Bakhtin/Volochínov e a filosofia da linguagem ressignificações
Bakhtin/Volochínov e a Filosofia da Linguagem Ressignificações
Recife 2011
Copyright © by Maria de Fátima Almeida (org.) Comissão Editorial Eliete Correia dos Santos Francisco de Freitas Leite Hélcia Macedo de Carvalho Diniz e Silva Maria de Fátima Almeida Rivaldete Maria Oliveira da Silva Revisão Final Eliete Correia dos Santos Francisco de Freitas Leite Projeto gráfico e diagramação: Daiane de Sousa Produção Gráfica: Edições Bagaço Rua dos Arcos, 150 • Poço da Panela Recife/PE • CEP 52061-180 Telefax: (81) 3205.0132 / 3205.0133 email: bagaco@bagaco.com.br www.bagaco.com.br
ISBN: ? Impresso no Brasil - 2011
SUMÁRIO
PREFÁCIO................................................................................. 7 Prof. Dr. Adail INTRODUÇÃO...................................................................... 13 Maria de Fátima Almeida O SIGNO IDEOLÓGICO NA FILOSOFIA MARXISTA DA LINGUAGEM............................................ 21 Rivaldete Maria Oliveira da Silva A INTERAÇÃO VERBAL: UMA LEITURA DE MARXISMO E FILOSOFIA DA LINGUAGEM DE MIKHAIL BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV...................................................................... 37 Telma Cristina Gomes da Silva Gregório Pereira de Vasconcelos Danyelle Sousa Morais CONCEPÇÕES BAKHTINIANAS DE LÍNGUA, FALA E ENUNCIAÇÃO ..................................................................... 53 Danielly Vieira Inô Espíndula Clecio de Araújo Ferreira
PSICOLOGIA DO CORPO SOCIAL : SIGNO IDEOLOGIA E CONSCIÊNCIA........................................... 73 Rebecca Tavares Rosilândia Flávia de Lima Ramos CRÍTICA DE BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV À TRADIÇÃO SUBJETIVISTA E OBJETIVISTA DA LINGUAGEM......... 85 Adriano Carlos de Moura Hélcia Macedo de Carvalho Diniz e Silva BAKHTIN/VOLOCHÍNOV E OS PROBLEMAS DA CONSTRUÇÃO DO SENTIDO..................................................... 105 Francisco de Freitas Leite Maria Verônica A. da Silveira Edmundson A PALAVRA DE OUTREM: AS FRONTEIRAS DO FENÔMENO SOCIAL DA INTERAÇÃO VERBAL................... 123 Eliete Correia dos Santos TECENDO MAIS UMA MANHÃ: UMA PONTINHA DE PROSA SOBRE DIALOGISMO.......................................... 141 Clécida Maria Bezerra Bessa Márcia Ozinete de Alcântra Pinho SOBRE OS AUTORES.......................................................... 159
PREFÁCIO Prof. Dr. Adail Sobral
(UCPEL)
Um prefácio é um diálogo específico com uma coletividade escritora e leitora e, de modo mais imediato, com o autor ou autores prefaciados e, eventualmente, com o organizado de uma obra coletiva, seu apresentador ou o autor de sua introdução, e, mediatamente, com um possível leitor, um interlocutor presumido, mas inalcançável em sua integridade, uma vez que, apesar das pistas que os escritos prefaciados oferecem e que o prefácio tenta apreender, os leitores não são tomados em seu aspecto de sujeitos empíricos, mas de sujeitos concretos transfigurados em seres de discurso – o que de resto acontece em toda interlocução. Sendo “pré”, o prefácio realiza a função enunciativa, ou interlocutiva, de indicar ao leitor o valor que os escritos prefaciados têm do ponto de vista do prefaciador, situado, como todos os pontos de vista, e, por isso mesmo, válido, mas não verdadeiro universalmente. O prefaciador tem atribuída a si a autoridade de, por assim dizer, conduzir o leitor a aceitar um dado ponto de vista acerca de algo que ele ainda não leu, a partir da avaliação feita pelo prefaciador dos escritos prefaciados. Pode discordar de, ou concordar
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com, tudo, assim como pode destacar o que acha merecer a atenção do leitor e omitir eventuais aspectos que julgue deficientes. Se normalmente não se espera que o prefaciador avalie negativamente aquilo que prefacia, também não se espera que ele não tenha uma perspectiva crítica com relação ao que prefacia. Um prefácio, portanto, ressignifica aquilo que aborda de uma maneira específica, segundo as “regras” do gênero, relativamente estáveis, portanto. E, ao falar disso aqui, já iniciei o comentário avaliativo do livro, uma vez que ele me levou a refletir sobre o prefácio em termos da própria obra, que toca de leve na questão do gênero, mas estabelece princípios de estudo desse objeto. Os escritos que aqui se leem abordam uma única obra, Marxismo e Filosofia da Linguagem, de (Bakhtin)/Voloshinov, naturalmente recorrendo a outras e com elas estabelecendo diálogos. São precedidos de uma introdução crítica e deveras esclarecedora sobre certas valorações que têm cercado esta obra, no Brasil e no mundo. São escritos oportunos num momento em que circulam ataques à pessoa de Bakhtin, e que pretendem reduzir o valor de suas formulações ao considerá-lo, para resumir um enorme debate, aético, plagiário. Oportunos ainda porque estudiosos sérios, entre os quais se inclui o prefaciador, pretendem neste momento resgatar a contribuição específica do linguista Voloshinov às propostas do Círculo e, assim, verificar a compatibilidade entre a perspectiva de Voloshinov e a filosofia da linguagem e a filosofia moral de Bakhtin. Voloshinov, como o mostrou Gonçalves (1981), propôs o que se poderia chamar de análise sintática discursiva, ou análise enunciativa de formas de citação do discurso de outrem. Como se sabe, essa obra de Voloshinov abarca um amplo espectro de elementos relativos a uma maneira materialista dialética de pensar a linguagem. Tal como estão organizados, os capítulos oferecem uma visão integrada
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da concepção de Voloshinov nela exposta, cada qual abordando mais concentradamente um dado aspecto dela. Há capítulos sobre a concepção de signo ideológico (que ressignifica a proposta de Saussure); a concepção de interação verbal (bem mais ampla que outras concepções circulantes); a questão da definição de, e das inter-relações entre, língua, fala e enunciação (que também reformula propostas de Saussure e propõe um – então – novo objeto de estudo, a enunciação); as relações entre signo (não saussuriano), ideologia (para além do marxismo vulgar) e consciência (não psicofisiológica nem estritamente psicológica). São abordadas ainda a crítica de Voloshinov às concepções que veem no código ou no falante o locus da linguagem (crítica que, não anulando sua validade do ponto de vista de quem as propôs, mostra a parcialidade de ver a língua como sistema ou o sujeito como agente enquanto a instância decisiva do sentido, perdendo de vista que: (1) língua e sujeito existem como partes do processo mais amplo da linguagem e (2) esse processo cria sentidos nas situações de uso, situadas, contextuais, tomando as significações da língua como um de seus componentes); a questão mais ampla da produção – ou instauração – de sentidos (que engloba as propostas antes aludidas); questões vinculadas com a identificação, em atuações verbais (ou atos verbais situados), das fronteiras entre parceiros da interação (no sentido amplo que o termo tem para o Círculo); e a concepção dialógica em geral (concepção radical, uma vez que vai além do formalmente observável e toca a rede infinita da instauração de sentidos jamais realizados). Destaco que este livro constitui uma excelente obra didática (em vez de um mero comentário erudito ou de especulações sutis sem lastro no concreto), uma obra que pode ser usada para promover leituras sistemáticas em busca de uma melhor compreensão de Marxismo e Filosofia da Lin-
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guagem e, a partir disso, de suas relações com outras obras do Círculo. Hoje, tanto em cursos de graduação como de pós-graduação lato sensu e em mestrados e doutorados, quem estuda a linguagem não pode prescindir do conhecimento das propostas do que Bénédicte Vauthier (2010) denominou “CÍRCULO B.M.V. – BAKHTIN, MEDVEDEV, VOLOSHINOV”. Da junção entre as propostas desses três teóricos (que vimos buscando; cf., por exemplo, SOBRAL, 2006, 2009) pode nascer uma nova maneira de compreender a concepção dialógica de linguagem e sua radicalidade. Não digo com isso que as leituras aqui apresentadas sejam normativas, mas que constituem pontos de partida instigantes para uma exploração da radicalidade da concepção dialógica. Outra característica relevante desses capítulos é que eles nem são isolados nem se pretendem fundados numa gradação do mais simples para o mais complexo. Estão organizados segundo os três eixos propostos por Voloshinov na obra abordada e, como bem diz a organizadora, buscam mostrar de que maneiras os respectivos autores aprofundam sua compreensão da obra e, com isso, contribuem para mostrar, a quem se interessa pela análise dialógica do discurso, novas possibilidade de leitura, promovendo assim outros aprofundamentos, outras ressignificações, que permitam perceber que o Círculo revela já em suas obras aquilo que pretende propor como sua concepção de linguagem e de discurso. Para designar aquilo que se pode considerar o cerne de todo ato de instauração de sentidos em chave bakhtiniana, numerosos estudiosos usam o termo ressignificação. Para Bakhtin, Voloshinov e Medvedev, entre outros autores russos que vieram a ser considerados membros do chamado “Círculo de Bakhtin” (um círculo que não pertencia a Mikhail Mikhailovich, mas de que ele foi membro), todo ato de linguagem ressignifica, de um dado ponto de vista, sempre valorativo, palavras alheias, palavras de outros, tanto já
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ditas como presumíveis a partir do confronto entre pontos de vista, ou valorações. Assim, todo ato de linguagem ressignifica, de acordo com a posição valorativa de seu agente, algo que não foi dito necessariamente por ele, mas que assume um acento de valor dependente tanto da “soma” de suas relações sociais como da relação interativa particular em que esse ato é realizado. Este livro propõe um conjunto de ressignificações que nos impelem a produzir palavras e contrapalavras, propõe leituras situadas de uma dada obra que levaram este prefácio a propor uma dada leitura dessas leituras que nasceu do contato com os textos e não de algum presumido antecedente. Temos aqui um conjunto de textos que constituem (e aqui ressignifico a expressão computação em nuvem) uma nuvem em que cada componente remete a todos os outros, num mosaico “hipertextual” (e não será o dialogismo uma descrição avant la lettre da hipertextualidade?) que ajudamos a compor neste nosso prefácio ao remeter, também nós, não apenas a cada um deles, mas igualmente ao que fizeram ressoar em nossa leitura prefaciadora. Pelotas, 07 de agosto de 2011.
Referências GONÇALVES, M. S. Elementos para a proposição da noção de interlocutor como categoria linguística. Dissertação de Mestrado. Campinas, IEL – UNICAMP, 1981. SOBRAL, A. Elementos sobre a formação de gêneros discursivos: a fase “parasitária” de uma vertente do gênero de auto-ajuda. Tese de Doutorado. São Paulo: LAEL/PUC-SP, 2006.
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______. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do Círculo de Bakhtin. Campinas: Mercado de Letras, 2009. VAUTHIER, B. Auctoridade e tornar-se-autor: nas origens da obra do “Círculo B. M. V.” (Bakhtin, Medvedev, Volochinov). In: PAULA, L. de e STAFUZZA, G. (Org). Círculo de Bakhtin – teoria inclassificável. Campinas: Mercado de Letras, 2010.
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INTRODUÇÃO Polêmica autoria, autorias polêmicas Maria de Fátima Almeida (UFPB/PROLING) falmed@uol.com.br
Este livro versa sobre questionamentos e discussões do Marxismo e Filosofia da Linguagem, com o objetivo de explorar possibilidades de leitura dos principais conceitos com que Bakhtin/Volochínov apresenta a difícil problemática filosófica da linguagem humana. Nessa obra, esse filósofo associa o seu pensamento à dialética e alia-se a um mundo sempre em processo, não se submetendo a uma forma fixa e imutável. Reler, compreender, questionar o texto é retomar a discussão bakhtiniana sobre a linguagem e a sua contribuição para a Linguística. As concepções da filosofia da linguagem bakhtiniana (e do círculo) não só continuam atuais, mas ainda circulam entre os estudiosos de diferentes áreas do conhecimento. A organização metodológica não segue a sequência dos capítulos do livro Marxismo e Filosofia da Linguagem, mas uma lógica temática, mostrando mais uma vez o inacabamento e a liberdade em que os autores destes artigos se pautam e buscam, fundamentalmente, compreender a linguagem humana. Em cada texto, encontraremos uma reflexão, fruto das inquietações da
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leitura ou da contrapalavra dos leitores no processo de interlocução. O tom e o tema abordados nas três partes do Marxismo e Filosofia da Linguagem, na visão desses leitores, estão distribuídos de modo a se compreender a discussão do signo ideológico como elemento refratário da realidade que se mantém na história e transforma-se no processo interativo verbo-social. As reflexões deixam entrever as inquietações dos autores sobre a importância da definição de uma psicologia objetiva do corpo social para a linguística com base na natureza do signo ideológico. Nas considerações sobre o pensamento filosóficolinguístico, surgem os questionamentos a partir de duas tendências da tradição da linguística, enquanto ciência, o subjetivismo idealista de Humboldt e Vossler e o objetivismo abstrato de Saussure com base nas orientações do pensamento marxista da linguagem. A interação verbal e a enunciação são as grandes contribuições de Bakhtin/ Volochínov para os estudos linguísticos e renovam os acentos apreciativos que ressignificam as leituras realizadas. Enfim, em Marxismo e Filosofia da Linguagem, são lançados os fundamentos “Para uma história das formas da enunciação nas construções sintáticas: tentativa de aplicação do método sociológico aos problemas sintáticos. Bakhtin/Volochínov esboça uma orientação sociológica em linguística, para tratar do fenômeno de transmissão da palavra de outrem, delimitando como fronteira o fenômeno social da interação verbal em seu todo, realizada por meio das enunciações. Optamos recortar para esta introdução o que ainda é motivo de polêmica entre os pesquisadores e estudiosos de Bakhtin e de seu Círculo, que é a autoria da obra em questão. Apontamos algumas discussões que permitem visualizar uma tomada de posição pelos interlocutores.
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A polêmica da autoria de Marxismo e Filosofia da Linguagem e de outros trabalhos do Círculo Em entrevista concedida ao estudioso de literatura da Universidade de Moscou, Viktor Duvakin, no ano de 1973, num determinado momento da conversa e sem nem mesmo ser interpelado exatamente sobre a questão, o próprio Bakhtin diz: “Volochinov... é autor do livro Marxismo e Filosofia da Linguagem, livro que, digamos, atribuem a mim” (BAKHTIN e DUVAKIN, [1973] 2008, p. 80). Entretanto, não se pode dizer que essa afirmação na ocasião dessa conversa resolva definitivamente a questão do autor efetivo de Marxismo e Filosofia da Linguagem, pois os próprios organizadores das notas explicativas dessa entrevista anotam sobre a questão que “a participação de Bakhtin como autor destes trabalhos [falando também de O freudismo e de uma série de ensaios assinados por Volochínov] é confirmada por muitos testemunhos e pode ser reconhecida sem dúvida, mas permanece aberta a questão da forma e do nível dessa participação” (Idem, p. 290). Sabe-se que Bakhtin não era uma pessoa ambiciosa e, mesmo enfermo, mantinha ativa produção intelectual. Em Clark e Holquist (2008, p, 174) lemos que “a explicação que deu a Iudina sobre o motivo pelo qual publicara aqueles textos sob o nome de seus amigos incluiu a afirmação: ‘Nós éramos amigos. Discutíamos coisas. Mas eles tinham empregos, enquanto eu tinha tempo para escrever’”. Em edição argentina, por exemplo, Marxismo e Filosofia da Linguagem recebeu o título de El signo ideológico y la filosofia del lenguaje (VOLOSHINOV, [1929] 1976), aparecendo como autor somente Valentín N. Voloshinov. No Brasil, a autoria de Marxismo e filosofia da linguagem aparece como sendo de Bakhtin, mas entre parênteses – à semelhança de um pseudônimo ou de um heterônimo – o nome de Vo-
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lochínov. Todavia, nesta introdução, queremos deixar claro – independentemente de não se ter um posicionamento ainda resolvido acerca da questão da autoria individual ou conjunta de Marxismo e Filosofia da Linguagem (de 1929) e também de O freudismo (de 1927), bem como de outros ensaios, tal como Discurso na vida e discurso na arte (de 1926) – não restar dúvida que: (I) essas obras sejam do primeiro Círculo de Bakhtin (do período desde os anos 20, sobretudo, em Leningrado. Primeiro Círculo este que reunia Bakhtin, Volochínov, Medvedev, Iudina, Pumpianski e Kanaev, entre outros); (II) possuem “indubitável participação [...] por parte de Bakhtin” (BAKHTIN e DUVAKIN, [1973] 2008, p. 290), e isso é o que nos interessa mais. Não nos é dada a condição de responder definitivamente acerca das reais razões que levaram Bakhtin a não assinar esses trabalhos, apesar da sua clara participação neles como autor ou colaborador. Entretanto, no prefácio da edição brasileira de Marxismo e Filosofia da Linguagem, o grande linguista russo Roman Jakobson apresenta sua explicação dizendo que “Bakhtin recusava-se a fazer concessões à fraseologia da época e a certos dogmas impostos aos autores” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, [1929] 2009, p. 9). As perseguições políticas, condenação e exílio a que Bakhtin foi submetido na União Soviética desde os anos 20 – por supostamente ser “membro ‘de uma organização ilegal antissoviética de intelectuais de direita’, que teria existido por alguns anos em Leningrado sob o nome de ‘Voskresenie’ [Ressurreição]” (BAKHTIN e DUVAKIN, [1973] 2008, p. 292) – podem sim ter também contribuído para seu silenciamento/esquecimento por vários anos na Rússia, bem como podem ter sido parte do motivo pelo qual seu nome não apareceu como autor de alguns trabalhos do Círculo, ainda conforme Jakobson (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, [1929] 2009, p. 9). Marina Yaguello, na introdução de Mar-
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xismo e Filosofia da Linguagem da edição brasileira – lembrando também a obra O método formalista aplicado à crítica literária: introdução crítica à poética sociológica (ainda não traduzido para o português), publicada em 1928 e assinada por Medvedev, mas sendo muito provavelmente de autoria de Bakhtin –, cogita ainda que “outra ordem de motivos seria mais pessoal e ligada ao caráter de Bakhtin, ao seu gosto pela máscara e pelo desdobramento e também, parece, à sua profunda modéstia científica. Ele teria professado que um pensamento verdadeiramente inovador não tem necessidade, para assegurar sua duração, de ser assinado por seu autor” (BAKHTIN /VOLOCHÍNOV, [1929] 2009, p. 12). Quando, enfim, nos artigos deste livro, falando da autoria de Marxismo e Filosofia da Linguagem, citarmos apenas Bakhtin, não é por descrédito a Volochínov ou aos outros integrantes do Círculo, mas pela simples referência à autoria anotada na edição brasileira. Mais do que as querelas acerca da autoria, interessam-nos as ideias ainda atuais e pertinentes (e sem dúvida nenhuma marcadamente bakhtinianas) de Marxismo e Filosofia da Linguagem, ou, como diz Cunha (2011, p. 117), “o desafio é ir além do já-dito e mostrar o caráter heurístico das propostas de Bakhtin e Volochínov”.
A questão da tradução de Marxismo e Filosofia da Linguagem e de outros trabalhos do Círculo Para aqueles que querem desvalorizar ou desmoralizar as traduções das obras do Círculo de Bakhtin, respondemos – com um certo tom rabelaisiano – que o russo não é o indoeuropeu, nem a Rússia é o território dos arianos, nem o século XX é a pré-história... ou seja, existem sim boas e confiáveis traduções, assim como excelentes pesquisas e
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estudos sobre o Marxismo e Filosofia da Linguagem, sobre outras obras do Círculo e também sobre o contexto em que foram produzidas. Alguns comentários dos críticos e dos avessos a Bakhtin e/ou às obras do Círculo citam o fato de algumas traduções terem sido feitas primeiramente do russo para o inglês, francês ou alemão e destas para o português, querendo com isso desqualificar esses trabalhos. Contra isso, gostaríamos de lembrar as cuidadosas traduções diretas do russo que já existem (por exemplo, as de Paulo Bezerra) e a própria vantagem de se ter várias traduções em línguas diferentes, que possibilitam comparar e ampliar as discussões acerca de acepções e sentidos que alguns termos e/ou conceitos ganham em outras línguas.
A questão do título e do subtítulo de Marxismo e Filosofia da Linguagem e da sua relação com outras obras do Círculo O título Marxismo e Filosofia da Linguagem e o subtítulo Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem podem sugerir a apressada e reducionista filiação de Bakhtin a um marxismo partidarista ou mesmo a uma filosofia política. Entretanto, essas questões devem ser levadas em conta observando que a filosofia da linguagem do Círculo de Bakhtin não é restritamente reduzida a Marxismo e Filosofia da Linguagem, que, aliás, vai bem mais além de uma temática exclusivamente marxista, pois concebe a filosofia da linguagem como filosofia do signo ideológico, mas também “aborda, ao mesmo tempo, praticamente todos os domínios das ciências humanas, por exemplo, a psicologia cognitiva, a etnologia, a pedagogia das línguas, a comunicação, a estilística, a crítica literária e coloca, de
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passagem, os fundamentos da semiologia moderna”, como lembra Marina Yaguello (BAKHTIN (VOLOCHÍNOV), [1929] 2009, p. 13). Além disso, a filosofia da linguagem do Círculo de Bakhtin está dispersa em toda sua produção ao longo dos anos, ela não se reduz a um livro. Também deve ser levada em conta que um estudo mais aprofundado da vida e da produção de Bakhtin revela que ele próprio não se interessar tanto por marxismo, e que muitas vezes deparamos com um Bakhtin, para muitos, desconhecido: um pensador, amante da poesia e interessado por espiritualidade. Algumas questões apresentadas e/ou discutidas em Marxismo e Filosofia da Linguagem aparecem também tratadas em outras obras do Círculo. É o caso dos temas da consciência, do psiquismo e da ideologia, que são mais detalhados em O freudismo: um esboço crítico; é o caso do tema dos gêneros e da alteridade, tratado com mais demora em Estética da criação verbal; é o caso do tema da entoação também detalhada em Discurso na vida e discurso na arte; é o caso dos conceitos de dialogismo e polifonia, tão bem abordados em Problemas da poética de Dostoiévski, etc. Na verdade, nenhum assunto será definitivamente desenvolvido e concluído num só livro: em Bakhtin – parece que intencionalmente – somente no diálogo e na interação entre as várias vozes dos textos do Círculo é que os conceitos e as concepções vão se mostrando e se construindo: nada estará didaticamente apresentado ou separado.
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REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. M./VOLOCHÍNOV, V. N. [1929]. Marxismo e filosofia da linguagem. 13. ed. Trad. M. Lahud e Y. F. Vieira. São Paulo: Hucitec, 2009. BAKHTIN, M. M. e DUVAKIN, Viktor. [Original de 1973]. Mikhail Bakhtin em diálogo – conversas de 1973 com Viktor Duvakin. São Carlos: Pedro e João Editores, 2008. CLARK, Katerina; HOLQUIST, Michael. [1984]. Mikhail Bakhtin. Tradução J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2008. CUNHA, D. A. C. Formas de presença do outro na circulação dos discursos. Bakhtiniana, São Paulo, v. 1, n.5, 1º semestre 2011 p. 116-132. VOLOSHINOV, Valentín N. [1929]. El signo ideológico y la filosofia del lenguaje. Traducción del ruso de Ladislav Matieyka e I. R. Titunik; traducción del inglés de Rosa María Rússovich. Buenos Aires: Nueva Visión, 1976.
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O SIGNO IDEOLÓGICO NA FILOSOFIA MARXISTA DA LINGUAGEM Rivaldete Maria Oliveira da Silva (UFPB/PROLING/UNIPÊ) rivaldete.silva@bol.com.br
Introdução A concepção de linguagem fundamentada nas bases marxistas, proposta por Bakhtin/Volochínov (2009), tem sido objeto de estudo dos que se debruçam sobre a sua obra, buscando diretrizes metodológicas para compreensão do signo ideológico, enquanto elemento constitutivo da consciência humana, instrumento de interação verbal que se realiza pelos sentidos do discurso e pelas suas formas de produção. Com o objetivo de realizar uma abordagem investigativa sobre a concepção de signo ideológico determinado pelas estruturas sociais, presente na teoria marxista da linguagem, torna-se necessário discorrer sobre alguns elementos determinantes para construção desse signo, enquanto realidade da língua, como consciência, palavra, ideologia e psicologia do corpo social. Este fenômeno do mundo exterior, o signo ideológico, de ve ser concebido a partir de um sujeito, que se constitui na e pela linguagem, num processo de interação determinado pelo momento sócio-histórico formador de condutas
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humanas. Esta visão do signo veiculada à consciência individual desconstrói a ideia do sujeito idealista, que tem como realidade da língua a enunciação monológica e refuta os princípios do objetivismo abstrato, que entende a língua como um sistema abstrato de normas linguísticas determinadas. Desse modo, o autor define as relações sociais como o eixo de seus pressupostos teóricos e evidencia que o signo e a situação social estão indissoluvelmente interligados. Essa reflexão determina que toda palavra implica ideologia, segue os atos de compreensão e interpretação da vida humana, preenche qualquer função ideológica, seja de ordem estética, científica ou moral, permitindo ao homem constituir-se em permanente relação com o outro, ser visto como um ser inacabado, estabelecido no processo dialógico. Situando este signo ideológico como elo contínuo da passagem entre a organização socioeconômica (infraestrutura) e os sistemas ideológicos (superestruturas), são pertinentes as reflexões de Miotello (2010) e de Stella (2010) para um questionamento do termo tomado, neste estudo, como elemento que reflete e refrata toda realidade social. Esta pesquisa, ao analisar a noção de signo para os domínios de uma filosofia da linguagem, fundamentando-se nos capítulos iniciais de Marxismo e filosofia da linguagem, tem a preocupação de relacionar aspectos teóricos já estabelecidos em fontes bibliográficas, a fim de aprofundar, de forma mais específica, a filosofia do signo ideológico na perspectiva interacionista da linguagem, estimulando novas investidas, para que outros questionamentos sejam encontrados.
1. Por uma filosofia do signo A proposta para a criação de uma filosofia marxista da linguagem coloca o signo como um instrumento ideológico
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exterior à consciência individual, discute o lugar da linguagem na relação entre as infraestruturas e as superestruturas e busca uma síntese dialética para estes fenômenos situados em planos diferentes por meio dos atos enunciativos nos mais diversos domínios da organização social. Visando a estabelecer um paralelo entre a evolução da sociedade e a evolução do signo numa perspectiva semiótica, Bakhtin/Volochínov (2009) procura estabelecer uma definição para a realidade dos fenômenos ideológicos de forma diferenciada das teorias da época, afirmando que todo fenômeno funciona como signo ideológico por meio de uma encarnação material, seja como um som, massa física, cor, movimento ou outra materialidade qualquer. Com isso, o autor quebra a linha de pensamento de alguns teóricos, inclusive marxistas tradicionais que vêem a infraestrutura sufocada pela ideologia dominante e insere a questão numa discussão filosófica de caráter dialético, fundamentada na consciência, constituída de signos, em oposição ao idealismo e ao psicologismo cultural, que não situam o fato da compreensão como uma resposta a um signo por meio de outro signo, antes apontam a ideologia como um fato de consciência. Nas considerações de Miotello (2010, p. 167), A queixa inicial era de que a produção teórica marxista, até aquele momento, não havia colocado o problema do estudo da ideologia no lugar certo, e o tinha tratado de forma mecanicista, ou seja, [...] os teóricos marxistas procuravam estabelecer uma ligação direta entre acontecimentos nas estruturas socioeconômicas e sua repercussão nas superestruturas ideológicas.
Dessa forma, a proposta filosófica da época esquecia que, ao lado de todo instrumento de produção e dos produtos de consumo, existe um outro universo, o universo dos sig-
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nos, instalados na enunciação concreta da linguagem. Dada essa particularidade, todo corpo físico que passa a ter um significado exterior à sua natureza, tem a função de signo ideológico, não só por refletir uma realidade material, mas também por refratar essa ou outra realidade. A consciência, neste contexto, “adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 36). Ela não se compõe de substância pura ou transcendental, situada acima da existência, mas de um conteúdo ideológico, o signo, única matéria de seu desenvolvimento. Na consciência, não reside uma alma, personalidade, organismo biológico ou ideologia, instalam-se signos construídos a partir da linguagem, dotados de ideologia, materializados na comunicação ideológica, na interação semiótica (discursiva) de um grupo social. “Assim, a consciência não é o ponto de partida, mas sim pontos de estadas momentâneas, incessante e ativamente instabilizadas pela ação responsável (Geraldi, 2010, p 289).” Ação de um sujeito ativo, respondente, datado, constituído na comunicação verbal. Por este ângulo, a consciência deve ser entendida como uma realidade que se estabelece no contexto ideológico, na palavra, no ato responsável do dizer. Tudo nela se dispõe à interpretação, mesmo que esteja revestida do discurso interior. Suas origens provêm das relações de produção e da estrutura sócio-política, constituindo-se a partir de grupos socialmente organizados. Qualquer mudança nesses grupos provoca deslocamentos, interfere no meio onde reside a consciência, suscita uma mudança de signo. A ideologia não é algo exterior ao semiótico, mas intrínseco a ele. Em todo domínio da comunicação onde o signo se encontra, coincide também um domínio ideológico. As relações sociais determinam a compreensão por meio de uma cadeia ideológica onde os sujeitos se inter-relacionam
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deslocando-se de um signo a um novo signo, constituindo um elo permanente, sem interrupção, que se estende de uma consciência individual a outra consciência individual, impregnando-as de conteúdo ideológico. Por esta perspectiva, só se pode entender essa consciência individual como um fato sócio-ideológico, como um processo de diálogo permanente entre os homens. Refletindo as condições da vida material da sociedade e os interesses de uma ou outra classe, a ideologia, por sua vez, trata do desenvolvimento social. Este processo de desenvolvimento precede de estratos da infraestrutura e toma forma nas superestruturas, movimento que não pode ser esclarecido senão pelo estudo do material verbal, pelas relações sígnicas, dentro de uma realidade em transformação, que usa a palavra em todas as suas possibilidades significativas. Só dessa maneira, os procedimentos linguísticos dão conta da completude da enunciação. Debruçando-se sobre esta questão, Bakhtin/Volochínov (2009, p. 42-43) assevera que o que chamamos de psicologia do corpo social e que constitui, segundo a teoria de Plekhánov e da maioria dos marxistas, uma espécie de elo de ligação entre a estrutura sócio-política e a ideologia no sentido estrito do termo (ciência, arte etc.), realiza-se, materializa-se, sob a forma de interação verbal. Se considerada fora deste processo real de comunicação e de interação verbal (ou, mais genericamente, semiótica), a psicologia do corpo social se transforma num conceito metafísico ou mítico (a ‘alma coletiva’, ‘o inconsciente coletivo’, ‘o espírito do povo’ etc.).
