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O PLEITO ESTÁ SÓ COMEÇANDO

O PLEITO SÓ ESTÁ COMEÇANDO

O PANORAMA DO DIREITO NO BRASIL, ELENCADO POR MAGISTRADAS E ADVOGADAS QUE SENSIBILIZAM E EQUILIBRAM A JUSTIÇA, GALGANDO COM VIRTUOSA ASCENDÊNCIA A PRESENÇA FEMININA NESTE PODER

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POR MORILLO CARVALHO, ERIC ZAMBON E DANIEL CARDOZO « FOTOS CELSO JUNIOR

Para que se reflita sobre a linhagem do feminino é necessário haver mulheres disruptivas ao status quo nas quais outras tais possam se inspirar. O que a GPS|Lifetime propõe, nesta edição, é um mergulho sobre as reflexões de sete mandarins de distintos perfis, que têm o Direito como ponto em comum. Partindo das três personagens convidadas para a nossa capa, a presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Maria Cristina Peduzzi, a desembargadora federal e ex-corregedora do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), Maria do Carmo Cardoso, e a advogada Fernanda Hernandez, buscamos compreender o Judiciário como o feminino do Brasil.

Em comum, todas iniciaram carreira na advocacia. Peduzzi a exerceu no âmbito privado. Cardoso foi militante por 25 anos. E Hernandez tornou-se notória na área de direito público com seu escritório. Tem algo mais que as unifica: são poliglotas, dedicadas à família e entusiastas da literatura. Quanto ao pensamento comum sobre advocacia e magistratura, entendem que tal compartilhamento obedece à lei dos vasos comunicantes e integra o perfil constitucional da autonomia e independência do Poder Judiciário.

Conversar com Maria Cristina Peduzzi e captar suas referências, que vão da escritora inglesa Virgínia Woolf à professora da Universidade da Califórnia Ângela Davis, é, como ela própria defende, uma comunicação à sociedade: “meninas, podem sonhar em chegar aos postos mais altos que queiram”. Além de tornar-se a primeira presidente mulher do TST, Peduzzi lidera o braço do Judiciário com maior participação feminina. Há 50,5% de magistradas em atividade.

Com a desembargadora federal Maria do Carmo Cardoso – que atua no Distrito Federal e em 13 estados da federação, com 39% da magistratura feminina –, é deleitar-se numa aula sobre a vasta experiência na corregedoria e perceber o quanto ela enriqueceu a Justiça Federal da Primeira Região. Nascida no interior do Paraná, a magistrada federal traçou um caminho de genialidade para chegar à corte regional que responde por mais de 80% do território nacional.

A advogada Fernanda Hernandez, extremamente estudiosa, mostra como equilibrar a excelência necessária no esforço para vencer grandes causas nos tribunais superiores, enquanto administra um escritório virtuoso, que lhe rendeu dezenas de títulos por seu pioneirismo feminino. O prestígio alcançado a credencia para participar dos grandes debates jurídicos.

Ao trio, elencamos outras quatro mulheres de extrema relevância: as desembargadoras Ana Maria Amarante e Sandra De Santis, 1ª e 2 ª vice-presidentes do TJDFT, respectivamente; a desembargadora federal e atual corregedora do TRF1, Ângela Catão; e a procuradora-geral do DF, Ludmila Galvão.

Todas compõem o leque da complexidade humana. Revolucionam jurisprudências e rompem estruturas dominantes. O último Censo do Poder Judiciário, sobre o qual o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) se debruçou para produzir recorte de gênero em 2019, identificou que 35,9% da magistratura – sendo do sexo feminino 44% dos juízes substitutos – e 56,2% de servidores do Judiciário são formados por mulheres. Na outra ponta, as ministras de tribunais superiores são apenas 16% – mas é preciso recordar que, há apenas 31 anos, Cnéa Cimini Moreira de Oliveira entrava para a história por ser a primeira mulher no Brasil, e a segunda no mundo, a ocupar o cargo de ministra em tribunal superior. O pleito só está começando.

