Michel Dufour
Contos para
Curar e
Crescer (alegorias terapêuticas)
Tradução Alice Mesquita
Sumário Prefácio, 17 Introdução, 19
Primeira Parte
Noções Fundamentais 1. Definição e Funcionamento da Alegoria O que é uma alegoria?, 23 O cérebro: hemisfério esquerdo e hemisfério direito, 27 Consciente e inconsciente, 29 Como age a alegoria?, 31 A quem se dirige a alegoria?, 34 Alegoria: uma ferramenta, 35 Tipos de alegorias, 37 Contornando as resistências, 38 Vantagens da alegoria, 39 Alegoria: um instrumento de manipulação?, 40 Atenção, 40
2. Criação de uma Alegoria Como construir uma alegoria?, 43 Algumas regras a serem observadas na construção de uma alegoria, 49
3. Narração de uma Alegoria Estabelecer uma relação de confiança, 51 Como contar uma alegoria?, 51 Momento propício para a narração, 54
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A alegoria deve ser explicada?, 55 Efeito da alegoria, 56
Segunda Parte
Coletânea de Histórias Metafóricas Tema 1: Crescimento individual e atualização pessoal Assuntos abordados: Falta
de motivação para o trabalho Aninha, a formiguinha, 61
Negligência
dos jovens diante das responsabilidades escolares O leãozinho Benji, 63
Desinteresse
pelo aprendizado escolar A caça ao tesouro, 64
Recuar
diante dos obstáculos Drago e o menino, 66
Desproporção
entre o esforço feito e o resultado obtido
O prego, 69
Baixa
Má
motivação no trabalho O guardião do fogo, 71 percepção do trabalho realizado Gustavo e Carlos talham a pedra, 73
Falta
de atenção Ligeirinho e a sereia, 74
Agitação
Kuki, o cachorrinho, 76
Estresse
e ansiedade antes de um exame ou de uma competição esportiva Os jogos olímpicos, 78 Falta de constância no trabalho
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A fonte de estrelas, 80 Não
aceitação das diferenças A árvore tão desejada, 82
Recusa
em aceitar uma mutilação Rose, a raposa prateada, 84
Não
aceitação de sua própria condição O africano, 86
Diminuição
da capacidade física
Fifi, 88
Problemas
de enurese (incontinência urinária) e incontinência fecal Japi Pito e Mico Coto, 90
Grande
preocupação após uma decisão ou um ato irrefletido Virgínia, o fantasma amoroso, 92
Reação
de medo ou ansiedade diante da agulha de injeção A poção mágica, 94
Reação
de medo exagerado diante de um comportamento autoritário Atenção: cão perigoso, 95
Decepção
após um fracasso Bichano e a escadaria, 96
Reação
negativa diante de uma perda importante ou em relação às mudanças A princesa dos pântanos, 98 Dificuldade
de adaptação após uma perda Os quatro ursinhos, 100
Dificuldade
de adaptação às mudanças Gaspar, Camélia e o Barão Vermelho, 102
Dificuldade
em fazer escolhas O jaguar e o passarinho, 104
Incapacidade
de fazer escolhas A grande faxina, 106 Desvalorização do que se possui
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Meu cantinho, 108 Percepção equivocada sobre a origem de seus problemas À procura da agulha, 109 Avaliação fraca do próprio potencial Balboa, o pirata das Caraíbas, 111 Recusa em ver o lado positivo da vida Em busca do mar, 113 Reação de bloqueio face a mudanças Não mude, 115 Reação de crise diante das adversidades da vida À conquista do rio, 116 Baixa auto-estima. Desconforto interior sem razão evidente Minha casa, 119 Dificuldade de “crescer” com o sofrimento A rosa desabrochada, 121 Desconforto diante de consulta com um terapeuta Eu construo minha casa, 123 Hesitação em pedir ajuda O ursinho imprudente, 125 Situação de dependência de ajuda O acidente de esqui, 127 Falta de controle sobre as ambições O treinador, 129 Incapacidade de especificar os objetivos com clareza A viagem de Ulisses, 131 Esgotamento profissional A instrutora, 133 Esgotamento pessoal Tonhão, 135 Dependência de vícios A coruja intoxicada, 137 Dificuldade em adaptar-se à solidão
