A RELAÇÃO ENTRE CULTURA E DESENVOLVIMENTO A PARTIR DE DOCUMENTOS DA UNESCO

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A RELAÇÃO ENTRE CULTURA E DESENVOLVIMENTO A PARTIR DE DOCUMENTOS DA UNESCO 1 Gabriel Medeiros Chati2 Orientadora: Prof.ª Dr.ª Nadja de Carvalho Lamas

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Projeto Arte e Cultura: Exposições, Curadorias e Políticas Culturais – ARCULT, Projeto Pró Cultura CAPES/MINC – UNISUL, UNC, UNIVILLE. 2

Gabriel Medeiros Chati, Mestrando em Patrimônio Cultural e Sociedade – UNIVILLE, Bacharel em Produção Cultural – UFF, Bolsista CAPES/MINC; gabrielchati@gmail.com

RESUMO O desenvolvimento humano é assunto de pauta de diversas instâncias: de governos locais aos blocos supranacionais, de corporações a bancos internacionais de desenvolvimento. O presente trabalho objetivou discorrer sobre a relação entre cultura e desenvolvimento a partir da leitura crítica de documentos elaborados pela Organização Mundial das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura (UNESCO), a fim de explanar e identificar a visão institucional acerca desse assunto uma vez que muito do conteúdo constante nesses documentos serve de base para o estabelecimento de planos, programas e políticas culturais dos mais diversos órgãos governamentais e não-governamentais por todo o globo terrestre. Palavras-chave: cultura; desenvolvimento; desenvolvimento cultural.


OBJETO E MÉTODO DE ABORDAGEM O presente trabalho propõe uma reflexão sobre a relação entre cultura e desenvolvimento a partir da leitura crítica de documentos elaborados pela UNESCO, especialmente da sua representação no Brasil. Órgão de referência desse temário em esfera global, a UNESCO de maneira perene vêm produzindo através de seminários, convenções e eventos correlatos em escala mundial, um discurso para a importante debate sobre a cultura e seu papel estratégico para o desenvolvimento. A fim de explanar e identificar a visão institucional acerca do assunto, os seguintes documentos portadores desse discurso serão analisados: Novos marcos de ação (UNESCO BRASIL, 2001), A UNESCO e a Cultura (UNESCO BRASIL, 2002) e o Marco Estratégico para a UNESCO no Brasil (UNESCO BRASIL, 2006). A metodologia utilizada para a realização da análise se concentra na leitura investigativa relativa ao assunto presente nos documentos supracitados. A ordem cronológica de produção e publicação foi respeitada com a intenção de verificar o processo de construção conceitual sobre o tema e sua trajetória dentro da lógica desta Organização. No entanto, a exposição de trechos e passagens seguiu uma ordem não linear, estruturada a partir de recortes temáticos. Como ferramenta auxiliar de refência, fora do âmbito da Unesco, o trabalho utilizou-se da leitura de dois estudiosos das mudanças culturais recentes: George Yúdice1, especialmente a crítica encontrada em sua obra A Conveniência da Cultura e Guy Hermet2, colaborador da Organização em fóruns e seminários. Outra referência textual crítica, A UNESCO e o mundo da cultura3, editada pela UNESCO, mas sem o status de documento oficial também foi utilizada na interpretação. O desenvolvimento humano é assunto de pauta de diversas instituições: de governos locais

a blocos supranacionais, corporações

a bancos

internacionais de desenvolvimento. Como exposto a seguir a UNESCO, incluindo-se a representação Brasil, não foge à regra. Não em função disso, mas por tratar-se de uma associação cada vez mais frequente, aqui estudamos 1

Diretor do Centro de Estudos Latino-Americanos na Universidade de New York.. Cientista Político e Diretor do Instituto de Estudos Políticos em Paris. Entre outros eventos, representou a Unesco no Fórum Social Mundial de Porto Alegre em 2002. 3 Evangelista, Ely Guimarães dos Santos. Tese de Doutorado; Orientador: Octavio Ianni. Campinas, SP: [s.n.], 1999. 2


como a cultura e o desenvolvimento tem sido vistos e tratados no já mencionado rol de documentos. É importante refletir sobre os desdobramentos dessa leitura institucional, seu processo de construção e potenciais desdobramentos no tempo de agora. O CONCEITO DE CULTURA E SUA RELAÇÃO COM O DESENVOLVIMENTO Antes mesmo de conceituar cultura a partir do prisma da UNESCO, houve a necessidade de avaliar o processo de sua associação ao desenvolvimento. Para a definição de desenvolvimento que se pretende operar contamos com a seguinte interpretação independente e anterior à publicação dos documentos oficiais analisados: O conceito de desenvolvimento endógeno, sem descartar o crescimento econômico como um imperativo necessário à emancipação da humanidade, impõe o homem como agente e beneficiário, justificativa e fim do crescimento econômico e remete à dimensão cultural do desenvolvimento, assim como à noção da identidade cultural dos povos e nações. (EVANGELISTA, 1999, p. 98)