MARIA CRISTINA PEDUZZI

“PRECISAMOS EFETIVAR A CHAMADA IGUALDADE MATERIAL”

POR MORILLO CARVALHO

“O fato de ser a primeira mulher a presidir o TST e o CSJT (Conselho Superior da Justiça do Trabalho) tem um significado eloquente por responder a um antigo questionamento de Virgínia Woolf sobre o que é ser mulher. A oportunidade está posta”. A reflexão de Maria Cristina Peduzzi, 69 anos, pioneira no comando do tribunal máximo das decisões judiciais do campo trabalhista do País, resume um pouco da conversa que tivemos e que versava sobre contemporaneidades sem perder o lirismo.

Woolf, citada, disse certa vez: “O que é uma mulher? Eu lhes asseguro, eu não sei. Não acredito que vocês saibam. Não acredito que alguém possa saber até que ela tenha se expressado em todas as artes e profissões abertas à habilidade humana”. Está em seu artigo do livro Women and Writing. “Valorizo os movimentos feministas porque foi graças a eles que as mulheres conseguiram a igualdade segundo a Lei. O que precisamos é efetivar a chamada igualdade material na vida, porque na Lei já está assegurada”, diz.

Nascida em 1952, em Melo, cidadezinha uruguaia da fronteira com o Brasil, foi criada em Bagé (RS) e optou pela nacionalidade brasileira. Lá, começou a estudar Direito, mas concluiu na Universidade de Brasília (UnB), onde também se tornou mestre. Na capital do País, formou família – tem um filho e dois netos adolescentes – e construiu uma carreira que começou com mais de duas décadas de advocacia, com passagens pelas procuradorias da República e do Trabalho.

É no Tribunal Superior do Trabalho que cumpre expediente há vinte anos, presidindo-o desde fevereiro de 2020. “O exercício da presidência do TST comunica à sociedade a implementação da igualdade de gênero no Poder Judiciário Trabalhista Brasileiro”, destaca.

Cristina se lembra de Mário Quintana em artigo sobre os 80 anos do Judiciário Trabalhista – evocou o poeta gaúcho do interior com o verso “o passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente” –, dos realistas Eça de Queiroz e Machado de Assis, do jusfilósofo americano Ronald Dworkin e do cientista político da Universidade de Toronto Ran Hirschl.

Mas são as mulheres que se destacam em suas indicações de leituras: “faço menção ao pequenino, porém poderoso livro Profissões para Mulheres, de Virginia Woolf. Recomendo o livro Faça Acontecer: mulheres, trabalho e a vontade de liderar, da chefe de operações do Facebook, Sheryl Sandberg. E o da professora emérita de filosofia da Universidade da Califórnia, Ângela Davis, Mulheres, Raça e Classe”.

Cristina diz que não dissocia sua cosmovisão pessoal dos papéis de comando que exerce, o que é coroado com uma data redonda: os 80 anos da Justiça do Trabalho, completados este ano. É o braço do Judiciário criado com função civilizatória, já que o mundo do trabalho passou a ocupar posição central nas relações humanas no último século. Agora, o desafio será mediar o elemento tecnologia.

A ministra contraiu o vírus e chegou a ficar internada por 21 dias. “Tenho convicção de que o Senhor direcionou o corpo médico adequado para cuidar da minha saúde”, diz, reforçando sua religiosidade. “Acredito na tríade, fé, ciência e paciência. Com a pandemia, compreendemos a importância da solidariedade, do respeito ao próximo e do compromisso com o coletivo”, diz, e emenda: “Para construir, é indispensável acreditar e perseverar”.

Poltrona Galeto, por Estúdio Breton

MARIA DO CARMO CARDOSO

“UM SONHO? TORNAR-ME PRESIDENTE DO TRF1”

POR DANIEL CARDOZO

A tranquilidade que transparece contrasta com o jugo da missão que a desembargadora federal Maria do Carmo Cardoso carrega. Prestes a completar vinte anos de Tribunal Regional Federal da 1ª Região, ela fala com apreço da carreira que construiu. De prosa simples e acolhedora, a menina que saiu de Londrina, interior paranaense, chegou a Brasília, construiu carreira, reputação e família. Foi advogada militante até tornar-se magistrada. Aos 66 anos, ela tem três filhos e em breve será avó pela sétima vez.

