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Sophie Calle ou as estratégias do desejo Giovanna Martins
“Eu desejaria tanto possuir qualquer coisa que me lembrasse tudo o que pode ser-me querido neste mundo. Não é simplesmente a semelhança que é preciosa neste caso – mas as associações e o sentimento de proximidade que impõe esse objeto”. Carta datada de 1843 1
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Esta pesquisa tem por objetivo examinar algumas obras da artista francesa Sophie Calle, para investigar as relações entre arte e narrativa, consideradas manifestações próprias da contemporaneidade.
O
questionamento
dos
limites
entre
a
realidade e a ficção, que o trabalho da artista propõe, será abordado com ênfase especial. Para tanto, será focalizada a parte autobiográfica da obra da artista, onde experiências pessoais são narradas na primeira pessoa e as imagens aliadas ao texto apontam para a identidade da própria artista. Sophie Calle nasce em Paris em 1953. Na juventude, deixa
a
cidade
e
viaja
pelo
mundo,
durante
sete
anos,
habituando-se às surpresas e ao imprevisível. Ao retornar, sente-se como uma estrangeira e, na tentativa de se reintegrar à cidade natal e encontrar novos sentidos para sua existência
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Carta de E. Barret citada por Susan SONTAG em Photographie - Paris: Seuil, 1979.
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cotidiana, decide seguir pessoas, escolhidas ao acaso, para saber como vivem e do quê se ocupam. Munida de sua máquina fotográfica ela passa a se travestir, para não ser reconhecida em suas perseguições. Na Suite Veneziana, Calle, depois de conhecer um homem em uma festa, segue-o até Veneza, disfarçada com uma peruca loura, fotografando e fazendo anotações durante todo o percurso. Em Les dormeurs convida quarenta e cinco pessoas (vinte quatro aceitam) para dormir em sua cama. Essas pessoas
seriam
fotografadas
durante
o
sono
e
interrogadas
sobre questões diversas. Tais
projetos
não
eram
considerados
pela
artista,
como pertencentes à esfera da arte. Eram apenas jogos. Os mecanismos propostos por Calle causaram forte impressão no crítico de arte e escritor Bernard Lamarche-Valdel, marido de uma das participantes do projeto Les dormeurs, que lhe sugere enviar o trabalho para o Salão de Jovens, de 1979, no Museu de Arte Moderna da Cidade de Paris. A partir dessa sugestão, ela se sente autorizada a inserir estes jogos nos estatutos da arte. O trabalho de Sophie Calle se apoia na literatura, através
de
pequenas
narrativas
e
na
fotografia,
como
documentação das ações e das experiências que ela previamente organiza. Através de elaboradas estratégias, onde é ao mesmo tempo objeto e sujeito, autora e personagem, a artista orienta a
leitura
do
espectador
através
de
uma
rede
de
sentidos:
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música,
textos,
imagens
e
objetos
-,
tudo
se
une
para
confirmar e imprimir autenticidade aos seus relatos. As narrativas, como pequenas legendas, são construídas em tom neutro e simples, utilizando-se de frases curtas. Elas se integram às imagens criadas ou aos objetos expostos, como provas de sua veracidade. Em sua obra, os textos e as imagens são indissociáveis. Eles existem um para o outro e formam uma homogênea unidade narrativa. são
de
sua
supostamente
autoria, ocorreu
e
As fotografias, que nem sempre
apresentam onde
se
cenários,
pode
sentir
onde a
a
ação
presença
da
autora. Essas imagens não apresentam uma preocupação estética e
a
impressão
de
amadorismo
por
elas
transmitido,
imprime
maior realismo às narrativas. As imagens e os textos na obra de Sophie Calle não têm autonomia para se apresentarem fora do contexto proposto pela artista. As fotografias deixam brechas que são preenchidas pelo texto.
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Sophie Calle tem sido objeto de estudos vários, sendo considerada com freqüência como uma ”inventora de histórias”2. Sua obra suscita dúvidas e exerce fascínio. À maneira dos romances
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policiais,
coloca
o
observador
na
posição
de
Expressão usada por Hervé Guibert in “Panégyrique d´une faiseuse d´histoire”. Catálogo da exposição A suivre, no Musée d´art moderne de la ville de Paris, 1991.
um
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investigador,
em
busca
dos
limites
entre
a
realidade
e
a
ficção. O mistério que se constrói em torno de sua identidade seduz, convida a participar do jogo e leva a acreditar que é possível partilhar de seus segredos, com cumplicidade. A artista trabalha sob o signo da duplicidade e ao confundir-se espaço
com
a
indefinido,
artísticas
e
personagem não
literárias
por
mais
ela
criada, instaura
compatível
tradicionais,
com
as
ampliando
um
formas assim
o
sentido da arte como configuradora de possibilidades.
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Ausência. Este o nome da exposição que Sophie Calle idealizou, em 1994, para o Museu de Rotterdam e de Lausanne. A mostra é divida em dois módulos: o primeiro, comum aos dois museus, se chama Visto pela última vez. O segundo módulo, Visita
Guiada,
é
desenvolvido
apenas
para
o
Museu
de
Rotterdam. A Visita Guiada consiste na apropriação dos objetos em exibição
e daqueles ausentes da seção de Artes Decorativas do
Museu. Nas vitrines iluminadas, ao lado das peças do acervo, a artista instala objetos, advindos de seu “museu pessoal” e também
narrativas. Na entrada, o visitante recebe um discman,
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sendo guiado, por uma voz, através de um itinerário fixo. Histórias são relatadas, acompanhadas pela música de Laurie Anderson. O uso do discman se apóia numa prática, presente nos museus europeus, a partir dos anos 70, quando o museu de arte vive uma crise de identidade. São desenvolvidos, então, uma série
de
artifícios,
tentativa
de
dentre
estabelecer
um
eles
as
visitas
novo
tipo
de
guiadas,
relação
na
com
o
espectador. Neste procedimento, através de um fone de ouvido, uma voz conduz a leitura das obras expostas. O espectador vê aquilo
que
Calle
utiliza-se
introduzir
escuta.
a
Na
construção
deste
ficção
no
recurso, espaço
do
da de
Visita
Guiada,
forma
museu,
como
Sophie
crítica, atestado
ao da
veracidade de seus relatos autobiográficos. As vinte e uma narrativas que integram a exposição falam de suas relações afetivas, da falta do ser desejado, das tentativas de eternizar através da posse do objeto. A artista nos conduz a espaços emocionais, no limiar entre ausência e presença. Sophie trabalha
a
Calle
pertence
objetualização
da
ao
grupo
memória
de
artistas
sentimental,
onde
que as
estratégias valorizam mais o processo do que a obra realizada, e onde a realidade deriva dos estímulos da memória. Ao falar de si, através do outro ausente, a artista estabelece uma
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aproximação com o espectador capturando-o numa sedutora rede de apelos afetivos. Ao exteriorizar fragmentos de sua vida, Sophie Calle funde o autobiográfico ao cotidiano. A sedução de sua obra reside, pois, neste percurso misterioso, e ao mesmo tempo, sempre aberto ao compartilhamento.
Belo Horizonte, agosto de 2001