Cria-se, assim, a diretriz epistemológica dos estudos bakhtinianos para o sentido dialógico da linguagem, fundada na análise dialética das relações entre a ideologia oficial e a ideologia do cotidiano. Esta postura do autor parte
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do conceito da ideologia marxista, no entanto distancia-se da sua forma mecânica de relacionamento, onde qualquer mudança em uma base se reflete imediatamente em outra. Para ele, toda mudança só se realiza na interação verbal. Nessa inter-relação, o signo mantém-se na história, transforma-se na interação verbal e carrega todos os modos de interpretar a realidade. De um lado, ele se constitui da oficialidade dos sistemas organizados e, de outro, transporta em si a necessidade de reorganização a partir do contato com outros signos nas relações sociais. Todas as relações humanas sofrem as influências ideológicas de um determinado contexto social, seja ele de estrato superior ou inferior. Neste jogo múltiplo e ininterrupto, o que torna o signo ideológico vivo e dinâmico faz também dele um instrumento de refração e de deformação do ser. A força ideologizante presente no signo serve de arma para interesses específicos desta ou daquela classe social. Nesta perspectiva, o interesse metodológico desse processo centraliza-se no socioideológico e determina a ideologia do cotidiano ou psicologia social, como espaço da comunicação da vida cotidiana que, pela sua intensa mobilidade, promove a instabilidade na ideologia oficial e torna-se a base de toda construção ideológica. A psicologia social não se encontra no interior, na individualidade, mas no exterior, no ato, no gesto, na imagem, nas situações, na palavra, nos mais diversos aspectos da enunciação. Em outros termos, o que realmente se impõe é a importância do signo como alimento da consciência, como instrumento da comunicação ideológica expressa num material semiótico. Depreende-se desta questão, a necessidade de “[...] pesquisar as formas materiais precisas da expressão da psicologia do corpo social” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 44) de dar fundamento a suas diferentes manifestações
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vez que a sua materialização acontece na palavra, onde se engenham o conteúdo temático e a forma verbal materializada, ou seja a organização do discurso. Assim, os temas e as formas da criação ideológica crescem juntos e constituem no fundo as duas facetas de uma e só mesma coisa. Este processo de integração da realidade na ideologia, o nascimento dos temas e das formas, se tornam mais facilmente observáveis no plano da palavra (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 47).
Estudar a tipologia destas formas representa o ponto-chave da teoria marxista da linguagem para que se compreenda a relação recíproca entre a infraestrutura e a superestrutura pelos atos concretos da língua.
2. A palavra como signo ideológico Preocupada com uma visão de sujeito consciente, situado na interação verbal, a concepção linguístico-filosófica bakhtiniana toma a palavra como recurso maior e material primeiro da comunicação discursiva. Este sujeito, vivenciado no diálogo do eu com o outro, tece uma realidade viva, abrangente e multifacetada, abrindo caminhos em todos os domínios das relações sociais e engenhando novas formas de enunciação. O diálogo contínuo, presente em todos os dizeres possíveis, situa a palavra, em primeiro lugar, numa pequena temporalidade, onde a comunicação se realiza em uma situação determinada, num momento imediato, próximo às posturas teóricas atuais ou, em segundo plano, numa grande temporalidade, em que as palavras constroem um grande diálogo sem limites, dentro e fora, antes e depois de qualquer teorização, sem passado e de futuro ilimitado, formando um tecido em permanente movimento, que
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retoma cada signo rememorado e renascido na cadeia da comunicação. Por esta dimensão, a palavra apresenta particularidades que são fundamentais para a sua compreensão de uso no plano das ideologias. Bakhtin/Volochínov (2009) discorre sobre tais instrumentos, definindo-os como pureza semiótica, neutralidade ideológica, implicação na comunicação humana ordinária, possibilidade de interiorização e, finalmente, presença obrigatória, como fenômeno acompanhante em todo ato consciente. Em Estética da criação verbal (2000) a questão do termo palavra é retomada na enunciação. Isto significa que as palavras emitidas, no discurso, organizam-se dentro de um gênero selecionado pelo locutor, de forma que atenda às suas necessidades comunicativas. Reafirmando essas posições teóricas, verifica-se que a palavra em sua pureza semiótica adquire a capacidade de circular como signo ideológico. Esta capacidade decorre de seus traços mais ou menos efetivos de significação, dos possíveis sentidos dicionarizados e das possibilidades de se fazer circular em várias esferas ideológicas. São tão diversas as variações de uso de uma determinada palavra que se torna quase impossível precisar seu funcionamento. Sua concretização só ocorre com a inclusão no contexto social real. O sentido da palavra é determinado pelo seu contexto. Os contextos possíveis de uma única palavra são frequentemente opostos. Dessa forma, todo contexto põe o locutor e interlocutor frente a frente com o mundo tal qual idealizado e construído por eles, quer seja nos seus aspectos perversos ou estigmatizados, quer seja na sua dimensão crítica e transformadora da ordem estabelecida. Em sua possibilidade de interiorização, a palavra representa o único meio de o sujeito se relacionar com o interior (consciência) e o exterior, pois ambos são constituídos por
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palavras. Para compreender o mundo, esse sujeito confronta as palavras da sua consciência com as que circulam no mundo real. Nos questionamentos de Sobral (2010, p. 24), “O Círculo destaca o sujeito não como um fantoche das relações sociais, mas como um agente, um organizador de discursos, responsável por seus atos e responsivo ao outro.” Este enfoque se centra entre o signo internamente já estabelecido e as variações de sentido que pode adquirir, conforme as entoações valorativas determinadas pelo locutor. É o princípio dialógico e constitutivo de todos os dizeres possíveis, Nesse processo, o locutor trabalha a palavra em seu discurso, levando-a à participação de um ato consciente, de uma escolha negociada dentro de uma realidade comunicativa, objetivando entre tantas uma forma de dizer. “O processo de interiorização se dá no embate entre o signo internamente circulante e o externo” (STELLA, 2010, p. 187). Pela consciência, o ser fixa os possíveis significados do signo e transforma-os em produto novo. Este produto só emerge no processo de relação entre indivíduos. Assim, a palavra se confronta entre os significados já conhecidos e os construídos pela intenção comunicativa do locutor. Por meio dela, o locutor propõe uma compreensão de mundo que já foi incorporada pela consciência e que se concretiza numa experiência exterior. Todas as manifestações de comunicação (pintura, música, rituais do comportamento social) passam pela consciência individual para serem compreendidas. Nesta perspectiva, o mundo interior e o mundo exterior encontram-se por meio dos signos constituídos socialmente. Quanto à sua neutralidade, se todo contexto metodológico se firma numa posição social, ideológica e histórica, a palavra só pode ser neutra, ou a partir de uma possível ambiguidade de tradução, já que o termo, em russo, entre
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outras acepções, possui o sentido de “meio,” “médio,” “comum,” funcionando também como advérbio de lugar: “no meio de,” ou referir-se aos estudos formais da linguística, tomando-a como signo abstrato, instrumento técnico que, ao se reconstituir no ato enunciativo, adquire um valor ideológico. Diante deste problema de tradução, enfrentam-se consequências para a identificação dos conceitos pela forma assistemática como os textos foram traduzidos para o português, às vezes não mais do russo, mas do francês ou inglês, surgindo variações de alguns termos de um livro para outro ou, então, pela dispersão das definições desses termos que se espalham ou evoluem pelos estudos realizados sobre o Círculo. No caso do vocábulo palavra: Esse termo possui um duplo significado em sua língua original. Ou seja, em russo, o termo palavra não somente tem uma correspondência direta com o termo palavra em português, mas também possui correspondência com outro termo que é discurso (STELLA, 2010, p. 183).
Na perspectiva deste autor, a palavra pode representar tanto o nível gramatical e linguístico do termo quanto seu nível discursivo, que assume vários sentidos e enfoques, conforme as atividades de estudo da ciência da linguagem. Cabe, nesse contexto, conceber palavra como signos ideológicos absorvidos pela consciência humana, transformados e reconstituídos no circuito da interação verbal. A neutralidade, assim entendida, é palavra vista de forma descontextualizada, desprovida da noção de ideologia, mas que pode assumir qualquer função ideológica a partir de seu uso, a partir do momento que recebe, no enunciado, uma nova carga significativa. Portanto, na condição de signo neutro, toda palavra representa formas ideológicas específicas dos domínios já emitidos.
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O sentido da palavra só se completa, na medida em que a compreensão se faz ativamente, em forma de réplica ao que foi dito. Essa atitude responsiva representa a possibilidade de compreensão, a via em que se coloca o locutor diante de uma forma de diálogo, opondo sua palavra a uma contrapalavra. Isto garante a multiplicidade de sentidos da palavra e evidencia esta questão da compreensão na ininterrupta cadeia da comunicação verbal, que traz em seus elos – os enunciados – a voz do outro, a voz de outrem como constitutiva da voz de cada locutor. Essa relação contínua leva em conta como se assimilam as palavras alheias, como são criadas constitutivamente as respostas contextuais e como as práticas sociais influenciam nossos modos de interação, pois tanto é verdade que a palavra penetra literalmente em todas as relações entre indivíduos, nas relações de colaboração, nas de base ideológica, nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas relações de caráter político, etc. As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 42).
Dialógica por natureza, a palavra segue os atos de compreensão e interpretação da vida humana. Concretiza-se como signo ideológico no fluxo da interação verbal, ganha diferentes significados de acordo com o contexto em que está inserida e revela um espaço em que os valores fundamentais de uma dada sociedade se explicitam e se confrontam. A realidade (infraestrutura) determina a ideologia. É o ser se refletindo e se refratando no ideológico pelos interesses sociais. Em sociedades complexas que vivem constantes mudanças, que trazem, na sua história, severos conflitos, algumas palavras, por sua prática semiótica, carregam fortes
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traços ideológicos. Aqui, faz-se necessário lembrar algumas situações conflituosas do cenário brasileiro em que determinadas posturas políticas levam o homem a interiorizar termos como regime, liberdade, exílio de uma forma muito mais ampla em sua significação. A partir desta ligação estreita entre a compreensão situada na atividade mental e a situação social, cada signo passa a ser utilizado, levando-se em consideração sua história e suas diferentes orientações ideológicas. É desse processo que se tem a sua sobrevivência como signo vinculado à ideologia do cotidiano, inserido nas diversas esferas de comunicação. Por este vínculo advém a capacidade da palavra de significar, de constituir-se na enunciação. “A realidade toda da palavra é absorvida por sua função de signo. A palavra não comporta nada que não esteja ligado a essa função, nada que não tenha sido gerado por ela. A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 36). Nesse sentido, o signo é tido como um fragmento material da realidade que a refrata, como veículo da ideologia e, principalmente, como causa e efeito dos confrontos sociais. A consciência constitui-se de signos que entrelaçam signos sem interrupção, formando uma rede ideológica estabilizada nas formas de compreensão da realidade sócio-histórica. Para o mestre russo, a orientação do pensamento filosófico-linguístico não está nem no subjetivismo idealista romântico nem no objetivismo abstrato estruturalista, já que o primeiro se fundamenta na enunciação monológica da língua, no ato puramente individual como uma expressão da consciência, enquanto o outro, pensado por Saussure, considera a língua como um sistema abstrato de formas linguísticas, um produto acabado, existente na coletividade, pronto para ser usado por cada indivíduo, mas não pode ser modificado por um único indivíduo conscientemente.
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A partir desta crítica epistemológica, surge o método sociológico marxista, pensa-se a apreensão da linguagem em sua realidade viva, empregando à língua um caráter verdadeiramente social, carregado de ideologia, história e vivências cotidianas. Isso significa que a linguagem não é um dom inato, uma expressão do pensamento nem um meio, um instrumento capaz de transmitir ao destinatário uma mensagem, mas uma forma de interação social, de diálogo interpessoal, de trabalho coletivo que se realiza dentro das práticas sociais, nos mais diferentes grupos, nos mais diversos e infinitos momentos, em todas as formas de comunicação. A relação dialógica pressupõe uma língua, mas não existe no interior do sistema linguístico. Assim, não são as palavras, nem as orações – como unidades de língua – as responsáveis pelo significado do enunciado. Este, sempre orientado pela interação social dos participantes da enunciação, compreende tanto a parte verbal quanto a não-verbal de uma dada situação de comunicação concreta e imediata. Os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada, mas a organiza na enunciação que é de natureza social. Em se tratando de língua estrangeira, ao adquiri-la, a consciência, graças à língua materna, confronta-se com uma língua toda pronta que só lhe resta assimilar. O centro organizador de toda enunciação, de toda expressão não é interior, mas exterior. Está no meio social que envolve o indivíduo. Desse modo, a enunciação é um puro produto da interação verbal, enquanto a situação social ou o contexto em que se realiza esse processo interativo determina não só o discurso bem como o tema, o estilo e a comunicação. A linguagem determina a atividade mental, tornando o signo e a enunciação de natureza social, na medida em que a ideologia determina a linguagem. Tudo que é ideológico possui um significado. Desse modo, compreender
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um signo consiste em aproximar este signo apreendido de outros já conhecidos, pois “não é a atividade mental que organiza a expressão, mas, ao contrário, é a expressão que organiza a atividade mental, que a modela e determina sua orientação” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 116). Esta é a singularidade da enunciação concreta, inteiramente determinada pelas relações sociais. Em todo ato da fala, a atividade mental subjetiva se dissolve no fato objetivo da enunciação realizada; a palavra enunciada se subjetiva no ato de decodificação. Ela se revela como o produto da interação viva das forças sociais. O essencial da tarefa de compreensão não consiste em reconhecer a forma utilizada, mas compreendê-la num contexto preciso, que é compreender sua significação numa enunciação.
3. Considerações finais Dessa leitura, entende-se que o autor, pelos seus múltiplos interesses, coloca a linguagem no centro da teoria das relações dialógicas para desconstruir a ideia de sujeito idealista, defender a natureza social do signo e mostrar que todo sujeito responde constitutivamente às condições contextuais de forma que o eu não existe sem o outro nem o outro sem o eu em qualquer situação de comunicação. Todo diálogo presume pelo menos dois falantes, mesmo num monólogo. O locutor tem sempre diante de si um interlocutor, ainda que seja um outro eu constituído. Deduz-se também que o signo veicula ideologia, carrega volumoso teor histórico e expressa os mais complexos conceitos sociais, ao representar crenças e valores absorvidos pelas classes dominantes. Essa postura vislumbra a concepção inovadora de que linguagem não é neutra, constitui o fundamento da interação social, representa o campo dos múltiplos sentidos, da polifonia, dos encontros
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e desencontros, de conflitos diversos, enfim a linguagem é constitutiva dos sujeitos sociais em permanente interação verbo-social. Continuando um ininterrupto debate, infere-se que o signo, na proposta bakhtiniana, representa o eixo principal de uma sociologia do discurso, onde cada interlocutor se apresenta de forma irrestrita e completa na interação verbal, bem como oferece amplas possibilidades de sentido para a compreensão do homem e do contexto social.
Referências BAKHTIN, M.M./ V. N.Volochínov. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 13. ed. São Paulo: Hucitec, 2009. BAKHTIN, M. M. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 276-326. GERALDI, J. W. Sobre a questão do sujeito. In: PAULA Luciane de; STAFUZZA, Grenissa. (Orgs.). Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2010. p. 279-292. MIOTELLO, Valdemir. Ideologia. In: BRAIT, Beth. (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2010. p. 167-176. SOBRAL, Adail. Ato/atividade e evento. In: BRAIT, Beth. (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2010. p. 11-36. STELLA. Paulo Rogério. Palavra. In: BRAIT, Beth. (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2010. p. 177-190.
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A INTERAÇÃO VERBAL: UMA LEITURA DE MARXISMO E FILOSOFIA DA LINGUAGEM DE MIKHAIL BAKHTIN/VOLOCHÍNOV Telma Cristina Gomes da Silva (UFPB) profa.telma@gmail.com Gregório Pereira de Vasconcelos (UFPB) gregoriopereira@gmail.com Danyelle Sousa Morais (UFPB) danyellesousa@hotmail.com
Introdução Para Bakhtin/Volochínov a comunicação é um processo interativo mais amplo do que a simples transmissão de informações. Isso porque o filosofo concebe a linguagem como interação social. Diante disso, o sujeito, ao produzir um texto, oral ou escrito, deixa nesse texto marcas de sua identidade – sociedade, núcleo familiar, experiências, etc. – como também pistas ao seu interlocutor considerando um determinado contexto social (SOERENSES, 2011). Isso remete para o nosso objeto de estudo: a interação verbal, cuja concepção por Mikhail Bakhtin e seu Círculo, no início do século XX, em oposição, sobretudo, ao estruturalismo e à estilística, resultou no que conhecemos hoje, na área dos estudos linguísticos, como a teoria da interação verbal. Para tratar da construção dessa teoria, este artigo se propõe a discutir sobre as bases dos estudos bakhtiniano a
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fim de compreender o caminho que o filósofo russo percorreu para forma seu pensamento sobre a elocução na linguagem, como também mostrar o quão relevante ainda esse pensamento é para os estudos sobre a linguagem no século XXI. Assim nos deteremos no capítulo sexto de Marxismo e a Filosofia da Linguagem, no qual é trabalhada a elocução na linguagem. Nesse capítulo Bakhtin/Volochínov ([1929] 2002) contesta as duas orientações teóricas metodológicas que antecedem a sua teoria: o subjetivismo individualista e o objetivismo abstrato. É a partir da crítica a essas orientações que o filósofo caracteriza a chamada interação verbal.
1. A crítica à teoria da expressão do subjetivismo individualista Em Marxismo e a Filosofia da Linguagem, Bakhtin/Volochínov postula as principais hipóteses nas quais as suas obras se baseiam, pois ele trata dos signos nas Ciências Humanas e também do processo de elocução na linguagem. As discussões em torno da elocução na linguagem dão origem à noção de interação, que fora importante para a compreensão das contingências e vicissitudes do debate internalismo x externalismo no campo da Linguística. De acordo com Morato (2004), essas discussões colaboraram para o estabelecimento de uma epistemologia das relações entre a linguagem e a exterioridade. Essa epistemologia das relações entre a linguagem e a exterioridade é resultante da crítica bakhtiniana às duas orientações do pensamento filosófico da linguagem: a primeira orientação, denominada subjetivismo individualista, está ligada ao Romantismo, que representou “uma reação contra a palavra estrangeira e o domínio que ela exerceu sobre as categorias de pensamento” (BAKHTIN/VOLO-
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CHÍNOV, [1929] 2002, p. 110); já a segunda orientação, denominada objetivismo abstrato, está ligada ao Racionalismo e ao Neoclassicismo e considera o sistema linguístico um fato objetivo externo à consciência individual e independente desta. Ao criticar essas duas orientações, conforme cita Morato (2004), o autor russo forjou um construto teórico resultante da dicotomia entre o interno (a cognição, a consciência, a vida mental) e o externo (ato de expressão, a enunciação). Segundo Bakhtin/Volochínov ([1929] 2002, p. 110), os filólogos românticos procuraram reorganizar o debate em linguística sobre a importância da atividade mental em língua materna como meio de desenvolvimento da consciência e do pensamento. Esses desejavam reestruturar a forma de pensar sobre a língua e também que essa forma se mantivesse durante os séculos, porém estava além deles reestruturar a maneira de pensar a língua, por outro lado eles conseguiram introduzir em suas reflexões novas categorias, essas é que caracterizaram a primeira orientação. Mas, para o estudioso russo, há um problema nessa primeira orientação, pois o subjetivismo individualista apoia-se sobre a enunciação monológica – aquela que se apresenta como um ato puramente individual, expressão da consciência individual, gestos, intenções etc. – como ponto de partida de sua reflexão sobre a língua. É certo que essa considera a pessoa que fala na perspectiva da expressão; por outro lado, também considera que o pensamento é estruturado do interior para o exterior quando, para Bakhtin/Volochínov ([1929] 2002), é o exterior que organiza o que o sujeito social produz, ou melhor, utilizando o termo empregado pelo autor, o que o sujeito expressa. Em outros termos, o autor diz que essa categoria de expressão é uma categoria geral, de nível superior, que engloba o ato de fala, isto é, a própria enunciação, ou seja, é
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tudo aquilo que, tendo se formado e determinado de alguma maneira no psiquismo do indivíduo, exterioriza-se objetivamente para outrem com a ajuda de algum código de signos exteriores. A expressão comporta, portanto, duas facetas: o conteúdo (interior) e sua objetivação exterior para outrem (BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV, [1929] 2002, p.111).
Isso significa que a teoria da expressão está relacionada a um dualismo entre o que é exterior, ou seja, a tudo aquilo que é explícito do conteúdo interior – psiquismo individual –, pois como dissemos acima, para os românticos todo o ato de expressão procede do interior para o exterior. Eis, aí o que é contestado por Bakhtin/Volochínov ([1929] 2002), porque, essa primeira orientação considera que “tudo que é essencial é interior, o que é exterior só se torna essencial a título de receptáculo do conteúdo interior, de meio de expressão do espírito” (ibidem, 111). Então, para os filólogos românticos o exterior constitui apenas o material passivo que recebe o que está no interior do individuo e esse, por sua vez, não sofreria nenhuma intervenção do social. Diante do exposto, Bakhtin/Volochínov ([1929] 2002, p. 112) afirma que a teoria da expressão que fundamenta a “primeira orientação do pensamento filosófico-linguístico é radicalmente falsa”, porque o conteúdo a ser expresso e sua materialização são criados a partir de um único e mesmo material. Em outras palavras, não existe atividade mental sem expressão semiótica, sem a objetivação do que é interior. Consequentemente, o filósofo diz ser “preciso eliminar de saída o princípio de uma distinção qualitativa entre o conteúdo interior e a expressão exterior” (idem, ibidem), pois, como diz Morato (2004, p. 323), “a interação é a base da construção do conhecimento e da dupla natureza da linguagem (cognitiva e social)”. Ela é a expressão, ou melhor,
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a materialização da atividade mental que modela e determina a sua orientação e não o contrário. Isso significa que “qualquer que seja o aspecto da expressão-enunciação considerado, ele será determinado pelas condições reais da enunciação em questão, isto é, antes de tudo pela situação social mais imediata” (BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV, [1929] 2002, p.112). Logo, a linguagem é a própria ação, é o ato de incorporar o discurso do outro em circunstâncias concretas de interação social considerando seus elementos constitutivos (MORATO 2004, p. 340). Daí, segundo os estudiosos da linguagem do Círculo bakhtiniano, a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor. A palavra dirige-se a um interlocutor: ela é função da pessoa desse interlocutor: variará se se tratar de uma pessoa do mesmo grupo social ou não, se esta for interior ou superior na hierarquia social, se estiver ligada ao locutor por laços sociais mais ou menos estreitos (pai, mãe, marido, etc.). Não pode haver interlocutor abstrato; não teríamos linguagem comum com tal interlocutor, nem no sentido próprio nem no figurado (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, [1929] 2002, p.112. Itálicos do autor e negritos nossos).
Diante disso, “o interlocutor ideal não pode ultrapassar as fronteiras de uma classe e de uma época bem definidas” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, [1929] 2002, p. 113). Em outros termos, a palavra é determinada pelo fato de proceder de alguém e ser dirigida a outro alguém. Ela é o produto da interação entre o Eu, locutor, e o Outro, interlocutor/ouvinte. Por isso, Bakhtin/Volochínov afirma que toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. É através dela que
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o eu se constrói e se define em relação ao seu interlocutor. Dessa perspectiva surgiu a metáfora da ponte bakhtiniana, na qual a palavra é vista como uma ponte entre o eu e o(s) outro(s), sendo ela considerada o lugar comum ao locutor e ao interlocutor. Por esse motivo, o autor diz que “a situação e os participantes mais imediatos determinam a forma e o estilo ocasionais da enunciação” (ibidem. p. 114), ou seja, o locutor escolherá os gêneros de acordo com a situação (formal ou informal) e o interlocutor (formal ou informal/íntimo). Após o exposto podemos ver que o conhecimento não é algo isolado, pelo contrário, o conhecimento é produto das interações sociais e não de uma mente isolada e individual. Daí resulta uma nova teoria bakhtiniana que considera além da teoria linguística também a teoria social e a teoria cognitiva, pois, as interações, e consequentemente a construção do conhecimento não se dá fora de um contexto social e histórico mais amplo, visto que o sujeito é um ser social e, por sua vez, a linguagem também se constitui socialmente.
2. A atividade mental e a ideologia do cotidiano Partindo do pressuposto de que o sujeito e a linguagem são sociais, percebemos que, para Bakhtin/Volochínov ([1929] 2002), tanto a tomada da consciência quanto a elaboração ideológica realizam-se através da atividade mental do eu e da atividade mental do nós. A primeira modalidade aproxima-se da reação fisiológica do animal e, quando está isolada, demonstra uma falta de elo com o aspecto social. Já a outra modalidade de atividade mental é baseada no aspecto coletivo, pois apropria-se de marcas do instituído social. A partir dessa interação com a coletividade, Bakhtin/ Volochínov ([1929] 2002) destaca que surgem certos níveis ou graus de consciência, como podemos observar:
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A diferenciação ideológica, o crescimento do grau de consciência são diretamente proporcionais à firmeza e à estabilidade da orientação social. Quanto mais forte, mais bem-organizada e diferenciada for a coletividade no interior da qual o indivíduo se orienta, mais distinto e complexo será o seu mundo interior (BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV, [1929] 2002, p.115).
Nesse momento do capítulo Interação Verbal, o autor realiza uma metáfora com a fome, abordando a temática na qual todos os tipos de atividade mental geram modelos e formas de enunciações correspondentes. Supõe-se o posicionamento de um homem faminto a partir de diferentes classes sociais, sendo o primeiro caso de alguém faminto que está “sem classe” social definida no meio de uma multidão heteróclita de pessoas igualmente famintas; este tenderá ao protesto individualista ou à resignação mística. No segundo caso, encontramos um homem faminto que pertence a uma coletividade, porém os membros desta coletividade estão materialmente isolados (ex.: camponeses), consequentemente predominará uma consciência da fome feita de resignação, cada um suporta isoladamente sua fome sem apresentar sentimento de vergonha ou de humilhação. Por fim, o último caso trata-se de um faminto dentro de um contexto de coletividade unida por vínculos materiais objetivos (ex.: soldados, operários etc.), este não dará lugar a resignação, antes partirá para o protesto ativo e seguro de si mesmo. A conclusão a que chegamos é que, de acordo com o seu grau de consciência, o sujeito tenderá a determinadas reações que determinarão as suas escolhas, de acordo com a sua socialização. Como ilustração, podemos citar que na sociedade paraibana, atualmente, destaca-se um exemplo prático e que repercutiu nacionalmente em trinta de maio do corrente ano, que foi a greve dos professores. O movimento, que
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reivindicava o pagamento do piso nacional, ganhou força diante de um corte salarial após paralisação de trinta e um dias. Os grevistas revoltados com o impasse estabelecido invadiram a sede do governo, na capital João Pessoa, porém o movimento foi suspenso por determinação do Ministério Público do Estado, que decretou o movimento como sendo ilegal. Cabe salientar o que realmente nos chama a atenção nesse exemplo: uma mesma categoria (professores) está subdividida em pelo menos outras duas: professores efetivos e professores prestadores de serviço e que, segundo o seu grau de consciência e sua situação social, fizeram escolhas diferenciadas, as quais determinaram as suas reações. Podemos perceber durante o processo que aqueles que não possuem vínculo empregatício com o Estado – ou seja, professores prestadores de serviços – não se envolveram totalmente com o protesto por medo de perder o seu “emprego”. Com tal exemplificação, voltamos ao discurso bakhtiniano de que cada indivíduo, dependendo de seu grau de consciência, optará por uma atividade mental específica que determinará suas escolhas e consequentemente reações. Bakhtin/Volochínov ([1929] 2002, p.116-117) classifica ainda, à parte, a atividade mental para si. Essa atividade mental individualista é perfeitamente diferenciada e definida. O individualismo é uma forma ideológica particular da atividade mental do nós da classe burguesa (...). A atividade mental de tipo individualista caractetiza-se por uma orientação social solida e afirmada. Não é do interior, do mais profundo da personalidade que se tira a confiança individualista em si, a consciência do próprio valor, mas do exterior; trata-se da explicitação ideológica do meu status social, da defesa pela lei e por toda a estrutura as sociedades de um bastião objetivo, a minha posição econômica individual. A personalidade individual é tão socialmente
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estruturada como a atividade mental de tipo coletiva; a explicitação ideológica de uma situação econômica complexa e estável projeta-se na alma individual.
