a batalha do vivo Grupo ContrafilĂŠ, secundaristas de luta e amigos.
a batalha do vivo Grupo ContrafilĂŠ, secundaristas de luta e amigos
Este caderno foi publicado por ocasião da exposição Playgrounds 2016, realizada no Museu de Arte de São Paulo (MASP), de 18 de março a 24 de julho de 2016, e no SESC Interlagos, de 20 de agosto a 4 de dezembro de 2016. Concepção, produção de textos e ilustrações: Grupo Contrafilé Convidados: Pedro Cesarino, Suely Rolnik, Geandre Tomazoni (BijaRi), José Cavalhero, TC Silva, Peter Pál Pelbart, Pedro Fiori Arantes, Graziela Kunsch e Sato do Brasil. Estudantes secundaristas e amigos que participaram dos encontros: Igor Miranda, Lilith Cristina, Ícaro Pio, Cássia Quézia, Jéssica Lopes, Letícia Karen de Oliveira, Luana Nardi, Ana Chagas, Marcela Reis, Carla Prandini, Jeniffer Mendonça, Ana Luisa Amaral Lucena, Camila Rodrigues, Clara Amaral Lucena, Morena Hee, Erick Santana, Jaine Ferreira, Yolanda Santana, Cristiano Bispo, Heloisa, Lucas Oliveira, Mari Santos, Wesley Xavier, Raquel Kairize, Ágata, Micaela Brito, Cícero, Genilson de Farias, Grazzi, Ana Beatriz Frangiosi, Pedro Andrada, Daiane Teixeira, Gabriela Bianca, Guilherme Ponce, Nicole Venturini, Ligia Nobre, Fabiana Prado (Fafi), Rodrigo Araujo (Cabelo), William B. Menezes, Amanda, Fátima, Ana Paula Menezes, Luana Vitória, Luan Tadeu, Gabriele Prado, Mara Catarina Dias, Victoria Caroline, Julia Soares, Luiza Proença, Thais Olmos, Victor Perugini, Roberto Antônio Gomes, Beatriz Goulart, André Gravatá, Dalva Garcia, Lucas, Alba Castellsagvé, Aline Moraes, João Pedro Constantino (JP), Augusto Izaias, Luiz RM, Douglas Oliveira (Doug), Giovanna Milhã, Gabriel Andrade, Adrielli Melges, Kewin Alves, Othilia Balades, Xablau (Victor Reis), Bryan, Yasmim Buendia, Julia Ferraz, Tarcisio Almeida, Flávio Colombini, André Mesquita e Esther Maciel. Design gráfico: Sato do Brasil e Murilo Thaveira > casadalapa Transcrição e revisão: Lia Zatz Fotos: Grupo Contrafilé, Cássia Quézia, Geandre Tomazoni, Sato do Brasil, Jornalistas Livres, Paulo Ermantino, Julio Cardoso, Graziela Kunsch, Cauê Porto, Aline Arruda, O Mal Educado
Copyleft O copyleft tem como objetivo prevenir que sejam colocadas barreiras à utilização e difusão de uma obra criativa. É livre a reprodução desta publicação para fins não comerciais, desde que o autor e a fonte sejam citados e esta nota seja incluída.
Índice
a batalha do vivo Introdução: A Rebelião das Crianças, A Árvore-Escola e os secundaristas de luta 07 I. Apocalipse Zumbi ao Contrário 40 II. Corpo<>EscolaCasa<>Mundo 94 III. Engajamento com o mundo 132 IV. Códigos de abertura 164
A Rebelião das Crianças, A Árvore-Escola e os secundaristas de luta
A CONDIÇÃO DAS CRIANÇAS CONTEMPORÂNEAS É UMA CONDIÇÃO CARREGADA DE UMA ESPÉCIE DE MATURIDADE
Paolo Virno
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A condição das crianças contemporâneas é uma condição carregada de uma espécie de maturidade. Um saber fazer, um saber estar no mundo, um saber orientar-se quando há muitos imprevistos, quando não há regras precisas. Este saber deles hoje é uma referência para compreender o mercado de trabalho, a precariedade e a imprevisibilidade dos usos e costumes contemporâneos.
Em 2005 uma rebelião na Febem (atual Fundação Casa) nos gerou um mal-estar produtivo, tornando-se impulso de um processo de investigação-ação que nunca mais parou. A imprensa nomeava “marginais”, “delinquentes”, “internos” enquanto entendíamos “crianças”. A criança, como força, é evidência do quanto podemos ou não suportá-la; do quanto ela se torna indesejável e ameaçadora. Se é a partir dela que tudo recomeça, renasce, ela habita dentro, como ponto de conexão entre ela mesma e o novo que carregamos; entre ela mesma e o que podemos ou não suportar da criança que fomos, que devimos ser e do mundo-criança. Nos lançamos, então, na criação de dispositivos que pudessem revelar essa potência, criando “imagens de um devir” – balanços em viadutos, quintais móveis no centro de São Paulo, parques construídos de forma autônoma, colaborativa – provocando rupturas nesta cartografia de forças que exterminam a criança (das dimensões mais sutis à mais concreta) exatamente por não suportá-la enquanto rebelião eminente, possibilidade de transformação radical da realidade dada. A potência-criança nos fala de um saber estar no mundo porque vive o mundo a partir do corpo vivo, habitado, inteiro; corpo que sabe reconhecer as pulsões de vida, que fareja onde pulsa o estado vivo das coisas, das relações, vínculos, afetos. O saber-fazer da criança é, em si, o saber-revelar, a cada momento, o que precisa ser feito para garantir que a vida se expanda. Em 2014, o projeto A Rebelião das Crianças se desdobrou em um novo processo intensivo no grupo, nomeado A Árvore-Escola, que veio do encontro
entre o Contrafilé, o grupo palestino Campus in Camps e a Rede Mocambos (rede nacional e latino-americana dos quilombos), colocando o problema da relação humano/terra/território em evidência. O encontro disparou a pergunta que conduziria o desenvolvimento do projeto e ampliaria, mais adiante, nossa reflexão sobre educação: aqui no Brasil, que força-chave teria o poder de libertar o contínuo processo de colonização a que estamos submetidos? Na matriz quilombola encontramos o Baobá: árvore ancestral que atravessa os tempos e guarda as memórias; árvore-antena, conectora do retorno a si mesmo, sempre que plantada decreta um território livre; árvore-escola, ensinadora da escuta necessária para que percebamos além do aparente e reconheçamos o pulso mantenedor da vida. O baobá nos fez repensar o que chamamos socialmente de “escola”, resgatando sua condição original – um grupo de pessoas sentadas à sombra de uma árvore, onde os alunos não sabem que são alunos e os professores não sabem que são professores, mas todos aprendem juntos. Uma árvore é, de fato, o elemento mínimo para formar uma escola, um local de encontro para pessoas que compartilham urgências semelhantes. A árvore, com suas características e história, cria um território comum onde as ideias e ações podem surgir através de discussões críticas entre os participantes. Nesse processo, entendemos que a árvore não é metáfora, nem símbolo de uma forma mais alternativa, autônoma, independente ou interessante de escola, a árvore simplesmente é. Como passamos a dizer: “Árvore não é palavra, árvore é pessoa; escola não é prédio, escola é força; e tudo que pulsa vida é escola”.
