/CAIXA DE AREIA/
CAIXA DE AREIA UDESC. CEART. ARTES VISUAIS – LICENCIATURA. TCC. 2014 GABRIEL PUNDEK SCAPINELLI Orientação: JORGE MENNA BARRETO
Para Camila
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M
inha memória lampeja. Eu já não sei bem o que
aconteceu naqueles dias, nem como construímos
tudo, nem como tudo se desfez. Eu durmo e sonho. Depois acordo e esqueço, restando esses lapsos.
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Agora olhando para a mesa vejo algumas imagens; escuras; rabiscadas. Junto há um monte de bilhetes e anotações, papeis amassados, fotografias soltas, manchas de tinta:
uma bagunça. Não digo não saber do que se trata. São meus cadernos, meus papeis, minhas sementes, algumas plantas
secas que colhi. Há também livros de ecologia, arquitetura, arte, mas confesso: não está nada conciso. Eu mesmo me perco e principalmente não encontro o que quero.
Começo a folhar alguns cadernos e revisitar algumas idéias. No meio disso preciso encontrar uma essência, um radical
que me apresente a mim mesmo. Já faz algum tempo que eu
não estou entendendo o que se passa. De repente estou aqui, ou ali, agindo de improviso, despreparado, ou então, fico em casa, perambulando, indulgente. Sinto-me desamparado e, sobretudo, confuso com o soar dos fatos.
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Começo a escrever nos cantos dos papéis, no espaço vago. Às vezes, apago frases antigas com o canetão preto. Fico bus-
cando o discurso, girando em torno das palavras, semântica. Há algo por ser dito. Há algo perdido no passado. Mas, não é
isso. Por mais que eu tente, sempre sobra algo. Por mais que eu alinhe as frases, sobram lacunas, mesmo que eu isole os fatos, justifique os elementos, categorize as cenas. O vento me distrai. O silêncio soa o diapasão./#1 A foto de uma plantinha com flores roxas me retém. Lembro do dia em que entrei num matagal ao lado da estrada nova
para a Tapera. No meio do mato, numa floresta de restinga, se abriu uma clareira. Ali essas plantinhas floriam e se me-
xiam com o vento. Vernonias. Eu já gostava delas das beiras de estradas. /
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/ De repente, intuitivamente pus a planta sobre o papel de algodão. Amassei-a mais um pouco, posicionei-a: folhas,
flores, caules, raízes. Eu queria fixar a planta contra o papel e depois inundar tudo com aguada de aquarela colorida. A
ideia era ir pingando as cores, e planta deveria ir sugando a
água e o pigmento que lhe fosse aceitável, para marcar então o papel.
Parece que as plantas podem algumas coisas. Seiva, grafite, guache, aquarela, carvão.
Provavelmente devem saber o motivo daquele incêndio.
Também devem entender como conseguimos renascer das
cinzas. Por hora fico abduzido, fluindo em suas matemáticas orgânicas, seus rastros fractais, suas dinâmicas não lineares./#3
Disperso, saio pra rua. Na mochila um facão, um caderno, algumas frutas.
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/ Chovia quando saímos./#4 Capa, guarda-chuva. Não havia
previsão, deixávamos os pedriscos guiarem os caminhos, e os cajados contarem os passos.
Entramos no miolo do bairro do Campeche. Cidade, restinga, planície de areia. Fomos ao fundo, nos intrometendo nas
ruas estreitas, nos becos entre os muros das pequenas casas. Tínhamos um mapa e sabíamos que havia uma passagem entre arames cortados.
Jardim aberto. Sol. Descampado. Salão de areia./#5 Aquela vegetação típica pioneira do solo revirado. Erva da-
ninha, toda metrópole dos insetos. Um plano cinza, marrom, verde: espécies renascendo, permanecendo, sociabilizando. No meio do jardim duas grandes pedras criando uma espé-
cie de platô. Obviamente paramos ali. Estávamos seduzidos e entregues ao risco.
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Eu tentava entender como aquelas duas pedras enormes haviam chegado àquele lugar. Retangulares de um lado,
pontiagudas do outro, com um pequeno furo as atraves-
sando. Talvez sejam próprias para amarrar cordas, talvez
fossem poitas que nunca chegaram no mar. Talvez estejamos no fundo do mar.