Essa é uma atividade mental do nós, nela percebemos uma ação conjunta entre o indivíduo e o seu mundo, daí a importância da consciência sobre o cotidiano. Unindo-se à consciência, temos a expressão, que é o produto da interação e, consequentemente, ideologia do cotidiano. Assim, segundo o pensamento bakhtiniano, o nosso mundo interior se adapta às possibilidades de nossa expressão, pois os sistemas ideológicos constituídos da moral social, da ciência da arte e da religião cristalizam-se a partir da ideologia do cotidiano, exercem por sua vez sobre esta, em retorno, uma forte influência e dão assim normalmente o tom a essa ideologia (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, [1929] 2002, p. 119).
Analisando o capítulo em questão, vemos que o pensamento bakhtiniano apresenta dois níveis para a ideologia do cotidiano, que são: 1º) Inferiores (espaço, tempo, etc); 2º) Superiores (Tema). Para Bakhtin/Volochínov ([1929] 2002), o segundo nível está voltado aos sistemas ideológicos, tendo um caráter de responsabilidade e de criatividade. Desse modo, voltando às questões iniciais, percebemos que para o autor “o centro organizador de toda enunciação, de toda expressão, não é interior, mas exterior: está situado no meio social que envolve o indivíduo” (BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV, [1929] 2002, p. 121). A partir dessa análise, compreenderemos como se dá o diálogo e a enunciação.
3. Evolução da língua e enunciação Como visto, ao criticar o subjetivismo individualista que considerava a enunciação como algo inerente ao mun-
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do interior do interlocutor e deduzia o conteúdo ideológico a partir do psicologismo individual, Bakhtin/Volochínov ([1929] 2002) esclarece que a estrutura mental do sujeito e a enunciação são de origem social, bem como os processos interativos que constituem toda a cadeia verbal. Nesse sentido, é importante expor que, como diz Morato (2004, p. 333), a concepção de interação como constitutiva da natureza dialógica da linguagem associa-se a uma ideia de “outro” como interlocutor e como (inter)discurso. (...) o sujeito é interpelado e reconhecido socialmente por meio dos outros, por meio do discurso dos outros, por meio de discursos outros que constituem seu próprio discurso.
Portanto, percebe-se que o dialogismo, como aspecto constitutivo do sujeito, possui grande força nas teorias atuais sobre discurso, tendo em vista a heterogeneidade da própria realidade na qual o sujeito se relaciona com o pensamento e a ideologia dos outros. A partir desses pressupostos, torna-se evidente a necessidade de abandonar qualquer ideia que considere a formação discursiva do sujeito como um processo puramente homogêneo, pois diversos processos dialógicos ocorrem durante a constituição do sujeito. No entanto, é importante salientar que o sujeito bakhtiniano não é totalmente dominado pelos discursos sociais, haja vista que as inter-relações estabelecidas na interação verbal contribuem para a própria incompletude do ser; o sujeito é considerado, ao mesmo tempo, social e individual. Se não o fosse, teríamos uma negação do próprio conceito de constituição heterogênea discursiva. Assim, seguindo a visão bakhtiniana, devemos considerar o diálogo não apenas como a interação face a face entre indivíduos, mas como algo mais amplo que concerne
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todo tipo de comunicação verbal; porque todo enunciado é dialógico e possui orientação social, já que sempre precede de alguém e se dirige para alguém. Na esfera das relações sociais, vale ressaltar que texto e enunciado são conceitos independentes, pois, conforme Fiorin (2008, p. 52): texto é um todo de sentido, marcado pelo acabamento, dado pela possibilidade de admitir uma réplica. Ele tem uma natureza dialógica. O enunciado é uma posição assumida por um enunciador, é um sentido. O texto é a manifestação do enunciado, é uma realidade imediata, dotada de materialidade, que advém do fato de ser um conjunto de signos.
Com base nessas ideias, vamos refletir sobre como o fenômeno da interação verbal se manifesta no nosso cotidiano. Para tanto, utilizaremos alguns exemplos para ilustrarmos nossas considerações. Tomemos, inicialmente, o gênero aula para desenvolvermos nossos pensamentos sobre o referido aspecto. Afinal, como o dialogismo procede na sala de aula? O diálogo estabelecido entre professor(a) e aluno(a) durante a exposição de algum conteúdo abrange apenas uma das formas da interação verbal. Tomando como base o conceito mais profundo de dialogismo, considera-se que todos os argumentos docentes estão relacionados com enunciados precedentes sobre o mesmo assunto, a exemplo dos que são apresentados nos livros didáticos ou outros objetos de aprendizagem utilizados para estudo. Tais enunciados se relacionam, ainda, com os que serão apresentados de forma subsequente pelos alunos, seja durante o próprio diálogo com o(a) professor(a) ou durante a realização de exercícios e atividades avaliativas, por exemplo. Daí a complexidade inerente ao processo interativo em sala de aula: o ponto de chegada nem sempre é definido
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pelo ponto de partida, tendo em vista a amplitude dos processos dialógicos que ocorrem na constituição discursiva do sujeito. Observemos, agora, o exemplo apresentado a seguir. Que tipo de texto é esse? Quando o texto foi produzido? Qual o objetivo do autor(a)?
FONTE: Fotoptica Figura 1 – Armação
Ao analisarmos as diversas formas de expressão que o texto possui – verbal, imagética, gestual, entre outras –, considerando a constituição dialógica do enunciado e as relações possíveis entre o sentido e a enunciação, é possível interpretar que a palavra ARMAÇÃO se refere ao produto oferecido pela loja de óculos e, ao mesmo tempo, reflete o próprio contexto sócio-político brasileiro vivenciado na época em que o enunciado foi produzido: a manifestação dos “caras pintadas” e o impeachment do Presidente Collor, nos anos 90. Na obra O Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakhtin/ Volochínov ([1929] 2002) afirma que graças a esse vínculo
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concreto com a situação, a comunicação verbal é sempre acompanhada por atos sociais de caráter não verbal, dos quais ela é muitas vezes apenas o complemento, desempenhando um papel meramente auxiliar. Por isso a necessidade de um olhar multimodal durante a leitura de textos. Assim, o autor em discussão argumenta que a evolução da língua ocorre durante a própria situação verbal (interação). Com isso, ele propõe que as línguas devem ser estudadas por uma metodologia que contemple, inicialmente, as condições em que se realizam as formas e os tipos de interação verbal. Em seguida, propõe a investigação da ligação entre as formas das enunciações e os elementos que as constituem. Por fim, o filósofo diz ser preciso estudar as formas da língua a partir das situações concretas de utilização. Ele afirma, ainda, que é nessa mesma ordem que decorre a evolução real da língua, tendo em vista que ela não representa um sistema estático, pois tem o papel de atender às diversas necessidades comunicativas dos falantes/usuários nos respectivos contextos sócio-históricos de interação. Desse modo, Bakhtin/Volochínov ([1929] 2002) argumenta que falta uma abordagem da enunciação em si na linguística contemporânea da sua época, considerando que ela representa a unidade real da cadeia de comunicação verbal, cujas dimensões e estilo são determinados pelo contexto social mais amplo e pelo auditório – sujeitos envolvidos na interação verbal. Ademais, não é possível analisar as formas da enunciação sem considerar a categoria da expressão como algo social, ao contrário do que defendia o subjetivismo individualista.
4. Considerações finais Diante do exposto, podemos deduzir que o conhecimento não se constitui a partir de um pensamento individual, pois é fruto das interações sociais. Assim surge a
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teoria sociointeracionista que engloba os estudos linguísticos, a teoria social e a teoria da cognição, já que as interações e a construção do conhecimento ocorrem em um contexto sócio-histórico mais amplo, considerando a natureza social que constitui o sujeito e a linguagem. Nessa linha de pensamento, Bakhtin/Volochínov ([1929] 2002) contesta o subjetivismo individualista, pois esse pensamento não dá conta do processo de construção do conhecimento. Até o lado considerado mais individual do sujeito é constituído por meio das inter-relações com outrem. Para o autor russo, a língua evolui durante o momento de interação verbal. Por esse motivo, segundo ele, o estudo das línguas deve ser contemplado por uma metodologia que considere as condições em que se realizam as formas e os tipos de interação verbal a partir de situações concretas de utilização. É com essa concepção de língua/linguagem que o teórico argumenta em favor da inserção de uma abordagem da enunciação na linguística contemporânea à sua época, considerando que ela representa a unidade real da cadeia de comunicação verbal, cujas dimensões e estilo são determinados pelo contexto social mais amplo e pelos sujeitos envolvidos na elocução verbal. Por fim, vale salientar que o discurso “se constrói entre pelo menos dois interlocutores que, por sua vez, são seres sociais; não é individual porque se constrói como um ‘dialogo entre discursos’, ou seja, porque mantém relações com outros discursos” (BARROS, 1996, p. 33). Por isso, Bakhtin/Volochínov ([1929] 2002) concebe o discurso como produto de uma enunciação, isto é, como fruto de um contexto histórico, social, cultural etc. e o dialogismo como aspecto constitutivo da linguagem.
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Desse modo, a presente discussão tornou-se importante para refletirmos sobre o pensamento bakhtiniano e suas contribuições para o estudo de situações concretas de comunicação na sociedade atual.
5. Referências BAKHTIN, M. M. (VOLOCHÍNOV). [1929]. Marxismo e filosofia da linguagem. 10. ed. São Paulo: Hucitec, 2002. BARROS, D. L. P. Contribuição de Bakhtin às teorias do texto e do discurso. In: FARACO, C. A. (org.) Diálogos com Bakhtin. Curitiba: Editora da UFPR, 1996. p. 21-41. FIORIN, José L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2008. MORATO, E. M. O Interacionismo no campo linguístico. In: MUSSALIM, F.; BENTES, A. C. (orgs.) Introdução à linguística: fundamentos epistemológicos, vol. 3. São Paulo: Cortez, 2004. p. 31-351. SOERENSEN, C. A profusão temática em Mikhail Bakhtin: dialogismo, polifonia e carnavalização. Disponível em: <http:// www.unioeste.br/prppg/mestrados/letras/revistas/travessias/ed_005/artigos/linguagem/pdfs/A%20PROFUS%C3O. pdf> Acesso em 28/04/2011.
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CONCEPÇÕES BAKHTINIANAS DE LÍNGUA, FALA E ENUNCIAÇÃO Danielly Vieira Inô Espíndula (UEPB / PROLING-UFPB), dany_vi@yahoo.com.br
Clecio de Araújo Ferreira, (UVA/UNAVIDA / PROLING-UFPB), clecioaraujo@yahoo.com.br
Introdução Objetivamos retomar algumas críticas feitas por Bakhtin/Volochínov ao que ele denominou como objetivismo abstrato, cujo representante maior é Ferdinand Saussure. Tais críticas se encontram no capítulo 5 do livro Marxismo e Filosofia da Linguagem, de Bakhtin/Volochínov, intitulado “Língua, Fala e Enunciação”. O objetivismo abstrato foi fortemente criticado por Bakhtin/ Volochínov, por encontrar falhas nas famosas dicotomias língua/fala e sincronia/diacronia, uma vez que esse teórico russo valoriza o ato de fala (a enunciação) como algo indissoluvelmente ligado às condições de comunicação e suas estruturas sociais; além de conceber o signo não como algo imutável, neutro, mas, por natureza, vivo, móvel e plurivalente. Para uma melhor explanação a respeito de tais críticas, partiremos, em um primeiro momento, para uma breve retomada das principais dicotomias saussurianas, enfatizando os conceitos de língua, fala e signo linguístico.
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1 Breve retomada dos principais conceitos saussurianos Segundo Wilson e Martelotta (2010), a tentativa de desvendar a linguagem e seus mistérios não é nada recente, uma vez que isso já vem sendo realizado há milhares de anos. Os antigos hindus, por motivos religiosos, foram levados a estudar a sua língua sagrada (o sânscrito), buscando o valor e o emprego das palavras, constituindo assim os primeiros passos para a elaboração de uma gramática comparativa. Os gregos e latinos também demonstraram tal preocupação em estudar a linguagem, mas na tentativa de compreender não somente a sua estrutura, mas a sua relação com o mundo, isto é, as relações entre os objetos e os seus nomes. Até o século XV, aproximadamente, os estudos gramaticais “do certo e do errado” marcadamente greco-latinos imperavam, mas começou a perder sua importância a partir do surgimento de outras concepções de gramática, tais como a orientação lógica da Gramática Geral de Port-Royal e a orientação histórico-comparativa que caracterizou os estudos linguísticos do século XIX. Mas, é no século seguinte, com o Estruturalismo, que a Linguística ganha seu status de ciência, tendo como marco inicial a publicação do Curso de Linguística Geral, de Ferdinand Saussure, em 1916. Sobre o Estruturalismo linguístico, Costa (2010, p.114) explica: O desenvolvimento da linguística estrutural representa um dos acontecimentos mais significativos do pensamento científico do século XX. Não poderíamos compreender os incontestáveis progressos verificados no quadro das ciências humanas sem compreendermos a elaboração do conceito de estrutura desenvolvido a partir das investigações do fenômeno da linguagem. Toda geração de pensadores, entre os quais Jacques Lacan, Claude Lévi-Strauss, Louis Althus-
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ser, Roland Barthes, evidencia em suas obras a contribuição pioneira de Ferdinand Saussure relacionada à organização estrutural da linguagem.
Deixando de lado os estudos dos fenômenos linguísticos a partir de um ponto de vista histórico, Saussure busca entender o funcionamento das propriedades internas da linguagem (aceita como um conjunto de manifestações que entram em jogo na comunicação linguística) enfatizando seus elementos constitutivos: a língua (entendida como sistema de formas) e a fala (o ato da enunciação individual). Conforme o mestre suíço, a linguagem não pode ser objeto da Linguística porque lhe falta unidade interna e leis independentes e autônomas. A linguagem, desse modo, é multiforme, heterogênea e participa de diversos domínios. Para Saussure, entretanto, a linguagem deve ser tomada como um objeto duplo, uma vez que o fenômeno linguístico apresenta perpetuamente duas faces que se correspondem e das quais uma não vale senão pela outra. Assim sendo, a linguagem tem um lado social, a língua (ou langue, nos termos saussureanos), e um lado individual, a fala (ou parole, nos termos saussureanos), sendo impossível conceber um sem o outro (COSTA, 2010, p. 116).
Para melhor explicar a linguagem como um sistema articulado, Saussure faz uma analogia ao jogo de xadrez em que o valor de cada peça é instituído no interior do jogo por relações e oposições entre as unidades e não por sua materialidade. As peças podem ser de madeira, plástico, marfim ou de qualquer outro material, isso em nada afetará o sistema e as regras do jogo, basta que cada peça possua seu valor, com suas possibilidades de movimento, como elas se organizam e se distribuem. “A possibilidade de darmos andamento ao jogo depende exclusivamente de nossa
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compreensão de como as peças se relacionam entre si, das regras que as governam, da função estabelecida para cada uma delas e em relação às demais” (COSTA, 2010, p. 114). A partir dessa analogia, Saussure explica que todo indivíduo falante estabelece comunicação com outro indivíduo porque conhece as regras que regem o funcionamento de uma determinada língua. A respeito dessas regras, não se tratam de regras normativas, mas de um conhecimento adquirido no social que é internalizado através da relação que mantemos com um grupo de falantes do qual fazemos parte e que começa a se manifestar na fase de aquisição da linguagem. É esse conhecimento adquirido no social que regula o funcionamento das peças que compõem o sistema linguístico. Ao buscar definir, então, qual seria o objeto da Linguística, Saussure busca distinguir língua (langue) de fala (parole), o que nos remete à primeira dicotomia relacionada ao pensamento deste linguista suíço.
1.1 Língua / Fala Como vimos anteriormente, para Saussure a linguagem é constituída por um lado social (língua) e por um lado individual (fala) que não podem ser concebidos um sem o outro. Saussure, em sua teorização, busca distinguir língua de fala. Para ele, a língua é um sistema supraindividual utilizado como meio de comunicação entre os membros de uma determinada comunidade. Esse sistema de valores que se opõem uns aos outros está depositado como produto social na mente de cada falante de uma comunidade e possui homogeneidade, por isso é o objeto da linguística propriamente dita. Costa (2010, p.116) explica que, no entendimento saussuriano, a língua corresponde à parte essencial da linguagem e constitui um sistema gramatical que é inter-
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nalizado pelos membros de uma comunidade linguística através de um contrato social implícito. Daí decorre a sua natureza social. A língua, por ser o produto social da linguagem e um conjunto de convenções necessárias para se garantir a comunicação verbal, traz consigo toda experiência histórica acumulada por um povo durante a sua existência. Dessa forma, mesmo estando depositada nos cérebros de um conjunto de indivíduos pertencentes a uma mesma comunidade, o indivíduo, por si só, não pode nem criá-la e nem modificá-la. A fala, em contraposição à língua, é o lado individual da linguagem. Constitui o uso individual do sistema que caracteriza a língua (COSTA, 2010, p.116). É o ato individual de vontade e de inteligência. Por se constituir de atos individuais, torna-se múltipla, imprevisível, irredutível a uma pauta sistemática, uma vez que corresponde às combinações feitas por um falante entre os elementos constitutivos da língua, visando exprimir seu pensamento, como também se trata de um mecanismo psicofísico. Trata-se, portanto, da utilização prática e concreta de um código de língua por um determinado falante num momento preciso de comunicação. Em outras palavras, é a maneira pessoal de atualizar esse código. Daí seu caráter individual. De acordo com Saussure, a língua é a condição da fala, uma vez que, quando falamos, estamos submetidos ao sistema estabelecido de regras que corresponde à língua (COSTA, 2010, p. 116).
Feita tal distinção, Saussure concebe a língua como objeto de estudo da Linguística, já que é no lado social da linguagem que se encontra a essência da atividade comunicativa (conhecimento comum a todos), e não no ato individual, como explica Martelotta (2010, p. 54):
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Para ele (Saussure), os atos comunicativos individuais são assistemáticos e ilimitados, e uma ciência só pode estudar aquilo que é recorrente e sistemático. No caso da linguagem, a sistematicidade e a recorrência estão na langue, que se mantém subjacente aos atos individuais.
Nas abordagens dadas para estudar os fenômenos inerentes à língua, Saussure exclui toda preocupação extralinguística, porque um dos princípios constitutivos do Estruturalismo é estudar a língua em si mesma e por si mesma, isto é, o funcionamento da língua deve ser descrito apenas a partir de suas relações internas, sendo excluída qualquer relação que não esteja relacionada com a organização dos elementos que constituem o sistema linguístico, ou seja, não são consideradas as relações entre língua, sociedade e cultura. Ao definir isso, o teórico suíço adota no seu método de investigação o estudo sincrônico em oposição aos estudos diacrônicos que eram vigentes no século XIX.
1.2 Sincronia / Diacronia No século XIX, os pesquisadores utilizavam um método de investigação que foi marcadamente de caráter histórico, uma vez que esses pesquisadores perceberam algumas semelhanças encontradas em determinadas línguas, o que os levou a acreditar na existência de parentesco entre elas. Dessa forma, empregando um método chamado histórico-comparativo, tais pesquisadores se preocuparam em agrupar essas línguas em famílias. A partir desses estudos, foi possível observar que as línguas sofrem mudanças no decorrer do tempo e essas mudanças possuem uma regularidade própria, não são mudanças decorrentes da mera vontade dos homens. Costa (2010, p.117) explica que, com esse objetivo, os neogramá-
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ticos desenvolveram uma teoria das transformações linguísticas baseada em um método científico que afasta as especulações vagas e subjetivas que marcaram as abordagens do século XIX, mas, ainda assim, não pode ser considerada uma ciência, porque estudar as transformações das línguas em busca de explicações e formulações de regras de um “vir-a-ser” dessas línguas somente representaria uma constatação de um fato. Saussure, buscando definir uma investigação linguística que seja, de fato, ciência, distingue a investigação sincrônica da investigação diacrônica, o que remete a uma linguística estática e linguística evolutiva, respectivamente. Enquanto a sincronia está no eixo das simultaneidades, a diacronia está no eixo das sucessividades, isto é, enquanto o estudo sincrônico de uma língua tem como finalidade a descrição de um determinado estado dessa língua em um determinado momento no tempo, o estudo diacrônico (através do tempo) busca estabelecer uma comparação entre dois momentos da evolução histórica de uma determinada língua (COSTA, 2010, p. 117).
Nos estudos saussurianos, foi adotada a investigação sincrônica, uma vez que, segundo o mestre suíço, o objetivo da linguística estrutural é observar como se configuram as relações internas do sistema articulatório de uma língua em um determinado momento do tempo. Para isso, os seguidores desse estudo descartam as informações acerca da história da língua, já que a sua realidade é o seu estado sincrônico.
2.3 Significante / Significado Conforme explicitado no início deste trabalho, ficou compreendido que para Saussure a língua é de caráter so-
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cial, pois sua existência decorre de uma espécie de contrato implícito estabelecido entre os membros de uma comunidade, enquanto que a fala (parole) é de caráter individual, pois se refere à maneira pessoal de atualizar o código da língua, através da sua utilização prática e concreta por um determinado falante em um momento preciso de comunicação – um ato individual de vontade e de inteligência. Definindo esses dois conceitos, Saussure consagra a língua como um sistema sincrônico e homogêneo e rejeita as suas manifestações individuais – a fala. Dessa forma, centrando-se apenas na língua como um sistema de signos, sendo este, portanto, a unidade constituinte do sistema linguístico, Saussure explica que cada signo linguístico é formado por duas partes absolutamente inseparáveis: um significante (imagem acústica, forma) e um significado (conceito, expressão). Conforme Wilson e Martelotta (2010, p. 74): Aqui é importante ressaltar que o significante não é o som material, mas seu correlato psíquico, ou seja, uma estrutura sonora que reconhecemos a partir do conhecimento que temos de nossa língua, relacionando-a, então, a um determinado conceito. Do mesmo modo, o significado não é o objeto real a que a palavra faz referência, mas um conceito, ou seja, um elemento de natureza mental. Desse modo, tanto o significante como significado são caracterizados por Saussure como entidades psíquicas.
Os signos linguísticos possuem, então, duas faces: apreendido pelos sentidos (significante) e uma face não-material, que é estritamente mental (o significado) – e que não existe uma relação necessária, natural, entre a imagem acústica e o sentido a que ela nos remete. Isso significa dizer que o signo linguístico, para Saussure, não é motivado, e sim arbitrário e convencional, uma vez que resulta do acordo implícito rea-
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lizado entre os membros de uma determinada comunidade. Saussure observa que o princípio de arbitrariedade do signo linguístico não implica a compreensão de que o significado dependa da livre escolha do falante. Mesmo assumindo que a relação significante–significado seja arbitrária, Saussure não descarta a possibilidade de existir uma arbitrariedade relativa que é caracterizada como casos de motivação, que pode ter uma natureza sonora (que se relaciona com os casos de onomatopéia), morfológica (se refere aos processos de formação de palavras) ou semântica (relacionada aos processos analógicos associados aos sentidos das palavras). Entretanto, ressalta Wilson e Martelotta (2010, p.76), “esses casos de motivação são considerados arbitrários por Saussure e seus seguidores”.
2. As críticas bakhtinianas ao objetivismo abstrato Após essa breve retomada dos principais conceitos saussurianos, contra os quais Bakhtin/Volochínov ([1929] 1995) se posiciona, passamos agora a discutir as principais críticas formuladas por este teórico ao objetivismo abstrato. Os fundamentos dessas críticas encontram-se nos seguintes questionamentos: Mas o que é que se revela como o verdadeiro núcleo da realidade linguística? O ato individual da fala – a enunciação – ou o sistema da língua? E qual é, pois, o modo de existência da realidade linguística? Evolução criadora ininterrupta ou imutabilidade de normas idênticas a si mesmas? (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, [1929] 1995, p. 89).
Assim, o principal objetivo de Bakhtin/Volochínov é discutir as respostas oferecidas pelo objetivismo abstrato à questão central sobre a língua: qual é de fato, a realidade
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da língua? Conforme vimos anteriormente, a posição saussuriana a respeito da língua privilegia a forma linguística e seu caráter de estabilidade e homogeneidade dentro do sistema, sem considerar a dinamicidade do seu uso pelos falantes nas situações de interação. Segundo Bakhtin/Volochínov, isso se dá, entre outras razões, por uma escolha epistemológica que tem suas bases na influência dos estudos filológicos no modo de algumas correntes teóricas abordarem a língua materna: “[...] A linguística elaborou seus métodos e categorias trabalhando com monólogos mortos, ou melhor, com um corpus de enunciações desse tipo, cujo único ponto comum é o uso da mesma língua [...]” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, [1929] 1995, p. 98). Sabemos que, durante muitos anos (mais precisamente, por volta do séc. XVIII, antes mesmo de a linguística se constituir como uma ciência com método e objetos definidos), os estudos linguísticos se voltavam para a língua morta-escrita-estrangeira (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, [1929] 1995, p. 99), sem considerar, portanto, o falante em ação e o contexto real em que a palavra aparece. Mesmo quando, no início do século XX, Saussure estabelece o objeto e o método da ciência linguística, ele o faz optando pela exclusão da fala; é apenas nos anos 1960 que esta (com toda sua heterogeneidade e forma particular de organização) será adotada como objeto de estudo de correntes linguísticas, tais como a Sociolinguística e, posteriormente, a Análise da Conversação. Como consequência dessa escolha do objeto científico da linguística, ao se voltarem para as línguas vernáculas, os linguistas acabaram por transferir, para o estudo da língua materna, as reflexões relativas ao domínio de uma língua estrangeira. Aquela, então, começou a ser estudada não a partir da realidade cotidiana do falante, mas como uma língua estrangeira, ou seja, como algo que não pertence à sua vida e cujas formas lhes são completamente alheias.
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Sem dúvida, no início do aprendizado de uma língua estrangeira, o deciframento da língua enquanto forma torna-se parte central no processo. Mas essa mesma língua, ao ser ensinada para um falante nativo, precisa ser abordada como algo que já lhe pertence, porque, segundo Bakhtin/ Volochínov, a forma só é percebida quando se estuda uma língua estrangeira, mas “a palavra da língua nativa é percebida de modo totalmente diverso. […] A palavra nativa é percebida como um irmão, como uma roupa familiar, ou melhor, como a atmosfera na qual habitualmente se vive e se respira. […]” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, [1929] 1995, p. 100). É bastante comum, inclusive, que o falante use as palavras de sua língua materna em diferentes situações, consiga identificar em que contextos ela pode aparecer, mas não seja capaz de formular uma definição ou dizer o que essa palavra significa dentro do sistema da língua, o que reforça a ideia bakhtiniana de que o falante, ao usar a língua, não reflete sempre sobre a forma linguística e o seu significado dentro do sistema. É o que as duas tirinhas abaixo ilustram:
Figura 1 (Quino, Toda Mafalda, 2000, p. 85)
Figura 2 (Quino, Toda Mafalda, 2000, p. 85) Fonte: Tirinhas do Quino
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Na primeira tirinha, Mafalda usa uma palavra que Manolito não sabe o que significa, mas contra a qual ele reage por reconhecer que, no contexto em que ela foi empregada, deveria tratar-se de um xingamento. Na segunda tirinha, descobrimos que Mafalda, que havia usado a palavra pirambaba, não sabe o que ela significa, mas isso não a impede de tê-la usado e de ter com isso provocado a reação de Manolito. Além disso, Filipe se vê forçado a reconhecer que, embora não saibamos explicar o significado de muitas palavras no sistema linguístico, somos capazes de usá-las, exatamente porque, ao fazermos uso delas, compreendemos o seu sentido naquela enunciação e transferimos essa compreensão para outras situações semelhantes. Segundo Bakhtin/Volochínov ([1929] 1995, p. 95), “[...] para o falante nativo, a palavra não se apresenta como um item de dicionário, mas como parte das mais diversas enunciações dos locutores A, B ou C de sua comunidade e das múltiplas enunciações de sua própria prática linguística.” No caso das tirinhas, Mafalda usa pirambaba em sentido depreciativo, Manolito compreende e reage a isso. Filipe, por sua vez, mantém esse sentido no enunciado “Estou me sentindo um reles pirambaba”. É evidente que, assim como ocorre na língua materna ao nos depararmos com palavras desconhecidas, a relação entre forma e significado é o que primeiro ocupa o estudante de língua estrangeira. Assim, para um estudante de espanhol como língua estrangeira, por exemplo, palavras como césped, cuchillo, tenedor e cubiertos causarão um estranhamento inicial e a relação entre forma e significado da palavra na língua alvo será uma das primeiras preocupações do aprendiz. Contudo, para o falante nativo, a forma lhe é familiar, não lhe causa estranhamento e, por essa razão, deixa de ser central na relação desse falante com a língua. Além disso, mesmo considerando o estudante de espanhol-LE, para que as palavras passem a fazer parte do seu vocabu-
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lário nessa nova língua, é preciso que ele não apenas saiba qual o significado das palavras naquele sistema linguístico, mas, sobretudo, compreenda como se usa cada uma delas, ou seja, entenda em que diferentes situações elas podem aparecer e que sentidos têm em cada uma dessas enunciações. Dessa maneira, esse método de estudar a língua sem considerar o seu uso (privilegiando o estudo da forma, isolada de sua enunciação por um falante) é uma das críticas feitas por Bakhtin/Volochínov ao objetivismo abstrato. Essa discussão formulada por Bakhtin/Volochínov, sobre a centralidade da forma linguística na explicação da língua, é reforçada pela distinção entre signo e sinal: “para o locutor, a forma linguística não tem importância enquanto sinal estável e sempre igual a si mesmo, mas somente enquanto signo sempre variável e flexível. [...]” (BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV, [1929] 1995, p. 93). Para Bakhtin/Volochínov, só o signo pode ser interpretado, tendo em vista que, por natureza, seu significado só poder ser apreendido na sua relação com o contexto ideológico; já o sinal é identificado, como algo estranho, pois ele não tem qualquer relação com a ideologia. Percebe-se, então, que para este autor a palavra não significa em si mesma, mas significa dentro de um contexto e de um horizonte discursivo dado, de maneira que a mesma palavra pode assumir significados até mesmo opostos, a depender de sua relação com o contexto: Na realidade, o locutor serve-se da língua para suas necessidades enunciativas concretas (para o locutor, a construção da língua está orientada no sentido da enunciação da fala). Trata-se, para ele, de utilizar as formas normativas […] num dado contexto concreto. Para ele, o centro de gravidade da língua não reside na conformidade à norma da forma utilizada, mas na nova significação que essa forma adquire no contexto (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, [1929] 1995, p. 92).