Do gabinete, no quinto andar na sede do TRF1, a desembargadora diz: “Esse é o tribunal mais importante desse País, porque atende 14 unidades da federação. Na nossa jurisdição direta, temos 82% do território nacional. Somos o tribunal que mais arrecada no Brasil”, conta. Até o ano passado, enquanto corregedora, fez questão de visitar todas as seções judiciárias. “Viajei de avião, de carro, de barco, para conhecer o trabalho dos juízes na base”, conta.

Filha de imigrantes europeus, teve uma infância sem luxo. Aprovada em sexto lugar no vestibular de Direito da Universidade Estadual de Londrina (UEL), decidiu estudar em Brasília em 1978. Depois de casada com o pai dos filhos, concluiu o curso no Rio de Janeiro, já que o marido havia sido transferido pela Marinha. Maria do Carmo chegou a tentar diplomacia. “Fiz o concurso para o Instituto Rio Branco. Passei em todas as etapas, mas quando cheguei na entrevista, tinha que ser filha de alguém”, lamenta.

Grandes desafios formaram o perfil de Maria do Carmo, a exemplo da atuação como defensora de testemunhas da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) – um instrumento inédito à época – que iniciou o processo de impeachment do presidente Fernando Collor de Melo. “Recebi uma ligação de Paulo César Farias em um sábado, pedindo que eu representasse uma telefonista na CPMI. O desfecho político desse escândalo entrou para a história”.

Anos mais tarde, veio a oportunidade de realizar uma meta antiga, a de tornar-se desembargadora federal. Maria do Carmo vestiu a toga no fim de 2001, já rejeitando o rótulo de sexo frágil. “Esse discurso, diminuindo e vitimizando a mulher me incomoda. Pela graça de Deus, eu nunca passei por situações em que me senti vilipendiada. Enfrentei barreiras e lutas, mas nada que eu, sozinha, não me fizesse presente”, reflete. Maria do Carmo foi uma das primeiras desembargadoras do TRF1.

Segundo a magistrada, o trabalho de um juiz deve ser pautado rigorosamente pela lei. Apesar de haver grandes pressões populares e situações nas quais existe grande interesse midiático. “Nunca me deixei levar pelas críticas, pela opinião popular. Nós, juízes, temos que nos comprometer com a prova, com a legalidade, a constitucionalidade e o direito legítimo”, explica.

Recentemente, a comissão que elabora o novo Código de Processo Penal contou com a sua colaboração. Como professora universitária, formou advogados que se tornaram conhecidos nos tribunais, além de juízes e delegados. “Um sonho? Tornar-me presidente do TRF1”.

FERNANDA HERNANDEZ

“ADVOGAR É SIMPLES: SER HONESTO, ESTUDAR E TRABALHAR MUITO”

POR DANIEL CARDOZO

A posição que a advogada Fernanda Guimarães Hernandez ocupa é uma conquista almejada. Pioneira entre mulheres à frente de escritórios de advocacia em Brasília, ela lidera uma banca que conquistou fluxo entre os tribunais superiores e já comemorou vitórias expressivas em teses relacionadas à tributação. Perfeccionista, atua na defesa de clientes robustos, os quais trata de maneira fundamentada. A paixão pelo Direito só perde para outros dois amores: os filhos Ruy e Luiz Felipe.

Foi no início da maternidade que Fernanda corajosamente decidiu deixar o escritório em que atuava para dedicar-se ao negócio próprio. Dentro de um apartamento na Asa Norte, dividia o dia entre as tarefas maternais e a carreira de jovem advogada. Foi árdua a trajetória, mas a levou para a atual sede do escritório na QL 6 do Lago Sul, uma acolhedora casa cercada de flores em um jardim bem ornado. Entre salas e corredores, paredes abrigam quadros que emolduram mais de trinta títulos e comendas – incluindo o de Cidadã Honorária de Brasília –, intercalados por obras de arte, um dos afetos de Fernanda. “Estou lendo o livro O Museu Desaparecido, sobre os quadros que os alemães levaram da França na Segunda Guerra Mundial”.