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No final de 2015 fomos atravessados pelo acontecimento de mais de duzentas escolas estaduais ocupadas por estudantes secundaristas, que, em protesto contra uma reorganização imposta unilateralmente pelo governo do Estado, despertavam reivindicando mudanças necessárias no sistema educacional. Reconhecemos nos secundaristas um rasgo, um grito vital, que nos permitia estabelecer conexões com A Rebelião das Crianças e A Árvore-Escola.
um possível que está sendo criado, uma normalidade desafiada, um estado que é de rebelião e que coincide com o próprio estado-criança. O movimento estudantil também expressa o princípio de que “o como se ensina é o que se ensina”. Assim, uma escola hospitaleira é uma escola de hospitalidade. Do mesmo modo, a construção de uma escola pode se transformar em uma escola de construção. Talvez assim se explique o nosso desejo de discutir uma coisa enquanto fazemos essa própria coisa.
Partindo do afeto, do cuidado com o espaço, com as relações e com si mesmos/as, o movimento é uma Batalha do Vivo, rebelião do corpo afetado por uma situação macropolítica autoritária: “Estou nessa sala de aula e ela não pode fechar”. As ocupações das escolas têm algo de brincadeira, no sentido de serem
O convite ao Contrafilé para participar da exposição Playgrounds 2016 no Museu de Arte de São Paulo, veio oportunamente como possibilidade concreta de encontro do grupo com os secundaristas para criação de um trabalho comum. A exposição viabilizou a construção do que chamamos de um Espaço
Dispositivo dentro do museu – uma instalação composta por diversos ambientes de trabalho, de diferentes naturezas, que abrigou encontros com estudantes, educadores, artistas, pesquisadores, amigos e outras pessoas ativas no processo – e o trabalho desenvolveu-se em seis encontros – ora no Espaço-Dispositivo do MASP, ora nas próprias ocupações – cujo resultado culminou neste caderno, que será distribuído principalmente em escolas públicas estaduais. As escolas ocupadas, discutindo o modelo de educação, trazendo outras possibilidades na prática, produziram um deslocamento na imagem difundida socialmente de que estamos desorganizados, desunidos e não temos capacidade de gerar experiências de autonomia significativas.
As ocupações realizadas por estudantes com menos de dezoito anos colocaram em xeque a realidade política. O movimento dos “secundas” é parte da disputa entre as políticas de narrativas normativas e singulares e traz um dizer urgente para o enfrentamento dos inúmeros dispositivos homogeneizantes e seus efeitos no corpo. A Batalha do Vivo se torna assim uma força que reconstrói o território, partindo do existente para repensar e mudar o olhar sobre o corpo, a terra e suas relações. É a partir do que temos hoje que se configuram as armas dessa luta; assim, a potência do corpo e os recursos disponíveis podem dar lugar ao vivo criando um impasse que deixe, por fim, obsoletas as formas em que hoje se estruturam as escolas e as próprias relações sociais.
Grupo Contrafilé
Ficamos bem em silêncio, chegamos, sentamos, uma roda ocupava uma via da rua (a rua ali tem duas vias e metade do asfalto estava ocupado por um círculo). Era uma roda, como essa aqui, começamos a prestar atenção... Achamos que ouviríamos demandas da própria ocupação ou uma discussão sobre o sórdido projeto de reorganização escolar do governo do Estado. Mas não, eram depoimentos de alunos da própria escola e de escolas parceiras, compartilhando desejos, desejos de transformação das formas de aprender. Alguém falou: “Poxa, a gente tem essas árvores aqui no pátio da escola, super antigas, enormes, a gente nunca sentou embaixo de uma árvore pra ter uma aula”. Na hora pensamos “nossa, a Árvore-Escola”. Outros alunos começaram a falar das histórias dos povos indígenas e da cultura afrobrasileira, que não entram na escola. Alguém relatou que algumas pessoas de uma tribo tinham ido até a escola, feito uma dança junto aos alunos em um gesto de apoio às ocupações, mas eles não sabiam nem quem eram, nem quais as histórias daquela tribo. “Por que não aprendemos essa história?”. Eram desejos de histórias não contadas, de conteúdos invisibilizados, conteúdos e formas também, porque ocupar a rua e sentar em círculo era, em si, forma e conteúdo. A imagem era forte, um bate papo entre alunos sentados em um círculo no asfalto, sobre aquilo que não é tratado na escola. “Por que que todas as aulas têm que ser dentro da sala?” Principalmente com a rede Mocambos, que tem o baobá como um ente conectado com a liberdade da terra, aprendemos muito o quanto uma árvore é uma escola e o sentido que produzimos ao sentarmos embaixo dela. E que a árvore escuta. E que, muitas vezes, a gente morre e a árvore fica. O baobá, aprendemos, pode viver seis mil anos! Quer dizer, ele atravessa tempos e histórias. 12
A reivindicação de estar embaixo de uma árvore não é apenas reclamar outros espaços para aprender, mas afirmar que tudo pode ensinar, que tudo que é vivo é uma escola. Essa percepção é o que liberta a terra e os corpos, é o que nos faz sentir que a terra não é de uns ou de outros, que a escola não é de uma diretora ou de um coordenador, mas que os espaços devem ser livres, assim como os corpos.
Criança que brinca e que luta Letícia Karen de Oliveira (estudante)
Eu lembro que a gente morria de medo que a polícia entrasse a qualquer momento na ocupação, a gente planejava coisas imediatas pra fazer caso isso acontecesse. Um dia, numa assembleia, a gente olhou pra uma árvore e falou: “Aqui! A gente sobe aqui e se a polícia vier reintegrar, a gente fica aqui até ela sair. Como eles vão cortar essa árvore? Olha o tamanho desta árvore! A gente vai ficar aqui.” Aquilo acalmava nossos corações porque a gente ficava aflito a cada quinze minutos, quando recebíamos uma notícia, a gente tinha medo, era um campo de concentração. Parece até bobo, mas a gente via na árvore uma chance de ficar. Quando a reintegração de posse caiu, a gente fez um balanço e colocou naquela árvore. Ficamos ali balançando... Naquele momento a gente se viu criança e adulto. No balanço a gente sentiu que éramos crianças e precisávamos lutar.
Ocupar a escola para subir em árvores Letícia Karen de Oliveira A gente tem várias enormes árvores na escola e nunca fez uma aula fora, nunca fez uma aula para descobrir quais as espécies das árvores, nunca fez uma aula embaixo da árvore. Sempre em parques, em passeios de escola, se tinha uma árvore eu subia. Quando a gente ocupou a escola, a primeira coisa que eu falei foi “nossa, a gente vai poder subir na árvore!”. Me lembro que uma vez eu subi e minha professora me perguntou “o que você está fazendo?”. “Ué? Subindo na árvore!”. “Desce daí!”. E isso ficou na minha cabeça... Uma árvore é vista como uma coisa tão extraordinária, tão perigosa...
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Para inventar um livro-dispositivo
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Participantes Grupo Contrafilé, Luiza Proença, Thais Olmos, José Cavalhero, Flávio Colombini, Luana Nardi, Ana Chagas, Ícaro Pio, Carla Prandini, Jeniffer Mendonça, Ana Luisa Amaral Lucena, Camilla Rodrigues, Igor Miranda, Clara Amaral Lucena.
