a idéia da arte me fazia realmente perceber do valor que o escritor tentava explicitar.... Mas um tanto além disso estava a verdade da mentira 703
que gerara a discussão: tinha que me proteger... do monstro... não de acidentes... Enquanto também mais em meu coração ainda sorriam os outros pensamentos, da premente saudade, da confirmação anterior de Joana, da vontade de falar com Suzana... No que se transformava o meu pobre e pouco hábil senso... quase débil por toda aquela conturbação... E os dois ainda falavam em minha frente; quando no momento Joana finalmente entrou... E era a última vez, com os ditos antes do documento. Se foram, como sempre se vão, mas antes ainda via o olhar do escritor com a preocupação e o eterno interesse de um alquimista que prepara as suas fórmulas sem saber com muita certeza no que vai dar; apenas faz uma perspectiva do resultado... Conhecia ele, naquele meu olhar de constante apreensão, que alguma coisa além do que era visto e dito estava presente em meus pensamentos... que a escuridão dos olhos começava a ser iluminada, e ofuscada, e que o que eu encontrara lá dentro me ajudara a ficar naquele estado... Estava certo!... Mas tanto eu sei muito mais, quanto eu sei muito menos sobre ele: e as coisas assim devem ficar, pois da obscuridade as ações inusitadas se tornam às vezes claras.... (Haveríamos de ter sempre uma arma apontada um para o outro, mas não houve quem se conhecesse 704
melhor.... Eu e o escritor...) Estou aqui a pensar, sob mais de uma luminosidade, e a que reflete no mar alcançando esse morro, de tão longe que o tempo passou por um eterno mesmo espaço que está dentro de mim.... E a imagem que me vem não é nem mais uma recordação: é a dor no coração (o espaço...) que se encandece ao perceber que sente sempre o mesmo, o mesmo eterno sentimento; apesar de todas as forças contrárias; apesar de todas as criaturas escuras das sombras; apesar do sacrifício de mim mesmo ao sentir tanta dor; o amor que exala do corpo como a luz da vida através dos raios do sol... sempre carregando-me de volta para o mesmo começo... Não era fraco: suportava, e por isso muito forte... Mais forte que a criatura.... Joana foi embora depois das sete da noite. Adiantara-se na preparação dos papéis dos dois outros clientes que nos visitariam no dia seguinte, e logo depois se despedira com um sorriso, ainda me perguntando se não precisaria de mais nada naquela noite.... Naquela noite eu só precisava que os relógios se adiantassem o mais rápido possível. Esperava que passasse das oito para poder dar aquele telefonema: sabia que Suzana só estaria em casa nesse horário; não esperava de modo algum que passassem o recado que Joana deixara mais cedo: de qualquer modo 705
soaria como uma surpresa para ela saber que eu havia ligado depois de tanto tempo... E seria uma surpresa maior ainda falar comigo... naquela noite... Por mais tempo que eu estivesse afastado ela sempre fez parte de minha vida, em meus pensamentos, lembranças e fantasias, mas a construção daquele “reencontro” se transformava a cada instante que passava numa frágil montagem de tudo que havia passado até aquele momento... Tentei fazer algum trabalho para surtir um efeito aliviador de toda tensão antecipada pela qual estava passando, mas de pouco adiantava, pois simplesmente observava o tempo passar, e o aparelho de telefone, e as palavras que tinha para falar, mas que sabia que não recordaria nem da metade no momento em que se tornassem necessárias: talvez uma mentira por todo tempo afastado, assuntos sobre nossas vidas para que pudéssemos nos aproximar, ou apenas: “como eu senti a sua falta!”... Com o som do coração batendo tão rápido que poderia ser ouvido do outro lado da linha, e tudo estaria esclarecido depois de praticamente um ano sem notícias... de alguém que sempre disse que nunca iria se afastar... Eu podia já ouvir em sua voz o pedido de uma explicação, mas tudo que poderia dizer é que estava FRACO, cego, e que agora, talvez por isso, estava tendo de enfrentar um demônio enfurecido, violento e cruel... tal como eu 706
era, ou estava. Quase toda uma história de um tempo ainda presente... Mas o que queria era simplesmente ouvir... Oito e dezenove. Só precisei ouvir tocar duas vezes... - Suzy?... - Foi minha primeira indagação instantânea, como há muito fazia ao ouvir a voz dela pelo telefone, reconhecendo de imediato, quase em momento algum notando que não estava numa viagem no tempo... Muito tempo havia passado... Talvez a intimidade também... Mas não podia evitar aquele doce regresso: perguntando algo que já sabia... - É ela. Quem é? - Eu sentia o filete de suor escorrer pelas costas de minha mão, absorvido de toda a tensão do meu mundo, sem saber ao certo qual seria a sua reação à minha resposta: provavelmente uma surpresa e também a abertura de um perigoso invólucro dentro do meu coração: aquele que protegia o senso da imagem de Suzana como sendo aquele ser simplesmente meu, em meus pensamentos; se tornaria novamente uma pessoa real, com a total e plena capacidade de não ser o que eu imaginava; e diante sempre desse choque de imaginação e realidade a fragilidade maior sempre terminava por escorrer de mim, do meu interior, fazendo-me criar, então, estranhas criaturas no mundo real... Porém 707
era uma clara antecipação: Suzana reconhecia quem eu era, ainda, depois de muito tempo; e nada vira, nada soubera, talvez em algum momento até suspeitasse de minhas razões, mas não mencionaria naquele momento ainda... Aqueles momentos foram apenas a apresentação de uma boa recordação: quase duvidava, incorporada minha saudade e paixão, que alguém, ela, poderia ainda ser tão minha amiga... Mas nas impossibilidades sabia a certa: somente eu sabia o que havia dentro de mim... E naquela conversa, tanto eu como ela, éramos apenas pessoas comuns. (O diálogo de qualquer um!) -... Eu nunca mais vi ninguém do pessoal... Falei... Entrávamos num ambiente mais particular. Só fazia me certificar a todo momento o quanto era difícil estabelecer novamente o vínculo, pois a vida em certo ponto se tornara apenas uma aventura obscura: e algo de comum, já tão permeado da minha imaginação, se tornava uma situação de conflito... Tudo que se passava dentro de mim ao relembrar, com ela, das pessoas a quem “abandonara” e que ao mesmo tempo, àquele tempo, escrevia sobre as mesmas, recriandoas, tão perto e tão longe, real e criação... - Você não deveria ter se afastado... Por qualquer que fosse a razão... As pessoas se importam com você... Desconsiderá-las é um sinal de fraqueza... 708
- A solidão tinha sido minha melhor amiga, e eu a traíra também; desconsiderando-a por razão de minha saudade... Era um jogo comum do interior humano: sua plenitude de contradições. - Eu sinto por ter feito isso... Mas talvez tenha sido essa a melhor saída na época, Suzana. - Saída para quê?... - Não sei! Talvez para procurar algo totalmente perdido entre eu e a minha solidão... - E você encontrou? - Não! - Então sabe que de nada adiantou se afastar... fugir! - Acho que não, Suzy... Descobri algo de muito importante! - O quê?... - Suzana me contou algo de muito significativo para o alvo dessa história: eu... Mas que será visto após... Do que mais poderia estar contido aquele telefonema além de minha intensa reflexão?... Por falar com a pessoa real Suzana; a quem tanto considerava em atenção: crescente um sentimento se torna real a cada momento em que se imagina o mesmo sendo real... Podia sentir o calor dentro de mim como a fogueira que se tornaria sempre dentro do meu coração a fagulha de amor que me restava: o amor, gradativo e consciente, que expõe para o 709
exterior o interior de umas poucas palavras que realmente representam o que querem dizer... Por mais simples que pareçam ao serem simplesmente ditas... Ou escritas... -... Sinto... sua... falta, Suzana... Muito mesmo... - Senti então em seu silêncio o quanto o sentimento estava claro... Não importava muito as conversas das pessoas comuns... Ela estava lá, e nunca seria uma pessoa comum, para mim, para o meu estado... O calor se transformava num leve frio de alívio. Podia refletir pelo resto das palavras a suavidade do que nós somos quando nos apresentamos ao que sentimos... Meu triste sorriso brotara diante do meu reencontro; em saber dizer novamente a um ser humano real o quanto era importante para mim sua presença em meu mundo... em mim. Despedimo-nos. Eu a amava (amo)... Voltaríamos a nos ligar, e nos veríamos de novo (outros episódios)... Mas por aquele dia, naquela noite, estava feliz, somente por dizer... somente por novamente viver uma vida real... por pelo menos alguns instantes... Sentado ainda lá, no escritório vazio, e revendo a sensação da realidade mais uma vez num medo súbito de tudo perder... Pois mesmo o que para um leigo não parecesse muito, ou até mesmo nada, era o que eu valorizava como tudo demais importante que 710
podia me restar: ter dito aquelas palavras... Aspirava essa sensação ao meu redor, e estava feliz... - (FRACO!) - Eu podia ouvir!... Mas não queria... Queria eternamente o toque da mágica do ser humano: real e existir... Ficava louco... - Não sou fraco!! - Disse em voz alta no escritório vazio. ### Em poucos dias que se seguiram... Em casa... Muita coisa parece que deixei para trás na tentativa de descobrir um futuro; e contenho sempre o infinito medo dentro de mim de também deixar para trás minha sanidade em favor dessa procura... Pois me afastei dos que mais gostava; e essa não sendo uma atitude pensada, apenas uma ação de um estranho momento, de fervorosos sentimentos, de um interior domínio; que agora não queria mais recuar o seu avanço sobre mim, quando o que eu quero é retornar... Pensava na loucura tomando posse de mim, e me forçando a dar nomes às minhas criações... Do que tinha deixado para trás então, começava a descobrir os novos fatos dos mais recentes momentos; das pessoas que não mais via, dos sentimentos que ainda sentia, e podia reviver... Por Suzana soube que de um 711
incomum desenrolar de diversos símbolos comuns das nossas vidas, o envolvimento emocional, uma das aparentes razões de minha “fuga” daquela outra época presa na memória, tinha completamente se esvaído; aparentemente como tudo no mundo e na vida que possui um começo, um desenvolvimento e um fim; era a tragédia do homem mais vez se repetindo: nada dura para sempre: principalmente ele próprio... Alguns dias após o fatídico dia no aniversário de Marco, quando eu resolvera sair de cena para criar minha própria história, a figura a qual eu já mencionara como sendo muito importante e ligada a Suzana por muito tempo, e antes de Marco, mas que não afetava tanto (acredito); esse tal retorno de onde ele estava nos bastidores daquela história e começou a afetar de maneira decisiva no relacionamento dos meus amigos: Suzy e Marco... Sentindo o pesar de uma voz muitas vezes sofrida por tais críticos assuntos do coração, ouvia Suzana resumir em palavras alguns momentos daquela romântica e dolorosa jornada daquelas três distantes criaturas, que o eram no momento em que ela falava... “... Marco ligava constantemente para ela, enquanto o outro exigia que nenhum contato fosse feito: uma tendência possessiva talvez, mas também um medo constante de ambos os lados masculinos. Suzy pedia para não estar, mas estava numa guerra de 712
influências, de poder, de dedicação, de egocentrismo, de certezas absolutas falsas de ambos, que cada um, era o melhor para ela, e a deixando presa num meio de tristes infortúnios... Pediria para não ter de decidir, mas alguém teria de sofrer, e foram os três... Fora a casa de Marco numa noite para conversar; lágrimas percorreram rostos já muito marcados ao se enxergarem em tal infeliz situação: ela disse que terminou, definitivamente, naquele mesmo ambiente onde os vira pela última vez, se beijando, tão felizes quanto eu estava infeliz, haveria de provocar tal desengano tão pouco tempo depois de eu desaparecer, e no mesmo cenário “ver” aqueles dois chorarem por uma das coisas que o destino sabe fazer tão bem: provocar dor e não dar explicação... Disse-me que ele muito ainda a procurou, e por muitas vezes brigou com o outro por essa razão; mas como tudo isso também não durou para sempre: o amor eu sentia ainda existir, e o sacrifício também de uma estranha possibilidade, pois apesar de tudo que houve ela ainda dizia gostar muito dele, e que enquanto com ele esteve, esteve muito feliz: “...pena terminar como terminou...” Palavras de Suzana; um pouco mais dura talvez... Alguém que sempre considerei tão sensível; mas não era de se admirar... A sensibilidade continuava lá: em cada um dos instantes que ela me descreveu como 713
sendo tão difíceis de transpor e agora reviver... como eu tinha de fazer... Triste, ainda me falava do quanto nada se arrependia; que os dois agora estavam bem, ambos em suas diferentes vidas: ela ainda estava com o outro; o que me parecia uma cena familiar, mas a mulher se fortalecia com o tempo, se transformava em algo eternamente a vir a ser: talvez alguém melhor, ou apenas só... E Marco havia se desfeito em lágrimas por um tempo, e agora simplesmente vivia...” Sempre fora uma pessoa de extremo carisma dentre todos que havia deixado para trás: não houve, nem há, um momento sequer em que eu deixe de invejá-lo por tudo que aconteceu entre ele e Suzy... De bom ou de ruim, as fantasias minhas haviam se transformado em realidades dele; e toda a dedicação que um dia eu quisera oferecer parecia ter ido no instante em que ela, Suzana, se tornava uma pessoa real... Somente o amor ainda resistia, e parecia ser ainda a única coisa que importava... Somente com relação a Marco e toda sua triste história, que eu nunca conseguira odiá-lo, pois gostava muito dele, e acima de tudo, segundo as palavras dela, porque fizera Suzana muito feliz, ao menos por um tempo... Esperava estarem todos bem; somente. “ Acredito que Suzana sempre soube o quanto eu a amo... E cada momento do reencontro tornou 714
isso possível...” Porém outro caminho parecia estar traçado para nós dois, e nunca seria o mesmo... Todas as luzes do apartamento estavam acesas enquanto no resto do mundo a escuridão dominava a noite e o sono dos inocentes que dormem em paz sem terem criaturas monstruosas para lhes atormentarem a sanidade. Sentia andar pela casa com os passos de quem arrasta dentro de si, com a mesma lentidão dos pesados pés da madrugada, um grande e implacável temor... Um medo que prosseguia em meu coração do mesmo modo e na mesma proporção que o grande amor... Via dentro de mim ao observar tudo claro à minha volta, sem as sombras para assustarem, o quanto eu me tornara real dentro de minha imaginação; uma eterna interdependência que parecia corroer ambos os lados de uma mesma pessoa, eu; no momento em que o real se tornava perigosamente próximo do que eu havia imaginado... Continuava a andar e pensava em silêncio, tirando-me completamente de quaisquer outras preocupações, de como fora menos: a construção física de meu primeiro reencontro com Suzana; o tempo e a criatura me fizeram crer por tanto tempo nas absurdas criações de minha imaginação, que o que fora uma incalculável expectativa se tornava menos palpável quando realizada do que quando era apenas uma expectativa... Talvez por isso eu conseguia sentir 715
tão reais aquelas pessoas ao redor, mesmo estando completamente a sós em meu apartamento; Beto e sua eterna seriedade, como sempre tanto a dizer, mas pouco sendo um interlocutor de si mesmo, pois só ele o devia conhecer o bastante; Romero e sua alcoólica alegria, singrando entre as mais profundas verdades da vida e as maiores bobagens que alguém de alto QI pode prover; Marco e sua triste beleza e carisma que a todos conquistava, mas com uma nova e estranha memória que ia além do que eu realmente lembrava, e mesmo assim era mais visível do que seria se eu o visse de novo, procurando de dentro dele um sinal externo de que imaginava ser a sua pior experiência: todo episódio com Suzana... (e mesmo que não fosse, já podia sentir, e era real)... E também ela, por quem dedicava uma grande parcela de pensamento, sempre atento a qualquer relance da escuridão, mas a casa ainda continuava iluminada; finalmente sentei-me. Estava em frente da máquina de escrever, mas não queria trabalhar na história; ansiava discorrer dentro de mim sobre as diferentes facetas e realizações do amor: a maior diferença que era apontada para mim seria a do quanto a paixão só coexiste com o ser real porque nós assim a realizamos; mas na verdade não era assim parecia transcorrer de nossos corações... Sentia ainda meu coração ser arrebentado a cada batida, como 716
que clamado por um fim, por causa de uma eterna ausência nunca reparada; e naquele momento eu sentia não ser só Suzy... Não escrevia... Havia algum tipo de contaminação naquele ambiente tão familiar que me impedia, ainda, de encontrar a resposta para tudo aquilo; por alguns momentos imaginei que somente retornando ao passado e reconstruindo meus passos (os da minha fuga), encontraria o que procurava; mas não era mas tão simples: uma guerra se travava em minha consciência à procura de uma linha de conexão entre o que eu havia perdido e o que eu havia imaginado... mas ela parecia não existir, ou do mesmo modo: ambas as coisas pareciam ser a mesma coisa; o que significa dizer de outra maneira que não havia conexão, não havia linha. Sentia-me perdido então: entre as dores do amor, que deviam ser mais reais e o pouco sentido de minha sanidade, que deveria ser imaginação... Mas naquele momento em que eu colocava as mãos apoiadas no colo, como que caídas (desistentes), e meus olhos se dirigiam perdidos para o papel em branco à minha frente, completamente fora de foco e ofuscado no espaço como uma mancha branca na memória “suspirando cansadamente”... Era tudo a mesma coisa; uma coisa só: a criatura sempre “dentro” de mim. Olhei ao redor. Não havia ninguém, mas eu 717
podia sentir a presença: as pessoas, todas elas, os frutos de muito tempo dentro daquele inexorável exercício de solidão... Suzy e a criatura pareciam ser os mais reais; nada havia de comum naquele mundo... Falei: - Porque vivo assim? - E se me refiro no silêncio do meu lar àquela massacradora angústia: nunca tive resposta para isso. - Não sei se questiono a mim mesmo para as forças consideradas o destino... Só me vejo triste e envelhecido por escolhas que sempre fiz achando fazer o certo; mas no fim... o que fiz realmente, e tenho feito, foi desprezar sempre a existência de todos... E talvez toda aquela dificuldade em lidar com as pessoas reais: os seres humanos são como são, e serão sempre incompreensíveis por uma razão criativa: porém fugir delas não as fará menos imperfeitas, somente serão criadas novas e diferentes criaturas, que não existe no mundo real. - Talvez eu seja fraco realmente: fugir das pessoas reais como elas são... Gostar delas pelas convivências do que elas expõem de melhor e de pior... e não apenas por lembranças, e criações... Imagens, são o que elas refletem em sua imaginação sem o serem: é o modo como você as vê.... - E talvez meu maior erro tenha sido preferir 718
estas imagens às pessoas reais. - Seu maior erro é não conseguir se reconhecer como uma pessoa feliz! - Feliz?!... É. Eu não sou. Não consigo ser, e cada vez mais parece uma escolha minha. - E é uma escolha sua: fora de sua sanidade... - Sanidade... Sanidade... - Não me percebia realmente falando sozinho, mas observei mais uma vez ao redor os espaços vazios presentes em minha vida: eu me sentia como sendo o maior deles, já atingindo quase um profundo desespero... As luzes ainda estavam acesas mas eu já as não queria mais produzindo toda aquela claridade; desejava enxergar a escuridão e procurar dentro dela meu verdadeiro interlocutor naquele “monólogo”... Era uma curiosa sensação libertadora assumir aqueles certos aspectos de minha “loucura” para poder querer encontrar a criatura na escuridão... mesmo sabendo que o controle do mundo rapidamente poderia se esvair de minhas mãos e ir para o monstro. Porém ainda queria, ansiava por aquilo... Levantei-me e voltei a andar pelos cômodos da casa apagando uma a uma as luzes que clareavam o ambiente: sentia o peso das decisões que deveria a cada passo tomar para que a força da criatura não me tornasse realmente fraco na sua presença; pensava ainda em Suzy e no sentimento que tinha dentro de mim: falar com ela talvez tivesse 719
transformado a pessoa, mas não o sentimento, e esse era um dos poucos aspectos que mais me davam a certeza de continuar procurando a resposta... Pois amá-la era prazer, em tendo nada do horror, que era a criatura da escuridão. A última lâmpada era a da sala, e eu a apaguei dando uma última e firme olhada para a mesa onde se encontrava minha máquina de escrever, e a parte já pronta da história: no papel que via estava algum número da casa dos quarenta, a página, e logo tudo sumiu... Na escuridão permaneci de pé alguns instantes absorvendo todo o breu ao redor, como que começando a participar dela, tronandome parte da escuridão: viajando para outro mundo... Transformando-me... E finalmente eu a ouvi... como sempre... - FRACO! - Aquela voz grave e interior, mais exterior que da última vez, tornando-se cada vez mais próxima e forte. Fiquei alerta. - Porque fraco?! - Voltava-me para todos os lados à procura daquela soturna figura que eu abrigava em minha escuridão, mas não a encontrara... Somente vinha a sua voz; com algo a mais do que “fraco” a dizer... - Porque poderia submeter todas aquelas imagens desse mundo doente e fraco com o meu poder, mas você preferiu retornar e ser um deles: 720
chorando as flácidas lágrimas do amor, da dor e da loucura... Pois que chore!... - Como pode isso acontecer?? - Guardava em mim todo o desespero por não compreender as verdades daquelas incógnitas pronuncias: algo como a total sensação de estar perdido dentro da minha própria escuridão, que em termos o era, pois estava na escuridão; sentia meu corpo se afastar lentamente como que querendo fugir de todo temor que viria adiante; mas ainda assim, penetrado de toda angústia do mundo, que aquele monstro conseguia tão artisticamente prover em minha imaginação, queria saber... sobre mim... - Você sempre quis ser algo mais que humano, para isso estou aqui... Mas você desistiu, sucumbiu, foi um fraco!... - O que? O que? ... - FRACO! - Minha memória então fervilhou rapidamente procurando as razões da criatura, e minha imaginação foi o que pude ver... Há muito tempo atrás olhei para as pessoas com desprezo e as quis destruir por serem apenas como elas são: sozinho, poderoso, sem a ninguém amar; algo tão distante quanto a minha infância, algumas vezes tão dolorosas e triste: com conflitos familiares, desenganos amorosos adolescente, um extremo excesso de preocupação com 721
as coisas do mundo que o faziam tão feio: a morte, o crime e a dor das ruas cheias de indigentes invisíveis... Ficava triste e com o tempo os quis destruir, e minha imaginação gerou tudo isso: uma forma de maldade, algo incontrolável dentro do coração; violento, agressivo, vingativo e vil... Mas que com a entrada do amor se tornou um excesso estranho na alma, assim se transformando no ser que é em minha frente o verdadeiro símbolo da destruição: um demônio, no popular e no enciclopédico entendimento da palavra: supra-humano e mal. Um pesadelo que conseguia viver!... Meu sonho de adolescente! Uma ameaça! - Não ... sou... FRACO! - Estúpido! - Voltei-me e ela estava a um passo de mim; gigante e feroz como sempre, mas com uma expressão diferente: além da raiva; era a ira por ter de se defender... agora... E teria mesmo que fazê-lo... - Esse é você!! - Lancei-me sobre ele como nunca imaginaria poder fazer, e senti pela primeira vez a textura de sua pele e a rigidez de seus músculos, como uma protuberância real da realidade que demonstra a aspereza de uma imaginação fértil e desajustada, que transforma o que seria apenas uma sombra no subconsciente em pele viva que pulsa violentamente a espera de sua distenção maior de poder e agressividade; sua expressão se tornara 722
enrugada de ira, seus olhos se comprimiram ao olhar diretamente para os meus: meu ataque fora uma surpresa, quase tombando-o para trás, mas sua força ia muito além da minha, por enquanto, e então logo senti suas mãos apertando minha cintura, com muita força; e tendo somente em seguida a rápida sensação de ser arremessado no ar, chocando-me com violência contra a parede e chegando ao chão já totalmente inconsciente... Mas enfim... me defendi! Podia revidar! Não era fraco. Meu olhar se perdia no suave ar da manhã que arrastava minha perdida imaginação entre o estático cenário de meu escritório e o céu azul que manchava parte de minha visão da janela aberta (havia desligado o ar condicionado), junto com as frentes e fundos de outros prédios que se recortavam pela paisagem a frente... Um surpreendentemente difícil começo de dia, pois pelo que vinha de uma noite de tamanhos terrores e revelações, o que vinha pela frente em passos tão lentos quanto o arrastar-se daquela manhã aparentemente tão calma e comum. Queria poder realmente apreciar a calma do que via dentro da sala e também janela a fora, mas o que me vinham eram as palavras do monstro... sempre machucando mais que suas ações violentas: parecia já pouco me importar com as escoriações diárias; notava sempre a preocupação 723
de Joana por elas persistirem em existir sem uma razão clara: ela nunca perguntara; provavelmente via em meu rosto o quanto deveria ser sem explicação aquelas marcas de tanta força e violência quanto o próprio nascimento humano... Doce, Joana, que nunca mais seria a mesma... Porém o que os passos leves do dia traziam antes, tão sorrateiramente quanto um ladrão, era mais uma visita do amigo advogado... Valter vinha numa data que não era programada, mas seu (e nosso) cliente tinha tido todo direito de vir pedir qualquer prestação de contas quando quisesse; na verdade seria até interessante sair da rotina normal tão bem conhecida, que em geral Joana cuidava tão bem em preparar para as visitas... Não sabia o quanto a rotina seria mudada... Mais uma vez o advogado Valter entrou por aquela porta com um alegre, mas sóbrio e profissional, sorriso. Recebi-o com sincera alegria; levantei-me com toda dificuldade que meu corpo cansado e machucado proporcionava; e isso sob os olhos atentos e atenciosos do amigo; mas parara de me preocupar com o zelo dos outros; estava feliz por vê-lo, simplesmente, e demonstrei isso ao cumprimentá-lo... Por um sinal meu, Joana se pôs no lado de fora a providenciar qualquer coisa que fosse necessária relacionada à conta do escritor; eficiente, como sempre, logo ficou de prontidão com os devidos 724
papéis... Mas não foi preciso nenhum adentro de relações financeiras naquele momento; naquele dia especial, com todo o lento arrastar-se de um dia quase que meio anestesiado pelas perigosas antecipações, o que trazia o advogado aos caminhos de minha história, e ao meu escritório, era eu... - Vim saber como você está...?? - Pergunta um tanto retórica e redundante pelo que podia perceber de sua visão de si mesmo, a quem ele queria perguntar o estado... vendo o quanto “horrível” estava. Mas... - Me sinto... bem; apesar de não parecer... - Outro... acidente!?? - De fato... - Não possuía realmente palavras que pudessem explicar de forma plausível o que quer que estivesse acontecendo comigo para os olhos alheios. Mas tinha nele a visível certeza de que algo acontecia. - Você pensou naquilo que nós discutimos no outro dia?... - Refleti por um instante... - Sobre seguro?... E testamento?... (Estava ainda em dúvida.) - Sobre você se cuidar, meu amigo... É disso que eu falo. - Não sei se entendi direito, Valter... - Ele hesitou por um longo momento olhando diretamente para meu rosto. Sentia o peso de minhas pálpebras e 725
a dor em minha cabeça; continuava atento ao que o advogado dizia, mas um pouco da compreensão me fugia... Não queria fazer seguro ou testamento; não tinha intenção nenhuma de perder a vida; e também não tinha nada para deixar... ou para quem deixar... -... Durante um certo período na vida do escritor, ele se tornou um tanto... auto-destrutivo... Se assim posso dizer sobre seu comportamento... Nunca pude me perguntar a ele sobre o que se tratava toda aquela rudimentar violência no próprio corpo... Até hoje não sei o que foi tudo aquilo... (ele se encosta melhor na cadeira e arruma a pasta no colo, deixando as mãos cruzadas sobre a mesma; desce por um segundo o olhar num claro lamento e volta a me olhar)... Vejo algo de semelhante em seu estado hoje... É verdade que não tem toda aquela arrogância do escritor; em qualquer situação; mas definitivamente algo próximo... Algo só seu... Tenho certeza! (outra pausa, e eu observando-o curioso)... Hoje vejo o quanto se superou e pôs pra fora tudo que parecia haver de ruim nele... A realização. O sucesso. Adélia... Ah, meu Deus... Um filho... Eu não consigo acreditar... É a felicidade de um homem que...- O advogado ainda continuou a falar alguns segundos antes que eu o interrompesse, mas o que eu ouvira de fato tinha ouvido, e mesmo assim duvidei, por mais que tentasse processar a informação: naquele 726
momento tão envolvido no contexto do que Valter tentava me passar sobre uma espécie de senso de auto-preservação ou até felicidade... Tudo que podia era me surpreender, duvidar e perguntar: - Espere um instante, Valter!... O escritor vai ter um filho?? - Era a única informação que importava. - É... Isso mesmo!... Não sabia?... Adélia está grávida de quase três meses. - ... três... mês... - Minha voz se perdeu dentre os instantâneos cálculos que começara a fazer, e mais do que tudo dentro da surpresa, um dos muitos momentos que agora me ocorrera, desde antes, naquele tempo: a mensagem surgia como o propósito de um senhor de muito tempo antes que aquelas palavras de confirmação de advogado... O escritor e sua obscura trama, da qual fazia parte, e a qual tinha esquecido por forças muito além do meu controle... Levantei-me rápido e um tanto consternado. Valter se calou observando-me em meu estranho passeio pelas divagações de um poderoso sonhador... Imaginava se seria ele tão arrogante ao ponto de promover aquele cruzamento: quando de um propósito pouco visível aos olhos mortais surge a necessidade de tão bem manipular a nós todos... O escritor parecia conseguir isso com tal destreza que ainda o podia admirar; se essa fosse a verdade... 727
- Só um instante, Valter... - Andei até porta tentando em alguns poucos momentos não demonstrar o quanto estava atormentado pelas novas, mas era uma tarefa árdua não ser eu mesmo no estado físico e mental em que me encontrava: o homem que toma por mais tempo o seu pleno vigor parece como a dádiva de sua consideração a capacidade de melhor se dissimular das observações do mundo... O escritor sem dúvida o era capaz, por tudo que podia tramar e realizar, totalmente protegido dos olhos do exterior... mas naquele momento... não eu. Saí do recinto por poucos momentos me refugiando na sala de Joana: seus olhos se tornavam tão abrangentes do desconhecido que era eu, quanto os que tinha deixado para trás em minha sala... Enxerguei Valter dezenas de vezes, fugindo imediatamente após, acompanhando o meu caminhar até a porta na tentativa desesperada de pôr as idéias no lugar... Mas não podia: não fazia sentido o que eu conseguia supor como sendo as atitudes de um gênio criador, ou a loucura de um egocêntrico cheio de ironias para com a vida de todos os outros ao seu redor... Respirei fundo com certa discrição, ainda sob atenção de Joana: seus olhos através da lente dos óculos diziam tudo que precisavam dizer a respeito de minha sensação de queda e perda a cada momento... Mas, provavelmente, nem a dona de tais olhos saberia 728
o que queria dizer... Lá sentada sua mesa, sempre amável... E nada a dizer... Voltei-me então novamente para a porta e entrei na sala mantendo ainda um ar político para o que ia dizer ao amigo advogado Valter: uma mentira... Somente dei a volta até ficar de pé ao seu lado na cadeira; com um incerto sorriso de medo... - Infelizmente eu tenho um cliente que está vindo pra cá, e eu preciso fazer alguns balanços com Joana antes dele chegar... - ...Que nada... Eu também preciso ir! - Ele se levanta erguendo a mão direita para o cumprimento de despedida. Olhava fundo em meus olhos e só conseguia ver todo aquele cuidado premente do qual estava tratando antes de dar a notícia: suas razões reais pareciam ter sido aquelas; o que ele voltaria a falar, mas podia ver uma das linhas da trama do escritor se esticar através daquele último olhar e cumprimento, e assim descer as razões de tudo, porém inocente naquele que foi o interlocutor... Não poderia duvidar disso, vindo de quem vinha a origem da notícia, mas de Valter só podia ver a mais pura amizade... Reconhecesse ou não a mentira; sabendo a razão da mesma ou não... - Volte outra hora para falarmos mais... Marque antes; assim podemos usar melhor o tempo. - É claro... Mas pense no que eu disse! - Estava 729
pensando... - Vou pensar... Na verdade penso muito!... Recordo bem sobre o que o escritor disse sobre deixar um legado... - Estava começando a ironizar minhas próprias palavras... - Bom... Já é um começo! - O legado de um homem é sua arte; o que ele cria para ser eterno; e o escritor agora teria um filho: Adélia estava grávida. Vinda de um tempo que bem além do que eu imaginei como algo só de um momento; parecia ser algo que o escritor fizera criar de uma arte muito além do que simplesmente escrever (legado?)... Valter se fora e eu voltei a me sentar... O amigo preocupado que me trouxera, de dentro de um curioso pacote de preocupações pessoais sobre mim, a notícia de que talvez haveria no mundo uma criança por nascer, e que por minha aferição, talvez ela fosse minha; ao menos de minha paterna origem, pois naquele instante senti como se tudo fosse somente do escritor: peças e personagens para que ele criasse e destruísse (manipulasse) sem a menor intenção de saber o que quer que realmente quiséssemos fazer com nossas vidas... A criança, eu, Adélia e o próprio advogado Valter: numa malha habilmente tecida por seu maior e mais talentoso articulador... O escritor. Todo resto do dia tentei localizar tanto o 730
escritor quanto Adélia; e em ambas as tentativas sabia falhar por ser algo totalmente fora do meu controle: dessa parte da história eu era apenas um pequeno personagem, que emprestou a sua imagem, personalidade (e código genético?) e vida para o verdadeiro artista... Desapareciam os outros personagens não por minha conta, apenas porque minha utilidade mais proeminente tinha se extinguido no momento previsto... Mas ainda teimava em duvidar o quanto daquela influência podia ter nos atingido a todos, tão facilmente quanto as palavras escritas no papel pelo mesmo artista; sentia pouco me mover agora para tentar entender porque quereria o escritor um filho meu, ou seria apenas minha imaginação?... Ou porque tanto Adélia quanto Valter agiam tão inocentemente sob as “ordens” do escritor... E a vida teria de continuar para todos; mesmo que ele ainda fosse o dono do mundo, e eu apenas o escravo de minha imaginação... Foi por fim o dia, mas ainda não o terminaria assim... A noite se fizera cair com o oposto da suavidade daquela mesma manhã; tudo após a revelação; mas eram os enlaces de especulações, lembranças e medos que me faziam quase querer apodrecer naquela poltrona de escritório; ao me sentir tão indefeso... por diversas razões... Mas o centro da história mudara 731
naquela noite... Joana estava em frente de minha visão perdida. Tensa, amável e sempre atenciosa tentava chamar a minha atenção para sua iminente partida; não havia nenhum trabalho extra naquela noite; viume durante o dia caçar dois fantasmas e ao mesmo tempo desaparecer em espírito nas virtuosidades de meus pensamentos. Não tinha remédio que pudesse conter aquela distância de comunicações tão pouco ambivalente profissionalmente e separados por um abismo de pouca compreensão entre dois seres humanos... Apenas me olhava, e eu demorei alguns minutos para notá-la bem a minha frente, dizendo: - Já estou saindo... Quer que desligue o ar condicionado?... - Seus olhos acompanhavam com lentidão... Não gostava muito do ar condicionado, e ela sabia disso. Era uma pequena gentileza do mínimo que ela podia realizar para o meu conforto, mas naquele momento era realmente muito pouco... o modo como eu sentia o ar ambiente: não o sentia... Porém... - Claro, Joana... Obrigado mais uma vez por sua atenção... - E ela sorriu com o certo consolo de quem sabe que não tem nenhuma atenção em retribuição: os meus atos não passariam apenas de automáticos se não fossem poder me referir agora ao ocorrido daquela noite; talvez realmente nunca a notasse, se 732
outro (o outro?) não a tivesse notado, seja lá quando tivesse sido... - Até amanhã, então... - Amanhã?... Amanhã... E ela desaparecera deixando a minha porta aberta. Ouvi quando desligou o aparelho ar condicionado de nossas salas; pelas divisórias baixas bastava apenas um para as duas salas, mas no meu caso eu o dispensaria... Um confortável silêncio se instalou logo após o fim daquele irritante barulho de todos os dias, o dia todo; então eu a vi passar pela outra porta, com a bolsa na mão direita e um andar rápido de quem tem sempre pressa para pegar o próximo ônibus que logo tem seu horário de passar, mas ela tinha um carro... - Boa noite, Joana! - Eu disse, com ela já batendo a porta... Logo comecei a sentir o confortável calor da sala retornando após o dia de refrigeração artificial. O silêncio ainda permanecia; sabia que deveria haver ainda pelo menos umas três pessoas no escritório: os sócios geralmente ficam até mais tarde, e alguém está sempre elaborando um novo plano financeiro para os grandes clientes de uma empresa como aquela; já fiz muito isso em minha vida antes, mas não mais... Estava simplesmente lá, sentado, onde estivera a maior parte do dia, pensando como as coisas estavam realmente confusas e difíceis; uma iminente e aterrorizante tristeza me tomava com mais violência 733