Formou-se pela Universidade de São Paulo (USP), onde também tornou-se doutora em Direito Tributário e especializou-se em Teoria da Constituição. Há pouco, completou 31 anos à frente de seu escritório. Fernanda faz parte de comissões de juristas que discutem o sistema de tributação, especialmente agora que o governo apresentou uma proposta de Reforma Tributária, que a advogada critica por tratar superficialmente assuntos complexos. “A equipe econômica diz que tributar dividendos significa que o dinheiro vai ficar dentro das empresas e vai gerar reinvestimento. Não necessariamente”, pondera.

Ápices da carreira jurídica somam-se em sentenças favoráveis no STF. “Recentemente ganhamos uma causa importante sobre ICMS, que vai impactar todos os estados”. Para sagrar-se vitoriosa há a preparação rigorosa agregada à experiência em despachar com magistrados, ressaltando a vivência com mentores fundamentais com quem também assinou publicações. O ministro aposentado do STF Aldir Passarinho talvez tenha sido o principal deles. “Foi quem me ensinou a ler um processo com propriedade”. E também o jurista Ives Gandra Martins. “Um homem que entende de economia, história, teologia, música. Mesmo assim, sem vaidade alguma”, elogia. E ainda destaca Hamilton Dias de Souza, seu professor na USP e parceiro incansável.

Dentre as causas que valoriza, estão iniciativas como a Comissão da Mulher Advogada, da OABDF. “É um trabalho para suprir as necessidades das advogadas menos favorecidas”.

Para as novas gerações que iniciam o ofício, o conselho da autoridade: “a advocacia é um exercício de paciência. Não se apressem em construções de teses mal embasadas. Tampouco caiam na armadilha de transformar o escritório numa fábrica de recursos. A fórmula é simples: sejam corretos”, reflete, ressaltando: “tento contribuir para uma melhora do Judiciário, por meio de solução própria para cada demanda julgada”. Está dada a lição daquela que agora vai se debruçar na montanhosa Suíça, o próximo destino de descanso e aprofundamento cultural.

Poltrona Galega por André Grippi para Breton

Foto: Daniel Coelho Moutinho - NBastian/Divulgação TJDFT

ANA MARIA AMARANTE

“A MULHER ESTÁ CONFIANDO MAIS NO JUDICIÁRIO”

POR MORILLO CARVALHO

Ana Maria Amarante já era mãe de três filhas quando foi cursar Direito. Casada desde os 16 e mãe aos 17, a mineira de Itajubá já tinha vivido em diferentes lugares do País quando decidiu entrar na faculdade. Filha e esposa de militares, já habituada a uma vida de mudanças, passou na Universidade de Brasília (UnB) e, prestes a se formar, aos 35 anos, estava grávida novamente. Se a rotina parecia apontar para a direção oposta a uma carreira estável e comumente enraizada como a de juíza, ela fez tudo ao contrário e deu tudo certo.

Há 38 anos em solo candango. “Hoje eu considero Brasília a minha terra. Já tenho até o título de Cidadã Honorária”. Prova disso são as coleções de outorgas e comendas com as quais vem sendo agraciada entre todos os poderes vigentes no DF.

“Eu sou de uma geração que teve que conciliar o papel de rainha do lar – com esfregão na mão, tacho de comida, colher de pau, marido que não frita nem ovo, militar e nordestino – com estudos. No mercado de trabalho, culturalmente, os homens precisam apenas ser bons, já a mulher tem que ser bem melhor”.

A desembargadora lutou por sua ascensão no Judiciário. E batalhou: entre 1983, quando se formou, e 1988, quando se tornou juíza, passou em diversos concursos. Primeiro ocupou cargo na Delegacia Regional do Trabalho e, depois, tornou-se promotora de Justiça. Foi aí que pôde fazer o concurso para a magistratura. Em 2004, era desembargadora.