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A loba solitária, 139 Dificuldade de enfrentar as grandes etapas da vida Maggie, 141 Incerteza e questionamento diante da morte Será a morte uma espécie de vida?, 143
Tema 2: Relações interpessoais Assuntos abordados: Atitude
superprotetora A águia real, 147 Dependêcia afetiva O cavalo de duas cabeças, 149 Usar mentira e fantasia para chamar a atenção Roco, o papagaio, 151 Falta de autonomia O cordeirinho, 153 Tendência de jogar sempre a culpa nos outros Pata de Veludo, 155 Fraca conscientização dos recursos internos O mistério de Ron-Ron, 156 Tendência a explorar a(s) fraqueza(s) dos outros Nuga, 158 Perda da auto-estima como conseqüência de agressões Pavo, o magnífico, 160 Tendência a subestimar a capacidade dos outros A mina perdida, 163 Atitudes inconvenientes em público Snifi, 165 Não respeitar regras estabelecidas O jogador do Nacional, 167 Dificuldade em respeitar as convenções
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A colméia, 169 Falta de respeito às regras dentro de um grupo Orelhudo, 171 Falta de solidariedade dentro do grupo Girar em volta do pote, 172 Ineficiência de certas reuniões Calar-se para melhor falar, 174 Comunicação inadequada entre dois seres Tango e Melodia, 176
Tema 3: Dinâmicas familiares Assuntos abordados: Dependência afetiva perniciosa Gurú, o canguru, 181 Projeção sobre os filhos do próprio ideal Popeye e Pistache, 182 Preparar a chegada de um novo membro Alex e Alan, 184 Rivalidade entre irmãos João e Janjão, 186 Incapacidade de crescer após uma perda O gato Jiló, 188 Sentimento de culpa pela separação dos pais Aída e o papagaio mágico, 190 Dificuldade em aceitar separações Íris, 192 Sentimento de culpa dos pais sem o outro cônjuge Clara e Jerry, 194 Perda de identidade com a falta de alguém Hermínia e Heitor, 196 Perturbação face às etapas da vida
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Prefácio Á não há mais nada para ver neste mundo depois que educadores
e conselheiros se tornaram “contadores de histórias”.Que grande revolução no domínio da educação e da psicoterapia! Ou, ao contrário, que volta ao passado e ao mais antigo modo de aprender — através da tradição oral! O livro de Michel Dufour sobre a arte de criar histórias visando a cura e o crescimento pessoal é um convite para participarmos desta experiência no campo da pedagogia e da psicoterapia. De maneira geral, existe um certo desprezo em relação às histórias como meio para comunicar alguma coisa. Tanto assim que chamamos de “mito” (do grego = história) tudo o que nos parece inverossímil ou fantasioso. Ou então, dizemos “não me venha com histórias” se des -confiamos das palavras de alguém. No entanto, existe uma afinidade incontestável entre o psiquismo humano e a arte de se exprimir através de histórias. Não é verdade que quando dormimos, nosso inconsciente se delicia em contar histórias sob a forma de sonhos? Sabemos muito bem que retemos melhor os conhecimentos ou os princípios da sabe-doria humana quando são transmitidos no enredo das histórias. Existem vários estilos de narradores utilizando diferentes formas de contar histórias. Fazendo um pequeno inventário da natureza dos contadores vemos que... Há o comediante que conta histórias para fazer rir e descontrair seu auditório. O pedagogo, por sua vez, ilustra as aulas com a ajuda de fatos pitorescos ou contos. Desta forma estimula os ouvintes a experimentar ali mesmo seus ensinamentos, pois ouvir uma história é o que mais se assemelha a uma verdadeira experiência. Os contadores de histórias folclóricas têm como missão narrar as lendas, as epopéias e os contos de um povo. Eles desempenham o papel de sua memória e os ajudam a reencontrar as raízes de sua alma.