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CARTOGRAFIA DO 1º ENCONTRO NO ESPAÇO-DISPOSITIVO
Ata do Encontro 1. Neste encontro chegamos coletivamente em um sumário (ainda provisório) para o livro, com conteúdos, eixos e ideias: • Menos Muro, Mais Céu / ? Como ele é? Quem produz conceitos e de onde surgem os conceitos? Quais os lugares para a produção do pensamento? • Como ele geralmente é nas escolas e como foi utilizado, acionado, durante as ocupações? Como as ocupações produziram uma “outra versão” do mesmo espaço? Como o prédio ficou? Como as carteiras ficaram? E os corpos? (depoimentos dos alunos que tragam elementos, situações); • Quais exemplos de outros espaços de aprendizagem temos? (Depoimentos de experiências para além do espaço escolar - descorticar os elementos de cada narrativa - como era o espaço, como estava o corpo, etc); • Que desejos temos de configuração de espaços, quais são os possíveis? Projetos, desenhos de situações, elementos e formas que correspondem a isso, que possibilitem outros vinculos, outras formas de relação entre gestor x professor x aluno. (Tirar de tudo que foi falado algumas imagens de possíveis e formas que possam corresponder). 2. Subjetividade: a pessoa/o corpo frente às situações (como tudo foi/tem sido vivido no corpo, como o corpo sentiu? • Cartografar o corpo antes e durante as ocupações; • Entrevistas entre os jovens/estudantes; • Cartilhas (codigos e anti-codigos de comportamento). 3. Escola x cidade, quando a escola sai à rua 4. Glossário, os nomes que damos as coisas: • Cola; • Grade escolar; • Disciplina; • Tarefa.
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Quais os espaços de aprendizagem?
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Participantes Grupo Contrafilé, Pedro Cesarino, André Mesquita, Lucas Oliveira, Fernando Sato, Pedro Andrada, Jeniffer Mendonça, Ana Luisa Amaral Lucena, Clara Amaral Lucena, Lilith Cristina.
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CARTOGRAFIA DO 2º ENCONTRO NO ESPAÇO-DISPOSITIVO
Planejamento 1. Retomar o acontecido no encontro passado 2. Dinâmica de coleta de narrativas/depoimentos: • Em duplas, um conta para o outro sobre duas experiências: • De dentro das ocupações: descrever uma situação, uma cena, uma experiência, que revele o quanto nas ocupações o espaço foi sub-vertido, mesmo sendo o mesmo espaço - esse espaço que é o mesmo, mas é outro; • De fora das ocupações: contar a história de alguma coisa que você aprendeu fora da escola, em outra situação. O que você aprendeu? Como seu corpo estava? Quem te ensinou? Como era o entorno? O que você sentiu? • A dupla traz para a roda essas histórias da forma que quiser. 3. Pedro Cesarino - conversar sobre tudo isso, tendo como norte a pergunta “Quais os espaços de aprendizagem?”
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CARTOGRAFIA DO 3º ENCONTRO NO ESPAÇO-DISPOSITIVO O espaço da norma, o espaço da exceção e o espaço por fazer.
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Participantes Grupo Contrafilé, Pedro Cesarino, André Mesquita, Luiza Proença, Guilherme Ponce, José Cavalheiro, Nicole Venturini, Ligia Nobre, Pedro Cesarino, Ana Luisa Amaral Lucena, Clara Amaral Lucena, Ícaro Pio, Igor Miranda
Planejamento 1. Retomar o encontro anterior 2A. MESALOUSA: Colar o texto do secretário na mesa e cartografar o discurso usando o giz e a lousa; 2B. NO SOFÁ: Escutar depoimentos sobre “o espaço transformado em outro espaço” dos alunos que não estavam no encontro passado e gravador; 3. ÁRVORE-ESCOLA: Fazer uma dinâmica da árvore-escola a partir da pergunta: quais exemplos de outros espaços de aprendizagem temos? (Depoimentos de experiências para além do espaço escolar - descorticar os elementos de cada narrativa - como era o espaço, como estava o corpo, etc); 4. FECHAMENTO com Pedro Cesarino (o espaço da norma, o espaço da excessão, e o espaço por fazer - que não é nem a norma e nem a excessão). 25
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CARTOGRAFIA DO 4º ENCONTRO NO ESPAÇO-DISPOSITIVO Que corpo é esse?
Participantes 26
Grupo Contrafilé, Suely Rolnik, André Mesquita, Guilherme Ponce, José Cavalheiro, Fernando Sato, Nicole Venturini, Erick Santana, Jaine Ferreira, Grazzi, Yolanda Santana, Cristiano Bispo, Heloisa, Mari Santos, Wesley Xavier, Raquel Kairize, Agata, Micaela Brito, Cícero, Cássia Quezia, Genilson de Farias, Ana Beatriz Frangiosi, Daiane Teixeira, Gabriela Bianca, William B. Menezes, Amanda Fátima, Ana Paula Menezes, Luana Vitória, Luan Tadeu, Gabriele Prado, Mara Catarina Dias, Victoria Caroline, Julia Soares, Victor Perugini, Roberto Antonio Gomes, Lucas, Alba Castellsagvé, Aline Moraes, João Pedro Constantino, Augusto Izaias
Algumas anotações do encontro: O movimento das escolas tem a ver com politizar os afetos e a amizade. Afinal, o que entendemos por “base”?
Planejamento MUDANÇA DE PLANO!!!!! Tendo em vista a ocupação do Centro Paula Souza e a importância deste momento de unificação da luta, AMANHÃ NOS ENCONTRAREMOS NA PORTA DO CENTRO PAULA SOUZA às 14h e não no MASP. Esta é uma proposta de alguns secundaristas que estão participando dos encontros. NOS VEMOS LÁ! 14h na porta do CPS. Rua dos Andradas nº 140 - Santa Efigênia. 1. Abrir o encontro com uma contextualização do que estamos entendendo por “corpo”; 2. Fazer um mapa - a partir de imagens do varal e anotações - que levante diferentes camadas da dimensão do corpo no movimento das ocupações das escolas; 3. Pensar junto como isso pode entrar no livro.
Perguntas norteadoras: O que é a reorganização escolar para o corpo? O que está sob ameaça? Que afetos e vínculos vem sendo produzidos neste movimento? Como contar a história deste movimento a partir do corpo? O que tem sido politizado? O corpo é físico mas também é forma de estar no mundo. Que corpo foi esse que saiu de um lugar de normalidade e chegou em outro, de potência? Como o corpo passa do estado “confinado 27 na carteira” para um “corpo de luta”, com o qual se acopla à carteira, tornando-a extensão do corpo? O que acontece com esse corpo que sai da normalidade? Ele volta pra normalidade depois? A escola pode deixar de ser o espaço disciplinador e se transformar a partir deste corpo-potência?
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CARTOGRAFIA DO 5º ENCONTRO NO ESPAÇO-DISPOSITIVO Criação de imagens e dizeres
PESSOAL!!! Em virtude da desocupação do Centro Paula Souza, amanhã nos encontraremos na ocupação da DIRETORIA DE ENSINO CENTRO-OESTE às 14h30. Rua Dr Paulo Vieira, 257. Próximo ao metrô Vila Madalena. Será uma OFICINA de CARTAZES e IMAGENS, para serem usados nas ocupações, nas ruas e na rede. VAMOS NESSA! 28
Participantes Grupo Contrafilé, Fernando Sato, BijaRi, Guilherme Ponce, Nicole Venturini, Clara Amaral Lucena, Ícaro Pio, Igor Miranda, Luiz RM, Douglas Oliveira (Doug), Giovanna Milhã, Gabriel Andrade, Adrielli Melges, Camila Rodrigues, Othilia Balades, Xablau (Victor Reis), Bryan, Yasmim Buendia, Julia Ferraz, Jéssica Lopes, Fafi Prado.