Meu devaneio não a convence. Ela se levanta e anda em direção a uma coruja que demora a arredar e voar para a cerca,
mas não se intimida e volta. Por um tempo Ficaram frente a
frente, se acalmaram e se olharam. As corujas estão cuidan-
do dos seus ninhos, alguns buracos no chão. Numa conversa, ela imita os gruídos agudos da ave.
Havia sintonia entre eu e ela, e entre nós e o jardim. O sol
batia forte no corpo. Dava pra ver a água evaporar do solo, havia uma fumaça na vista. Os pássaros nos convidavam para a banda de sopros. / 17
/ / / / / A vassoura, o capim dos pampas, o dente-de-leão, a suculenta rasteira do mato, a quaresmeira, a assa-peixe, um catálogo gravado na imaginação, arquivado em cada dia de coleta. Quando iniciamos as buscas, tudo parecia em vão. O vão das coisas que ficam ali, em outro tempo. Não o tempo de espera, mas das coisas cultivadas com o vento, pintassilgo, o sabiá e azulão. Esse vão, lugar dos pequenos intervalos, que deixa movimento ser jardim, ser terreno baldio. Na cidade que tudo quer ocupar, prever, o terreno baldio é interstício, é o tempo de criança desbravadora a sol intenso, esconderijo ao pôr-do-sol. Na madrugada surgem lixos, tintas, sprays, e na manhã seguinte já se encontra uma fogueira, um banco-árvore ou uma cerca recém cortada. /#6 / 21
/ Estávamos seduzidos pela ideia de nos tornarmos pássaros. Fomos migrando, fazendo caramanchões, subindo nas
árvores, comendo das frutas. A nossa cidade não dava mais bola pro concreto ou pro espetáculo. Desejávamos aroeiras ou castanheiras, os capins e as ervas daninha. Andávamos atentos aos espaços verdes, as alteridades a céu aberto, as esculturas sociais, a agricultura natural,/#7 e quando en-
contrávamos um jardim, parque, ou matagal pousávamos, e ali festejávamos.
Entravamos nos jardins secretos da cidade. Não que estivessem escondidos, pelo contrário, estavam por todos os lados. Parávamos ali em refúgio, e então olhávamos o céu, a terra, os seres vivos, os deuses, a quadratura./#8.
Tudo se fez tão mágico, preenchendo cada minuto dos dias
de longa duração. Tudo estava sincronizado com a dança das estrelas.
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/ Eu estava sob as aroeiras da ponta das almas, embebido, dormindo ao pé do fogo.
Sussurrando com uma voz calma me contavam historias
guaranis, ou será que ciganas? Uma colona, cabocla, me fazia um cafuné melhor. Nessas histórias, geralmente os amantes eram fugitivos, dos dilúvios, dos patrões, tinham que juntar as forças numa saga de sobrevivência. Fando e Lis. Ceci e
Peri, Irê ou simples saltimbancos, fugindo para um cortejo na cidade. O começo variava. Poderia ser: Lá, quando os
homens caçavam, lutavam, amavam e morriam... Ou então:
Haviam dois pássaros fugidos de um incêndio que destruiu o seus ninhos... E pouco a pouco os fatos fantásticos vinham e enchiam a noite de sonhos, aventuras, paixões. Antes mesmo de acordar, ela partiu. / / 25
/ Os sonhos continuam me confundindo, se somando, subtraindo. O tempo das coisas não é cronológico. Eu já nem
sei bem, são tantas correrias e tudo cai no passado, rápido, muito rápido, deixando tão poucos registros.
Eu estava preso no desarranjo, no improviso, nos restos, no quase nada. Não apenas isso, nem com essa simplicidade.
Também haviam monolitos e horizontes, o dentro e o fora e o tempo que continuava engolindo os dias e queimando as noites.
De qualquer forma, eu estava preso /ao corpo, ao tempo, á
cidade. / Restava-me uma pequena sela solitária. Ali parado. Cavocando o piso. Indo e voltando. E para onde foram os passarinhos e as estrelas?
Ao que me resta, Malone, o toco do lápis e o papel. As 13
luas cheias de um ano. Talvez o ciclo de saturno, ou plutão. Vícios insolúveis. Escorpião.
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Quando vejo estou só, de volta ao mesmo ponto, naquele velho terreno baldio, tapera ou sonho, esquina de amor
perdido, cão abandonado ou oferenda pra orixá. Meu jogo errante, Marcovaldo, Dom Quixote.