J
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Todas as tradições religiosas possuem seu repertório de histórias. Pregadores, mestres e profetas perceberam há muito tempo que a forma mais apropriada de transmitir uma experiência mística ou religiosa é através de histórias. Basta lembrar das parábolas de Jesus, dos contos dos mestres sufis e das narrativas hassídicas. Anthony de Mello foi um célebre pregador jesuíta que, de tal forma convencido da força dos contos metafóricos, acabou abandonando completamente a pregação para dedicar-se apenas à narração de histórias extraídas das diversas tradições religiosas. Recentemente, sob a influência de Milton Erickson, médico hipnoterapeuta americano, desenvolveu-se em pedagogia e na educação um novo modo de intervenção — a alegoria terapêutica. O educador ou o terapeuta, após compreender a natureza do problema de seu cliente, inventa uma alegoria ou narrativa metafórica que o permita ver seu problema sob uma outra ótica, sugerindo soluções. Michel Dufour escolheu esta forma de utilizar os contos para explorar em sua obra. Como age uma alegoria terapêutica sobre um ouvinte? Sabe-se que ela exerce uma influência, mas é difícil explicar de que forma isto acontece. Talvez seja um pouco pelo mistério do encontro de uma história com a criatividade do inconsciente. Parece que o inconsciente do ouvinte tenta estabelecer uma coerência entre sua situação atual e os novos dados encontrados na alegoria. Uma vez, tentando explicar a um médico a forma como a alegoria funcionava para o cliente, ele resumiu a minha explicação da seguinte maneira: “É algo como se você quisesse fazer na pessoa um enxerto de coração ou de inteligência”. Acredito que não exista melhor definição do que esta para o objetivo de Michel Dufour em sua obra Contos para curar e crescer. Jean Monbourquette
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Introdução
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ESDE tempos imemoriais, o homem tem contado suas histórias
como forma de transmitir os valores culturais, espirituais e morais próprios de cada povo. Basta pensar nas histórias da Bíblia, nas narrações de Buda ou nos contos sufis que exercem a função, dentre outras finalidades, de transmissores do saber e meios de se comunicar com o Ser Supremo, ou ainda para a comprensão de si mesmo ou do universo. Através das fábulas, narrativas históricas, contos de fadas, poemas épicos, lendas e mitos, o ser humano tem selecionado intuitivamente alguns incríveis recursos com a finalidade de ajudar aqueles que enfrentam os mais diversos problemas. A alegoria, situada no cruzamento de todas estas formas de expressão, abre novos caminhos e proporciona novas esperanças. Ela realmente desperta nosso potencial adormecido, com sua ilimitada reserva de recursos que necessita apenas ser atualizada. Durante a narração de uma alegoria, o ouvinte (e muitas vezes o próprio narrador) se identifica com o personagem da história, terminando por aprender a transpor gradativamente os obstáculos que impedem sua cura e seu crescimento pessoal. Meu objetivo ao escrever este trabalho não é vulgarizar esta extraordinária ferramenta, mas sobretudo torná-la acessível a um maior número de pessoas, para que possam utilizá-la com discernimento, de forma sensata e prudente, através de um livro prático e de fácil utilização. Num primeiro momento, explicaremos o que é uma alegoria, como ela se constrói e de que maneira é contada. Na segunda parte, oferecemos uma coletânea de alegorias (histórias metafóricas) que abrangem um grande número de situações problemáticas com que nos deparamos todos os dias enquanto pais, professores, terapeutas, palestrantes ou simplesmente porque queremos ajudar.