Planejamento 1. Levantar algumas frases que possam compor com a imagem da carteira de asas; atelier de stêncil; 2. Roda de conversa: continuar a escuta a partir do corpo vivo - o que as ocupações ensinam/transformam? Algumas anotações do encontro: Tudo ao redor tão duro, produzindo efeitos tão violentos nos corpos, e a amizade, o afeto e o cuidado sendo respostas tão transformadoras; A dimensão de “festa” é o afeto produzindo antídotos; O corpo passa a se sentir bonito, rompendo com os padrões normalizados de beleza; Existe uma fractalidade no movimento em que cada camada muda todas as outras; As cinco peles Pele Roupa Casa
Identidade
Terra
Como colaborar mais, para que a gente saia de frases prontas, facilmente capturadas e banalizadas por adultos reacionários? O movimento é muito mais interessante do que as palavras de ordem podem captar; A merenda tem a ver com poder comer, poder comer uma comida saudável, alimentar o corpo para estudar, dar saltos em todos os níveis. Isso pode ser pouco para as elites, que nunca perceberam essa falta em seus corpos; A luta é também pelo direito de serem jovens e crianças bem tratadas e amadas pela sociedade e não violentadas desde que nascem; 29 Quem se interessa mesmo por uma educação pública precária? Pra quem isso interessa? Quem se interessa por manter crianças e jovens mal formados, mal tratados (assim como professores) e escolas feias e despotencializadas? Este movimento é como um grito, um pedido de ajuda, que chama aliados, encontra sua tribo, abrindo a escola, tirando a soberania do Estado em relação a este espaço; Vem bem forte a imagem dos jovens e crianças tocando berrantes, chamando o "seu povo", ou chamando adultos que possam entendê-los, em sua diversidade, adultos que de alguma forma habitem este lugar da fragilidade que é força e da diversidade que é intrínseca à vida.
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Participantes Grupo Contrafilé, José Cavalheiro, Cássia Quezia, Luiza Proença, Tarcisio Almeida, Beatriz Goulart, André Gravatá.
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CARTOGRAFIA DO 6º ENCONTRO NO ESPAÇO-DISPOSITIVO
Planejamento 1. Dividir o grupo em 2 subgrupos: • Ler e debater o texto A Sociedade Órfã - de José Renato Nalini, Secretário da Educação do Estado de São Paulo; • Ler e debater o texto Nossas Crianças Não São Nossas Crianças ou Porque A Escola Não É Um Ambiente De Aprendizagem - de Jan Masschelein & Maarten Simons; • Ler e debater o texto introdutório do livro El maestro ignorante, Jacques Rancière. 2. Discussão coletiva - cada subgrupo apresenta as ideias principais de seu texto e abrimos uma discussão.
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José Cavalhero
A MESALOUSA NÃO É A MESMA LOUSA... SERÁ?
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Cavalhero participou de muitos dos encontros realizados dentro deste projeto, os quais se deram tanto dentro de ocupações de escolas e diretorias de ensino quanto ao redor da mesa-lousa montada no Espaço-Dispositivo criado pelo Grupo Contrafilé na exposição Playgrounds 2016 no MASP. Assim, A Mesa-Lousa não é a Mesma Lousa… será? é um registro de sua experiência, que reflete e desdobra os afetos do processo em seu corpo.
José Cavalhero é artista educador. Iniciou sua trajetória como professor em várias escolas públicas e particulares de São Paulo. Atuou com formação continuada de professores da rede pública, criação de currículo escolar e em ateliê de artes visuais para pessoas com deficiência. É pesquisador da Abordagem Educativa de Reggio Emilia desde 2001, o que o faz estabelecer verdadeiros encontros éticos, estéticos e políticos. Atualmente é mestrando em Psicologia Clínica na PUC-SP e trabalha como assessor pedagógico na Educação Infantil da Escola Vera Cruz e assessor de arte na Escola Viva – ambas em São Paulo.
LOUSA Aquele que nunca passou por uma experiência em sala de aula em que não houvesse uma lousa, que atire o primeiro giz. A lousa, ou quadro negro, como conhecemos hoje, originalmente era feita de pedra de ardósia aplainada e polida para acomodar ideias, conceitos, imagens por meio da escrita, do desenho e de tantas outras linguagens grafáveis. Uma lousa, por mais ínfima que seja em suas dimensões, quando ora está nas mãos de uma criança que ainda não foi alfabetizada, ora nas mãos de um adulto erudito, a mesma lousa poderá conter um sem-número de mundos conhecidos e, ao mesmo tempo, outro sem-número de desconhecimentos de mundo para ambos. Justamente por ter essa generosa abrangência ao conseguir abarcar tanta diversidade, a lousa, para ser realmente lousa, tem uma condição: tudo que se materializa em sua superfície necessariamente precisa ser efêmero, passageiro. Ou seja, uma pedra preparada para ser grafada e não gravada. E isso faz toda a diferença. Quer dizer, a grafia sobre ela não pode ser permanente, mas o que se grafa nela pode se tornar um saber gravado em nós – aquilo que deixa marcas em nosso corpo-memória. É desse modo que seu espaço torna-se suporte, lugar de testagem, zona de apagamento para possibilitar o acolhimento de diferentes ocupações. A lousa pode ser vista como um tabuleiro para o jogo que se estabelece entre conhecimento e desconhecimento ou, expressando de outra forma, entre o ensino e a aprendizagem. A lousa “é” sempre o meio em que se dá visibilidade aos tempos de passagem desse jogo. Porque na lousa pode-se dar passagem para “saberes sabidos”, assim como para “aprendizagens caminhantes”. Por isso, justifica-se a lousa ser um objeto indispensável na escola, tendo, desde o final do século XIX, seu lugar garantido em sala de aula. O problema não está na presença da lousa no espaço escolar, mas no “como”, durante esses séculos, professores e estudantes a ocuparam e ocupam-se dela. Falar de lousa é também falar do instrumento que dá visibilidade àquilo que quer ocupar a superfície da lousa num “tempo-de-passagem”, que é o giz - instrumento perfeito para se deixar marcas de fácil apagamento à serem substituídas por inúmeras outras marcas também apagáveis.
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MESA Ao escolhermos a mesa para ler um livro, para escrever ou desenhar, por exemplo, ela torna-se o suporte que potencializa a operacionalidade de nosso objetivo. Antes da informática nos trazer a tela do computador como mesa de trabalho, muitas profissões necessitavam de uma mesa com características específicas para execução de suas técnicas – modelagem, arquitetura e desenho industrial, engenharia, cartografia, entre outras. Para cada uma delas exige-se dimensões, materiais e acabamentos diferenciados. Quando a mesa é ocupada por um grupo de pessoas que querem viver uma experiência juntas, o que se busca não é exatamente exigências estruturais, pelo fato de que a mesa não tem uma finalidade em si, ela é o meio e não mais um suporte para que a experiência aconteça, porque o que se espera não é a qualidade estrutural da mesa, mas o modo de acolher “quem” e “o quê” fará parte da composição de uma “mesa” coletiva, mesmo que nela se debrucem diferentes interesses e diferentes pontos de vista
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a partir de um assunto que seja de interesse comum. Isso de nada impede haver debates calorosos no encontro entre ideias que sejam divergentes. Mas, ao ocorrer esse fato, dificilmente a divergência permanece à mesa, justamente por ser ela o lugar ideal para o exercício da democracia e para a negociação com finalidade de estabelecimento de acordos. Então, podemos dizer que as mesas coletivas são lugares de autogestão, nos quais compartilhamos interesses e, sobre ela, colocamos em evidência, uns para os outros, aquilo que queremos dizer por meio da conversa, da exposição, do argumento. Sendo assim, é mais importante que a mesa possa ser o lugar de passagem para refeições, para reuniões institucionais, para a tomada de decisões políticas, para o culto religioso etc. Portanto, é o alimento, o encontro, a comunicação, a negociação, a cura, a celebração que darão forma à “mesa”. Por isso, pouco importa se ela é redonda, quadrada, retangular, de madeira, de vidro, de fórmica e até mesmo de lousa.