Não posso escrever o que aconteceu. Minhas frases não conseguem chegar a tal absurdo. Eu mesmo não entendo nada. Foram tantos surtos e pesadelos. Uma sobreposição plana
da memória não me deixa saber onde coloquei certas coisas, e pior, não me deixa saber ao certo como eu vim parar aqui,
ou o que estou procurando. Em um piscar de olhos as coisas surgem ou desaparecem.
As coisas estão realmente confusas. Eu sei que posso estar
fazendo coisas estranhas, posso estar andando sonâmbulo, ou, posso aparecer na sua casa procurando por um lugar para dormir, entrar no samba com um canivete no bolso,
posso estar serrando os out-doors, arranhando os carros, mas não me condenem, por favor!
Sinto uma dor que fala muito mais do que tudo isso.
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/ Havia uma pequena aldeia nutrida pela natureza. Colhiam, do mar, do rio, da mata. Dançavam na praia em volta do fogo, agradeciam. Vejam os sambaquis.
Em outro momento, houve também outra aldeia, com índios guaranis. Eram nômades, povoavam diversas áreas da América do Sul, inclusive esta ilha. Carregavam consigo o milho e a mandioca, assim como um conhecimento civilizado e
espiritual envolto das relações do homem com a natureza. Há descendentes. Há vestígios nas taperas. / Tapera: Palavra guarani, Ta: povo, povoado. Puerá: que se
foi. Usado no português como casa ou choupana abandonada. Local esquecido. /
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Tapera: Bairro de subúrbio pobre de Florianópolis/SC, uma
ocupação irregular, construída pouco a pouco com camadas de história, tijolos, tabuas e telhas. Vinte ruelas de areia.
Cidade capitalista, repleta de infra-estrutura no centro e
despejando trabalhadores na periferia sobre os aterros, as ribanceiras. Os cafundós da cidade grande.
Tapera: Um Caderno antigo com histórias de família esquecido no baú, ou a casa da infância nunca mais visitada, os amores passados, objetos perdidos no revirar da terra. Espaços
construídos, abandonados, esquecidos. Uma cabana feita de
gravetos e cipós sob a ruína do tempo, o atropelo das máquinas, a decomposição dos corações. / Tapera, jardim, aterro. / / 39
/ A estrada para a tapera é um vídeo em lopping que escurece pouco a pouco. A tomada é feita de dentro do carro em
movimento. A imagem se faz em três planos. Cada qual com a sua velocidade. A frente, os mourões da cerca passam
a 80km/h, ritmo constante, batendo como um tambor e
demarcando a fronteira da propriedade privada. No segundo plano há um pasto enorme, que também se movimenta. Em poucos segundos uma vaca entra em cena na esquerda do vídeo e atravessa o campo visual saindo de cena a direita, dando lugar a um out-door, que por sequência dá lugar a
uma clareira repleta de palmeiras, uma casa azul contornada de luzinhas neon e um bosque de restinga arbórea. As árvores, as vacas, os matagais, os rios, viram manchas, que atravessam a cena. Ao fundo, no terceiro plano, os morros, as
antenas de TV e as favelas da cidade permanecem estáticos, inabaláveis, mas pouco a pouco noite os engole. O cenário
escurecido apresenta vultos de troncos e poucas luzes entre as frestas, cada vez menos.
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/ Quando vejo estou só, de volta ao mesmo ponto, naquele velho terreno baldio, tapera ou sonho. Meu jogo errante,
subindo a montanha, seguindo pássaros, ou construindo a Praça Ventura.
Dessa vez havia um passarinho tomando banho na poça,
ele me viu, se sacudiu e saiu voando. Fiquei ali passando o
tempo. Depois de uma hora apareceram dois cães, um colly
e um vira-lata. Vieram até mim e depois de um cumprimento se deitaram naquela poça para um refresco. Investigaram,
cheiraram os cantos, os pneus do carro e seguiram caminho. No silêncio vejo alguns insetos, as borboletas são os que
mais chamam atenção. Percebe-se haver muitos seres, ca-
muflados ou invisíveis. Um pequeno gavião pousa na placa, um ponto alto para caçar. Um homem passa de carro, revirando a lama e espantando tudo.
No tempo seguinte retomo a lição. Aqui neste terreno baldio, as daninhas e a restinga acolhem uma boa
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biodiversidade, sobretudo aves, insetos e animais invisíveis.