a cada dia: tendo em mente, nos meus pensamentos, toda a minha vida, procurando um sentido, uma força que pudesse explicar tudo, o porquê de tudo... Apoiava uma pesada cabeça na minha mão direita e ouvia dentro do silêncio todas as palavras que um mundo podia prover para me tornar tão confuso, e louco: com uma criatura vivendo em minha casa, em minha vida; um amor não vivido e não realizado, mas que se tornava distante de um modo no qual só fazia sentido por não se realizar, pois o objeto era apenas humano: desculpava-me em pensamento por pensar assim e desejava que Suzy um dia me entendesse (já que nem eu entendia!); e naquele momento, com tal intensa força: a idéia de ter um filho... Uma criação do escritor, do início ao fim, e tinha disso, principalmente por não poder confirmar... Tudo, as partes de um grandioso teatro... Só conseguia ver a mim. E assim algum tempo passou, no mais silêncio profundo de uma cidade que logo começaria a dormir... Desejaria hoje, mais do que muita coisa que já desejei na vida, que tivesse havido algum trabalho extra para se fazer naquela noite; ou então que Joana realmente tivesse que pegar um ônibus como a maioria das secretárias dali, pois sairia com elas pela porta da frente do prédio; ou então, que simplesmente eu tivesse começado a conversar com ela sobre qualquer 734
coisa (sobre o filho que achava que iria ter, e através de uma tão curiosa trama), algo que a tivesse feito sentar em minha frente ao invés de perguntar se queria que desligasse o ar condicionado: que o deixasse ligado... Mas nada disso aconteceu... Para mais uma pequena infelicidade do meu mundo... que o faz como é... Não sei quanto tempo passou. Meus pensamentos eram mais velozes que o tempo, e estes eram muitos. Mas não me pareceu ser muito desde o último instante em que vira Joana partir até o momento em que a vira de novo... Do corredor e da recepção ouvira um súbito murmúrio de vozes tensas que se debatiam repentinamente diante de uma nova e inusitada situação. Por mais distante que me encontrasse não pude deixar de sentir a curiosidade sobre o que se passava. Levantei-me e fui até a porta; ao pôr a mão na maçaneta já podia ouvir as vozes muito mais altas, e elas falavam horrorizadas sobre algo que tinha acontecido logo abaixo de nós: na garagem; algo de violento e preocupante, que era confusamente narrado por uma voz feminina que chorava compulsivamente; uma voz que nunca tinha tido a experiência de ouvir com tanta intensidade, fora daquele seu eterno e pacificador meio termo entre um anjo e alguém vinda de um tranquilo interior; era a voz de Joana, que ouvia com total clareza quando abri 735
a porta e andei devagar pelo corredor que dava para todos os outros escritórios e começava na recepção, onde todos estavam... Alguém falava aos sobressaltos com algum tipo de autoridade, por telefone... “... ela foi atacada... na garagem do prédio... por favor... ela está machucada...” A luz da sala da recepção me apanhou e me fez aparecer então: não havia dúvida; podia haver na expressão de todos que tentavam acalmar Joana sentada no sofá, chorando com soluços engasgados e uma expressão de pavor no rosto que devia lembrar a minha própria nas primeiras vezes em que vi o monstro... As roupas dela estavam rasgadas. Seu rosto estava vermelho como quando se é espancado: logo seriam manchas violetas, de vasos rompidos e muita dor na alma. Estava sem os óculos. As lágrimas corriam as faces. E seus olhos não tinham mais nada da amável atenção de todos os dias: apenas medo... Joana fora atacada e violentada naquela noite, na garagem do prédio onde trabalhava, num momento em que se dirigia para o seu carro para ir embora para casa, onde morava sozinha, num apartamento alugado pelos pais que ainda moravam no interior... Segundo ela, falando à polícia, não vira de modo algum o atacante: obviamente um homem; mas ele atacou por trás, levando-a para o escuro, e também por trás cometeu sua atrocidade... Imagino o quão humilhante 736
pode ser para uma mulher tal desgraça humana a tocando... E ainda mais sendo com quem foi: com Joana... Sendo ela como ela é, ou era... Tudo que ela pode ver, e também anotando o fato do atacante ter lhe derrubado os óculos, foi o que de fato ele realmente era... Tudo que Joana vira fora um monstro... Uma sombra! Que importância eu podia ter?... ### Não podia desconsiderar esse lindo e terrível mundo que nos rodeia a todos sem a menor pretensão de ser misericordioso com ninguém, nem mesmo com aqueles de uma pura beleza e dedicação: esse mundo que traz tanta dor e fascínio para aqueles que aqui vivem e continuam a viver mesmo sabendo que em algum momento tudo pode perder completamente o sentido, e uma sombra monstruosa irá tocar-lhe de uma forma como ninguém jamais o tocou, e isso irá lhe provocar muito sofrimento, e a sombra será somente um homem, e somente o homem... Eu tinha minha própria sombra para acusar-me, atacar-me e machucar-me... E tudo teria que se voltar para mim... Nos dias que se seguiram ao incidente com Joana um insistente medo tomou conta de todo o ambiente 737
de trabalho; na verdade de todo o prédio comercial onde funcionava a empresa. No dia seguinte todos os consultórios médicos e dentários já sabiam do ocorrido. A corretora de seguros do último andar tratou de fazer as mais frequentes visitas de todo prédio: fazendo do providência medo de todo o prédio mais uma fonte de renda para os seus sócios... Meus patrões foram um dos que adquiriram seguros para a empresa e para os funcionários... Eu novamente pensava em mim mesmo e no que eu tinha que enfrentar dentro de minha própria casa: as palavras de Valter sempre a se contorcerem meio que sem sentido em minha mente... e a sensação de insegurança me povoando por completo. Minha atitude afinal fora a mais concreta por tudo que vinha passando, mas possivelmente a mais fora de razão para o mesmo mundo onde estava vivendo... Mas, de qualquer jeito, pouco sentido se vê em qualquer ação ou rumo que esse mundo toma, por isso a minha nunca precisaria ser a certa... ...O porteiro do prédio foi demitido. Outro foi contratado. E com “a culpa” admitida em alguém, quem quer que fosse, a paz foi restabelecida nos corações de todos... Mas pelo que via, e vejo, pode muito bem ter sido alguém do prédio: alguém de aparência muito normal, mas que também tem de carregar um monstro dentro de si... e naquela noite 738
foi o demônio quem dominou... e pobre Joana... Não queria ser tão duro, mas tenho que ser: a fraqueza seria eu querer admitir o episódio como algo isolado e independente de tudo que já acontece no meu mundo... Seria apenas mais um símbolo de quanto a realidade se tornava cada vez mais parecida com minha imaginação, cada vez mais igual na realidade: era a inigualável similaridade com tudo que enxergava dentro dos olhos do monstro quando ele surgia na escuridão e me chamava de fraco por simplesmente expor o meu amor: algo inconcebível num mundo que concebe aquela violência contra Joana, como sendo mais um acontecimento do dia-a-dia... Todos os lugares pareciam se tornar o lar da criatura, e a cada momento eu me sentia mais deslocado ao ver que o que eu podia considerar minha maior psicose se tornava a vida diária de cada um dos seres humanos que aqui habitam... Não sei o estado de Joana hoje, mas tenho certeza que aquela pessoa que comigo trabalhou estava completamente destruída, com muito pouca vontade de ainda desfrutar dos poucos e paradoxos bens da vida... E isso é comum... Pois para a minha atitude... Mais dias se passavam após o ocorrido, ninguém mais lembrava da sombra da garagem do prédio... Mas eu ainda tinha a minha... Desde o meu último embate físico 739
com ela, havia notado duas coisas: uma, que podia ser atacada... e duas, que era (é) extremamente forte... Essas duas proposições, somadas aos fatos e conclusões consequentes ao incidente com Joana, me fizeram por decidir que precisava comprar uma arma... Fora quando o meu medo assumira as proporções de uma iminente esquizofrenia, mas a minha visão do mundo real começava a tomar a forma do horror do meu mundo: era o mundo que a criatura queria construir para ela, e estava conseguindo... não sei se através de mim, ou através de todos com somente a minha percepção do outro lado (divergências com a realidade tem dessas coisas curiosas), mas sentia que teria de agir... quando sabia que a atitude teria muito pouco haver com sanidade... parecia ter muito mais haver com um nobre sentimento sem nome que unia a todos os momentos que já havia vivido (tudo que havia acontecido até aquele momento) e desprezava a tudo mais, inclusive a vida, em nome da descoberta da razão... pela arte... “O que mais parecia importar para esse homem, além de sua maior dor... Nada!” E nada teria razão sem essa dor: o amor, a perda e a criação de algo perfeito... e tão cheio de contradições que para ser visto com nitidez tem que ser visto de um modo que nada aparentemente seja 740
compreensível... Apenas a construção de vários fatos e cenas que carregam essa história ao seu final... atingindo a harmonia completa... depois: a derrota do demônio, mas sem nenhum vencedor que se possa ver ou congratular... Isso é desnecessário... No dia em que comprei a arma estava pensando em qual seria a minha dor maior... Isso ocorrera logo depois que Joana se fora... Sua partida fora uma daquelas situações em que se pode olhar tudo ao redor, e tudo parece estar perfeitamente no lugar onde estava no dia anterior, mas na verdade o que está fora de sintonia, fora do ciclo normal, é você: Joana tentara por quase um mês trabalhar; agindo mecanicamente para com todos aqueles serviços que com certeza perderam totalmente seu sentido no instante em que fora “tocada”... Via o esforço em seu rosto, a cada momento uma batalha para não chorar, para não gritar, desistir de tudo que não fazia sentido mas a fazia confortável... E era uma guerra já perdida, todo aquele esforço; do seu coração nada mais nunca seria o mesmo... E então ela partiu. Sem grandes adeuses; quase um desaparecimento da fumaça de uma casa recém consumida pelo fogo: algo que lembrava a todos o quanto as coisas podem ser terríveis... e por isso dos poucos sua partida foi comentada, apenas em mim um triste adeus de uma pessoa realmente boa na 741
terra: beijou-me o rosto e se foi... Mas essa não era minha maior dor... No fim de semana seguinte a isso foi que entrei naquela loja... Ao entrar pela porta que ficava entre duas grandes vitrines, onde eram exibidas as mais diversas formas do que se pode considerar esporte, pois era uma loja de esporte, armas e armas: coisas que matam pessoas; e ao redor, em volta das vitrines, as criaturas mais fascinadas do mundo por todos aqueles magníficos e extraordinários aparelhos de se fazer violência: crianças, muitas crianças, de todos os tipos e tamanhos, proibidas de entrar na loja por serem menores de idade, assistindo os seus maiores sonhos serem realizados através da visualização de elas usando tais coisas... E o maior fascínio era o meu, pois imaginaria tal visão como algo do meu apocalíptico imaginário criativo, ou mesmo do escritor... mas não, era verdade, estava lá, e era normal. Foi o que vi... Estava dentro da loja então... Havia cinco pessoas, cinco homens; divididos em dois grupos, um de dois e outro de três: todos estavam sendo calorosamente atentidos como se fossem clientes antigos e frequentes; pelo tipo de conversa todos se consideravam caçadores, e estavam lá naquela tarde de sábado para complementar seus já vastos arsenais domésticos... por um vasto momento 742
consegui enxergar aqueles mesmos homens sendo as crianças que estavam do lado de fora: eram lados cronologicamente distantes do mesmo fascínio pela arte da violência. Chegando ao balcão fui prontamente atendido por um jovem de camisa pólo vermelha, igual a dos outros dois vendedores. Tudo na loja estava a mostra por vitrines e balcões de vidro: desde anzóis para pesca até espingardas calibre 12. (imagino até onde isso é legal...) Falei: - Gostaria de comprar uma arma? - De que tipo? - Pensei um instante... - Não tenho certeza. - É para esporte ou o senhor pretende manter em casa para defesa?... - Acho que eu poderia definir assim o teor de minhas intenções; por mais que fosse “sobrenatural”, a razão era que queria me defender. - Acho que está mais para a segunda razão. - Tudo bem! - O rapaz se retirou por um momento para pegar algumas amostras... Mas enquanto isso eu também pensava que na verdade teria que ser algo que destruísse a criatura: seria um tipo de precisa descrição para o uso que a arma teria... E disso implicaria que não poderia ser uma arma muito “fraca”, já que a força do monstro era tamanha... Quando ele voltou, eu disse: - Existe também outra razão... (olhou-me com 743
duas caixas nas mãos) (os outros continuavam a falar descontraidamente) (e as crianças do lado de fora a sonhar)... Eu tenho que sacrificar um... cão doente. Os dois homens de um dos grupos, o mais próximo, tiveram suas atenções por um instante desviadas para mim... - Entendo... - Disse o vendedor colocando as caixas sobre o balcão. - Eu não gostaria que o coitado sofresse mais ainda com uma arma ineficaz. - Era estranhamente irônico para mim mesmo me referir à criatura como coitado, sendo o que é... O coitado parecia ser muito mais eu próprio... Ele me observou um tanto desconfiado com o estranho pedido. E finalmente um dos homens de antes se manifestou... - Você pode levar o seu animal num veterinário e mandar sacrificá-lo: é muito menos doloroso... E pensei na infinita sapiência daquele homem, que comprava armas por diversão, ao realmente imaginar que eu tinha um cachorro em casa e que queria sacrificá-lo... - Não, obrigado... Na verdade eu gosto de resolver meus próprios problemas... sozinho! - Tudo bem... - O homem falou sem muito mais querer acrescentar diante de uma expressão tão cheia de certeza como a minha naquele momento... Voltei 744
ao vendedor... - E então... O que você recomenda?... - Ele pôs a arma no balcão. A arma... Num belo sábado de sol, rodeado e ao redor do mundo que de tanto tão pouco que entendia de si mesmo não via o erro que era ser como é... ter uma loja de armas que matam... para vender... Comprei-a com o gosto amargo de pensar o que doeria mais... se ela ou o que eu pensava dela... Ou o que realmente me causava a maior dor... As contradições me levaram, naquele mesmo dia, a procurar a razão de uma maior dor, ainda... E foi com aquele pacote que fui de uma parte a outra dessa cidade na direção de um outro mundo que me fazia somente recordar de mim mesmo em outra e completamente diferente época da vida... fora de mim... Quando o que importava não era a capacidade destrutiva da pistola que estava carregando, sendo a mesma capaz de explodir um crânio humana a qualquer distância menor que dois metros... Essa arma que acabara de comprar de forma quase que totalmente legal no falso intuito de eliminar um animal moribundo, e na verdade sendo um símbolo tanto de medo quanto da verdade que existia dentro do meu coração a respeito do monstro: que eu tinha que destruílo, antes que ele destruísse tudo mais... Realmente pensava nisso no momento em que a porta se abriu 745
e o rosto do passado surgiu como o desvelamento de uma sombra que permeava a minha memória há tanto tempo o quanto eu podia me lembrar que sabia o que era sentir amor e dor nos mesmos espaço e tempo da minha existência: uma figura, não mais a Suzana das recordações: somente uma amiga cordial que me abraçara contente e surpresa ao me ver a sua porta num fim de tarde de sábado esquecido no calendário de 1997, mas com uma coisa tão importante para mim quanto essa data de hoje e o que representa, a cada instante... sentia aquele abraço novamente: e como eu sentia falta do forte abraço de Suzana; o cheiro que sobe pelos seus cabelos enquanto estou tentando não largá-la de modo algum; a sensação quente do seu calor misturado ao meu; meu coração batendo forte; e os olhos tão fechados e apertados que podiam conter um mundo dentro da escuridão daquela sensação... vendo que afinal a maior dor era ter esquecido de fato o quão bom, e simples, era aquela forte emoção: a maior dor, do maior amor, do que me fazia fraco, e que me seria a força para fazer tudo que tinha de fazer... Entramos... Sentamos no sofá da sala e conversamos... Conversamos sobre os restos do nós que nunca houve; de sentimentos claros difusos entre as complexas guerras de nossos interiores: como 746
quaisquer seres humanos que tenham que esconder seus “monstros” internos em favor das boas relações sociais e pessoais... Uma vida íntima que todos tentam transformar em algo fascinante e misterioso para o outro; algo desconhecido para ele próprio, e que passa a ser a maior profundidade da alma que se consegue alcançar mediante um “livre” diálogo... Falamos disso, eu e Suzana... As razões porque as pessoas fazem análise... Eu e meu pequeno pacote lá; sentado e quase pressentindo os últimos instantes de uma imagem de sonho real, prestes a ser desfeita pelo despertar de uma terrível realidade... Eu e meu pacote... Sob os olhos doces de Suzana; quando também falamos do passado, dos amigos deixados para trás, do amor decentemente velado pela amizade, claro em nossos rostos e expressões a cada palavra... E pode ter sido desde muito antes, mas somente sua cabeça e olhar baixando mostrava o quanto sabia de mim, e do que sentia, e de como em sua frente se encontrava um homem já sem fé... Sem fé em coisa alguma além do que parecia sentir numa recordação de normalidade incompreensível. Via o sorriso de Suzana sumir a cada vez que o olhava profundamente para seus olhos, e esse era o símbolo dos sinais perfeitamente entendidos entre mensagens não verbais... Falamos muito, e ficamos muito em silêncio: 747
não havia mais ninguém na casa; ela usava uma bermuda jeans e uma blusa preta; estava descalça... Eu estava com meu pacote, e o meu instrumento de definitiva perda de sanidade... Porém é perfeitamente compreensível que o mundo e a normalidade degradam tias criaturas (eu, principalmente), pois sabia que era uma criatura presente em todos os seres humanos: o meu ganhou vida... azar o meu... Mas ele herdou meu egocentrismo, minha arrogância, minha insegurança, e principalmente... minha imaginação... Falamos mais... E eu pensava que tipo de demônio não habitaria em Suzy: um anjo... meu ego gostaria de responder, mas a natureza humana parece ser mais como a da minha criatura do que como qualquer outra “coisa”... melhor... Devem haver exceções... Mas minha pouca fé e desprezo vem do fato concreto de simplesmente olhar ao redor as pessoas e ver o que elas realmente são... Mas naquele sábado... - Eu adorei ver você , Suzy... Fiquei realmente feliz... - E estava; não estava só falando... Mas dentro de mim uma voz já me chamava novamente de fraco; e era a minha própria... Porque não disse, nunca disse, a ela, literalmente, o que realmente sentia... sabendo ela ou não... E algo mais... Despedimo-nos. Novamente me abraçou. Seu perfume e sua voz ainda ficaram comigo por um bom tempo, e finalmente me 748
fui... com o meu pacote... minha missão. Talvez ainda não fosse a maior dor... “A fantasia é continuar a querer aquilo que não se pode ter: um desejo eternamente contido, preso na ausência, é pois da necessidade que surge o maior prazer da presença, do reencontro... Muito mais além que sonho, ter antecipado por tantas vezes aquela visão realizada, um sentimento tão forte dominando completamente o corpo e a alma, liberando com a vazão das impossibilidades para ser a melhor sensação da vida, como em todos os momentos, contendo um significante próprio, totalmente sem razão, mas que faz não querer-se nunca mais se afastar...” O abraço tão forte quanto a força da bala que irá explodir o crânio do demônio... Mas ainda havia a dualidade da realidade e da imaginação (já revista a fantasia)... A realidade se torna imaginação (o reencontro com o calor de Suzana), e a imaginação se torna realidade: a monstruosidade criativa de uma falsa loucura; o que eu tentava me convencer que era enquanto me transportava de volta ao meu mundo real... Chegaria em meu coração a devida interpretação do que era a síntese do problema em si, o que era de tão real em medo e em minha tristeza, o que tinha de ser para eu não ser... fraco (o que deveria ser, de tão simples): o monstro que tinha de enfrentar: feroz, violento e 749
livre... Ao chegar em casa já era noite. O que penetrava na escuridão não devia ser realmente eu, mas apenas uma imagem, um aspecto do eu que costumava ali habitar: queria acreditar que uma melhor e mais otimista parte de mim ficara na casa de Suzana naquela tarde, na verdade dentro dela, como um calmo refúgio para uma alma atormentada, alguém que só me inspirava o amor... Era a outra parte que entrava, que acendia as luzes desconfiado, e esperaria para poder ofertar-se com um verdadeiro dia da caça no ambiente do predador: as sombras... Sentei-me à mesa após uma modesta refeição e desfiz o meu pacote: a pistola tem um brilho inconfundivelmente novo e atraente; algo que provavelmente também fascinava aquelas crianças da vitrine; ela tem também um cheiro metálico que alcança de longe as minhas narinas, e naquele momento estava muito perto; na própria caixa já se ensina como se deve carregar, armar, atirar e limpar a arma: se serve comercialmente como se fosse um produto “doméstico” qualquer; também na caixa havia um aviso para manter longe do alcance de crianças, e de nunca dever se limpar uma arma carregada... Passei a conhecer a textura e os relevos da pequena máquina semi-automática de matar gente: era o lado 750
restante de mim, se entretendo com aquele ícone de poder. Carreguei o pente com cuidado e atenção. Havia comprado apenas uma caixa com 40 balas... e não pretendia usá-las todas, mas não havia em menor quantidade... Porém o brilho daquelas pequeninas coisas de ponta oca, capazes de tanta destruição na carne humana, conseguia também me espantar... como a aquelas crianças... Coloquei o pente na arma e o encaixei com uma pequena pancada; o som do “clique” perfeito das duas peças se encaixando também me fascinaram... Então puxei a parte móvel superior para enfim cair a bala número um na agulha e finalmente armar o revólver... Estava pronta... Acionei a trava de segurança vermelha, que é uma chavinha que fica no cabo da pistola, para assim ela não poder atirar... e a pus no centro da mesa. Joguei a caixa e o papel de embrulho no chão, deitando-a, somente ela, sobre a mesa... com o brilho refletido da luz da sala a iluminando, como uma natural e poderosa fonte de calor, e luz... mas ainda era fria... é metal... Olhava diretamente para aquele brilho refletido, que praticamente queria falar comigo; tentava ouvir sua mensagem gelada, mas só fazia o brilho quente ofuscar meus olhos: estava quase cego com aquela luz, incidindo diretamente em minha retina, hipnotizando-me... Estava cego... e não sabia 751
o que estava fazendo... Meus olhos baixaram então, já estavam embaçados, sem nenhuma clara mais difusão, sem foco... apenas amargas lágrimas de uma inexplicável dor: a dor de não mais me reconhecer... “Suzy...” - Pensei... “Procuro um oceano para sofrer sozinho e em paz, mas pareço ser sempre falso e frágil ao pender para a alegria... Que terrível impressão meu rosto não causaria se fosse a tristeza que eu carrego dentro... Só queria ser triste em paz, sofrer na mais profunda das angústias até tudo desaparecer... Mas temo, por parecer que a grande aventura é transparecer o contrário, até o momento limite em que ele se revelar, e eu ter de eliminá-lo, sem hesitar.” - Gostaria de escrever... - Disse cansadamente para o vazio, levantando a visão de volta para a arma. Sentia calor e umidade em meu rosto... Aquela minha obra já tinha chegado ao fim (ver: UM FIM), e a arte que agora iria realizar se tornaria algo de muito mais extraordinário espanto: como deveria considerar a “destruição” de uma criatura que era a minha imagem sombria... viva... Senão uma obra de arte do absurdo tombada na imaginação de todos (nenhum) aqueles que entrarem em contato com esta realidade e virem o que iria construir... numa cena... Pois levantei-me, automaticamente empunhando a arma, e logo em 752
seguida destravando-a na sua chave de segurança, deixando-a pronta para o embate. Do segundo quarto até a cozinha fui apagando as luzes uma a uma, até restar somente a sala iluminada: fora o palco de todos os eventos anteriores dos dois personagens, pelo menos os de inter-atuação; era a justa justiça da minha consciente loucura no final da história... A mesa estava vazia; nunca mais estivera lá a máquina de escrever, ou o papel branco cheio de possibilidades... Imaginava quando o escritor teria a oportunidade de ler aquela última história e contemplá-la com sua sincera, sempre sincera, opinião; provavelmente estava ocupado preparando a chegada do filho (o meu?), que pelos meus cálculos já devia ser por aquela época o nascimento... Nunca o vi... Mas eu também já estava ocupado criando a minha própria “maravilha” psicopatológica, ou vivendo a minha real realidade... As luzes foram definitivamente apagadas, então... E o cenário da escuridão se fez... - Gostaria de escrever... Exatamente isso... - Falei para o vazio cheio da densa escuridão... E a resposta foi imediata: - Agora... Eu sou sua arte... Sou seu legado! - Como sempre a voz surgia antes da imagem; era apenas grave dessa vez, completamente exterior, sem mais nenhum sinal de poder estar vindo de dentro de 753
algum lugar... como antes... A arma estava preparada. E eu também... A voz prosseguiu: - Para que a raça humana seja imortal, o ser humano precisa ser mortal; e essa representação mostra a sua utilidade... - Por alguns instantes estava atordoado com o teor das palavras do monstro, que pareciam ser minhas... Procurei ao redor sua assustadora figura, com a arma sempre apontada para a região onde procurava; estava tenso, sem dúvida; mas dessa vez parecia que a criatura queria falar... quase um discurso. Perguntei... tenso: - Que “representação”?... Que “utilidade”?... E a voz disse: - Daquele momento em que a criança notou que o mundo não seria perfeito; desde que os seus olhos olharam ao redor e viram o quanto há de feio e ruim em tudo que se refere a eles... Teve o instante exato no passado, mas pouco de lembrança pode lhe atravessar a memória tão entorpecida pelo fraco sentimento dos humanos, fazendo do criador um deles; fraco e debilitado; imperfeito para tudo que tinha imaginado de tão magnífico... Destruir seus amigos e sua família foi tão bonito, tão grandioso, o maior deleite de todos erguido pelo desprezo do criador pelas abomináveis criaturas que tanto o faziam sofrer sendo tão felizes num mundo tão antipático a ele próprio... Você não 754
soube reconhecer a obra nobre e grandiosa que foi me conceber: de um sentimento tão frágil e inútil me veio de você o que você havia planejado para mim há tanto tempo quanto você poderia se lembrar que existe... No passado... Desde a escuridão do ventre materno até esta escuridão que você criou para a minha vinda... E agora você quer me destruir?... O mundo já é quase seu... pai... - Sentia a minha face tremer; sentia o suor escorrer; via em minha frente somente a escuridão, e dentro dela estava eu, sendo tudo aquilo que o monstro acabara de proferir... - ...Que... representação?... Que... utilidade?... Tornei a perguntar, mas já sabendo a resposta... - A melhor representação de você, criador!... E a utilidade de destruir tudo aquilo que te desagrada. Os sonhos perdidos de uma juventude de devastadora revolta contra o mundo... O escritor tinha razão sobre a origem... E agora viria o depois... - Você... é... a pior parte de mim! - E girava em volta a espera do seu último ataque. A criatura queria me destruir, porque segundo o conceito: eu era o traidor, e resposta para a sua utilidade só podia estar completa se eu voltasse a me reunir com ela... Porém a atitude do monstro ainda não era tão simples: sendo uma minha criação... - Você não pode me destruir, criador. - Podia 755
sentir a voz cada vez mais próxima... - Posso... E vou... Se eu te criei... então posso te destruir!... - Já podia sentir a sua respiração perto de mim, aquecendo a escuridão. - Só existe uma maneira, criador... (Fez uma pausa.)... E você não pode existir sem mim!... - Foi quando os olhos do demônio finalmente apareceram na escuridão: acesos como o terror que era o meu cenário; e pois assim eu vibrei... - Não devia dizer isso!... - E eu atirei na direção daqueles olhos; deviam estar a menos de dois metros... E acertei... - ...A arrogância... (Respirei trêmulo.) ...foi uma das coisas que lhe passei... - Por alguns largos segundos de silêncio após o opaco som do tiro pensei ter acabado de sair de um sonho; um terrível pesadelo de meses e meses sem a mínima chance de paz... Mas a criatura estava naquele instante silenciada... Abaixei a arma até senti-la tocar em minha coxa; o dedo indicador ainda estava no gatilho; tenso, inquieto, quente como o resto de toda minha mão direita... Tentava acalmá-lo, assim como tentava acalmar todo meu corpo. O meu coração já tão acelerado se precipitava em lançar um bombardeio de pressão sangüínea a todas as partes do meu organismo: sentia desde minha cabeça até o solado dos pés pulsarem 756
como o próprio coração... A medida que a escuridão foi se tornando um tanto mais normal, trazendo as silhuetas normais das sombras de minha casa, com os pequenos fios de luz que vem da rua, e tudo mais que dela, a normalidade, se advém... pela primeira vez via os contornos da criatura se tornarem mais visíveis, ao mesmo passo que iam se desfazendo: era totalmente feita de escuridão; escuridão viva... Sua cabeça estava desfeita pelo tiro que dei, mas todo seu corpo era uma impressionante massa muscular negra; não como o negro de pele humana, mas negro de total ausência de luz... E estava toda se desfazendo com a presença da luz, mesmo fraca da noite. Imaginava que seria assim... Esperava que fosse daquela maneira... A arma ainda estava em punho... E o monstro estava deixando completamente de existir; com aquela escuridão sendo lavada do chão de minha sala, e sua imagem física deixando de existir, como uma lembrança para pessoas que conseguem esquecer... Algo que não consigo esquecer, se poderia chamar de legado... a existência da criatura, ou não, em meu mundo... O demônio desaparecera completamente sem dizer suas últimas palavras sobre o mundo que queria criar, mas deixando claro em seu “desaparecimento”... que seria imortal... em mim. Eu ainda estava lá, em minha sala, em pé, sozinho, com uma arma na mão, com 757
a qual acabara de atirar, destruindo um monstro que se desfez em escuridão sem deixar marcas... fazendo sentindo ou não... sua criação e destruição... Eu ainda estava lá; como estou aqui... E só eu estava lá; como só eu estou aqui... Estava claro. Está amanhecendo... ### Alguns meses se passaram. O dorso somente visível a uma longa distância de uma gigantesca onda de acontecimento era o que eu podia ver nos poucos momentos depois... ao apreender o horizonte a minha frente na vida como podendo ser algo considerado normal... Mas obviamente não o era: é quando se aproxima a visão e o que se vê da onda, realmente formando-a, é um terrível e destruidor maremoto... Prolongo esse momento.... Andei com uma visão perdida por tudo mais que tive de prover após o meu episódio com a criatura. Por centenas de vezes parei no centro de minha sala, pela noite ou pelo dia claro, à procura de algum sinal do que fora aquele meu desafio: sobreviver não era tudo quando me restavam tantas dúvidas a respeito do próprio acontecido; revisto cada momento em que estive lá naquele cenário, não mais o reconhecendo, 758
talvez: minha sala de todos os dias apenas... Logo depois daquela noite guardei a arma e o restante das balas, todas as trinta e nove, dentro de uma gaveta do meu guarda-roupa: seria um lugar reservado apenas para aquilo... Um objeto, uma evidência de que tudo que tinha acontecido, tinha acontecido... Mas nunca foi o suficiente olhar todos os dias para aquela gaveta e lembrar que o que estava nela era a arma; nem tão pouco também era suficiente aproximar minha mão lentamente da maçaneta, imaginando que talvez daquela vez nada haveria ali dentro além de qualquer outra coisa normal, como meias... revendo e sentindo novamente cada sensação daquela noite fatídica; até o frio do metal encontrando minha pele pela primeira vez; e enfim fazendo reluzir a real lembrança junto com o brilho do metal à luz, e tocando de novo o gelo da morte para ter certeza que ainda estava lá, junto com a lembrança... “ O que foi realmente que matei?” - Perguntava-me... E novamente ia do quarto para a sala, fechando antes a gaveta, para procurar mais uma vez, como tantas outras dentro do mesmo cenário e situação, a bala que matou a criatura... Se a arma ainda era real, a bala que saíra dela também haveria de ser, e teria que estar em algum lugar, pois se todo o corpo do monstro desapareceu... Olhava o chão, olhava a parede, arrastava móveis, e sempre 759
foi inútil... Soube logo no dia seguinte que o tiro tinha realmente acontecido: vizinhos comentaram do estranho barulho; o som abafado e seco do disparo; tudo que descreve o que fora o tiro... mas a bala eu nunca encontrei. E a dúvida sempre machucou mais pois eram das questões sobre minha sanidade que tratavam aqueles rituais de visão, toque e procura... algo de tamanha familiaridade que apresentaram a uma nova palavra adjunta àquela estranha “perda”: obsessão. Não sabia o que tinha que fazer!... Ou melhor... havia esquecido! Que grandes perdas eram do meu interior estirpados tais sensações de uma chamada inconsciência que sempre releguei, para poder trazer ao exterior as estranhas criaturas da minha imaginação... e depois de destruí-la(s)... Perguntavame, tentando reconstruir o que chamaria de vida, os normais, o que mais seria eu capaz de destruir vindo das profundezas do meu interior: as grandes e dolorosas paixões; o amor que restara em minha vida, por outra vida (Suzana); uma solidão sem fim que caminhava passo a passo para a terminal loucura dos dias de hoje... O que mais destruiria dos significados tão frágeis de minha existência, se, tão facilmente, conseguira destruir a minha criação... E ainda me restava um possível paternidade nunca comprovada: 760
mais uma dor sem fim de uma eterna dúvida... Eram as fantasias finais de minha loucura. Mas o trabalho voltara a povoar meus dias, com um pouco propósito, como antes já o era; e com um menos estímulo: da lentidão dos dias sem a resposta adequada, tinha da falta de Joana no escritório mais um seu fator de desanimo... A nova secretária fora quem viera para ser algo distante de mim; ao trabalho, sem a simpatia... sem a simpatia; sem a eficiência, sem o talento e sem a dedicação de Joana... Por tudo que ela marcara, como pessoa, e da sua indireta influência em minha decisão anterior... Eram aqueles dias de aproximação do fim do inverno quando eu podia sentar sozinho naquela sala e apenas prover uma lista de tarefas para que ela, a nova funcionária, pudesse exercer seu devido papel... pouco me representado do quanto estava me afastando, muito além do que já era afastado: recebia os clientes prestava contas, faturava uma boa média, mas não construía o que queria construir do meu próprio entendimento naquele papel de homem ajustado dentro da sociedade. Uma suave aparência de respeitabilidade pelos já acesos cabelos grisalhos... aos vinte e três anos; uma séria expressão de todos os dias com poucas palavras e muita reflexão; uma estátua do que queriam que eu fosse... Mas já me abominava... O tempo da reflexão era apenas 761
meu; muito tempo; e me servia para querer mostrar (procurar) alguma coisa que ainda faltava... Dia após dia... O amigo advogado Valter marcara o dia de sua visita naquele mês. Na intenção do que foi aquela última visita foi uma situação quase que totalmente normal: a nova secretária seguiu minha lista de serviços e trouxe, em ordem, todos os documentos e prestação de contas de sempre (mas não era Joana); Valter chegou com seu terno alinhado, sua pasta de executivo, e toda a simpatia e seriedade que sempre ofereceu-me em todos os momentos em que tivemos de tratar sobre os negócios do escritor... O trabalho se fez bem, sempre o foi... Deixado isso claro na menção do que são ou foram todas as relações que tivera com o mundo exterior... Estava melhor, fisicamente, e isso Valter notou... - Você parece bem... - E...estou. Eu acho... - Sentou-se, e eu logo em seguida. - Vejamos os negócios. - Ele abriu a pasta e tirou seu mapa de controle. À sua frente estavam as três pilhas de documentos: os investimentos que deram prejuízo, os que deram lucro (essa maior), e os extratos bancários... O advogado fez então seu trabalho, o qual faz muito bem: proteger seu cliente... 762
Enquanto olhava com atenção... - E o escritor, como vai?: - Bem... Ele até mandou um recado para você... (Analisava a segunda pilha.)... Quando você terá um novo trabalho para apresentar; já faz algum tempo desde o último... - Em minha cabeça havia apenas uma criação para apresentar; e que na verdade fora o que gerara essa outra, a qual Valter se referia... Estava inacabada, sabia disso pela primária pretensão de sua utilidade, mas não era mais capaz de completá-la até o fim no papel... já que de certo modo havia tomado vida, e eu havia destruído... - Na verdade, eu tenho sim... um novo trabalho. - Que bom! - Olhou para mim quase sorridente... Nunca imaginária a que custo saíra essa nova obra... - O escritor vai gostar de saber. - No próximo mês, quando você vier aqui, eu trago para você levar para ele... - ... Isso é bom... - Curiosa interdependência de nossas obras de arte, além da literatura, pois me sentia compelido a querer vê-lo após todos os meses de ausência; queria saber como ele me veria agora, como interpretaria um de seus personagens... como olharia nos meus olhos para contar sobre o filho... Ainda desejava participar... - E o filho de Adélia... Nasceu, não foi?... 763
- Ah, claro... Um menino... (já estava no meio da terceira pilha) - “Pensei em ambos os nossos legados devidamente criados, e enlaçados pelas estranhas forças da imaginação... Somente que o meu legado parece que destruí... com certa facilidade, devo admitir, pelo trabalho de anos que foi criá-lo.” Em minha mente eu começava a conceber que o que eu realmente havia destruído era uma parte de mim, e não apenas um monstro... Voltei a pensar na criança: - E quando foi? - Dia 12 de junho. - Peguei o calendário que estava sobre a mesa. - Então... ele deve estar com mais de dois meses agora. - Continuei a observar o calendário. - Por aí... - Valter concluía sua vistoria nos documentos e eu continuei a olhar o calendário... mesmo depois de todas as desventuras porque passei, ainda me restava uma estranha recordação do que seria uma data no calendário que olhava com tanto interesse: faltava pouco mais de um mês para aquele dia o qual me lembrava ser algo de importante, e insistente, em minha vida durante aqueles quase dois anos, os últimos quase dois anos... Mas de uma certa maneira preocupante me passava a razão, a origem de tal importância, e isso começou a me assustar: a curiosidade em descobrir a origem... e fora como 764
