O espelho da página

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O espelho da página Giovanna Martins Os fantasmas graciosos na página, com que facilmente rotulamos o mundo, não são o mundo. Alberto Manguel

I

Não me lembro com muita precisão o que dei primeiro à minha filha quando era bem pequena: se um caderno para desenhar ou um livro para ver. O fato é que, já muito cedo, o códex – essa sucessão de folhas dobradas em cadernos costurados, encerrados numa encadernação – começou a ser introduzido em seu imaginário. O livro como mundo nos é apresentado assim, já em nossa infância. Através de mãos generosas, ele nos é oferecido como infinita possibilidade combinatória de prazer. Tê-los em nossas mãos é ter a ilusão de possuir um pedaço da História. Folhear um livro e lê-lo é partilhar um pouco da solidão de um outro que a ele se adere, reviver a escritura, transformar o passado em presente, subtrair do tempo sua lógica opressora. Os livros parecem nascer do frágil espaço do desejo que antecipa como toda linguagem - o ato de inscrever o desenho da escrita que, mesmo se sabendo insuficiente insiste em registrar aquilo que não se deixa apreender; da busca de dar forma ao pensamento, de capturar o mundo (e essa impossibilidade é o que leva o artista à — infinitamente — reiniciar, recomeçar, reconstruir). Ao se incorporar às instâncias solitárias do nosso cotidiano, este objeto, aparentemente fixo, adquire movimento. Viaja, assim, do dentro ao fora e, só depois, encontra sua morada provisória na intimidade e no silêncio de quatro paredes. Sua vida, quase sempre latente, repousará por fim sem ruídos sobre estantes ou mesas. Estará ali, corpo presente, objeto que contêm em seu interior o mistério e o fascínio de algo sempre desconhecido, as promessas eternas da sabedoria.


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