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MESALOUSA Se pensarmos bem, pelo que foi dito até agora, podemos dizer que a mesa se assemelha à lousa, por serem ambas locais que, para existirem, precisam servir de apoio, suporte ou meio para outra coisa. Então, quando se propõe fundir uma mesa com lousa e vice e versa, isso possibilita agrupar pessoas à sua volta não só para dar passagem ao encontro, para propiciar o compartilhamento de singularidades diante de uma experiência comum, mas também para – e ao mesmo tempo - registrar graficamente o acontecimento em sua superfície pronta para ser ocupada. Esse foi um dos lugares em que vivemos nossos encontros no Espaço-dispositivo para conversar sobre a escola que queremos: se a escola se repensa, o que acontece com os outros espaços?, compondo-nos no acolhimento de pessoas e nos interesses de todos para discutir a educação a partir das experiências ocasionadas pelas ocupações dos secundaristas de São Paulo e sua repercussão ética e política dentro e fora do Estado. E, por que não dizer também, em outros países. A mesa-lousa tornou-se um campo de forças com a presença de pessoas advindas de distintos lugares e tempos para se encontrarem numa mistura que se deu entre estupor, diante da ousadia dos secundaristas, e indignação diante da atualidade macropolítica. Junto com nossas experiências de ocupantes das escolas e de pré-ocupados com a situação vigente, compareceram à mesa textos e convidados que abordam a educação de modo inventivo, ético, estético e, sobretudo, político. Na mesa-lousa, não se serviu PFs e nem foram proferidas lições a serem copiadas. Nada ali se ensinou, mas tudo e todos queriam aprender, queriam nutrir corpos e relações para pensar e arquitetar novos modos de se fazer e estar na escola. Na mesa-lousa praticamos o ato de expor o nosso ponto de vista e de ter acesso ao ponto de vista do outro pela palavra e pelo “olho no olho”, porque estávamos todos sentados, formando uma circularidade que nos permitia alcançar o olhar do outro. Na superfície da
mesa-lousa, podíamos encontrar vários objetos, como livros, fotos, textos impressos que eram trocados conforme a conversa proposta para o encontro, além de alguns víveres. Mas, havia algo que sempre esteve lá: a caixa de giz. Cada um de nós se deixava aproximar da caixa e dela retirar o que poderia deixar marcas gráficas como extensão de nossas presenças que, aos poucos, e à medida que os riscos iam se fazendo, fundiam-se nos avizinhamentos até formar uma grande escrita-desenho-emenda que se construía por um processo de pensamento plural, num movimento de dizeres que se desprendia da ordenação de escritura estruturada por nossa cultura ocidental: da esquerda para a direita; de cima para baixo. Para ocuparmos a mesa-lousa com essa escrita inventada, não havia como nos colocarmos de costas para o mundo, como geralmente se faz em uma lousa tradicional e fixada na parede. A lousa deixou sua costumeira verticalidade e se horizontalizou. Seus contornos transformaram-se em bordas que permitiam a entrada de todos e por todos os lados. Aqueles que adentravam naquele espaço se encontravam num mesmo plano com seus corpos, dizeres e desejos. A mesa-lousa estava ocupada por incerteza e imprevisibilidade de pensamentos e ações provocados pelo cenário político do país e pelas ocupações das escolas públicas de São Paulo. Isso não foi entendido como ruim ou bom. Isso não nos paralisou em momento algum. Ao contrário, o que buscávamos ali, todos reunidos e reunindo tudo que podíamos, era problematizar e não achar solução para o incerto e o imprevisível, era encontrarmo-nos em ato criador que pudesse, ao mesmo tempo, desmanchar os rígidos e obsoletos contornos de uma realidade educacional e alargá-los no horizonte do presente para que a produção de diferença ocorresse. Portanto, o que não se apagou da mesa-lousa é o que nos ficou gravado para grafarmos planos para nossas escolas por meio de uma escrita outra.
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I.Apocalipse
Zumbi ao Contrรกrio
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No processo com os secundaristas, vimos que nessa insurreição o corpo tem um lugar central. O corpo aparece enquanto gesto vivo, porque foi no âmbito do que é mais concreto na vida, os amigos, o ir e vir da escola, a relação com o espaço de aprendizado, que a insurreição começou como um basta que deu o limite para o insuportável. Se, hoje, a vida como um todo é o lugar no qual os poderes exercem seu domínio, é ela também o vetor possível da fuga, porque a vida, a vida mesmo, é um indomável, ela é exatamente o lugar da invenção, da diferenciação eterna. Os jovens secundaristas que estão vivendo essa insurreição falam muito disso, quando nos contam que “ocupar”, no seu caso, tem muito a ver com estar de uma outra forma naquele mesmo espaço onde passaram e passam quase a vida inteira - uma jovem chega a dizer algo como: “Pode parecer até um contra-senso ocuparmos aquilo que aparentemente já estávamos ocupando”. Esse novo “modo de estar”, porém, rompe de fato com aquilo que vinha antes, pois tem a ver com um estar ali por inteiro, com tudo o que cada um tem, tudo o que cada um carrega - a ancestralidade, as lutas, buracos e traumas, dores e alegrias, cor, gênero, histórias, vergonhas. Tem a ver, assim, com passar a ocupar o próprio corpo como um território real - e legítimo. Um território que existe, não um inexistente que deve ser escondido ou colocado debaixo do tapete, ou da catraca... ou da carteira. Se cada um (alunos, professores, funcionários, famílias, todas as pessoas) passa a se entender e a entender o outro como território legítimo, não é difícil imaginar quanta coisa emerge disso, quanta consciência, quanta ruptura. É outra escola que pode nascer, que já nasceu. Que todo mundo viu sendo gestada e, claro, sendo combatida. Houve muita identificação social com essa escola da primavera secundarista, talvez porque muitos de nós tenhamos sentido algo como “o que deve ser uma escola a não ser isso? Onde estão os conhecimentos a não ser aí (em todos/as e cada um/a de nós; em todas e em cada uma das situações e seres no/do mundo)?”.