Ana Maria acredita que o tempo se encarregará da equidade de gênero no Judiciário. “Conquistamos o direito ao voto em 1932. Em 1967 a primeira juíza foi empossada no Distrito Federal. Hoje, de 48 desembargadores, nosso percentual feminino soma exatamente 25%: somos 12 mulheres”.

Além das duas filhas já mencionadas, as outras duas são serventuárias da Justiça – o que levou o marido, militar, a cursar Direito também, “para não apanhar em casa”. Em meio a tantos ofícios, Ana ainda encontrou tempo para a carreira acadêmica, iniciada tão logo formada. Já lecionou em seis faculdades, o que ocorre ainda nos dias atuais.

Atualmente, primeira vice-presidente do TJDFT, sua atuação destacada a fez ganhar nove dos onze votos do STF para, entre 2013 e 2015, compor o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Lá, coordenou o Movimento Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, para melhorar a aplicação da Lei Maria da Penha no Judiciário.

“A mulher está confiando cada vez mais no Judiciário”, diz, arrematando: “agora calcula a cara dos réus, em sua maioria homens, quando se veem julgados por mulheres? Ficam, no mínimo, preocupados. E nós as incentivamos: busquem o Judiciário”.

Foto: Divulgação

SANDRA DI SANTIS

“EU HEI DE ESTAR VIVA PARA VER MULHERES PREDOMINANDO NO JUDICIÁRIO”

POR ERIC ZAMBON

Sandra De Santis não costuma levar arrependimentos do dia quando deita a cabeça no travesseiro. Foi assim no período em que se tornou a primeira mulher a presidir o Tribunal do Júri do DF, entre os anos 1990 e 2000, e ela garante que nada mudou desde a promoção à desembargadora do Tribunal de Justiça do DF e Territórios (TJDFT), em 2004. “Minha consciência é limpa”, assegura.

Sua trajetória começou com o desejo adolescente de ser diplomata. Foi moldada pela função de fiscal do trabalho para o Ministério Público que exerceu no Rio e se definiu quando ela se mudou para Brasília, na década de 1980. Coleciona histórias. Uma de suas preferidas, ela conta como conheceu Gonzaguinha quando recebia ligações preocupadas do grande músico. “Queria sempre saber sobre a documentação para shows”, recorda-se.

Tal versatilidade rendeu a Sandra a notoriedade de ser uma juíza humana. “Já estive em caso de a mãe chorar uma poça de água no chão, implorando que eu soltasse seu filho preso por tráfico. É difícil”. Outro momento severo foi quando julgou a morte de uma criança de cinco anos pelas mãos do pai. “Ele tinha a guarda da criança e era um bom pai”. Em uma ocasião, porém, como a menina mastigava e não engolia a carne, por birra, ele a sacudiu com força, o que a levou à morte.

Os casos que mais a sensibilizam são os de estupro de vulnerável e homicídio de crianças. Mas não se confunde com qualquer abatimento em relação à letra da lei. “Somos juízes, não justiceiros”, enfatiza. “Às vezes, o crime é tão chocante que eu examino a prova várias vezes à procura de um elemento, mas, se não encontro, sou obrigada a absolver. Nunca fui dormir pensando se havia errado. E a verdadeira justiça é Deus quem faz”, afirma.

Sua conduta rigorosa e seu conhecimento técnico foram importantes nos momentos em que o bater do seu martelo na corte reverberou na mídia nacional. Em 1984, julgou os executores do jornalista Mário Eugênio. Em 1997, no julgamento dos rapazes acusados de atear fogo e matar o índio Galdino, ela decidiu que o crime não deveria ser classificado como homicídio, mas lesão corporal seguida de morte. A polêmica foi instalada. “Esse fato não me abalou, decidi com muita certeza”, diz.

Sobre o período de presidência no Tribunal do Júri no DF, diz: “Em época de casos midiáticos, eu parava de ler jornal e ouvir noticiários”. Ao tornar-se desembargadora, trocou a adrenalina da vida de juíza pela responsabilidade do cargo mais elevado. Ela brinca que gostava mais de sua posição anterior. “Eu decidia sozinha. Agora muitas vezes o seu pensamento não prevalece. Faz parte”.