O terreno drena a água da chuva, as plantas ‘bebem’ desta. A rua, sem plantas, fica toda enlameada. Os cachorros passam brincando de uma forma extremamente feliz, livres. E os
homens? Estes passam apressados, jogando lixo. Há muito lixo na beira da estrada. / / Agora, o cenário se reapresenta como ruínas. As montanhas se fazem de lixo, entulho, resíduo eletrônico. Sambaquis
modernos. Terra vermelho-sangue aberta, cortada pelas retro-escavadeiras. Margem da cidade materialista.
Do alto, de baixo, entre o mato, avista-se uma superfície
vermelha, feita de lama ou sangue. Entre ruídos dessintoni-
zados, flashes, imagens pixeladas, monta-se um outro vídeo.
Devastopia/#9. O delay envolve as imagens, uma nas outras. Tudo acontece simultaneamente e sem ordem certa.
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/ Os executivos conversam, apertam as mãos. Sorrisos engravatados/ Um casal sai de um carro, monta uma vaga com
galhos para então treinarem a baliza/ O caminhão despeja
terra sobre a sanga /Os trabalhadores espalham a lama. /A
água passa num tubo azul/ Um cavalo cinzento pasta devagar com o olhar maltratado/ Uma senhora caminha pelas beiradas coletando pequenos ramos de assa- peixe/ Um
jovem passeia com seu cachorro que se esbalda nas poças/
ao fundo toda a colina se desfaz mordida por escavadeiras... / A paisagem é coisa do homem, agora mesmo estão trabalhando nisso. / / / 51
Passando o pátio de entulhos e terra, abrem-se caminhos para dentro do mato, onde coisas muito mais escondidas
estão por acontecer. Num susto, as primeiras aberturas no mato me apresentam cenas criminosas. Por sorte ou pro-
teção não corro riscos, não vejo ninguém, não há ninguém
aqui no momento, mas fico tenso. Vejo apenas os resíduos: cachimbos de crack; animais mortos; roupas femininas rasgadas.
Essas coisas, esses objetos malinos seriam meus? Não condizem com essa azia, essa plástico entalado na garganta, esse
amálgama enferrujado nos dentes, esse ódio ciumento, esses cortes, essas palavras?
Eu não sei. Eu não posso determinar a origem, não posso
traçar a parábola, minhas linhas são trêmulas, minha memória é vaga, meu coração inchado. /
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De frente para o portal de pedra me peguei inseguro, respirei por algum tempo tentando imaginar o que aconteceria
se atravessasse para o outro lado. Mais pelo cansaço do que pela concentração deixei meu pensamento evaporar e ir ao
vento. Sem perceber o tempo foi passando, posso ter ficado horas ali agachado. Só sei que quando acordei havia fogo,
muito fogo. Desesperado, tentei lutar contra o avanço das chamas. Bati sobre elas com a minha pá. Retirei os galhos e folhas secas de seu caminho. Joguei a água que me res-
tava, mas nada adiantou. O fogo, conduzido pelo vento sul,
avançou em direção as pilhas de entulho. Logo tudo estava tomado. Lençóis, cadernos, quadros. Bomba de zinco. Só o que me restava era fugir para o alto do morro. Logo deveriam vir os bombeiros e eu seria culpado por todo aquele
incêndio criminoso. Como explicar o que eu estava fazendo ali, com aquela pá, facão, a caixa de fósforos, todo sujo de
cinzas e lama? Como explicar a necessidade de queimar os ninhos? No fim apenas os urubus me seguiram, girando a
minha volta sem parar, tanto, mas tanto, que me derrubaram em vertigem.
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Coivara. O fogo abre a mata para o cultivo. Os cataclismos são sobrepostos pela resiliência/#10 da
natureza, assim como assim como o inverno é sobreposto pela primavera. O potencial biológico do nosso planeta é
latente. A vida é uma propriedade do planeta. A clareira abre na mata a possibilidade de renovação, de inicio de novos
ciclos primários. Gramíneas como o capim navalha, o rabo
de burro, astereceas como a serralha, a macela, a tansagem, ciperáceas como a tiririca, o capim estrela, ou até arbustos Dodoneaes como a vassoura, não demoram a tomar o solo nu, as suas sementes estavam esperando por isso. O ar,
a água, o sol, (principais bio-fertilizantes) pouco a pouco, fomentam a matéria orgânica, que se desenvolve criando
alimentos para os serem microscópicos, estes se agrupam em simbioses, garantindo o húmus.
A terra está viva. Ecologicamente a terra é um ser vivo.