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DA CATEGORIZAÇÃO DAS SUBJETIVIDADES E ESPACIALIDADES AOS MÚLTIPLOS MODOS DE HABITAR E DE HABITAR-SE
Pedro Cesarino (antropólogo)
[Do estado de normalidade ao estado de exceção provocado por esse tipo de movimento há uma] passagem do momento em que as pessoas estão categorizadas, classificadas, individualizadas, normatizadas, e assim por diante a outro momento em que essa individualização desaparece e as pessoas passam a se tornar irmãs, por assim dizer. Esse vínculo faz com que as pessoas se transformem em pessoas iguais, antes elas não eram iguais, você tem uma pessoa que é de classe média, outra que é de classe mais baixa, uma que é rica, uma que é filha de médico, outra que é filha de faxineiro, enfim, isso e aquilo. Os níveis sociais e outras formas de diferenciação desaparecem porque existe uma necessidade de produzir uma transformação na normalidade a partir dessa exceção. E os próprios espaços se alteram radicalmente. E isso se revela claramente nas escolas, os espaços que não eram conhecidos ou que não eram habitados passam a ser espaços conhecidos e habitados de outra maneira. Esses espaços de exceção implicam não só numa reversão da espacialidade e dos tipos de vínculos que as pessoas criam entre si, como também uma reversão no tipo de conhecimento que é produzido a partir desse vínculo. É nesse momento que, em primeiro lugar, o outro conhecimento é questionado, o conhecimento normal, o conhecimento das estruturas de poder, das estruturas de dominação. No caso das escolas, um questionamento da grade curricular, do vestibular e tal. Então esse conhecimento normal é ironizado, é subvertido, enfim, se criam diversas maneiras de desestabilizar não só esse conhecimento, como também as figuras de autoridade associadas a esse conhecimento.
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Se apossar de si mesmo Igor Miranda (estudante)
Na escola, às vezes a gente está por estar. E depois que a gente ocupou, a gente começou a fazer uma série de questionamentos e a ver tudo de uma forma diferente. As pessoas com quem você anda, o jeito que você se comporta, as aulas que você gosta e, quando não gosta, como se relaciona com estas aulas. Então, para mim, teve um questionamento de tudo, de tudo mesmo.
O diretor da minha escola teve a proeza de, com uma semana de ocupação, levar a polícia para dentro da escola. Todo mundo apanhou, teve repressão, eu mesma levei um tapa na cara dele. Mas foi muito incrível porque nada disso adiantou. Eram 8 horas da manhã e estávamos apenas os que tinham dormido na escola, umas 12 pessoas. Eles eram uns 80, o diretor, alguns pais, alguns professores, a polícia, todos contra a ocupação, dizendo que iam tirar a gente à força de lá porque precisavam fazer matrícula. Mesmo assim, a gente conseguiu recuperar a ocupação, que durou mais de um mês. E no dia em que fomos desocupar a escola, o diretor estava lá na porta, eu fui até ele e entreguei uma medalha de honra ao mérito.
Honra ao mérito Lilith Cristina (estudante)
A BATALHA DO VIVO ANOTAÇÕES 1 47
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Muitos dos relatos que ouvimos trouxeram à tona uma violência brutal à qual os corpos estão submetidos desde muito cedo, desde antes de nascerem. Corpos sempre suspeitos, mal vistos, anormais, errados; aquilo que carregam de força, sua potência de produzir sentido, trazer o novo, o nascente, a vida afinal, se torna invisível, é ocultada por essa voz hegemônica e normativa que blinda os corpos de se perceberem eles mesmos consciência, puro pensamento e vida, outra vida. Nas “ocupas” isso se rompeu. O corpo que sente as intensidades do mundo, seus dizeres sussurrados, suas formas imperceptíveis, suas vibrações mais finas, esse corpo pulsante voltou a agir. Abandonou com raiva e força o estado morto e incorporou vida. Aquilo que parecia errado, suspeito, foi nomeado, entendido. Não era mais um corpo dócil, indiferente e desencarnado que ditava o movimento. Corpos sensíveis, afetivos, em pé, criaram um outro chão para se pisar. Um povo se descobriu potência – A Rebelião das Crianças! Essa abertura do corpo vivo, tão natural às crianças que
brincam, foi uma retomada do sentido de abertura enquanto sentido da vida mesma. Parece um contrasenso os estudantes ocuparem o espaço que já estavam ocupando, assim como parece um contrasenso crianças precisarem abrir seus corpos, que já são abertos, para habitálos. Esse aparente absurdo é a pele se abrindo pro outro e pra si mesmo, a pele do corpo, da escola, do mundo. Como voltar para casa depois do mundo tornar-se casa? Como voltar para a escola depois da pele ter se tornado escola? Pelecasaescolamundo. Tem coisas irreversíveis, que abrem possíveis tão profundos, que forçam perguntas tão bonitas, que não são silenciadas nem pelas máquinas de gás de pimenta. Enquanto bombas são lançadas, o corpopotência se faz com água fervente e macarrão, amigos que se esquentam no frio, balanços em árvores, conversas sobre tudo que até ontem não se podia ter, uma proliferação de afetos que cuidam publicamente de si, do outro e de uma dor que é de todos nós.
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Como diz o filósofo português José Gil:
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Eis o que permite essencialmente a abertura do corpo no corpo consciência. A consciência abrindo o corpo inteiro ao mundo: nessa percepção em que todo corpo vê, não é a consciência pura (intencional) que visa as coisas, mas, literalmente, não metaforicamente, o corpo fechado que se abre através da pele. O corpo transforma-se num único órgão perceptivo, como dissemos: não à maneira de um órgão sensorial, mas como corpo hipersensível às variações de forças, ao seu tipo, à sua intensidade, às suas mais finas texturas. Corpo particularmente sensível às vibrações e aos ritmos dos outros corpos”. Para o filósofo, “consciência do corpo significa assim uma espécie de avesso da intencionalidade. Por exemplo, não se tem consciência do corpo como se a tem de um objeto percepcionado. Aqui, toda consciência não é “consciência de”, o objeto não surge em carne e osso diante do sujeito; pelo contrário, a consciência do corpo é antes de mais nada impregnação da consciência pelo corpo. (...) É preciso definir a consciência do corpo não à maneira da fenomenologia (mesmo de uma fenomenologia do corpo como a de MerleauPonty), não como o que visa o sentido do objeto na percepção, por exemplo, mas como uma instância de recepção de forças do mundo graças ao corpo; e, assim, uma instância de devir as formas, as intensidades e o sentido do mundo.
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Gil, José. Abrir o corpo. Artigo publicado no catálogo da exposição: Lygia Clark da obra ao acontecimento. Somos o molde. A você cabe o sopro, organizada pelo Musée des BeuxArts de Nantes, França, de outubro a dezembro de 2005, e pela Pinacoteca do Estado de São Paulo, Brasil, de janeiro a março de 2006, com curadoria de Suely Rolnik e Corinne Diserens.