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cvvvvvvvv Definição e Funcionamento da Alegoria
—I—
cvvvvvvvv O que é uma alegoria? Partimos do dicionário Larousse, que define a alegoria (do grego allegoria) como “a representação, a expressão de uma idéia por uma figura dotada de atributos simbólicos ou por uma metáfora desenvolvida”. Quanto à metáfora, pode ser definida como um procedimento pelo qual se atribui um nome a uma pessoa ou a uma coisa através de uma comparação subentendida, uma analogia. Assim, quando dizemos que alguém “arde de desejo”, queremos dizer que seu desejo é muito intenso. Os professores, assim como outros profissionais, sempre utilizaram os processos metafóricos para fazer com que os alunos entendessem diferentes significados. Um bom exemplo dado por Williams: “O filtro de um motor de combustão interna e o rim de um organismo humano têm em comum a função de filtrar os dejetos. Em ambos os casos, a filtragem consiste numa triagem de moléculas; algumas moléculas passam através do filtro, enquanto outras ficam retidas. O rim também pode ser comparado ao filtro de uma cafeteira, a uma peneira, um coador...” Nenhum destes exemplos é exatamente como um rim humano, mas todos servem para explicar a maneira como ele funciona1. Outro exemplo que também pode ilustrar esta forma de representar é o paralelo entre o motor de um automóvel e o corpo humano. Aparentemente não possuem qualquer semelhança, no
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entanto, o funcionamento da bomba do motor se aproxima bastante ao do coração humano. As semelhanças e as diferenças entre os dois podem contribuir para nossa melhor compreensão de seus respectivos mecanismos2. A alegoria, ou a metáfora, abrangerá para nós um contexto bem mais extenso. Vamos defini-la como uma história real — relato de um fato — ou fictícia, cuja finalidade é informar, educar, curar e fazer crescer. O objetivo da alegoria é despertar a atenção consciente do indivíduo e suspender seus mecanismos de defesa, a fim de permitir que ele entre em contato com as forças de seu inconsciente, ricas de possibilidades e de soluções3. Conheci um menino agitado e difícil, que parecia pouco se importar se incomodava ou não os outros. Um dia, ele me perguntou se eu podia lhe ensinar como fazer amigos. “Estou sempre sozinho porque todos fogem de mim.” — Talvez possa ajudá-lo — disse a ele — mas antes quero lhe contar a história de Picky, o Espinhento.
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Picky era um porco-espinho muito engraçadinho, que parecia uma bola de pêlo, com os olhinhos brilhantes e um focinho pontudo. Assim que o viam, todos os animais da floresta tinham vontade de fazer amizade com ele. Mas era só chegar perto, que Picky se sentia mal e de repente, sem que pudesse impedir — pimba! — seus pêlos se eriçavam e lançavam uma saraivada de espinhos no nariz do outro animal e por toda a parte. Logo a reputação do nosso amigo não se tornou das melhores. Todos sabiam que era perigoso chegar perto dele porque não se podia prever como ele ia reagir. Um dia, Picky, entediado, passeava pela floresta, sozinho como sempre. Ele bem que gostaria de ter amigos para brincar, mas quando chegava perto de outro animal, este logo saía correndo. Picky já tinha tentado ir atrás deles para saber o que estava acontecendo, porém
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quanto mais ele corria, mais depressa os outros fugiam. Naquele dia, ele viu um bichinho deitado embaixo de uma árvore que, estranhamente, não se mexia. Era o coelho Orelhonas. Picky se aproximou devagar para não assustá-lo. Ficou espantado ao ver que Orelhonas estava imóvel, mas tremia como vara verde. — Porque você está aí parado? — perguntou ele. — Por favor, não me machuque — implorou o coelhinho — estou com a pata quebrada. Picky sentiu imediatamente que seus pêlos se abaixavam porque ele não corria nenhum perigo. Ao contrário, precisavam de sua ajuda. — Vou ficar aqui para ajudá-lo com o maior prazer — disse ele. E Picky ficou muitos dias cuidando e fazendo companhia a Orelhonas, que acabou ficando curado e se tornou seu amigo — o amigo que ele tanto precisava. Um dia, Orelhonas disse ao pequeno porco-espinho: — Vou embora. Tenho vontade de rever meus amigos. — Porque não fica comigo? Estamos tão bem aqui — disse Picky — vai me abandonar logo agora que meus pêlos já não se eriçam mais com você? E dizendo isto, sentiu que seus pêlos se eriçavam novamente (raiva… medo...) — Fique calmo, não vou abandoná-lo. Se quiser, posso trazer meus amigos para conhecê-lo. — Feito! Vou esperar aqui. Mas volte logo! — disse Picky entusiasmado, enquanto seus pêlos baixavam novamente. E foi assim que, dia após dia, Orelhonas trazia um amiguinho e com muito cuidado, ia treinando Picky a não ter mais medo, a chegar perto, a brincar e deixar-se tocar sem arrepiar os pêlos. Algumas vezes eles ainda se eriçavam sem que Picky pudesse evitar. Orelhonas logo dizia para ele se acalmar… e pedia a seus companheiros para não fugirem, para voltarem e ajudarem Picky. Aos poucos, o nosso porco-espinho foi aprendendo a ficar calmo e a manter os pêlos assentados.