Sandra nasceu no Rio de Janeiro. A vinda para Brasília no início da década de 1980 foi determinante para enveredar de vez pelo Direito e, em 1986, ser nomeada juíza no DF. A juíza de 74 anos revela que em sua casa, quando recebe os quatro filhos e na convivência com o marido, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello, falar de trabalho gera confusão. “Conversa jurídica aqui em casa é zero. Ele tem uma visão garantista. No STF, não há contato com gente. São mundos distintos”, revela.

Atualmente, Sandra ocupa a segunda vice-presidência do TJDFT ao lado de duas outras desembargadoras, algo inédito na história da Corte. “As mulheres são minuciosas e sensíveis”, acredita. E conclui: “Eu hei de estar viva para ver mulheres predominando no Judiciário. Nós temos feeling para a justiça”.

.ÂNGELA CATÃO

“O QUE FALTA NO JUDICIÁRIO É PSICANÁLISE”

POR MORILLO CARVALHO

Aos 73 anos, mais de 35 vividos como juíza federal em Minas Gerais e há 12 como desembargadora do Tribunal Regional Federal da 1ª Região – sediado em Brasília e com circunscrição em 13 estados e no Distrito Federal –, Ângela Catão tem visão bastante particular sobre o seu papel no Judiciário. “Não posso falar que é um protagonismo meu, como mulher, na carreira. Eu queria ter uma profissão que eu gostasse, fosse vocacionada, e queria casar e ter filhos. E isso eu fiz. Claro que foi puxado, mas não achava que isso era exploração da mulher, era o que minha mãe fazia”, defende.

Filha de servidores públicos da prefeitura de Belo Horizonte, é onde nasceu e vive, mesmo quando o trabalho é presencial, pois cumpre o expediente em Brasília e retorna à capital mineira aos finais de semana. Diz não ter criado vínculos com a cidade-sede do tribunal, por gostar da qualidade de vida que tem na terra natal. Também por isso, relutou em ser promovida a desembargadora, até “não ter mais jeito”.

Viúva, mãe de um psiquiatra que vive nos Estados Unidos com os dois netos e de um estudante que reside na Coreia, define sua casa atualmente como um ninho vazio. “Agora tenho mais tempo para fazer outras coisas de que gosto. Tinha vontade de me aprofundar mais em assuntos religiosos, em judaísmo, então aproveitei o Covid-19 e li a Torá. Me apaixonei pela história dos judeus”, conta.

Torá é o livro sagrado do judaísmo, formado pelos cinco primeiros livros da Bíblia cristã, e conta a origem do mundo e da civilização sob a ótica da religião. Neste ponto, Ângela revela um pouco de suas identificações com personagens históricos e de como essas referências a inspiram: “me encantei por Moisés. Outro dia fui dar um voto e disseram que eu estava discordando da jurisprudência, eu disse ‘gente, se Moisés discordava de Deus, segundo a Torá, e discutia com Ele, por que é que eu não posso divergir de vocês?’ É muito enriquecedor, é a história da humanidade”.

Outro ponto da sua formação que se reflete em seus pensamentos é a psicanálise. Começou aos 19 anos e fez sessões por mais de três décadas. “Aliás, o que acho que falta no Judiciário é psicanálise. Se o pessoal entendesse um pouquinho de Freud, melhoraria muito. É como se houvesse uma miopia muito forte e surgisse um óculos”, diz. Leitora voraz, devorou Versos Satânicos por gostar de livros polêmicos; Equador, do português Miguel Sousa Tavares; e destaca especialmente Eça de Queirós e Albert Camus, com A Peste. “Fundamental na vida. Como que tudo muda em função da peste, como a que vivemos agora”, reflete.