tudo começou. Súbita ilusão de paz: o momento que vivia... O advogado se foi, após as indumentárias amigáveis de sempre, e que todos os negócios revistos e em ordem, prometendo voltar no mês seguinte, e já acompanhado do escritor... Podia esperar. Mas estava novamente sozinho no escritório, e a imagem do calendário ainda trazendo velhas antigas figuras que queriam transparecer a realidade da memória para se tronarem reais no presente... Foi uma conjunção de pensamentos grandes demais para eu poder evitar a dor daquela lassidão de silêncio e dúvida a minha volta: uma pontada tão forte em minha cabeça, que me fez arfar agonizante num segundo e no outro recordar do crânio da criatura se desfazendo na escuridão: como uma parte minha amputada, a qual ainda podia sentir a sua dor latejante em alguns breves momentos de delírio... Mas a dor era uma lembrança mais clara que desejava vir... Como em todas as outras vezes em que o interior quis se tornar exterior, e veio junto com uma torrente de dor e sofrimento... Faltava tão pouco... Os caminhos da normalidade me faziam querer pensar em Suzana, o que realmente representa a sua ausência, seu corpo e sua vida: alguém que poderia ser tão próximo; uma pessoa que se tornou tão distante, tão tristemente afastada, na mesma semelhante dimensão 765
do que é meu sentimento por ela... Nada nunca mais seria o mesmo... Ainda penso naquela despedida: um reencontro que foi para ser até o último momento do último momento... Após as incontáveis vezes em que ansiei vê-la e não a vi, não a senti... apenas outro ser humano, mas aquele que de tanto amor somente me trazia a dor de apenas existir na imaginação; o que fora nós dois naquele abraço, e foi real... E ela era real. É real... Porém as vozes que me surgiam nada eram de normais pelo modelo de uma vida para todos (leitores): o que visitava minha mente eram as vozes do monstro e do escritor; quase em uma só; falando comigo como a comum expressão de uma consciência, mas tão autônoma quanto outro ser pensante... Esse parecia ser o pior problema: tudo em mim mesmo... “O filho emergido das mentiras do escritor e das minhas fantasias... E ele era real, e quem pedia por responsabilidade a seu respeito.” “Restar-me ainda uma paixão... E uma voz vestida de lembrança por não acreditar mais em coisa alguma... A verdadeira fraqueza de um homem sem fé.” Esses eram os pensamentos, e o ruído dentro da cabeça permanecia, com uma força maior de algo que já muito conhecia... Não poderia suportar novamente o que aqui está... 766
À noite, em casa, preparava aquela minha última obra... O que os olhos do escritor poderiam ver dentro da escuridão?... Aquilo que ele sempre procurou decifrar ao ver em mim tal fabulosa espécie; talvez algo mais que ele próprio teria imaginado; talvez seja uma história que ele consiga completar melhor do que qualquer um; talvez nada... O cenário era a minha sala, o mesmo local de onde eu provera aquele trabalho que agora se tornava uma “mensagem” para o escritor, e para todos que se interessassem em ler; o que eu via era a lembrança do monstro tombando e desaparecendo em nada... no mesmo local onde naquele momento eu pisava: penso no quão estranho sejam estes absurdos que atravessavam a minha cabeça... a cada instante que fazia uma coisa comum: a confexão de “um livro”. Estava terminado... ao menos a minha parte. Voltei a olhar a gaveta em meu quarto, mais tarde. Tornei a olhar a arma; toquei-a novamente e senti a sua “pele” gelada fazer a minha ter um leve choque térmico... Era como uma segunda vida que se tornara involuntariamente presente no meu diadia pós destruição da criatura: a sensação de algo que faltava, e de algo sem resposta que ainda crescia dentro de mim... E aquele arrepio, por mais natural que fosse quando do encontro de pele humana 767
quente com metal frio, parecia ser o seu pequeno, mas significativo, sinal de presença... Não conseguia ainda me reconhecer; soltei a arma, fechei a gaveta e fui dormir. No meu sonho vieram então os pesadelos: “Da fumaça que se dissipa da visão de homem completamente cego por enxergar apenas a si mesmo sempre... Era eu. O que eu vejo é uma rua. Está a noite e semi-iluminada por poucas lâmpadas azuladas. O ambiente é completamente úmido, como uma madrugada prolongada e insone somente para aquele que contempla a mesma rua. Sua extensão total não é alcançada por minha visão. Há prédios muito escuros, com a aparência de uma semelhante decadência muito vista em estágios de futuros incertos de nossas grandes cidades: partes abandonadas, coisas feias deixadas para trás em nossa história para nunca mais serem vistas no novo e anti-séptico presente. Pedaços sem vida de muitas vidas que apodrecem na escuridão longe dos olhos de todos... Eu ando devagar por essa rua, e encontro nela a similaridade com o meu interior, tão triste, vazio e solitário como a lembrança que tenho de mim mesmo no mundo real... É uma suave, mas evidente, descida; e é a queda, o que posso perceber também em mim. A umidade fria que respiro vem junto como o odor da podridão em todo lugar, e 768
a escuridão é justamente a única coisa que parece se ajustar aqui: é o lar do demônio... Todo este lugar... Continuo a andar, quando no mesmo instante estou em frente de uma porta: traz-me uma recordação, e logo eu sou informado do que... É Suzana quem surge e se apresentam novamente as emoções daquele nosso reencontro: mais uma vez, como a melhor parte de mim, restante apenas quando eu a abracei e tive do amor a sua melhor resposta: algo do desejo da fantasia relembrado como realidade, e estava lá... por alguns minutos... Mas o tempo não importa nesse mundo, e no momento seguinte eu estava dentro da casa, mas não era a casa de Suzana... Era minha sala que via e revia como num passar de milhares de páginas de um livro, somente que esta sendo sempre a mesma... e o que via no final era a criatura caída, lá, no meio da sala, em meio à escuridão, como eu havia feito: destruída; e eu estava com a arma na mão. Uma cena imóvel apenas para a minha apreciação: pude notar, além do que sempre notara, que ela não possuía sexo; sua pele era aquela couraça negra, com os músculos protuberantes bem alinhados, mas entre as suas pernas não existia absolutamente nada. Seu tamanho era algo que ainda me impressionava: devia ter bem mais de dois metros de altura; mãos e pés também gigantescos... Podia imaginar como sendo uma forma 769
escultural de ser humano: forte e poderoso, e sem o sexo para afertar-lhe os julgamentos referentes às diferenças entre homens e mulheres... Porém com tanto; quase admirava sua “perfeição”; eu fui capaz de destruí-la... “NÃO FOI!!!” Vinha-me a mensagem... Quando novamente estava de volta à rua: alguma coisa novamente familiar me virou o pensamento; para pouco antes sobre a criatura, e o que eu parecia abominar tanto nas pessoas para ter imaginado tal monstro, mesmo que depois a tenha destruído; era um lugar onde eu já estivera antes... “Perfeição...” Foi o que pensei em um segundo de reflexão antes que tudo começasse a se desfazer com velocidade, e várias novas imagens surgissem a minha frente... mas todas conhecidas: a arma na gaveta e seu brilho frio; meu reflexo apático no espelho; o pôr do sol; a rua novamente, só que em alta velocidade, como de dentro de um carro; indigentes miseráveis povoando cada espaço daquele mundo escuro; e no fim a tela azul para onde tudo se convergia, com o mostrador brilhante trazendo apenas uma breve e conhecida resposta: a data... O que eu mais temia em mim mesmo, de mais comum que se tornara: a obsessão por uma lembrança de origem... Aquela data... Qual era a sua resposta?... Fui então mais longe, entre pesadelo e consciência, após me surgir apenas e somente a 770
dura escuridão: o que via (não via nada) era o meu pensamento, do meu desespero naquele momento...” “Qual era realmente o legado: a obra ou a criatura?... Ambas minha criações. Porém era a origem desse legado o que eu mais temia, por ser tão intimamente ligado a mim... As únicas coisas fora do contexto eram a criança e esse já era do escritor, e Suzy, que não era minha: coisas boas... presumo... Talvez a origem fosse apenas eu; uma pessoa; alguém que se deixou ser como é... Ser eu mesmo não é uma fácil tarefa se eu podia admitir tais coisas como concebíveis na realidade, e ao mesmo tempo desprezar os meus instintos mais naturais e destruidores: quando vejo que tipo de “perfeição” desejava conceber para o mundo real a partir de minha imaginação... “Não já haveria ódio suficiente no mundo, criatura?... Você tinha que querer o senhor de tudo?... Eu lhe destruir!”... Então: o que tinha eu ainda que realizar?... A voz da criatura sempre me vinha para responder: “Você não pode viver sem mim!”... O que havia destruído, afinal? Numa dolorosa pergunta.... E minha imaginação não sabia mais como responder... Queria ver Suzana, acima de tudo; o quão normal isso não era?... Esse desejo... Mas meu despertar me transportava para outro lugar...” Refiro-me a pedaços desse sonho: a arma, a 771
criatura em minha sala e o pôr do sol... Após... Nesse momento, presente, da história... Depois... Acordei com somente a profunda tristeza (não conseguia me reconhecer),o cansaço e o desejo de ver Suzana novamente... Por tudo que sempre parecia ter passado naqueles últimos minutos de sono, receando acordar, como que já nadando uma grande distância sem alcançar o solo, num meio de um oceano de sofrimento... Apenas aquele pensamento feliz que resgata o melhor sentimento do coração, e faz querer continuar... Mas naquele dia, mais um dia, e não haveria mais outro, não consegui falar com Suzy, de modo algum; como que cumprindo o que já havia previsto e sentido: só me restava a memória daquele abraço... E isso era bom.... Não conseguia esquecer: fosse como fosse; ou como ela era realmente; ou como sempre foi... para mim. Apenas pensei em meio a tudo de normal no exterior... “Só resta você agora. (Sempre foi só você!) E é sem dúvida a mais difícil despedida. Tenho que me afastar. Não há mais nada de bom que eu possa oferecer. Só o que me resta é o amor por minha arte e por você, ambos entrelaçados num único sacrifício, semelhantes até na origem talvez... Minha vaidade pediria que não chorasse por mim, mas acho que sou quem devo chorar, pelo menos por hora, pois quem 772
perde mais sou eu: um martírio de mim mesmo para o que o bem prevaleça na arte. Escreveria até o último momento e pelo último momento, que até parece já ser este, pois com quanta dor no coração luto com meu corpo e razão para não chamar este grande erro de um grande acerto, ao qual me trato por te dizer... que me afasto... para que o mundo possa ainda viver. E espero que viverá, pois tem alguém como você... longe de minha megalomania.” Pensamentos perfeitos de um escritor que não escreve mais: por medo de criar a realidade... e já está lá; por aí ; à vista de todos... “Apenas adeus, Suzy... Não sei ao certo no que perdi a fé ou o compasso da realidade, mas acredito no pouco que sinto acreditar, e às vezes sem saber no que falo: meus pensamentos não são claros... E acredito no meu amor por você.” Não sai de casa nesse dia. Mais dias se passaram (normais?), e a data de hoje se aproximando com a inexorável força do tempo... Trabalhava, andava, dormia, ficava em casa e vivia... Poderia começar a pensar uma solução definitiva para um problema tão cheio de paixão. Não é realmente complexo quando tratadas as consequências de cada ação de cada um; nesse ponto é realmente simples!... Mas o que constitui a necessidade é de uma ação pensada que cause 773
o impacto definitivo (uma consequência que faça compreender completamente a razão). Porém o que surge como maior obstáculo é justamente esta ação pensada, que nunca ocorre no coração partido e impetuoso: causaria muito menos dor morrer com uma estaca no peito do que ver a consequência se abater no coração alheio com quanto ou mais impacto o qual se queria (a solução definitiva), que fulmina o sentimento de uma só vez; ou melhor, a pessoa que o possui; deixando no vazio do mesmo sentimento uma dor tão profunda, que faz-se desejar o fim, e enfim a construção de uma nova história, que contém somente o restante de uma imagem do bem, apesar da dor... E pensaria muito mais desde então, enquanto o dia de uma obscura revelação se aproximava: hoje; não somente sendo as razões de uma espécie de pessoal profecia, mas a apresentação de algo que eu sabia não poder suportar diante de mim: de uma familiaridade corrente em toda esta história, mas que precisava ser detida em seu final, para que o resto de minha sanidade ainda fosse capaz de fazer a coisa certa... mesmo sem parecer ser aos olhos de todos os outros. O que quer que fosse. Mas de fato só sentia pela razão que Suzana teria... pois mesmo do escritor: seria algo de esperado, de sua ação sobre minha ação: a decisão tomada em 774
nome da “arte”... Já que tinha mais haver com a imaginação. Para todos... somente a ação seria real. E por isso Suzy iria sofrer... E por essa razão, somente essa razão, eu sentia... Aproveitei um desses últimos dias antes de hoje para ir ao escritório levando aquela minha última obra: pensava em todas essas coisas últimas com a certeza de tudo se tornar definitivo e claro... hoje. Porém minha definitiva verdade e clareza ainda estavam retidos em algum lugar entre aquele momento e agora... Somente me revelavam os passos que teria de dar a cada passo que eu dava... Deixaria, como deixei, o mencionado trabalho lá no escritório para que pudesse entregálo ao escritor, quando ele viesse... Imagino o quanto ele não poderia realmente absorver da história para a tornar completa... mesmo sem a minha ajuda: a autoria do que está escrito não seria tão importante quanto a abrangência da obra diante de sua intenção, que desde o começo fora encontrar uma origem... a qual ainda não me foi esclarecida. E o que vem depois disso já se aproxima. Via as pessoas da empresa, enquanto ainda permanecia lá, e sentia a sensação presente do que seriam realmente últimos momentos para aquelas pessoas; algo de nostálgico e fora do contexto, como que visto à distância, através de um telescópio: 775
pessoas, apenas pessoas. Deixei o envelope com a obra sobre minha mesa, com o nome do escritor bastante destacado, para que não esquecesse de levar quando me visitasse... A visita está marcada para o dia 26, como sempre; e imaginaria, ao olhar a agenda com o compromisso, que gostaria mesmo de vê-lo decifrar aquela história: um sopro de compreensão para mim... No final do dia indo embora... Com todas as imagens conturbadas de alguém que já não pensa com clareza; quase apenas admirado ao viver em tanta dúvida sobre o pouco que me resta; assistindo as pessoas à minha volta e revendo-as completas na imaginação... mas todas dentro daquele triste cenário desolado do pesadelo: a rua úmida, os indigentes; cada pessoa à minha volta se tornava a identidade de um daqueles horrendos e tristes indigentes, vivendo no mundo escuro de minha atordoada criação... Sentia a tristeza no coração e a incerteza dos dias que restavam. Naquela noite, há duas noites atrás, dormindo o mais calmo dos sonos profundos, podia me ver na suavidade de cada lembrança que me voltava que parte da resposta sobre minha vida estava por emergir no mundo dos sonhos... Tudo que já havia imaginado estava lá presente: uma representação emoldurada de tudo que já tinha pensado, criado e vivido: um sonho bom... de notável amplitude e realismo; algo 776
elaborado por mim mesmo, parecia ser, para ser o prólogo da realidade que viria a seguir... Da suavidade das imagens anteriores vieram enfim as sombras... da rua... Minha visão consciente continuava a andar por aquele interminável vale de prédios escuros e semidestruídos. A pista que se estendia rua à frente no infinito era de uma dureza e umidade enegrecida e pegajosa, como um duro asfalto recém colocado, só que frio. A umidade e o frio do ar eram de uma fétida similaridade com as ruas dessa minha cidade quando a coleta de lixo não é feita e uma chuva torrencial passa e espalha toda a sujeira por todo lugar... Mas tudo é escuridão; há apenas a luz azulada dominando todo o ambiente com frieza e sem demonstrar nenhum sinal de alegria ou emoção. O céu também é apenas uma pesada escuridão: um teto denso e imóvel de absoluta opressividade ... Por este, então eu caminho... Enxergo à minha direita uma fachada de construção bastante familiar: são duas grandes vitrines completamente estilhaçadas e no centro uma porta também destruída... É o que fora a loja de armas onde havia adquirido a minha. Da escuridão de dentro do estabelecimento começo a ouvir um ruído; é o barulho murmurado de gente aglomerada. Então, observando de uma certa distância da fachada da loja, passo a ser capaz de ver pequenos vultos emergirem para a luz azulada e fria 777
da rua. E no momento que, tomando as saídas da loja para a rua (porta e vitrines destruídas), posso perceber que são todas crianças, semelhantes as que vira à vitrine da loja quando fui comprar a minha arma, mas todas com os brinquedos dos seus sonhos nas mãos: armas, dos mais diferentes tipos e tamanhos, prontas para o final assalto. Seus rostos são marcados e envelhecidos, cheios de cicatrizes de tempos incertos sob o poder de outros: os novos hospedeiros de uma eterna vingança. E suas expressões não são mais as de inocentes crianças: são criaturas de expressão fria e raivosa, sedentas por práticas tão violentas quanto as que posso imaginar; pesadelos apocalípticos de todos nós realizados pelas mãos das sofridas, e cruéis, crianças de hoje... amanhã. Elas não me vêem, apenas saem às dezenas dos destroços da loja e começam a andar pela fria escuridão da rua que é o mundo... desaparecendo para cumprir suas atrocidades, seus desejos reprimidos de violência e dor, suas pessoais e íntimas brincadeiras... Volto-me, depois de seus desaparecimentos pela escuridão, para a escuridão da loja, de onde eu sabia que viria mais... Alguns segundos... - Há muito mais de onde estas vieram...E haverá muito mais ainda... depois! - A voz não me podia ser mais conhecida... e esperada, naquele cenário... Era a 778
voz da criatura... vinda da escuridão... - Então é este o meu legado, criatura... Um mundo assim, só meu, criado por você?... - Não. Na verdade ainda não... Este pequeno pedaço de paraíso e estas crianças são apenas uma amostra do que você pode fazer. - Mas eu não farei! -Você não tem escolha... - Veio caminhando com os passos silenciosos de quem desliza pela escuridão de um eterno pesadelo... Em mim próprio: o medo de uma descoberta já pressentida há tanto quanto poderia me lembrar sonhar a realidade.... Mostrando sua face na fria luz azul da rua, para o meu já gasto lamento sobre as revelações do dia-dia: era a mim mesmo que eu via saindo de dentro da escuridão da loja... Com a minha expressão... de quando não consigo me reconhecer. Eu... o que o monstro sempre foi. -... Você não pode viver sem mim!... Despertei. Despertar com a sensação cortante; num peito arfante de difícil e apressada respiração, com o suor frio escorrendo na cara, parecendo estar acordado dentro de um pesadelo; de que uma batalha estava por vir, talvez já perdida: um mau tempo, um mau momento, para um novo dia... Mal consigo acreditar que isso aconteceu ontem, em minha casa, 779
no meu quarto, semi-erguido em minha cama, com o dia amanhecendo ao meu redor. Agora é hoje... ### O dia de ontem estava começando a terminar quando eu vim para cá. Este lugar é chamado de morro de cristo. É uma suave elevação que no seu pequeno e arredondado ápice faz privilegiar os contempladores dessa visão com o encontro do mar aberto que banha toda a cidade, com a baia que penetra um bom pedaço de continente, tendo no seu centro uma grande ilha turística. A imagem se assemelha com a descrição de um sonho sonhado por Deus em seu melhor humor e natureza, se desprezando todas as modificações do ser humano nessa perfeição de ambiente: os aterros na baia, a poluição do porto, o esgoto no mar e essa pequena e simbólica construção em que me recosto para assistir um sublime alvorecer... No alto do morro fora erguida não sei quando e não sei por quem ou porque, uma estátua, com um pedestal; é a estátua de corpo inteiro e em tamanho natural humano de um cristo: a cor da peça é branca e o pedestal onde a mesma descansa em pé é negro, com mais de um metro e sessenta centímetros... Com uma mão e braço 780
estendidos a meio caminho com a vista do horizonte, o Cristo está com a expressão virada para justamente onde o mar aberto encontra a baia, abençoando, esta é a intenção, tanto o crepúsculo quanto o alvorecer... fazendo dos opostos sinais da luz do dia o perfeito encontro entre a beleza deste lugar e todo começar e fim de um novo dia... Somente restando entre... a escuridão. Sua posição, cristo e morro, é estratégica, pois capta os dois espetáculos de luz supra citados, de um modo que: no entardecer, virado para a baia se vê o sol se pôr no oeste, pois sendo uma baia, está virada para dentro de continente, que é banhado pelo oceano no leste, onde, no mar aberto, o sol nasce para o novo dia... Todos os dias.... Escolhi este lugar por duas razões: a presença da criatura nesse mundo sempre tinha sido dependente de um fator físico, presente no meus pesadelos como livre ambiente; a escuridão, que fora constantemente uma abertura nas fontes luminosas da realidade para a sombra do monstro penetrar e se fazer presente... Segundo podia entender, deveria estar por estar na presença da escuridão dessa noite, para enfim poder atravessar a ponte do alvorecer e romper esse dia que surge, com sua completa e final transgressão: o demônio viria a vida, nesta data, enquanto a luz do dia que surge revela a infinita escuridão do distante 781
presente futuro... Via-me como a condução viva para essa aparição; já testemunhando sua carne, e cólera surgindo através de minha imaginação, e por isso precisava acompanhar toda a trajetória de luz e negritude, antecipando o despertar do monstro, para poder impedi-lo... A primeira razão é por poder ter assistido o pôr-do-sol de ontem à noite, daqui, e do mesmo local, apenas mudando de posição e a direção dos meus olhos, estou podendo ver o sol se erguer vagarosamente no horizonte a mar aberto... percebendo a cada instante o poder de minhas decisões e pensamentos... A segunda razão é a perfeita estética deste local para o que pretendo realizar; visão esta, deste cenário, anteriormente vislumbrada por uma das obras do escritor, pois presa em minha imaginação e lembrança com o arpejar de uma hipnótica música, que presa à fabulosa história que fora criar, do escritor, faz da imagem descrita em detalhes de um corpo quase identificável, dilacerado e já semi-decomposto, tombado aos pés de Cristo... uma das fixas figuras do mórbido cenário dos meus pesadelos... Pois esse é apenas o começo da história, e somente no final se vê que há muito mais... ...O palco esteve sempre pronto, só me bastaria atuar a minha chegada, e da criatura. 782
Quando aqui cheguei, trazia o que meu coração carrega, nos mais pesados dos fardos sem inocência, nesses últimos eternos 23 anos de vida: o que imagina de si mesmo uma pessoa em plena queda de valores e de fé, fazendo viver em uma nova forma de vida: vil e sem moral... tudo aquilo que vem de uma grande frustração por estar vivo. Em cada passo dessa leve subida eu carregava comigo todo o peso de uma lenta, mas inexplicavelmente dolorosa, derrota: ao não poder mais me reconhecer na realidade, percebendo o que de fato iria acontecer, dando os finais passos de uma contínua descida... mesmo sendo esse topo de um pequeno morro. Somente na paz e na beleza desse lugar, a essa hora do dia, tendo a companhia apenas da minha voz do interior... O pôr-do-sol se foi lentamente; cada pequeno fio da luz alaranjada do crepúsculo trazia em seu redor as aberturas visíveis para a escuridão; pouco tempo restante então de luz, desaparecendo por traz do horizonte do interior da baía, o sol vibrava o seu melancólico adeus de esperança para a minha úmida retina... com a sensação da angústia que mata os bons sentimentos em nome da mentira, a tristeza em meus olhos que vinha para lembrar o quanto a criatura era “feliz” na escuridão... por ser como é, e o mundo se tornaria o seu lar... sem mim... Com o sol sumindo foi quando 783
a primeira lágrima desceu; o medo estava presente; e eu já começava a consumir a cerveja que trouxera comigo: seis latas ao todo... agora todas vazias. A noite atravessou comigo o fascínio desses pensamentos, numa crescente falha de desarmonia até o fim pouco pacífico: “A vida possui somente um alvorecer e no entanto infinitos crepúsculos: eternamente a observar o horizonte, todos os dias, a espera da grande escuridão... Estou presente num último alvorecer que recolhe em si mesmo o final de longo crepúsculo: o meu... Quase sinto por ter em mim mesmo de vivo o amor e a criatura; deste anterior que me faz querer viver, o último tira as energias para se alimentar da loucura e continuar a existir... E esse é o momento que não pode ocorrer: pelo amor que eu tenho ao mundo... “Suzana, no meu olhar que permeia a escuridão a procura de um leve sentido para tanta dor, apenas vejo em você a mesma imagem do melhor que me resta: o que deve prevalecer...” No meu árduo caminho de pensamentos e sensações perdidas, com uma somente certeza da aparição do demônio no mundo a partir desse dia que vai surgir... A noite se estende...” Mas era de minha teoria mas possivelmente racional, e não das minhas vozes cheias de medo, ressentimento e dor, que vinha o que imaginava ser o 784
momento exato para a disputa. Um espaço territorial que significaria não apenas um sacrifício, mas uma corrente de imensa tensão que tanto poderia me libertar dessa loucura, como também poderia lançar todo o mundo numa insanidade sem fim... Pode... “No amanhecer seria quando a criatura desaparece, quando o demônio é sobrepujado pela luz do dia... mas permanece aqui, mesmo sem poder ser visto, pois com sua voz se faz presente para conseguir querer viver além de mim.... No que se torna o segredo desta data de revelações; como sua data de renascimento em mim... Não sei! Talvez consiga; mas será por mim mesmo que tentarei expurgá-lo. Ao ouvir e sentir a presença dentro de minha pele, em cada parte do meu corpo que clama por querer continuar a viver... Retorcendo-se em mim; esmagando minhas lembranças dos sonhos de felicidade e trazendo a ira por culpar o mundo inteiro por estar aqui... forçado a ser, a acreditar, que é em min que a dor se faz presente e forte, querendo sair e transformar, em todos, as mesmas peças de sofrimento que a mim me causam no interior tal desprezo e ódio... pela vida... Imagino se todos se tornarem assim... Ou já não o são?...” Já estava sentado na direção do alvorecer; não sabia que horas eram; meus olhos estavam perdidos na escuridão do horizonte negro do mar aberto; pouco 785
me importava a cidade logo atrás de mim, tão perto e tão longe; ou mesmo os perigos comuns da noite metropolitana; as luzes não mais existiam; apenas as batidas violentas do meu coração... e finalmente a voz grave e “no” interior... - Flagele o mundo com sua cólera; esse é o seu desejo mais primário... Por tudo que não realizou em sua vida, longa demais a essa altura, deixe que eu realize através da dor dos flagelados de sua vingança! - Não!... Não!... Ninguém tem a culpa por mim, e meu desvio da realidade; talvez tenha sido o que sempre pedi para mim, cercado de traição, sem amor e sem perdão... Prefiro fazer a vingança do mundo... em mim... - Palavras fortes de alguém tão contraditório... Nada teve sentido em sua vida até eu aparecer e fazer você sentir todo o prazer da cólera e da dor de terceiros... - Imediatamente recordei das lágrimas de Silvana. E logo em seguida do ataque sobre a criatura, em ocasião de uma de suas aparições, quando a raiva me deu o poder e a coragem suficiente para avançar sobre ela, quase a fazendo cair.... mas não... - Isso mesmo... Lembre-se de como foi capaz de destruir a sua própria criação... Você pode fazer muito mais... se me deixar assumir o controle! Minhas mãos tremiam e transpiravam, na verdade 786
todo meu frágil corpo; sempre adorei transpirar. O calor me faz sentir com a vida borbulhando pelos poros e escorrendo junto com a vitalidade da carne; nestes instantes em que transpirar e tremer significam tanto a vida quanto a estranha dúvida da mesma, tirando-me um pouco do prazer que sempre tive, mas não o bastante para querer perder a sensação; é quando procuro então tentar perceber entre os meus pensamentos e as palavras da criatura a fonte dessa minha insanidade, que sinto perder: o suor, o tremor... Minhas mãos procuram no meu corpo a pouca razão; por eu achar que tinha que estar aqui para esperar, e combater, o monstro... A mão direita encontra a arma nas minhas costas, na cintura da calça, oculta da sensação, mas fria o suficiente, como sempre desde o seu brilho dentro da gaveta, recordo, para se fazer presente; eu a empunhei... - Perfeito!... Você já conhece até o caminho... Deixe a emoção da ira tomar conta de você novamente... É a nossa natureza não o que temer, se todos forem seus inimigos, pois não haverá mais amigos para traí-lo... Deixe a cólera fluir e suas mãos pararão de tremer; será firme e seguro a cada passo... E não será mais um fraco apaixonado pela vida!... - Não sou fraco! - A mão pressionava o punho da arma com força; a influência começava a se 787
espalhar; e o meu lamento tentava fluir pelas sombras da loucura para lembrar-me que aparente fraqueza era a melhor arma, melhor que a arma, pois era o que o demônio mais despreza no ser humano: a fraqueza... “Um escritor é tudo que sou. E disso para um grande renascer, o monstro se criou deste fabuloso poder... Restando pouco de mim que ainda seja capaz de vencer... Vive dentro de mim para todos os dias; e gosta de tudo que vê; pertence a este mundo de horror: onde antes era a imaginação, agora é a verdade (o terror), e ele gosta; pois estes dentro, como este mundo, agora fora como a concretização de pesadelo sempre vivo....” - É fraco por rejeitar a vaidade em sua aparência preferindo, envelhecer a amadurecer... Por se arrepender pelos mais fantásticos pensamentos: indo tão longe ao ponto de sofrer pela minha destruição...” Você é sua própria criação: o que você destruiu foi apenas a imagem do seu interior mais capaz de suportar essa nova era... É fraco pela piedade que tem pelo mundo... Por Joana... por exemplo. - Cale-se... Não quero ouvir tal absurdo! - Este mundo foi feito para aqueles que suportam seu horror!... Ela, como todos não foi capaz de suportar! - Levei minhas mãos até o rosto; o duro metal da arma se confundia com minha umedecidas 788
palmas; contorci-me entre angústia e ódio por tudo aquilo em plena vida e consciência dentro de mim, desejando ter mais algumas lágrimas, assim como tempo de consolo, pelas vidas que deixei para trás... mas faltava-me muito mais ainda por lamentar... “Coração sem piedade, que mais cruel é com seu criador... Perdi um grande amor... O amor pela vida; a consciência teme por isso e o corpo responde...” Meus cabelos são grisalhos deste tormento; meu rosto é cortado pelas rugas de um tempo que nunca existiu; meus pulmões inflam dolorosamente; meus olhos querem se fechar; estou muito cansado... - Sinta o desprezo do mundo ao redor, criador... (descanso as mãos no colo, e me atiro em ver o nada no horizonte, a voz...)... Cada alma que dorme escondida; cada cor; que teme na vigília; veneradores de uma falsa beleza de normalidade... Nenhum mais pode conceber o que você criou... São sofredores que fazem sexo e sorriem, para esquecer que sofrem. - Talvez eles sejam felizes, criatura... Adoraria estar fazendo sexo e sorrindo agora... - Com Suzana?... - Não permito que pense nela, monstro!... - Sempre foi ela quem te enfraqueceu! - Sempre foi meu sentimento por ela que me deu forças! 789
- Um paradoxo para quem tão facilmente se embebeu nas fontes do ciúme: isso o deixou forte, criador?... - ...Sou humano... criatura... “Meu corpo quer viver: eu posso quase sentir minha libido e o cheiro do ozônio exalar pelos meus poros carregados de suor e adrenalina; o medo e desejo juntos... nas lembranças do passado. Mas há na mente a sua presença repressiva: tudo que oprime tende a causar uma enorme tensão, e eventual explosão que descarrega toda pressão acumulada... É uma guerra sem vitoriosos, da criatura ou em mim, para a persistência de quem deve permanecer esta vida: insanidade contraditória, que me permiti pensar com clareza sobre minha própria consciência que se esvai à medida que o dia surge...” Posso já divisar a suave claridade azul no horizonte; a segunda lágrima surge muito tempo depois que a última cerveja se fora; todo sabor amargo da vida parece tomar a minha boca; a arma em minha mão tem o seu papel definido nessa tragédia sem título; muitas lembranças me cortam a alma enquanto o dia de hoje amanhece; e no próprio metal da arma observo o meu reflexo distorcido de um rosto irreconhecível: de uma criatura já não pertencente a esse mundo; com uma fria lágrima que o percorre carregada de todas as 790
recordações dessa história... “A vitória de uma vida em paz, que chora triste pelo fascínio que tem pela dor e pela violência: termina por amar a tristeza e a agressividade quando no amor de si mesmo só resta olhar ao redor para ver, muito além da beleza, o horror.” - É hora do alvorecer, criatura. - Alvorecer para uma eterna escuridão! - Beleza é o que vejo! - Horror é o que vejo! - Não pelos meus olhos... nem por minhas mãos - Sinto o gosto amargo em minha boca misturarse com gosto metálico do cano da arma; os últimos sabores de uma vida que há muito tempo havia perdido a doçura... O calor é maior; a luz está mais amarelada; o repicar do coração provoca os soluços de uma eminente vitória do monstro... Minha língua se escorre de saliva em excesso pela presença do metal estranho. Meus olhos me veem aos poucos sem saber se realizo minha arte até o final ou não... Da escuridão a criatura se ergue dentro de mim... para um mundo, e pessoas, que são indefesas... O forte rancor me vem... “Tenho tanto (desejo), mas não anseio matar ninguém... Quem eu poderia (então) matar além de mim mesmo...?” - Uma atitude bastante egoísta! 791
- Sem dúvida... Mas antes eu mesmo do que o mundo inteiro se tornar o que irá se tornar... - ... Onde seríamos o rei... O Rei da Escuridão... - Não ... Meu polegar direito finalmente se flexionou para dentro contra o gatilho... O Meu Fim ### DEPOIS ### “Um dia eu vi um homem em farrapos... Quão pobre e miserável um homem pode ser?... Eu lhe daria a hospitalidade e os segredos de sua arte, e um anjo então me tornaria por salvá-lo de seu próprio inferno...” Esse poderia ser o epitáfio de um homem que viveu intensamente por sua arte, mas uma tamanha utopia não enxergar sua profética insanidade: bastaria ler qualquer uma de suas obras (ou somente essa) para observar o horror do dia-a-dia em pesadas palavras de quem temia, acima de todo, se tornar a sua maior criatura... 792
O depois foi sempre o que ele mais temeu... Começava a realmente gostar desse mundo como o tal é... E isso o assustava, pois era como ele sempre imaginou... Tinha que destruir quem o criou: esse mundo de tanto pavor... Acreditava... Estava dentro dele, e por isso, somente nele mesmo alcançaria essa destruição... Sem depois... Mas para os vivos ainda existe o depois... A bala de ponta oca explodira seu crânio e fizera-se expor mais que os restos de massa encefálica cinzenta, manchando o pedestal do Cristo; fez-se surgir uma grande dúvida sobre o homem que agira contra si mesmo, aparentemente sem propósito... Suas últimas palavras são as resgatadas por este autor, que pouco compreende, mas pode ver que algo de interior sentido houve em seu ato dito louco... Suas palavras não eram mais frias e tristes: eram de uma infinita contradição que levava dos dois lados: criador e criação; a marca de quem tem pouco controle dos próprios atos, e age por paixão, com a razão perdida entre agir normalmente todos os dias, e subir no morro do cristo para explodir a própria cabeça com um tiro de revólver sob a luz do alvorecer. Céu azul e grama verde abençoaram o dia do enterro. O corpo fora liberado após 24 horas. A família, obscura família, o preparara para a cerimônia 793
de caixão fechado: seu rosto ainda existia, mas apenas numa pequena parcela do crânio restante... Preferiram se desfazer de observar sua beleza decadente e precocemente envelhecida, por uma foto antiga, de dois anos atrás, onde o que se apresentava era alguém que poucos se lembravam conhecer: era a mesma expressão triste, mas sem dúvida... jovem. Dos presentes sobre a grama verde e sob o céu azul: Valter olhava com pesar para uma parte que dizia adeus de um amigo muito pouco conhecido, mas de singular afeição e atenção. Adélia segurava nosso filho com certa impaciência, mas com a eterna elegância de quem se faz presente porque também estou: ao meu lado em feliz ambiente... Outros grupos rodeavam o caixão que logo começaria a descer... Eram parentes, amigos, colegas de trabalho, e mais um rosto que se tornara familiar logo na sua presença; as descrições não deixaram dúvida fazer sombra ao brilho do dia: alta, pele pálida, cabelos negros, e um olhar triste o qual parecia já ser conhecido pelo profeta... Ela chorava: a segunda... Suzana. A Suzana, sua grande paixão; alguém que não fora tão longe quanto ele esperara, e que se tornara um personagem mais fascinante por sua criação que pela pessoa em si... Mas a tristeza em seu rosto era real, assim como o espanto e medo de todos por um desconhecido e 794
incompreensível ato de “loucura”... Não era só a sua “amada”, mas em todas as faces; talvez de todos os lugares do mundo; almas perdidas numa escuridão interior, auto-destrutivas, lentas, sem beleza e sem arte, cheias de rancor por terem de viver suas vidas como elas são e não como gostaria que fossem... Criaturas dementes, entorpecidas pelas próprias mentiras de normalidade, e que ao fim criarão apenas suas próprias... escuridão. Olhe o mundo que te rodeia: Epidemia de Tuberculose quase no século 21. Quedas de aviões. Morte de bebês. Fascínio pelo sofrimento alheio. Mortes solitárias. Insensibilidade geral. Suicídios coletivos. Policiais assassinos. Messianismo. Aumento do consumo de drogas. Violência contra a mulher. Crianças assassinas. Ódio...