A psicanalista Suely Rolnik fala em saber do corpo:
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O saber do corpo é o saber das forças, nossa capacidade de decifrar os efeitos das forças do mundo vivo no corpo. (...) Ao mesmo tempo que meu corpo tem a percepção, por exemplo, visual ou auditiva, com a qual eu capto imagens e as associo com as representações que disponho na minha língua, na minha cultura, ao mesmo tempo meus olhos e ouvidos (não apenas, estou tomando-os como exemplo) são também afetados pelo mundo enquanto vivo. Não só eu percebo uma forma, mas existem efeitos das forças do mundo em meus olhos. E esse efeito das forças do mundo produz uma outra maneira de sentir e uma outra maneira de ver, mas que não é dizível, visível, não está em palavra, não está formatada em nada, mas abre uma experiência distinta da experiência que tenho formatada por um certo repertório cultural, abre uma outra maneira de ver e de sentir que eu vou chamar aqui de “emoção vital” para distinguila da “emoção psicológica”. (...) Emoção vital quer dizer, que tipo de efeito vivo o mundo está produzindo em meu corpo vivo? (...) Os efeitos do mundo como campo de forças em meu corpo, fazem com que o mundo como vivo seja uma presença viva em meu corpo, não é metáfora, é real, é uma presença viva, é um tipo de experiência que está no meu corpo, que faz parte da minha experiência subjetiva, mas não da experiência do ego e do sujeito, é a experiência de um fora do sujeito, é uma experiência que poderíamos dizer extrapessoal. (...) Esta outra maneira de sentir e de ver é o que eu chamo de experiência estética, para mim a experiência estética é essa das forças do mundo no meu corpo, de um mundo em estado virtual, não do mundo em suas formas atuais, mas um mundo que já está ai, é real, mas ainda virtual e que produz um estado de estranhamento. Então estamos todo o tempo entre o estranho e o familiar. (...) Isso que já está ai pedindo passagem convoca o desejo para dar a isso uma forma que vai transformar a cartografia do presente
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Trecho da conferência Micropolíticas del pensamiento sugerencias a quienes intentan burlar el inconsciente colonial, proferida por Suely Rolnik dentro do encontro “Descolonizar el museo”, coordenado por Paul B. Preciado de 27 a 29 de novembro de 2014 no MACBA (Museu de Arte Contemporânea de Barcelona). Para ver a conferência na íntegra: https://www.youtube.com/watch?v=V73MNOob_BU
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No dia 30 de abril, nosso encontro não aconteceu no Espaço-Dispositivo do MASP. Dois dias antes, uma manifestação unificada de estudantes se desdobrou na ocupação do Centro Paula Souza (centro estadual das escolas técnicas) por secundaristas e alunos das ETECs. Os estudantes envolvidos conosco neste projeto sugeriram que a roda acontecesse na ocupação do CPS. Convidamos a psicanalista Suely Rolnik, por sua especialidade em pensar “como o corpo acorda”. Nos sentamos entre pedaços de papel, canetas e algumas perguntas:
O que é a reorganização escolar para o corpo? O que está sob ameaça? Que afetos e vínculos vêm sendo produzidos nesse movimento? Como pensá-lo a partir do corpo? A escola pode deixar de ser o espaço disciplinador e se transformar a partir desse corpo-potência?
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O encontro, transcrito a seguir, teve a participação de dezenas de estudantes secundaristas e alunos de escolas técnicas, além de amigos, artistas, educadores. Poucos dias depois, Geraldo Alckmin, governador do Estado, ordenou que a Tropa de Choque entrasse no Centro Paula Souza. Os estudantes resistiram bravamente. O mandato de reintegração de posse acabou suspenso e o Tribunal de Justiça de São Paulo decretou ilegalidade na invasão da polícia. Assim, a ocupação durou mais alguns dias, até que, por fim, o centro foi violentamente desocupado pela polícia armada.
ESTAR VIVO Ã&#x2030; PENSAR COM O CORPO
Grupo Contrafilé
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Quando começaram as ocupações das escolas nós nos sentimos atravessados por uma força que trouxe para a superfície uma realidade que todo mundo conhece, mas todo mundo ignora e deixa acontecer, finge que não existe. Vivemos um momento político no qual nos acomodamos em pautas construídas pela mídia: em meio a uma crise terrível, nós morremos de Zika, nossos filhos nascem deformados, temos H1N1, os bancos quebram... Tudo parece terrível. Neste contexto, a ocupação das escolas trouxe para muitos uma experiência de alegria, de expressão de uma potência, uma surpresa boa, no sentido de uma renovação da política. Nesta experiência de renovação, os vínculos se traduzem na intenção de transformar a estagnação dessa sociedade que não é mais capaz de se emocionar frente às necessidades; necessidades não só pelo urgente, senão pelo futuro também, por uma construção de futuro. E para nós, que temos essa prática de produção de imagens e de espaços de autonomia, chamou a atenção como o corpo dos estudantes estava em transformação, assim como o espaço, que antes era fechado e passava a se abrir, sem líderes “regrando” como o movimento deveria acontecer ou pra onde deveria ir. E, hoje, além de estar junto com vocês, estudantes, e apoiar a ocupação das escolas, queremos pensar sobre o corpo, como era o corpo antes do projeto de reorganização das escolas pelo Estado, como esse corpo se reorganiza e como se reorganizam seus afetos nas ocupações. Queremos escutar vocês para entender que corpo era esse e que corpo é esse agora. Como um corpo rompe, por exemplo, uma relação disciplinar com a carteira escolar e se torna outro corpo, que leva a carteira, inclusive, para outro lugar?
Suely Rolnik
Eu gostaria muito de ouvir vocês sobre o que aconteceu com o corpo a partir das ocupações. Vocês sentem mudanças? É possível colocar essas mudanças em palavras? O legal é tentar chegar perto do que aconteceu com cada um nessa experiência e pensar o que mudou na sensação de estar habitando esse corpo, de estar encarnado nesse corpo. Primeiro porque, pra nós, é o maior tesão poder ouvir e compartilhar essa experiência e depois porque, juntos, a gente pode ir encontrando as palavras. E quando chegamos na palavra isso nos ajuda a descrever melhor o que está acontecendo.
Estudante
Estudante
Aquela comodidade de ficar só na sala de aula vendo tudo acontecer, ver a escola, o estudo desmoronando, eles dando privilégio pra outras coisas, vendo o que é nosso fechando e a gente lá sentado sem fazer nada, acho que isso revolta. Agora tenho sede, quero justiça. Estávamos acomodados, não fazíamos nada pra mudar, não nos movíamos, digo por mim, onde eu moro nunca teve isso, da gente lutar pelo que é nosso, esta foi a primeira vez.
A partir do momento que vamos para uma ocupação, a gente passa a não estar só na sala de aula, naquele quadrado fazendo sempre as mesmas coisas, sem aprender quase nada, sem saber as matérias de vestibular, ENEM ou qualquer outro exame que a gente for prestar para entrar em uma universidade pública que, na verdade, deveria ser nossa, mas não é, porque a maioria não passa, por não ter condições dentro da própria escola. A escola é precária, estamos lutando pela merenda, tem dia que não tem água ou quando chove tem goteira. E, a partir do momento em que a gente está aqui, passamos a enxergar realmente o que é o movimento escolar, o que é ser estudante de escola pública. E querendo ou não, estamos começando a ganhar espaço, a gente tem que continuar lutando pelo que é nosso, eu quero, sim, entrar na USP, eu vou conseguir um espaço que é meu e eu vou lutar por isso até o fim.
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Grupo Contrafilé
Ela falou do movimento do corpo, que estava parado, vendo um monte de coisas acontecendo, meio que entre aspas, sem fazer nada e, de repente, fala: “Não!, pera aí”. E começa a se movimentar. Tem a ver com as cadeiras andantes, né? Vocês fizeram as cadeiras andarem, as salas de aula andarem! Essa cadeira que está andando tem a ver com esse corpo que está andando, agora meu corpo anda, meu corpo não vai ficar parado. E não existe mais a dúvida se o espaço é ou não é seu, você fala não, pera aí, é meu sim, e isso tem a ver com habitar o corpo, você se apossar do seu corpo, não é só do espaço externo, é do espaço interno também, eu vou passar na USP sim, esse corpo é meu, eu sou eu!
Suely Rolnik
Dá a impressão que esse corpo, antes das ocupações, é quase um corpo que não está vivo, como se fosse um morto vivo, um zumbi, inerte, só seguindo o que mandam. De repente, parece que o corpo acorda, tá vivo e toma a vida nas mãos. E se move, daí as cadeiras se movem, daí você passa a ter a sensação de que teu corpo existe, de que esse espaço é teu e isso mexe com muita coisa da história do Brasil, porque o espaço não era teu, não é verdade? E não podia se mover. O que eu acho lindo é que isso mexe também em toda uma tradição parada.