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Com isto, conquistava novos amigos que aprenderam a conhecê-lo e a apreciá-lo. Depois de algum tempo Picky gozava da mais completa felicidade pois estava cercado de amigos que gostavam de passear, brincar, ou simplesmente estar em sua companhia4.
”
Sem esperar pelos comentários do menino, eu lhe disse que fala ríamos depois sobre o seu pedido, e passei logo para outro assunto. Algumas semanas mais tarde, ele me disse à queima-roupa: — Já sei como fazer amizades e agora tenho muitos amigos. Segundo Bruno Bettelheim, a criança (e acrescentamos — também os adultos) precisa dos contos de fadas, uma espécie de metáfora mágica, para aprender a resolver os impasses de sua vida infantil, como conseguir realizar tarefas que parecem impossíveis à primeira vista, ultrapassar os perigos, suportar situações penosas, tomar decisões adequadas para sua sobrevivência e seu desenvolvimento pessoal5. Portanto, a criança precisa receber de forma simbólica, como nas alegorias, as sugestões sobre como tratar seus problemas e caminhar com segurança para a maturidade6. Porém, a maneira de pensar muda e os costumes “evoluem”. Somos então confrontados com novos problemas e, sem desconsiderar os indispensáveis métodos do passado, devemos pensar em novas ferramentas para ajudar as pessoas a ultrapassarem suas dificuldades. É sob esta ótica que a presente obra foi concebida. A partir deste ponto de vista, a alegoria se torna um instrumento precioso que coloca em palavras aquilo que de outra maneira estaria condenado a permanecer encerrado no silêncio: os medos, as angústias, os desejos, as culpas, as rivalidades, os enigmas e os questionamentos de todos os tipos... Segundo Vanasse, “a função dos contos e das histórias é a de ajudar seu destinatário a se reconciliar com seus próprios impulsos, com a
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realidade da existência e da vida, onde certamente se incluem os males e a morte, além do outro e dos outros”7. O conteúdo de uma alegoria não tem por objetivo ser agradável, mas se o for, tanto melhor. Na história metafórica a pessoa percebe, conscientemente algumas vezes, mas na maioria das vezes, inconscientemente, algo que a toca ou que diz diretamente respeito a um momento específico de sua vida. Depois de a história ter contado sobre si mesma e sobre seus conflitos interiores, a pessoa encontrará suas próprias soluções para aquele preciso momento de sua existência. A alegoria, esta técnica terapêutica ao mesmo tempo fascinante e poderosa, foi desenvolvida e difundida pelo psiquiatra americano Milton H. Erickson (1901-1980). A divulgação por todo o mundo foi assegurada por seus numerosos “adeptos”, entre eles Jacques Antoine Malarewicz, Jeffrey Zeig, Sidney Rosen, Jay Haley, David Gordon, Jean Monbourquette, Alain Cayrol, Josiane de Saint-Paul, Jean Godin, Richard Bandler, John Grinder, Paul Watzlawick, para citar apenas alguns. Quando perguntado sobre o segredo de seu êxito, Erickson dizia: “Vieram aqui para me ouvir contar histórias. Depois foram para suas casas e mudaram suas experiências8”.