maio/96 a setembro/97 O Fim 795
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MORTE DO INDIVÍDUO OCULTO
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TEORIA DO EXTREMO CAOS Cidade é um lugar normal. Ambiente é regularidade dos acontecimentos normais. Vide o sobrevoar nos elementos lá vigentes da regular normalidade. Considerar ruas, praças, prédios, avenidas, terminais de trânsito, estacionamentos, empresas, hospitais, restaurantes, instituições físicas a serem visualizadas com clareza. A ponta do sapato está suja. Na verdade todo ele o está. Não é contraste o chão também sujo e o passo visto anterior traz a mesma sensação que posterior logo abaixo do sapato. A calçada não é tão regular quanto deveria ser num lugar normal: construir e manter são verbos diferentes. Singular, então, ver os passos conduzirem a uma direção e essa direção a um lugar, e o lugar normal fazer parte do mesmo contexto regular que essa sujeira na calçada, em baixo e ao redor do sapato... Insuspeito parar no meio da rua. Aos que transcorrem normais não discorre o que realmente se dá aos passos pesados que se paralisam num elemento de única significância, quase nenhuma presente na soberba do momento que desaparece no momento 798
seguinte... Não pareceria demais como ainda não surge essa id eia está no interior ou superfície de um lugar observando com suntuosa admiração para a sujeira da própria peça de vestuário... O vento soprava leve carregando as partículas do mundo pela movimentada rua secundária do emergente novo centro financeiro da cidade. Era início de tarde de um final de verão e os mais diversos tipos de profissionais estão andando apressados de volta aos seus escritórios e lojas aos quais pertencem, nos inúmeros e diferentes edifícios comercias da região. Andam e progridem entre o vento, a poeira e o chão; originários dos diversos pontos do universo: casas, refeições, trabalho e diversão; os rostos atravessam os passos e ainda ignoram o que ainda existe embaixo de seus pés... Mas o ignorável tende a atingir o limite dos passos retardados do mesmo elemento que olha os próprios pés e consegue também ignorar o lugar, o vento, as pessoas e o próprio sentido da ação fluente que realiza com tanto empenho. São roupas normais que cobrem um corpo regular (médio) de um homem jovem comum; representam algo dos seus pensamentos na mesma manhã: ir trabalhar, progredir e fazer parte do mesmo mundo ao qual essas outras pessoas agora pertencem e ele não mais, como que real inexistentes no que o 799
elemento chama de existir no interior do exterior... porém ainda não verbal, num vocabulário ainda não inventado, em uma representação sem representações, não mais inerte na mente de um Jaime. Na manhã vinha: O novo dia estava na quadra do mesmo cansaço poético de um dia depois de outro; o Jaime surge na imagem do espelho matinal sem reflexões do contra gosto que é acordar, levantar e emergir para as ruas do mundo em frente de sua modesta casa onde vive com a irmã mais nova e o irmão mais velho: a posterior no seu quarto de dormir a esperar uma resolução para o momento qualquer... a adocicada água clorada do serviço de abastecimento urbano que todos os dias banha a cidade e o mundo num padrão ressonante de conexões e vibrações de válvulas toca o rosto ainda sonolento de poros contraídos e aquecidos do cândido Jaime. O frio líquido, 8 graus centígrados abaixo da sua temperatura corporal, invoca o choque na pele adormecida e queratinada em excesso do Jaime. Seus globos oculares acolorados rubramente pela noite eternamente mal dormida reviram apertados diante de tal despertar: as imagens vigentes na escuridão fechada de suas pálpebras parecem ser o que de qualquer construção a ser feita na possibilidade de um dia... e qualquer algo mais que surge na medida 800
da lembrança normal do dia anterior... Seus braços se debatem vertical e horizontalmente na procura cega pelo ar do banheiro de uma toalha de banho cor de banana podre na geladeira: o encontro de tal tecido culmina com sua rápida ascendência de descendência pelo cabide de toalhas, pela força do peso na mão direita do Jaime, somada ao anterior movimento desordenado, e finalmente fazendo sua ponta oposta á que foi agarrada, adquirida grande velocidade e peso, atingir o armário do aposento... a frágil estrutura que segurava o armário teve suas bases de parafusos de quatro centímetros arrancadas bruscamente da parede, fazendo o mesmo desmontar, numa estridente sucessão de barulhos confusos e característicos, sobre a pia de louça sanitária cor de lagoa esverdeada depois da chuva de verão. E também tendo como infeliz consequência a invasão do pó que rodeava os dos parafusos na parede sobre o cabelo e o rosto do, agora irado e definitivamente acordado, Jaime. - Mas que caralho da desgraça! Batidas nervosas surgem na porta do aposento sanitário da modesta casa de cinco cômodos: uma sala, dois quartos, um banheiro, uma cozinha e uma área de serviço. O preocupado e desempregado pelas vias de fato anterior irmão mais velho do Jaime se assustara enquanto despejava água fervente dentro 801
do coador de café de pano na cozinha; tal estrondo dera a ele a oportunidade única de desperdiçar todo o conteúdo negro do recipiente onde fazia seu trabalho doméstico. Nos seus intestinos e estômago de quase trinta anos de idade sem nenhuma preocupação com saúde alimentar se deu mais uma daquelas fantásticas contrações que lhe lembravam que quem cuidava da casa era ele, mas quem sustentava era o Jaime e quem era feliz era a irmã indolente que ainda permanecia no quarto sob os cuidados do sono dos justos que têm o dever cumprido de ser somente jovem, alegre e estudante de 1º grau em colégio público de respeito... E apesar da enchente preta que escorria da pia para o ralo e também para o chão, o anterior se apressou apavorado e constrangido pelas razões de seus pensamentos em direção á porta do banheiro, quase desaguado também pelo medo que vinha da lembrança da inutilidade dos seus atos sobre o café que era coado pelo coador, se estabelecera no bule, e sobre seus pensamentos anteriores completamente vazios de qualquer consideração, com relação a qualquer outra coisa, nada a não ser o café que escorria por aquela “meia suja” de tecido barato fixado no arame grosso de forma circular com uma alça feita da continuação do próprio arame. - Jaime ! O que houve ?! Você se machucou... 802
ou qualquer coisa ?!! - Ah !! Qualquer coisa... Eu estou legal...- o Jaime abre a porta ainda esfregando o rosto úmido e empoeirado, como se houvesse saído de uma empreitada de um pedreiro qualquer do mundo. - ... Foi só um pequeno acidente com o armário do banheiro. - Oh! Ainda: Sentados juntos á mesa da pequena sala os dois irmãos comem pão com manteiga a seco enquanto assistem qualquer coisa que estava sendo exibido na TV aquela hora da manhã. As últimas três colheres de pó de café torrado na hora, na hora da compra, haviam sigo engolidas, enquanto liquefeitas, pelos canos e conexões do sistema de esgoto da cidade, o qual também fazia parte do sistema de abastecimento, o mesmo cedeu a água para o café e para o banho que o Jaime teve de tomar após o incidente com o armário do banheiro; todo esse mesmo líquido vindo do mundo sendo misturado, processado e re-utilizado pelos mesmos usuários da água do mundo... se fosse para ser o olhar do Jaime, imaginaria um dia lavar o rosto pela manhã e ter por acidente um grão de café invadindo seus belos olhos e cegando-o para sempre por via de tamanha infecção, de um descuido, 803
do acidente, do susto que seu irmão levou quando ele derrubou o armário do banheiro e deixou o café escorrer pelo ralo da pia da cozinha; pensando no seu dia e o irmão pensando nos seus dias sem o dia de trabalho do irmão, o Jaime. Um olha para o outro no momento do intervalo no programa qualquer da TV, mastigando ambos seus alimentos: - Você vai Ter que comprar café quando voltar do trabalho... - Hum... - Concorda com a cabeça, continua a mastigar com os cotovelos sobre a mesa, mantendo o pão com manteiga próximo a boca, espera o programa voltar: brilho sem momento da manhã a vir para trabalhar... O brilho do Jaime sob a luz da TV colorida de 14 polegadas, em mais um dia do seu encalço para viver. Inimaginável como tal imagem de um absurdo tão patético como os eventos da mesma manhã tenham surpreendido com tal ímpeto de relance o apático do Jaime em sua estática reverberação do momento oculto de si mesmo sob o julgo dos próprios pés e do chão da calçada da rua onde está... O mais indesejável dos contrastes começa a eclodir numa sanidade mental que ainda vibra com tais sutis lembranças do que já não mais existe dentro da realidade viva do 804
momento: chocar no Jaime a verdade da aparência em sua volta tão concreta para todos, menos para ele, com a transversalidade da atitude contemplativa inversa que mais faz tomar a forma de um ponto sólido singular de procura de sentido daquele incidente desagradável da manhã em instância, o mesmo que se mostrou sem razão e inerte nos seguintes momentos... e tão profundamente caótico nesses que se seguiram algumas poucas horas após... agora. O primeiro que veio da imaginação em sua já alargada paralisia. O que de verdade podia ser consumida em tal representação de um passado desta manhã, quando numa acessada realidade tal situação tem sua existência no amplo campo do inconcebível, não mais presente na clara visão de seus olhos em viva contemplação... Transfigura o Jaime um presente único do que é instantaneamente desfeito em suas construções de ávida solidez: a rua, as pessoas e ele em si próprio, na necessidade de formação do mesmo momento singular e perpétuo de contemplação incidental do mesmo objeto: seus pés e a calçada continuavam a impressioná-lo no seu desmembramento de caos e soluções; previsíveis em previstas situações, mas inteiramente irreais se mantida a medida da memória, onde a situação presente e passado novamente se vangloriam, sob a atenção de 805
tal mente confusa, para se representarem no mesmo tempo de pensamento, impetuoso e descontrolados... e nesta tentativa de se desfazer do incidente da manhã já inexistente em sua concepção, a realidade do Jaime traz sob o mesmo rezar a apatia vigente em outra luz do desfecho do que ainda consegue admitir como lembrança (na corrente de uma voz que surge) e que desbrava mais uma vez a escuridão... Seis anos se passaram. Não é mais agora, nem tão pouco a manhã desse dia. O presente e o passado recente existem distantes quando numa noite, cedo, há seis anos atrás, outra coisa que não existe mais aconteceu. O Jaime tinha acabado de se mudar para o bairro onde mora: tinha a casa só para ele... até que o irmão e a irmã viessem. Estava de pé no balcão de um bar do bairro, que ainda existe hoje, bebia um refrigerante gelado e muito doce, com os braços apoiados sobre o balcão e as suas pernas estavam elegantemente cruzadas, sua pose era tranquila. Olhava para os rostos das pessoas ao redor, discretamente; ainda não conhecia ninguém com intimidade; apenas algumas cordialidades esporádicas. Algumas pessoas conversavam bebendo cerveja e outras assistiam á TV, onde era exibido um jogo de futebol de um campeonato de um país distante. A imagem da TV não era muito boa: um time tinha uniforme azul esverdeado 806
e o outro vermelho, também esverdeado, por causa da TV... Com algum tempo passado, um homem de cerca de 50 anos entrou no bar. Aproximou-se do balcão, olhando muito para os lados; não transgrediu muito o caminhar do mundo normal... até que sacou uma arma e deu um tiro no dono do bar; no meio do peito... o homem caiu de olhos abertos e assustados; a surpresa fora tão grande quanto o impacto da bala... Todos se viraram para ele assustados; o atirador já havia corrido para a escuridão, longe. O dono do bar caíra sentado, com aquela expressão, escorado pelas estantes da parede do bar; algumas coisas caíram; e ninguém fez nada, inclusive o Jaime, enquanto se passaram alguns segundos, e todo alvoroço começou. Na TV, um dos times fez um gol. De dentro da cozinha a esposa do homem veio e tornou o escândalo do caos final do marido sua obra da tristeza... as pessoas saíram; inclusive o Jaime: ninguém iria querer ser testemunha. A polícia veio e a coisa nunca se resolveu. Somente foi sabido que o crime tinha sido por causa de ponto de jogo ilegal: o bar. Quando de tal brutal construção o cenário se voltaria para o Jaime, e ele se vira terminando de tomar o seu refrigerante gelado e doce, para sumir-se dali prontamente; o coração batendo na velocidade da luz, tendo visto um homem ser morto... podendo ter sido ele... podendo ser 807
qualquer um... Lembrança do som do tiro... Lembra o homem olhando ao redor ao entrar no bar e encostar no balcão; lembra-se do homem olhar-lhe sem avisar, no presente... Vê que o homem lhe aponta a arma... Vê que o caos se revelara somente para ele... Vê que levará um tiro e irá morrer... e que não pode se mover, pois está parado no meio da calçada olhando para o seu sapato... e ninguém, de quem passa, se importa que o homem no balcão poderia ter atirado nele, ao invés de ter atirado no dono do bar.. Somente ele vê... Em um estacionamento perto de onde o Jaime está de pé, parado, um homem sai de seu carro, despreocupado, confiante na condicional normalidade de seus atos. Apanha sua pasta de couro de homem bem sucedido; e também o paletó, no qual não está vestido ainda por razão do calor... Ensaia um sorriso por qualquer coisa que tenha lhe acontecido durante o almoço...e finalmente BATE A PORTA DO CARRO. O som do tiro da arma do homem no balcão possui o opaco repicar da realidade sobre o Jaime... Seu impulso o faz finalmente se mover; gritar desesperado; cair no chão e se debater; chamando a atenção da normalidade dos transeuntes; despertando para todos o extremo caos possível daquela tarde... O Jaime vê o mundo e a realidade desabarem numa imensa escuridão de pavor e desespero... 808
- Será epiléptico?... - Tá babando? - Pobre rapaz! - Chamem a polícia ! - O Jaime não volta mais para o trabalho naquele dia... TEORIA DO CAOS E DA CLAUSURA - Você sabe o seu nome ? Silêncio - Você sabe onde está ? - Você se lembra o que aconteceu ? Silêncio. Os rostos não têm faces. São manchas escuras envoltas pela intensa luz no fundo. Luz brilhante; muito intensa. As vozes e perguntas não são vozes e perguntas. O silêncio é só o que é presente no seu novo mundo. Há paredes ao redor; são claras. A luz vem do teto; ofuscante. Os rostos sem face continuam a produzir sons. Há algum tipo de plataforma acolchoada onde ele está. Está deitado em algum tipo de cama dura. Os membros querem se levantar, mas estão presos. O Jaime gostaria de tirar as faces negras de sua frente e poder respirar para fora da luz. Há também um zumbido em seus ouvidos que marca o repicar de seu coração e os barulhos que os rostos 809
sem face fazem... E por mais que tente não consegue parar de sentir o extremo pavor de não reconhecer mais nada ao redor. - Que prognóstico eu posso fazer ? - Olhos congestionados. Pupila dilatada. - O brilho assustado de um mundo nada regular. - Movimento insistente de braços e pernas. - Está drogado ? - Não parece... a sintomatologia está mais para paranoia ou esquizofrenia do que para efeitos oriundos de drogas. - Mas drogas causam paranoia !!? - Seu estado físico não demonstra isso. - O que disseram que ele dizia ? - Algo do tipo: “atiraram em mim”; e também uma confusão sobre o grão de café que viajou no tempo... - Como é ?... ( risos ). De onde esses sujeitos tiram essas coisas ? - Deve ter sido por causa da mãe !- Mais risos... estranhos barulhos das faces negras. “O que são essas coisas ?” “O que é o que, o que...?” - Qual é mesmo o nome dele ? - Jaime qualquer coisa... A polícia ficou com os documentos. Devem encontrar algum parente. - Ótimo... talvez a história de família indique 810
qual é o problema desse infeliz. – Os rostos sem face continuam a fazer barulhos. Nada mais faz sentido. O que é pensado: um pensamento, uma memória, um tempo, não há nada... - Vamos dopá-lo !... - Algo é espetado no seu braço direito; lembra um ataque de abelhas com seus ferrões de oito centímetros. Os rostos sem faces, as faces negras são abelhas então... Estão atacando o Jaime, mas nada ele pode fazer; talvez seja uma flor: seus olhos não dizem o que é; sua mente não reconhece o que sente... Logo está envolto em escuridão, e da picada até a última lembrança... Tudo se apaga; as abelhas se vão, o barulho se vai, só o zumbido permanece, mas muito baixo... Lá longe, embaixo da escuridão, junto com a morte. Escuridão. Muita escuridão. O tempo não existe. Enfim... Há, numa das paredes do lugar, uma porta; e na porta existe uma janela de vidro. A luz que ilumina do teto está fraca agora. O lugar tem um tom acizentado. Há um cheiro forte de desinfetante no ambiente, encobrindo no fundo o inconfundível fedor de urina... dos muitos que já estiveram ali. A cama dura embaixo do corpo do Jaime está úmida. Ele já fez a sua contribuição para aquele odor... na janela de vidro, do outro lado, surgem duas pequenas cabeças, 811
translúcidas, são formações irracionais de lembranças recentes... “O que são aqueles dois ?” “O que são dois?...” “O que é o que...?” Lá estão seu irmão e sua irmã. Não há julgamentos nem explicações, apenas explicações de julgamentos onde o Jaime não está mais. Alguém soluça naquele estranho exterior... Fora, dentro; “o que é fora ?” “o que é dentro ?”As dúvidas estão em ambos os lados, mas o outro lado está fora da capacidade de inteligibidade do Jaime: não existe, pois não o pensa sobre... Não importa o que vai acontecer... Se o irmão terá que pedir ajuda aos parentes; se não mais o reconhecerá; se sua irmã terá que trabalhar... “Quem são afinal aquelas estranhas criaturas ?” “que lugar é este ?” “Tenho que limpar meus sapatos!” “Onde estão meus pés?!” O Jaime começa a se debater novamente na cama, logo ao acordar dos sedativos. “O armário do banheiro está quebrado!” “Não!” “Levei um tiro e morri!” AAAhhh !- As duas cabeças desaparecem da janela e outras aparecem. A luz invade novamente ofuscante a vista do Jaime. A porta é aberta e todos aqueles rostos escuros sem faces invadem a sua visão. Seu mundo dominado por monstros escuros que se escondem no brilho da luz. Parados na porta irmão e irmã observam aquilo que não podem entender do Jaime. O homem que era normal e trabalhava para 812
sustentá-los, agora se revirava freneticamente, aos brados de incompreensão, deitado em cima de uma suja e fedida da própria urina cama de sanatório... não podiam entender... “Quem são aqueles?...” “Manchas negras as quais eu já vi!” “O que são essas coisas afinal?” “O que estão fazendo comigo?”. O tamanho caos do Jaime que não reconhece mais nada ao seu redor... nesse momento... um dia andava pela rua. A luz que brilhava era forte e bonita; algo normal não havia naquele brilho quando ele viu que as pessoas andavam e passavam por ele, eram normais, mas nenhuma delas era conhecida do Jaime; não eram as pessoas as quais ele tinha de cuidar com a própria vida... um casamento nunca poderia ter sido o certo... As figuras eram os seus irmã e irmão, que ele tinha de cuidar; tinha que se mover dali sem se importar com o brilho estranho da luz, em mais um dia, onde as pessoas da rua passavam por ele e não o conheciam... “Preciso trabalhar! Preciso fazer coisas!...” “Que coisas ?!!”. O Jaime sabia que tinha algo a fazer, mas não conseguia mais reconhecer o quê... Porém tinha de cuidar dos irmã e irmão. Tinha de mandar consertar o armário do banheiro. Tinha de voltar para o trabalho. E tinha de comprar mais café, pois o outro derramou quando ele quebrou o armário do banheiro naquela manhã... E então lá está a sujeira no seu sapato 813
e a realidade não existe mais... “Onde estão os meus sapatos?”. O tiro dispara em sua direção e a explosão cega-lhe os olhos, de volta ao desespero, forçado a permanecer como está, na cama de sanatório... A luz que brilha é a explosão de seu cérebro ao morrer: o tiro do homem no bar o havia atingido nos olhos, e tudo era o brilho, o clarão... o dia que veio e se foi... o vento que soprava do outro lado do planeta e fez os galhos escuros á sua frente sacudirem agitados, transluzindo a luz do sol; não deixando o Jaime respirar; fazendo-o grunhir e bradar sem se conhecer... a grama verde; a escuridão; a porta que se fecha; a picada dolorida na pele (“Foi um grão de café!”); o nada que se aproxima; a ausência de lembrança; o caos completo do dia a dia... “Vou levantar amanhã bem cedo e transar com minha esposa. Depois vou fazer tudo o que quiser: vou ficar nu em casa; vou ver TV; vou coçar o saco; vou colocar meus irmão e irmã no saco de lixo de tardinha, e depois colocar o saco azul no lixo; vou transar de novo com minha esposa; vou casar na igreja e no civil; vou pagar a conta do bar; vou deixar de beber; vou fumar um cigarro sem filtro; vou colocar gasolina no carro; vou pegar um ônibus e ir ao quarto; vou vender leite na feira; vou chupar a teta da vaca; vou me masturbar no banheiro; vou criar galinhas; vou acordar bem cedo e ir trabalhar, mas 814
antes vou transar com a mulher do vizinho e com a filha dele também...” Da agitação á imobilidade, o Jaime finalmente, novamente, apagou. Algumas semanas se passarão... O Jaime está imóvel. Está imobilizado. Seus membros estão atados. Suas costas estão eregidas. E seus pés se agarram numa coleira no pescoço. Se seus pés se movem a cabeça é forçada. E a cabeça só pode ser movida de leve. E tentar mexer os membros é inútil... somente seus olhos escuros e brilhantes se movem alucinados; direcionados para cima; está deitado; e o que os dois globos veem são sombras na escuridão azulada... Algo que se mova; algo além do seu corpo paralisado... Essas sombras prenunciam vozes: não entende como elas agem... Uma delas de repente se move cortando a escuridão e atravessando um corredor de luz: é grande; tem a forma de algo conhecido... Parece-se com o que ele chama ele próprio de estranho casco de aprisionamento. Mexe-se para dentro: várias partes da coisa se movem livremente... Então não é como ele, pois o Jaime não pode se mover.. A sombra traz algo amarelo, flutuando por uma haste que sai de seu casco semelhante ao dele; põe o objeto amarelo logo abaixo de onde Jaime está na posição horizontal, e em seguida está carregando 815
outro semelhante: cilíndrico, com um arco indo de um lado ao outro... ás vezes, nem sempre... quando a haste móvel daquele casco semelhante ao Jaime, mas é uma sombra, se move. A sombra emite um som que apavora o Jaime... - Doidos mijam... seu irmão esteve aqui hoje de novo... Disse que vai conseguir a pensão !- A coisa se aproxima dos olhos do Jaime e as proporções do monstro que o atacava o fez abrir os olhos na medida das órbitas... Numa dolorosa e absoluta sensação de horror e impotência... aquela coisa que se aproxima inexoravelmente sobre ele; avançando para o caos total; traçando suas gigantescas medidas para o ataque contra os pobres olhos desesperados do Jaime... Sua respiração é ofegante; o suor lhe brota nas têmporas: a criatura se aproxima: ela tem coisas grandes e brilhantes na parte superior: reflete na escuridão outra criatura que treme por dentro... num frenesi pelo antecipado prazer em devorar mais uma de suas vítimas... Sente algo rasgar-se dentro de seu casco; e então uma umidade jorra de seu interior e se esparrama por todo o seu acomodamento: um elemento mole que continua a jorrar... antes que a criatura se afasta... E o monstro se afasta. E a criaturinha trêmula se desfaz dentro das coisas brilhantes... Quando outro som é feito pela sombra: 816
- Você cagou de novo, seu filho da... - o corredor mágico se ilumina de novo na escuridão das sombras azuladas... Uma coisa, outro casco, um pouco menor que o que havia atacado sem perdão, entra nas sombras e emite mais um som apavorante: - Saia, servente !... Você já fez o seu trabalho!A coisa maior desaparece no corredor mágico, e em seguida a outra menor. O Jaime respira e não sabe porque... Tempo... Existe uma nuvem que surge de vez em quando. Toda sala é um ambiente indócil para o Jaime quando a nuvem aparece: o escuro azulado se estende a partir de qualquer milímetro próximo a seus olhos até o que se comporta como o teto liso de algum lugar; igual ás quatro paredes... Porém, ás vezes, de novo, mais uma vez, a nuvem surge e ela tem vida, pois se move em círculos; assume a cor do ambiente e o torna também uma ameaça... Quando o Jaime também tenta fechar os olhos ela aparece e o tenta a querer correr, mas é imóvel... Seus olhos a perseguem alucinados pela sala, e ela está sempre a um instante á frente... Por isso o Jaime nunca consegue olhar diretamente, e nunca entende o que é, e o que quer... a nuvem está lá. Tudo fica branco de repente. Foi o ataque fulminante da nuvem sobre os olhos do Jaime. Não 817
conseguia enxergar mais nada além da mancha branca que o dilacerava com dor, enquanto a nuvem se movia em frenesi de prazer por tê-lo pego de surpresa... A agonia continuava e se refazia em ondas brancas de pavor... e dor. Houve um som. - Diminua a luz, por favor. O paciente teve um choque com a luz forte. - A nuvem se dissipava vagarosamente. Ao Jaime é permitido novamente abrir os olhos e enxergar. Mas ela novamente irá retornar... O ambiente está mudado, está diferente, não é o mesmo lugar, é outro lugar. O corredor de luz se refez enquanto a luz o atacava. Uma criatura do portal mágico veio para ajudá-lo, e fez a nuvem se afastar... Ou então é um inimigo pior que a nuvem, que veio para furar-lhe novamente pelo meio do seu casco; na haste que está presa, sem movimento. O Jaime começa novamente a se agitar; sua garganta quer fazer alguma coisa, mas ele não sabe o que; seus olhos se debatem arregalados procurando por algo em que se segurar, algum lugar para onde possa fugir... Não há... A criatura se aproxima. A agitação aumenta. Cada movimento mais forte causa mais dor: cada parte está presa a outra, e só a imobilidade seria a ausência de dor... Mas o Jaime quer fugir, pois não 818
tem sentido continuar ali... Mas não tem para onde ir... A criatura emite outro som estranho: - A enfermeira tem que dar um banho, parceiro... Por isso eu tenho de pôr você quieto. - A criatura invade o casco do Jaime. Sua haste móvel é segura com muita pressão. O Jaime está sendo novamente e impiedosamente atacado: outra espetada... Dor. Coisas quentes e molhadas saem de seus olhos. Sensações estranhas lhe cortam as vísceras. Não sabe de nada disso que lhe ocorre com tanta frequência... - Oohh ... Você fez de novo ! - A criatura sai e emite outro som: - Ele é todo seu... - Uma outra criatura entra. Algo irá acontecer... Mas antes outra já está acontecendo... O Jaime estará novamente na escuridão. Sua agitação diminui; seus olhos já não estão mais frenéticos... A criatura toca-lhe o corpo: são lugares estranhos: o corpo; é o casco; lugares estranhos com estranhas sensações... O Jaime está apagando, enquanto a criatura o está tocando... “É liso. Escorrega quando passo por ela e produzo um estranho som. Ela... Ela... Ela emite algo bom de ouvir... Ela está me tocando por lá também... Está aumentando de tamanho... Apertado; macio; liso... Quente... Arde por dentro; escorrega... Quero mais. Preciso continuar... Ela me deixou... tive que 819
fazer outras coisas; o que queria fazer era fazer isso com ela... Ela me toca novamente... Gosto... Quero fazer isso com ela... Ela se foi... Eu gosto... Não sei... Não sou... NÃO POSSO!...” Um som: - Você realmente pôs o paciente para cima, enfermeira ! - O Jaime dorme enquanto tem uma ereção. Novamente se foi. Há algo escuro embaixo do Jaime: ele não sabe o que é. Há uma superfície lisa escuro-azulada sobre ele; tem formato regular, e possui algo com um brilho gelo muito fraco no centro: ás vezes esse objeto circular brilha muito mais e chega a ofuscar o Jaime... Não sabe o que é isso também. Ao seu redor existem quatro superfícies muito semelhantes a esta última, porém sem o objeto que brilha no centro; para vê-las o Jaime precisa girar os olhos com muito empenho... na sua imobilidade restritiva dos movimentos. Numa dessas superfícies que o rodeiam, fechando-o totalmente, existe uma marca de formato regular, que ás vezes se transforma no corredor mágico de luz fluorescente... Mas agora todo esse ambiente é silêncio e opressão... algumas vezes o cenário se comprime mais ainda, e o Jaime recorda com dificuldade de algo sobre estar... fechado: talvez seja o casco ao seu redor: o corpo, que não consegue reconhecer... Quando absolutamente tudo que existe, inclusive a si mesmo, se torna uma 820
interrogação do desconhecido; há algo como angústia e a depressão para fazer companhia: o Jaime vê e revê o mundo cláustro a sua volta, mas não percebe nada... nem mesmo o medo do azul que corta nas entranhas, com espanto, pelos ataques fortuitos dessas coisas tão monstruosas: teto, lâmpada, parede, porta, cama e chão; gente, balde, efeito de retina, água e ereção; totalmente perdido, medo, desespero, clausúra, espanto e prisão... Palavras, códigos, símbolos, coisas que nada significam para o Jaime... Imóvel, estático, no seu próprio novo mundo, absorto na mais pura alienação; em si no seu... desconhecido... Algo que voltará a viver e lembrar. Então só pode ter angústia aquele que RECONHECE o vazio... A fuga da angústia... ESQUIZOFRENIA O turvo contato com o objeto que se move a sua frente. A visão se faz em espasmos. Algo pulsa no centro do mundo; o seu ser pode ouvir aquela constante sensação de insegurança: o Jaime só consegue reconhecer ameaças á sua volta... Há a criatura branca que se movimenta lentamente; seus olhos não conseguem focar nada com exatidão; e o movimento é sempre acompanhado por sons. 821
- será que você, Jaime, não consegue me ouvir?... Tentar se comunicar ajuda. Fale o que está na sua mente agora... Seu irmão... disse... da mãe... da irmã... de... sua... noiva...- palavras que começam a se perder. Mas a médica continua a pronunciar. O Jaime está sentado. O lugar onde está ainda parece o mesmo... azul; mas seu corpo é mudado de lugar de tempos em tempos; hora na cama preta, hora nessa cadeira: nessa cadeira ainda continua preso, mas a sensação do claustro se perdeu... Foi diluída a sensação pela lentidão e desfocamento da visão entorpecida; algo que de repente se solta e deixa fluir: coisas feitas para ele engolir, coisas feitas para nele serem espetadas a pele... os músculos relaxam, os pensamentos se tornam lentos, as imagens ficam turvas, os som das batidas internas se tornam mais altos, marcando o compasso da lentidão... Tum... Tum... Tum... Líquidos escorrem de sua boca, os olhos se tornam dispersivos... A criatura branca (desfocada) se levanta de onde está. O Jaime tenta acompanhar o movimento, mas é muito lento; a criatura é muito veloz; ele move a cabeça, mas se perde nos sons que ela pronuncia... Algo mais interessante que aqueles sons e movimentos começam a surgir; seus olhos se fixam lá... Há um ponto branco na imensidão da superfície 822
azul; é um ponto branco muito pequeno, e luminoso... O anel brilhante que envolve o ponto parece começar a crescer, a pulsar como o contorno brilhante de uma estrela de quinta grandeza... muito distante. O brilho começa a aumentar e tomar toda a atenção do Jaime, envolve toda a sua retina; sentir iluminar-se lentamente olhos, face e todo o rosto... Sua atenção é completa; um som oco e penetrante invade sua audição; algo que recorda a distância, mas que parece se aproximar... Sente a sala começar a desaparecer; sente sua vista penetrar no novo lugar... De repente está lá... Está de pé numa rua completamente vazia. É um dia claro que ilumina a tudo. Há o asfalto que reluz até o infinito que sua visão consegue alcançar; há algumas ondulações. Existem múltiplas construções ao longo da rua: casas, prédios, lojas, muros, tudo que uma rua deve ter... elas também brilham refletindo aquela luz. E há também antenas. Antenas altas de metal brancas e vermelhas. Poderosas antenas retransmissoras de TVs e rádios que cortam o céu brilhante: estão em toda parte. Estão ao seu redor, ao longo da estrada... O Jaime olha para elas; não consegue contá-las; não sabe como contar... São muitas: incontáveis; estão longe e estão perto... estão em todo lugar. Não existe mais ninguém na rua... Somente o 823
persistente som persistente: é como um eco elétrico... O Jaime se sente só, apesar de livre. Seus pensamentos não possuem sons; não têm a forma necessária para o próprio entendimento... Sabe que aquele é o som que existe; a luz começa a ser ameaça, e o som oco está com ela... O som parece que vem das antenas. O Jaime observa a gigantesca antena que está mais perto dele; quase não a vira antes; ela está logo aqui... O som aumenta e se torna um horrendo barulho de horror solitário: persegue a sua audição com insistência. O som está vindo daquela antena. O Jaime olha firmemente para esta antena; está muito perto dela e do som... A gigantesca antena branca e vermelha bem a sua frente. A estrutura começa a se dobrar de repente; primeiro ela se contorce em si mesma alguns graus na direção do Jaime, como que “se virando” para ele; depois a monstruosa grade de metal branca e vermelha começa a descender em sua direção, envergando-se na direção do indefeso Jaime, que observa aquela coisa gigantesca, aquela antena, se dobrar para ele, e atacá-lo... O Jaime sente o desespero dentro de si; o ataque é acompanhado por aquele horrendo som elétrico; a ponta extrema da antena está quase sobre ele, no seu lento e inexorável envergar monstruosístico... O Jaime começa a correr pela rua vazia. 824
Seus pés descalços sentem a aspereza do asfalto frio, como se estivesse recentemente úmido. Corre desesperado, mas se move pouco... lentamente; o mundo corre lentamente nessa rua. Tem conhecimento que o ataque continua. As outras antenas, longe e perto, começam a “despertar” na direção do Jaime, que corre pela rua. Elas movem seus dorsos brancos e vermelhos; o barulho elétrico se torna forte e presente em cada lugar; as antenas começam a se contorcer. A visão é perturbadora. Elas se dobram e descendem as suas pontas extremas na direção do Jaime; mais uma logo a sua frente quase completa o ataque; ele sente um tipo de expressão de ódio nas pontas extremas das magníficas construções brancas e vermelhas. A que decaiu logo atrás de si zumbe o barulho elétrico com intensidade; outras se dobram ao longo de toda a rua... De longe e de perto elas se contorcem para tentar atingi-lo... O Jaime corre para tentar fugir. Ele corre, mas não consegue ser muito veloz; a umidade áspera do asfalto parece atrapalhar seus pés descalços. As ondulações da pista o deixam exausto. São muitas antenas a atacá-lo... Uma começa então sua descendente para atacar o Jaime; ela vem lenta e curva: é muito flexível... e vai conseguir abordar a Jaime. Está indefeso; corre descalço pela rua vazia. Não reconhece nada além do ataque... Ela está vindo; 825
vai tocar nele... E toca. - Aahhh! - O grito cortante do Jaime e sua expressão de desespero e pavor fazem a médica (a criatura branca) se assustar com um pulo para trás... Ela colocava lentamente a mão, com o braço estirado, sobre o ombro do Jaime. Sua reação é desconcertante; a agitação desesperada toma cada um de seus músculos; debate-se consigo mesmo e contra as amarras da cadeira; todas as drogas pareciam ter perdido o efeito; tinha sido atacado com violência impiedosa por uma antena branca e vermelha... Seus calcanhares e pulsos já começam a sangrar. Sua garganta emite sons de profundo desespero; seus olhos reviram de pavor e devaneio; sua nuca bate contra as costas da cadeira; sua região pélvica se dobra para a frente e para trás num ritmo extremamente veloz; as veias de seus braços e de seu pescoço ressaltam a pulsação forte e acelerada; uma convulsão total o toma diante da dor desesperada da irrealidade. Mais tarde as criaturas de branco vêm e tudo termina... Quando se dorme as imagens que surgem á mente se apresentam com as características do oposto que é considerada a realidade; nos sonhos do Jaime as figuras são também um seu negativo... porém a visita possui um disfarce diferente, uma fantasia, um 826
delírio; a forma da sua divergência que se faz quando ele dorme... Permanece sendo uma criança com pensamentos adultos; o corte de cabelo rente é nuca faz sentir uma irritante coceira: o barbeiro não soube fazer o que pedira, e o que vê difuso no espelho sujo da barbearia, com aquele homem usando uma roupa azul por trás, é um adolescente apaixonado que tentava fazer um corte de cabelo perfeito, para agradar aquela que viria a ser sua noiva... Quando chega em casa e abre a porta... a porta se abre e é sua mãe quem atende; fala algo sobre ser a marca errada de um dos produtos comprados no supermercado, que fica no caminho de volta da escola passando pela barbearia... É verão, não está no período de aulas, é ferias, mas fora cortar o cabelo e a mãe pedira para Jaime comprar coisas na volta; porém um dos produtos é a marca errada, é da mais barata, porém é da de menos qualidade... A mãe do Jaime diz que o corte de cabelo ficou bom: que ele está bonito com o cabelo rente á nuca, ao invés do aglomerado de antes: “Fica adulto, meu filho.” Seu irmão e sua irmã não estão por ali agora... Anda até a janela e olha para o mar que bate e rebate insistente com as ondas brancas de espuma e o cheiro de sal, que é bom... O Jaime acorda. Está novamente deitado. - Mar... Gosto do mar... - Palavras surgem dos 827
lábios do Jaime. As referências que num instante não pareciam mais existir, como se nunca tivessem feito o menor sentido, de repente ressurgem e o fazem verbalizar a memória de um prazer: o mar... Porém tudo logo se vai na mesma medida em que novas palavras surgem á presença do Jaime: sentira o medo e insegurança do claustro; e logo o foi o pavor do delírio nos caminhos da luz na cidade perdida das antenas de branco e vermelho; agora são seus eternos inimigos, as criaturas de branco, que estão de volta para atacá-lo com suas espadas venenosas... Reconhece o líder das criaturas de branco: é alta e possui uma coisa negra e brilhante ao redor do rosto sem face: contra a luz é sempre uma sombra que dá ordens... Essa era a antena que o atacou no outro momento; era justamente essa líder das criaturas de branco, transformada em antena, dentro do delírio esquizofrênico do Jaime... O ataque começa. As espetadas são seguidas de estranhos sons aterrorizantes; sons que começam a se tornar familiares... e são insultos ao frágil e indefeso Jaime, amarrado á cama... Outra palavra lhe surge: - Não... - Os insultos das criaturas de branco se tornam mais intensos. Até a líder se desfaz de sua postura em comandar o ataque, ainda parada na porta luminosa do túnel mágico. Mas o Jaime não pode fazer mais nada além disso... Mais um ataque termina, 828
e foi bem sucedido; a líder se aproxima dos olhos inexpressivos do Jaime: o veneno já começa a fazer efeito. Ela a arma de raios, que incide diretamente na íris do Jaime; ele já não mais enxerga nada... nem mesmo a retirada das tropas das criaturas de branco... O que Jaime começa a ver é outra coisa, agora... A fonte de iluminação que se apaga traz o azedo odor do azul anil cinzento da sala novamente de volta para as narinas do Jaime. Sua própria imagem se faz presente. Lentamente o mundo aterrorizante a sua frente se torna ele próprio; seu corpo... As formas e sensações começam a aparecer. Líquido salivar escorre pela sua face e se mistura com o suor que já se seca. A mente dos novos pensamentos o confunde. O Jaime pode ver seu braço se levantar lentamente; as cinco formas alongadas na extremidade começam a se mover; trilhas luminosas acompanham os rastros do movimento: é quase maravilhado o espanto de se ver novamente... Porém não é só isso... Nas veias do seu pulso direito corpúsculos vermelho escuro começam a se movimentar; a sensação de formigamento se instala e logo depois a insistente dor no local, que indica que algo vivo está por vir... A dor é crescente. O espanto converge no horror. Mais corpúsculos começam a saltitar... até o momento que ele se revela: despejado como jatos alongados; são compridas 829
mangueiras rubras que se prendem ao braço do Jaime e dançam descontroladamente a sua frente; se mexem e se batem; fazem estranhos sons; vibram no ar sob o atento horror do Jaime... Mas os pensamentos sobre o ataque se suas próprias veias são mais complexos que o pavor anterior das antenas; era algo do exterior que o aturdia... antes, porém agora é seu interior que drena as lembranças a procura de um sentido: o que não existe, além de um simples acaso de seu passado... A realidade do Jaime parece ter sido um horror muito maior que este... O Jaime grita: o profundo horror da sua própria incompreensão; seu corpo é um mistério desconhecido; sua vida é um horror normal... Os gritos maiores são de suas recordações que afloram... O Jaime um dia quis se matar; cortou os pulsos; e o amor se foi como uma onda no mar. SOLIDÃO Tanto tempo se passou desde que o Jaime vira aquele seu interior... As recordações se construíram e foram perfeitas como a destruição total da imaginação: os delírios tiveram respostas que ele começaria a entender mais tarde... A primeira comunicação tomou lugar ainda no quarto azul; consigo mesmo, o Jaime enxergou um pouco além do delírio e pode conceber 830
novamente um conceito, uma palavra... a uma coisa... Ainda amarrado reconheceu o que era o mar, e daí por diante só teve de fazer o caminho de volta. A estrada angustiante da realidade. Viu-se contornando mil inimigos para alcançar o espumante azul do mar que vinha atrás; mas era sempre barrado pelas falanges alongadas do seu próprio sangue que um dia fez jorrar... Porém sabia ter perdido a noiva por conta da escolha dela própria; por instantes prolongados e dolorosos teve de reconhecer aos poucos que nem sua mãe, nem seus irmã e irmão: não fazia sentido diante de sua competência em sobreviver: perder o amor e perdeu o amor... A responsabilidade... Nesse ponto os olhos do Jaime se abriram e ele pôde ver (reconhecer) que a chefe das criaturas de branco era a sua médica psiquiátra: não a ameaça... O uso de drogas diminuiu; e por isso, mais calmo, agora está o Jaime na sala gradeada... junto com os outros. É uma sala grande, com muitas camas. Há uma extensão da sala cheia de coisas para se ocupar o tempo... E, periodicamente, todos têm de tomar os medicamentos: via oral. O Jaime já sabe fazer muitas coisas difíceis: vai ao banheiro, calça os chinelos, se alimenta e até usa o guardanapo; mesmo quando tem de tomar 831
