Filosofia e senso comum

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Filosofia e senso comum

Eu nasci há 10 mil anos atrás / e não tem nada neste mundo que eu não saiba demais SEIXAS, Raul; COELHO, Paulo. Há 10 mil anos atrás. In: SEIXAS, Raul. Há dez mil anos atrás. [S.l.]: Phonogram, 1976.

Você talvez já tenha ouvido a canção de Raul Seixas que traz esse verso em seu refrão. A canção desfila uma série de fatos, que teriam sido presenciados por esse estranho e velho narrador. É como se houvesse coisas que todos nós soubéssemos, como se vivêssemos há muito tempo. Você certamente já ouviu também o ditado popular “As aparências enganam”. Os ditados populares são uma sabedoria oral transmitida de uma pessoa para outra, de geração em geração. De algum modo, ela evidencia um tipo de conhecimento que todos nós experimentamos e que se convencionou chamar de senso comum, na medida em que é partilhado por todos ou ao menos por um grande número de pessoas. Caracteriza-se por ser um conhecimento absorvido sem maiores reflexões, sem aprofundamento. Todos nós pensamos e construímos uma visão de mundo. Das coisas que observamos e vivemos cotidianamente, tiramos conclusões e elaboramos explicações. Mas esse tipo de conhecimento não é sistemático, não se baseia em métodos. 28

uNIDaDE 1 | Como pensamos?

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Antonio Gramsci foi um dos filósofos que mais se ocuparam das relações da filosofia com o senso comum. Por vezes ele fala de senso comum com uma conotação positiva, pois evidencia que todos os seres humanos pensam e produzem conhecimentos, sejam eles organizados ou não. Em outros momentos, porém, Gramsci afirma que o senso comum é um bom ponto de partida, mas que não podemos nos contentar com ele. Esse tipo de conhecimento pode nos ser útil em determinados momentos da vida, mas em certas situações precisamos de um conhecimento formal mais sistematizado, mais organizado, como somente a filosofia ou a ciência podem construir. O conhecimento do agricultor citado a seguir, por exemplo, que consegue observar e “prever” o tempo, é positivo numa situação de pequena produção. Mas pense em uma grande fazenda, toda mecanizada e com produção muito grande. O gerenciamento deste negócio não poderá ficar à mercê de observações imprecisas, que às vezes funcionam, outras não. É importante que ele conte com uma previsão meteorológica científica mais precisa, para evitar grandes perdas por causa de alterações climáticas que não puderam ser previstas. Algo análogo ocorre com a filosofia. Se ficarmos presos a certos saberes do senso comum, não avançamos para um pensamento mais elaborado, que pode nos descortinar todo um outro mundo. A filosofia, necessariamente, parte do conhecimento que as pessoas já têm. Não pode ignorar esse conhecimento. Como você já estudou, filosofar é produzir um conhecimento sistemático e organizado por um processo de criação de conceitos. Mas essa criação conceitual pelo exercício do pensamento só pode ser feita com base naquilo que já se sabe, ainda que algumas vezes, no processo de pensar filosoficamente, esse conhecimento inicial acabe por ser abandonado. Em síntese, não há filosofia sem um ponto de partida no senso comum; mas, ao mesmo tempo, se o pensamento permanecer no senso comum não haverá filosofia.

Gerson Gerloff/Pulsar Imagens

o senso comum como ponto de partida

Algumas pessoas, sobretudo as que lidam com a terra, conseguem dizer se vai ou não chover, com base na observação das nuvens e da direção e intensidade do vento, ou no voo e canto dos pássaros. Isso não é um tipo de previsão ou de profecia; é uma conclusão construída depois de anos e anos de observação e da percepção de que certos fenômenos estão relacionados e se repetem. Embora baseado em fatos e observações, esse saber não é construído sobre métodos específicos nem resulta de uma pesquisa com objetivo definido. Ele está baseado em um senso comum. Na foto de 2012, agricultor de pequena propriedade cuida de plantação em São Martinho da Serra (RS). capítulo 2 | Filosofia e outras formas de pensar

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