Assim há de ter suas próprias esperanças, necessidades e sonhos. Tudo está interligado às possibilidades da terra.
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#11
/ As ervinhas são mínimas, discretas, ordinárias. São daquelas que nascem no cantinho sujo, revingam na calçada, dispersam-se no vento e grudam-se nos pelos. Muitas morrem
rápido, num cataclismo de sol e seca. Outras sobrevivem, se entrosam e vingam. / Há um banco de sementes em minha memória. / As coisas podem acontecer por si mesmas. Nascer, se apai-
xonar, morrer, são fatos intangíveis. Tudo está acontecendo, o agente é uma ilusão. / Suave natureza de inverno, começando tudo de novo.
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/ Há uma praça ladrilhada em meio a um povoado, uma vila cercada por muralhas feitas de areia. Essa praça não tem forma fixa, está tomada pelo caos da imaginação. Está
carregada pelas possibilidades do vazio. A bandeira feita de camisa velha na entrada marca a existência de outro estado, sobreposto, paralelo. Terrária!
Uma cidade orgânica, mutante e em constante desenvolvimento, se transformando em suas formas, conteúdos,
de acordo com a intenção dos cidadãos. Cada um tem a
liberdade de brincar e construir o que bem quiser e conseguir. Castelos, trincheiras, fogueiras, furacões, chafarizes,
vale tudo. O risco no chão é caminho, estrada, mar. Encher,
esvaziar, transportar, dar forma, modelar, cavar, pisar, coar, espalhar. Caixa de areia. / / 69
Os frequentadores da caixa de areia são sujeitos aparelhados para apreciar casulos, ninhos, minhocas e insetos. Essas são características a serem alimentadas para que suas essên-
cias sejam mantidas abundantes no gozo da vida simples e
respeitosa. Trabalham nas mãos um material rude e elementar, que eles intuitivamente reconhece como “lar” – a areia
misturada à terra e por vezes à água provoca a liberdade de
criar e agir segundo suas emoções e ideias. Complementam-se as construções com pedras, galhos, folhas, penas, sementes... e o que mais a natureza oferecer. Buscar esses mate-
riais faz parte do desafio estético e comunicativo numa ação colaborativa e coletiva. O outro se envolve e vem em ajuda
daquele que iniciou a obra. A partir da aceitação surgem os consensos, ricos em ludicidade e faz de conta. / O lugar do brincar é amplo, o céu, o chão. /
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/ Toda melancolia se justifica naquela ampulheta. Em meio a um sono profundo eu abria e fechava os olhos,
e assim lentamente iam surgindo pequenos fiapos no meu
olhar, tão suaves como um fiozinho de lã levitando ao calor do ar, mas quando refletidos pela luz se tornavam formigamentos luminosos, como se fossem estrelas piscando em pleno dia. A pálpebra se estreitava então os raios do sol
explodiam e se alongavam em grandes riscos de luz atravessando toda a abóboda celeste.
Eu estava caído na areia grossa da praia. Completamente
amortecido, com os braços e pernas dormentes, impossibi-
litando qualquer ação ou fuga. Lá dento da água eu avistava os catadores de berbigão, os barcos amarrados, os biguás pousados nos palanques, mas todos estavam parados, ou
muito lentos, a ponto de não mudarem de lugar, por muito
tempo, feito a própria ilha das laranjeiras ou uma fotografia desfocada.
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Não havia vento, ondas nem barulhos, aparentemente nada
acontecia a não ser o próprio movimento dos olhos e do
pescoço. Eu contemplava o tempo procurando um sinal, um
chamado, um piscar da superfície muda das coisas. Foi então – e só depois que me dei conta – que percebi estar imerso
em névoa, pouco a pouco a montanha havia a agrupado as
nuvens, em volta de seu cume formando um enorme edre-
dom branco que se espalhava, irredutível, por toda a paisa-
gem. A nuvem cobriu a cidade, a baía, a ilha, a praia, os meus olhos. Tudo estava por trás de uma cortina de luz e calor. Não se via as distâncias. Tudo estava perdido no branco,
entregue a sublimação. Os jardins, os aterros, as taperas, já não faziam diferença. Eu já não sabia quem poderia estar
do meu lado, muito menos conseguiria encontrar alguém,
algum lugar específico. Agora já não se tratava tanto de se-
guir algum caminho, procurar os sentidos, os propósitos. As
coisas estavam, em fim, misturadas, e giravam e fluíam como a poeira cósmica. /
/ Notas:
#1. Texto compilado do livro Cujo, de Nuno Ramos. O livro foi tomado como principal exemplo/ referência na relação entre literatura e arte para a composição deste trabalho.