os medicamentos, e partes do corpo se tornam dormentes, seus gestos tão lentos quanto a paisagem do teto forrado de papel gelo, consegue realizar mais tarefas... E um dia conseguiu se masturbar: pensava em sua médica, e gozou desesperado sem saber se o que fazia era bom ou não, permitido ou proibido... E lembrou de outras coisas: muitas durante as sessões. Num dia lembrou que nunca mais vira seus irmã e irmão; e que não tinha mais ninguém... A voz do Jaime se calou por um bom tempo, então...Reconhecia nessas coisas reconhecidas da realidade uma coisa que gostaria de nunca ter conhecido: longas horas apático ao pé da janela gradeada para ver pessoas e escutar sons do mundo lá de fora... Sua visão alcançava tão longe, que quase se assemelhava aos delírios da sala azul... mas não havia aquele horror fora de proporção das fantasias de um paranóico esquizofrênico alienado do mundo. As palavras já faziam sentido: tinham a mais profunda e desesperada angústia da solidão. O silêncio dentro dos barulhos; as vozes dentro dos gritos; os outros que pouco lhe acrescentavam; a doutora que só estava lá para cumprir o seu papel; apenas a mais imensa solidão... que afunda a mente e coração conscientes na estranha escuridão cinzenta sem cor da tristeza... O Jaime chorou olhando pela janela gradeada da 832
sala cinzenta onde outros divergentes passeavam sem rumo, pois seus irmã e irmão o haviam abandonado... e ele não tinha mais ninguém... estava só... e não estava delirando. VAZIO Portões de metal rangem ao se abrirem a sua frente. Visão confusa e abstraída observa a sequência de coisas e movimentos que surgem a cada momento... “Estou saindo”, pensa um Jaime. A lenta percepção das coisas dão um ritmo lento, também, aos seus movimentos. A sensação que tem nos pés da compressão do chão contra o solado calçado por um tênis barato, branco e limpo; é como mensagens de um novo caminho que desponta em seu corpo e mente a cada novo passo dado... O Jaime recorda com tristeza do seu colapso, do seu cláustruo, de sua demência, de seu desespero, de seu abandono e da sua solidão: os sentimentos residem ainda permanentes dentro de si... mas porém agora com os seus devidos nomes identificando a profusão e profundidade dos mesmos... e são assustadores... O Jaime vê a rua do lado de fora atravessando o portão, suas vestes simples e tímido caminhar naquela direção desconhecida carrega, o teor das 833
novas sensações: quando cada momento neste lugar se transformou numa descoberta, e a admissão da realidade se tornou inevitável diante do caos que é estar vivo... não restou mais perguntas no seu tratamento. As contradições de cada ataque e defesa diante do desconhecido se tornaram compreensíveis á sua pessoa; a capacidade intelectual do Jaime voltara a ser subjulgada pela consciência. Recorda de ter culpa e responsabilidade; de ter direito e dever; de ser e estar; de ter e poder; de reconhecer e nomear... Foi identificado dentro do homem o que era o ser homem, e as palavras fluíram; mas o que deveria ser agora não restava dúvida de certeza, pois não existe nenhuma... apenas a própria anterior desta... O perfume da ventania o agrada, mas o barulho dos automóveis o incomoda. Pessoas lhe serão cordiais, e pessoas o maltratarão... O Jaime anda na direção do portão; carrega uma pequena sacola com alguns pertences; sua expressão está envelhecida e amedrontada... Sua casa ainda existirá?... Sua família ainda o aceitará?... Terá que arranjar um novo emprego. Perdeu os sapatos com os quais trabalhava... Não comprou o café!... O Jaime atravessa o portão. O mundo do lado de fora se mexe frenético como os seus delírios; somente, agora, seus pensamentos são calmos... O rangido do 834
portão recomeça. Está lentamente se fechando. Tudo em volta é novo. Tudo em volta possui nomes e regras: o Jaime reconhece... Porém... O portão se fecha atrás do Jaime... - “Quem sou eu esse aqui?”- Queria perguntar, mas não sabe para quem... Seus olhos voltam para o sanatório... A lenta onda do final se faz forte para que seu pensamento e voz se tornem um algo só que rege a vontade... Olha fixamente para a casa grande atrás do portão... Diz em voz baixa, paralisado aqui, ali, naquele lugar... - Quero voltar! FIM
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TORTURA A. B. I. E AS VÍSCERAS DA SAMAMBAIA
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Dedico esta obra à minha infinita confusão e contradição: sempre entre o amor e a loucura, buscando a paz dentro das minhas próprias vontades. E também à pessoa que mais bem me faz com sua companhia; parte presente nesta história, como uma eterna presença de amor e mistério... No escuro de nossas palavras verdadeiras. O AUTOR
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TORTURA A. B. I. 1 O limo verde e escorregadio faz a pele escorregar na parede. O corpo nu não consegue se afirmar de pé por razão da fétida umidade. Mas ele não cai... Franz não deleita a inconsciência como gostaria: mil vezes a escuridão desconhecida a o que está por atravessar seus medos e seus órgãos. É semelhante aos mais bizarros pesadelos de todos os homens, somente diferente, que o grito abafado pela mordaça de couro indo até o céu da boca não será a fonte do seu despertar aliviado... Nu e indefeso, sendo a nudez uma própria fonte de fraqueza nos seus 57 anos de flacidez e desleixo pelo próprio corpo; mas esse não é o seu prioritário pensamento nesse exato instante: as agulhas sim o são. O limo acumulado na parede desliza sua pele e o cansaço nas pernas o faz ceder; as correntes nos pulsos, já judiados por três dias de pé, pendurado, com os braços abertos e convivendo com a própria excreta... Imagina que miserável indolência foi essa em sua vida para estar nesse lugar, machucado, amargurado, com medo, sujo: o mal cheiro exalado por ele próprio deixa uma constante náusea em suas entranhas e faz seu corpo pedir extinção: não mais 839
seria uma auto perda da vontade de viver, mas a proteção de toda espécie humana (racional) para que sua existência seja movida pelo respeito; mas não mais o há: talvez nunca o houve em sua vida: pálido , sujo, esguio e escorregadio: o limo o enoja, penetra-o no seu íntimo, denigre o seu corpo do mesmo modo que toda a monstruoso situação destrói todo seu orgulho de ser vivo: se imagina da maneira que está...: “Eu quero morrer!” As cinco agulhas se aproximam guiadas pelas mãos dos cinco anfitriões desse país de mistérios. Não usam nada além de diversos colares no pescoço. Tatuagens em suas orelhas formam o enigma da procura pela resposta que não existe: eles seguem a auto fidelidade. Os três homens salientam suas excitações como o bônus das atitudes que vêm provendo no homem próximo: a última no seu grito de desespero tornara viável as suas bizarras intenções no grupo todo: são as duas mulheres que também aguardam o subjugar da vida e do respeito daquele pobre e quase hirto visitante para enfim cederem seus desejos e dos companheiros: ali mesmo, no limo, no lixo, no verde e negro da tortura... A primeira agulha é penetrada longitudinalmente no pênis de Franz, logo acima dos testículos. O grito e o movimento desesperado dele na sua procura por respostas àquilo 840
reflete nos primeiros movimentos sinuosos dos cinco corpos sedentos pelo veneno mórbido da dor e do sexo: a abominação visível em vida da bestialidade humana sobre sua própria carne: mordidas, socos, espetadas uns nos outros: são as demonstrações do que eles reconhecem como prazer... Por motivo da primeira agulha, penetrada no nervo base de comando da ereção do homem, o pênis de Franz se torna ereto involuntariamente. É a vez da primeira “dama” levar a loucura espasmódica ao corpo da vítima... Com a mão esquerda no próprio sexo ela começa o seu próprio desbravamento já conhecendo que tipo de reação vai causar naquele corpo: a agulha possui 21cm de comprimento! Ela penetra a agulha no canal uretral do obliterado homem; deixando a mesma lá completamente inserida, causando a primeira grande hemorragia quando do cruzamento das duas agulhas na parte interna da base do pênis... Um grito arfante e pausado surge de Franz, mas o adiante já estava sob o choque: com um lúdrico e bizarro relinchar Franz perde o fôlego e entra em choque, finalmente alcançando a inconsciência: - Voir candë! Ele desmaiou...- Os dois que já haviam completado as penetrações já começam sua bestialidade-filiaca misturados ao limo e à podridão daquele chão de calabouço. Mas os outros três se 841
dividem em excitação e frustração: observam os outros dois em seus bizarros prazeres, tocam-se com desejo, mas se veem sem ação diante do antecipado desfalecimento da vítima: sua fonte... Os três começam a esmurrar o corpo frio de Franz, gritando seus ódios e insatisfações, exigindo que ele acorde. A mulher que restava tenta uma técnica diferente e começa a praticar sexo oral no homem, mas estava sendo inútil; nem socos, nem pontapés, estava incapacitado de darlhes a luxúria mórbida da dor, como tanto queriam... A mulher morde o conteúdo de sua boca em seu acesso de raiva e frustração... - Ete väis!- Seus dentes encontram a rigidez metálica da segunda agulha: “Seria uma dor inigualável...” Mas não havia mais paciência: ela arranca fora o pedaço e o cospe com desprezo pela sua inutilidade, levanta-se e com sua agulha penetra o olho direito de Franz: o ranger de seus dentes ensanguentados demonstra sua cólera... -VAÄZHII!!!- Ela se retira do aposento com os compassos do ódio no seu corpo insatisfeito. Os dois homens esvaem suas raivas no corpo já completamente sem vida de Franz. Batem, chutam, esmurram, até os ligamentos de seus pulsos não suportarem mais e suas mãos se rasgarem do antebraço, fazendo o corpo dele tombar no limo junto ao casal próximo 842
com suas agonizantes e bestiais carícias genitais... Os dois olham com frustração o prazer do casal: estava acabado, sem mais oportunidades até outros virem... -...vaäzhii...- Eles saem sob os sons ininteligíveis daqueles dois, cujos “As” estavam contidos por essa noite: os Absurdos de seus anseios por dor e prazer: as mordidas e danações na demonstração de seus desejos e na complexidade de suas mórbidas realizações: a tortura. *** Quando se perfura um olho humano com uma agulha de 21cm de comprimento por 1mm de diâmetro, após atravessar o globo ocular causando uma breve, mas forte hemorragia chamada lágrima de sangue; atinge-se a base do nervo ótico causando dano permanente à visão em primeira instância... Com a continuidade da perfuração a agulha encontra o lóbulo superior do cérebro, alcançando-o de baixo para cima e penetrando finalmente na região cortexial, e danificando permanentemente todas as funções somáticas do corpo... Com o não estancamento da hemorragia interna logo se forma um derrame no cérebro e no cerebelo, formando-se em pouco tempo um coagulo, que sem a urgente atuação de 843
uma endoscopia que aliviaria a pressão do sangue acumulado, causa a morte cerebral, comprometendo todas as funções do corpo... E assim se morre. *** O amarrotado do lençol se move e se refaz em vários desenhos diferentes. Mais rápido, lentamente e se desprendendo da cama sob os movimentos do enfeitiçado casal que devaneia os prazeres de uma ausência oportuna: aproveitam o tempo para mais se explorarem além das rápidas, frenéticas e deliciosas oportunidades que regularmente têm de treparem fora da inocente consciência de um marido distante, incapaz e corno. Os gritos, gemidos e outras sonoridades emanam do quarto do casal Alexander; mas só a sra. Alexander está presente do referido casal: Giorgiana sente os poderes da juventude penetrando-a sem o prematuro cansaço a que está acostumada. Na pele, sentindo a suavidade de alguém que está mais ali do que num estúdio mal iluminado com preocupações que não a preocupam: no vazio de 35 anos de vida ociosa, e mais de 13 anos de vida conjugal “insatisfatória”. Ela se sente bem com o jovem e forte comprimento de Cesar dentro dela; mordendo-se ao conseguir fazer 844
seu corpo se sentir realizado novamente naquela cama, como talvez nunca tenha estado... No intervalo... - Não é esse o horário que ele liga?- Giorgia olha o relógio do videocassete sobre a TV em frente à cama. Seu rosto ainda está meio entorpecido pelo frenesi recém consumado; e a carne que ela contém na mão direita não a faz pensar muito no marido, agora longe até de seus piores pesadelos de frustrações carnais e emocionais... E eles são (ou eram) muitos... - Verdade... É tão palerma que nem sabe a diferença de horário entre aqui e a Áustria... Só liga de madrugada...- O rapaz dá um sorriso satisfeito pelo efeito que consegue causar naquela mulher, fazendo-a desdenhar o próprio marido. - Talvez ele ligue a essa hora de propósito... Pra ver se não tem nenhum cacetudo aqui enrabando a mulher dele...- Giorgiana sorri do palavreado do rapaz; mas se sente triste: de um modo grosseiro o que ele disse era a mais pura verdade; mas ela se sentia também meio emputecida por estar desse jeito, com outro homem, em sua própria casa e tendo de ouvir tais palavras indecentes: “O que você fez comigo, Franz, seu...” Ela se repreende pelo que iria pensar: onde estava seu polido vocabulário de mulher bem educada?... Mas era verdade: “Meu Deus!” Ela volta 845
a acariciar o conteúdo de sua mão direita. É o melhor (e maior) esquecimento que ela podia ter; teria o máximo, sempre... enquanto pudesse... enquanto vivesse. *** Durante o frágil café da manhã de uma mulher que há muito tempo esquecera o que é um apetite saudável, o copo com uma leve vitamina natural está suspenso no ar tocado pelas mãos muito bem tratadas pelo tempo vazio e exposto: se Giorgia nunca fez nada na vida... se cuidar ela fez: 35 anos e a transparência do robe matinal mostra uma silhueta de 20; mas um rosto temeroso da própria incerteza demonstra que muito mais tempo de vida infeliz vem perseguindo aquele corpo escultural. - Por que não come comida de verdade, coisa gostosa?- Seus pensamentos são despertados pela faminta volúpia do vocabulário de seu companheiro da noite passada... Ele tem prazer de mostrar o próprio corpo, jovem e viril; de bermuda apertada passeia na frente de Giorgia ao mesmo tempo que degusta de todas as capacidades alimentares oferecidas pelo ignorado marido: Franz... Giorgiana pensa na estranha ausência que sente do marido. Normalmente nem 846
sabe que ele está em casa, mas alguns fatores físicos denunciam sua “incômoda” presença; agora com ele tão distante, a esposa não pode deixar de estranhar a falta do telefonema da Áustria na noite anterior. Franz viajara há uma semana e meia e nunca deixou de ligar uma noite sequer até há 3 noites... Não houve um desses dias sequer, também, que Giorgia não levasse o amante para a sua cama: de certo modo até a virilidade oca do rapaz começava a aborrecê-la: não é culpa, pelo contrário, cada orgasmo veio com prazer duplo por ter sido na cama de Franz, sem ele saber e até sujando os mesmo lençois que posteriormente o próprio voltaria a dormir... depois de lavados, mas ainda assim... A presença daquele “cavalo” em sua casa naqueles dias de excursão estava se tornando um estorvo de tanta rudeza sexual... Nos últimos 3 dias ela apressara todas as trepadas antes das 2 da manhã, na certeza da ligação de Franz; o que não ocorreu... E nessa mistura de insatisfação e frustração acumuladas por não poder contemplar sua vontade de torturar a ignorância do marido, a constância desse homem que se apateta tentando comer caviar no café da manhã logo a sua frente se tornara bem supérflua; como quase tudo na vida: a procura por pequenos e miseráveis prazeres, no caso: cornear o marido... O vento que vem leve do quintal atravessando a esquadria de vidro e 847
alumínio levemente aberta, levantando sedutoramente o robe e revelando mais ainda todas as tonalidades do sexo feminino e movendo angelicalmente os cabelos castanhos claros de Giorgia, traz junto com o frescor da manhã um pensamento profundamente irritante à mente da séria mulher: “Será que o puto arranjou uma amante?!...” Já se sente lesada o suficiente por toda uma vida de descaso... não consegue admitir ser, também, corneada. Sem mencionar o quão humilhante lhe parece ter uma mulher no mundo que consiga chamar a atenção do marido, quando ela, sendo como é, não o consegue... Ela olha para o amante que estava com uma imensa torrada semi-enterrada na boca e com o nariz sujo de geleia e caviar misturados: “Porco!” - Eu quero que você vá embora. Eu vou viajar!Se limpando sem muita educação o rapaz se adianta: - Pra onde?- Ele já se levanta e tenta se fazer de sedutor mais uma vez. Um sorriso idiota, um andar de ator pornô de terceira e salientando a coisa que ele mais adora na vida para frente, indo na direção de Giorgia. - Não é de sua conta... Se arrume e pegue seu caminho.- Já junto dela, depois de ter rodeado o balcão, ele começa a se roçar nela; inocente ou muito burro em não notar o quão sério ela estava falando. - Eu disse...- Olhando para ele, totalmente rude, 848
Giorgiana agarra o orgão-mor do rapaz apertando-o com a concentração de força que aprendera na yoga (outra ocupação), fazendo o rosto dele enrubescer e enrugar de dor, e seu corpo curvar-se em defesa: estava claro: -...Vá embora!... Entendeu!? - Uhu!- O doloroso contorcer do rosto dele demonstrava seu entendimento. Giorgia tirava um novo e estranho prazer ao provocar tal dor na genitália daquele homem: todo seu motivo de orgulho em estar vivo estava em sua mãos, livre para fazer tudo que quisesse... Mas no momento ela só queria se ver livre daquele entulho em sua casa: 80 quilos de massa muscular, sexo e beleza que não mais a interessavam por mórbidas razões da sua alma apreendida pelo vazio... Ela o libera e cambaleante ele se dirige ao quarto; com minutos sem fôlego, se vestindo e finalmente partindo: Giorgiana sentia como que um entregador de jornal estivesse saindo de sua casa; com desprezo e desinteresse... Sua mente estava preenchida pelo pensamento que lhe atormentava: Franz?... Termina de beber o seu desjejum com o olhar fixo nas próprias divagações: ciúmes, raiva, dúvida: monstruosa tal imaginação que a faz querer procurar o homem que tanto lhe ignora: amor? Giorgia se irrita mais ainda... 849
- AH!- Ela atira o copo contra a geladeira, fazendo-o quebrar com um estridente barulho: do asco pela inutilidade da vida e pela força do que a faz mover. - Droga!- Os cacos do copo no chão a lembram do que já está pesado no teor de sua cabeça: “Áustria... seu...” A expressão revela a vontade: ela pode quase se sentir satisfeita por estar tão preenchida por esse sentimento: ódio... Alcançar a resposta do vazio: - Desgraçado. *** “Sei que não devia fazer isso. A visão dela cativa minha retina de uma maneira absurdamente atraente. Ela parece ter escolhido aquele acento do ônibus de propósito: bem de frente para mim. Vinte e seis turistas pelas ruínas históricas da Grécia e uma mulher incrivelmente linda exibindo sua intimidade somente para meus olhos, a cada vez que cruza e descruza as pernas: um torneado perfeito, com músculos desenvolvidos na medida certa e o sexo exposto por uma estranha armadilha ou coincidência que faz avolumar-me em meu corpo e aspirar com desejo o olhar, claro, de quem sabe que está sendo observada, desejada, profundamente; provocando 850
com um sorriso e um desviar de visão que me arrebata por completo... e nesse ponto não há escolha...: sou casado, mas sou um homem e quero foder essa mulher!” As ladeiras e curvas fazem trepidar a viagem pelo cenário do absurdo esquecimento de uma glória perdida de uma civilização exacerbada de cultura, poder e arrogância: a Grécia não possui realmente paisagens; ela é uma paisagem em si; na sua própria existência como cultura sobre a Terra: no passado, no presente e no futuro... Mas a visão das alturas, do límpido e azul mar Egeu, aberto ao Mediterrâneo, despontando na linha tênue do horizonte, misturando céu e mar... não é o que chama a maior atenção dentro do ônibus de turismo; ao menos para um seleto grupo desses executivos que nele viaja... E esse privilegiado senhor das operações financeiras se vê abalado como nunca ficou na paranoia rotineira de sua vida bem sucedida: Louis Karr quase pode sentir o cheiro daquele sexo: mais que a masculinidade era atingida por aquele símbolo de feminilidade: sem jeito, sem tipos, sem jogos; perdendo anos sem fontes... só com o dinheiro: daria tudo que possui para por a língua naquele lugar quente e macio; suar sobre aquele corpo, estar entre aquelas pernas e fitar aqueles olhos dizendo másculos palavrões que a levariam 851
ao devaneio que agora ele tem: sua fantasia de anos recusada por uma esposa “normal”: “No cu!”- Ela diria. Do jeito que gostaria de ouvir: sujo, seco, sem medir as dolorosas e morais consequências do que é pedir para ser penetrada no ânus. Karr continua a sonhar... O ônibus freia bruscamente. A reação de um bom motorista a um animal que corta a estrada. O Sr. Karr tem o seu bestial pensamento interrompido pelo surpreendente peso que o atinge bem sobre a dolorosa ereção que vinha, com dificuldade, tentando ocultar... A magnifica carne macia daquela mulher cai no seu colo: ela havia se levantado para abrir mais a janela quando o motorista deu a forte freada... Não sabia como reagir: podia abraçá-la por três segundos e com certeza esporraria no fino tecido de sua elegante calça esporte... Mas ainda é um homem racional: mesmo com mil desculpas sem sentido, teria de fingir que ela não havia sentido nada duro pressionado contra sua bunda: o que seria impossível; a não ser que ela tivesse hanseníase nas nádegas... e bem avançada: que sorte! Que azar! O Sr. Karr não sabe onde enfiar... suas duas cabeças. - Me desculpe! Eu... eu... - Ora... Eu é que me desculpo. Afinal, eu cai em cima de você. 852
- É mas,...- Descontrolado e impreciso: Louis quase deseja que ela fosse uma conta bancária de um dos seus clientes da financeira: saberia o que fazer... - Não se preocupe. (Ela volta a sentar.) Espero que não tenha se machucado.- Ela falava como uma vendedora: praticando uma suave sedução, enquanto ainda deixava aparecer seu paraíso entre as pernas. - Ah, não... Eu... - Eu soube que rigidez muscular bruscamente atingida pode causar rompimento de ligamentos. Seria uma pena tal coisa acontecer. - Uh...- Os lábios de Karr não conseguem emitir outro som . Já vira quase tudo na vida, mas nada o preparara para tal afirmação: não tinha dúvidas, somente um olhar fixo no absurdo daquela situação tão única, tão excitante, tão surreal... e que ele não podia deixar passar sem tirar o melhor prazer possível: no título do capital... e o sexo. *** - Eu espero que você nunca morra, querido! - A frase de difícil entendimento desperta superficialmente o Sr. Karr de suas profusões dentro do corpo de Debra... A deliciosa textura da carne interior de sua vagina deleita a mente de Karr para 853
um mundo totalmente fora da realidade: o rústico ambiente do hotel no interior empoeirado e desértico da Grécia Meridional termina por compor o cenário daquelas depravações carnais que passam pela mente “inocente” de Karr. A inocência está na sua certeza de que o comando daquele corpo embaixo dele é totalmente seu: o dominador... Mal percebe que seu pênis está se tornando um tipo mutável de “cordão umbilical”: estará para sempre dependente daquele calor vivo que envolve o mesmo nesse exato instante; nas suas doces lembranças dos simples sexos que não conseguem achar significado na frase que a mulher acabara de propelir em meio a mais um dos orgasmos de Karr: nem ele mesmo consegue acreditar na vitalidade que está conseguindo manter com essa jovem tão gulosa por MAIS (....). Cada vez mais sua mente traz à tona seu desejo secreto, mas teme pedir: ainda encara como uma situação normal, por mais absurda que já seja. Debra suga; força; cede, fazendo dele o que mais os outros quatro esperam: ela sempre se considerou a melhor prospectora de homens do grupo: o melhor julgamento, os de mais recursos, mais insatisfeitos e os mais resistentes: aqueles que podem ser o suficiente para todos eles... O fracasso do último ainda a está atravessando da garganta à boceta; como uma coceira impossível de ser coçada de fora 854
para dentro; incomodando e levando ao desespero... Mas não ainda dessa vez: só mais duas palavras e o Sr. Karr estará no ponto; pronto para o fim, e Debra estará livre dessa “tortura”... - Ai, ai... É agora...- Finalmente! - Espere, querido...- Louis para o movimento para reter o orgasmo; quase já deformado de tanta vontade, mantendo o cacete em leve roçassam e enrugando bizarramente o rosto entre sons ofegantes e arfantes; olhando o rosto suado e brilhante de Debra, aguardando suas palavras... - No cu! - Todos os poros do corpo de Karr começam a se movimentar de uma maneira diferente, como que querendo sugar o suor de Debra: a textura da pele e dos pêlos, os mamilos dos seios pareciam roçar-lhe diferente, os olhos dela não desviavam diante de incerteza ou medo... Karr sentia como se tivesse finalmente atingido um novo plano de vida carnal: só em começar a imaginar aquilo que ela acabara de propor, uma monstruosa sensação de prazer e dominação o percorria das pontas dos fios de cabelo até a cabeça do pau: estaria preparado para tal realização?... Sentia-se o dono da situação, vivo, forte, imortal, o senhor do mundo que pode alcançar tudo que deseja... O foda. - Devagar, querido...- O sorriso no rosto de 855
Debra mostra o verdadeiro vencedor; na verdade cinco... os cinco vencedores. - AH...- Falso. Inerte ao que realmente representa: ela só se satisfaz com o prelúdio que isso representa: “Sssss! A Grécia é bem melhor que a Áustria!” *** A penetração anal é chamada de sexo bestial porque segundo uma bizarra lenda qualquer a besta do apocalipse foi ou será gerada através da “fecundação” anal de uma mulher prostituida, mas virgem de rabo, por um chacal disfarçado de homem enviado pelo demônio. Seria leviano afirmar sobre o lado da mulher, mas para o homem é um prazer extremo, pois além do fator físico que multiplica suas sensações (é apertado); é também um símbolo de dominação sobre a mulher: tanto por causa da posição que ela tem de ficar, quanto pela dor da dilatação que é provocada... Afinal... foi feito para sair... e não para entrar. *** A subconsciência é uma doce lembrança de uma comum porém muito saudosa realidade que 856
há bem pouco era considerada por este: enfadonha: tudo por causa de uma louca fantasia... Não se pode imaginar que fora um total desperdício somente por esta breve razão. O escuro e insalubre cárcere do sr. Karr o faz sonhar enquanto dorme preso a uma parede, de ponta-cabeça; na mais fria das paredes úmidas dos pesadelos de Sir Edgar Allan Poe até o momento que encontrara aquela mulher no ônibus... O pior dos lamentos de Sir William Shakespeare ao destronar seus reis numa breve mas poderosa tormenta de desamor e traição... Louis sonha com o seu cachorro marrom correndo pelo quintal verde de sua casa rica de subúrbio nobre; a esposa de avental... e o eterno peso sobre a cabeça e sobre os olhos: todo o sangue banhando sua mente com o peso do corpo no mundo exterior eleva sua inconsciência, fazendo-a iniciar a instintiva viagem de volta da pior maneira possível: talvez agora; atado a um mundo suposto inexistente; mesmo as profundezas do seu cérebro possam dirigir a mesma culpa que o acompanhou cada segundo desde aquele orgasmo: estranhamente a sua última imagem de liberdade, e também a maior sensação de seu corpo, é o que realmente povoa sua fuga interior no pouco sono... Nunca conseguiu saber quanto tempo havia passado, ou se ainda estava na Grécia, ou mesmo na Terra: a um olho cético podia 857
ser considerado a porta do inferno e não um quarto de hotel rude; e isso pode ser considerado o inferno em si... Karr começa a alcançar a saída de sempre de todos os sonhos terminados em pesadelos... Como pôde trocar o que tinha na vida por um cu?... Seu corpo consegue responder ao início da consciência; mas ainda sim não faz sentido: a ereção começa na mistura da lembrança com o sonho, se tornando um terrível pesadelo. A cada sensação antes do orgasmo ele se contorce na parede: prazer, dor e culpa se juntam para juntar o final trágico da sua presença nesse cenário bizarro: Karr acorda gozando no sonho, urinando no próprio rosto mediante a posição e clamando com “gritos” sem fôlego diante das lágrimas que escorrem sobrancelhas e testa acima; sendo da reviravolta que a vida teve por razão de uma simples penetração anal. - Por favor... Eu sinto muito... Me desculpem por tudo... Eu quero vi...- Suas arranhadas palavras são engolidas por mais um espasmo no seu estômago: a náusea é a constante física de si próprio: parte do cenário... - ...Haurr...- Mais uma vez bílis e sangue jorram de sua garganta, com dor, muita dor... mas muito além das lágrimas doloridas está o pensamento no rosto mortalmente triste: “Por favor... Eu quero morrer!” O paradoxo da resistência desse homem... Agora ele 858
pode ouvir claramente o horror da frase daquela sua mortal parceira: “Espero que você nunca morra!” A contração dolorida no esôfago se acalma por um instante: “Mas por que? Como pode? Por que?” A límpida lágrima escorre para a mórbida sujeira, como no desvirtuamento da alma humana por conta das dúvidas das possibilidades: Louis se arrepende... por tudo. *** Quando se está de cabeça para baixo a circulação de sangue no cérebro é 24% mais densa: o que causa um forte descontrole de certas capacidades mentais conscientes; porém a atividade para-consciente aumenta de maneira imprevisível... De uma maneira óbvia pode-se admitir que tal posição afeta os sonhos, mas o modo que isso acontece e com que intensidade é ainda um mistério e talvez sempre o seja. Vomitar normalmente causa trauma (dor) no aparelho digestivo. Vomitar continuamente e de estômago vazio causa traumas em todo corpo, podendo causar danos permanentes aos sistemas vitais do ser humano... e com o tempo a morte.
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*** - Eu acho que Deby gostou de ser currada por ele...- Quatro olhares sarcásticos e inquisidores aguardam Debra refratar-se por sua hesitação: não sabe o que fazer... - Ele... - Será que é melhor que nós três?!- Artur é quem melhor sabe usar a tortura verbal: dependendo da resposta Debra podia ofender os três homens presentes, ou pior, se mostrar fraca, piedosa... Mesmo assim ela consegue sorrir antes de se pronunciar... - Pra primeira vez, até que ele não foi mal... teria futuro...- Era a garantia de ainda ser quem ela é: já esquecera quantas vezes já deu o cu: sente saudades da dor das primeiras vezes; nem se lembra com quem foi, mas a origem do instinto já estava lá: no prazer gerado pela dor... Hoje: - Eu só acho que fatiá-lo é comum demais; vai chegar ao fim muito rápido... Sem graça. E eu já estou ficando sem graça também por ser sempre o mesmo...: agulhas, grampos, presilhas, anzóis... Cacete... deve haver mais no mundo!- Eles se entreolham sérios antes que Artur novamente se pronuncie: - Esse cara deve ter te enrabado legal mesmo!Os quatro riem bizarra e maudosamente... Mas Debra 860
referia-se seriamente ao modo como as coisas vinham caminhando: desde a chegada deles na Europa, há cinco anos, nada de novo tem realmente acontecido: sem desafios... Ela recorda com satisfação de seus tempos no Egito: a descoberta ### “A noite mal iluminada do porto do Cairo e o forte cheiro de peixe do depósito dos pescadores compunham o cenário da degradante iniciação de Debra no mundo A.B.I. Os oito corpos sem rosto circulavam continuamente ao redor de sua azulada nudez que brilhava no suor e frio da dolorosa corrente que a estendia com os braços para cima, pendurada às vigas do alto teto do depósito. Inidentificáveis, utilizavam seus conhecimentos de carne, nervos e falismo no formação de um crivo sobre a bela mulher que reagia calada a cortes, perfurações e escárnios, na tentativa de se preencher daquela mesma dor: ouvia o silêncio dos seus próprios gritos quando criança e retia os gritos que surgiam naquele momento: a base sempre foi superar a dor em nome de um prazer maior que supera o mistério carnal e absorve as necessidades do corpo por satisfação; como uma extremamente dolorosa metamorfose que transforma o receio da dor 861
em pura vivência do mesmo e daí a transformação do choque nervoso, o trauma, em um tipo de mensagem diferente para a mente: prazer... Protege, mas consome o corpo e faz necessitar de um estranho alimento: mais e mais: desafio da tortura sempre superada: procurar fazer sentir mais dor do que já sentira antes, todas as vezes... O corpo de Debra é decido; está exausto, mas era o fim somente da primeira fase: tinha-se de atingir as superfícies do corpo e da alma antes que a bizarra montanha-russa de bestialidade se contemplasse no corpo de quem se propunha; achava-se necessitada de mais além das sensações da carne: Debra buscou mais em toda sua vida de auto-sobrevivência na África do Norte, até achar este grupo... Os primeiros a experimentarem na pele alva e macia dela o subprazer das agulhas durante as duplas e triplas violações voluntárias de áreas em seu corpo onde a memória somente remetia ao medo da infância na rua, e a sobrevivência na mesma: a primeira fonte da dolorida penetração que começava a sentir. Ela se fez forte; suportável, e “sã” ao seu próprio modo de viver a vida... até encontrar esse grupo... Esse grupo cujos nomes só sabe um; até hoje ao seu lado... noutra lembrança das consequências da sua tão “doce” iniciação A.B.I. 862
Nove horas... O fedor do depósito se confunde com os seus próprios fluídos violados com tanto empenho e com seu sangue exaurido não sabe de onde, mas muito da dormência que sente entre as pernas e o latejar do seu rosto, seios e crânio... o sorriso doentio do seu encontro consigo mesma surgia no simples fato de estar viva após tudo, e mais: o que realmente a aprova: ela deseja por mais: assim começa a fome, a necessidade vem logo...: sete nomes e uma imaginação muito fértil será a ocupação: agora pode mais que muitos e as restrições parecem simplesmente ter fluído pelas feridas de suas unhas arrancadas: no ápice do começo de sua “vida”...” ### A fonte de toda aquela imaginação parece lhe escapar agora. Os risos relaxados de quem só consegue ir até onde o corpo alcança: já houve épocas gloriosas com este mesmo time, mas parece uma desesperadora falta de novas fontes: coisas novas a que desafiar, atravessar os campos dos túmulos sem vida que andam pelas ruas e encontrar tudo que um corpo pode oferecer... Deby se frustra ao não ver uma saída para isso: com raiva por não ser, na verdade, eles, é ela: os olhos de Roger notam um espantoso “medo” 863
nela que o amedronta também: como há muito tempo não parecia surgir nas garras aptas à tortura de Debra. Como podia ainda se delinear uma fertilidade tão original num momento tão inerte, quase triste? Todos ficam sérios... - Precisamos pensar!- Artur finalmente se pronuncia ao verdadeiro problema: “A.B.I. e com problemas existênciais”: “Roger trouxe Debra do Egito como a melhor promessa para o grupo: sob uma imaginação sem fim os frutos vieram com satisfação para todos como uma muito esperada renovação da mesmice do absurdo das noites de Amsterdã: o que surge hoje não mais impressiona a idade do líder Artur: pouco recorda do seu começo; na verdade o problema é a insatisfação de Debra, e nisso há o mistério de sua própria alienação e excesso de violência algumas vezes diante da frustração... Artur teme por isso, e por Roger... e até pelo pobre sr. Karr pendurado na parede da outra sala (nesse caso com uma leve ironia): até onde eles podem realmente ir?” - Talvez Debra tenha razão...- Um pesado senso do incerto desaba na reunião: o apoio inesperado e o ardor de uma possível nova arte do que eles tanto procuram numa vida formada e dedicada a dor (ter e provocar)... Roger olha novamente para Debra... 864
- Eu tive uma idéia! ***
A visão do seu novo mundo de cabeça para baixo faz a metódica aproximação dos cinco uma primordial forma de tortura psicológica que se forma no interior humano ao confrontar qualquer expectativa. O asco do período preso à parede o faz imaginar do mais terrível ao esperançoso e impossível doce sonho de libertar-se; mas nem da culpa consegue estar mais livre... Debra vem a frente: sua avessa nudez não mais o cativa como a lembrança vinda durante o sonho; é o que assusta mais, diante da total ignorância do que está vindo em sua direção: ódio, dor, amor, morte?... Provavelmente a fonte de tudo isso na estranha ligação agressiva que faz tais cinco pessoas virem em sua direção com propósitos desconhecidos, mas com certeza adversos a ele... Sem nem ao menos saberem quem realmente é Louis Karr: provavelmente não importa o conteúdo de quem eles estão obliterando; simplesmente a vasta criatividade do que eles fazem de melhor e que precisam fazer: Karr sente... Seja a razão qual for, ou mesmo nenhuma, não mais embora dali ele irá; e nem mesmo inteiro ele vai existir ainda... 865
Não mais nada. Abominações travestidas de seres humanos que rondam as vidas daqueles que não veem a verdade do que está nas cidades: colhedores de uma mórbida e insistente tristeza que tira o sono das crianças e dilacera o coração de seus pais nos seus leitos frios e sem luxúria; na raiva escondida do que eles não conseguem mais sentir, pois o mundo do lado de fora considera ou desconsidera: ignoráveis todos os instintos mais básicos do animal homem que sente como todos os outros animais, mas como nenhum outro é contido por si mesmo, seu ego, sua vida, o vizinho que pode ouvir os estranhos gritos emanados do seu quarto, com sua esposa: é sua vida... ou deles. Eles se aproximam de mais um ícone humano do vazio sem sentido de dia após o outro que sofre de úlcera e hipertensão simplesmente porque não consegue dizer o que realmente pensa, somente o que é mais conveniente no momento... Artur lidera de uma maneira psicológica: sabe dizer a coisa certa que amarra as vontades não reveladas de cada um em ideias cada vez mais absurdas: é Artur quem vê que a fraqueza da idade está começando a surgir nos corpos de todos; Debra, a mais jovem, é a conexão com um presente mais criativo: por isso ele deu razão a ela: sabe que há necessidade em todos, mas Debra 866
é sempre quem melhor expressa essa dor por novas e originais fontes de dor e prazer... Experiência é quem comanda; é quem corrobora a força, a juventude, imaginação, o talento e o vazio numa só sede por dor. Artur é o padrasto, o patriarca da honestidade de se expor num mundo onde todos simplesmente se escondem. Passos nobres de criaturas que não condizem suas aparências com suas intenções. Olhos assustados vendo o fim se aproximar da pior maneira que pode imaginar que ainda não é a pior maneira que se pode alcançar... Prestes a se encontrarem os dois extremos das condições humanas ajustadas e completamente marginais e ignoradas: o executivo e os executores do adverso modo de viver... As lâminas em suas mãos, a nudez dos seus corpos e a inexpressividade de seus rostos atraem para o homem o ardor do pavor vindo da dor... Quem anda por esse chão descalços a absorver a sujeira do mundo...: Roger e Tomaz erguem seus punhos até os calcanhares de Karr e desatam suas dolorosas amarras de sustentação. A instantânea queda o deixa na posição de quatro ainda com os pulsos amarrados na parede. A visão agora se limita às pernas dos cinco; mas a apreensão se redobra na medida do que ele não consegue enxergar como suas ações. 867
Debra se agacha e se aproxima do rosto sofrido de Karr: - Bom, Loui... Imagino que você gostou de ter me currado, não foi?- O tom da “doce” e selvagem mulher assustava mais ainda pela incerteza do que aquilo transmitiria: talvez a resposta salvasse a sua vida, mas já havia a resposta: ele realmente adorou; o arrependimento só veio depois... - Eu quero lhe mostrar como eu também gostei... e a melhor maneira é fazendo você sentir o mesmo.Ela se levanta com um característico sorriso. A mente cansada de Louis demorara um pouco, mas logo lhe veio o significado daquilo... De repente morrer não parecia ser uma ideia tão ruim. Recorda-se das três imagens que vieram em sua direção: estava muito além do suportável; pelo seu calculo de cabeça para baixo: uns vinte centímetros além... Sua expressão se altera; um pavor além do além já imaginado: os olhos se abrem perante o cansaço desaparecido: o desespero chega a sua boca: - NÃO! Por favor, não! Isso não!- Uma nova fonte atingia o corpo de Artur: o medo do homem diante de uma coisa tão simples e corriqueira se tornava numa fonte de tortura totalmente nova: o líder sorri com sua ereção, diante da criatividade, exposta por Roger, mas forçada por Debra: orgulha-se... 868
- Andrea... Traga a câmera.- A ordem confunde Karr mais ainda, mas o toque que ele começa a sentir o destoa de tudo mais: um desespero em cada nervo do seu corpo o fazia contrair partes do corpo que ele nem lembrava existir: queria poder se tapar, fugir, mas era tarde: a morte lhe parece, mais do que antes, uma escolha mil vezes melhor... Roger e Tomaz agarram um cada perna do homem; mesmo fraco, o instinto podia lhe causar qualquer tipo de reação. Debra fica ao lado, observando as atitudes de sua presa; experimentando o novo: preparando-se para o mais... Andrea volta com a câmera e começa a filmar: o começo do bizarro na vida de Louis Karr estava por começar: - Todos prontos?- Pergunta Artur atrás de Karr... - Agora...- A família de Karr volta a sua mente. Seus olhos se fecham: queria a inconsciência agora... Ana... - AAHHH!- O som da bizarra fonte das novas bestialidades: as abominações deleitam sua arte; um no outro e em todos.