O cérebro: hemisfério esquerdo e hemisfério direito Ao longo das últimas décadas, pesquisas feitas sobre o cérebro confirmaram sua dualidade. Galyean9 afirma que a teoria do cérebro direito e do cérebro esquerdo figura entra as que tiveram o maior impacto sobre os atuais programas de educação. Pesquisadores como J. Bogen, R. Ornstein, G. Sperry, H. Gordon, M. Gazzaniga descobriram que cada um dos hemisférios do cérebro parece tratar a informação de forma diferente. O hemisfério esquerdo se encarregaria das atividades racionais e analíticas como a linguagem, a escrita, a aritmética, o pensamento linear, a comunicação
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digital, os processos secundários em psicanálise etc. O hemisfério direito se ocuparia das atividades sensíveis, emocionais e globais, como a intuição, a síntese, a compreensão da linguagem, a música, o sonho, os atos de rotina, a comunicação analógica, os processos primários em psicanálise etc. Desta forma, o hemisfério esquerdo saberá distinguir uma árvore da outra, sem ver a floresta, enquanto o hemisfério direito perceberá a floresta, sem ver nenhuma das árvores10. O hemisfério esquerdo será como a formiga que, ao se movimentar, vê apenas os detalhes enfileirados um atrás do outro, enquanto que o hemisfério direito será como a águia que, ao voar, abarca todo o território de um só golpe de vista11. Atualmente, os pesquisadores já ultrapassaram esta teoria e tentaram encontrar um modelo que, apesar de não ser definitivo, informa e explica os novos dados. Segundo Williams12, o hemisfério esquerdo se interessa pelos componentes do conjunto. Trata a informação em seqüências, em séries, segundo uma escala temporal. Decodifica os índices acústicos (linguagem oral, matemática, noções musicais) e os transpõe em palavras após tê-los analisado. O hemisfério direito aparece como o especialista do tratamento simultâneo e analógico. Ele se interessa pelos conjuntos e integra as partes dentro de um todo. Pesquisa as estruturas e as relações. Esta forma de tratamento é particularmente eficaz para a maioria das tarefas visuais e espaciais, e para reconhecer as melodias musicais. Em resumo, as técnicas associadas ao funcionamento do hemisfério direito não estão necessariamente localizadas neste hemisfério, mas elas representam os tipos de tratamento da informação que nós acreditamos estarem associadas ao hemisfério direito13. A metáfora e a alegoria são provavelmente as técnicas mais eficazes para intervir no hemisfério direito porque elas agem no próprio processo da aquisição.
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Dentro de um funcionamento mental considerado ótimo, os dois hemisférios devem agir em intercomunicação e em colaboração com o corpo caloso assegurando anatomicamente a conexão entre os dois. Um exemplo citado por Williams nos mostra que não pensamos apenas com um ou outro hemisfério, mas que ambos intervêm no processo cognitivo: “Charles Duryea era um engenheiro que se debatia com um problema aparentemente insolúvel de saber como encontrar um sistema eficaz para introduzir o combustível dentro do motor de um automóvel. Um dia, em 1891, ele observava sua mulher sentada diante da penteadeira se perfumando com um pulverizador. Duryea conhecia a existência e a função do pulverizador mas ainda não havia feito a relação entre ele e seu problema. De súbito descobriu como iria construir o carburador a injeção14.” Neste exemplo, a imagem interna e a metáfora, que consiste em ver a ligação entre duas coisas diferentes, parecem ser o mecanismo através do qual a consciência verbal (hemisfério esquerdo) se apoderou da criação do pensamento não verbal (hemisfério direito).
