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“A logística somos todos nós”

ENTREVISTA

Reagir a cenários extremos não é uma novidade para a logística que, com a pandemia de Covid-19, viu reforçada a importância do seu papel no abastecimento de bens essenciais, como os alimentos, medicamentos e outros produtos de saúde. A situação atual trouxe realidades que eram desconhecidas, como a paragem do transporte aéreo, o que obrigou a uma adaptação imediata. Hoje, não existe tolerância para atrasos, mesmo em casos ainda mais extremos, como o que foi gerado pela crise pandémica. Para Manuel Pizarro, CEO da APP – Advanced Products Portugal, estes cenários extremos são, no fundo, uma corrida para as necessidades principais, o que faz com se tenha de perceber o que melhor se pode fazer com menos meios. Seja perante um crash tecnológico, um episódio de bioterrorismo, uma catástrofe natural ou qualquer outro cenário que leve a capacidade logística ao seu limite, a resposta terá de assentar na colaboração de todos os “stakeholders”, incluindo o mero cidadão.

TEXTO Carina Rodrigues FOTOS D.R.

Grande Consumo - A pandemia de Covid-19 veio reforçar, ainda mais, a importância do papel da logística no abastecimento de bens essenciais, como os alimentos, medicamentos e outros produtos de saúde. No seu entender, de que modo as empresas nacionais que operam no sector deram resposta?

Manuel Pizarro - Reagir a cenários extremos não é uma novidade para a logística. Esta é uma área que conta com constantes investimentos, que permitem responder a situações com estas características, e existe uma série de processos e parceiros que, mediante diversas situações, se adaptam e, por vezes, conseguem alcançar uma melhoria no negócio. No caso da APP, temos um simulador que permite, muito rapidamente, comparar diferentes cenários, comparando performances térmicas e, ao mesmo tempo, assegurar soluções eficazes, incutindo, desta forma, maior segurança nas decisões tomadas. Este tipo de inovações pode marcar a diferença em situações como a pandemia, visto que, com esta ferramenta, podemos antecipar se determinada solução será adequada para uma operação de envio e transporte de um produto. Por outras palavras, permite tomar decisões mais acertadas e reduzir os custos operacionais, entre outros.

GC - Mas existem contextos mais extremos, que exigem também capacidade de resposta. O sector nacional encontra-se preparado para isso?

MP - A situação atual trouxe realidades que nos eram desconhecidas, como a paragem do transporte aéreo. Naturalmente, a adaptação logística teve de ser imediata. Teve de haver uma maior racionalização e capacidade de organização de abastecimentos, para que não existisse falta de produto. Ficou também demonstrado que, devido à globalização, nem sempre temos tudo tão próximo como desejável. Para estarmos melhor preparados para estas situações, precisamos de ter a indústria prioritária mais próxima, pois o custo de a ter distante pode ser enorme. Na situação que todos vivemos, há alguns meses, conseguimos dar resposta às necessidades essenciais. Mas se a paragem do transporte aéreo e outros tivesse sido num espaço temporal maior, não teria sido possível, pois poderiam existir grandes ruturas. Vimos indústrias a alterar por completo o seu “core” e a logística, no geral, a adaptar-se, mas o custo destas mudanças só vamos conseguir avaliar no futuro. Em alguns casos, estas situações até podem trazer novas oportunidades.

GC - A APP realizou recentemente uma série de webinars dedicados a alguns cenários: crash tecnológico, bioterrorismo e catástrofe natural. O que vos motivou a levar a cabo estas iniciativas e porquê esses cenários em particular?

MP - Em 2019, iniciámos as Innovation Lab Talks, sessões de debate e discussão relacionadas com a área de negócio em que procuramos acrescentar valor: a logística. As duas edições que fizemos no ano passado mostraram que este tipo de iniciativas são “drivers” de discussão sobre muita coisa que pode ser feita na nossa área. Sendo este ano impossível fazer de modo presencial, decidimos adaptar o modelo para não perder essa corrente e, de imediato, quisemos antecipar temas que, infelizmente, podem ocorrer. Estes cenários extremos são, no fundo, uma corrida para as necessidades principais. Hoje, quer a nível B2B, quer a B2C, não existe tolerância para atrasos e é uma corrida contra o tempo para conseguirmos satisfazer os nossos clientes. Isto faz com que, cada vez mais, a logística se adapte e a única forma de uma empresa ter viabilidade económica é se “conseguir fazer mais com menos”. Estes cenários procuraram colocar- -nos, exatamente, numa posição em que teríamos de perceber o que melhor se pode fazer com menos meios.

GC - Esses cenários mais parecem retirados de um filme de ação. Serão, assim, hipóteses tão remotas ou estamos, realmente, sujeitos a que sucedam?