#2. Ilustração cientifica/ botânica retirada do banco de imagens do Google.com
#3 Termos utilizados pelo filósofo Fritjof Capra no livro As
conexões ocultas, para ampliar os aspectos interdisciplinares das ciências. As referências quanto à telepatia entre os
seres vivos se expandiram também na leitura do livro a vida secreta das plantas, de Peter Tompkins & Christopher Bird.
#4 O texto que segue foi desenvolvido conjuntamente com o coletivo de artistas do grupo FORA, no intuito de uma publi-
cação na revista ‘pise a grama’ / publicação que não ocorreu. O texto inicial surgiu entre o autor e Camila Argenta, numa
simples narrativa sobre uma deriva. Num momento seguinte
as artistas Nara Milioli e Bruna Maresh auxiliaram no desdobramento deste. O texto foi novamente modificado para se adequar a este trabalho.
#5 O termo descampado é uma referencia a artista catalã
Lara Almarcergui, que desenvolveu diversos guias de terrenos baldios por diferentes cidades pelo Mundo. Já o termo
Salão de areia é uma referência ao filme STALKER de Andrei Tarkovsky, um local onde todos os desejos podem ser alcançados.
#6 Texto escrito pela artista Camila Argenta. Doado para o autor como registro do processo de envolvimento mútuo com os jardins abertos.
#7 Os termos utilizados são conceitos aclamados de diferen-
tes autores. Alteridades a céu aberto/ Suely Ronnik, Esculturas Sociais/ Joseph Beuys e Agricultura Natural / Masanobu Fukuoka.
#8 O termo quadratura é usado pelo Filósofo Martin Haidegger em seu texto Construir, Habitar, Pensar. O termo compõe o conjunto de elementos que constitui as condições de vida no planeta, sendo somente a partir da preservação da quadratura que se pode habitar.
#9 Devastopia é um termo geográfico/ urbanístico apresentado pelo arquiteto João Serraglio, em uma obra de arte de mesmo nome.
Uma maquete feita com resíduos de computador, chips, placas, colocadas dentro de uma caixa de espelhos.
#10 A palavra resiliência vem sendo usada tanto na ecologia como na psicologia para designar a condição do ser de
se recompor através de seus próprios padrões biológicos/ psíquicos enraizados.
#11. Trecho copiado do livro ‘ O jardineiro que tinha fé, ou então uma fábula sobre o que não pode morrer nunca, de Clarissa Estés. / / / Pelos passeios, conversas e paciência.
Agradeço: Bruna, Nara, Sara, Fred, Kota, Flávio, Fernanda, Vivi, Otávio, Leh, Renata, Paolo, Regina, André, Manoela,
Letícia, Mayná, João, Pitz, Biga, Carlinhos, Silvio, Anninha, Ruth, Geni, Júlia, Graci, Helton, Rosana, Jorge e Camila.
BIBLIOGRAFIA CALVINO, Italo. Palomar. São Paulo; Companhia das letras; 1994. CARERI, Francesco. Walkscapes; el andar como práctica estética.Barcelona; GG; 2002. CLEMENT, Gilles. El jardín em movimiento. Barcelona; GG; 2008. ESTÉS, Clarissa. O jardineiro que tinha fé, ou então uma fábula sobre o que não pode morrer nunca. Rio de Janeiro; Rocco; 1996. GANZ, Louise. Lotes Vagos; Ação Coletiva de ocupação urbana experimental. Belo Horizonte, MAP, 2009. GROSSMAN, Vanessa. A arquitetura e o urbanismo revisitados pela Internacional Situacionista. São Paulo; Fapesp, 2006.
HEIDEGGER, Construir, Habitar, Pensar. Bauen, Wohnen, Denken. (1951) conferência pronunciada por ocasião da "Segunda Reunião de Darmastad", publicada em Vortäge und Aufsätze,G. Neske, Pfullingen, 1954. PALAZZO, José Truda. A natureza no jardim. Um guia prático de jardinagem ecológica e recuperação de áreas degradadas. Sagra; Porto Alegre; 1989 RAMOS, Nuno. Cujo. Editora 34; Rio de Janeiro; 1993. ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental. Ed.UFRGS; Porto Alegre;2007.