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2 Fotografias são mórbidas representações de que já não mais existe; como um não natural congelamento do tempo que singra a imaginação com a dúvida do que poderia estar acontecendo por detrás ou em volta daquela imagem fixa no nada de quem teve a ideia de guardar para sempre uma emoção que na verdade nunca mais existirá... Giorgiana desliza os dedos na foto do Danúbio, que recebera como cartão-postal do marido e compara com a viva imagem do rio que corre a sua frente sob o amarelado do anoitecer de Viena: quase irrita sua fonte ver que apesar de tudo, Franz sabia apreciar aquele espetáculo e que ele o quis guardar para ela, na distância física do que já era a distância do seu fracassado casamento. É uma expressão morta, como a própria representação fotográfica daquela mágica da natureza... Séria, Giorgia revê as imagens de Franz no necrotério: como fora encontrado: sujo, mutilado, inqualificável na agenda dos ricos; como algo nunca a ser visto ou imaginado... Morto pelo desconhecido; humilhado pelo óbvio e totalmente desprezado pela mulher: - “Sim... É ele...”- Sem dor, sem pena, até com satisfação. A caminhada a margem do rio sob o crepúsculo 870
desenvolve a procura pelas respostas jamais perguntadas na existência vazia daquela comum, mas separada convivência. Com Franz morto ela está livre... e herdeira de muito... Mas questões ressoam na mente curiosa: como um lugar de tal paisagem que ela humanamente admira como há muito não conseguia admirar nada na vida, pode promover tal carnificina no corpo “indefeso”de seu marido? Giorgia recorda do estado de sua genitália: era como a atitude de uma vampira vingadora, da sua inutilidade quanto homem; pelo menos para com ela. Quase sorri ao ver que essa outra mulher teve a coragem para punir a flacidez inútil do marido... Mas é um tanto mais sério que isso: a suposta traição pouco a incomodava agora.... ou mesmo o assassinato em si; mas sim a descoberta daquilo como uma bizarra variante na linha normal dos passos que a vida toma num mundo tão novo e estranho. Como o efeito que a iminente escuridão causa na sua caminhada de volta para o hotel: o amarelado do reflexo no rio e no chão se torna rubro e vagarosamente se torna num negro azulado que instiga medo e adrenalina... Giorgiana se sente como se estivesse abrindo portas para mundos jamais visitados pela sua tão valorosa estirpe. - Quarto 901.- O atendente entrega-lhe a chave sob o olhar faminto e indagador de Giorgia. Todos no 871
hotel sabem do desaparecimento do marido dela e do consequente assassinato violento. A presença daquela mulher tanto assustava quanto atraia as atenções: quarto de cortesia (o mesmo de Franz), principalmente porque ele não havia terminado a estadia e a imagem do hotel não podia ser arriscada sob tal desastroso evento... Além da singular situação, a beleza iluminada de Giorgia atrai atenções em qualquer ocasião. O senhor Voghiter, gerente do hotel vinha fazendo uma irritante política com Giorgiana desde que ela chagara há três dias...: após a experiência no necrotério a imaginação de Giorgia mostrou caminhos infinitos para usar a antipática simpatia daquele gerente em prol de sua procura por respostas: nesse caso, o mais imediato: quem era a mulher com Franz e que lhe arrancou o pau, obviamente... - Espero que o quarto esteja de seu agrado... Se a senhora precisar de algo é só me pedir pessoalmente.Aquele discurso entrou pelos ouvidos de Giorgiana oito vezes nesses três dias. Ela quase sentia a vontade de esmurrar o sujeito na pele das costas das mãos; mas há muito ela aprendera a conseguir muito mais das adversidades que apenas vingança. Volta o olhar para o homem dois passos atrás. Era o olhar de calese; de fazer o homem simplesmente olhar para os seus olhos e deixar-se insultar se fosse necessário. 872
- Na verdade, senhor Voghter... - É Voghiter.- Ele sorri nojentamente educado. - Voghiter (cara de cu, era mais o seu pensamento), eu tenho me sentido um pouco solitária naquele quarto sem o meu Franz. E depois da horrorosidade que fizeram com ele, eu estou até com medo de ficar lá sozinha... Pode acontecer o mesmo comigo... É... quase.- O gerente faz uma rápida e bem treinada expressão de solidariedade diante do teatro de Giorgia: mal conseguia separar o que seu pênis sentia do que a necessidade da profissão exigia: um hóspede não pode ter medo de ficar no quarto do hotel: é péssimo para a imagem, mesmo sendo uma situação tão isolada... E uma mulher dessas dizer que está solitária e de uma maneira tão sedutora só pode significar atração (coceira na racha foi o pensamento exato do polido gerente). - A senhora não deve se sentir assim. Se quiser, mandarei uma haia dormir na sala do apartamento, para lhe fazer companhia...- Estudiosos em neurolinguística diriam que uma mulher que toca na gravata de um homem e começa a alisá-la para cima e para baixo significa assédio... - Eu preferia que fosse o senhor...- O gerente, provavelmente conhecedor de todas as dinâmicas do comportamento humano, devia achar saber muito 873
bem disso: (ela tá a fim de dar, no seu íntimo). Ele olha discretamente para os lados e se aproxima dela. - À que horas? - Vá às onze...- Devidamente cumprimentada, Giorgia se volta para os elevadores sob os olhares do saguão, principalmente o gerente que desde já começa a delirar sua imaginação sobre aquele corpo. Ele suspira satisfeito diante de sua infalível audácia... - Bicha européia lambedor de saco... Humpf...A verdade da situação não trazia satisfação a Giorgiana; há muito ela conhece o poder que tem sobre os homens; sente-se tão prostituída pela riqueza e pela beleza quanto sempre, mas querendo ou não a morte de Franz lhe afetava os sentimentos. Muito do que foi esquecido entre os dois na estiagem das lágrimas de sua vida endurecida pelo vazio: são todos os tipos de perguntas que povoam sua cabeça: estava ela alienada do mundo? Esquecida numa cama com outro homem, mas sem ter absolutamente nenhuma atenção do marido... No fim de tudo o que Giorgia mais teme é de que ainda sinta algo pelo falecido marido, algo inócuo e impronunciável que só parece lembrar o dia do seu casamento: na pureza e na simplicidade da ostentação familiar...: Talvez o amor! Mas ainda assim se pergunta: -”Como alguém conseguiu morder o pau dele 874
até arrancar?” *** “Gostaria de poder chorar lágrimas reais de minha culpa sobre este que tenho sido; dos meus desejos adormecidos que se ergueram e me puxaram até o fundo deste poço: como uma nobre e verdadeiramente cega justiça que me fará enxergar através do embaçado destas lágrimas de dor pelos meus filhos e minha esposa... Por que eu?” Mais um doloroso espasmo sobe à garganta de Louis. Faz o seu cansado tronco se contorcer no total vazio de seu estômago; a lembrança de tudo jorra-lhe a mente como as lágrimas involuntárias que provém a cada espasmo; e novamente só expõe o fluído que o estômago não consegue parar de produzir mais e mais a cada instante que se aproxima o momento de rever René e os meninos... A sensação em seu corpo o lembra a todo momento que não há mais uma resposta na vida, como os números no final dos cheques que costumava emitir e que agora não sabe se conseguirá continuar a fazer: um simples ato que parece Inalcançável pela sua simplicidade, pois, simplesmente sentar causa a maior dor... do arrependimento e da vergonha: penetrar e ser penetrado...: na mórbida analogia do 875
que se tornou o vazio de sua vida; não sabe se foi pior ou melhor ter sido deixado vivo: sente medo, sente dor, vergonha e mal sabe o que sentir da lembrança daqueles cinco. Não consegue nem pensar; não quer pensar... Mas não pode esquecer, nunca; o espasmo branco seguinte garante isso: - Uaarc...!- E as lágrimas voltam a escorrer. ... - Mamãe, cadê o papai. Todos os passageiros já saíram do avião. - Não sei. Talvez seja algum problema com a bagagem. - Oba! Quer dizer mais presentes.- A mãe de 43 anos sorri do modo único do filho pensar diante do atraso do pai. Desde o telefonema dele antes de deixar Athenas sentira que algo não estava certo com o comportamento dele. Naturalmente entusiasmado, principalmente por voltar às suas amadas cifras com que tem de lidar diariamente... Parecia mais como se estivesse falando com uma secretária eletrônica: as respostas óbivias para as perguntas de sempre: Louis não era mais o mesmo: talvez fosse o excesso de paz da viagem... Acostumado à adrenalina diária de milhões e milhões de outras pessoas e das comissões também milionárias, René podia até querer supor que o ativo marido estava entorpecido pela mágica báltica 876
que o havia rodiado por duas semanas... Mas a voz no telefone parecia... morta... - Olha... lá vem ele!- O garoto mais novo aponta alegre para o pai. Um sorriso quase que forceosamente pintado em seu rosto os recebe no corredor de desembarque... Os olhos infantis só conseguem visualizar os pacotes que tomam os braços do pai de família bem afortunado pelo próprio esforço e pela vontade de fazer a família feliz... Mas a mulher de 12 anos de casamento pode notar que o homem que vinha fraco sob aqueles pacotes; pálido, mesmo vindo de um local de sol forte e mais magro como nunca realmente se lembra tê-lo visto, a não ser em fotos da adolescência: René pode notar que Louis não era mais o mesmo; pôde no telefone e agora pode confirmar na sua visão sem vida; como olhos que encaram as dores do mundo e só retornaram simplesmente para recordar: já vira esse olhar antes; mais tênue na verdade: o pai fora veterano na guerra e por muitas vezes antes de sua morte, passava horas a apreciar um estranho vazio sem expressão; algo que não lembrava nada, a menos que o tenha visto: Louis parecia ter vindo de uma guerra; longe, distante de um par de semanas de férias; numa irreconhecível fonte de mudança... Ela simplesmente “sorri séria”, sem perguntas, mas com dúvidas... Foi o que a mãe 877
lhe ensinara quando do retorno de seu pai da guerra: nunca mencione... até ele mencionar. - Papai!- Karr se agaixa largando os pacotes e sentindo com um empenho sobre-humano a sensação da afeição de seus filhos; na doçura das suas inocências, quase esquecendo a dor em suas entranhas e a vergonha em sua consciência... Abraça forte os filhos. Pré-sente. Esteve perto do fim, no cúmulo da dor e agora até pede por isso... mas nesse instante simplesmente agradece por poder apertá-los em seus braços novamente... São as últimas coisas seguras de sua vida. Ele sobe o olhar vagarosamente e encontra os olhos da esposa... Os filhos ainda são as últimas coisas seguras da vida: crianças. Sem dúvida, sem máguas, simples... Baixa o olhar novamente: René sabe: Ele sabe... Só as crianças: novamente lágrimas... agora reais. *** O multifacetário verão europeu e a economia que é viajar todo velho mundo em transportes de terra atrai os assíduos e bem sucedidos “yuppies” do mundo para estas portas sempre abertas à riqueza de todo planeta: é só nessa época... Aqui não o Mediterrâneo ou a America do sul para atrair 878
turistas o ano todo. É o ser seleto que agrada mais estes senhores agentes receptivos ao mundo: todas as línguas; vivos em todos os sorrisos que são capazes de emitir decolando o ego de nobres da nova era que desejam encontrar respostas às suas perguntas de frustração, divertimento, infelicidade e luxuria nesse mundo que todos eles acham que podem comprar ou seduzir... - Ei, Tomaz... Olha só... É seu tipo de cliente!Sentado à sua mesa, o jovem gira a poltrona sob a interlocução do colega de trabalho. A ironia não era destoante às suas práticas comuns... Pela porta de vidro entrava uma das visitantes mais provocantes a pisar em solo vienense e a certamente procurar uma das melhores agências de turismo da Europa: “Da Noruega à Istambul em tempo para o mundo.” Os olhos de Tomaz percorrem todo o corpo da mulher que caminha até o balcão: todos já sabem: há sete anos todas as mulheres daquele porte sempre deixam bons pedaços das suas (ou dos maridos) fortunas na empresa graças ao jovem de expressão humilde que consegue tirar de todas elas a vontade de voltar para casa, simplesmente viajando pela Europa e sempre voltando para ouvir dos lábios do ábil vendedor que elas têm de aproveitar mais a vida e traduzindo-se sempre em mais dinheiro: esse é o seu 879
talento, de seu proveito... muito mais além que o da agência. A recepcionista o indica. Seu olhar ainda fixo vê a aproximação; duplicados os talentos e desejos, Tomaz já percorre com outros olhos o mesmo corpo: sempre existe uma possibilidade: são duas a cada cem: estatística facilmente ignorada perante a solidão e o pagamento à vista: há muito ele aprendeu que ser um vendedor não só lhe dava dinheiro, trazia um novo e estranho poder sobre as pessoas: sem saber porque ele sempre parece ter a razão... - Olá, meu nome é Giorgiana... A moça disse que você podia me ajudar a escolher um bom roteiro para as minhas férias...- Estava sentada a sua frente e aberta às suas sugestões; só bastavam as informações: é realmente linda: é só começar a vender. ### “A lembrança sempre chega na cor da decoração do bar naquele “happy hour” de segunda-feira. Mais um dia realizado numa vida confusa da qual não se parecia estar tirando nada além de dinheiro, um sucesso vago; reincidente somente na conquista diária que no final da noite não passava do desejo que “ela” fosse somente uma almofada a mais na cama: sempre 880
existindo a procura por mais... Mais o quê? Nesse dia havia o desestímulo total no ar da vida desses corretores: era Outubro de 1987. Horas de telefonemas tentando convencer seus poderosos e temerosos acionistas de que a queda da bolsa é apenas temporária... Mas só restavam poucos com ainda tal poder para manter o dinheiro dos clientes em contas que poderiam desaparecer em segundos; e foi o que aconteceu posteriormente... Porém o que trazia a falta de estímulo ao corpo de jovem Tomaz (corretor) era algo mais profundo e mais pessoal que o seu sucesso nessas tentativas e o fracasso dos outros... Nem na queda total ele caiu... Sempre ao que menos importa: como um presente de seu nato talento: não sabia o que fazer com ele ainda assim. Em meio aos drinks daquela noite e dos lamentos ao redor surgiu o primeiro estímulo real daquele período: começava na fantasia das palavras não ditas, mas que eram facilmente ouvidas quando a intenção se faz presente. Tomaz se aproximou dela sem muito cerimônia; sabia e sabe que tipo de reação deve exercer em cada tipo de pessoa: a melhor coisa que ele sempre soube vender foi a si mesmo... Não demorou para a estratégia os levarem para o apartamento: era uma das poucas vezes onde os caminhos estavam guiados juntos; sabendo que só 881
iria até umas 2 da manhã e depois... O estímulo ainda prosseguia: Os gemidos caminharam normais por um tempo, como em todas as noites. O absurdo começou no primeiro arranhão. Ela parecia avançar a medida da penetração na direção da carne de Tomaz, como uma reação natural: arredio no começo se deixou mais à frente, e mais... Suas costas estavam em pele viva quando ele começou a sentir uma força diferente: a sensação cortava-lhe o corpo com lembranças do inexistente e avançava em golpes cada vez mais fortes dentro dela; era como se quisesse cortá-la ao meio. A mudança de posição simplesmente renovava a vontade: ela subia e descia apreciando cada toque e que se transformavam em pancadas: Tomaz guiava o corpo no instinto das suas sensações... Sua mão esquerda contornou-lhe o dorso e começou a puxarlhe os longos cabelos: a cabeça dela pendia com dor e prazer a cada próprio movimento; como se pedisse mais. O peito desprotegido de Tomaz foi seu alvo seguinte; as unhas em forma de garras se fizeram num arranhão eterno no peito branco de Tomaz. No momento de sua curvatura um estranho êxtase lhe veio; algo realmente novo estava acontecendo... Sua mão direita agarra o seio esquerdo dela e começa a apertá-lo com força: queria esmagá-lo, atravessá-lo e 882
penetrar na alma dela no mesmo ritmo e violência do seu pênis. Tudo (os dois e seus movimentos) se tornou uma gestão só de bestialidade. Seus olhos brilhantes se encontraram com a expressão do infinito; como o instinto do corpo que diz sempre querer o máximo... - Ahh... É agora.- A garra dela vinha direto para o seu rosto, mas o instinto dele não foi de defesa. Nem mesmo a porta a pouco arrebentada ele ouvira: a explosão do encontro de suas duas mãos vieram junto com o estranho orgasmo: Tomaz gritava como numa batalha, forçando a garganta, penetrando-a com toda força que tinha e tendo o maior prazer de todos ao sentir o pescoço dela se quebrando com a facilidade de um poder que ele não imaginava ter: ofegante olhava ao redor e sentia na exaustão das sensações o suor que escorria junto com seu esperma, misturado aos fluídos dela e no subir e descer, agora de sua respiração, um corpo com um amontoado de cabelos retorcidos e inerte, a sua frente: a cabeça dela estava virada ao contrário... Mas a nebulosidade dos olhos de Tomaz se discipou não só para notar que havia se tornado um assassino, mas também o casal que o observava da porta do seu próprio quarto; rostos estranhos dentro de sua própria casa que testemunharam; muito além do que o Tomaz sabia; uma grande queda e uma nova ascensão... Ele próprio: o instinto A.B.I. havia rugido 883
nele de uma maneira natural como em nenhum outro elemento jamais revelado... Os olhos de Artur encontraram sorrindo os de Tomaz... - Seja Bem-vindo, Tomaz.- O vendedor.” ### - Então, você recomenda o Norte? - Pra você que já conhece os trópicos, é a melhor escolha: a Europa das “bárbaros”.- Giorgiana sorri sedutoramente. Com a visão constante sobre o, agora, visivelmente vaidoso vendedor, ela deflagra suas falsas intenções de viagem para extrair o máximo: explicitamente vê que será muito mais árduo do que com o patético gerente do hotel que ela consumira em 25 minutos da melhor transa que aquele homem já teve, e provavelmente a pior de toda sua vida: mesmo com Franz... O gerente vomitara tudo que ela queria saber enquanto baforava bregamente a fumaça do cigarro: uma ordinária pretenciosidade “Bogartiana” num europeu mestiço semi-bem sucedido que dedicava a vida a puxar o saco dos hóspedes do hotel: sentiu ela vontade de vomitar depois de tudo terminado... por mais de uma razão. - E quanto aqui em Viena... Você pode me 884
recomendar... algo?- Giorgia nota que o rapaz tem a percepção para ver que uma mulher que se dizia sozinha e rica estava abertamente dando uma deixa para a sua atitude. O sorriso pseudoingênuo dava até mais prazer à contenda por mais atenção: de um ao outro... - Eu tenho a melhor recomendação da agência...:- A isca tinha sido mordida. O sorriso satisfeito de vendedor ao ter-se realizado à vista dos colegas ao redor, com uma mulher como Giorgia: a vaidade se confirmava. Ela sabia que ele próprio se ofereceria para o intento... O deslizar do seu corpo vê que também a mais desafio naquilo: a atração do rapaz fica sendo visivelmente considerada pelos olhos resignados de Giorgia... por descobrir os passos de Franz. Ela sente o que mais temia sentir desde que viu o marido na gaveta do necrotério; como uma auto marginalização para com o mundo a que ela pertência: ansiar pelo novo: desvendar e sentir os mesmos desejos que atuaram... livres em sua opinião... sobre o corpo desprotegido do marido: o porquê. Mas mais ainda: a capacidade. - Eu te espero nesse local às nove.- O rosto dela concorda com a ação de Tomaz. Nota ela se levantar calmamente e sair sob os olhares “canibais” dos homens da agência. Renderia mais uma longa 885
quantidade de piadas de mau gosto durante um bom tempo; mas há anos tem de aguentar a inveja maquiada dos outros através de desprezíveis atitudes, as quais ele também aprendeu a desprezar como aos donos de suas pronúncias... A mulher que saia podia ser mais que esse pobre prêmio que esses gaviões tanto invejam: a satisfação de Tomaz começa na possibilidade que ela realmente representa... para ele e para... os outros... A cicatriz no seu peito começa a letejar, como sempre acontece... O mais que vem sempre a cada nova possibilidade... Muito mais! *** (Som de barulho branco) “Direto de Aspen, as imagens:” “O financista Louis Karr estava desaparecido desde segunda-feira última, quando em rede nacional foi exibido um video amador onde foi reconhecida a imagem do respeitado homem de Wall Street sendo currado por um homem desconhecido. O choque em toda comunidade financeira e nas associações familiares só não foi maior que a revolta dos mesmos grupos por serem tais imagens exibidas sem censura no horário nobre em todos os lares do país. Hoje foi localizado seu paradeiro como 886
demosntram as imagens da pequena cidade. Um ato quase que regular nestes últimos anos na América... Testemunhas que estavam no bar dizem que dois dos clientes que estavam no balcão reconheceram o senhor Karr e exaltaram seus alegres espíritos com um grande estardalhaço no bar anunciando que “o lascado” estava na cidade. Com certeza, certo do total anonimato após abandonar o emprego, a esposa e os filhos, Louis Karr não esperava ter de sofrer tal humilhação de dois caipiras idiotas. Ainda segundo as testemunhas, tudo aconteceu quando um dos matutos notou o sangue que começara a escorrer da bunda do senhor Karr e gritou que o pobre homem estava menstruado, provocando-lhe um...” - Ha, ha, ha!- Dezenas de gargalhadas fluem pela redação da CNN. O mordaz texto do telepronto trazia a verdade dos fatos sobre o que acontecera na cidade de Aspen naquela tarde. O telepronto foi produzido imediatamente após a chegada da notícia na sede da CNN... Após a explosão daquelas imagens na segunda-feira, provocando uma estranha reviravolta no mercado de ações e fazendo desmoronar completamente o casamento de Karr, ele fugira de tudo, deixando somente a sombra de um mistério 887
bizarro demais para se querer desvendar... Um dos editores da CNN foi o primeiro a decidir exibir as imagens enviadas anonimamente para todas as grandes redes de TV do mundo: mantendo as devidas restrições morais ele permitiu que aquela estranha verdade (e íntima) fosse ao ar sem saber com certeza que reação provocaria. A legenda da fita deixava certas informações claras, mas ainda assim lhe fugiam as intenções: foi essa a razão mais forte de sua escolha... Curt Novik é um dos poucos na redação que não está rindo do falso copião que fora montado antes até do que foi realmente ao ar: é mais verdade que o que foi exibido, mas o que este constroi nos corações dos seus colegas faz Curt refletir mais ainda das razões de tudo aquilo... Em todo país e até no mundo pessoas estão sabendo e vendo este video feito propositalmente com a intenção de expor a vida do pobre homem; humilhálo; torturá-lo... Tudo, diante de uma das sociedades mais conservadoras e às vezes das mais hipócritas do mundo. Sabiam que Karr seria massacrado por todos: sua família, sua vida... Curt pensa em seu senso de justiça crítico: “Os dois matutos mereceram o que tiveram!” A que ponto podia chegar a crueldade humana... As risadas ao redor dizem onde parte deste limite está... Está com a fita original VHS que foi enviada para a rede: nada escrito: tudo de mensagem 888
além das próprias imagens estão em legendas na fita... Não há remetente e o carimbo é local: da própria agência de correio que fica no prédio da CNN... Não nada, só a vulgaridade e “violência” das imagens e as dúvidas das razões daquilo, que agora resulta nas imagens que são exibidas na tela de forma jocosa e cruel: as razões que levaram Karr a isso... Curt pensa na esposa e nos filhos do homem: “Será que sobrara tão pouco?” “Karr sentiu transpirar por todas as suas dermes a agressividade que partia das suas últimas fontes de sanidade, no desespero de seus atos, na memória de ações que se abateram como uma doença terminal em último estágio. Nunca pôde esperar levantar-se ao mundo diante de tanto contra ele, tendo somente as imagens da família na cabeça: era a passagem para um novo mundo... Como que infectado por um vírus implantado pelos cinco que manifestaram suas vontades sobre ele; sem mágua, sem remorso... O último que resta nele se esvai enquanto a destruição de todo aquele ambiente que não mais possui referência em sua memória toma conta completamente de suas ações: os dois homens simplesmente não existem; são somente as manchas da fuga de Karr de um mundo que o condenou por ações que ele próprio se permite responsabilizar por causa da lembrança não do que 889
fizeram com ele, mas sim o que ele próprio fez... Acima de todo desdém e desprezo do mundo pelo homem que se deixou ser currado... trair a confiança de René... destruir sua própria imagem junto aos filhos; deixá-los orfãos e envergonhados... Acima de tudo não importa mais se conter ou sobreviver: correr livre pelas entranhas da agressividade humana, deixando fluir sem responsabilidade; como os cinco; para dentro de um mundo sem consciência que destrói os dois seres humanos a sua frente, visceralmente, como haveria de ser nessa dimensão bestial: sem mistérios mais, sem mais necessidades por respostas ou sustento; eliminando os temores da mente e os tremores do corpo pelo julgamento... a violência... até não restar mais traços do que eles foram; todos eles: os cinco, a família, esses dois que morrem e o próprio Karr.” “A polícia afirmou que muito pouco sobrou dos dois matutos, e na verdade, do próprio bar. O senhor Karr só pôde ser detido após ser alvejado por diversos tiros dos policiais da cidade: “Morrera gritando como um animal!”- Afirmou um dos oficiais. Após muita insistência conseguimos falar com a senhora Karr. Ela não deu entrevista, só disse que queria esquecer tudo aquilo e ter paz. A esposa do currado não quis comentar sobre a fita... Talvez ela 890
invejasse o marido!” - “Não! Não pode ser tão pouco...!”- Instiga Curt no oceano das dúvidas. *** - Artur... Como está sentido a volta pra casa?Tomaz entra no escritório semi iluminado de Artur. Após o retorno a Viena muitos de seus negócios pediram sua atenção pessoal. Cumprimenta o companheiro sem se levantar da mesa e mantendo os olhos sobre os papéis em cima da mesma... Um indigno sorriso comanda a expressão de Tomaz, mas só ele sabe o motivo real... A outra ligação dos dois esteve no mundo há pouco... - E Andrea?...- Tomaz se senta sem cerimônia. - Está chegando do Ocidente hoje. Aproveitei que ela teria de passar em tantos lugares do mundo e pedi que ela fizesse alguns contatos pra mim... - Não vai trabalhar demais, chefe... Pode lhe tirar o ânimo para coisas mais importantes...- Artur finalmente volta seus olhos para Tomaz: além da recepção à ironia, havia também a reprovação em seu olhar. - Não aqui, Tomaz. - Tá, eu sei... Viu o noticiário ontem?- O sorriso 891
tomou o rosto já meio enrugado de Artur. A magnitude do alcance de suas ações nunca tinha ido tão longe... Sentia-se satisfeito: de volta ao lar e com alto nível de absorção do modo de vida que há tanto não lhe dava tanto prazer; por si mesmo, suas ações, sua imagem; o gratificante resultado do que ele já achava quase que rotineiro em sua vida: ninguém no mundo sabia, mas ele sabia e sabe, e sentiu: sua mórbida presença naquela fita... O sorriso permanece sobre o trabalho: tudo parece no lugar. - Debra deve estar com ego no espaço...- O rosto de Artur muda um pouco diante da verdade da colocação, mas era uma recompensa justa à jovem: nunca na história o prazer da torutra tinha atingido tais consequências, tal distância: foi um tipo de satisfação nova, mesmo para Artur... Principalmente para ele; imagina sobre sua estagnação; o momento morto em que todos estavam: Debra é algo suportável... Artur arruma seu precioso material financeiro e se levanta para acompanhar Tomaz. Livre da preocupação percebe o diferente que toma a feição do grande vendedor. A experiência lhe fez capaz de notar até onde as pessoas estão realmente revelando as razões de suas satisfações: existem aquelas de conhecimento geral que envaidece a todos como uma grande conjunção de realizações, como foi o 892
caso do senhor Karr... Mas algumas vezes homens e mulheres se sentem satisfeitos no íntimo e mesmo não querendo revelar suas razões; seus corpos utilizam uma linguagem inconsciente que coloca emergente tais sentimentos... Artur conhece tais sensações: todos expõem, se sentem bem e se tornam mais imponentes em suas aparências; como que o despejo da vaidade que faz revelar a beleza latente de todos os monstros humanos e a si próprio como princípio. Mas é no caso deles que Artur sabe que pode representar certos riscos: a contenção da vaidade... sempre dentro daquele que a possui: não como Debra... Não é suportável que um só usufrua do prazer. É contra a ética. - Aconteceu alguma coisa mais que eu deva saber, Tom? - Usou uma forma menor do seu nome. Isso não é usual no grupo. É como um sinal de que já se conhece a resposta do que se havia perguntado. Existem poucos momentos como esse na vida desses cinco... Tomaz precisa decidir o que vai dizer e como vai reagir. Tenta se lembrar que é um vendedor... - É que eu fiz uma venda incrível hoje... - Era uma mulher? - Tomaz não sabia se ainda queria fugir daquilo, pelo próprio prazer. Tinha poucos momentos para decidir: tenta imaginar fora da pressão...: talvez não haja perda na sua ação; pode oferecer em tributo depois: algo mais sempre compele 893
o homem a mentir sobre si próprio... É o primeiro passo para o fim. Artur já vê a mentira nos olhos do vendedor... Sente que talvez a fronteira atingida no dia anterior e a volta para Viena tenham trazido novas necessidades ao grupo... Sente-se até um pouco velho por tudo: são vitórias tão pequenas que tem vontade de simplesmente não ligar para o que Tomaz faça... Mas não pode. - Não... Foi um casal... A...- Não importa... No local já estavam Debra e Roger. - Aí... Acabou o agarramento... - E Andrea?...- Os dois se vestem... Era a hora de compartilhar o prazer: Karr e a família. - Está viajando... ### “Andrea sempre viveu uma vida distante; de nós ou mesmo dela própria. Um hábil e misterioso laconismos... Eu recordo do meu último ano em Amsterdã: estava fechando a filial, a única que dava prejuízo... Foi no ano do auge da praça livre. Os anos A.B.I. me faziam admirar e frequentar como observador o mundo zumbi desses pobres que inocentemente fogem da dor da vida, simplesmente para alcançar mais dor ainda no retorno de um 894
mundo que insiste em não existir, apesar de ser tão desejado: ignorantes. Nunca aprenderam a tornar a dor a amiga da mais torturante das solidões: não haveria viagem melhor: estimulado tudo no corpo, sem realmente precisar parar de sentir cada sensação da realidade... Foi a primeira época que realmente vi o Inalcançável no rosto daqueles zumbis (eles nem podiam sentir) e a sensação morbidamente bizarra de suas deteriorizações me levava a certeza de continuar a busca... Foi na pequena enfermaria da praça que a via: uma médica que vestia preto e tirava a esperança; mas para tais pacientes... não havia necessidade. Não era tratamento. Só eram tratados poucos em overdose, trazidos por amigos, que por razões infinitamente fora do meu entendimento, mas fluentemente dentro do meu prazer, traziam tais miseráveis almas de volta à vida só para levá-la de volta em outra contínua viagem para o vazio: era uma forma de tortura... Andrea aplicava com prazer a agulha de adrenalina nos nervos e vasos exatos para a volta do despertar do infeliz: sentia prazer silenciosa... Na verdade só ouvi a voz dela depois de cinco dias frequentando a enfermaria... Eu a via sentada; alta, com longos cabelos negros e as roupas continuamente pretas; esperando que mais e mais zumbis viessem a ela, 895