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Sendo a ideologia e o sujeito sociais (posto que não há consciência individual sem ideologia, e que é nas situações sociais que o eu interage com o outro), então o seu dizer será delineado/orientado por essa situação social. É a situação que definirá o como dizer, a depender de sobre o quê se fala e a quem se fala. Assim, a enunciação não pode ser entendida como mera apropriação de formas linguísticas prontas e acabadas, mas como um processo de colocar a língua em uso orientado pelas condições sociais e históricas da situação de interação nas quais os falantes estão envolvidos. Para exemplificar, consideremos a palavra portuguesa sopa: seu significado no sistema linguístico é o de “caldo de carnes, legumes, massas, etc.”. No entanto, na charge abaixo, não é a palavra sopa enquanto sinal, sempre estável e igual a si mesmo, que entra em jogo na construção dos sentidos, mas sua relação com o contexto sócio-histórico no qual esta palavra é enunciada, ou seja, seu valor enquanto signo. Nas eleições estaduais de 2010, o candidato pessoense “Toinho da Sopa”, que recebeu esse apelido devido ao seu trabalho social de distribuição de sopa para a população carente e que era até então desconhecido no cenário político da Paraíba, obteve ampla votação e ultrapassou inclusive candidatos com grande tradição. Após o resultado, o chargista Régis Soares produziu o seguinte texto:
Figura 3- SOARES, Regis. Disponível em www. chargesnarua.com
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No caso dessa charge, a ocorrência da palavra sopa no enunciado “Pra mim foi uma sopa”, claramente ultrapassa o significado dicionarizado da palavra sopa, pois permite o diálogo com o contexto sócio-histórico de sua enunciação, recuperado anteriormente. O mesmo ocorre na tirinha abaixo:
Figura 4 (Quino, Toda Mafalda, 2000, p. 35)
Na Figura 4, acima, a palavra sopa usada na tirinha assume um sentido completamente diferente daquele construído na Figura 3. É evidente, contudo, que nos dois casos o significado da palavra sopa no sistema não é negado ou ignorado pelos personagens e pelos autores desses textos, mas o que está em jogo para a construção do sentido desses enunciados nos quais essa palavra parece extrapolar seu valor enquanto forma ou sinal dentro do sistema da língua portuguesa. É como signo que os personagens, representando falantes, e os autores da charge e da tirinha reconhecem a palavra sopa. A partir dessas noções fica claro então que, segundo o pensamento bakhtiniano, nenhuma enunciação pode ser analisada parcial ou isoladamente, mas deve ser analisada pelo todo social, histórico e cultural que a compõe; ou seja, a enunciação é resultado de uma construção duplamente social, no sentido de que é produto da interação entre dois sujeitos (igualmente sociais) e de que se estabelece em relação a outras vozes já ditas. Por outro lado, é histórica
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porque mantém relações com um dado momento histórico, com suas especificidades ideológicas, que dialogam com os momentos históricos precedentes; e é cultural porque é produzida segundo os valores de uma dada cultura, na qual o sujeito está inserido e cujos valores lhe são intrínsecos, ainda que este não tenha consciência do fato. Assim, para Bakhtin/Volochínov, o signo é ideológico por natureza, pois “a língua, no seu uso prático, é inseparável de seu conteúdo ideológico ou relativo à vida” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, [1929] 1995, p. 96), afinal, não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, et. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, [1929] 1995, p. 95).
Por essa razão, Bakhtin/Volochínov afirma que separar a língua de seu conteúdo ideológico, como faz o objetivismo abstrato, “constitui um dos erros mais grosseiros” (p. 96) dessa corrente de estudos. Vimos até aqui duas críticas feitas por Bakhtin/Volochínov de como o objetivismo abstrato explica a língua: a ênfase na forma linguística e a separação entre língua e conteúdo ideológico. Por fim, a ênfase no caráter normativo e sistemático da língua é outro aspecto defendido pelo objetivismo abstrato, contra o qual Bakhtin/Volochínov assim se posiciona: Dizer que a língua, como sistema de normas imutáveis e incontestáveis, possui uma existência objetiva é cometer um grave erro. Mas exprime-se uma relação perfeitamente ob-
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jetiva quando se diz que a língua constitui, relativamente à consciência individual, um sistema de normas imutáveis, que este é o modo de existência da língua para todo membro de uma comunidade linguística dada (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, [1929] 1995, p. 91).
Em outras palavras, o autor se opõe à abordagem sincrônica como justificativa para a homogeneidade e imutabilidade da língua. Como discutido na primeira parte deste artigo, Saussure, ao definir o método de estudo da linguística, opta pela abordagem sincrônica, por acreditar que ao fazer um recorte no tempo seria possível encontrar um estado de língua estável e invariável. Contudo, a sincronia não corresponde, para Bakhtin/Volochínov, a esse sistema de normas imutáveis: “se fizermos abstração da consciência individual subjetiva e lançarmos sobre a língua um olhar verdadeiramente objetivo [...], não encontraremos nenhum indício de normas imutáveis. Pelo contrário, depararemos com a evolução ininterrupta das normas da língua” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, [1929] 1995, p. 90). Assim, de acordo com este autor, ao observar a língua que o falante usa em um determinado momento, esse falante tem a ilusão de que ela é imutável, porque sua percepção sobre ela é sincrônica; mas a realidade da língua é dinâmica e, neste mesmo momento em que ele vê a língua a partir dessa ilusão, diversos processos de variação e mudança linguística podem estar em curso sem que o sujeito tenha consciência disso. A esse respeito, Labov (1982, apud LUCCHESI, 2004, p. 178) afirma que “os estágios iniciais da mudança estão abaixo do nível de consciência social. Ninguém na comunidade se refere à mudança, e é difícil tomar consciência dela. (...) às vezes ela só é descoberta, num primeiro momento, por análises instrumentais.” No caso do português brasileiro, temos alguns exemplos que podem ilustrar essa afirmação. Um deles é a mu-
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dança no sistema pronominal do português, o qual praticamente teve o pronome vós excluído do seu quadro. Este pronome ficou restrito a gêneros bastante formais (como alguns da esfera jurídica) ou gêneros pertencentes à esfera religiosa (na Bíblia dos católicos e em algumas orações também). Outro exemplo é a alteração no sistema flexional dos verbos, que deixam de ter uma flexão para cada pessoa (totalizando seis, conforme prevê a gramática normativa) e passam a ter apenas três: eu amo; tu/você ama; ele, a gente/ nós ama; vocês, eles amam. Essas alterações, como muitas outras que ocorrem no sistema da língua, são, na maioria das vezes, imperceptíveis à consciência individual do falante, exceto nos casos de variação que geram usos mais estigmatizados pela sociedade. Além disso, são casos mais frequentes na oralidade e na escrita usadas em situações menos monitoradas, de maneira que a oralidade e a escrita mais formais, produzidas em situações mais monitoradas, costumam ser mais conservadoras. O que se verifica, portanto, é a coexistência desses usos em uma determinada língua. Dessa forma, a realidade da língua, mesmo considerando-se um recorte no tempo, é a heterogeneidade e não a adequação a normas sistemáticas e imutáveis.
3. Conclusões As críticas bakhtinianas à abordagem proposta pelo objetivismo abstrato têm suas bases nas diferenças existentes na maneira de conceber a língua e a enunciação, bem como ao papel atribuído à fala. Fica claro que Bakhtin/Volochínov orienta sua definição de língua para a diversidade e para a heterogeneidade, características perceptíveis apenas quando se estuda a língua em uso. Dessa forma, Bakhtin/ Volochínov entende língua como interação verbal. Por outro lado, ao considerar a língua em uso, este autor acrescen-
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ta a enunciação à sua explicação do funcionamento da língua, o que os adeptos do objetivismo abstrato optaram por excluir dos estudos linguísticos. É importante dizer que sua maneira de conceber a enunciação extrapola a perspectiva de Benveniste ([1966] 1995), pois este se dedicava à enunciação entre os sujeitos considerando apenas o contexto mais imediato das relações entre o eu e o tu, mas sem considerar os aspectos sociais e históricos nela envolvidos, o que Bakhtin/Volochínov incluirá no seu modo de entender o processo enunciativo. Por fim, o papel atribuído por este teórico russo à fala também contribui para as diferenças entre seu modo de explicar a língua e a proposta do objetivismo abstrato. Conforme já discutido, os adeptos desta corrente precisaram fazer uma escolha epistemológica a fim de definir a linguística como ciência e, nesta escolha, excluíram a fala de suas pesquisas por acreditarem que, contrariamente à língua, ela era assistemática, heterogênea, individual, etc. Contudo, para Bakhtin/Volochínov ([1929] 1995), não apenas a realidade da língua também é a heterogeneidade e a flexibilidade, como o que importa é estudar a língua em uso pelos falantes. Além disso, a fala, como produto de uma interação social, é também ela de caráter social e não individual. Quando falamos, entramos na cadeia dos atos de fala (p. 98) e dialogamos com os já-ditos e com as reações ativas dos nossos interlocutores (reais ou potenciais), o que transforma a nossa fala de um ato individual e monológico (conforme compreendia Saussure) a um ato social e dialógico (conforme entendido por Bakhtin/Volochínov).
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Referências BAKHTIN, Mikhail (VOLOCHÍNOV). [1929]. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 1995. BENVENISTE, E. [1966]. Problemas de Linguística Geral I. 4. ed. Campinas-SP: Pontes, 1995. COSTA, M. A. Estruturalismo. In: MARTELOTTA, Mário Eduardo (org.). Manual de Linguística. São Paulo: Contexto, 2010. p. 113-126. FLORES, V. do N. et alii (orgs.). Dicionário de Linguística da Enunciação. São Paulo: Contexto, 2009. LUCCHESI, D. Sistema, Mudança e Linguagem: um percurso na história da linguística moderna. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. MARTELOTTA, Mário Eduardo (org.). Manual de Linguística. São Paulo: Contexto, 2010. QUINO, J. L. Toda Mafalda. Rio de Janeiro, Martins Fontes Editora, 2000. WILSON, V. & MARTELOTTA, M. E. Arbitrariedade e Iconicidade. In: MARTELOTTA, Mário Eduardo (org.). Manual de Linguística. São Paulo: Contexto, 2010. p. 71-85.
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PSICOLOGIA DO CORPO SOCIAL : SIGNO, IDEOLOGIA E CONSCIÊNCIA Rebecca Tavares (UFPB/PROLING) rebeccatavares@yahoo.com.br Rosilândia Flávia de Lima Ramos (UFPB/PROLING) flavialimaramos@yahoo.com.br
Introdução Esta é uma reflexão sobre o problema dos fundamentos de uma psicologia objetiva com base na concepção de signo ideológico para a filosofia marxista da linguagem. Nos postulados da obra Marxismo e Filosofia da linguagem, o pensador russo Mikhail Bakhtin/ Volochínov, discute a relação entre tais concepções, asseverando que só uma psicologia do corpo social pode orientar e dar suporte à linguística, à filosofia e à própria psicologia, buscando os diálogos e as delimitações entre estas esferas do conhecimento humano. No entanto, nosso interesse recai sobre um determinado aspecto de sua obra, a questão da noção de signo, da consciência e da constituição de uma psicologia objetiva. Assim, nos deteremos mais precisamente no capítulo três, que trata deste assunto. Este estudo não pretende, de forma alguma, fechar as discussões sobre o tema abordado, mas propor um diálogo outro que contribua para as pesquisas realizadas na área dos estudos bakhtinianos.
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Bakhtin/ Volochínov, ao iniciar o capítulo Filosofia da Linguagem e Psicologia Objetiva, afirma que a constituição de uma psicologia verdadeiramente objetiva é uma das tarefas mais urgentes do marxismo. Qual o motivo dessa urgência? Adiante, os autores comentam que os fundamentos dessa psicologia não são fisiológicos nem biológicos, mas sociológicos. Por quê? Que aspectos então diferenciam estes fundamentos e em que medida eles podem formar uma psicologia objetiva? Antes, o que vem a ser uma psicologia verdadeiramente objetiva? Para respondermos tais questões, devemos nos debruçar sobre as noções de signo e de consciência discutidas por Bakhtin/ Volochínov, (2006) para, a partir daí, encontrarmos os traços de uma psicologia objetiva, perpassando, porém, por suas críticas feitas às teorias psicológicas da sua época.
1. A consciência como um acontecimento socioideológico Conforme Freitas (2007) entre a variedade de temas trabalhados por Bakhtin/ Volochínov, há um destaque específico, despertado pelo interesse de estabelecer princípios para uma psicologia do corpo social. Com essa noção de consciência fundamentada na concepção de signo ideológico, Bakhtin/ Volochínov investiga a fenomenologia do signo. Delinearemos, pois, um breve percurso sobre esta questão dada sua importância para a definição de uma consciência que se queira ideológica. O signo não é apenas a materialidade da palavra, mas a materialidade da palavra embebida de seu significado ideológico. Assim, todo signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica (isto é, se é verdadeiro, falso, correto, justificado, bom,
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etc.). O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico. Tudo que é ideológico possui valor semiótico. (BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV, 2006 p. 32- 33)
O signo não é apenas uma representação da realidade, ele também é parte, é fragmento material dessa realidade. Qualquer acontecimento que funcione como signo ideológico tem realidade material, daí sua existência ser inteiramente objetiva. Dessa forma, o estudo do signo está sujeito a uma metodologia unitária e objetiva, própria do fenômeno social. Em Bakhtin/ Volochínov, (2006, p. 33), “a ideologia é um fato de consciência e que o aspecto exterior do signo é simplesmente um revestimento, um meio técnico de realização do efeito interior, isto é, da compreensão”. Entretanto, os estudos das ideologias não consideram o signo em seu caráter social. Por esta posição, o autor critica a filosofia idealista e a visão psicologista, ao assegurarem que a compreensão, “não pode manifestar-se senão através de um material semiótico” (BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV, 2006, p. 33). Tanto a filosofia idealista quanto o psicologismo cometem o mesmo equívoco. Ambas situam a ideologia na consciência, limitando o estudo das ideologias ao estudo do psiquismo interior. Para o idealismo, a consciência está acima da existência, determinando-a. Para o psicologismo, ela representa um todo de reações psicofisiológicas. A consciência não se limita nem ao universo transcendental nem aos fenômenos de ordem fisiológica ou biológica, mas se caracteriza como um fato socioideológico. Por isso, Bakhtin/ Volochínov rejeita as duas vertentes – uma de ordem filosófica e outra de ordem psicológica, por considerarem a consciência como acontecimento interior, a partir do qual surge o universo da ideologia.
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Bakhtin/ Volochínov não admite que a consciência seja a origem da ideologia ou que a ideologia seja um produto da consciência. Na verdade, ele transpõe as contribuições das correntes contemporâneas de seu tempo e defende que apenas uma filosofia do signo é capaz de constituir uma consciência. Esta é a sua mais significativa contribuição à questão. O signo ideológico como elemento que constitui a consciência. O signo é de caráter social e histórico. O signo é ideológico. Portanto, a realidade da consciência é sócio-histórica, sendo impossível restringir seu funcionamento a determinados processos desenvolvidos no interior de um organismo vivo. A noção de consciência de Bakhtin/ Volochínov é representada por uma cadeia de signos que atraem signos, sem quebra, sem interrupções: Essa cadeia ideológica estende-se de consciência individual em consciência individual, ligando umas às outras. Os signos só emergem, decididamente, do processo de interação entre uma consciência individual e uma outra. E a própria consciência individual está repleta de signos. A consciência só se torna consciência quando se impregna de conteúdo ideológico (semiótico) e, consequentemente, somente no processo de interação social. (BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV, 2006, p. 34)
Na sua crítica ao idealismo e ao psicologismo, torna-se fundamental compreender as noções de signo, de consciência e de ideologia. A consciência se concretiza por meio da encarnação material em signos, através de uma cadeia ideológica que se realiza na interação social. A ideologia habita os signos e faz surgir a consciência. Esta se apresenta como discurso interior na forma de realidade semiótica. Essa realidade não é fixa, não é imutável, ao contrário, ela está em constante deslocamento e se renova na interação social, no
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meio exterior. Portanto, a consciência é de ordem exterior e se materializa na forma de signos. Na visão de Clark e Holquist (2008, p. 99), “este modo dualista de conceber o laço entre a consciência e o mundo é a fonte de outras díades que vão especificando a relação mente/mundo.” Dessa maneira, o estudo da consciência é o estudo da ideologia, pois não é possível se estabelecer o sentido de um contexto sem uma transformação ideológica toda atividade mental do homem. A consciência situa-se no mundo das interações sociais e não no mundo dos fenômenos fisiológicos e biológicos. O que fundamenta a consciência é o signo, impregnado de ideologia. Para Bakhtin/ Volochínov, o estudo da consciência deve recusar os argumentos da filosofia idealista e da visão psicologista da ideologia e seguir uma orientação marxista do fenômeno ideológico, pois a consciência constitui um fato socioideológico. Dessa maneira, nem a biologia nem a fisiologia podem dar conta da construção da consciência. A consciência acontece no momento da interação entre os sujeitos e o meio social, na vida concreta, por isso, só pode ser analisada por uma psicologia objetiva e não por métodos tomados de empréstimo da biologia ou da fisiologia. A consciência não faz sentido sem a ideologia e não existe sem a matéria semiótica. A consciência, constituída pelo signo ideológico, sobrevive das lutas diárias entre os sujeitos e os acontecimentos sociais, históricos, econômicos. Entre signo e consciência existe uma relação dialética da qual, obviamente, faz parte o discurso interior, ou seja, a palavra, que é o próprio signo ideológico. A palavra se constitui fora do individuo, nas relações interpessoais e volta, num movimento dialético, a renovar a consciência, através de movimentos sígnicos, ou seja, de significações outras, de ideologias outras atribuídas ao signo.
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Sendo assim, a consciência é o signo interior e exterior e, como signo, é social e se realiza fora do individuo, na vida concreta, objetiva.
2. Os fundamentos de uma psicologia objetiva Bakhtin/ Volochínov inicia o capítulo três Filosofia da Linguagem e Psicologia Objetiva fazendo uma crítica ao psiquismo subjetivo do homem que é analisado pelos métodos da introspecção, alegando que “é impossível reduzir o funcionamento da consciência a alguns processos que se desenvolvam no interior do campo fechado de um organismo vivo” (BAKHTINH/ VOLOCHÍNOV, 2006, p. 49). Por outro lado, fala que uma das tarefas essenciais do marxismo é estabelecer uma psicologia verdadeiramente objetiva e assevera que os fundamentos desta não se encontram nem no universo da fisiologia nem no universo da biologia, mas seus fundamentos são de caráter sociológico. Ao escolher a introspecção como forma de se ter acesso à vida psíquica, o psiquismo subjetivo vai de encontro dos preceitos metodológicos marxistas que pedem uma abordagem objetiva. A psicologia objetiva, assim, fundamentada em princípios sociológicos, e não fisiológicos ou biológicos, é capaz de compreender o psiquismo subjetivo humano como um fator não interno ao organismo, mas situado fora dele, no social. Desse modo, toda a análise feita por Bakhtin/ Volochínov acerca da psicologia é permeada por uma perspectiva social. O ser humano existe dentro de uma sociedade, nas relações estabelecidas no grupo social do qual faz parte. Fora desse grupo, dessa sociedade ou destas relações ele não tem existência concreta. O homem é um ser social que se constitui e é, ao mesmo tempo, constituído nas relações com o outro e é partindo deste pressuposto que Bakhtin/
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Volochínov elabora sua concepção de consciência e defende uma abordagem objetiva dos acontecimentos psíquicos. A psicologia objetiva recusa a noção de consciência como fenômeno interno ao indivíduo e defende seu caráter socioideológico, dessa forma, compreende que a consciência se forma fora do indivíduo. Esta questão foi de encontro às teorias da época e provocou algumas inquietações. O psiquismo interior, aqui, será estudado como signo. Considerando que o signo ideológico é a ponte que une o universo interior e o universo exterior numa relação dialética, podemos dizer que a consciência, alimentada pelo signo, não se constitui nem no interior do organismo nem no exterior, mas no confronto, no embate, na luta, na dialética do signo embebido das ideologias. De acordo com Bakhtin/ Volochínov (2006, p. 33) “onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor semiótico”. É, pois, este valor semiótico que põe os acontecimentos ideológicos sob a mesma definição. O homem reflete a realidade usando os signos. Estes agem como mediadores na relação do homem com sua realidade, constituindo o material da consciência. Para Bakhtin/ Volochínov (2006, p.49) a consciência constitui um fato socioideológico, não acessível a métodos tomados de empréstimo à fisiologia ou às ciências naturais. É impossível reduzir o funcionamento da consciência a alguns processos que se desenvolvem no interior do campo fechado de um organismo vivo. Os processos que, no essencial, determinam o conteúdo psíquico, desenvolvem-se não no organismo, mas fora dele, ainda que o organismo individual participe deles. O psiquismo subjetivo do homem não constitui um objeto de análise para as ciências naturais, como se se tratasse de uma coisa ou de processo natural. O psiquismo subjetivo é o objeto de uma analise ideológica, de onde se depreende uma interpretação socioideológica.
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Sendo assim, Bakhtin/ Volochínov defende a necessidade de uma psicologia objetiva que possa abarcar os fatores psíquicos e os fatores sociais da vida humana. O psiquismo subjetivo, sendo um processo interno, não consegue perceber o homem na sua totalidade, na sua relação com o que lhe é exterior, como ser histórico e mutável. O autor defende que a atividade psíquica constitui a expressão semiótica do contato entre o organismo e o meio exterior. Eis por que o psiquismo interior não deve ser analisado como coisa; ele não pode ser compreendido e analisado senão como um signo. (BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV, 2006, p. 50)
Dessa forma, a atividade mental se expressa através do signo. E este é de natureza social. O signo é ideológico e promove o diálogo entre o homem e a sua realidade, constituindo-se no material da consciência. Sendo a consciência uma construção de signos, não pode existir fora da relação com o meio exterior. Segundo Bakhtin/ Volochínov (2006, p. 35), os signos só podem aparecer em um terreno que não pode ser chamado de “natural” no sentido usual da palavra: não basta colocar face a face dois homo sapiens quaisquer para que os signos se constituam. É fundamental que esses dois indivíduos estejam socialmente organizados, que formem um grupo (uma unidade social): só assim um sistema de signos pode constituir-se. A consciência individual não só nada pode explicar, mas, ao contrário, deve ela própria ser explicada a partir do meio ideológico e social.
A consciência é, portanto, ideológica e os signos, organizados e socialmente situados, são o alimento dela. O psiquismo subjetivo, ao se prender aos fatores internos da consciência, torna-se vazio de significação e, ao analisar um
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individuo isolado de sua relação com o meio social, não tem capacidade para descrever os processos psíquicos em sua totalidade: A lógica da consciência é a lógica da comunicação ideológica, da interação semiótica de um grupo social. Se privarmos a consciência de seu conteúdo semiótico e ideológico, não sobra nada. A imagem, a palavra, o gesto significante, etc. constituem seu único abrigo. Fora desse material, há apenas o simples ato fisiológico, não esclarecido pela consciência, desprovido do sentido que os signos lhe conferem. (BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV, 2006, P. 36)
Logo, para que exista consciência, o organismo deve unir-se com o mundo exterior no signo. A realidade do psiquismo interior é a do signo e este é social, como assevera Bakhtin/ Volochínov (2006, p.49): o psiquismo subjetivo é o objeto de uma análise ideológica, de onde se depreende uma interpretação socioideológica. O fenômeno psíquico, uma vez compreendido e interpretado, é explicável exclusivamente por fatores sociais, que determinam a vida concreta de um dado individuo, nas condições do meio social.
O psiquismo subjetivo encontra-se na fronteira entre o mundo exterior e o mundo interior e essa fronteira é representada pelo signo. “A atividade psíquica constitui a expressão semiótica do contato entre o organismo e o mundo exterior” (Bakhtin/ Volochínov, 2006, p.50). O psiquismo interior, portanto, não pode ser considerado senão como um signo. Assim, já não se pode admitir uma análise dos processos psíquicos como algo que exista fora do social, do contexto de produção de homens sociohistóricos e ideologicamente situados. Daí a necessidade de uma psicologia
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verdadeiramente objetiva, capaz de colocar no centro de sua análise o signo ideologicamente marcado. Encontrar uma abordagem objetiva, flexível e refinada do psiquismo subjetivo só pode ser possível se compreendermos que o território desse psiquismo é o signo ideológico, marcado por seu caráter sociológico, concreto, significante. A questão, porém, não é tão simples, pois há uma correlação entre o individual e o social de onde se compreende que o psiquismo é individual e a ideologia é social. Essa compreensão é equivocada. De acordo com Bakhtin/ Volochínov (2006, p. 59), o indivíduo enquanto detentor dos conteúdos de sua consciência, enquanto autor dos seus pensamentos, enquanto personalidade responsável por seus pensamentos e por seus desejos, apresenta-se como um fenômeno puramente socioideológico. Esta é a razão por que o conteúdo do psiquismo “individual” é, por natureza, tão social quanto a ideologia e, por sua vez, a própria etapa em que o individuo se conscientiza de sua individualidade e dos direitos que lhe pertencem é ideológica, histórica, e internamente condicionada por fatores sociológicos. Todo signo é social por natureza, tanto o exterior quanto o interior.
Assim como o psiquismo individual tem valor social, também as manifestações ideológicas têm valor individual, constituindo uma relação dialética. A ideologia é marcada pela individualidade do sujeito, mas essa marca é social. Nos diálogos estabelecidos entre o individual e o social não encontramos limites que os distinguem. Podemos, então, afirmar que não há diferença entre o psíquico e o ideológico? Sobre essa questão, Bakhtin/ Volochínov (2006, p.60) comenta que todo pensamento de caráter cognitivo materializa-se em minha consciência, em meu psiquismo, apoiando-se no sistema ideológico de conhecimento que lhe for apropriado.
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Nesse sentido, meu pensamento, desde a origem, pertence ao sistema ideológico e é subordinado a suas leis. Mas, ao mesmo tempo ele também pertence a um outro sistema único, e igualmente possuidor de suas próprias leis especificas, o sistema do meu psiquismo. O caráter único desse sistema não é determinado somente pela unicidade de meu organismo biológico, mas pela totalidade das condições vitais e sociais em que esse organismo se encontra colocado.
Por um lado, se o psiquismo individual é social, as representações ideológicas são individuais, estabelecendo uma relação dialógica. Segundo Bakhtin/ Volochínov (2006, p.60), todo produto da ideologia leva consigo o selo da individualidade do seu ou dos seus criadores, mas este próprio selo é tão individual quanto todas as outras particularidades e signos distintivos das manifestações ideológicas. Assim, todo signo, inclusive o da individualidade, é social.
Dessa forma, podemos nos questionar se não existe, então, uma diferença entre o psíquico e o ideológico. Caso exista, o que delimita tal diferença? A consciência apóia-se no sistema ideológico. O sistema ideológico, composto por signos, alimenta a consciência. O signo ganha vida na medida em que se realiza no psiquismo, dialeticamente, as manifestações psíquicas alimentam-se do signo, ou seja, “psiquismo e ideologia se impregnam mutuamente no processo único e objetivo das relações sociais” (BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV, 2006, p. 67).
3. Considerações finais Dessa reflexão, fica claro que a fonte do trabalho da psicologia é de natureza social. É na interação verbal, na
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vida concreta dos sujeitos que se fundamentará um a psicologia verdadeiramente objetiva. Uma psicologia que se funda na investigação do signo, pois esse abriga os confrontos ideológicos que constituem a consciência; uma psicologia que tenha como objetivo o estudo da consciência enquanto acontecimento social, semiótico. A psicologia objetiva, dessa forma, pode superar uma visão psicologista ou idealista dos fenômenos da consciência e encontrar um caminho que recupere a dialética entre o interno e o externo, estabelecendo, assim, a interação verbal. A finalidade deste estudo, que segue os passos do autor em suas reflexões acerca da constituição de uma psicologia objetiva, questiona as noções de signo ideológico e de consciência como fundamentos da psicologia social. Os resultados, embora embrionários, almejam contribuir com futuras investigações sobre o tema abordado.
Referências BAKHTIN, Mikhail/ VOLOCHINOV, Valentin Nikolaiévitch. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 10. ed. São Paulo: Hucitec, 2006. CLARK, Katerina; HOLQUIST. Mikhail Bakhtin. Trad. de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2008. FREITAS, Maria Teresa de Assunção. Bakhtin e a psicologia. In: Diálogos com Bakhtin. 4. ed. Curitiba: Editora da UFPR, 2007.