MP - Não há como negar que os cenários que foram discutidos, mesmo que extremos, podem acontecer-nos. De uma forma ou de outra, o mundo está a viver uma adaptação a um contexto como o que discutimos no webinar sobre o bioterrorismo, em que um vírus (seja ele intencional ou não) obriga a que as organizações se reinventem e que, por exemplo, tenham que colaborar a nível global, como aconteceu, a meu ver, com a disciplina global face às diretrizes da Organização Mundial de Saúde. O ataque tecnológico, infelizmente, já aconteceu várias vezes e continuará a acontecer, esperemos nós de forma pontual, pois os hackers estão nos sistemas de saúde, das empresas, das forças militares, entre outros. E relativamente às catástrofes naturais, todos os dias chegam notícias de calamidades e de cenários extremos em diversas partes do mundo. Todos os dias, são discutidos as alterações climáticas e o impacto que estas estão a ter e, por isso, falar sobre situações que estão na ordem do dia só nos poderá ajudar a estar mais preparados para reações futuras. Após este Innovation Lab Talks Webinar Cycle, fiquei completamente convencido de que existem processos que nos permitem ultrapassar os cenários expostos nos webinars e isso traz-nos confiança de que estas sessões de discussão são cruciais para o sector da logística, pois permitem alertar e falar de assuntos que não são debatidos no dia-a-dia.

GC - O que aconteceria se, de repente, ficássemos sem suporte tecnológico? Como é que os negócios, que atualmente assentam no ou recorrem fortemente ao digital, iriam adaptar-se? Como é que a logística funcionaria, nesse caso?

MP - Nestes contextos extremos, a logística e a cadeia de abastecimento são obrigadas a encontrar soluções e isto só é possível envolvendo todos os “stakeholders”, desde fornecedores e distribuidores a clientes, num processo colaborativo, garantindo, assim, o abastecimento dos bens essenciais, mesmo que de uma forma adaptada. Nenhuma empresa está verdadeiramente preparada para uma situação de falência total do digital. Calma, rapidez de decisão e liderança são fundamentais para a recuperação. Mas é crucial ter um plano que permita dar uma resposta rápida e organizada e reinventar os seus processos na recuperação. Esta foi a opinião unânime dos oradores da primeira sessão do Innovation Lab Talks Webinar Cycle – How to Adapt Logistics to Extreme Situations?. O foco foi um crash tecnológico e empresas como a Maersk, a Sonae e a Alloga Logifarma debateram entre si a resposta a este cenário. Nenhuma empresa conseguirá evitar um ciberataque, pode apenas preparar a sua resposta, de forma concertada, alinhada e com uma liderança estabelecida que possa tomar decisões. Por vezes, a origem, razão e formato de um crash tecnológico são desconhecidos, pelo que o foco das empresas deve estar na preparação da recuperação pós-crise e não no esforço de evitar a mesma. É essencial que exista uma ordem de prioridades e que toda a organização esteja alinhada relativamente aos primeiros passos a dar numa situação de crise.

“Nenhuma empresa está verdadeiramente preparada para uma situação de falência total do digital. Calma, rapidez de decisão e liderança são fundamentais para a recuperação”

GC - Nenhuma empresa está verdadeiramente preparada para uma situação de falência total do digital?

MP - Tal como concluímos no webinar How Can Logistics Handle a Technological Crash?, as empresas nunca conseguirão estar preparadas para uma situação dessas. A única coisa que podem fazer é saber muito bem que passos devem ser tomados, caso isso aconteça. Nomeadamente, quais os passos prioritários a dar, que clientes têm de ser assegurados, que fornecedores têm de ser contactados e que “stakeholders” podem, de uma forma rápida e eficiente, contribuir para a recuperação da organização.

GC - E numa situação de bioterrorismo? Como é que a logística poderia contribuir para combater uma situação desse tipo, desde a preservação dos produtos à restrição de contágios?

MP - Esta segunda situação extrema que discutimos já é diferente, porque um caso destes não afeta somente uma empresa, mas sim uma região e/ou país. Desta forma, não podemos olhar só para as empresas de logística para o combate desta situação extrema. A resposta tem de ser responsabilidade de entidades privadas e públicas que, em colaboração, de certeza que encontrariam soluções para preservar a qualidade dos produtos essenciais, assim como evitar o contágio. Na realidade, e como foi visível com a pandemia atual, as empresas continuaram a assegurar a qualidade dos alimentos e medicamentos, por exemplo, mas seguiram as orientações das entidades públicas para se restringir ao máximo o contágio. Foi exatamente um exemplo da colaboração que pode e deve existir numa situação destas.

GC - Esse tipo de resposta na restrição de contágio pode ser extrapolado no caso de um escalar da atual pandemia para níveis ainda piores dos que atualmente se apresentam?

MP - Sim, estamos a falar de cenários extremos e, por essa razão, a colaboração entre entidades governamentais (por exemplo Saúde, Proteção Civil e Exército), empresas e população em geral faz com que, independentemente do grau de intensidade, sejam encontradas respostas o mais adequadas possível. Eu acredito que o ser humano e as próprias organizações estão habituadas a responder com muita eficácia, mesmo em situações de grande stress.

GC - É aqui que as soluções de rastreabilidade desempenham um papel instrumental?