a procura de seringas descartáveis, borrachas de enlaçar e queimadores... Comumente ensinava-os a usar os apetrechos médicos e tão frequente quanto, os via voltar com agulhas quebradas dentro das veias, queimaduras no rosto e hematomas diversas... Sua habilidade no mapa do corpo humano parecia ir muito além do que um médico pode querer ir... Por tempos não consegui entender porque ela havia se oferecido para trabalhar naquele local... Hoje sei... E ainda assim seu rosto parecia morto, triste, diante do que fazia, mas não a consternação que atingiria qualquer mortal que tivesse de conviver com aquilo todos os dias... nem holandesa ela era... é. Foi só nos pequenos passos que dei ao conhecê-la para entender o que vinha por trás daquela instigante motivação: era uma médica, que a longo; ou curto, como sempre foi mais comum; prazo trazia a morte aos seus pacientes, uma morte lenta, dolorosa, dependente de artifícios para se guardar da verdade de que a mesma não está chegando, e no quanto mais se foge mais perto dela se chega, até que a porta se escancara na frente deste pobre ser... Andrea vivia nesse mundo e parecia ter origem, parecia ser isso: a razão, os motivos de uma estranha paixão... Não carne a ser exposta... Sempre foi e ainda é uma expressão a ser decifrada... E que sabe provocar dor como ninguém... Observar e servir 896
uma vida A.B.I. Algumas vezes eu a temo por tanto que ela consegue causar: um triste fato da triste expressão que ela consegue conceber: me deixar feliz.” “Quando falei com ela; largou o livro que lia, o pôs aberto para baixo marcando a página na cadeira onde estava (ficava) sentada, veio até mim, pegou minha mão esquerda, espalmou-a e pôs um kit de seringa e agulha sobre... A frieza em ser a guia do último caminho para o Inalcançável... Foi o momento em que me apaixonei!” ### - Droga de CNN... Não mostrou quase nada. - Não sei do que você está reclamando, Roger... A gente nunca tinha ido tão longe... Só famílias tristes que nem cara nós víamos...- Artur observava o prazer no rosto arrogante de Debra com a discussão de vaidades entre Roger e Tomaz... Era um momento de regozijo para todos: aquele algo mais alcançado por todos nessa situação merecia ser apreciado mais que uma noite, como é de costume... Não há preocupação com corpos e etc... somente o prazer da consequência inconsequente da dor causada dentro do corpo e do coração humano... As imagens da família Karr 897
correndo de repórteres completavam ainda mais a sensação do quanto havia sido atingido: tudo gravado; um arquivo magnético que devia ser aproveitado ao máximo antes de ser destruído: apesar de muito agradável, também é muito arriscado; tais imagens no poder destes... - E então, Art... O risco valeu, não valeu?Debra já sabia a resposta; somente seu ego ainda queria ouvir mais um elogio: cansativo e repetitivo... - Claro que valeu, Debra... Sempre vale...- Mas o olhar de Artur dizia o bastante... Era agora preciso pensar no que vinha a seguir. - “Queria que Andrea estivesse aqui...”- Estar com Andrea sempre é a sua maior segurança quando tem de confrontar-se com o tão “fértil” e jovem casal (Debra e Roger); mas é uma insegurança nunca exposta: muito mais que um líder, garantir tal modo de vida sempre terá que ser uma prioridade; mais que temer um julgamento, é o medo do vazio... - “Droga... Ele sempre está na borda de nossa eterna possibilidade de queda! Odeio isso!”- O que no final afinal? ***
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“Imagino: se as nuvens fossem partes do corpo de Deus, será que não doe quando o avião atravessa essas massas brancas de algodão celeste... Detesto imaginar que realmente há alguma coisa lá julgando a todos nós: o que ele pode saber... não sente o que nós sentimos, vivendo no lixo todo o tempo; vendo, ouvindo, sentindo e no fim apreciando tudo... Como Deus espera que não comecemos a gostar da dor se é ela quem está sempre junto quando simplesmente ansiamos a paz. Talvez seja este o verdadeiro prazer proibido... Espero que estas nuvens rasgadas realmente o machuquem... do mesmo modo como estes pensamentos devastam a minha cabeça...” Andrea corta os céus da América na mesma velocidade e altitude que seus obscuros pensamentos levam a sua consciência do que realmente é, ou onde realmente está. Sempre dentro da distância que a flui deste mundo para outro mais caótico ainda, no qual ela consegue se sentir muito mais a vontade, a médica da medicina do esquecimento conhece suas missões e obrigações através do mundo; sabe que Nova York é o novo e o último ponto... Mas é só um trabalho: se sente confortável trabalhando para Artur, e mais confortável ainda por estar longe dele, longe de tudo... São os momentos únicos e constantes que a desfaz da realidade pelo que já conhece há tanto tempo num 899
mundo tão estranho a ela, quanto ela mesma é dele: esse mundo, que se faz sem mistérios, mas viaja cada vez mais fundo para um caos sem resposta... e provavelmente por isso Andrea se perca tanto nas confrontações de suas necessidades: o negro, a dor, o caos... o vazio de seus olhos solitários dentro de um avião cheio de pessoas que... anônimas... também fazem parte dos seus pensamentos: sempre triste parece sempre ser a resposta mais simples... Mas a viagem continua. Da primeira-classe para... “Nem sempre é trabalho!” Não seria sempre instigar que provocaria tal “insana” busca no desconhecido da dor pública de uma família... Procurar as respostas e não fazer respostas: o jornalista acredita na exatidão da realidade, o racional do que é visto; o sentimento como passa-tempo... Mas a realidade é a coisa mais relativa que há... Aquela moça que devaneia-se sozinha em seus próprios pensamentos na primeira-classe conhece a realidade de um modo completamente diferente: talvez ela conheça mais por saber menos... O senhor Novik nesse lado questiona os extremos; o que é a procura do todo, mas há algo mais, e lhe deixa pensativo também o não saber, como a todos. Incomoda... como tudo que é para ser 900
racional e não é: procurar respostas; nessa viagem... pois sempre o porquê lhe vem fugindo: a dor daquela família. Dois no mundo. As diferentes imagens da mesma viagem... E eles não sabem... Talvez nunca saibam... Talvez nunca precisem saber... Talvez não gostem da resposta. Novik faz um reflexo de todos os rostos que já cortaram seu caminho; nunca pensou como seria difícil... impossível contabilizar a real quantidade de diferenças e caminhos... A sua própria história faz parte; é um dos grãos que forma a enorme cultura que se amontoa ao redor do mundo sem a mínima ideia das razões... Imaginaria se todos não estão pensando nisso nesse mesmo instante em todos os cantos do mundo: uma grande união subconsciente que questiona ao mesmo tempo a mesma pergunta, só que cada um dirigido ao seu próprio mundo interno... São como esses outros rostos que o cercam dentro do avião: dentro do íntimo de cada um desses passageiros se escondem incontáveis mundos em forma de interrogações e reflexões; das mais ingênuas às mais profundas que a desenvolvida filosofia humana pode conceber... até agora... Mas então porque uma tão incômoda dúvida persegue o introspecto jornalista na busca das razões para as coisas acontecerem como 901
acontecem: somente um deus conseguiria visualizar a racionalidade de tudo isso, ou talvez nem mesmo eles estejam aptos para entender os caminhos das próprias criações... Só resta a ele então prosseguir... na total ignorância do que vem a frente e sem ainda entender o que acontecera antes; num ponto morto das possibilidades. O mundo de Andrea duas classes à frente é o melhor exemplo: dentro dela como nos mais fundos dos poços; somente preenchido pelo seu estranho vazio. *** - Droga! Que diabo eu fiz? O que estou fazendo?- Tomaz vem se lamentando desde o instante em que expôs sua primeira hesitação a Artur. Era óbvio que já sabia que algo estava para acontecer; algo inconsequente e vivo... Mas o interior de Tomaz pedia uma recompensa individual nesse plano. Estava nas palavras que iria dizer essa realização que no momento aguarda: eternamente se sentirá agradecido ao grupo por lhe oferecer o caminho que vive; nunca se sentira tão ajustado... Mas ainda assim ocultara o encontro que já começa a tomar forma nessa noite: “Talvez possa levá-la a eles depois...” Mas Tomaz conhece seu 902
instinto... O que os unira poderia se tornar o motivo de um doloroso afastamento: detestaria admitir isso como opção; odiaria voltar a estar sozinho; inseguro num mundo que já é visualizado completamente estranho à ele, como já o era antes: gosta do que é, gosta do que faz, um apêndice solitário que só quer ser o que é... Giorgiana chega à frente de sua dúvida; pronta para afugentar os problemas e trazer realizações e satisfações... Eles se observam com poucas palavras na procura de ambos em chegar nas fases opostas de seus projetos. Giorgia se apresenta com gestos mais livres em suas intenções. O vazio de procuras em sua vida a deixava mais preparada para tais abordagens do sub-mundo da libido humana... Tomaz conhecia um mundo desconhecido: certamente bizarro, mas aquela “infidelidade” o estava tirando a liberdade: “Por que fiz aquilo?” - Insistentemente se pergunta... Somente o clima de Giorgia o mantinha nesse caminhar; ainda é o vendedor... e homem. Não é noite para muito antes... A conversa. A caminhada. Enfim... Muito de muito pouco vem à mente de Giorgia nesses momentos: o vazio penetrante que surge 903
nos seus poros quase que adormece a sensação da verdadeira penetração. Confundem-se o sorriso morto de Franz, com os sorrisos estúpidos de incontáveis companheiros de cama e com o sorriso falso desse que a possui... O empenho dele faz recordar jovens ansiosos pelo desconhecido sexo das virgens, mas ao contrário ele sabe o que fazer e o que tocar com a mesma fome daqueles anos. Seu vazio e seus pensamentos vinham cada vez mais inseridos àquela situação: lembra do nojo que sentira do gerente; pensa no que realmente está procurando e como o que realmente surge é Franz... Em tantos anos, em tanto desperdício e aprendizado sobre coisas no corpo que afugentam a moral da alma; e algumas vezes ela se sentiu sem alma; e agora não é um desses momentos... Há prazer no que está fazendo; seu corpo lê a doce visita daquele homem desconhecido dentro dela como algo de bom... Talvez hormônios demais a estejam entorpecendo, mas sente sua alma voltar ao corpo... continuar a ceder ao estranho: no gosto de suor, no movimento, na inversão dos pesos... Talvez tenha procurado a coisa errada no lugar certo, Franz está morto... Ou talvez tenha simplesmente encontrado o que nunca imaginara que podia existir: conhecimento humano... Um verdadeiro ser humano e que nem se conhece. 904
Nada de palavras. Tomaz imóvel abraça o corpo silencioso da parceira. Ambos de olhos abertos somente dignos de seus próprios mundos... Sentia em seus braços o incômodo conforto da preguiça e da dúvida; transbordavam pelo fundo de seus olhos: a mulher ao seu lado: “Giorgiana. Quem é você? Imagino em que extremo ponto nós chegamos hoje... A distância que alcançamos em nossas ações dentro de um mundo tão estranho a todos, mas que por quase sete anos foi mais próximo que a fugaz família que tive: erguido por mim mesmo naquele mundo que exige tanta competição, mas no fim nenhuma razão para tanto. A dor faz parte da minha vida há tanto tempo que não consigo conceber uma vida sem essa tão única fonte de prazer... Talvez isso seja a continuação de um sinal que eu não consegui perceber mais cedo: “Artur não prosseguiu a sua repreensão.” E ambos sabemos do risco de tais atitudes no grupo; mas... mas o risco também é parte do prazer: e o que é isso, então? Prazer! Essa mulher... Ela absorveu cada novo movimento meu; só me gerou o melhor; me acompanhou... Fazme pensar na obscuridade que aproxima Artur de Andrea, e na vivacidade e energia que uni (e muito) Debra e Roger... Eu sempre só quis o calor vivo da 905
dor... Porém algo de diferente surgiu hoje: desde as imagens compostas de dor proporcionadas por Louis Karr, originadas por nós, tanto tempo depois; o meu confronto com Artur; e agora isso: talvez Giorgia se junte a nós; provavelmente não; talvez eu me junte a ela... Talvez tudo precise de extremos para evoluir... Mesmo as abominações que rondam a Terra... Eu chego a me sentir inocente com tais pensamentos... E livre. Quem é você, Giorgia? Sou eu.” Alguma coisa falta nas consciências desses dois que os faz querer prorrogar por tanto tempo a necessidade de ficarem juntos em seus silêncios pessoais. Como se fosse o prévio conhecimento da inevitável diferença de caminhos que os cruzou nesse momento de tão grande prazer, mas que na verdade é o anúncio de algo novo: são as verdadeiras imagens do que cada um está representando nesse instante tão íntimo; suas verdadeiras faces que são negadas pelo silêncio, pelo medo; pela certeza oculta de que estão em lados opostos, em uma batalha que nunca começou: um não-homem e uma não-mulher... pela única vez. Acordados. - Eu sempre me achei meio indiferente ao resto do mundo. 906
- Isso não é tamanha razão para recriminações, Giorgia. As pessoas só tentam ser o que são... A consciência é uma coisa relativa à vida que se vive. - (!!) Eu achei que fossem apenas palavras. - Geralmente são... Vendedores... (Tomaz dá um confortável sorriso)... Eu não sei o que há realmente por trás de tudo aquilo... Falsidades de uma vida sob convenções. - Como nós... Estranhos!- O olhar dele não se distingue entre o desmascarado e o melancólico: parecia a verdade em três palavras; e a revelação sobre a vida que todos levam. - É. Estranhos... Eu... me sinto estranho.- Sem dúvida... É o medo do novo desconhecido que está começando a tomá-lo; como um vírus; imperceptível e letal. Não havia o refúgio na ironia de um vendedor, somente seu próprio ser. - “É... Eu sei...”- Giorgia fala para si mesma, perdida numa incômoda insegurança: nunca ouvira um homem falar tão bem depois de uma transa, ou mesmo em qualquer outra hora... Eram realmente completos estranhos um para o outro: era um vendedor e uma “gostosa”; mas agora são interrogações particulares... Somente agora no absurdo de suas intenções e esquecimentos de um mundo real é que a verdadeira sensação de plenitude surge... Não se conformam... 907
Ambos temem o que pode vir a seguir, pois ambos têm o que esconder... Apavorados, mas curiosos... Simplesmente ficam abraçados: mundo com mundo, mas na verdade sem se tocarem... É dia. O quarto de hotel de Giorgiana começa a ser inundado pelo sol. As anti-virtudes de um mundo corrupto sendo purificado pelo brilho de um novo dia que enxágua das mentes adormecidas as dúvidas de suas misteriosas existências num mundo que não lhes pertence. Tomaz e Giorgia começam aos poucos a se recuperarem das distâncias dos seus últimos sonhos e a sentirem as texturas de suas peles. Movimentos lentos e sem direção conduzem seus instintos um para o outro, como haveria de ser, longe das dúvidas que tanto adiaram o sono do prazer da insuperável noite que vinha pelas costas de suas memórias, os fazendo revivênciar o toque, na carne... Tomaz toma-se sobre ela; sente-se confortável à penetração... Talvez no ainda adormecido da sua consciência, põe-se à vontade nos seus velhos e familiares instintos. O prazer da posse visceral e a satisfação de ver as expressões de uma parceira sem o temor do novo ou o pavor do sempre como é muito comum de ver após as revelações de uma noite recente... “Então ela gosta afinal do que mais eu posso 908
apresentar. Imagino que de uma maneira indireta essa mulher tenha achado seu lugar nesse mundo de seus vocabulários difíceis e estrangeiros: talvez levála; talvez suprimi-la aqui mesmo... Não... Eu sinto novamente a pureza.” Quando em um universo de perguntas sem respostas concretas, onde os desejos têm vida própria e exalam pelos poros destes seres humanos que contorcem seus corpos como animais selvagens tentando esvair-se de dúvidas tão perturbadoras que os tiram das legítimas direções que haviam se decidido na vida; coisas tão incertas como o dia seguinte mas que ao se racionalizarem as possibilidades apreciadas por seus olhos, tais se apresentam com tanta perfeição que nada mais resta a não ser ceder ao “destino”... Mas esse momento é diferente e os tira dos seus caminhos; sem perguntas e sem respostas: Giorgia sente o sangue dentro dela pulsar a satisfação presa em vidas de frustrações; e Tomaz sente o poder de seu corpo, a beira do Inalcançável, a união de tudo que ele conhece com tudo que ele sempre desejou... O alcance de um estranho vazio de expressões e rostos, mas totalmente preenchido por um calor sem origem e sem direção... Parecia ser a completa equação A.B.I. no seu sentido de vida e existência: a dor, a culpa, o prazer, a alegria, a tristeza, a frustração; o máximo 909
alcançado dentro de faces mortas e por nascerem; o fim de seu ser próprio, a perfeição à sua feição... Tomaz, Giorgia, a luz, o calor... agora somente um mundo. *** Há um perpétuo fascínio pelo desconhecido nas mentes daqueles que buscam mais razões que o que é possível se ver ao se olhar o mundo. Algo nas dúvidas dos temores e da face da morte nas jornadas pelo universo que o homem teima em querer conhecer, quando simplesmente só deveria fazer parte... Por quê essa compulsão às vezes tão nociva de encontrar novas formas de sentir e de viver? Formatos de uma estranha evolução; mórbida purificação através do conhecimento; conhecimento do nada: é o ser humano: protege o que é, mostrando o que nunca foi, tentando revelar o outro... Devia simplesmente ser o que é... O luxo vertical do prédio à sua frente indaga continuamente sobre as razões para estar aqui: são razões que buscam razões... Dito Curt Novik a si mesmo; mas mesmo a busca do racional parece ser irracional quando se passa por um rosto lamurioso e sem destino que vislumbra um mundo vazio a sua 910
volta: as pessoas na rua, faces sem vida; o verde do Central Park, o opaco da falta de sentido; o “glamour” da Park Avenue que ignora o rosto dessa mulher, sem saber que há poucos dias atrás contribuiu indiretamente para sua profunda e exposta aridez para com o estranho ambiente que a cerca. Curt acompanha os lentos passos da senhora Karr até a entrada do prédio. Seus filhos, um em cada mão, solidarizam a tristeza da mãe: apesar do esforço, em algum lugar, em algum momento, alguém deve tê-los permitido assistir às bestialidades paternas: na ausência e na vergonha que ele provoca... A família desolada sobe de volta para o luxo vazio de seu apartamento; somente sendo refletido por esse que observa ainda em dúvidas das razões: o âmago da tragédia que se tornou a vida de um homem comum... Curt veio decidido a querer saber, mas mais se aprofundava o medo do desconhecido: ainda compelido, mas cada vez mais receioso com as possibilidades dos porquês... desde o momento em que teve aquela fita nas mãos. Atravessa a rua. O cheiro da riqueza o recebe no “lobby” do edifício. 601. É a primeira cobertura. O brilho da nobre madeira se abre para os olhos de quem quer ver mais do que uma herança: um verdadeiro legado de lembranças (alegres), mas que 911
entristecem amargamente seus possuidores... A criada o guia até um dos cômodos do que mais parece ser um frio e silencioso túmulo onde restam as cinzas de uma cara família... A senhora Karr é o composto de uma expressão indecifrável vinda de uma longa caminhada em carpetes espinhosos distantes da eterna maciez de uma vida regular: o marido, os filhos, estar na vida, sem se preocupar em ser a vida... Olha prolongadamente o seu alvo de questionamento: “Como o marido pôde ter “cedido”?”... Mas a responsabilidade dos fatos e da dor vinham na sombra da necessidade da pesquisa: foi o primeiro a exibir: o espetáculo antes... agora vê as consequências: imóvel em seus pensamentos obscuros, como as últimas chamas de uma vela pronta a apagar... -...Senhora Karr... - “...5...4...3...Viena... Desgraça...”- A decida no elevador abrasava a raiva e a náusea: uma incrível revolta perante tão tortuosa situação. Curt sabe que tem culpa; como todos em volta, como todos no mundo, nos bares e guetos, festas, ruas e taxis... O inferno de viver cada dia sem saber a resposta, fugindo das perguntas, tendo que eternamente lembrar da expressão sem vida daquela mulher, se desculpando intimamente por estar vivo e o marido dela não, por existir e ela “não”. Tudo começou a mudar quando 912
ele voltou de sua viagem pela Europa, partindo de Viena...: tão simples... - “L”- A porta do elevador se abre. A luz da tarde nova-iorquina invade seus olhos distorcendo a iminente visão que coexiste em movimento na calma e elegante entrada do prédio. Aproximando-se ainda na regência da estranha revolta dentro de si, o hesitante homem dilui e conflui seu raciocínio na conclusão para aquela tão desconfortável situação: um denso momento de apresentação do que pode vir a ser a real apresentação da procura e da responsabilidade; tão rápido quanto a sua atitude ao viajar para cá, visitar a interrogação maior de toda questão; trazer ao extremo tudo preso no interior humano afastado do seu sentido e vitalidade; a dedução; o círculo e a confirmação... Sentia seu corpo vibrar em capacidade; gritar por tudo aquilo de somente terrível que conseguia ver; sente aumentar em cada passo: podia destruir tudo e todos no mundo para não ter mais nada na cabeça além de lembranças da infância: o primeiro beijo, os grãos de areia em mãos pequenas e sentir o coração bater ao olhar por um buraco de fechadura... Sai do prédio; dá somente uma rápida olhada: parece até se mexer...: seis andares... “Não! Não mais! Não quero acreditar!” Vira à esquerda e anda seguindo cada passo como o peso de cada nome que já viu ser pronunciado como 913
morto, em todo mundo, em todo país, em sua cidade, sua família, sua vizinhança; a mulher com quem acabara de falar sobre o marido humilhado e morto... e que agora parece também estar morta, um minuto e meio depois, saltando pela janela, alcançando a rua antes dele; desistindo; talvez com sua ajuda, com uma mão a mais para pesar em sua queda enquanto vinha de elevador... Não quis mais ver. Tudo só fez aumentar ainda mais a pergunta; sua extensão... - “Deus...”- ...O desespero e a insegurança; uma pedra presa na garganta, fazendo doer todo o peito, travando a respiração e fazendo a “alma” doer por estar em um corpo vivo... *** - Por que você demorou tanto?- Andrea anda calma como sempre em direção de Artur. Sua pele branca e gelada extremece o interior sempre tão confiante de Artur, ao senti-la, o beijo da volta dentro daqueles olhos tão escuros e misteriosos quanto lindos. Quase lhe tirando o fôlego antes do fim. - A escala em Nova York foi demorada.- A banalidade não tira o grau de tortura daquela voz que se ergue em sussurro por entre os cabelos negros como uma fria noite sem lua. Volta a extremecer o 914
interior do poder... Nas duas últimas semanas Artur teve de suportar os agarramentos de Debra e Roger sem a companhia tão extremamente ausente de Andrea... Sua sala de trabalho tão somente ligada à sua função se resumia à presença dos dois no momento do reencontro... Ainda olha essa mulher com receio por sua expressão tão arraigada em si própria. Nunca soube realmente o que ela estava pensando em momento algum desde que se conheceram, é somente hipnotizado por sua expressão de liberdade nos momentos viscerais, ao expor o pedaço mais ardente do seu interior; e completamente desarmado nos momentos como este: de uma frase, um toque e uma interrogação... “Parece não pertencer ao nosso mundo, Andrea; e por isso eu sei que não digo; mas eu amo você e tenho medo de você, com pesos indistinguíveis... Talvez por ser esta uma tortura maior que qualquer outra...” E ela sorri: uma perfeição impenetrável, mas parece enxergar pelo lado contrário... Trocar olhares e a translúcida mensagem nos olhos deste; tudo em que ele está pensando e em tudo que pode haver em volta da ameaça... - Nós temos um problema. - O quê? - Tomaz sumiu desde terça-feira. Acho que ele 915
foi embora com... alguém. - E Debra e Roger? - Mandei investigar... qualquer coisa.- Encarar a situação significa admitir uma “deserção” no grupo, o que pode sempre vir a acarretar na exposição ao mundo de um modo de vida anormal, desajustado e psicótico... totalmente vivo nas rotinas de cada um desses, por tanto tempo... É a separação, a volta ao “desajuste”, ao deslocamento, à solidão... - E outra coisa... Perdemos o contato na agência de turismo... Vamos ter de parar por um bom tempo.Nos olhos escuros, os olhos claros; e a racionalização: o que são frases realmente normais à um mundo que não enxerga a própria insanidade de normalidade vivida a cada minuto em cada imagem na rua, em cada “frame” de TV e em cada rajada de ódio contido... “O que vamos fazer?”... Seu lindo rosto é a fortaleza da lembrança: Andrea recorda... ### “Era um mundo de posteridade bravia que teimava em reconhecer os maus quando vivos e os bons quando mortos. Ter me tornado inconsequente em relação ao estúpido mundo que me cerca e me julga vem daquele primordial pré-julgamento das 916
relações humanas quando mais me decepcionaram os relacionamentos de mentira... Arrastados há muito tempo em minha terra natal, ainda durante a escola de medicina, eles iam e vinham, muitas vezes o mesmo de antes; mas numa interna procura do que realmente procurava nas almas deles, cada vez mais sem alma, mais distantes... semelhantes lúcidos dos mortos-vivos que encontrei depois, aqui na Europa... Sempre foi como lidar com o mesmo tipo de gente; porém estes, mesmo inconscientemente na época, eu sabia que estava ajudando a exterminá-los, em suas fugas e frustrações; fraquezas geradas por um mundo sem controle... enquanto aqueles eu tinha de suportar, até quando tudo aconteceu e eu vim embora... É provavelmente a última lembrança boa que tenho, e provavelmente a primeira ruim: pré-concebido seu maldito julgamento, sua própria fraqueza, sua falta de confiança, seu excesso de honestidade... a falta que você me faz...: deveria entender um pouco mais do comportamento humano e feminino, seu tolo, perdido em si mesmo; nunca me deu a chance de ser “normal” antes de tomar sua própria decisão; moldando a transformação para o que sou hoje e me deixando igual a você; o que você era, sua posteridade; a transposição humana de toda aquela agressividade e amor que você não pode demonstrar, sua impaciência 917
e tudo aquilo que me faz sentir prazer por nós dois ao nos vingarmos do mundo que nos julga e nos condena... Não posse deixar acabar, e você virá sempre comigo...”
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A dualidade de intenções na inexpressividade de um rosto que se esconde na própria beleza e própria tonalidade de mistério e necessidade que manteve sua tão sutil e ao mesmo tão dominante presença em todos os momentos de uma vida que ela própria só passou a identificar-se no instante seguinte de uma dolorosa perda; foi a absorção e o encontro do seu verdadeiro fator de personalidade e desempenho diante do modo de vida dito normal... E tudo fechando-se no círculo ao encontrar este que a observa com calor, desejo e temor; Artur; trazendo-a para uma sub-vivência que finalmente lhe propunha uma verdadeira e única forma de expressão: de dor, agressividade e evasão: uma predadora do descontentamento humano, uma vitoriosa da derrota, uma obstinada. No retorno ao cenário dos acontecimentos o 918
telefonema vinha com Debra e Roger recém indicados na agência de turismo: três dias, a última cliente e o hotel... *** Margear o Danúbio se torna uma das metáforas da procura desse casal em torno de sua vitalidade inabalável diante dos problemas; são sempre presentes no grupo, o estilo de vida, a escolha fácil, a admissão do real ser dentro de cada um... É a tristeza e a falta de visão que caminham junto a todos aqueles monumentos da natureza e do homem que prosseguem os vivos e penetrantes olhos de Debra: toda sua imaginação e diversidade nas certezas das escolhas e nos passos ao lado de Roger; nas eternas lembranças do Egito e no medo ressonante de tudo ter de parar menos de dez anos depois... Jovem, muito jovem, e livre ao se ver levando um estilo de vida ignorado pelo mundo, pela vaga memória de suas origens de fuga e sobrevivência dentro da falta de sentido, e o ser a ser encontrado por si mesma... O Danúbio, a Grécia, a Europa. as realizações, a capacidade de atingir estágios da natureza humana esquecidos há muito tempo pelo medo dos verdadeiros prazeres. Debra nunca teve outro jeito de viver; seria inadequado a 919
tudo, ou melhor, nada seria adequado a ela: a pedra que ondula as águas do Danúbio, e teme o vazio sem dor mais que a própria morte; e por isso vem a frase: “Nunca é trágico morrer pelo que se ama!” Amor... - Que vamos fazer, Roger?... Me sinto perdida... Traída...- As palavras jorravam sobre Roger como o grande participante do jogo do momento: conhecia Tomaz demais para imaginá-lo fugindo com a mulher que encontrara na agência; não vinha no seu costume, desde inúmeros “happy-hours” até as conquistas e descobertas da Europa A.B.I. que eles próprios haviam construído para se suprirem: o que realmente parecia haver de errado na situação; a hesitação mencionada por Artur no dia do seu desaparecimento; seria como o símbolo do real limite que tais criaturas haviam atingido. Roger compreende a situação da companheira: com tanta energia, foi a última a entrar, perder tanto em tão pouco tempo e por razão de uma decisão tão inconsequente... Talvez seja o que eles vêm fazendo a vida toda, talvez Tomaz seja o primeiro de muitos a completar a evolução: o Inalcançável... Ou talvez esteja simplesmente sendo racional demais, tentando evitar a verdade e no fim sentindo o mesmo que Debra: um verdadeiro “porre” de verdade e insatisfação; e admitir que o fim é somente o fim... Os fatos não escondem o medo. 920
- Não sei. Parece a construção de um drama que há muito tempo vem sendo antecipado por Artur e sempre negado por nossas mentes e necessidades tão adversas a esse mundo.- Debra constrói uma expressão totalmente desavisada de completa perplexidade. Roger profetizava o que qualquer coisa podia vir por entre os mistérios daquela partida: como Artur dissera... - Eu quis dizer pra gente encontrar novas vítimas?! - Não deve dizer... vítimas... Eu não sei... Em todo caso temos um ao outro...- Ela dá um frio sorriso de entardecer no final do verão. - Trepar não basta, Roger.- A revolta da resposta soava compreensiva pelo que conhecia dela. Não era bastante mesmo, mas uma consciência mais apurada e racional podia ver melhores perspectivas por detrás dos piores horrores; analisar as condições do desaparecimento de Tomaz, cruzar com a evolução de tudo nesses anos, a lembrança de Debra no Egito... Tudo talvez entregasse a Roger a missão de ver e oferecer à sua companheira outra opção de Inalcançável... mesmo dentro da grande dúvida, do futuro e do que é realmente a normalidade. - Quer saber, Debra... Vaa´zhii. (Ela pára de andar bruscamente e olha-o) O que quer que 921
aconteça... eu serei sempre o mesmo.- Aquela palavra é exclusiva para as sessões e sua pronúncia trazia do interior a segurança e a força de volta; a viva fome de Debra; a agressividade e o ser... Eles seguem calados. Em direção ao hotel. E algo familiar estava por vir. *** O interior de Artur lhe serve para informar de toda a sua experiência num mundo sempre tão aberto às motivações dos espíritos humanos através dos tempos nas entranhas da verdadeira e brilhante sociedade que se forma e se desenvolve ao redor dele e dos seus companheiros. Talvez nunca tenham sido tão unidos como havia por tanto imaginado; distante das tão tentadoras realizações simplistas que a vida apresenta: um dia todos são contaminados e gostam, e aprendem que há mais... O que informa é que uma grande mudança está acontecendo. Quando vir de primeira mão as novas notícias e o que isso influi nas atitudes a serem tomadas: a tortura da ausência, o “amigo”, o prazer da fuga e o choque com um novo tipo de violência... Um círculo de cinco quebrado e uma sensação de descontrole e desconhecimento emergido nesse novo arco restante: do Absurdo e o sexo das bestas animais que surgem no enegrecimento da alma; 922
do Bizarro distante da sociedade, que visita sua casa insuspeitamente e nunca ultrapassa o revestimento do medo que é encarar o que realmente acontece do outro lado; do Inalcançável afinal, talvez, da dor e do desaparecimento... Na espera pela informação.