O imperativo econômico do desenvolvimento terá sempre destaque, seja pelo seu potencial de transformação social, ou mesmo para justificar o financiamento. A dimensão cultural começa a ser associada aos moldes desse desenvolvimento, primariamente econômico, como um elemento transversal em favor do progresso. A cultura constitui, nessa perspectiva, dimensão central do desenvolvimento econômico, pois são os valores significados numa cultura os determinantes das escolhas em relação ao progresso promovido pela ciência e sua aplicação tecnológica. Isto significa que o desenvolvimento econômico não se faz sem o desenvolvimento cultural, impondo-se, portanto, a exigência de uma ampliação do conceito de cultura. (EVANGELISTA, 1999, p. 98)

Como destaca a tese de 1999, para aproximar desenvolvimento à cultura, a UNESCO tende a reformular o próprio conceito de cultura. É do preâmbulo da Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural de 2001, ou seja, posterior à análise de Evangelista, que extraímos a definição da Organização em relação à cultura, tida como: Conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que abrange, além das artes e das letras, os


modos de vida, as maneiras de viver juntos, os sistemas de valores, as tradições e as crenças. (UNESCO, 2001, p. 1)

Esse é o universo cultural na visão institucional sendo importante marco de um entendimento da cultura como algo mais abrangente e que a considera conjunto complexo da produção subjetiva e material humanas, suas espacialidades e inter-relações. Isso posto, é importante para esta proposição encontrar indícios do conceito ou o entendimento do que seria desenvolvimento para a UNESCO. Essa tarefa não é das mais simples, uma vez que, ao menos nos documentos examinados, não há muita clareza ou destaque nesse sentido. Fala-se mais na função ou nos focos de atenção que se quer trabalhar: Em suas estratégias de atuação a UNESCO leva em conta dois importantes aspectos. O primeiro deles, o processo de transformações globais, que, alavancado pela economia, hoje perpassa todas as dimensões da atividade humana. O segundo são as imensas desigualdades nas condições de produção e acesso aos bens culturais, acentuadas pelo avanço da informação e das comunicações. (2002, p. 5)

Ao destacar o que é relevante para determinar a sua estratégia, descrevendo o contexto globalizado em que esta deve operar, a UNESCO fornece fragmentos de informação sobre que aspectos sociais se quer desenvolver, ou melhor, que áreas se quer priorizar na sua atuação: produção e acessibilidade. Nos próximos anos, a UNESCO centralizará suas ações no patrimônio cultural, na proteção da diversidade cultural e promoção do pluralismo e do diálogo entre as culturas e as civilizações e na busca de uma maior aproximação entre a cultura e o desenvolvimento. (2002, p. 5)

Pode-se observar nitidamente a defesa da associação entre cultura e desenvolvimento, agora como meta declarada. Essa relação é reforçada e reiterada por diversas passagens. A UNESCO Brasil busca contribuir para a proteção e reforço do patrimônio cultural do país, de suas manifestações culturais imateriais e da diversidade e pluralismo cultural, com destaque para a visão da cultura como agente do desenvolvimento. (2001, p. 66)

Vê-se com mais clareza quais são as áreas da cultura que, uma vez protegidas e promovidas pelas estratégias da Organização, atuam como agente catalisador do desenvolvimento, ainda que não se possa dizer com maior clareza qual desenvolvimento se quer atingir.