MP - As soluções de rastreabilidade trazem informação vital para este tipo de situações. Só se soubermos de onde vem um produto, por onde passou, como foi transportado e onde foi entregue é que poderemos rever totalmente o seu percurso e perceber de que forma é que podemos reagir a um possível problema. Cada vez mais existem investimentos avultados em tec nologia que permitem, com a ajuda da inteligência artificial, tomar medidas muito quantificadas e de grande aceitabilidade. Podemos responder rapidamente, à medida que nos chega a informação. Seremos cada vez mais proativos do que reativos, logo, a rastreabilidade desempenha um papel totalmente fundamental e instrumental.

GC - Um cenário de desastre natural parece também retirado de um filme, mas o que é certo é que, face às alterações climáticas, estamos cada vez mais sujeitos a fenómenos meteorológicos extremos. As empresas de logística têm hoje planos de resposta já preparados para uma situação desse tipo?

MP - Atualmente, os clientes têm uma preocupação cada vez maior com a sustentabilidade, que é percetível nas tomadas de decisão. Se a logística não se adaptar adequadamente, os riscos naturais continuarão a existir e a crescer. É importante preocuparmo-nos com o processo e não somente com o resultado. Por outras palavras, temos de considerar como fazemos chegar os produtos ao cliente e não só fazê-los chegar, qualquer que seja o processo para tal. Só desta forma poderemos avaliar o custo global das decisões que são tomadas. Cada vez mais, existem novas formas de mobilidade e possíveis parcerias que poderão evitar que os serviços se tornem redundantes. As organizações que não procurarem este caminho correm o risco de ficar completamente ultrapassadas.

GC - Para além destes três cenários extremos, que outros desafios poderão colocar-se aos operadores logísticos, testando a sua capacidade de resposta e levando-a ao limite?

MP - O crescimento da população mundial implica que tenhamos a necessidade de criar eficiências de produção e, ao mesmo tempo, redes comerciais e de abastecimento mais rápidas e flexíveis. O acesso aos medicamentos e aos cuidados de saúde vai ser, cada vez mais, uma preocupação para o abastecimento global. A carência de algumas matérias-primas pode dificultar o correto e atempado abastecimento. Existem dados preocupantes, logo, a sustentabilidade no contexto global é um excelente tema.

GC - Quais as principais dificuldades na entrega dessa mesma capacidade de resposta, em qualquer um desses cenários?

MP - Os cenários são diferentes, mas implicam soluções similares e, por isso, insisto que deve existir uma grande coordenação internacional dos diversos líderes para antecipar dificuldades e solução das mesmas. Todos somos atores importantes, em qualquer que seja o cenário extremo. Estamos a passar por um momento que nos responsabiliza e, por isso, a dificuldade e capacidade de dar resposta depende da confiança dos líderes e dos próprios media, que, há que reconhecer, que estiverem à altura nesta pandemia.

GC - Quais as prioridades que deverão ser definidas e com base em que aspetos é feita essa definição?

MP - Colaboração de líderes e organização de todos os atores, pois só assim serão ultrapassadas alturas tão críticas, em que qualquer falha nos pode custar muito. Teremos sempre de olhar para a história passada e as experiências vividas. Assim, podemos adequar novos momentos a antigas respostas que tenham sido eficazes, de modo a não repetir erros relacionados com más decisões tomadas.

GC - Que tipo de articulação com outras instâncias, como as entidades governamentais, será necessário fazer?

MP - Penso que os webinars foram um bom exemplo de partilha do que já é feito e quais as metodologias e procedimentos que se devem seguir. Não tenho dúvida que, nestes eventos, nos foi criada uma segurança adicional do excelente trabalho que já é feito, mas que é tão invisível. Os avultados investimentos em segurança nas instituições, a excelente cooperação entre fornecedores/ clientes, transportadores e todas as entidades envolvidas no processo mostram que existe articulação entre os “stakeholders” e que os passos necessários para dar resposta já estão pensados.

Temos de considerar como fazemos chegar os produtos ao cliente e não só fazê-los chegar, qualquer que seja o processo para tal. Só desta forma poderemos avaliar o custo global das decisões que são tomadas

GC - A colaboração é, na resposta a este tipo de cenários, um aspeto fundamental?

MP - A estreita colaboração entre todos os sectores da sociedade é vital para uma resposta coordenada, organizada e eficiente. A necessidade das empresas desenvolverem os seus próprios planos de contingência internos e de partilharem como se criam equipas multidisciplinares especializadas será fundamental para exprimir confiança nos “drivers” da solução. Como já disse anteriormente, todos somos atores do problema global, então, o espírito de cooperação é fundamental.

GC - O que aconteceria se a logística parasse? O que está a ser feito para que, em situação alguma, essa hipótese se coloque?

MP - A logística somos todos nós e, por isso, essa hipótese que coloca é o fim de todo o processo normal de viver em sociedade. Por isso, não acredito mesmo que a logística possa parar, existirão sempre respostas a dar e soluções a implementar. No entanto, temos cada vez mais de perceber os melhores canais de mobilidade, para que esteja sempre assegurado o canal de abastecimento dos produtos prioritários. Com a quantidade de informação existente, os “stakeholders” da logística conseguirão sempre se preparar para dar uma resposta adequada.

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