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CRÍTICA DE BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV À TRADIÇÃO SUBJETIVISTA E OBJETIVISTA DA LINGUAGEM Adriano Carlos de Moura (IFPE) adrianocmoura@bol.com.br Hélcia Macedo de Carvalho Diniz e Silva (UNIPÊ/UFPB VIRTUAL) helciamacedo@yahoo.com.br
Considerações Introdutórias Discutiremos a crítica de Mikhail Bakhtin/Volochínov às duas teorias da tradição da linguística, enquanto ciência, a saber, o subjetivismo idealista de Humboldt e o objetivismo abstrato de Saussure. Analisamos, mais especificamente, o quarto capítulo do livro Marxismo e Filosofia da Linguagem ao realizar uma investigação cuidadosa para apresentação um estudo minucioso, de fundamento filosófico, com base nas orientações do pensamento marxista bakhtiniano. Ocorre que, ao nos depararmos com a crítica a estas tendências, aportamos no conceito de dialogismo. Assim, não poderíamos deixar de discorrer sobre os pressupostos de Bakhtin/Volochínov (1999), que, ao discutir as tendências idealista e abstrata, chega à conclusão de que, embora elas não deem conta da noção de linguagem enquanto interação dialógica, têm imensa importância para o desenvolvi-
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mento dos estudos linguísticos. Nessa visão, a plasticidade da palavra em contextos diversos é o que permite a comunicação entre sujeitos falantes. Estas contribuições se reforçam com os questionamentos de Brait (1997) e de Faraco (2001) para que seja refletido de forma mais específica o princípio dialógico da responsividade entre os interlocutores na interação verbo-social. O uso da linguagem com fins comunicativos carrega a ideia da linguagem como interação verbal. A dinâmica social linguístico-filosófica do autor tece críticas à concepção de língua, enquanto instrumento de comunicação, apresentando como objetivo uma investigação de base teórica sobre o uso da linguagem concreta. Dessa maneira, apresentamos o resultado de agradáveis tardes de leitura, discussão de ideias e vivência efetiva do processo sócio-histórico interacionista. No decorrer da leitura, encontramos, na filosofia da linguagem na teoria bakhtiniana, uma seção que versa sobre a crítica de Bakhtin ao subjetivismo e por último ao objetivismo da linguagem.
1. A filosofia da linguagem na teoria bakhtiniana Como objeto de estudo da filosofia da linguagem a fonética experimental é vista por Bakhtin/Volochínov (1999, p. 69) como algo: “sem nenhum vínculo com a natureza real da linguagem enquanto código ideológico”, uma vez que é uma questão superficial. O som, propriamente dito não é objeto de estudo da linguística, mas da física. Não estamos lidando com linguagem mesmo se considerarmos a ligação entre o processo físico-fisiológico de emissão de determinado som da língua com a atividade mental realizada pelo locutor e pelo ouvinte, pois ele explica que:
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se associarmos a atividade mental do locutor e do ouvinte, estaremos em presença de dois processos psicofísicos ocorrendo em sujeitos psicofisiologicamente diferentes e de um único complexo sonoro físico realizando-se na natureza segundo as leis físicas. A linguagem como objeto específico, ainda não a teremos encontrado. (...) mas este complexo é privado de alma, seus diferentes elementos estão alinhados ao invés de estarem unidos por um conjunto de regras internas que lhe atribuiria vida e faria dele justamente um fato linguístico. (Bakhtin/Volochínov, 1999, p.71)
Com isso, o complexo das relações sociais é o que molda o uso que fazemos da língua. O filósofo russo defende que é preciso inseri-lo na esfera única da relação social organizada, que o engloba. Situar o sujeito, emissor e receptor de som, bem como o próprio som para observar o fenômeno linguístico é uma peça chave na observação do processo linguístico. Nessa ótica, os interlocutores devem pertencer a uma mesma comunidade linguística, socialmente organizada, isso é indispensável para que neste terreno haja possibilidades de os processos de interação linguística ocorrerem e se realizarem com sucesso. Ademais, os indivíduos devem estar integrados na unicidade situacional imediata e socialmente relacionados, pessoa para pessoa, em um terreno bem definido. Somente neste terreno, constitutivamente organizado e situado, torna-se possível a troca linguística entre os sujeitos de uma mesma comunidade. No terreno de acordo ocasional, mesmo que haja comunhão entre as pessoas, nem todos elementos desse meio social se prestam para a interação entre elas, porque o meio social organizado apresenta complicações próprias a partir das relações de diversas naturezas e múltiplas facetas. Estas relações são de caráter diverso, nem todas são elementos constitutivos da linguagem, não sendo, portanto, necessárias à compreensão dos fatos linguísticos. Como afirma Bakhtin/Volochínov (1999, p. 72):
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A unicidade do meio social e a do contexto social imediato são condições absolutamente indispensáveis para que o complexo físico-psíquico-fisiológico que definimos possa ser vinculado à língua, à fala, possa tornar-se um fato de linguagem. Dois organismos biológicos, postos em presença num meio puramente natural, não produzirão um ato de fala.
Assim, a inserção do complexo físico-psíquico-fisiológico no meio social traz complicações à delimitação do objeto de estudo da filosofia da linguagem e que, por conta dessa limitação, as suas linhas devem reunir-se num centro único. Decorre dessa necessidade de construir um vínculo contínuo entre o meio social e o seu contexto imediato, essa discussão sobre a linguagem em bases da crítica de Bakhtin ao subjetivismo e objetivismo tradicional, divididas em duas seções, a saber, subjetivismo idealista e em outra, objetivismo abstrato.
2. A crítica bakhtiniana às leis da psicologia individual A teoria de Wilhelm Humboldt, o subjetivismo idealista, considera o ato de enunciação como puramente individual, posição criticada nas orientações do pensamento filosófico-linguístico de Marxismo e Filosofia da Linguagem. Sobre o posicionamento do círculo bakhtiniano a respeito dessa corrente dos estudos linguísticos representada por Humboldt, Sobral (2005, p. 128), afirma que “ele é mencionado a propósito da proposta, que é refutada, da unidade dos seres humanos numa natureza humana que apaga as diferenças”. A tendência que vê a língua por meio do psiquismo, representada por Humboldt estabeleceu fundamentos, conforme aponta Bakhtin/Volochínov (1999, p. 73):
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O psiquismo individual constitui a fonte da língua. As leis da criação linguística – sendo a língua uma evolução ininterrupta, uma criação contínua – são as leis da psicologia individual, e são elas que devem ser estudadas pelo linguista e pelo filósofo da linguagem.
Na teoria subjetivista da linguagem, a enunciação é a expressão da consciência individual. Justamente um dos pontos da crítica de Bakhtin/Volochínov (1999), que rejeita completamente este entendimento. O subjetivismo idealista defende que a língua seja análoga às outras manifestações ideológicas como as do domínio da arte e da estética. Nesse sentido, o psiquismo individual constitui a fonte da língua, as leis da criação linguística. A crítica se fundamenta no que entende os subjetivistas sobre o uso da linguagem, a saber, uma psicologia individual que considera a língua uma evolução autônoma e ilimitada, uma criação contínua, onde a linguagem funciona como um espelho, onde expressão e pensamento se refletem. Os fundamentos essenciais dessa corrente linguística são assim apresentados: 1. A língua é uma atividade, um processo criativo ininterrupto de construção (“energia”), que se materializa sob a forma de atos individuais de fala. 2. As leis da criação linguística são essencialmente as leis da psicologia individual. 3. A criação linguística é uma criação significativa, análoga à criação artística. 4. A língua, enquanto produto acabado (“ergon”), enquanto sistema estável (léxico, gramática, fonética), apresenta-se como um depósito inerte, tal como a lava fria da criação linguística, abstratamente construída. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1999, p. 73)
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Coloca, portanto, a criação linguística no mesmo patamar da criação artística, isto é, um processo interior que resulta na expressão da consciência individual, onde a capacidade da pessoa se expressar bem está ligada diretamente à sua capacidade de pensar. Ter um pensamento lógico é indispensável para aquele que desejar se expressar verbalmente ou escrever de forma inteligível ao seu interlocutor, pois, nessa concepção. A crítica direciona-se à visão da linguagem como tradução daquilo que ocorre no interior da mente, o “espelho” do pensamento. O fenômeno linguístico fica reduzido a um ato racional, ou como afirma Travaglia (1997, p. 21) “a um ato monológico, individual, que não é afetado pelo outro nem pelas circunstâncias que constituem a situação social em que a enunciação acontece”. A Gramática normativa reforça a ideia do “certo” e do “errado”, noção que serve principalmente para privilegiar algumas variantes linguísticas em detrimento de outras. Privilégio este que é bem perceptível nas palavras de Franchi (1991, p. 48), pois para ele a gramática normativa é “o conjunto sistemático de normas para bem falar e escrever, estabelecidas pelos especialistas, com base no uso da língua consagrado pelos bons escritores.” O que serve para atestar que, para aqueles que defendem o uso da gramática tradicional, só quem fala e escreve segundo as normas desta gramática, é capaz de organizar logicamente o seu pensamento. Para os normativos, a língua é um sistema de normas acabado, fechado, abstrato e sem interferência social. Por conseguinte, ignoram toda possibilidade de estudar a língua em uso e não levam em conta também nenhuma outra variante da língua, senão a intitulada culta ou padrão. Com a concepção da relação entre linguagem e pensamento orientada pelos subjetivistas, a dificuldade de expressão e os desvios das regras da gramática normativa são tidos como incapacidade de pensar e raciocinar logicamente.
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Para Koch (2002, p.13), “à concepção de língua como representação do pensamento corresponde a de sujeito psicológico, individual, dono de sua vontade e de suas ações”. Complementando, ela ainda afirma que: o texto é visto como um produto — lógico — do pensamento (...) do autor, nada mais cabendo ao leitor/ouvinte senão “captar” essa representação mental, juntamente com as intenções (psicológicas) do produtor, exercendo, pois, um papel essencialmente passivo (KOCH, 2002, p. 16).
A crítica de Bakhtin/Volochínov (1999), assumindo uma postura oposta à tendência idealista, dá-se ao considerar o ato individual da fala, a enunciação, como núcleo da realidade linguística. Basicamente, o subjetivismo idealista adota o dualismo entre o interior (consciência) e o exterior (ato de expressão), onde o conteúdo interior sobrepõe o exterior, essa é a concepção posta por Humboldt. O subjetivismo desenvolve-se calcado no idealismo, defende a ideia de que todo ato de expressão origina-se no interior. Dessa forma, a função expressiva da linguagem é evidenciada e a função comunicativa não é considerada, é uma tendência centrada no locutor, como princípio e fim da linguagem. Bakhtin/Volochínov critica essa tendência porque despreza o processo de interação verbal. Nesse processo, considera-se o ouvinte como auxiliador do locutor em toda ação comunicativa, não são apenas ouvintes, mas interlocutores no diálogo vivo, dotados de uma atitude responsiva em relação ao ato da enunciação. Segundo Faraco (2001, p. 121): para Bakhtin, o que constitui a realidade fundamental da linguagem é essa atividade sociossemiótica – que se dá não entre indivíduos isolados que apenas atualizariam um sistema objetivo ou apenas expressariam uma subjetividade
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dada a priori, mas entre indivíduos socialmente organizados, isto é, constituídos e imersos nas relações sociais historicamente dadas e das quais participam de forma ativa e responsiva.
No princípio dialógico da responsividade, locutor e ouvinte estão em um mesmo plano. Assumem a postura de parceria na comunicação. O discurso do locutor é apreendido pelo ouvinte no processo dialógico de confrontação entre as palavras ditas e elaboradas pelo sujeito. Ao ser enunciada, a palavra provoca uma réplica, assim, compreender é oferecer respostas. A resposta pode ser ou não ser imediata. De qualquer forma, de um jeito ou de outro sempre são dadas, afinal estamos produzindo uma resposta ao passo que participamos efetivamente de um diálogo. As respostas a que se refere Bakhtin/Volochínov (1999) são as seguintes: respostas verbais ou ações derivadas do enunciado pronunciado. A este comportamento ativo adotado pelo ouvinte, ele denominou de atitude responsiva. Faria (2002, p. 27) explica: “o aspecto ativo manifesta-se também como ajuda ao locutor. É certo, diz Bakhtin/Volochínov, que o falante tem seus direitos inalienáveis em relação à palavra, mas o ouvinte também está presente de algum modo.” Ela conclui dizendo que o “eu”, sozinho, não constrói o enunciado. O locutor e interlocutor recebem importância equivalente, pois ambos são influentes na determinação e composição de um enunciado, já que o auxilio mútuo relaciona o receptor, através de sua atitude responsiva, ao emissor na atividade enunciativa. A crítica bakhtiniana aos idealistas está fundamentada na parte do uso da linguagem pelos locutores no mundo. Vejamos: O próprio locutor como tal é, em certo grau, um respondente, pois não é o primeiro locutor, que rompe pela primeira
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vez o eterno silêncio do mundo mudo, e pressupõe não só a existência do sistema da língua que utiliza, mas, também a existência dos enunciados anteriores – emanantes deles mesmos ou do outro – aos quais seu próprio enunciado está vinculado por algum tipo de relação (fundamenta-se neles, polemiza com eles), pura e simplesmente ele já os supõe conhecidos do ouvinte (BAKHTIN, 2000, p. 291).
O caráter histórico da linguagem ocupa um lugar de evidência nas relações. Dessa forma, nega-se qualquer tentativa de sistematização teórica que não vincule os enunciados às relações social e histórica no pensamento da interação verbal de Bakhtin. Conforme Faraco (2001, p. 122): Pela primeira vez, descortina-se a possibilidade de conectar o agir do homem – na sua condição de ser sócio-histórico, criador, transformador e em permanente devir – com uma linguagem fundamentalmente plástica, isto é, adaptável à abertura, ao movimento, à heterogeneidade da vida humana.
Observa-se, a partir dessa dimensão, que o caráter sócio-histórico-ideológico da linguagem deve estar no cerne da discussão dos processos de interação social. Há divergências claras desse caráter dialógico para o conceito humboldtiano da linguagem como produto ideológico. Em O círculo de Bakhtin e o marxismo soviético: uma “aliança ambivalente”, Tchougounnikov (2011) explica a ideia de linguagem autônoma e ilimitada, todo locutor recria, de forma integral, a linguagem no momento em que fala. É um processo de refazimento do trabalho executado antes dele por gerações que o antecederam. A obra Marxismo e Filosofia da Linguagem estende sua crítica feita aos subjetivistas e ao objetivismo abstrato, principalmente no que concerne ao conceito de língua como sistema organizado de sinais estabelecidos por Saussure
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(1969). Na próxima seção, portanto, apresentamos a linguagem como sistema que auxilia na comunicação entre os indivíduos.
2. A crítica ao objetivismo abstrato A língua, de acordo com a concepção objetivista é estrutural, isto é, um sistema organizado de sinais que servem como instrumento de comunicação entre os indivíduos, que segundo Saussure (1969), principal representante dessa corrente, é um conjunto de “signos”, que combinados através de regras, possibilitam ao “emissor” transmitir determinada mensagem ao “receptor.” Vejamos o que registra Bakhtin/Volochínov (1999, p. 76): É claro que o sistema linguístico, no sentido acima definido, é completamente independente de todo ato de criação individual, de toda intenção ou desígnio. Do ponto de vista da segunda orientação, não se poderia falar de uma criação refletida da língua pelo sujeito falante. A língua opõe-se ao indivíduo enquanto norma indestrutível, peremptória, que o indivíduo só pode aceitar como tal.
A lógica do objetivismo abstrato é uma comunicação concretizada por meio de um código, cuja utilização pelo “emissor” e “receptor” obedece à convenção das normas. Nesse sentido, Bakhtin/Volochínov (1999, p. 75) critica a teoria saussuriana veementemente dizendo: Enquanto que, para a primeira orientação, a língua constitui um fluxo ininterrupto de atos de fala, onde nada permanece estável, nada conserva sua identidade, para a segunda orientação a língua é um arco-íris imóvel que domina este fluxo.
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O autor discorda das tendências subjetivista e objetivista, ao afirmar que nem a primeira nem a segunda orientação dão conta da linguagem enquanto tal, pois desde sempre a língua serve como instrumento de comunicação. O sistema linguístico que pode ser acabado teoricamente, em suas formas gramaticais, lexicais e fonéticas predefinidas não garantem que todos os falantes e ouvintes se relacionem, o que permite e garante a comunicação entre as pessoas é a capacidade interativa verbalmente dos falantes e as diferentes formas como estes inovam na utilização da língua. O Curso de Linguística Geral de Ferdinand de Saussure aborda a língua como um sistema abstrato, homogêneo, geral, virtual, um fato social, “um sistema de signos que exprimem ideias” (SAUSSURE, 1969, p. 24). A língua é considerada por ele como uma instituição social “exterior ao indivíduo, que por si só, não pode nem criá-la nem modificá-la” (Ibidem, p. 22). Ela serve como um elemento de organização social, cabendo à linguística estudar a língua de forma sistemática, excluindo a fala de tais estudos, pelo fato de ela ser constituída de atos individuais. Também não se faz presente nos trabalhos realizados por Saussure qualquer estudo diacrônico da língua. O processo pelo qual as línguas se modificam não é levado em consideração. O que importa nos trabalhos de Saussure é entender como as línguas funcionam num dado momento, ou seja, é feita apenas uma descrição sincrônica da língua, como meio de comunicação entre seus falantes, partindo de sua análise estrutural e configuração formal. Sobre o objetivismo abstrato afirma o filósofo: Para esta segunda orientação do pensamento filosófico-linguístico, o fato mais significativo é o fosso que separa a história do sistema linguístico em questão da abordagem não histórica, sincrônica. (...) Na verdade, as formas que constituem o sistema linguístico são mutuamente dependentes e
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completam-se como elementos de uma só e mesma fórmula matemática. A mudança de um dos elementos do sistema cria um novo sistema, assim como a mudança de um dos elementos da fórmula cria uma nova fórmula. (BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV, 1999, p. 77-78).
Ressaltamos que a concepção objetivista faz um recorte diacrônico, não considerando nenhuma relação entre os vários momentos da evolução ou mudança da língua. Esses postulados metodológicos estruturalistas serviram para que a linguística progredisse como ciência. Delimitado seu objeto de estudo, Saussure estabeleceu os procedimentos metodológicos e teóricos a serem empregados. Bakhtin/Volochínov (1999) critica outro ponto na teoria de Saussure: o fato de considerar a língua como um produto coletivo, uma instituição social e, portanto, livre da influência criativa dos falantes, sendo que para o indivíduo as leis linguísticas são arbitrárias, isto é, privadas de uma justificação natural ou ideológica. De acordo com Saussure (1969), a relação entre o significado e o significante é arbitrária, pois a imagem acústica do signo não tem conexão natural com o significado deste. Eis as noções de signo, significado e significante à luz de Saussure (1969, p. 79-80): Os termos implicados no signo linguístico são ambos psíquicos e estão unidos, em nosso cérebro, por um vínculo de associação. (...) O signo linguístico une não uma coisa e um palavra, mas um conceito e uma imagem acústica. Esta não é o som material, coisa puramente física, mas a impressão psíquica desse som, a representação que dele nos dá o testemunho de nossos sentidos. (...) O signo linguístico é, pois, uma entidade psíquica de duas faces (...). Esses dois elementos estão intimamente unidos e um reclama o outro.
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A noção de signo inerte, imutável, aleatório que preceitua o objetivismo abstrato, recebe a crítica sob a fundamentação de que todo signo é ideológico e são das estruturas sociais que provém a ideologia. Nesse sentido, a variação é inerente à língua e, “obedece a leis internas (reconstrução analógica, economia), ela é, sobretudo, regida por leis externas, de natureza social.” Bakhtin/Volochínov (1999). Na crítica, Bakhtin/Volochínov (1999) propõe o estudo da linguagem como objeto da translinguística, enquanto a noção de língua dos estruturalistas, metodologicamente, trabalha com línguas mortas, como alega Bakhtin/Volochínov (1999, p. 108): A língua, como sistema de formas que remetem a uma norma, não passa de uma abstração, que só pode ser demonstrada no plano teórico do ponto de vista do deciframento de uma língua morta e do seu ensino. Esse sistema não pode servir de base para a compreensão e a explicação dos fatos linguísticos enquanto fatos vivos e em evolução (BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV, 1999, p. 108).
Na perspectiva dos estruturalistas, como vimos, o conjunto de formas da língua é visto como imutável, uma vez que não considera as mudanças históricas e sociais. É uma visão que desliga a língua e seu conjunto de formas dos sujeitos falantes e das relações linguísticas existentes entre eles. A crítica é justamente no ponto em que ele entende que não se concebe a desvinculação da linguagem do sujeito, o elo que os une lhe confere uma realidade concreta e ideológica. Contrariamente aos estruturalistas, que privilegiam a forma abstrata da língua com suas características formais estáveis constitutivas do sistema, Bakhtin/Volochínov (1999), na opinião de Faria (2002, p. 28), enfatiza a situação concreta e toda a diversidade da fala, “teoriza sobre o dis-
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curso numa perspectiva que o considera na realidade viva do dia-a-dia”. A linguagem é ideológica porque, ao emitirmos enunciados, não estamos pronunciando meras palavras, e sim “verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1999, p. 95), no sentido da comunicação dos falantes. Em relação a este caráter histórico-social da linguagem defendido por Bakhtin, Miotello (2005, p. 170) afirma que: O ponto de vista, o lugar valorativo e a situação são sempre determinados sócio-historicamente. E seu lugar de constituição e materialização é na comunicação incessante que se dá nos grupos organizados ao redor de todas as esferas das atividades humanas. E o campo privilegiado de comunicação contínua se dá na interação verbal, o que constitui a linguagem como o lugar mais claro e completo da materialização do fenômeno ideológico.
Em outras palavras, podemos dizer que o importante é o propósito ideológico impregnado no conteúdo pronunciado. Diferentemente dos estruturalistas, Bakhtin/Volochínov (1999) considera não só o estudo do sistema da forma e sua norma; conjuntamente a isso está o conteúdo ideológico subjacente ao enunciado. A separação, mesmo num plano teórico, acarreta uma perda irreparável no entendimento da essência de um estudo, que tem como objeto a linguagem. A partir da crítica de Bakhtin/Volochínov (1999) ao subjetivismo e ao objetivismo ele propõe a polissemia da palavra. Esta adquire sentido bastante diferente do que defendeu Humboldt e Saussure, ela está em função da situação em que foi enunciada. O sujeito falante usa as formas da língua concretamente, a fim de comunicar algo e para
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conseguir essa comunicação efetiva, ele age interagindo verbalmente com outras sujeitos falantes, defende Bakhtin/ Volochínov (1999, p. 123): A verdadeira substância da língua não é constituída de formas linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua.
Com esta afirmação fica claro que não é a forma da língua a unidade fundamental, e sim o diálogo com toda a sua complexidade. O termo diálogo nessa concepção não deve ser entendido em sentido restrito, mas extensivo à comunicação verbal em toda a sua totalidade. Para Brait (1997, p. 98), a noção bakhtiniana de dialogismo pode ser interpretada de duas diferentes maneiras: Por um lado, o dialogismo diz respeito ao permanente diálogo, nem sempre simétrico e harmonioso, existente entre os diferentes discursos que configuram uma comunidade, uma cultura, uma sociedade. (...) Por um outro lado, o dialogismo diz respeito às relações que se estabelecem entre eu e o outro nos processos discursivos instaurados historicamente pelos sujeitos, que, por sua vez, instauram-se são instaurados por esses discursos.
Com efeito, a concepção de Bakhtin/Volochínov vista por este prisma coloca no discurso um caráter dialógico da linguagem e instaura uma perspectiva múltipla de sentidos. Na opinião de Faraco (2001, p. 122), é só a partir de Bakhtin que se ultrapassa uma concepção dicotômica de linguagem: Pela primeira vez, parece possível pensar as questões do signo para além da campânula dos sistemas formais, dos códi-
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gos que tudo prevêem, tudo definem e que, por necessidade das opções teóricas de base, estabelecem uma relação fixa entre o significante e o significado. Pela primeira vez, parece possível entender os processos de significação como ao mesmo tempo relativamente estáveis e sempre abertos, porque percebidos como ações de natureza social, dependentes de relações sociais.
Assim, Bakhtin/Volochínov nega o estudo da linguagem a partir do paradigma estruturalista. Em substituição, o autor lança a interação verbal como objeto de estudo da translinguística, por considerar o diálogo, ou seja, a língua em sua autêntica realização. Para o pensador russo, nosso objeto de investigação é a enunciação em situação de comunicação particular, não mais o estudo da frase abstrata, retirada do contexto enunciativo. O discurso permeia todas as relações existentes no seio de uma comunidade. Na verdade, é ele que constitui tais relações, bem como os sujeitos que interagem a partir dele. Ou, como diria Faraco (2001, p. 118): “Trata-se de apreender o homem como um ser que se constitui na e pela interação, isto é, em meio à complexa e intrincada rede de relações sociais de que participa permanentemente”.
4. Considerações finais Bakhtin/Volochínov (1999) tece críticas contundentes ao subjetivismo e ao objetivismo, duas tendências dos estudos tradicionais da linguagem. O subjetivismo idealista de Humboldt, que teorizou a língua em seu sentido ideológico transcendental, leva em consideração uma linguagem psicologicamente individual; e o objetivismo abstrato de Saussure defende o estruturalismo linguista com toda a sua forma e estrutura pré-fixada.
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Porém, essas críticas não são feitas visando a destruir o aparato teórico destes pensadores importantes da tradição. Sua perspectiva é de construção, conforme ele afirma, por exemplo, sobre o pensamento saussuriano Bakhtin/ Volochínov (1999, p. 133): “as pesquisas metalinguísticas, evidentemente, não podem ignorar a linguística e devem aplicar os seus resultados [...] devem completar-se mutuamente não fundir-se”. Sendo assim, essa proposta é a complementação entre a ordem da langue e o desvio necessário da parole. O importante é observar o autor da fala, seus atos de fala realizados nas diferentes situações e compreender o funcionamento eficaz da linguagem. Com Marxismo e Filosofia da Linguagem surge uma nova concepção de linguagem. As análises linguísticas introduzidas pelos interacionistas trazem para o estudo conceitos de sociedade e de história, dantes descartados por Humboldt no subjetivismo idealista e pela linguística saussuriana na subtração dos sujeitos falantes, ao defender o objetivismo abstrato. A tentativa de qualquer descrição da língua que exclua as outras semiologias constitutivas da produção de sentido será inócua e ineficiente na concepção do interacionismo bakhtiniano, a palavra, por sua vez, não é monológica, nem tampouco neutra. Ela, assim como o discurso, assume sentidos historicamente constitutivos, recebe dos discursos socialmente sustentados uma multiplicidade de sentidos. Desse modo, toda a enunciação, por ser interativa, é dialógica. Ela é determinada por um conjunto previamente definido de acontecimentos e apresentada mediante seu objetivo maior, que é comunicar ao outro. O dialogismo, portanto, revela-se na interatividade da linguagem como produto da investigação bakhtiniana sobre a linguagem na tradição linguística. Por conseguinte, para descrever a língua devem-se observar as manifestações linguísticas produzidas
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por sujeitos reais em situações comunicativas particulares. Esse entendimento transformou o modo de ver a linguagem, tanto para linguistas como para filósofos, uma vez que no estudo da linguagem há uma linha tênue que divide estas duas importantes áreas do conhecimento humano. Para que possamos entender que este assunto não tem um posicionamento definitivo, ficam as seguintes questões: há possibilidades de a concepção de linguagem conhecida como objetivismo abstrato responder a questões filosóficas? Se o psiquismo individual como ato significativo esclarece o fenômeno linguístico, será que a plasticidade da linguagem é encontrada na objetividade ou subjetividade dos sujeitos falantes? Como procedemos, depois de tomar conhecimento da interação verbal construída sociologicamente com a presença histórica e marcas culturais, em um mundo fortemente marcado pelo produto pronto? Eis alguns questionamentos que podem nortear pesquisadores dispostos a contribuir com a pesquisa em filosofia da linguagem.
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BAKHTIN/VOLOCHÍNOV E OS PROBLEMAS DA CONSTRUÇÃO DO SENTIDO Francisco de Freitas Leite (URCA/PROLING-UFPB) freitas_leite@hotmail.com Maria Verônica A. da Silveira Edmundson (IFET-PB/PROLING-UFPB) veronicaedmundson@hotmail.com
Palavras introdutórias Em fins dos anos 20 do século XX, quando Marxismo e filosofia da linguagem foi escrito, tendências formalistas dominavam a linguística de modo que a obsessão imanentista de resolver as questões de língua em si e por si empurrava as teorizações a um rigor formal tão metodologicamente estabelecido – sobretudo nos trabalhos dos estruturalistas –, que terminavam por isolar a linguística, naquilo que Bakhtin/Volochínov ([1929] 2009, p. 133) chamou de “solilóquio”. Os ganhos academicistas que o status de ciência-piloto, entre as ciências humanas, trouxe à linguística estruturalista, por exemplo, consequentemente cobravam uma reclusão, um monólogo intralinguístico, uma quase que ojeriza a trazer as questões sociais, históricas e enunciativas ao âmbito mesmo das considerações linguísticas, que levavam a linguística a considerar a linguagem de forma mutilada, ou seja, restrita apenas à langue, ao sistema virtual.