Consciente e inconsciente Para Erickson, existe um consciente cuja sede estaria situada no cérebro esquerdo e um inconsciente provavelmente situado no cérebro direito. Quando ele se dirigia a um paciente, imaginava que estava falando tanto com seu consciente quanto com seu inconsciente. Segundo Malarewicz, “o inconsciente é tão ericksoniano quanto freudiano, porém é utilizado de forma diferente na psicanálise e na terapia ericksoniana”. Para Erickson, “o inconsciente é o lugar onde a pessoa pode encontrar […] as soluções de seus problemas, soluções não utilizadas por conta dos limites impostos pelo aprendizado consciente da pessoa15.” Erickson partia do princípio que o essencial da vida é regido por
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processos inconscientes. Assim, quando um amigo lhe estende a mão, automaticamente seu inconsciente lhe diz para estender também a sua. Se você estiver dirigindo na estrada e percebe que um passarinho se aproxima do pára-brisa na altura dos olhos, automaticamente o inconsciente ditará uma ordem para fechar os olhos ou afastar-se para o lado para evitar o choque, mesmo que seu consciente saiba que o pára-brisa vai deter o passarinho. A maior parte dos processos fisiológicos de nosso corpo são controlados pelo inconsciente; conscientemente não temos que nos preocupar com eles, salvo se existir algum problema. Mesmo durante a noite, nosso inconsciente, que se exprime através dos sonhos, assume o controle de nosso corpo, uma vez que o consciente está adormecido. Segundo Bandler e Grinder, 95% de nossa aprendizagem e de nossas habilidades se fazem a partir do inconsciente. Nosso inconsciente está, portanto, em constante evolução. Assim, se leio um texto que me inspira ou se encontro alguém verdadeiramente importante para mim, meu inconsciente se modifica. Além disso, segundo Erickson, todas as pessoas possuem em si os recursos para ultrapassar um problema para o qual estão buscando uma solução16. Nosso inconsciente é o depositário da totalidade dos aprendizados desde a infância, onde a maior parte das noções fica conscientemente esquecida, porém disponível durante todo o tempo. De acordo com Monbourquette, nunca é demais insistir sobre a segurança e a confiança do narrador nos recursos inconscientes de seu ouvinte. Por sua maneira de falar e de agir, sem necessariamente enunciar de forma direta, o contador de histórias dá a entender a seu ouvinte que ele possui em si mesmo o material necessário para se ajudar através de seus ilimitados recursos de conhecimentos e experiências e de sua capacidade de intuição, bastando estimulá-los para torná-los disponíveis17. Bettelheim afirma a propósito que “é reconfortante para a criança, ouvir dizer de forma simbólica que ela possui em seu próprio corpo o meio de obter o que deseja18.” Neste sentido, Erickson contava:
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a história de um cavalo perdido que ele havia encontrado, quando era jovem, na propriedade de sua família. O cavalo não possuía nenhuma marca que permitisse identificá-lo. Erickson decidiu devolvê-lo a seus proprietários e, para isso, simplesmente montou no cavalo e deixou que ele escolhesse o caminho. Depois de andar alguns quilômetros, o cavalo chegou à propriedade de um vizinho, que lhe perguntou: ‘Como soube que este cavalo era daqui e nos pertencia?’ Erickson respondeu: ‘eu mesmo não sabia, mas o cavalo sim. Tudo o que fiz foi deixá-lo mostrar o caminho’19.
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Como acabamos de ver, a alegoria é um processo através do qual a pessoa faz uma descoberta a partir de seu interior: ela dá acesso a um novo conhecimento que emerge do inconsciente individual em direção ao consciente. É como se o novo conhecimento existisse dentro do incons-ciente e tomasse forma no nível consciente com a história metafórica. Não temos a pretensão de construir aqui uma teoria do inconsciente através de algumas noções desenvolvidas e baseadas nas práticas de Erickson e dos pesquisadores citados. Nossa única ambição é permitir uma melhor compreensão do mecanismo da alegoria.
Como age a alegoria? A alegoria é um mecanismo destinado a estabelecer conexões. Segundo a abordagem ericksoniana, num primeiro momento, a metáfora terapêutica permite enfraquecer o hemisfério esquerdo — o consciente — sobretudo se a pessoa estiver em transe (hipnose leve). O narrador atinge mais profundamente o lado intuitivo, a espontaneidade e a criatividade, através do cérebro direito, com o intuito de atingir o inconsciente. Num segundo tempo, o cérebro esquerdo é novamente convidado a sintetizar o trabalho realizado no primeiro tempo20.