Fica mais evidente que, para a UNESCO, a cultura tem o poder de transformar e promover o desenvolvimento de áreas distintas e essenciais quando declara que “A UNESCO se empenha, desde sua criação, em dar à cultura um papel central no desenvolvimento social, político, econômico e humano” (2002, p. 5), ou seja, a cultura pode operar como propulsora do desenvolvimento político, econômico, social e (por adição) humano. A leitura da UNESCO enfatiza a centralidade da cultura, peça chave para o desenvolvimento, destacando as qualidades e potencialidades desse elemento, no entanto, com ou sem intenção, acaba por fazer uma leitura por campos estanques que não se inter-relacionam. Estratificar as áreas e dimensões da atividade humana e organização social às quais a cultura pode influenciar positivamente é entendê-la como mais uma dessas áreas, mesmo quando imbuída de transversalidade. Fica portanto a indagação: pode-se falar de desenvolvimento político, social, econômico, cultural de maneira separada? O desenvolvimento humano seria o somatório desses “desenvolvimentos” só que agora com o auxílio da cultura? DESENVOLVIMENTO CULTURAL OU DESENVOLVIMENTO ATRAVÉS DA CULTURA? O propósito primário dessa análise é fazer a leitura crítica do discurso oficial da UNESCO. No entanto, para uma leitura crítica de fato, lança-se mão de outros primas de análise, por vezes análogos ou antagônicos, sem prejuízo do proposto. Nesse sentido, a partir de uma síntese exógena acerca da definição de desenvolvimento, o consideramos: processo de mudança em virtude do qual uma coletividade tem acesso em conjunto a um bem-estar maior, chegando a extrair de seu próprio meio, à custa de uma abertura ao exterior, todos os recursos que contém e que permaneciam até então pouco utilizados ou sem explorar. (HERMET, 2002, p. 21)

A escolha desse recorte se justifica por se parecer com aquilo que entende a Organização, sem declará-lo com tamanha minúcia, como desenvolvimento. Ele incluiria todos os partícipes de determinada organização social que, coletivamente, acessam uma potencialidade desenvolvendo-a em prol desse grupo a partir de uma troca estabelecida com um agente externo.


O ser humano deve ser considerado o sujeito principal e beneficiário direto do desenvolvimento. A dimensão cultural é componente essencial para o sucesso de um modelo de desenvolvimento sustentável, visando às gerações futuras e à integração com a natureza. (2002, p. 7)

Aqui destaca-se a centralidade do homem, peça fundamental do desenvolvimento sendo seu promotor, o meio para atingí-lo e seu destinatário, numa espécie de círculo retroalimentativo. Ademais associa uma mudança em direção a um desenvolvimento sustentável a partir da dimensão cultural. De fato, se se quer promover uma transformação que perpassa por uma mudança de comportamento profunda, inclusive reestabelecendo laços perdidos com a natureza, há a necessidade de reforma do pensamento, logo uma revista do código de valoração, que é cultural. Assim, não existe desenvolvimento, qualquer que seja, nunca existirá o desenvolvimento, dissociado de valores culturais que o norteiem. Considerando todo desenvolvimento como cultural, o que está em jogo é pensar que desenvolvimento é esse que a humanidade quer, ou mesmo, necessita. Imaginá-lo subdividido em político, social, econômico, pode servir para obter-se indicadores da sua dinâmica ou a falsa sensação de controle, mas ao mesmo tempo desumaniza-o. Pelo que se pode constatar nos documentos analisados, é justamente esse exercício que parece ausente. Mais importante seria entender ou defender um desenvolvimento humano pleno, transversal e interdependente, que revise e transforme o próprio conceito de desenvolvimento, antes mesmo de tê-lo como algo necessário. Como bem o descreveria Hermet, temos que desvelar com coragem e abnegação os segredos do labirinto: O desenvolvimento continua a existir, desde que não o consideremos unicamente na vaga abstração dos agregados estatísticos mundiais ou regionais, que são lamentáveis, e em vez disso o busquemos no labirinto de seus procedimentos e de suas metamorfoses reais. (2002, p. 16)

RECURSOS PARA A CULTURA OU A CULTURA COMO RECURSO DISPONÍVEL? Após essa breve reflexão sobre a associação entre cultura e desenvolvimento, destacamos trechos que demonstram como esse discurso é


positivado. A intenção aqui é problematizar a aparente necessidade de justificar o investimento em cultura a partir de um discurso utilitarista. Quando instituições poderosas como a União Européia, o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), as maiores fundações internacionais, e assim por diante, começam a compreender a cultura como uma esfera crucial para investimentos, a cultura e as artes são cada vez mais tratadas como qualquer outro recurso. (YÚDICE, 2004, p. 30)

No contexto global a cultura tende a receber cada vez mais recursos financeiros, o que a priori, auxilia no desenvolvimento de iniciativas na área. O que pode ser conflitante é estabelecer parâmetros de análise e avaliação de projetos culturais a partir de um prisma estritamente sócio-econômico. Nessa reflexão não abordaremos questões específicas relacionadas à tarefa de transposição do sistema de indicadores de desempenho tradicionais para o universo das artes, patrimônio cultural, e demais atividades artístico-culturais, que é extremamente delicada. O cerne aqui é apreciar como essa questão do financiamento é abordada pela Unesco. O impacto econômico da cultura é amplamente reconhecido no Brasil. Entretanto, pouco foi feito no sentido de uma avaliação precisa desse fenômeno. Ademais, a relação entre cultura e desenvolvimento vai muito além dos aspectos econômicos; o que significa desafio ainda maior para mensuração e monitoramento do impacto das ações concebidas. (2006, p. 43)