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Com o advento do Curso de linguística geral de Saussure, publicado em 1916, estabeleceu-se um certo temor de impureza na linguística (Saussure criticava que antes dele os linguistas nunca tinham se preocupado em estabelecer um objeto para a linguística, adentrando os domínios de outras ciências, tais como da sociologia, da psicologia, da teoria literária etc.) que se concretizava em evitar-se nos estudos linguísticos a fronteira com outras ciências ou mesmo a se trabalhar elementos extralinguísticos. Desde essa época, outro temor estabelecido, digamos assim, era o de associar as questões de língua à história, o que poderia parecer um retroagir ao modo de se fazer linguística do século XIX, que Saussure denominou de Diacronia. Nessa atmosfera em que a ciência da linguagem estava imersa, as questões relativas às significações e aos sentidos, basicamente, ou se reduziam às concepções do objetivismo abstrato, tais como as da teoria do signo linguístico de Saussure, ou eram tratadas como sendo do âmbito da estilística, ao modo do subjetivismo idealista de Vossler ou de Humboldt, segundo críticas do próprio Bakhtin/Volochínov ([1929] 2009). Ou seja, nessa atmosfera reducionista em que a ciência da linguagem estava imersa, tratar de questões como as da significação, que carecem necessariamente de serem levadas em conta elementos tais como o contexto social, a ideologia, o momento da enunciação, os sujeitos, a história etc., ou seja, elementos constitutivos da produção de sentido, mas exteriores à língua enquanto sistema abstrato, era simplesmente impraticável. Ficavam essas questões, portanto, sempre como interesses secundários dos trabalhos linguísticos. Nesse ínterim, até mesmo pela falta de trabalhos anteriores em que se apoiasse, justifica-se Bakhtin/Volochínov ([1929] 2009, passim) dizer que iria se limitar, falando da significação, “a um exame breve e superficial dessa questão”
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(p. 133), mas talvez isso mesmo é que acentue o caráter precursor em tratar esse problema numa perspectiva dialética e enunciativa, numa época em que ainda eram predominantes as abordagens formalistas da questão. Podemos dizer que uma problemática posta na época para Bakhtin/Volochínov era a seguinte: como “abordar os fundamentos e as características essenciais da significação linguística”? (p. 133). Neste artigo apresentamos um estudo do capítulo 7 de Marxismo e filosofia da linguagem – “Tema e significação na língua” – com base nessa problemática.
1. O problema da significação No entender de Bakhtin/Volochínov ([1929] 2009, passim), resolver o problema da significação dentro do “solilóquio da ciência linguística” (p. 133) e com as considerações imanentistas não era viável, nem sequer com os meios da compreensão passiva típica dos filólogos. A maneira mais viável de abordar a questão deveria ser por meio da dialética estabelecida entre a significação linguística e repetível e o tema contextual e irrepetível, que passa também pelo exame da compreensão ativa do tema (sentido próprio de cada enunciação), bem como pela consideração do acento apreciativo e da entoação expressiva. Seja por uma questão de tradução ou por uma questão mesma de que o sentido de qualquer palavra muda conforme o contexto em que se enuncia, a palavra significação aparece no texto de Marxismo e filosofia da linguagem em um sentido largo e em um sentido estreito, como didaticamente denominamos e explicamos abaixo. Chamaremos de “significação lato sensu” ao que Bakhtin/Volochínov (p. 133) deixa entender como sendo a parte da linguagem referente aos significados e aos senti-
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dos, mais ou menos ao que se poderia chamar também de semântica. Chamaremos “significação stricto sensu” ao que Bakhtin/Volochínov entende como “a palavra isolada de seu contexto” (p. 98) ou “elemento abstrato igual a si mesmo” (p. 141), ou mesmo o que Saussure chama de signo (significante + significado), ou seja, signo imanente. Mas, apesar de uma palavra isolada poder operar “como uma enunciação global” (p. 135-136), a significação (stricto sensu) não se refere somente a uma palavra isolada, ela corresponde também ao conjunto dos significados das palavras, às relações morfossintáticas, às entonações (interrogativa, exclamativa...), etc. que compõem a estrutura da enunciação (p. 134). O que denominamos aqui de “significação stricto sensu” poderia também ser denominado de “significado”, como vemos na tradução argentina em Voloshinov ([1929] 1976, p. 125-133). Como se percebe, significação (stricto sensu) para Bakhtin/Volochínov também pode equivaler a signo para Saussure, mas o pensador russo vai além do estudo do signo linguístico saussuriano, pois acrescenta a noção de sentido (tema), de acento apreciativo (valor socioideológico) e de entoação expressiva (emotiva e afetiva), elementos a que Saussure não se deteve, justamente porque o interesse de Saussure era o sistema abstrato (a língua ideal) e não os usos reais que necessariamente levam em conta a exterioridade na qual se banham as palavras (os signos). O que Bakhtin/Volochínov ([1929] 2009, passim) chama de significação (stricto sensu) podemos explicar como sendo uma espécie de sensus latens, um sentido latente, como uma semente de sentido que, estando adormecida, só germinará no ambiente propício da enunciação, do ato, da interação; caso contrário continuará quieta, guardada, armazenada nas suas potencialidades de um livro ou de uma inscrição,
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por exemplo, à espera do momento favorável (entenda-se aqui momento de enunciação) à sua germinação na forma de sentido real, concreto e vivo: um sensus factus. Essa metáfora da semente adormecida e da semente germinada em ambiente propício corresponde à perspectiva dialética como a questão foi tratada por Bakhtin/Volochínov, visto que para ele as distinções entre o sentido usual e ocasional, entre sentido denotativo e conotativo, ou entre sentido central e lateral “são fundamentalmente insatisfatórias” (p. 136). Distinguir e compreender as relações entre o tema e a significação constitui o primeiro passo para se entender o problema do sentido na linguagem. Significação e tema estão definidos e diferenciados ao longo do capítulo 7 de Marxismo e filosofia da linguagem de Bakhtin/Volochínov ([1929] 2009, passim) da maneira que apresentamos a seguir: SIGNIFICAÇÃO
TEMA
• Além do tema, ou, mais exatamente, no interior dele, a enunciação é igualmente dotada de uma significação (p. 134). • Significação (...): elementos da enunciação que são reiteráveis e idênticos cada vez que são repetidos (p. 134) • Esses elementos são abstratos: fundados sobre uma convenção, eles não têm existência concreta independente, o que não os impede de formar uma parte inalienável, indispensável, da enunciação (p. 134). • A significação da enunciação, ao contrário [do tema], pode ser analisada em um conjunto de significações ligadas aos elementos linguísticos que a compõem (p. 134).
• Um sentido definido e único, uma significação unitária, é uma propriedade que pertence a cada enunciação como um todo (p. 133). • O sentido da enunciação completa [é] o seu tema (p. 133). • Individual e não reiterável [como a enunciação] (p. 133). • Ele se apresenta como a expressão de uma situação histórica concreta que deu origem à enunciação (p. 133). • O tema da enunciação é determinado não só pelas formas linguísticas que entram na composição (as palavras, as formas morfológicas ou sintáticas, os sons, as entoações), mas igualmente pelos elementos não verbais da situação (p. 133).
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Francisco de Freitas Leite, Maria Verônica A. da Silveira Edmundson SIGNIFICAÇÃO • A significação da enunciação: “Que horas são?” é idêntica em todas as instâncias históricas em que é pronunciada; ela se compõe das significações de todas as palavras que fazem parte dela, das formas de suas relações morfológicas e sintáticas, da entoação interrogativa etc. (p. 134) • A significação é um aparato técnico para a realização do tema (p. 134). • É impossível traçar uma fronteira mecânica absoluta entre a significação e o tema (p. 134). • Não há tema sem significação, e vice-versa (p. 134). • É impossível designar a significação de uma palavra isolada (por exemplo, no processo de ensinar uma língua estrangeira) sem fazer dela o elemento de um tema, isto é, sem construir uma enunciação, “um exemplo” (p. 134). • A significação é um estágio inferior da capacidade de significar. A significação não quer dizer nada em si mesma, ela é apenas um potencial, uma possibilidade de significar no interior de um tema concreto. (p. 136). • A investigação da significação de um ou outro elemento linguístico [...] pode tender para o estágio inferior, o da significação: nesse caso, será a investigação da significação da palavra no sistema da língua, ou em outros termos a investigação da palavra dicionarizada (p. 136).
TEMA • Caráter não reiterável e historicamente único de cada enunciação concreta (p. 134). • O tema da enunciação é concreto (p. 134). • O tema da enunciação é na essência irredutível a análise (p. 134). • O tema da enunciação: “Que horas são?”, tomado em ligação indissolúvel com a situação histórica concreta, não pode ser segmentado (p. 134). • O tema é um sistema de signos dinâmico e complexo, que procura adaptar-se adequadamente às condições de um dado momento da evolução (p. 134). • O tema é uma reação da consciência em devir ao ser em devir1 (p. 134). • O tema deve apoiar-se sobre uma certa estabilidade da significação; caso contrário, ele perderia seu elo com que precede e o que se segue, ou seja, em suma, o seu sentido (p. 134). • O tema constitui o estágio superior real da capacidade linguística de significar. De fato, apenas o tema significa de maneira determinada (p. 136). • A investigação da significação de um ou outro elemento linguístico pode [...] orientar-se [...] para o estágio superior, o tema; nesse caso, tratar-se-ia da investigação da significação contextual de uma dada palavra nas condições de uma enunciação concreta (p. 136).
Como a tradução brasileira usou a palavra “devir”, que possui acepções (ou significações) desde as mais comuns em usos prosaicos, como o “vir-a-ser” (FERREIRA, 1986, p. 582), até aquelas mais comuns em usos filosóficos, tais 1
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A questão é, pois, entendida da seguinte forma: significação + contexto (enunciação) à tema (sentido). Toda enunciação se dá num contexto e num momento histórico único e jamais repetível, sendo também contextual, histórico e irrepetível o seu tema (ou o sentido da enunciação), entretanto os elementos que compõem a forma linguística (a estrutura) dessa enunciação são duradouros. Cereja (2007, p. 202) distingue significação e tema fazendo a seguinte analogia: “se a significação está para o signo – ambos virtualidades de construção de sentido da língua –, o tema está para o signo ideológico, resultado da enunciação concreta e da compreensão ativa, o que traz para o primeiro plano as relações concretas entre sujeitos”. Ilustremos a questão com o seguinte exemplo: um agricultor do sertão, que depende da chuva para cultivar a sua roça, escuta no rádio durante o horário das previsões meteorológicas a enunciação: Vai chover. Num outro contexto, um turista que, estando numa praia do litoral nordestino, esperando um dia de sol para melhor aproveitar um raro final de semana para descansar e se bronzear, escuta na TV durante o horário das previsões meteorológicas a enunciação: Vai chover. O tema (ou sentido) da enunciação no primeiro contexto não é o mesmo produzido no segundo contexto, apesar de a significação (stricto sensu) ser a mesma. No primeiro contexto enunciativo, o tema da enunciação Vai chover gira em torno do sentido de: agora a roça poderá ser cultivada, haverá condições de produzir, haverá safra, haverá lucro etc. Outras enunciações que têm sentidos aprocomo: “transformação incessante e permanente pela qual as coisas se constroem e se dissolvem noutras coisas” (Idem, ibidem), entendemos que apresentando também aqui a tradução argentina, que em vez de “devir” (ou “devenir” em castelhano) usou “proceso generativo” (que pode ser traduzido para o português como “processo gerador” ou mesmo “evolução”), poderíamos lançar uma luz sobre essa definição aqui dada ao tema. Eis como este trecho aparece em Voloshinov ([1929] 1976, p. 126): “El tema es la reacción de la conciencia en su proceso generativo al proceso generativo de la existencia”.
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ximados ao tema desta enunciação são, por exemplo, aquelas tipicamente encontradas nos discursos dos sertanejos em relação à chuva: Ô tempo bom! ou O tempo tá bonito pra chover!. No segundo contexto enunciativo, o tema da enunciação Vai chover, apesar das formas linguísticas repetidas em outras enunciações, gira em torno do sentido de: agora a praia não estará em condições de lazer, o final de semana com sol e praia ficará perdido, não será possível o bronzeamento natural etc. Outras enunciações que têm sentidos aproximados ao tema desta enunciação, por exemplo, em relação à chuva, são aquelas tipicamente encontradas nos discursos dos turistas que vão à praia: O tempo está ruim! ou Tempo feio! É preciso notar que para o agricultor do sertão os sentidos das enunciações produzidas em discurso sobre a chuva estão normalmente associados a coisas boas, bonitas, agradáveis, enquanto que os sentidos das enunciações produzidas por turistas nas praias em discurso sobre a chuva estão normalmente associados a tempo ruim, feio, fechado. Esse exemplo mostra que o sentido de uma palavra (de um enunciado qualquer) só poderá ser compreendido se forem considerados, além da significação (enquanto estrutura morfossintática, lexical etc.), também os elementos extralinguísticos (sujeitos, contexto socioideológico, histórico etc.), que são indispensavelmente constitutivos dos processos de construção do sentido.
2. O problema da compreensão Ao fazer também a distinção entre compreensão ativa e compreensão passiva, Bakhtin/Volochínov ([1929] 2009, p. 136-137) esmiúça e esclarece ainda mais a sua concepção que distingue significação e tema.
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Uma tradição filológica que ainda perdurava nos estudos linguísticos, quando foi escrito Marxismo e filosofia da linguagem, tendia a se trabalhar a questão do sentido ao modo de um estudo histórico e etimológico, numa espécie de obsessão por se estabelecer (à semelhança de uma escavação paleontológica) o sentido primeiro em que uma determinada palavra foi usada, ou o seu sentido num determinado período da história da língua, ou ainda, pasmem, seu sentido “verdadeiro”. Essa maneira típica de o filólogo de tratar o sentido de uma palavra (ou, enfim, de qualquer enunciado) foi, criticamente, chamada por Bakhtin/Volochínov de compreensão passiva, uma vez que desconsidera completamente a situação enunciativa em que uma palavra ocorra e, pior, relaciona às palavras tão somente acepções, ou seja, significações. Um filólogo, trabalhando com uma palavra, “exclui a priori qualquer resposta”, como diz Bakhtin/Volochínov ([1929] 2009, p. 136). Ou seja, não entende o filólogo que uma palavra (um enunciado) não tem sentido isoladamente, pois ela ocorre sempre numa enunciação cuja completude extrapola a forma linguística e está necessariamente ligada aos elementos da situação (sujeitos, sociedade, história, ideologia etc.) e ligada dialogicamente às palavras (enunciados) anteriores e às posteriores, estas que, na forma de compreensão ativa, lhe confere o caráter responsivo, de palavra e de contrapalavra. O exemplo abaixo ilustra a compreensão passiva como os filólogos tipicamente abordam as palavras: De articulo, diminutivo de artus, articulação, viera regularmente do 1º período de formação do romance português artelho, segundo as mesmas leis que transformaram ovicula, auricula, apicula, em ovelha, orelha, abelha. Artelho significa materialmente tornozelo, e em outras línguas designa o dedo maior do pé. Mais tarde os legistas, os gramáticos e os
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teólogos, tiraram novamente articulo do tesouro latino, com o sentido gramatical e outros sentidos que lhe conhecemos (VASCONCELOS, [Original de 1911-1913] 19–, p. 31).
Observemos que enunciados como “significa materialmente”, “designa”, “sentido gramatical” e “outros sentidos que lhe conhecemos” – considerado o todo dessa enunciação em que figuram – reduzem a ideia de sentido e de significar ao que Bakhtin/Volochínov chamou de significação (stricto sensu). O que é “significar materialmente” e o que é o “sentido gramatical” de uma palavra ou de uma enunciação? Entendemos que, considerada a enunciação, a autora fala de acepção dicionarizada, isto é, nada mais que da palavra descontextualizada e compreendida passivamente como um sinal inerte, ou seja, considerando-se apenas o seu significado abstrato, ao modo saussuriano. Dessa forma, a filóloga tratou as palavras estudadas, como diria Bakhtin/ Volochínov ([1929] 2009, p. 136), apenas em seu “estágio inferior da capacidade de significar”. Já numa compreensão ativa, os sujeitos interlocutores são parceiros, eles interagem entre si em movimentos dialógicos. Toda compreensão de um enunciado, seja em um discurso falado ou escrito, implica responsividade, réplicas, consequentemente uma atividade dialógica. Para entender como se dá a compreensão ativa, faz-se necessário, também, entender a concepção dialógica bakhtiniana, cujo principio básico refere-se ao fato de que toda enunciação (toda palavra) dirige-se a alguém, de modo que seu sentido (tema) só se completa quando a compreensão se realiza ativamente, no processo de compreensão ativa e responsiva, em forma de réplica ao que foi dito, na interação verbal. Para Bakhtin a única compreensão que tem valor é a atitude responsiva que gera esta compreensão ativa, na qual o sentido é construído pelos sujeitos participantes da enunciação, sendo o resultado da interpretação dos interlocu-
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tores envolvidos nesse processo. Para Bakhtin/Volochínov ([1929] 2009, p. 136-137): qualquer tipo genuíno de compreensão deve ser ativo deve conter já o germe de uma resposta. Só a compreensão ativa nos permite apreender o tema, pois a evolução não pode ser apreendida senão com a ajuda de um outro processo evolutivo. Compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela, encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente. A cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender, fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica. Quanto mais numerosas e substanciais forem, mais profunda e real é a nossa compreensão. [...] A compreensão é uma forma de diálogo.
Em Bakhtin ([1979] 2010, p. 271), também se encontra essa ideia de que o interlocutor ao compreender o significado do discurso ocupa ao mesmo tempo em relação a ele uma ativa posição responsiva, isso porque esse sujeito pode apreciar, aceitar e ou refutar o discurso (parcial ou total), ainda pode aplicá-lo, completá-lo. Essa posição responsiva se constrói ao longo de todo o processo da interação seja na leitura ou na fala, desde seu início, desde a primeira palavra. Assim, toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante diverso); toda compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante (BAKHTIN, [1979] 2010, p. 271).
Dessa forma, para que haja a compreensão ativa não se pode analisar a palavra descontextualizada. O contexto é quem determina o sentido da palavra, porém sem que esta deixe de ser una, ou seja, ela não perde sua unicida-
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de. A cada novo contexto, novo tema é criado, mostrando a dinamicidade da língua. Por isso, não se pode compreender ativamente a palavra descontextualizada. Como afirma Sobral (2009, p. 76), “a própria significação, o núcleo básico essencial da língua, se altera a partir dos contextos em que é mobilizada por vários temas em vários contextos possíveis”. Outro elemento fundamental a se abordar na compreensão ativa é a acentuação valorativa presente em toda enunciação. Tratemos, então, a seguir, com mais detalhes, dessa questão da apreciação na construção de sentido.
3. O problema da inter-relação entre a apreciação e a significação “Sem acento apreciativo não há palavra”, assim se expressa Bakhtin/Volochínov ([1929] 2009, p. 137) tratando de uma característica de “toda palavra usada na fala real” (Idem, ibidem), que vai além de significação e tema – conteudisticamente pensando – e que passa às apreciações (valores sociais) e às entoações expressivas (envolvimentos emotivos e afetivos). A palavra, dessa forma como Bakhtin/Volochínov ([1929] 2009) a entende, é um signo ideológico, que é sempre carregado de tons e apreciações só percebidos na enunciação concreta em que ele ocorra. Considerar uma palavra sem levar em conta o acento apreciativo é compreendê-la passivamente, é reduzi-la a um sinal, imóvel e sempre preso ao dicionário. Só a palavra em potencial, na inércia do sistema ou do léxico, é desprovida de acento (ou valor) apreciativo e de entoação expressiva, porque sempre que for usada concretamente, ela será orientada por um complexo contexto socioideológico apreciativo. Sobre isso, Stella (2007, p. 178) diz:
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As entoações são valores atribuídos e/ou agregados àquilo dito pelo locutor. Esses valores correspondem a uma avaliação da situação pelo locutor posicionado historicamente frente a seu interlocutor. O falante, ao dar vida à palavra com sua entoação, dialoga diretamente com os valores da sociedade, expressando seu ponto de vista em relação a esses valores. São esses valores que devem ser entendidos, apreendidos e confirmados ou não pelo interlocutor. A palavra dita, expressa, enunciada, constitui-se como produto ideológico, resultado de um processo de interação na realidade viva.
O próprio fato de escolher uma palavra e não outra para se referir a determinado ser já revela o interesse e o afeto, um acento de valor. Isso pode ser lido também em Bakhtin ([1920-1924] 2010, p. 85): A palavra não somente denota um objeto como objeto de algum modo presente, mas expressa também com a sua entonação (uma palavra realmente pronunciada não pode evitar de ser entoada, a entoação é inerente ao fato mesmo de ser pronunciada) a minha atitude avaliativa em relação ao objeto – o que nele é desejável e não desejável.
Dessa forma, entendemos que a seleção das palavras que o sujeito faz para tratar de um ser revela a sua atitude axiológica acerca desse ser (objeto). Quando uma palavra qualquer (um enunciado) ocorre num discurso de um sujeito, ela foi por ele escolhida conforme a apreciação social que fez do horizonte social dos seus interlocutores e da situação enunciativa: Seus interlocutores eram crianças ou adultos? Quais os seus graus de escolaridades? Quais as apreciações desses interlocutores em relação a ele, o sujeito enunciador? E, se quisermos analisar nessa palavra uma entoação de irritação ou de alegria etc., só poderemos fazer isso levando em conta a enuncia-
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ção, pois só a palavra concretamente enunciada é dotada de acento apreciativo e de entoação expressiva. Isolada, uma palavra é identificada como um sinal, ou seja, como um mero “instrumento técnico para significar”, como diz Bakhtin/Volochínov ([1929] 2009, p. 96), deixando claro também que, quando compreendida ativamente, a palavra é um signo e está, pois, no domínio da ideologia: um signo, sendo integrante da vida real dos sujeitos, é sempre carregado de valor ideológico. No dizer de Tchougounnikov (2011, p. 1): “O signo ideológico encontra uma manifestação natural na entoação como expressão de valor ou atitude ideológica”. Em Bakhtin/Volochínov ([1929] 2009, passim) vemos que a entoação expressiva transmite “o nível mais óbvio, que é ao mesmo tempo o mais superficial da apreciação social contida na palavra” (p. 137-138). Nas interações verbais reais – assim como acontece também no exemplo apresentado por Bakhtin/Volochínov a partir de um texto de uma publicação periódica, de 1877, o Diário de um Escritor, de Dostoiévski, em que seis operários se comunicam e se compreendem perfeitamente usando sempre a mesma palavra, mas em cada enunciação com uma entoação diferente, tendo, portanto, sentido (tema) diferente em cada enunciação – fica claro perceber como é que as “entoações [...] exprimem as apreciações dos interlocutores” (p. 139). Assim, quando alguém, por exemplo, diz: Caramba! pode-se perceber, considerado todo o contexto enunciativo, uma entoação de espanto ou de admiração (ou outra qualquer) e isso exprimirá a apreciação do sujeito locutor em relação à situação enunciativa como um todo (em relação a seu interlocutor, a seu horizonte social, às suas expectativas etc.), mas tudo isso só será percebido e compreendido por interlocutores perfeitamente envolvidos na situação social imediata.
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Mas o acento apreciativo não se reduz a um uso em uma conversa íntima ou familiar, em qualquer que seja a situação viva de enunciação (oral ou escrita), “cada elemento contém ao mesmo tempo um sentido e uma apreciação” (p. 140), ou seja, toda palavra, todo enunciado (na verdade, qualquer elemento linguístico que seja), além de um sentido único e irreiterável, possui sempre juízos de valor só perceptíveis quando consideradas a(s) sua(s) entoação(ões) em enunciações vivas. Além dessa, outra característica importante da língua está também associada à apreciação. As entoações carregam valores, que podem ser reavaliados toda vez que uma palavra passa de um contexto avaliativo (apreciativo) para outro diferente. Sobre isso, diz Cunha (2009, p. 27): A passagem do tema por muitas e diferentes vozes é a característica da comunicação humana. Nessa circulação incessante, por meio de procedimentos que vão desde a literalidade direta na transmissão até a deformação paródica premeditada da palavra de outrem e a sua deturpação, os discursos são inevitavelmente reacentuados nos novos contextos.
A apreciação envolve tanto o horizonte imediato como o horizonte social mais amplo ao qual pertencem os interlocutores. Para Bakhtin/Volochínov ([1929] 2009, p. 140) “é à apreciação que se deve o papel criativo nas mudanças de significação. A mudança de significação é sempre, no final das contas, uma reavaliação: o deslocamento de uma palavra determinada de um contexto apreciativo para outro”, pois afinal as mudanças na sociedade acarretam também mudanças semânticas, sendo que, nos processos de reavaliações, “uma nova significação se descobre na antiga e através da antiga, mas a fim de entrar em contradição com ela e de reconstruí-la.” (Idem, p. 141).
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4. Intentando conclusões Para finalizar, queremos lembrar que a exterioridade (noção tão cara não só à filosofia da linguagem do Círculo de Bakhtin, mas também, por exemplo, à Análise do Discurso francesa) é um elemento constitutivo/integrante (e não acessório ou opcional) do sentido de uma palavra ou de um enunciado. Os pensadores do Círculo, como se é possível ler em vários trabalhos deles, sempre estão relembrando esse fundamento, como se vê, por exemplo, quando falam da relação entre situação extraverbal e enunciado: a situação se integra ao enunciado como uma parte constitutiva essencial da estrutura da significação (VOLOSHINOV e BAKHTIN [1926], 2011, p. 6). Desprezada a exterioridade e tudo que a ela se relaciona, como as ideologias, os sujeitos, a história, a memória, a enunciação, o ato, a apreciação social etc., não se pode aí mais falar em sentido (nem em palavra/signo), nesse caso tem-se tão somente a significação (ou um sinal); tem-se, enfim, não mais que um simulacro de língua. É evidente a importância de se compreender a questão da produção de sentido a partir da dialética estabelecida entre significação e tema, passando também pela compreensão ativa e responsiva. Mas há lugar em sala de aula para se trabalhar essa questão? Nesse sentido, um questionamento é colocado: como esses e outros conceitos do Círculo de Bakhtin podem ser levados à prática didática em sala de aula para a formação de sujeitos capazes de dialogar, por exemplo, com o texto, posicionando-se, replicando-o, aceitando-o, refutando-o? Finalmente, é preciso que se saliente a atualidade e a pertinência dessas contribuições aqui abordadas a partir da obra Marxismo e filosofia da linguagem, – que também se encontram em outros trabalhos do Círculo – para todos aque-
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les que queiram trabalhar questões de linguagem considerando-a, sem mutilações, na interação verbal, na realidade viva da língua através das enunciações.
Referências BAKHTIN, M. M. (VOLOCHÍNOV, V. N.). [1929]. Marxismo e filosofia da linguagem. 13. ed. [Trad. M. Lahud e Y. F. Vieira]. São Paulo: Hucitec, 2009. BAKHTIN, M. M. [1979]. Estética da criação verbal. 5. ed. [Tradução Paulo Bezerra]. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. ______. [Original de 1920-1924]. Para uma filosofia do ato responsável. [Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello & Carlos Alberto Faraco]. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010. CEREJA, William. Significação e tema. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: conceitos-chave. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2007. p. 201-220. CUNHA, Dóris de Arruda C. Circulação, reacentuação e memória no discurso da imprensa. In: BAKHTINIANA, São Paulo, v. 1, nº 2, p. 23-39, 2º sem. 2009. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. SOBRAL, Adail. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do círculo de Bakhtin. Campinas, SP: Mercado de Letras. 2009.
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Francisco de Freitas Leite, Maria Verônica A. da Silveira Edmundson
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A PALAVRA DE OUTREM: AS FRONTEIRAS DO FENÔMENO SOCIAL DA INTERAÇÃO VERBAL Eliete Correia dos Santos (UEPB/UFPB/PROLING) professoraeliete@hotmail.com
Introdução Historicamente, as gramáticas normativas e/ou tradicionais restringem a noção de discurso citado ao nível morfológico e sintático, em detrimento de diferentes modos de funcionamento dialógico, os efeitos de sentido produzidos por esta diversidade, a inter-relação dinâmica que se estabelece entre contexto narrativo e discurso citado. O presente estudo consiste em uma reflexão acerca de relações possíveis entre os objetos linguístico e discursivo, a partir de investigações feitas na obra Marxismo e filosofia da linguagem, em especial a terceira parte “Para uma história das formas da enunciação nas construções sintáticas: tentativa de aplicação do método sociológico aos problemas sintáticos” em que Bakhtin/Volochínov ([1929] 2009) esboça uma orientação sociológica em linguística, para tratar o fenômeno de transmissão da palavra de outrem, delimitando como fronteira o fenômeno social da interação verbal em seu todo, realizada por meio das enunciações.
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Bakhtin/Volochínov ([1929] 2009) concebe a comunicação como um processo interativo, muito mais amplo do que a mera transmissão de informações, já que a linguagem é interação social. O sujeito, ao falar ou escrever, deixa em seu texto marcas profundas de sua sociedade, seu núcleo familiar, suas experiências, além de pressuposições sobre o que o interlocutor gostaria ou não de ouvir ou ler, tendo em vista também seu contexto social. A verdadeira substância da língua não é constituída por um “sistema abstrato de formas linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato fisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua.” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, [1929] 2009, p. 123). No movimento de interação social, os sujeitos constituem os seus discursos por meio das palavras alheias de outros sujeitos (e não da língua, isto é, já ideologizadas), as quais ganham significação no seu discurso interior e, ao mesmo tempo, geram as réplicas ao dizer do outro, que por sua vez vão mobilizar o discurso desse outro, e assim por diante. A noção de interação verbal via discurso é gerada pelo efeito de sentidos originado pela sequência verbal, pela situação, pelo contexto histórico social, pelas condições de produção e também pelos papéis sociais desempenhados pelos interlocutores. Ou seja, além dos aspectos linguísticos as condições de produção do discurso são definitivas para compô-lo; e isso não se aplica somente à interação verbal face a face, mas adentra o discurso romanesco.