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No entanto, a explicação neuropsicológica não é assim tão simples. Em resumo, a alegoria começa por penetrar no mundo interior do ouvinte que, por referência constante a este mundo, tenta encontrar semelhanças coerentes. Se a história assume subitamente determinada conduta ou toma uma direção imprevista, o ouvinte se vê provocado a restabelecer a coerência de seu modelo do mundo comprometido na história e, neste momento preciso, modifica seu mundo de crenças e de idéias reprimidas. As alegorias nos permitem, portanto, agregar o passado, situar-nos no presente e projetar a esperança no futuro. O resultado, diz Rosen, é comparável a um “insight” que se tem após assistir a um bom filme. Durante a projeção, entramos num estado de consciência alterada, onde nos identificamos com um ou vários personagens e saímos “trans-formados”. Esta sensação tem uma curta duração: algo como dez ou quinze minutos no máximo. No entanto obser-vou-se também que algumas pessoas, ao retomarem anos mais tarde um conto de Erickson, percebem que seu comportamento e suas atitudes se modificaram de forma definitiva21. Para observar a maneira como uma alegoria pode agir, proponho o exemplo de uma amiga enfermeira que um dia me perguntou se eu tinha alguma alegoria sobre a morte. Ela me contou que, em seu trabalho, cuidava havia três anos de uma senhora de 91 anos que não conseguia enfrentar a idéia da morte. Durante os últimos três meses, a velhinha estivera várias vezes a ponto de morrer e, sem nenhuma explicação médica, recobrava a vida. Ao sentir-se diante da morte, ela se tornava ansiosa e se debatia sem parar. Acordava sobressaltada, contando que havia sonhado que encontrara várias pessoas já falecidas. Sua angústia chegava a tal ponto que já não queria mais dormir com medo de que a morte a surpreendesse durante o sono. Ela exigia a presença da filha o tempo todo, que por sua vez também não queria deixar a mãe sozinha. Depois de muitas noites em claro, a filha encontrava-se fisicamente esgotada e o pessoal que cuidava dela, no limite de suas forças. Propus então a seguinte alegoria de Walter Dudley Cavert:
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No fundo de um pântano viviam algumas larvas que não entendiam porque nenhuma delas voltava depois que subiam pelos caules dos lírios até à superfície da água. Fizeram um trato entre elas de que a próxima que se sentisse chamada a subir, deveria forçosamente voltar para contar o que tinha acontecido com ela. Logo depois, uma delas se sentiu irresistivelmente atraída a subir até à superfície. Chegando ali, descansou na folha de um lírio e sofreu a magnífica transformação que fez dela uma libélula com lindas asas. Ela tentou em vão manter sua promessa. Ao voar de um lado para outro em cima do pântano, podia ver suas amigas lá embaixo. Foi então que compreendeu que mesmo que elas pudessem vê-la, nunca seriam capazes de reconhecer uma criatura tão radiosa como sendo uma delas. O fato de não podermos ver nossos amigos e nos comunicar com eles após a transformação que chamamos morte não é uma prova de que tenham deixado de existir.
”
Minha amiga leu tranqüilamente o texto em questão, segurando com suavidade a mão da velha senhora. Já na primeira leitura, a enfermeira sentiu que ela se descontraía, e então conseguiu falar abertamente sobre seu medo de morrer. Depois disso, cada vez que o pânico a invadia, chamava a enfermeira e pedia: “Gostaria que me lesse novamente aquela história sobre a morte”. Ela mesma leu muitas vezes a alegoria ou pediu a sua filha que a lesse. Desde então, puderam falar livremente sobre a morte que eventualmente deveria separá-las. A senhora passou a pedir à filha que a deixasse só e fosse descansar. Na quarta noite após a primeira leitura, ela faleceu de forma serena durante o sono, na ausência da filha que, por seu lado, tinha amadurecido muito através desta prova.
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