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“O verde brilhante do Central Park me faz lembrar porque escolhemos morar aqui no centro ao invés do campo: uma imagem totalmente paradoxa dessa louca cidade que enlouquece a todos e traz às mentes desejos obscuros de ascensão e vitória... Meu querido marido conseguiu ambos e na verdade nunca soube porque dos tão perdidos e deslocados sorrisos no mundo dos honestos espelhos da sociedade financeira que só refletem o que as próprias realidades e desejos imprimem em seus corações... Louis nunca teve o coração morto, mas fazia parte de todo esse jogo e tinha que sobreviver por mim e pelas crianças; o que agora não representa mais nada... Ninguém entende, ninguém nunca entendeu o que realmente acontece; ver-se livre das responsabilidades e das consequências: todos acabam encontrando uma maneira... e o que eu 923
posso dizer a você caro Louis é que eu perdou você, pois o único imperdoável é aquele que não consegue enxergar o que existe de realmente simples nas ações de cada um; sem razão e sem motivo... sem destino.” No cúmulo do cansaço de seus julgamentos e pensamentos. As contínuas análises do que o mundo lhe apresentava: as perguntas de um desconhecido e a infinidade de coisas e criaturas que habitam todo vazio do espírito da senhora Karr... Um único e verdadeiro surto de clareza e sanidade na beira do seu ato mais insano: um ponto final à beirada de sua varanda e um último pensamento pelos filhos e pelo marido... Se joga e vive. *** Quanto mais tentativas de justificar as ações dessas estranhas criaturas surgem à frente das investigações e incursões pelo sombrio da pesquisa jornalística... Mais e mais vem lhe aparecer outra imagem; uma verdadeira vertigem do que realmente vem lhe impulsionando nessa jornada tão cheia de interrogações que só se desdobram em mais perguntas que parecem somente trazer respostas que apavoram a si mesmo... pois é sempre dentro de si que surge o mais elementar dos seres: é sempre a imagem 924
da mulher caída no chão em frente ao tão luxuoso edifício logo após ter lhe revelado tão pouco, mas na verdade exposto nela própria e em si logo após a decisão de ignorância e persistência no “erro” que mais uma vez vem a confirmar no interior da alma confusa de Curt na sua primeira imagem sobre a Europa e ao chegar em Viena sem ter a mínima idéia do que realmente está procurando ao penetrar num mundo tão estranho e ao mesmo tempo tão familiar e atraente... Ele simplesmente enxerga a si próprio nos moldes das atitudes dos desconhecidos; como todos os seres humanos ao estarem diante de uma porta aberta, nova e que na verdade só o faz encontrar a si mesmo. A pequena mala o acompanha na reconstrução do caminho do senhor Louis Karr pelas ruas antigas e bem conservadas da milenar capital das tradições culturais europeias. Não é difícil para uma imaginação fértil e curioso perceber o que pode ter acontecido a partir desse ponto na jornada turística do senhor Karr para enfim se deixar “violar” daquela maneira: soava como algo de visão simples que podia ser facilmente planejado e executado, mas que por razão de diferenças de ângulos, nada se nota, nada se vê e “eles” se mantêm até que alguém veja tudo de dentro para fora: fazer o que Karr fez...!!? Perseguir os vultos 925
que aquelas imagens tanto persistiram em indagar ao próprio Curt: “Somos nós!” “Venha nos encontrar!” Nos sons e ecos do sofrimento duradouro sobre a família Karr e sobre sua face oculta que acompanha os passos pela velha cidade em direção do mais óbvio a se investigar: a agência de turismo que planejou a viagem do financista e que terminou por levá-lo a pior das degradações... Porém permanece a dúvida; na história, no fato e na contradição da busca. *** - E você tem alguma ideia para onde eles podem ter ido? - Não, Artur... A cabana de pesca era a minha última opção. - Roger... Voltem logo... Temos que decidir o que fazer... Logo. Por favor.- O telefone é colocado no gancho lentamente. Ainda com a mão apoiada sobre o aparelho Artur estala o polegar e forma em seu rosto já um pouco envelhecido uma expressão nova e triste; como o símbolo do medo e do cansaço no grupo ele foge seus pensamentos nas ondulações de suas memórias há tanto passadas em tantas partes do mundo... Vendo em que mórbida ironia se tornaram as suas ações e a dor do seus companheiros: 926
um que foge com a esposa de uma de suas “vítimas”; fraca e indolente, não conseguindo suportar os breves momentos... Imagina como a esposa deveria ser infeliz perante tal monumento de inutilidade, e se houve escolha, Artur bem sabe disso, Tomaz foi a certa: sempre na medida certa dos seus atos e realizações... Mas ainda assim inconsequente a decisão; alienante e também necessária: revelados os medos dos jovens, Debra e Roger, seguidos na trilha de suas preocupações, mas também o cansaço parecia alcançá-los, o tédio de todos os dias e a eterna procura de um fim desconhecido e sem sentido... Quanta coincidência descobrir a fonte num outro ser e ela, tendo se revelado quem é: Tomaz não deve nem fazer ideia, mas o perigo deixado pelos dois é claro como a transparência dos mortais... Artur sofre com suas especulações interiores sob a participação atenta dos olhos de Andrea e ela sabe o quão perdido ele está; pode enxergar as mesmas ondulações que devastam tanto sua anti-presença naquela sala de onde com tanta firmeza enfrentou todo o fogo do mundo pela conservação do seu próprio modo de vida... Quase sente raiva do parceiro por vê-lo perdido numa situação tão completamente nova: o círculo quebrado: de dentro para fora... - Não tem idéia do que fazer, não é? 927
- É verdade... Você acha que ele pode nos entregar. - Talvez... Afinal, a mulher era... - Eu sei... Ainda não acredito que ele não tenha notado o sobrenome... Debra deve estar virada no demônio... Primeiro o cara apaga antes da hora dele... e depois a mulher vem e... -...Nos destrói... - Eu preferia dizer desfalca...- Mas Artur sabia que um dia, de alguma maneira tudo seria exposto: a mulher que arrancara Tomaz do grupo iria descobrir e a consequência surgiria nas mãos de todos... Talvez fosse parte do risco afinal; como o próprio Tomaz gostava de se referir a respeito de suas conquistas. Ele se levanta sob o olhar de Andrea. Dá a volta na mesa e senta ao lado da única pessoa que parecia ter restado ali para compartilhar a revisão dos seus prazeres humanos; vinha olhando (vigiando), sentindo sua ausência e a pressão dos fatos... Toca no rosto e nos cabelos. A pele sempre um grau abaixo da temperatura ambiente torna o toque a perfeita lembrança da singularidade que ela representa; aquele medo e aquela eterna insegurança de nunca saber onde está realmente pisando: a expressão séria de quem seduz com o silêncio e com a frieza. - Você não vai até o castelo desde que voltou... 928
Por que a gente não aproveita que os dois vão demorar umas cinco horas para voltar do lago e tenta esquecer um pouco a loucura e as ameaças...- Primeiro foi pobre, depois se fez rico, nunca admite sua verdadeira origem, vem participando desse estranho mundo de dor e prazer, agora tem o tempo nas costas e a cômoda vontade de parar: chamar de loucura e negar a si mesmo, querer sexo dentro das consequências, fugir na verdade: são as escolhas das atitudes que fazem o homem e sua individualidade... Nesse momento Andrea sente clara a dela, como a dele, como a de todos no verdade, como tem sido sempre, mas no final seguindo no modo como afeta cada um: no que é realmente a dor, a tortura e a sanidade. “Entendo sua decisão hoje e comigo vamos completar o que você começou... Juntos.” É parecer demais levar os desejos da carne nos seus extremos e ainda assim liberar confuso os pensamentos e admitir a “insanidade” como o único meio de vida: é o que as pessoas fazem. *** A cabana sempre foi o cenário preferido para a procura dos cinco por uma utópica paz de espírito que só fazia lembrar-lhes das contínuas necessidades que 929
precisavam suprir; sempre foi como enfrentar que uma profunda falta de consciência os protegia do mundo que nunca teve também nenhuma com eles: sofridos em suas diferentes histórias e passados, vinham aqui para esquecer o que não podia nunca ser esquecido: suas próprias existências e no mínimo de sentido que elas pareciam ter... Foram as razões para trazerem tão longe Roger e Debra: a dedução dos jovens para o que eles sempre procuravam com a certeza de sempre voltar, mas obviamente Tomaz não tinha intenção de voltar. Debra se senta na escada de madeira enquanto Roger termina de falar com Artur pelo telefone celular. As palavras pareciam não apresentar nenhuma outra opção além da dissolução e do afastamento para a proteção de suas “felizes” sobrevivências... Mas ela olha com ressentimento toda a beleza da natureza crua e solitária ao redor; não pode se conformar com o simples alcance do absurdo em um período de vida tão curto; fora como a política e a ética do grupo... Volta seus olhos para Roger; coloca a “fome” em seus pensamentos para afugentar o medo do futuro, do que pode vir a ser chamado de normalidade... Na imagem consta a iniciação no norte da África: os pontos obscuros em seu corpo revelados por hábeis mãos e dentre elas as de Roger... Talvez ambos se devam 930
a retribuição por todas aquelas noites fervilhadas de gotas de sangue, gritos e múltiplos orgasmos na fria sujeira do castelo ou no calor dos porões gregos... Ela o olha e supre a fome e quer se alimentar. - Artur disse para voltarmos. - Pra onde? - Como assim... Para Viena! - Pra quê? - Como...- Debra se levanta com os olhos fixos sobre Roger. Suas estaturas e etnias do norte africano colocam suas semelhanças a mostra nos momentos de maior aproximação. Seu caminhar até ele se torna sugestivo desde o primeiro instante, como todas as vezes que se expõe em conjunto para a exposição de sua vontades há muito liberadas e não estranhas ao companheiro... Se estava se tornando uma época de tantas revoluções, porque não criar um novo uso para essa cabana: sempre um dos símbolos de seus rituais em conjunto, algo que sempre representou a vivência do esquecimento, as tentativas de se manterem em contato com o chamado mundo real... Os olhos de Debra desafiam os de Roger a descobrirem o que estão realmente procurando naquele lugar deserto e calmo, que faz emergir na loucura dos dois as novas e velhas vontades de um sobre o outro: com sendo o verdadeiro esquecimento... 931
São cinco quartos na casa de madeira. Foi sempre evitado o contato físico entre o grupo enquanto permaneciam nesse lugar; se tornar um paradoxo de suas naturezas viscerais. O casal se sente livre para explorar todos os cantos da casa assim como um do outro; uma espécie de despedida e uma espécie de iniciação em um novo tipo de relacionamento. Seus corpos começam a se encontrar nas memórias do sangue correndo e a pulsação se erguendo diante das alterações que se constróem com afirmação: da troca dos primeiros beijos à entrada da casa até a procura das aberturas das roupas de cada um, com sempre a constante recordação condicionada de suas mãos, unhas e dentes em descobrir fontes mais selvagens de abertura; como a forte respiração de poros e pulmões que se abrem e fecham, incham e murcham à medida que a tensão aumenta e as partes cada vez mais expostas de suas peles vão se encontrando; quase em vão tentando evitar de se ferirem, mas ainda se contendo por razões de persistentes consciências do que devem ou não devem fazer um com o outro... O chão cru da sala de estar é que primeiro recebe a queda dos corpos nus. Tropeçados um pelo outro, a pancada da queda começa a influir nas explorações de um pelos prazeres do outro. Debra não se retém às primeiras palavras de dor e prazer, enquanto Roger se ergue 932
dentro de Debra nas primeiras ereções; no mesmo poder dos choques e golpes; girando, sentindo e se contorcendo; na procura atravessando um os limites do outro: mais, mais e mais... Vibrando, gritando, gemendo e gozando... Não resiste à primeira grande sensação correndo seu corpo como um choque elétrico do raio que o percorre de dentro para fora e a faz dobrar-se em si mesma no formato de uma verdadeira fera: suas unhas penetram a carne do peito de Roger cocomitando com o seu próprio orgasmo, fazendo rasgar-lhe o músculo e pressionando o quadril de Debra em um mesmo tempo que a tudo faz girar-lhe de dor pelo leve, mas doloroso rompimento de vazos nas proximidades dos seus rins; e gritos trazem a ambos a confiança de continuarem; uma fatídica percussão sobre o medo que lhes tira a responsabilidade e os faz comprimir mais ainda seus corpos um contra o outro e aprofundar as penetrações e aspirações, fazendo seus membros funcionarem como os instrumentos para o que suas naturezas realmente os construíram: para a dor perante o prazer, a total perda do significado de ambos os termos na continuação das aberrações de um sobre o outro; “vítimas” um do outro, deixados livres e libertando as suas forças primitivas longes das ameaças e das racionalizações... Roger, ainda em meio ao grito, levanta-se com as pernas de Debra enlaçadas 933
no seu meio, comprimindo a cintura dela com força e colocando com força no encontro de seus troncos, permanecendo dentro dela para o novo encalço. As unhas de Debra encontram as costas livres de Roger e logo se dão os poderosos talhos que escorrem a vida vermelha por todo lado anterior da abominação que toma forma. Contorcendo-se dos cortes, joga-se contra a parede, batendo com extrema violência as costas, bunda e cabeça de Debra, fazendo-se enterrar com mais agressividade ainda o seu pau na racha dela; permanente, dolorido, ansioso por mais; nos idos dessas suas continuidades... Nos movimentos, nos cortes, nas pancadas, nas mordidas, no esquecimento e na fuga da verdadeira exaustão... Eles agora vão na direção da escada... Talvez nunca parem, nunca acabem, nunca alcancem o que nunca procuraram; no calor e na energia das suas juventudes... Sempre querendo mais. *** O que primeiro faz a caçada do jornalista passar pelo absurdo de querer entender algo que na verdade de seus interesses vem acontecendo em sua vida desde os primórdios dos desejos da carne... Qual foi realmente a surpresa ao saber que o sofrido senhor Karr havia 934
excursionado na direção sul, indo até a Grécia e lá tendo fechado a conta com o hotel e a agência aqui: quem realmente se importaria com um homem rico que paga tudo adiantado para sumir por quase uma semana com uma mulher desconhecida... Nunca os outros executivos fariam qualquer comentário, pois provavelmente todos eles fizeram o mesmo, só que o pobre Louis foi quem deu de cara com algo que nem ele mesmo esperava no momento em que penetrou (essa é a palavra) nessa aventura de prováveis novos sabores em sua vida: a certa fonte da mudança de comportamento mencionada pela esposa: a culpa por ter seguido o instinto... Mas como ele poderia saber no que acabaria... Curt quase pode sentir o mesmo tipo de prazer que deve ter jorrado pelos seus nervos no momento em que agredia aqueles dois matutos no bar: era o mesmo tipo de prazer que aquelas criaturas pareciam transbordar na tela daquela filmagem: repercutir sobre outro ser a verdadeira sensação de poder; algo que o jornalista também sente ao tornar público o que estava escondido: prejudicando uns, ajudando outros, admitindo vários lados da controvérsia e sempre imaginando a imparcialidade... mas sempre conhecendo a grande mentira que é... Que outra surpresa mais poderia representar que um outro homem bem sucedido, também cliente da 935
mesma agência de turismo, fora encontrado morto de forma bizarra em uma rua qualquer desta mesma cidade: por que a sensação constante de que é algo único; que a beleza e o horror de cada cidade desse mundo se juntam numa eterna procura individual; é provavelmente algo de extraordinário poder, de fácil descrença também, algo de invejável liberdade, mas que se perde na própria falta de restrições... A criação de uma simples vontade de permanecer no anonimato das informações, das impossibilidades, a segurança da ignorância... evitar suicídios, ajudar os necessitados, escolher as razões certas para fazer as coisas e deixar essas abominações num plano Inalcançável, onde provavelmente já estão; revelados em si mesmos, suas verdadeiras naturezas agressivas... Coisas pertencentes ao mundo, para não dizer pertencentes a cada um, como a esse jornalista... - “Acho que vou fazer turismo por aqui...” E o desaparecimento do agente que mais vendia... Manter o eterno quebra-cabeça e nunca perder o sentido das coisas. ***
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AS VÍSCERAS DA SAMAMBAIA Nas muitas vezes em que na natureza precisa se compor situações extremamente fugazes em seus vultos de vida para em fim permanecer e prosperar na existência, o que de fato acontece é a exposição do máximo alcançado pela criatividade da vida em formar seus seres dentro de todas as possibilidades, e na versão fantástica das informações que são passadas adiante para que no contemplar do seu curto espaço de tempo o ser possa usufruir tudo que lhe é dado: do simples poder de criar, ao simples poder de destruir e por fim o poder de querer entender e enfrentar o real alcance de seus extremos. A mesa do porão úmido do castelo está “posta” com o alimento que realmente preenche a presença dos temerosos seres que agora povoam um ao outro na imensa solidão do castelo... Cenários da história, presenças em suas curvas e em seus limos seculares, mortos e renascidos a cada temporada, a cada proprietário, a cada batalha travada pelo seu domínio; mantidos pelo seu último e orgulhoso dono; com seus usos de tão adversa e bizarra vontade que ainda percorre as manchas verde escuro, o rubro coagulado de muito e muito tempo, muitos e muitos “hóspedes”, que deixaram aqui suas marcas, seus pedaços e os 937
ecos de seus gritos anônimos e abomináveis: fontes desse consumo... Os braços e pernas estão atados como no eterno próprio desígnio: Artur sente os choques e arrepios provocados pela umidade e o frio; os leves arranhões das farpas penetrando sua pele nua contra a mesa; as terríveis e doces agulhadas em partes do corpo que a sua perpetradora sabe e conhece muito bem como explorar, trazendo as contrações e as dilatações necessárias para sua confrontação com o desconhecido feminino que fartamente se apodera do seu corpo, absorvendo partes por partes e penetrando todos os caminhos que a perniciosidade humana nunca admite percorrer: são aberrações de cores vibrantes expostas na palidez do voluptuoso corpo de Andrea; as verdadeiras vísceras das almas humanas, nos seus principais limites com a dor, com o prazer e com a morte... Ambos se deleitam e se consomem com seus tamanhos e suas profundidades: novidades reencontradas pela sombra da partida... Os socos da verdadeira tristeza e raiva do desconhecido, as mordidas ferozes que alimentam seus espíritos famintos pelo alimento nunca alcançado, os toques, os cortes, os hematomas, as lágrimas e o sangue do auto-consumo; da real vontade desses dois em quererem entrar um no outro, tornando os símbolos da 938
criação e da destruição em um só ícone dessa negada e amaldiçoada despedida... É a desintegração de um presente fugaz, explorado ao máximo para a procura e o alcance de um distante futuro... A tortura da passagem nos familiares gritos e gemidos ressonantes neste cenário, as verdadeiras perdas de um tempo “criminoso” e absurdo, à borda do mundo real, presente em cinco mundos inexistentes, explosivos, alcançados os seus limites, transformados no que quer que venham a ser: impuros, ferozes, conhecedores das diversas nuances da natureza humana e eternos fugitivos do melhor período de suas vidas... ### O amanhecer de final de verão do centro europeu. Nuvens azuladas que logo se dissiparão dando lugar ao glorioso firmamento azul... A frente do castelo escolta a despedida de um casal insômnio, que alinha-se no contorno de suas chagas passadas e recentes para finalmente atentarem ao rumo que terão de tomar... - Organize tudo no escritório... Vou ficar uns dias aqui. - E os dois? -...Se já não o fizeram... Diga-os para voltarem 939
para o Egito... A sede de lá sempre foi responsabilidade deles mesmo... - Vejo um lamento a mais... Talvez ela deva saber a verdade!... O olhar de Artur se volta levemente ao céu. Voltando lentamente ao rosto de Andrea... Suspirando. - Criaturas como nós não precisam de pais... Crescemos sozinhos, viscerais e incestuosos por natureza. - Nunca pareceu incesto pra mim... Você sempre adorou...- Ele dá um leve sorriso ofegante. - Por isso era natural... Que melhor criação ela poderia ter...: cheia de restrições?!... Debra é feliz sendo como é... ou melhor... o que é. -...Concordo...- “Mas talvez outras escolhas devam nos rebater agora, Artur... Na sua busca pelo resgate de sua prole, seus erros e transformações ao querer trazer todos para o seu mundo; nem todos se adaptaram e a continuidade de conclusões providas pela sorte me fazem somente refletir as perdas: aquela na profundidade esquecida de minha lembrança: um real sobrevivente da sociedade que soube escolher exatamente o que queria... Eu escolho ter esse filho e criá-lo longe de você, como assim sei que vai desejar, mas também nunca fazendo-o confrontar-se com o mesmo “horror” que você fez todos os outros 940
confrontarem... Pois também ele merecerá uma escolha.” - Descanse... Eu cuido de tudo em Viena.Verdadeiras aberrações que se separam e se afastam... Um homem e uma mulher que erguem suas solidões como armas para o futuro; marcada vibração dos seus sonhos reais com o esquecimento de seu passados, suas vidas... “Sempre admirei o sacrifício!” ### A samambaia para se reproduzir lança diversos esporos no ambiente. Os esporos em terreno apropriado se desenvolvem numa forma de vida intermediária com um período extremamente curto de existência, e nesse pequeno período o ser se consome velozmente em si mesmo para poder se desenvolver até o ponto em que terá de se cruzar com um ser semelhante: é dessa união e da fatal eliminação do ser intermediário que se desenvolve a planta como é conhecida: exuberante e viva, mas que depende infinitamente da fugacidade do seu outro ser inerente para crescer e permanecer. FIM 941
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TRUE BELIEF IN THE GRAPE MOUNTAIN
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Eu queria escrever algumas coisas antes de terminar: se o leitor me permite... Escrever é uma catarse, uma terapia, uma maneira de manter os demônios que querem sair sob controle, pois coloco eles no devido lugar: a imaginação. As coisas tem ficado cada vez piores com a idade, pois os demônios clamam por sair e se vingar por tanto tempo presos, por isso voltei a escrever. Todas essas obras foram escritas muito antes de eu completar 25 anos, assim o espírito de vingança está mais forte que agora, com 43, mas os tempos mudaram e o mundo mudou para pior: Os demônios gritam por sair e aqui foi só uma pequena amostra do que eles conseguem criar de louco, violento e destrutivo. 2016
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A CAPTURA
A luz ofuscante e imediata invade a escuridão que vinha antes por aquela porta. Era uma porta dupla e abria para fora. Conclui sua envergadura o suficiente para a passagem de até cinco pessoas. E eram quantas estavam vindo por ali atravessar. Quatro homens de truculenta silhueta traziam carregado; um contendo cada membro do elemento; o quinto homem, desacordado, mas com respiração ofegante: o que fazia-se deduzir um recente desfalecimento. Todos deixavam-se transparecer em suas vestes e marcas pelo corpo que a luta para que aquela situação de fato ocorresse não fora de modo algum fácil: mesmo apesar da semi-frágil aparência do capturado em relação aos quatro truculentos. Era um homem alto, com mais de um metro e noventa, tendo um peso devidamente proporcional ao tamanho e com uma bem distribuída massa muscular... Mas este não fora o fato principal... Havia ainda o desgaste visível nas roupas de couro de tonalidades pretas e marrons desbotadas, e nas botas, também de couro, mas com um solado bastante diferenciado (visivelmente). E fora do alcance da visão o pulsar violento dos seus tendões e músculos, vibrando na mesma intensidade de um jovem e veloz 945
coração... E havia também o sangue que escorrera e coagulara tanto em suas têmporas quanto no canto da boca, marcando seu pálido e forte rosto desmaiado, sacudido com o movimento por ser carregado, junto às ruivas sobrancelhas e à ruiva barba bem desenhada, que davam o tom da austeridade junto à jovialidade dos cabelos louros compridos chegando a passar dos ombros quando se posto de pé... Presentes, os cinco entravam no ambiente. Saindo da escuridão do corredor para luz... Era um bem equipado laboratório: Pelas duas extremidades laterais se viam distribuídos os sete cientistas presentes no ambiente: os homens de roupa branca, óculos e expressões tensas tanto diante do que estavam fazendo quanto do homem que acabara de entrar carregado. Pelo meio do laboratório, mais para o fundo, entre-cobrindo a entrada do que parecia uma porta de cela com uma janelinha gradeada, estavam de pé dois homens altos e alinhados, usando ternos praticamente idênticos, com cortes de cabelo também regularmente idênticos e brilhosos. À entrada dos homens, estes dois desviam suas atenções da misteriosa conversa, com um deles guardando, meio apreensivo pela recém chegada daquele homem, um pedaço de papel dobrado ao meio duas vezes, uma folha de carta talvez, velha e 946
amarelada, ou a página de um livro, ou de um diário. E então vieram, em ambos os lados, na direção de um centro comum, os dois grupos longitudinais: os dois personagens de terno e os quatro captores com o seu prisioneiro. Finalmente se encontram... - Vejo que Greg Makintosh ainda dá muito trabalho para ser pego!- Diz um dos homens de terno ao notar os estados de todos os outros, além do dele próprio, personagem recém apresentado: Greg Makintosh. - Ele estava certo, afinal. (Diz o outro homem de terno.) Será que no resto também?...- O outro fora o que guardara o papel. Ele observa com atenção o rosto desacordado de Makintosh. Raciocinava ele entre o perplexo e o surpreso por saber que o colega estava certo. No papel havia contido a localização exata de onde Makintosh estaria, e também como seria a sua reação à captura, e que também, depois de muito esforço, como era de se constatar, os homens teriam sucesso, trazendo-o como o trouxeram. Logo ele ordena aos quatro homens: - Coloquem-no na cela!... E lembrem de ligar a blindagem anti-cinética.- E eles o levam. Mais tarde os homens conversam: os de terno bastante alinhados e bem educados...(estão numa sala fechada). 947
- Será que podemos confiar em tal criatura?! - Sua capacidade se tornou evidente quando vimos o que vimos. - Pode ser uma coincidência... - Com tantos detalhes??!... Duvido!... Sempre foi assim!...- O outro cede em concordar. - Não me admira ser um o progenitor do outro...O olhar do que volta a segurar o papel tirado do bolso é de certa preocupação diante de seus próprios pensamentos. - Mas não se compara ao perigo que Makintosh representa para todos nós!... Silenciam por instantes. Ainda olha com interesse o papel... - Só queria saber a o que ele se refere aqui no fim da página... É próprio deles deixar-nos em suspense e expectativa a respeito de um assunto tão tenso... E nem sabemos onde encontrá-lo!- No final da página referida(do papel em sua mão) estava escrito: “...e um terrível incidente...” Na cela, Greg Makintosh finalmente desperta... A sua frente está a porta do cubículo de 3x3, totalmente branco e com um leve odor de ozônio que logo alcança suas narinas assim que acorda. No momento em que abrira os belos olhos azuis a primeira coisa focada fora o pequeno gradeado no meio da porta, com um 948
vidro cheio de frestas o atravessando, dando para um outro desconhecido ambiente; que tinha certeza ser o laboratório da agência UM. Numa rápida olhada ao redor somente com os olhos vê que está numa cela... muito pequena... A sensação claustrofóbica já se inicia. Percebe no outro segundo que está sentado numa poltrona de couro preto, e que ela o deixa semi-deitado com as pernas pendendo para baixo sem tocar no chão... e é a segunda sensação de pleno desgosto: preso e imóvel... Logo se prepara para a iminente agitação de seu organismo, e começa a se agitar de dentro para fora... quando já quase pronto para insolver-se através da porta a sua frente, estilhaçando-a, como é seu instinto libertador... Então, finalmente indo se precipitar para frente num salto e veloz, mas inexoravelmente frustando-se na tentativa; de maneira brusca; sendo repelido em sua tentativa de movimento por uma força muito além do seu controle... e vontade... Volta a se desacelerar, mas não seu sangue e seu coração, ainda pulsando muito fortes... como sempre. - Eu devia saber... Uma blindagem anticinética...- Fala Makintosh desolado. Este tipo de blindagem eletromagnética (o ozônio) inibe completamente qualquer movimento de mais de 5 hz (hertz / medida de frequência) e por isso o deixa 949
totalmente à mercê da agência UM, que o havia prendido. E ele sabia como... - Eu o odeio!...- E volta a se desolar, pois sabe que assim, imóvel, logo irá sucumbir e morrer, como é sua natureza. E propósito. Ou destino. Mas... 1ª FUGA Num canto qualquer do laboratório uma das pessoas de branco caminha lentamente fazendo a leitura dos instrumentos hipersensíveis da cela anti-cinética. As leituras passaram velozmente da alta atividade de movimento iminente para a quase imobilidade absoluta (a tentativa de Makintosh); e o homem de branco, com a expressão de muita experiência em seu trabalho, anota numa folha de papel presa numa prancheta de mão metálica a evolução dos resultados e testes, desde quando fora possível a primeira vez se estudar o ente: Greg Makintosh... A curiosidade e fascínio iam além da hiper-cinesi, da velocidade e da contínua e crescente vibração em seu corpo: o que mais interessava era a capacidade advinda dessa... velocidade. De outro lugar do laboratório, outro homem de branco chama este cientista por qualquer razão. 950
Atendendo ao chamado do colega, ele deposita a prancheta sobre os consoles computadorizados de leitura da cela e se vai... Alguns minutos se passam... A prancheta de metal fora colocada sobre dois consoles distintos, ligando de uma certa maneira um e outro; os consoles também sendo de metal; na semana anterior, quando o laboratório havia sido faxinado para receber de volta sua experiência (cobaia) mais ilustre (Makintosh), as pessoas que o limparam esqueceram de religar todos os fios terra das máquinas; deixando assim espaço livre para as leves correntes de eletricidade estática... Porém com a prancheta de metal conduzindo esta eletricidade estática entre os dois consoles, a sobrecarga se tornava iminente... só precisando de um condutor para efetivar o curto... A eletricidade estática se acumulava... Após ajudar o colega, o cientista retorna ao seu trabalho original: observa se houve alguma alteração nas leituras, caminha pelos mostradores de todos os consoles e finalmente se dá pela falta da prancheta. Ele caminha para pegá-la; parte de sua atenção está em um dos mostradores; estica o braço para apanhar o seu instrumento de trabalho; e finalmente toca na prancheta de metal... Era o condutor! O choque luminoso provocado pelo imediato curto-circuito causa fumaça e faíscas nos consoles 951
do laboratório; as luzes piscam alucinadamente; outros homens de branco correm de um lado para o outro bradando algumas ordens; os dois homens de terno saem correndo da saleta onde parlamentavam e perguntam o que está acontecendo; as luzes continuam a piscar; um rápido flash ilumina parte do laboratório e uma rápida explosão se segue, com o som de pequenos estilhaços sendo arremessados por todo ambiente, fazendo inclusive algumas das pessoas sentirem os toques lhes batendo no corpo; outros sons de distúrbios elétricos se sucedem durante alguns segundos; e finalmente, já com a fumaça se dissipando, as luzes voltam à sua normal regularidade, revelando aos confusos presentes... O cientista caído, em choque, talvez morto, perto dos painéis de controle da cela anti-cinética... E a total inexistência, agora, da porta da cela, também ainda fumegante em suas bordas; sem mais ninguém, o prisioneiro, lá presente, na cela... Diz um dos homens de terno: - Droga! Eu sabia que algo ia acontecer! -...Um acidente!!? Malditos! Makintosh corre pela pradaria deserta deste lugar. Afasta-se rápido às suas costas a base da agência UM: um complexo para-militar de concreto cinzento no meio de um nada deserto, cheio de vegetação 952
rasteira, e ao longe, para todos os lados, muitas montanhas de pico arredondado. Há um belo céu azul sem nuvens fazendo limite com o pardo da infinita pradaria... E atravessando-a a mais de 50 Km/h está Greg Makintosh; seu rastro de poeira marca o seu caminho; a explosão de sua liberdade vibra em cada músculo que se vê livre novamente, pois como é dele nunca deixar seu sistema orgânico ficar estático: todo seu sangue pulsa com velocidade; cada parte dele se tornando uma só máquina de cortar a distância, numa sincronia e simetria perfeitas, fazendo dele o ser perfeito que é, e é único. Enquanto corre com o destino certo, sabendo em direção de que e quem terá sempre que ir, pois tem de conhecer a sua história para entender a sua origem, e refletir suas capacidades nesse mundo: conhece o caminho que atravessa... Makintosh pode, ao pensar num objeto, em harmônica, perfeita e constante velocidade, tele-transportá-lo para suas mãos: nunca encontrou grande utilidade nesse poder; nunca desejou nada de ninguém... Mas nesse momento precisava resgatar a parte que faltava da fonte de sua eterna espera... Pensa fixamente no pedaço de papel que devia estar presente em algum lugar daquele complexo que deixava para trás, cada vez mais distante... E afinal ele surge em sua mão direita; empunha-o com segurança 953
após a definitiva materialização; olha-o de relance com a certeza e raiva de quem já sabia que estava certo sobre a contínua descoberta e vivência de uma trama... - “Sempre as mesmas páginas amareladas me carregando de volta!” - Pensa. E continua correndo. Com a expressão do predestinado a ser forte e resignado. Deslizando velozmente por este mundo; carregando de volta um mundo que teme a todos de “seu mundo”. # Os olhos azuis enxergam no horizonte em frente. Há pequenas construções ao longo de uma linear fronteira: é quase um vilarejo, mas sabe que está quase tudo desabitado desde pouco depois de seu nascimento; longa corrida e fuga pelo mundo das secas pradarias, florestas selvagens e grandes cidades, até ter de surgir aqui de novo... As pequenas e quase idênticas construções são brancas casas, onde um dia viveram as famílias dos militares responsáveis por guardar essa mesma fronteira... Rápido se aproxima. Por detrás da linha das casas já pode visualizar o extenso muro que cobre toda a área daquele perímetro: o muro alto, branco, uma lembrança das 954
possibilidades do impossível, daquilo que descansa grandioso por trás do muro, na fronteira entre tantos mundos diferentes; cortando boa parte do horizonte com sua majestosa paciência de milênios; o que os olhos de Greg Makintosh conseguem ver cada vez mais próximo e intimidador: The Grape Mountain. No ambiente “lento” de uma casa semienvelhecida pelo tempo, no quarto, o casal de idosos se põe sentados sobre a cama, mansamente se observando e observando o vagaroso movimento do silêncio: as rugas em seus rostos brancos de mais de 65 anos se contorcem e se refazem em regulares novamente por uma troca íntima de olhares e expressões lamuriantes; pouco precisam dizer, pois muito se conhecem; apenas estão sentados na cama, um de frente para o outro, e próximo a eles, também descansando sobre o branco e limpo lençol que recobre a cama... um livro; negro, velho, de páginas amareladas, sem títulos ou qualquer outra coisa na negra capa, com a espessura de cerca de 400 páginas... praticamente “respirando” junto com os dois velhos... vivos: - Calma, querida... Logo ele estará aqui.- E a velha. - E a história finalmente chegará ao fim...- Os dois continuam a se olhar com lamento... Do lado de fora, pelo pátio ao lado, entre a 955
casa dos velhos e a casa vizinha, uma distorcida imagem passa em rojão na direção do muro... O som produzido pelo veloz projétil arrasta o mundo vivo de volta para a vila... E lembra, acorda, aos velhos, semiassustados, que a hora chegou. - Ele chegou!- Diz a velha. Levantam-se e vão... A imagem do gigante marrom a sua frente é realmente majestosa. Makintosh está subido no muro, somente sua cabeça se expõe ao vento entre a região da Grape Mountain e a linha das casas. Sua respiração está ofegante, mas ele não está cansado; sente o prazer de sua liberdade nos músculos e sangue pulsantes da velocidade... Apenas observa... - Estávamos a sua espera, Greg...- Makintosh volta a cabeça em seu limite, para trás e para baixo. - Avó... Avô... Vocês ainda estão aqui?!- O casal de velhos observa o neto em suas vestes de uma vida em fuga. Estão parados lado-a-lado, olhando para o alto; para o rosto de um homem em eterna dúvida sobre si mesmo... Observando sua origem. - Somos os últimos!- Diz o velho. - Venha conosco.- Diz a velha. - Para onde?- Pergunta Makintosh. - Descansar em nossa casa.- Responde o velho. Ele dá um pulo e agora está parado em frente 956
do casal. Olhando-os: - Está com vocês, não está? - Você não pode mais fugir, Greg!- Fala a velha. - Vamos.- Diz o velho. E os três vão na direção da casa. Sob a sombra da Grape Mountain. 2ª FUGA A escura noite a tudo encobre. É um vertiginoso veneno de pensamentos e lembranças que envolve Makintosh em seu conturbado descanso. Seus avós lhe traziam as recordações de infância nesse lugar hoje tão desolado; suportava o rápido crescimento ainda um tanto feliz, com a regular partida de todas as famílias que foram evacuando a vila ao longo dos anos; mas uma sombra mais profunda e abrangente que a própria montanha que tinham de guardar, o haveria de carregá-lo para aquele largo e interminável pedaço de vida que teve de viver até então... A deserção de seu pai da agência UM trouxera os horrores de uma obscura perseguição pelo mundo; ocasionando também a morte de sua mãe; no começo fora deixado naquela mesma casa, com os avós... mas um dia os homens de terno da agência UM vieram e ele teve de fugir por si só pela primeira vez... Os velhos foram lá deixados, mas constantemente vigiados até que a 957
agência UM começou a receber as páginas do livro: as páginas amareladas revelavam seguidamente, e com antecipação, os passos de Makintosh pelo mundo; forçando-o a desenvolver com mais rigor e eficiência suas capacidades congênitas... Seu pai era um respeitado espião da agência UM, sempre trazendo as informações mais quentes sobre o inimigo: sempre certas, sempre antecipatórias e sempre sem nenhuma clara explicação de como ele as conseguia; mas se as missões eram cumpridas com eficiência... quem se importava... Até que um dia ele partiu... E há pouco tempo, quando se descobriu sobre o poder de teletransportar coisas quando em perfeita velocidade constante, o interesse da agência UM em Makintosh se tornou prioritário... para o controle de tudo. As páginas surgiam; ele as capturava; e sempre surgiam mais... Numa eterna dúvida do porquê daquela viagem em círculo que o trazia de volta para a Grape Mountain... Sem entender as razões de seu pai: sempre se acrescendo do rancor por tudo que tem-lhe feito passar... Sempre fugindo... E agora ele está aqui; e o livro também, completo; não quer lê-lo... Seus avós disseram que deve, que está a sua disposição; mas sabe que tem medo de fazê-lo... Logo todo poderio da agência UM estará aqui: é o único lugar que resta; onde tudo começou... E talvez até eles 958
saibam porque querem tanto ele, e seu pai também... Mas para Makintosh a resposta está na montanha, não no livro que o pai escreveu; a montanha que o chama silenciosa; querendo que Greg Makintosh retorne e seja o seu verdadeiro crente (True Belief) do seu mistério de um milhão de anos... E logo ele irá. Amanhece... Sons distantes se aglomeram ao redor da Grape Mountain, se aproximando, levantando nuvens de poeira amarela na pradaria já iluminada pelo sol. Makintosh fora alertado pelos avós; binóculos super potentes nas mãos dos três os fazem ver com clareza a aproximação... - Você deve ir, Greg.- Diz o avô. - Não pode mais fugir do destino.- Diz a avó. - Destino?! O que ELE escreveu?!- Fala Makintosh. - Seu caminho o trouxe aqui... O que mais você acha que pode fazer?...- Fala o avô. Ele tem os olhos de seus avós o observando, com o cansaço de muito tempo a espera de algo que só ele pode realizar... sem saber o que é... Está no livro, mas Makintosh nunca o leu; nunca quis ler, nunca quis acreditar... Olha uma última vez para os velhos. Greg Makintosh atravessa veloz a casa de seus avós. O livro vem para sua mão direita. A liberdade da velocidade sempre lhe causa prazer no seu coração... 959
Sempre foi assim, desde o primeiro passo, desde que correu livre pelas pradarias e sentiu todo seu sistema vital pulsando com a perfeição de um único e fabuloso órgão do ser... O muro está logo a sua frente; a agitação do atrito do ar faz expandir as moléculas de uma couraça invisível, que só ele é capaz de formar... A explosão do choque com o muro abre uma cratera de oito metros de largura, deixando apenas os destroços daquela parte do muro, provocando em seu momento um grandioso estrondo que ecoa pelo ar... Os velhos foram deixados para trás: acredita que ficarão bem; as forças da agência UM se aproximam; e a sua frente só existe a montanha... Makintosh corre nas ascendente para encontrar a entrada: uma caverna de abertura circular, que engole a luz do dia para dentro de sua escuridão. O grandioso formato da Grape Mountain é regular, de pico arredondado, puramente rocha, sem nenhuma vegetação; a única caverna é aquela para onde ele vai: a entrada para um milhão de anos de segredos e mistérios. O que seus olhos vêem é o gigante de rocha marrom crescer a sua frente e o olho negro da caverna crescer gradativamente no meio da massa rochosa. A luz ainda brilha sobre ele nesse suave amanhecer, as cores que pode enxergar além do monstro a sua frente são belíssimas: o azul do céu que vai sumindo, o pardo amarelo do chão 960
que acaba de dar lugar ao marrom da rocha velha, e o brilho branco da luz do dia... Sabe ter seu destino se aproximando: um encontro há muito premeditado nas páginas envelhecidas do livro que carrega; uma coisa espantosa, que assusta e maravilha crentes e descrentes, pelas razões do futuro desconhecido: o fardo que dele depende... correr. A escuridão da caverna o envolve num único segundo, parecendo não mais restar luz no universo que consiga iluminar aquela negritude de um milhão de anos... Mas ele pode enxergar longe em frente um novo tipo de luz: a que não se expande; a que não existe na luz do lado de fora, somente aqui... A velocidade vai diminuindo à medida que se aproxima: o pequeno cenário iluminado por aquela luz vai se desenhando; Makintosh está quase somente andando na densidade de um mundo quase inexistente... É uma mesa de pedra. Sobre ela há um globo de onde é gerada aquela luz. Atrás da mesa uma cadeira, mais uma poltrona, também de pedra... Ambas, mesa e cadeira, parecem ter sido esculpidas a partir da rocha... E sentado na cadeira, à essa mesa, está seu pai, Raily Makintosh... Está parando, está em frente à mesa. Makintosh para. Pai e filho se olham com ambas as sombras claras de uma tão estranha existência, de ambos, de um em relação ao outro, ou pelo menos de Makintosh para 961
com o pai. - Você trouxe!- Makintosh ergue o livro. - Está aqui!- Põe sobre a mesa. Seus rostos, semelhantes, se estudam mutuamente; Raily é muito mais velho e sua pele está tão pálida quanto a de um morto; mas são praticamente clones: até no jeito de usar a barba e o cabelo... - Por que, afinal?- Pergunta Makintosh. - Talvez para esta questão eu não tenha resposta. Porém posso dizer quando e onde. - Explique! - Nesta mesma mesa, a qual eu mesmo construi; há muitos anos atrás; logo depois de explorar a Grape Mountain; antes de virem os colonos militares... Eu me sentei a ela e comecei a escrever o livro: não sabia porque estava escrevendo, não sabia como podia criar algo tão complexo e estranho... Nem imaginava que teria um filho... Mas havia uma compulsão tão irresistível que só saí daqui três meses depois, com o livro totalmente pronto... Somente mais tarde descobri o inusitado: tudo que eu havia escrito estava acontecendo: desde minha saída à luz depois daquele tempo na escuridão, com o choque em minha visão; e logo depois os colonos; e a guerra; a agência UM; minha participação na organização: eu sabia de tudo que iria acontecer... Meu casamento, seu nascimento, 962
e tudo mais até hoje: que é a última página do livro. - Quem é você afinal, pai?... Deus?... - Eu não sei. - E o que vai acontecer afinal(?): eu nunca li o livro! - Eu sei... Escrevi isso!... Tudo está no livro... Inclusive esta conversa... O cerco da agência UM lá fora é total; não há saída! - Então... O quê... - Está em sua mente, Greg... O que você tem de realizar. - Não pode ser! É loucura! - Sabe que não tem escolha... Você quer fazê-lo!- Makintosh se atem ao silêncio por alguns segundos. Reflete e sabe. - Eu... tenho que... ir. - Eu sei.- Makintosh dá meia volta e penetra na escuridão; apenas caminhando na direção da saída: sabe o que tem de fazer... O horizonte além do muro, e além da vila, é um puro conturbar do poderio bélico/militar da agência UM; em toda sua capacidade e despotismo, dominando metade do mundo não é o suficiente... Makintosh sai calmo para a luz do dia; seus olhos azuis sentem o leve choque por sair da densa escuridão do interior da montanha: sempre seu eterno lar, sem a resposta 963
necessária de uma vida, muitas vidas, sem sentido: a Grape Mountain... Faz um leve e rápido caminho até a base da montanha; sabe já ser provável que fora avistado assim que deixou a escuridão; mas só precisa alcançar a pista natural que circula toda montanha para enfim cumprir a sua missão... Os agentes da agência UM não chegarão a tempo. Ele chega... Uma última olhada no mundo ao redor estático: Grape Mountain, o céu, o muro, as casas da vila, as pessoas, os carros, as armas, seu próprio corpo... e as memórias vibrantes em sua mente... Greg Makintosh começa a correr em volta da Grape Mountain. A velocidade perfeitamente harmônica vai se estabelecendo; só enxerga uma mesma imagem, desfigurada pela velocidade, a frente: tudo o que era em volta... Já pode ver no seu pulsar que desliza em círculos a imagem de si mesmo de costas: os reflexos que a luz pode ocasionar numa velocidade que se acelera e se acha constante... Pode ver suas costas, seus cabelos, suas pernas dando um passo após outro com extrema velocidade; quase sente já ser a velocidade vivificada: seu corpo, em roupa de couro marrom e preto, e o desígnio que se faz... Makintosh pensa em todo o planeta, em toda a sua massa, tudo que existe nele e sobre ele; cada grão de terra e cada pessoa... Ele pensa em tudo. E 964
logo nada mais existe, pois só existe Makintosh... e o mundo inteiro em suas mãos... “Corre veloz o cosmos; um deus glorificado, que tem seu mundo no punho.”
FIM
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Formato: 21 x 15
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