1. Tentativa de aplicação do método sociológico aos problemas sintáticos A terceira parte da obra trata de uma reflexão sobre a história das formas da enunciação nas construções sintáti-
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cas em que os autores buscam elaborar uma tentativa de aplicação do método sociológico aos problemas sintáticos, já que as questões acerca da sintaxe eram tratadas da mesma maneira que os fenômenos morfológicos por meio de princípios e métodos tradicionais da linguística, em especial os do objetivismo abstrato. Bakhtin/Volochínov ([1929] 2009) considera que as construções sintáticas são de enorme relevância para se compreender a língua e seu processo de evolução, pois, dentre as formas linguísticas (fonéticas, morfológicas e sintáticas), as sintáticas são as que mais se aproximam da enunciação, isto é, das condições reais da fala. Assim sendo, esse autor acentua que o estudo da sintaxe só é viável no bojo de uma teoria da enunciação e a elucidação dos problemas mais elementares da sintaxe só é possível também sobre a base da comunicação verbal. Entre os problemas sintáticos, o autor especifica o discurso citado (discurso direto, indireto e indireto livre), as modificações desses esquemas e as variantes dessas modificações que encontram na língua como um fenômeno “nodal” e produtivo, pois a composição desse fenômeno serve para a transmissão das enunciações de outrem e para a integração dessas enunciações, enquanto enunciações de outrem, num contexto monológico coerente. Segundo Bakhtin/Volochínov ([1929] 2009, p. 150), o discurso citado “é o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas é, ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação”. Mesmo que a citação seja tema em relação ao que se enuncia, no discurso citado, integra-se à sintaxe do discurso que cita. Assim, o tema penetra no discurso conservando as suas características estruturais e semânticas, assim como aquelas do discurso que o absorve. A autonomia, ou o caráter autônomo do discurso de outrem se relaciona ao fato de
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o discurso citado ter o conteúdo conservado, assim como sua “integridade linguística” e sua “autonomia estrutural primitiva” ([1929] 2009, p. 150-151). O autor ressalta que, nas línguas modernas, o discurso indireto, em particular o discurso indireto livre apresenta uma tendência de transferir a enunciação citada do domínio da construção linguística ao plano temático, de conteúdo, embora a diluição da palavra citada no contexto narrativo não se efetua completamente, pois o conteúdo semântico e a estrutura da enunciação citada permanecem relativamente estáveis. Assim nas formas de transmissão do discurso de outrem, “uma relação ativa de uma enunciação a outra, e isso não no plano temático, mas através de construções estáveis da própria língua.” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, [1929] 2009, p. 151). Desse modo, esse pensador enfatiza que esse fenômeno “da reação da palavra à palavra” ([1929] 2009, p. 151), precisa ser mais investigado, pois essas formas refletem tendências básicas e constantes da recepção ativa do discurso de outrem ao se manifestarem nas formas linguísticas. As escolhas gramaticais do discurso de outrem são baseadas na sociedade, apenas os “elementos de apreensão ativa, apreciativa, da enunciação de outrem que são socialmente pertinentes e constantes e que, por consequência, têm seu fundamento na existência econômica de uma comunidade linguística dada” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, [1929] 2009, p. 152). Para esse autor russo, aquele que apreende a enunciação de outrem não é um ser mudo, mas um ser cheio de palavras interiores, ou seja, “a palavra vai à palavra” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, [1929] 2009, p. 154). Para efetivar esse processo, ele expõe duas operações: a réplica interior e o comentário efetivo, estes são organicamente ligados na unidade da apreensão ativa e não são isoláveis. Esse au-
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tor afirma que essas duas operações de apreensão se realizam no discurso citado que engloba o contexto narrativo. Estes se fundem por meio de relações dinâmicas, complexas e tensas. Nesses termos, o autor critica o caráter estático das pesquisas nessa área e enfatiza que o erro de muitos pesquisadores é ter separado do discurso de outrem o contexto narrativo, pois tanto as formas de apreensão quanto de verbalização do discurso do outro são construídas em meio a tendências sociais estáveis, segundo formas padronizadas para sua introdução, o que insinua ser a avaliação de sua adequação e sua valoração estética são essencialmente sociais. Esse teórico marca duas grandes tendências em relação à introdução do discurso citado: ou há o isolamento do discurso citado, para marcar sua autonomia, ou há integração desse discurso, de modo que a voz do autor se confunde com a do que é citado. Essas tendências são fruto das práticas sociais: há práticas em que se valoriza, em relação a esse recurso, o que é dito e não como se diz. “Noutros termos, há práticas discursivas em que, do ponto de vista da adequação no uso e da valoração estética, mais importante do que anunciar que um outro diz o que se retoma, valoriza-se o que o outro diz, sem que sua enunciação por outrem seja tematizada” (MATÊNCIO, 2005, p. 2-3). Acreditamos que o eixo principal, nessa questão, é a dinâmica da interação entre o discurso de outrem e o contexto no qual ele aparece, para compreender as posições dos sujeitos, que podem ser aliados ideologicamente, adversários, portadores de verdade, de erro, etc. A análise da tensão entre contexto introdutor da citação e formas de representação de outro discurso vai além de uma classificação da citação com base em critérios tipográficos e linguísticos (CUNHA, 2002, p. 169, grifo da autora).
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2. Alguns pontos sobre termos e conceitos que se referem a “discurso de outrem” Nas pesquisas linguísticas, o discurso de outrem é bastante atual e há uma variedade de objetos, de questionamentos e de abordagens teóricas dentro da literatura linguística sob diversos nomes: “discurso citado, heterogeneidade mostrada e constitutiva, interdiscurso, polifonia, intertextualidade manifesta e a intertextualidade constitutiva, dialogismo mostrado e constitutivo”, cada um implicando algum viés específico (cf. CUNHA, 2004). Nesta seção, não temos a intenção de aprofundar esses conceitos, mas apenas destacar alguns pontos específicos já que causam dúvidas ou confundem suas origens; depois nos deteremos a uma releitura da obra objeto de estudo desse artigo. Para Charaudeau e Maingueneau (2004, p. 172), o discurso citado compreende os diversos modos de retomar, no discurso, falas atribuídas a outras instâncias diferentes do locutor; assim o estudo tradicional do discurso direto, indireto e indireto livre parece ser limitado uma vez que compreende também fenômenos linguísticos como as formas híbridas, a colocação entre aspas e o itálico, a modalização por remissão a um outro discurso, as diversas formas de alusão a discursos já-ditos. Há múltiplas formas de discurso citado, diferentes maneiras de citar o discurso de origem. Esses autores as reagrupam em quatro conjuntos: discurso citado, discurso integrado, discurso narrativizado, discurso evocado (cf. CHARAUDEAU, 1992 apud CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004), podendo ser assim compreendido: Discurso citado – o discurso de origem é relatado (mais ou menos integralmente e autônomo) em uma construção que o reproduz tal como foi enunciado. Esse tipo de discurso equivale àquele que a gramática tradicional chama de “estilo direto” ou discurso direto.
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Discurso integrado – o discurso de origem é relatado quando faz parte de uma construção que o integra parcialmente ao dizer daquele que narra, o que ocasiona uma transformação no enunciado que passa a ser narrado na 3ª pessoa (os pronomes e os tempos verbais). Nesse caso, a gramática tradicional fala de “estilo indireto” e “estilo indireto livre” ou discurso indireto e discurso indireto livre. Discurso narrativizado – o discurso de origem é reportado de tal forma que se integra completamente ao discurso citante e quase desaparece no dizer de quem reporta. O locutor de origem torna-se agente de um ato de dizer. Nesse caso, o discurso de origem passa por uma transformação morfológica aparecendo, em geral, em forma nominalizada. Discurso evocado – esse discurso é utilizado para provar ou tornar mais verdadeiro o enunciado do locutor relator. É um tipo de discurso geralmente configurado por uma palavra ou um grupo de palavras entre aspas, travessões ou parênteses, correspondendo a um “Como se diz”, “Como você diz”, “Como ele diz”, ao “é comum”. As citações de máximas e de provérbios são exemplos de discurso evocado, pois fazem alusão ao saber popular, em que se recorre ao conhecimento de mundo do leitor para o entendimento da citação. Para Bakhtin, todo discurso é um processo heterogêneo (conjunção de discursos entre eu e o outro), por isso não é uma obra fechada e acabada de apenas um indivíduo. “Nossas palavras não são ‘nossas’ apenas; elas nascem, vivem e morrem na fronteira do nosso mundo e do mundo alheio; elas são respostas explícitas ou implícitas às palavras do outro, elas só se iluminam no poderoso pano de fundo das mil vozes que nos rodeiam” (TEZZA, 1988, p. 55). Inspirada pelos princípios bakhtinianos, Authier-Revuz (1990) elaborou uma distinção entre heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva e propõe uma descri-
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ção da heterogeneidade mostrada como formas linguísticas de representação de diferentes modos de negociação do sujeito falante com a heterogeneidade constitutiva do seu discurso. Assim, discurso direto, aspas, itálicos, incisos de glosas servem para mostrar o lugar do outro de forma unívoca. De acordo com Authier-Revuz (1990, p. 32), “heterogeneidade constitutiva do discurso e heterogeneidade mostrada no discurso representam duas ordens de realidade diferentes: a dos processos reais de constituição dum discurso e a dos processos não menos reais, de representação num discurso, de sua constituição”. São as formas não marcadas onde o outro é dado a reconhecer sem marcação unívoca, como o discurso indireto livre, ironia, pastiche, imitação etc. Quanto à heterogeneidade constitutiva, esta é inerente à linguagem, pois todo discurso se constrói a partir de outros sobre o mesmo tema, sendo, assim, constituído por diversas vozes não mostradas explicitamente no texto. Outro ponto que merece ressaltar é o conceito de polifonia. A palavra “polifonia” foi cedida da arte musical e é entendida como “o efeito obtido pela sobreposição de várias linhas melódicas independentes, mas harmonicamente relacionadas. Bakhtin emprega-a ao analisar a obra de Dostoiévski, considerada por ele como um novo gênero romanesco – o romance polifônico” (TEZZA, 1988, p. 90). Revela-se, dessa forma, que o discurso é perpassado por outros discursos compondo as várias linhas melódicas. Bezerra (2005, p 191), no texto “Polifonia”, aponta duas modalidades do romance contidas nos estudos de Bakhtin: monológico e o polifônico. “À categoria do monológico estão associados os conceitos de monologismo, autoritarismo, acabamento; à categoria de polifônico, os conceitos de realidade em formação, inconclusibilidade, não acabamento, dialogismo, polifonia”. Ele acrescenta que, segundo Bakhtin,
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no monologismo o autor concentra em si mesmo todo o processo de criação, é o único centro irradiador da consciência, das vozes, imagens e pontos de vista do romance: “coisifica” tudo, tudo é objeto mudo desse centro irradiador. O modelo monológico não admite a existência da consciência responsiva e isônoma do outro; para ele não existe “eu” isônomo do outro, o “tu” (BEZERRA, 2005, p.192).
Bezerra (2005) afirma que, para a representação literária, a passagem do monologismo para o dialogismo, que tem na polifonia sua forma suprema, equivale à libertação do indivíduo, que de escravo mudo da consciência do autor se torna sujeito de sua própria consciência. No enfoque polifônico, a autoconsciência da personagem é o traço dominante na construção de sua imagem, e isso pressupõe uma posição radicalmente nova do autor na representação da personagem. A respeito de polifonia, o autor assegura que a polifonia é caracterizada pela posição do autor como regente do grande coro de vozes que participam do processo dialógico. Mas esse regente é dotado de um ativismo especial, rege vozes que ele cria ou recria, mas deixa que se manifestem com autonomia e revelem no homem um outro “eu para si” infinito e inacabável. Trata-se de uma mudança radical da posição do autor em relação às pessoas representadas, que de pessoas coisificadas se transformam em individualidades (BEZERRA, 2005, p.194).
Outro termo que merece destaque é o discurso reportado, considerado por Cunha (2005) um tema de extrema relevância no uso, no ensino-aprendizagem da língua e da literatura e das Ciências Humanas em geral, uma vez que revela a relação ao discurso do outro e, por conseguinte, ao outro. A autora afirma que
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discurso reportado (DR) é o termo genérico que engloba as três formas de citação: discursos direto (DD), indireto (DI) e indireto livre (DIL) [...] o DR é um conteúdo tradicionalmente apresentado nas gramáticas e livros didáticos, do ensino fundamental à educação superior, seja como estilo, seja como discurso direto, indireto e indireto livre (CUNHA , 2005, p. 102).
Cunha (2004) acrescenta ainda que a retomada é um fenômeno aberto e dinâmico, ligado às múltiplas maneiras como os sujeitos falantes recebem e reorientam a fala alheia. Portanto, inspirada em Bakhtin/Volochínov, Cunha (1992, p. 115) expõe que: 1. não existem formas de discurso reportado, mas esquemas, configurações de retomadas da fala do outro, com tendências para o discurso direto, indireto ou indireto livre; 2. há uma posição especial do locutor ao interagir com o discurso de outrem. No processo de retomada-modificação de um discurso, o locutor se auto-introduz como autor da retomada por meio de descrições, tematizações, etc.; 3. os esquemas são estratégias discursivas elaboradas como uma nova enunciação dialógica.
Ainda, de acordo com Cunha (2004, p. 242), pesquisas apontam que tanto em gêneros primários e secundários há diversos modos de relação à fala de outrem, tais como: “de um lado há a citação, do outro há a paráfrase, retomada não marcada do discurso de outrem que se funde com o discurso próprio”. Como alertamos no início da seção, apenas apontamos alguns conceitos e/ou termos que, muitas vezes, não colocados lado a lado como similares, no entanto enfatizamos que as sutilezas e que atenuam as diferenças na maneira de empregá-los ou a incoerência ao usá-lo em uma área que não compreende um ou outro princípio que sustenta uma teoria ou área específica do conhecimento.
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Baseando-se em questões propostas por Bakhtin/Volochínov ([1929] 2009), as quais retomam a relação dinâmica do discurso de outrem e o contexto narrativo, na próxima seção, levantamos alguns trabalhos que contribuem para visualizar na prática essa questão.
3. O discurso de outrem na contemporaneidade Inúmeros são os trabalhos que investigam o discurso de outrem, baseando-se na obra Marxismo e Filosofia da linguagem. Em sua maioria, buscam investigar o outro nas Ciências Humanas e Sociais, seja o profissional em pesquisa ou em prática. Nesta seção, ressaltamos quatro pesquisadoras (MATÊNCIO, 2005; AMORIM 2004; CUNHA, 2011; ZANDWAIS, 2011), que contribuem de forma efetiva para a discussão dessa temática como alternativa tanto para abordagens positivistas e objetivas quanto ao relativismo e subjetivismo das abordagens contemporâneas. O trabalho de Matêncio (2005) trata sobre investigação da relação entre os discursos que se engendram para constituir os saberes sobre a língua/linguagem através da análise de atividades de retextualização, de textos acadêmicos para novos gêneros textuais que também circulam na universidade. A pesquisa parte do princípio de que a atividade de retextualização é uma das estratégias mais frequentes na formação de professores e que, idealmente, envolve tanto a apropriação e sistematização dos saberes científicos quanto a construção de conhecimento. A autora reporta-se à abordagem bakhtiniana, remete, também, a trabalho de Boch & Grossman (2002) para analisar os mecanismos enunciativos aos quais recorre o aluno – tanto por meio da introdução do discurso do outro quanto por meio da manifestação do intertexto, quando traz para sua
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retextualização a voz dos discursos sociais sobre os conceitos com os quais opera. Em relação ao recurso do discurso do outro efetivado nos textos, a estudiosa levanta a hipótese de que, oriundos de uma prática escolar que, sistematicamente, têm valorizado um padrão em que se privilegia o dito (o “conteúdo informacional”, poder-se-ia dizer), em detrimento do jogo enunciativo de marcar pontos de vista (de quem é lido, daqueles com os quais se dialoga e do próprio escrevente), os alunos não conseguem identificar, de imediato, funções precisas para as diferentes formas de manifestação do discurso reportado. Ela acrescenta ainda que, articulando esses mecanismos enunciativos aos movimentos identitários que os cercam, por sua vez, a pesquisa revela que, embora o almejado pelo formador fosse que o aluno se projetasse como professor em formação – como leitor que está construindo sua autonomia para ler e refletir sobre a leitura especializada –, o que ocorre é o apagamento dessa cena enunciativa, para que se sobreponha outra, construída nos moldes do discurso didático, a cena em que dialogam tão-somente formador/aluno, em que prevalece a importância do dito, não a relevância da conjunção entre dito e dizer. Zandwais (2011) busca caracterizar o fato de que o componente sintático da língua torna-se insuficiente para demarcar as fronteiras entre discursos direto e indireto, sendo necessário, portanto, repensar as relações entre língua e discurso, a fim de que se possa compreender que para tratar das formas por meio das quais as enunciações se imbricam, configurando a função responsiva que constitui todo dizer, é preciso ultrapassar os limites/fronteiras que separam os aspectos formais e semióticos. A autora tece reflexões produzidas por uma gramática “não-tradicional”, de base semântico-sintática, a fim de iniciar um contraponto entre as empirias da língua e do discurso, com base em
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questões propostas por Bakhtin/Volochínov ([1929] 2009), as quais retomam algumas relações entre língua, estilo discursivo, subjetividade e sentido, tendo como ponto de ancoragem os conceitos sobre discurso direto e indireto. Assim, a estudiosa analisa conceitos de discurso direto e indireto produzidos em A University Grammar of English e ilustra tais conceitos a partir de enunciados produzidos no cotidiano, propondo a problematizar a dialética entre língua e discurso. Vale ressaltar o texto de Amorim (2004) – O pesquisador e seu outro – que se baseando no princípio dialógico da obra bakhtiniana – reflete sobre a problemática das Ciências Humanas incluindo a questão da alteridade, no entanto busca aprofundar e detalhar “De que outro estamos falando?” (AMORIM, 2004, p. 20). O profissional em Ciências Humanas está sempre às voltas com um outro (o aluno para o pedagogo ou linguista, o informante para o antropólogo, o paciente para o clínico). A obra procura esclarecer o que acontece quando o profissional deve escrever e publicar sua experiência com esse outro. Assim, a autora enfatiza que, no processo de escrita, o diálogo vivido em campo se transforma, ganha novos sentidos e incorpora novas vozes, pois muitos outros habitam o texto e é no interior dessa multiplicidade que se produzem, ao mesmo tempo, um conhecimento do objeto e uma singularidade de autor. A alteridade sob a forma do diálogo e da citação é o traço fundamental da linguagem. De acordo com Amorim (2004, p. 97), “não há linguagem sem que haja um outro a quem eu falo e que é ele próprio falante/respondente; também não há linguagem sem a possibilidade de falar do que um outro disse”, sendo as figuras do diálogo e da citação centro da problemática do texto de pesquisa. Vale dizer que a citação é própria do ser humano. Contar ou reproduzir a um terceiro o que me disseram e que eu mesma não vi é
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uma atividade estruturante de minha humanidade. Sendo assim, “o conjunto de pessoas eu,tu/ele não é homogêneo. Eu e tu são, a cada enunciação, pessoas únicas, singulares. O ele, ao contrário, é a possibilidade de expressão da não-pessoa” (idem, p. 98). Ela acrescenta também que entre o eu e o tu há uma relação de inversibilidade. O tu pode sempre se tornar um eu que então designará o outro como tu. O ele não é inversível porque está ausente da enunciação tal como ela foi formulada. A autora busca revelar o modo como o conhecimento se tece, identificando a rede de fios enunciativos que o compõem. Assim, Amorim (2004, p. 207) apresenta dois princípios para quem se volta para o objeto: 1. A recusa de um subjetivismo relativista onde o objeto seria inteiramente reduzido ao modo como dele se fala; dito de outra maneira, o pólo lógico-monológico da análise que fazemos supõe a aposta de que o objeto existe independentemente de mim, antes e depois de mim. A alteridade radical do objeto é o que tensiona a análise em direção a uma busca de verdade. 2. A recusa da ilusão positivista ou do pressuposto fenomenológico de que é possível falar das coisas “tal como elas são”. Objeto das Ciências Humanas não é dado de modo imediato; é sempre construído, recolhido e transmitido em discurso, o que lhe confere seu caráter caleidoscópico. Ele é o próprio discurso e, enquanto tal, não há transparência possível.
A proposta de análise dessa autora não se situa nem no nível linguístico nem no nível do discurso e da pragmática, mas que pretende antes se constituir no domínio do gênero tal como o concebe Bakhtin. Por isso, a psicóloga enfatiza que o exercício de leitura2 2
Capítulo da obra que apresenta a proposta de análise.
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reivindica a dupla condição que é própria de toda presença do concreto e do singular no interior de uma pesquisa: a condição que dá forma ao debate e que, ao mesmo tempo o mantém aberto e inacabado. Pois se o estudo de um caso real deve permitir verificar o que dele pode se inscrever e se escrever em nosso campo teórico, deve também produzir silêncios e barulhos – rastros da alteridade radical que toda realidade traz para a teoria (AMORIM, 2004, p. 210).
Com relação ao trabalho de Cunha, entre os vários que discutem o discurso de outrem, selecionamos aqui o publicado na revista Bakhtiniana no primeiro semestre do corrente ano. Cunha (2011) analisa formas de alteridade em cartas de leitores, fundamentada na análise/teoria dialógica do discurso e retoma discussões recentes sobre as diversas interpretações da obra de Bakhtin, sobre a questão da autoria vinculada aos fundamentos epistemológicos do pensamento de Bakhtin e de Volochínov, os quais explicam as diferentes descrições do discurso de outrem nas obras dos dois autores. A discussão esclarece porque as abordagens do discurso alheio são diferentes em Marxismo e filosofia da linguagem e em Problemas da poética de Dostoiévski, publicados no mesmo ano, e no Discurso romanesco. Volochínov classifica formas e variantes dos esquemas de transmissão do discurso alheio. Bakhtin classifica e se interessa especialmente pelo discurso bivocal no primeiro, e pelas formas híbridas, no segundo (CUNHA, 2011, p. 129).
Com relação à análise, Cunha (2011) mostra a inter-relação das formas de presença do outro com o gênero, o ponto de vista e a argumentação. Para a autora, as formas de retomada não seguem os esquemas sintáticos descritos por Volochínov, mas assemelham-se ao discurso outro assimilado e disperso no discurso atual analisado por Bakhtin e acrescenta que o discurso outro funciona como heteroge-
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neidade e movimento. No caso analisado – a carta de leitor – o discurso-fonte é integrado por meio da nominalização e da alusão, que trazem como fatos a doxa, discursos circulantes, ilações e reminiscências, o que permite apagar todos os elementos contextuais do discurso retomado. “Este gênero tem características da réplica de um diálogo e do comentário, porque os leitores têm o propósito de expor um ponto de vista para leitores que partilham um saber comum sobre o tema do momento discursivo” (idem, p. 129). O que chama atenção nesses quatro trabalhos é a questão de como o discurso de outrem e o seu contexto enunciativo são determinantes para que se possa compreender o sentido por ele elaborado. Assim, parece-nos evidente que o único princípio que pode ser transposto e proposto para outras eventuais leituras é a nossa problemática da relação com o outro na construção do saber.
4. Considerações Finais A partir da proposta inicial desse texto e dos diálogos com outros estudiosos que retomam a obra de Bakhtin/Volochínov ([1929] 2009), refletir sobre a palavra de outrem nos leva a considerar as diferentes situações discursivas e as condições de enunciação em que tais pesquisas foram desenvolvidas, para assim sintetizarmos (cf. Amorim, 2004): 1. a alternância dos sujeitos falantes ou locutores é o que define as fronteiras de um enunciado; 2. inacabamento de sentido é entendido como inacabamento da obra; 3. o acabamento do enunciado e a possibilidade de resposta determinam-se por três fatores: a exaustividade do objeto de sentido; o desejo discursivo ou querer dizer do locutor tal como o entendemos; as formas tipo de estruturação do gênero.
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Dependendo das intenções, dos gêneros (jurídico, científico, fictício, etc.), lançamos algumas questões que buscam refletir essa fronteira entre o discurso citado e do citante, entre a voz ouvida e a voz silenciada, entre a polifonia e a monofonia: • Como definir o ponto de articulação do discurso de outrem? • Como formular a problemática e o objeto que estão nos diversos gêneros, considerando essa dinâmica do discurso de outrem e seu contexto narrativo? Acreditamos que responder a essas questões inevitavelmente convém considerar o jogo de linguagem como uma forma particular e radical de dialogismo que evoca a expressão bakhtiniana: a palavra se dirige. Sendo assim, nas formas habituais de dialogismo, a resposta efetiva do outro é um dos elementos, entre outros, de construção de sentido; a representação e a antecipação da resposta suposta do outro devem integrar a própria estrutura do enunciado, sem o que ele não pode se formular e permanece ininteligível.
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TECENDO MAIS UMA MANHÃ: UMA PONTINHA DE PROSA SOBRE DIALOGISMO Clécida Maria Bezerra Bessa (UFERSA – UFPB/PROLING) clecidabbessa@hotmail.com Márcia Ozinete de Alcântra Pinho (UFPB/PROLING) marcia_ozinte@yahoo.com.br
Introdução Com o intuito de acionar reflexões sobre a concepção do dialogismo bakhtiniano, partiu-se das questões: O que caracteriza o dialogismo na perspectiva bakhtiniana? Quais as contribuições desse dialogismo para as enunciações situacionais? Para isso, buscamos explicações em obras do próprio autor como também em outros estudiosos, tais como Bakhtin/Volochínov ([1929] 1995), Bakhtin ( 1997, 1998), Faraco (2001, 2003), Fiorin (2006), Souza(2003), dentre outros. A fim de tentar apontas alguns caminhos seguros para o esclarecimento das questões levantadas sobre o dialogismo bakhtiniano, assunto remanescente na literatura linguístico-filosófica discutimos aqui sobre os seguintes temas: enunciações, crítica às funções comunicativas da linguagem, palavra x enunciado, auditório, locutor x interlocutor.
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1. O que caracteriza a enunciação? O movimento dialógico da enunciação, apresentado por Bakhtin/Volochínov ([1929] 1995), delineia uma noção de recepção/compreensão instituída pela palavra. “A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apóia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1995, p. 113). Assim, é possível compreender que a caracterização dos sentidos da enunciação não pode ser amparada nem na palavra, nem no locutor, nem nos interlocutores. O que caracteriza, então, os sentidos da enunciação é o efeito da interação entre o locutor e o interlocutor determinado pelos signos linguísticos. Conforme nos apresenta Bakhtin/Volochínov ([1929] 1995, p. 123), a verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas linguísticas, nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua.
Devido a esse entendimento, é importante salientar que uma das maiores críticas feitas por Bakhtin (1997) diz respeito aos estudos linguísticos sobre as funções comunicativas da linguagem em que apenas o papel ativo do locutor e o papel passivo do interlocutor eram considerados. A crítica recai sobre o fato de o autor entender que esse modelo representa apenas algumas das situações reais de uso da linguagem, porém não contempla a complexidade de todas as situações reais possíveis. Além disso, a preocupação de Bakhtin pode ser compreendida ao esclarecer a sua
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compreensão sobre o papel ativo do outro no processo de comunicação. O autor considera que na medida em que esse outro recebe e compreende a informação dada no processo comunicativo, ele simultaneamente formula uma resposta, ou seja, “[...] toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz: o ouvinte torna-se locutor” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1995, p. 291). Ao tratar do uso da palavra, nos processos de comunicação verbal, Bakhtin/Volochínov (1995) recomenda que a palavra é continuamente demarcada pelos seus aspectos individuais e contextuais. Para o autor: [...] a palavra existe para o locutor sob três aspectos: como palavra neutra da língua e que não pertence a ninguém; como palavra do outro pertencente aos outros e que preenche os ecos dos enunciados alheios; e, finalmente, como palavra minha, pois, na medida em que uso essa palavra numa determinada situação, com uma intenção discursiva, ela já se impregnou de minha expressividade (BAKHTIN, 1997, p. 313 – Grifos do autor).
Esse posicionamento do autor acerca das características da palavra vem confirmar a existência tanto do aspecto da neutralidade da palavra, como da expressividade contextual e ideológica. A existência da neutralidade da palavra só persiste até o momento em que não é posta em movimento por meio do uso no contexto, com sujeitos e situações reais. Ao passo que acolhemos a ideia que a palavra tem a capacidade de adquirir um caráter ideológico, admitimos a possibilidade de que a palavra ao ser usada pelos sujeitos carrega consigo, as crenças, concepções, valores e posturas dos sujeitos. Sob o aspecto da palavra do outro, é interessante destacarmos que a experiência de interação verbal do sujeito só ganha forma e significado por intermédio do processo da interação sucessiva e constante com os outros, que
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também interagem por meio de enunciados que assumem formas e características próprias do seu contexto. Diante disso, é possível reconhecer que as palavras não pertencem a nenhuma pessoa, mas só as vivenciamos por intermédio de enunciados, em situações de enunciações, que expressam uma situação individualizada, em função de um contexto único e imutável de um dado enunciado; só as vivenciamos por intermédio da existência do outro. Consideramos interessante explicar o que caracteriza tal interação. Recorremos a Souza para esclarecer que “[...] a noção de interação pela linguagem de que fala Bakhtin é bem mais complexa que as observadas comumente em circulação” (2003, p. 39). Assim como Souza, buscamos em Faraco uma definição, que nos parece interessante, para a interação verbal proposta por Bakhtin: Não a interação, o diálogo como mera forma composicional; nem a interação como mero evento fortuito entre pessoas isoladas que se encontram por acaso [...] Mas a interação que se tece sempre num certo quadro de relações sociais, culturais, históricas. A interação, portanto, entre seres situados, inscritos social e historicamente (FARACO, 2001, p. 04).