Para ela, a pandemia trouxe importantes lições para o Judiciário Federal. “Temos que aproveitar o que a tecnologia nos ensinou. Por exemplo, as correições: fiz agora tudo virtualmente, e achei que isso aproximou mais o juiz das equipes e da corregedora”, conta. Mas Ângela mal vê a hora do retorno das atividades presenciais, especialmente para passear com Beethoven, o cão labrador.

Ângela considera que o período Collor foi o mais importante da carreira. “Dei muita liminar, liberando dinheiro, após o Plano Collor determinar o congelamento das poupanças. Você via os casos na televisão de gente se suicidando, matando umas às outras porque o dinheiro ficou preso, foi uma calamidade. Pessoas ficavam sem o patrimônio da vida e percebemos como o Judiciário, nessas fases, é importante, desde que tenha independência. Muitas liminares foram cassadas, mas quando as cassavam, a pessoa já havia recebido”, lembra.

Foto: Divulgação/ ASCOM/TRF1

LUDMILA GALVÃO

“TENTO SEMPRE COLOCAR A FÉ ACIMA DE TUDO”

POR ERIC ZAMBON

Quando não está atrás de uma pilha de documentos ou com os robustos livros de Direito, a procuradora-geral do Distrito Federal, Ludmila Galvão, exercita sua religiosidade. E é apreciadora de autores como o padre Reginaldo Manzotti, que, dentre outras liturgias, escreve sobre batalhas espirituais enfrentadas e sobre como isso afeta a relação com Deus.

Após assumir o cargo que ocupa, em 1º de janeiro de 2019, por indicação do governador Ibaneis Rocha (MDB), Ludmila, 49 anos, viu o número de batalhas em sua vida aumentar tais quais as novas responsabilidades. A Procuradoria-Geral do DF (PGDF) é o braço jurídico da capital, tem status de secretaria de governo e cabe a ela atuar na prevenção de litígios entre população e governo, bem como na orientação jurídica de secretarias e órgãos similares vinculados ao GDF. Questões como processos de precatórios também passam pela PGDF, que busca soluções por meio de acordos.

“Tento sempre colocar a fé acima de tudo”. Se a religiosidade é rocha pessoal, o caminho percorrido até a PGDF é o esteio profissional. Foi influenciada a seguir no Direito desde o berço: sua mãe, Terezinha Galvão, foi promotora de Justiça; o pai é o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) Ilmar Galvão; o irmão, Marcelo Galvão, ex-procurador-geral do DF; e uma de suas irmãs é juíza federal. É casada com o ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Tarcísio Vieira de Carvalho Neto, com quem tem dois filhos, de 19 e 15 anos.

Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), Ludmila é pós-graduada pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual e pela Escola Superior da Magistratura do DF, mestre e doutora em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Mudança de paradigma, em 1996, ingressou na PGDF por meio de concurso. “Assumir a PGDF é o coroamento da minha carreira”, acredita.

Com a coroa, veio também a representatividade. É a segunda procuradora-geral mulher desde 1961, quando o órgão foi criado no DF. A primeira foi justamente sua antecessora, Paola Aires. Atualmente, dos 203 procuradores, 59 são do sexo feminino. “A mulher advogada, seja no âmbito privado ou público, deve lutar para o incremento de sua representatividade”, defende. A OAB/DF, por sua vez, concedeu à procuradora-geral, este ano, a medalha Myrthes Campos, premiação alusiva à primeira mulher a exercer advocacia no País”.

Para além das linhas que definem o que a Procuradoria pode fazer, Ludmila tem uma ambição: deixar um legado em sua gestão. Em 2019, ela assinou a Portaria 483, objetivando a tornar o órgão referência, até 2025, em resolutividade judicial e redução da litigiosidade.

O órgão aprovou o primeiro plano estratégico da sua história com quatro projetos: a implementação dos programas Contribuinte Legal e Inteligência Artificial em Execução Fiscal. Também o compromisso com a reestruturação da Câmara Permanente Distrital de Mediação em Saúde (Camedis) e do Precatório Rápido. “Eu espero que essas atribuições prosperem e deem frutos. É o que almejo como prosseguimento da minha carreira”, conclui.

Foto: ASCOM/PGDF

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