Essa passagem do Marco Estratégico para a UNESCO no Brasil reitera a relação da cultura e seu eventual impacto positivo sobre a economia. Destaca também a necessidade de se pensar uma ferramenta de controle justificante do investimento. Vemos também paralelismos da cultura como fator de desenvolvimento sócio-econômico e político: Como motor de diversas indústrias, a cultura é fator de geração de emprego e renda e um instrumento para a redução da pobreza. Além disso, o desenvolvimento cultural traz impactos que vão muito além dos meramente econômicos: o crescimento do capital social e humano, o fortalecimento da auto-estima, da coesão social e da governabilidade democrática, além do estímulo à criatividade, fundamental para que as comunidades tenham autonomia para originar soluções para os próprios problemas. (2002, p. 7)


O discurso utilitarista se expande às diversas dimensões da organização social: cultura promove o desenvolvimento econômico, o crescimento dos capitais de nova roupagem (social e humano), garante a colocação do indivíduo no mercado de trabalho e distribui renda. A cultura é defendida como instrumento promotor da auto-estima do indivíduo ou grupo, garantidor de coesão social e facilitador da governança democrática. Ao paço que reconhece-se que um grupo social desenvolvido culturalmente possa ter tais características de estabilidade, a cultura não deve ser confundida como instrumento de controle social. O papel da cultura expandiu-se como nunca para as esferas política e econômica, ao mesmo tempo que as noções convencionais de cultura se esvaziaram muito. (...) talvez seja melhor fazer uma abordagem da questão da cultura de nosso tempo, caracterizada como uma cultura de globalização acelerada, como um recurso. (...) a cultura está sendo crescentemente dirigida como um recurso para a melhoria sociopolítica e econômica. (YÚDICE, 2004, p. 26)

Há perigos em se exaltar os possíveis desdobramentos sociais positivos associados ao desenvolvimento cultural para justificá-lo. O desenvolvimento cultural pleno, com autonomia e escolha, não garante as melhorias sociopolítica e econômica. O papel da Unesco é essencial para o avanço das discussões sobre a cultura e sua potencial contribuição para o desenvolvimento da humanidade. Por outro lado, ao passo que o resultado dessa reflexão contribui na outorga de programas privados e políticas públicas em áreas capitais como as da educação e da cultura, deve ser cuidadosamente revisitada e criticada ampla e permanentemente. ‘desenvolver’ não significa nada se só se trata de despejar cimento, instalar canos de água ou levantar a qualquer custo curvas estatísticas, sem pensar, antes, durante e depois de suas intervenções, nas reações muito diversas das pessoas atingidas por essas intervenções e nos benefícios que esperam ou não das mesmas. (HERMET, 2002, p. 19)

Um desenvolvimento, seja cultural, econômico, político ou social, só se materializa se considera os contextos em que operam transformações, é crítico a seus meios e procedimentos, mas, principalmente, inclui seus promotores-


beneficiários. Mais importante que chegar às respostas é continuar a fazer as perguntas. REFERÊNCIAS EVANGELISTA, Ely Guimarães dos Santos. A UNESCO e o mundo da cultura. Campinas, SP: [s.n.], 1999. HERMET, Guy. Cultura & Desenvolvimento; tradução de Vera Lúcia Mello Joscelyne. Petrópolis, RJ : Editora Vozes; 2002. UNESCO. Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural. Unesco, 2001. UNESCO BRASIL. Novos marcos de ação. Brasília : UNESCO, 2001. UNESCO BRASIL. A UNESCO e a Cultura: buscando um papel central no desenvolvimento humano. Brasília : UNESCO Brasil, 2002. UNESCO BRASIL. Políticas culturais para o desenvolvimento: uma base de dados para a cultura. Brasília : UNESCO Brasil, 2003. UNESCO BRASIL. Marco Estratégico para a UNESCO no Brasil. Brasília : UNESCO, 2006. YÚDICE, George. A Conveniência da Cultura: Usos da cultura na era global; tradução de Marie-Anne Kremer. Belo Horizonte : Editora UFMG; 2004.


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