Em face ao exposto, podemos observar que o fator determinante das enunciações são relações sociais, noutras palavras, o que define uma enunciação é a interação entre seres socialmente organizados, marcados por acontecimentos históricos, culturais, ideológicos, políticos, isto é, marcado por seres de linguagem, de pensamento. “A situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam completamente e, por assim dizer, a partir do seu próprio interior, a estrutura da enunciação” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV ([1929] 1995), p. 113). Assim, é possível destacar que a língua se converte na base das relações humanas por meio dessa perspectiva de
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interação, pois ao ser posta em ação, a língua, rodeia-se de um caráter ideológico, o que leva a analisar que a enunciação não existe no exterior de uma ocorrência sócio-ideológica, na qual todo locutor contém o seu horizonte social bem delimitado. Assim sendo, qualquer enunciação procede de alguma pessoa e se destina a outra pessoa; toda enunciação provoca uma resposta, objetiva uma reação, propõe concordâncias ou discordâncias. É essa interação social que caracteriza o ato enunciação e que se dá em processos múltiplos. Ao enunciar, o locutor estabelece um diálogo com os discursos alheios, com vários enunciados que circulam na sociedade e, também, com um auditório social definido, ou seja, com o outro, com um interlocutor para quem o seu discurso é dirigido numa situação concreta imediata (SOUZA, 2003, p. 40 – Grifos do autor).
Esses processos múltiplos da enunciação aparecem demarcados pelo intercâmbio com outros discursos, com enunciados dos outros, que assumem formas variáveis capazes de demarcar o caráter da heterogeneidade discursiva da linguagem. De acordo com Bakhtin, isso acontece porque: Um enunciado concreto é um elo na cadeia da comunicação verbal de uma dada esfera. [...] O enunciado está repleto de ecos e lembranças de outros enunciados, aos quais está vinculado no interior de uma esfera comum de comunicação verbal. O enunciado deve ser considerado acima de tudo como uma resposta a enunciados anteriores dentro de uma dada esfera (a palavra “resposta” é empregada aqui no sentido lato): refuta-os, confirma-os, completa-os, baseia-se neles, supõe-nos conhecidos e, de um modo ou de outro conta com eles (1997, p. 316).
Assim, o discurso tanto funda, como é fundado no cerne das práticas discursivas, o que permite os atos de refletir,
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até mesmo as mais sutis e insignificantes alterações das experiências sociais e refratar a realidade social em processo de transformação. Por isso, podemos observar que é nas situações de enunciações que os discursos se convertem em movimentos dialógicos que acontecem sempre em determinados contextos ideológicos. Nesses movimentos, os discursos ocorrem, podendo ser aprovados, contestados, transformados, construídos e reconstruídos. Nesse sentido, o sujeito, ao elaborar o seu discurso sofre as influências discursivas do outro e assim passa a considerar o interlocutor, tanto na constituição do seu discurso, como nos processos de construção das enunciações. É esse caráter dialógico da linguagem tão enfatizado por Bakhtin (1997) na constituição de sua teoria que o fez afirmar que o locutor não é o adão bíblico, perante objetos virgens ainda identificados, os quais é o primeiro a batizar. Isso leva a ver que o interlocutor não pode e nem deve jamais ser considerado com um ser inerte, mas sim como um sujeito ativo, responsivo e reflexivo que também produz discursos e é social, histórico e ideologicamente demarcado. É por essa razão, que fazemos empréstimo das palavras de Souza (2003, p. 42), para afirmar que: pensar em dialogismo é pensar em descentralização do sujeito, do falante, ao mesmo tempo em que pensamos em sua historicização, em sua constituição axiológica. O sujeito do discurso se constitui, portanto, no e pelo discurso, nas práticas sociais, no diálogo social que trava com os outros discursos e com os seus possíveis interlocutores.
Ao praticar o uso da palavra através da enunciação, o locutor “reflete e refrata” o seu movimento histórico-social delimitado ideologicamente pelas diversas e múltiplas práticas discursivas; institui um diálogo com
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discursos dos outros, com os vários enunciados que circulam nos diferentes âmbitos sociais, com o outro/auditório social bem definido, para o qual o discurso é destinado numa imediata e real ocasião. “É na enunciação que os discursos, os movimentos dialógicos acontecem; eles são confirmados, refutados, modificados, mas sempre usados” (SOUZA, 2003, p. 40). Ainda em se tratando da enunciação, enfatizamos as reflexões de Bakhtin/Volochínov ([1929] 1995) de que toda enunciação completa é constituída por significação e tema ou sentido. É exatamente o adensamento da significação e do tema ou sentido que vai ocasionar o processo de compreensão, o qual só é plausível através das ações de interação. Por essa razão, é interessante ressaltar as particularidades desses dois elementos. O que define a significação é o componente tanto comum, como abstrato da palavra, isto é, são os conceitos dicionarizados que tem a função de fazer com que haja a compreensão entre os falantes; é um processo de insulamento da palavra de todo e qualquer contexto, de consolidação de sua definição fora do âmago do contexto das situações de enunciações. Noutras palavras, os elementos semelhantes da enunciação na medida em que são reproduzidos em situações autênticas dão origem a significação - aspecto técnico da enunciação que estabelece a construção do tema/ sentido. Já o tema/sentido é o elemento responsável pela conexão existente entre os interlocutores e a enunciação, é construído no processo de compreensão funcional, ou seja, é integralmente assentado nas diversas situações contextuais, o que permite ao tema/sentido um caráter de exclusividade, pautado em situações únicas e jamais renováveis e revivíeis na integra, uma vez que anuncia a situação social, histórica e ideológica do momento de uma dada enunciação.
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2. Enfatizando a importância do outro na interação: uma preocupação de Bakhtin Qual é, então, a importância do outro no processo de interação verbal? Sobre essa questão, Bakhtin diz que “os outros, para os quais meu pensamento se torna, pela primeira vez, um pensamento real, não são ouvintes passivos, mas participantes ativos da comunicação verbal” (BAKHTIN, 1997, p. 321). A existência do outro numa situação de interação verbal para a realização do diálogo é vital para a concretização de uso efetivo da língua, de atos de enunciação. Essa existência do outro gera o que Bakhtin denominou de orientação dialógica como um fenômeno próprio a todo discurso. “Trata-se da orientação de qualquer discurso vivo. Em todos os seus caminhos até o objeto, em todas as direções, o discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de participar, com ele de uma interação viva e tensa” (1998, p. 88). Ao nos reportarmos ao uso da linguagem sempre nos reportamos a presença do outro, pois o discurso só se materializa pela presença real ou fictícia de outrem. No momento de uma dada enunciação, sempre o locutor vai organizar e enunciar sua fala, levando em consideração a existência de um possível interlocutor. O outro constitui o nosso auditório social. Para Bakhtin, o mundo interior e reflexão de cada indivíduo têm um auditório social próprio estabelecido, em cuja atmosfera se constroem suas deduções interiores, suas motivações, apreciações etc. Quanto mais aculturado for o indivíduo, mais o auditório em questão[...] se aproximará da criação ideológica, mas em todo o caso o interlocutor ideal não pode ultrapassar as fronteiras de uma classe e época bem definidas(BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV ([1929] 1995, p. 112-3).
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Para que haja uma compreensão acerca do dialogismo como processo intrínseco a linguagem se faz recorrente aderir ao conceito de auditório. Para o locutor e o interlocutor/auditório apresentam a mesma importância, uma vez que todo enunciado tanto pode ser uma possível resposta a uma situação de enunciação referente ao passado, como pode ser uma réplica referente a situações vindouras. De uma forma ou de outra, sempre o locutor considera o seu auditório como um parceiro ativo, que colabora ou não com o discurso, mas que se faz sempre presente para que a enunciação de fato exista. Sobre essa especificidade do auditório, se recorre a Souza (2003, p. 41 – Grifos do autor), que afirma: O auditório social, para Bakhtin, público alvo ao qual nos dirigimos, é sempre bem definido, delimitado; ele é construído pelo “mundo interior e [pela] reflexão de cada individuo”, mesmo sendo um aculturado, não demarcado culturalmente pelo enunciador, pois recebe influências de várias culturas, ele se configura como um auditório médio, “cujo interlocutor ideal não pode ultrapassar as fronteiras de uma classe e de uma esfera bem definida” ; pois o interlocutor nunca é passivo, ao contrário, por ser histórico e ideologicamente marcado, ele interfere no próprio discurso, num diálogo com o sujeito enunciador, que também é múltiplo e socialmente construído.
Dessa forma, uma interação verbal, onde o locutor e o seu auditório participam do discurso de forma ativa só é arquitetada, caso haja uma compreensão acerca dos sujeitos da enunciação partindo da ideia do “deslocamento do conceito de sujeito” (BARROS, 1994, p. 04), pois o locutor continuamente espera e exige do auditório uma maneira de agir que prime por atitudes dialógicas de réplicas. Qualquer ação de enunciação expressiva continuamente indica
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uma resposta oportuna: seja de desacordo ou aceitação. Assim, Bakhtin/Volochínov ([1929] 1995) convida o leitor a refletir sobre as relações de interação ao assegurar que o enunciado já contém em si a essência de uma réplica. Quando alguém enuncia já está prenunciando, oferecendo ao interlocutor pistas e respostas anunciadas na direção do seu discurso que está sendo proferido. A fala que é enunciada pelo locutor instiga o auditório a se direcionar tanto a quem está proclamando o discurso, como a pauta do discurso. Existe sucessivamente um alvo na produção de enunciados e este intuito se relaciona a uma determinada direção, que gera interpretação, pois nas palavras do próprio filosofo russo: “[...] o mundo interior e a reflexão de cada indivíduo tem um auditório social próprio bem estabelecido, em cuja atmosfera se constroem suas deduções interiores, suas motivações, apreciações, etc” (Bakhtin/Volochínov ([1929] 1995, p. 122-123 – Grifos do autor). Além de definir o diálogo com o auditório, o locutor estabelece também uma conexão dialógica com outros enunciados, com outras situações de enunciação, pois o que comporta a compreensão da enunciação é exatamente o fato de pormos no movimento dialógico dos enunciados, situações de confronto dos dizeres de outrem com os nossos. Dizeres esses, sempre demarcados ideologicamente, por trazem no seu núcleo as crenças, valores e posturas de quem produz o discurso. Nesse contexto, concorda-se com Souza (2003, p.42): Pensar em dialogismo é pensar em descentralização do sujeito, do falante, ao mesmo tempo em que pensamos em sua historicização, em sua constituição axiológica. O sujeito do discurso se constitui, portanto, no e pelo discurso, nas práticas sociais, no diálogo social que trava com os outros discursos e com seus possíveis interlocutores.
Nessa passagem, é fácil perceber que há um reforço no
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entendimento que todo enunciado é elaborado a fim de ser compreendido. Quando se faz uso da linguagem, o faz para atingir algum propósito, estabelecer comunicação com o outro, levando em consideração regras sociais que regulam e modelam os enunciados que circulam na sociedade. Noutras palavras, quando se usa a linguagem, a utiliza para interagir socialmente com o outro. Por esse motivo, avaliar o que motiva a produção de determinado enunciado e em que contexto social esse enunciado é produzido podem ser considerados de grande valor para os que estão envolvidos nos estudos sobre dialogismo. Bakhtin/Volochínov ([1929] 1995, p. 121) afirma que “[...] o centro organizador de toda enunciação, de toda expressão, não é interior, mas exterior: está situado no meio social que envolve o indivíduo”, logo é importante compreender não apenas que os significados dos enunciados são dados através da situacionalidade em que eles estão inseridos, mas também que o contexto de produção dos enunciados desempenha um papel fundamental para a compreensão dos mesmos. Além disso, a preocupação de Bakhtin/Volochínov ([1929] 1995, p. 98) em relação ao papel ativo do outro no processo de produção de enunciados pode também ser vista em: Toda enunciação, mesmo na forma imobilizada da escrita, é uma resposta a alguma coisa e é construída como tal. Não passa de um elo da cadeia dos atos de fala. Toda inscrição prolonga aquelas que a precederam, trava uma polêmica com elas, conta com as reações ativas da compreensão, antecipa-as.
Com isso, fica ainda mais claro que o estudo sobre dialogismo constitui-se em sua maior parte por estudos sobre enunciações produzidas em situações reais de uso da lin-
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guagem e a maneira pela qual eles são produzidos e circulam entre os indivíduos. Repensar a expectativa de resposta ao enunciado produzido e a participação do outro no processo de interação representam uma nova postura em relação à compreensão do uso real da linguagem. Julgamos ser necessário enfatizar essa postura uma vez que pode auxiliar os indivíduos a compreender como a linguagem é usada e como ela representa o mundo que os cercam.
3. Dialogismo em três conceitos Nessa seção, recorremos a Fiorin (2006) com o objetivo de apresentar suas principais considerações sobre três conceitos relacionados ao dialogismo bakhtiniano. O primeiro conceito de dialogismo pode ser entendido de acordo com o seu aspecto constitutivo do enunciado, isto é, “todo enunciado constitui-se a partir de outro enunciado, é uma réplica a outro enunciado. Portanto, nele ouvem-se sempre, ao menos, duas vozes. Mesmo que elas não se manifestem no fio do discurso, estão aí presentes” (2006, p.24). Ao pensar sobre dialogismo constitutivo, deve-se levar em consideração a dinâmica da construção dos enunciados. Com relação a esse primeiro conceito, é vital compreender que as relações dialógicas que permeiam os enunciados podem ser de aceitação ou de contradição sobre o que é comunicado, sendo possível perceber que os enunciados são construídos a fim de apoiar favoravelmente outros enunciados, ou então, refutá-los. Vale ressaltar que as vozes que são detectadas nas relações dialógicas são tanto individuais quanto sociais. Com isso, é possível averiguar as relações dialógicas presentes, por exemplo, tanto em um diálogo entre amigos quanto em teses que defendem diferentes linhas de pesquisa no meio acadêmico, tanto em um registro de um diário pes-
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soal quanto em discursos de líderes político-partidários. Resumidamente, pode-se concluir que a ideia central desse primeiro conceito é que “[...] um enunciado se constitui em relação aos enunciados que o precedem e que o sucedem na cadeia de comunicação” (FIORIN, 2006, p. 32). No que diz respeito ao segundo conceito de dialogismo, enfatiza-se a necessidade de refletir sobre o princípio de funcionamento real da linguagem, uma vez que Bakhtin considera que esse funcionamento acontece através da assimilação do discurso do outro no próprio enunciado. No caso desse segundo conceito, este pode ser entendido de acordo com o seu aspecto composicional, ou seja, “[...] são maneiras externas e visíveis de mostrar outras vozes no discurso” (FIORIN, 2006, p. 32). O autor ainda esclarece que a inserção do discurso do outro no enunciado pode acontecer de duas maneiras, a saber, (a) quando o discurso do outro é citado separadamente do enunciado citante e (b) quando o discurso do outro não se encontra nitidamente demarcado. Para exemplificar a primeira situação, podemos elencar: o discurso direto e o uso de aspas. Em Assis (1992, p. 28), há o seguinte fragmento que pode ser usado como ilustração: De repente, ouvi bradar uma voz de dentro da casa ao pé: - Capitu! E no quintal: - Mamãe! E outra vez na casa: - Vem cá! Não me pude ter. As pernas desceram-me os três degraus que davam para a chácara, e caminharam para o quintal vizinho.
No fragmento acima, podemos claramente observar que o discurso do outro é citado de forma separada através
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do uso dos travessões, representando o discurso direto das personagens. Já para citar alguns exemplos de discursos em que não há uma separação nítida entre o discurso do citante e do citado, temos: a paródia e o discurso indireto livre. Observemos a seguinte ilustração onde um texto de Drummond de Andrade é parodiado: Texto-Base: No Meio do Caminho Carlos Drummond de Andrade No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra. Nunca esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas Nunca me esquecerei desse acontecimento que no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra
Paródia: No Meio do Caminho Deise Konhardt Ribeeiro No meio do caminho tinha um fuquinha tinha um fuquinha no meio do caminho tinha um fuquinha no meio do caminho tinha um fuquinha. Nunca me esquecerei desse acontecimento na ida de minhas noitadas tão agitadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha um fuquinha tinha um fuquinha no meio do caminho no meio do caminho tinha um fuquinha.
Fonte: In: http://www.pucrs.br/gpt/parodia.php
Finalmente, o terceiro conceito de dialogismo refere-se ao aspecto de constituição do indivíduo e o seu princípio de ação. O enfoque desse terceiro conceito é entendido com base no princípio geral do agir, “[...] o sujeito age em relação
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aos outros; o indivíduo constitui-se em relação aos outros” (FIORIN, 2006, p. 55). Para melhor compreendê-lo, deve-se considerar que os indivíduos tomam consciência do mundo por meio da comunicação social, ou ainda, analisando que “[..] a apreensão do mundo é sempre situada historicamente, porque o sujeito está sempre em relação com outro (s)” (ibidem, 2006, p. 55). Isso significa que a constituição discursiva do indivíduo acontece por meio da apreensão de vozes sociais que representam a realidade e suas relações dialógicas. Tratar a respeito da concepção de inacabamento do sujeito pode ser igualmente considerado um dos pontos-chaves dentro desse terceiro conceito. O autor lembra que a constituição do indivíduo está sempre em relação ao outro, portanto o conteúdo dos enunciados do outro que o constitui é passível de constantes mudanças. Corroborando com esse pensamento, Fiorin (2006, p. 58) ainda acrescenta que: O mundo interior é a dialogização da heterogeneidade de vozes sociais. Os enunciados, construídos pelos sujeitos, são constitutivamente ideológicos, pois são uma resposta ativa às vozes interiorizadas. [...] Mas, ao mesmo tempo, o sujeito não é completamente assujeitado, pois ele participa do diálogo de vozes de uma forma particular, porque a história da constituição de sua consciência é singular. O sujeito é integralmente social e integralmente singular.
Por esta razão, pode-se visualizar a constituição do sujeito acontecendo por meio da dinamicidade de diferentes enunciados cujos conteúdos exercem variados níveis de influência em relação a sua consciência de mundo. Com o objetivo de representar de maneira sucinta as concepções que permeiam esses três diferentes e complementares conceitos de dialogismo, buscamos as palavras de Faraco (2001, p. 167) para concluir o que se tem discutido até aqui:
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Por ser sempre resposta no diálogo social, todo enunciado instaura a possibilidade de se tornar ele mesmo alvo de respostas. Por isso, os enunciados tendo seus interlocutores presumidos no horizonte, constroem-se direcionados, entre outros fatores pela antecipação de algumas possíveis respostas. É nesse complexo caldo heteroglótico e dialógico que nasce e se constitui o falante.
E por falar em “complexo caldo heteroglótico e dialógico que nasce e se constitui o falante”, abrimos o espaço para convidar o leitor a apreciar a poesia “Tecendo a manhã”, de João Cabral de Melo Neto, que tão bem ilustra o princípio do dialogismo, para complementar esta pontinha de prosa: Tecendo a manhã Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos. E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão. João Cabral de Melo Neto
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O dialogismo se apresenta no espaço da enunciação, demarcado por muitas vozes de outrem, que aparecem de forma explicita ou não, mas sempre em menor ou maior grau, demarcadas pelas crenças e valores dos sujeitos – locutor e interlocutor - da enunciação. Em se tratando de dialogismo, não se versa somente acerca de reflexões sobre a linguagem, discute-se também sobre relações sociais e forças ideológicas. Estudar acerca do dialogismo significa assumir e reconhecer o caráter dialógico e ideológico da linguagem – produto das relações de interação social, indissociável das relações humanas históricas, culturais, ideológicas e políticas. O caráter de ubiquidade da língua e dos sujeitos se faz presente no dialogismo e mostra que as faculdades de linguagem (exclusividade do humano) se apresentam constantemente nos embates dialógicos, que retratam posicionamentos de sujeitos demarcados por acontecimentos contextuais de sua história. Ressaltamos que as reflexões aqui apresentadas não se esgotam e encontram a espera de outras pontinhas de prosas que as complementem e as aperfeiçoem; outras prosas que podem, ou não, acontecer mediatizadas pelos mesmos sujeitos que instituíram esses movimentos dialógicos, mas que se constituirá sempre em novas e ubíquas enunciações.
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Clécida Maria Bezerra Bessa, Márcia Ozinete de Alcântra Pinho
Referências BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. _____. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: Editora da UNESP e Hucitec, 1998. BAKHTIN, Mikhail (VOLOCHÍNOV, Valentin Nikolaiévitch). [1929]. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 13. ed. São Paulo: Hucitec, 1995. FARACO, C. A. Bakhtin e a subversão do enunciado. Porto Alegre: 2001. [Conferência no Instituto de Letras da UFRGS, em 30/03/01]. Mimeo. ______. Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin. Curitiba: Criar edições, 2003. FIORIN, J. L. Introdução ao Pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006. SOUZA, G. S. O Nordeste na Mídia: um (des)encontro de sentidos. Tese de Doutorado. Araraquara: UNESP, 2003. http://www.pucrs.br/gpt/parodia.php Acessado
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em: 17/07/2011
SOBRE OS AUTORES
POLÊMICA AUTORIA, AUTORIAS POLÊMICAS Profa. Dra. Maria de Fátima Almeida é graduada em Letras Clássicas e Vernáculas pela Universidade Federal da Paraíba (1979), em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal da Paraíba (1983), mestre em Letras pela Universidade Federal da Paraíba (1988) e doutora em Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco (2004). É professora adjunta IV da Universidade Federal da Paraíba - Campus I em João Pessoa. Participa do Programa de Pós-Graduação em Linguística - PROLING na área da Linguística e Práticas sociais na Linha de pesquisa Discurso e Sociedade com ênfase em Linguagem, Discurso, Interação e Sentido. É líder do Grupo de Pesquisa em Linguagem, Enunciação e Sociointeracionismo – GPLEI. Atualmente, participa de Estágio Pós-doutoral na UnB com pesquisa sobre leitura e formação docente.
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Sobre os autores
1. O SIGNO IDEOLÓGICO NA FILOSOFIA MARXISTA DA LINGUAGEM Professora Dnd. Rivaldete Maria Oliveira da Silva do Centro Universitário de João Pessoa -UNIPÊ, doutoranda em Linguística pela UFPB/PROLING e pesquisadora do grupo de estudos em Linguagem, Enunciação e Sociointeracionismo/GPLEI da UFPB. É licenciada em Letras pela Universidade Federal da Paraíba com habilitação em Português e Francês, especializada em Língua Portuguesa e mestra em Literatura Brasileira. Atualmente, exerce atividades de ensino e pesquisa em linguagem jurídica, discurso e interação.
2. A CONCEPÇÃO DE INTERAÇÃO VERBAL EM MARXISMO E FILOSOFIA DA LINGUAGEM Profa. Dnd. Telma Cristina Gomes da Silva, doutoranda em Linguística na área de Linguística e Práticas Sociais pelo PROLING/UFPB. Mestre em Letras na área de Linguística e Língua Portuguesa pelo PPGL/UFPB. Licenciatura Plena em Letras/Português pela UFPB. É professora pesquisadora do GEHAETE/UFPB, investigando sobre o tema “Letramento digital e midiático”; e, pesquisadora doutoranda do GPLEI/UFPB, investigando sobre “Linguagem, interação e ensino: a construção de sentido do texto na escola”. Tem experiência na área de educação com ênfase nos seguintes temas: ensino e aprendizagem de língua portuguesa, planejamento pedagógico, alfabetização, letramento digital e midiático, informática educativa, educação a distância, semântica e pragmática. Prof. Gregório Pereira de Vasconcelos, mestrando em Linguística, na área de Linguística e Práticas Sociais, pelo
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Bakhtin/Volochínov e a Filosofia da Linguagem Ressignificações
PROLING/UFPB. Especialista em Língua Portuguesa pelo PROLING/UFPB. Graduado em Letras pela UFPB. Professor, tutor a distância e coordenador de tutoria do curso de Licenciatura Plena em Ciências Naturais na modalidade a distância da UAB/UFPB. Desenvolve trabalhos, estudos e pesquisas nas áreas de linguística, educação a distância e editoração. Profa. Danyelle Sousa Morais, Especialista em Linguística pela UFPB. Graduada em Letras pela UFPB. É professora da Escola Cenecista João Régis Amorim e do Centro Profissionalizante Deputado Antônio Cabral. Também atua com professora tutora a distância no curso de Licenciatura Plena em Letras na modalidade a distância da UAB/UFPB.
3. CONCEPÇÕES BAKHTINIANAS DE LÍNGUA, FALA E ENUNCIAÇÃO
Profa. Dnd. Danielly Vieira Inô Espíndula da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB-Campus VI). Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Linguística (PROLING/ UFPB). Mestrado em Letras – UFPB. Atualmente é professora de Linguística do Departamento de Letras da Universidade Estadual da Paraíba (Campus VI). Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Linguagem e Ensino, atuando principalmente nos seguintes temas: produção textual, leitura e ensino. Prof. Ms. Clécio de Araújo Ferreira da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA / UNAVIDA-PB). Mestre em Linguagem e Ensino (UFCG). Aluno regular do Programa de Pós-graduação em Linguística (PROLING/UFPB). Membro do grupo de pesquisa: Estudos Semânticos-argumentativos de Gêneros do Discurso: redação escolar e gêneros formulaicos - ESAGD da UFPB. Atua na linha de pesquisa: Linguagem, Sentido e Cognição.
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Sobre os autores
4. PSICOLOGIA DO CORPO SOCIAL: SIGNO, IDEOLOGIA E CONSCIÊNCIA Profa. Rebecca Tavares tutora da UFPB/Virtual. Graduada em Letras Clássicas e Vernáculas (UFPB) e Psicologia pelo Centro Universitário de João Pessoa. Mestranda em Linguística (PROLING/ UFPB). Membro do Grupo de Estudos Linguagem, Enunciação e Sociointeracionismo/GPLEI da UFPB. Profa. Dnd. Rosilândia Flávia de Lima Ramos do Departamento de Metodologia da Educação, Centro de Educação/UFPB e Tutora a distância da UFPB/Virtual. Graduada em Letras Clássicas e Vernáculas, Mestre e Doutoranda em Linguística (PROLING/UFPB). Membro do Grupo de Estudos Linguagem, Enunciação e Sociointeracionismo/ GPLEI da UFPB.
5. CRÍTICA DE BAKHTIN À TRADIÇÃO SUBJETIVISTA E OBJETIVISTA DA LINGUAGEM Prof. Ms. Adriano Carlos de Moura do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco (IFPE). Graduado em Letras e Mestre em Língua Portuguesa (PPGL/UFPB). Profa. Dnd. Hélcia Macedo de Carvalho Diniz e Silva da UFPB/Virtual e do Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ). Graduada em Filosofia com dois mestrados: Filosofia (PPGFIL) e Letras (PPGL), ambos pela UFPB. Especialista em Design Instrucional para Cursos Virtuais (UNIFEI/Itajubá/MG). Doutoranda em Linguística (PROLING/ UFPB). Pesquisa sobre Teorias da Linguagem para o Ensino de Filosofia (TLEF), Raízes filosóficas em Bakhtin e Teoria dos Atos de Fala.
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Bakhtin/Volochínov e a Filosofia da Linguagem Ressignificações
6. BAKHTIN/VOLOCHÍNOV E OS PROBLEMAS DA CONSTRUÇÃO DO SENTIDO Prof. Dnd. Francisco de Freitas Leite é professor da Universidade Regional do Cariri. Graduado em Letras (1998) e especialista em Ensino de Língua Portuguesa (1999), ambos pela URCA. Mestre em Linguística (2009) e doutorando em Linguística, ambos pelo PROLING (UFPB). Desenvolve pesquisa sobre a filosofia da linguagem do Círculo de Bakhtin. Profa. Ms. Maria Verônica A. da Silveira Edmundson do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnológica da Paraíba. Graduada em Letras (Licenciatura Plena) e Especialista em Língua Inglesa e Literatura Norte-Americana, ambas pela UFPB. Mestre em Letras e Linguística (PPGLL/UFPE).
7. A PALAVRA DE OUTREM: AS FRONTEIRAS DO FENÔMENO SOCIAL DA INTERAÇÃO VERBAL Profa. Dnd. Eliete Correia dos Santos da Universidade Estadual da Paraíba. Doutoranda em Linguística (PROLING/ UFPB) e Mestre em Linguagem e Ensino (UFCG). Tem experiência em Oficina de Texto, Redação Publicitária e Jornalística. Membro dos grupos de pesquisa: Arquivologia e Sociedade, Estudos em Arquivologia e Sociedade – GEAAS, na Universidade Estadual da Paraíba e do Grupo de Pesquisas em Linguagem, Enunciação e Sociointeracionismo/GPLEI da UFPB e atua na linha de pesquisa: Discurso e Sociedade (UFPB).
8. TECENDO MAIS UMA MANHÃ: UMA PONTINHA DE PROSA SOBRE DIALOGISMO Profa. Dnd.Clécida Maria Bezerra Bessa da Universidade Federal Rural do Semiárido – UFERSA. Doutoranda
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Sobre os autores
em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística/PROLING, da Universidade Federal da Paraíba/ UFPB. Profa. Dnd. Márcia Ozinete de Alcântra Pinho da Universidade Federal Rural do Semiárido – UFERSA. Doutoranda em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística/PROLING, da Universidade Federal da Paraíba/UFPB.
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