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Estudante
Eu queria explicar um pouco por que a gente se enquadrava no “padrão zumbi” e o que fez a gente se mover. Como você disse, acho que tradição é uma das coisas que faz a gente ficar muito estagnado, na carteira, assistindo a aula e, para mim, a palavra que definia os estudantes é submissão. A educação não é de liberdade, de construir pessoas, pensamentos críticos pra que esses possam voar livres. Ela sempre foi dominadora e padronizada. Ela produz zumbis em massa, como no videoclipe do Pink Floyd. Somos produzidos em série, o professor é o centro, o medo, diretor, então, coordenador, nem se fala! E, a partir do momento em que no Ensino Médio temos pelo menos um professor bom, de História, de Filosofia, aliás aulas essas que são muito poucas comparadas a Matemática – temos uma aula de Filosofia, uma aula de Sociologia por semana e o material é pouquíssimo –, e este nos instiga a procurar uma educação que liberta, a gente começa a pensar com a própria cabeça, aí esse zumbi se dá conta do tanto de coisa que tá acontecendo em volta e começamos a nos levantar, um por um... Então, é uma questão de tempo e de esforço pra um vivo conseguir transformar os outros zumbis em vivos e assim todo mundo se unir e fazer esse movimento. E isso causa medo, tanto que a polícia, na quinta-feira, quando ocupamos aqui, ela não teve ordem pra jogar bomba de gás e mesmo assim jogou, porque eles se assustaram quando começamos a pular a grade. A partir do momento em que começamos a nos libertar, a sair da coleira, começam as represálias, o que retarda um pouco mais o movimento, mas agora que a gente já tem uma quantidade boa de zumbis acordados, de vivos, é um “Apocalipse Zumbi ao contrário”, a gente começa a viver e é impossível parar.
Estudante
E o diretor dessa série, o “Apocalipse Zumbi”, quando o zumbi é o morto-vivo e não Zumbi dos quilombos, é a alienação.
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No final de 2012, o oficialíssimo Center for Disease Control norte- americano distribuiu, para variar um pouco, uma história em quadrinhos. Seu título: Preparedness IOI: Zombie apocalypse. A ideia é simples: a população deve estar pronta para qualquer eventualidade, uma catástrofe nuclear ou natural, uma avaria generalizada do sistema ou uma insurreição. O documento terminava assim: ‘Se vocês estão preparados para um apocalipse zumbi, é porque estão prontos para qualquer situação de emergência.’ A figura do zumbi provém da cultura vodu haitiana. No cinema norte-americano, as massas revoltadas de zumbis servem cronicamente de alegoria à ameaça de uma insurreição generalizada do proletariado negro. Portanto, é até mesmo para isso que é preciso estar preparado. Agora que já não é mais possível apontar a ameaça soviética para garantir a coesão psicótica dos cidadãos, tudo serve para manter a população pronta para se defender, isto é, para defender o sistema. Manter um terror sem fim para prevenir um fim aterrador. Toda a falsa consciência ocidental está reunida nessa história em quadrinhos oficial. É evidente que os verdadeiros mortos-vivos são os pequenos burgueses dos suburbs norte-americanos. É evidente que a tola preocupação pela sobrevivência, a angústia econômica de tudo faltar, o sentimento de uma forma de vida rigorosamente insustentável, não é o que virá após a catástrofe, mas o que anima, aqui e agora, a desesperada struggle for life de cada indivíduo no regime neoliberal. Não é a vida declinante que é ameaçadora, mas a que já está aqui, cotidianamente.
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Comitê Invisível. Aos Nossos Amigos: Crise e Insurreição. São Paulo, N-1, 2016, p. 29-31
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Estudante
Eu vejo pessoas que estudam 14, 17 horas por dia para passar em Medicina. Gente, calma, eu já tenho um ensino, por que eu tenho que estudar 14 horas por dia pra passar em uma faculdade pública? Isso não é certo.
Estudante
Não existiria vestibular se a universidade realmente fosse de todo mundo. Por que excluir pessoas, por que essa peneira? Se todo mundo tem direito a uma educação de qualidade, a um ensino superior bacana? Desde que nascemos, somos excluídos. Então, se sou um adolescente pobre, que não tenho tempo de ir pra escola porque tenho que trabalhar desde cedo, se sofro abusos em casa, quando vou pra escola não consigo socializar direito... Pra gente parece até irreal, mas tem criança de periferia que vai pra escola pela merenda. Quando esse adolescente tiver 16 anos, ele vai ter 14 horas pra estudar? Quando o negro vai ser emancipado, quando o pobre vai conseguir sair da favela? É muito difícil, muito difícil, porque o sistema faz com que as pessoas virem zumbis porque elas estão cansadas demais trabalhando o tempo todo.
Estudante 60
O governo quer formar pessoas burras. Pessoas que veem o que está acontecendo e simplesmente não sabem questionar por que tá acontecendo. Então, como elas não têm argumento pra questionar, elas simplesmente ficam quietas.
Suely Rolnik
Eu não acho que a palavra é burro. 90% das pessoas que estão na universidade, inclusive professores, eu sou professora, não são burras, mas são zumbis. Então, a inteligência delas não serve pra nada. Serve pra se virar como zumbi e continuar como zumbi. Eu acho que tem a ver com o que vocês estão falando de que quando passamos a ficar vivos, começamos a perceber no próprio corpo as coisas que estamos vivendo. Vocês estão percebendo no corpo: como vou trabalhar e estudar 14 horas e etc.? E isso é pensar, porque a gente pode ser super inteligente, mas se a gente não está conectado e se a gente não pensa a partir do que o corpo está apontando, a gente continua zumbi.
Estudante
É isso que está acontecendo. Estava todo mundo dormindo e agora que a gente acordou, tá todo mundo estranhando: por que eles estão tendo essa reação? Vai pra escola e estuda, senta lá! Faça isso que não vai dar problema.
Estudante
Eu morava na periferia durante meu 3º ano de Ensino Médio no Fernão Dias. Eu estudava de manhã, trabalhava a tarde. Repeti o 3º ano. Eu era assistente administrativo em uma assessoria de cobrança e tinha que estudar a noite porque sonhava em estudar na USP, em fazer uma universidade pública, que eu acho que é boa. E onde eu arrumava esse tempo? De manhã eu estava morto, de tarde eu ia trabalhar morto, porque era uma rotina muito pesada. E quando eu me divertia? Vamos pra escola, ela é precarizada, no caminho, o buzão é precarizado, aí vamos sair, sofremos racismo, se não tem racismo, sofremos com homofobia, LGBTfobia. Isso vai minando, vai te minando e temos que extravasar, temos que tirar isso da gente, temos que falar não, isso basta, chega, chega de precarização na escola, chega de racismo, chega de elitismo, chega! E a partir do momento em que duas pessoas se levantam, arrastam o bonde! Vai todo mundo junto.
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Estudante
Suely Rolnik
Porque, quem é que não prefere estar vivo? Na hora que vê um, dois, três, você tem força pra ir.
Vocês falaram que na hora que começa a contaminação e faz a tribo, o medo fica menor. E o medo, ele é tóxico, porque com o medo a gente paralisa, pra se proteger, né?
Suely Rolnik
As mães, mais do que todos, têm medo: não, você não vai, vai levar um tiro de borracha, você é menor de idade. Eu falo, se eu não for, quem vai por mim? Mas é muito medo, o Brasil é um país violento, as autoridades são violentas. E quem nos defende? Somos nós por nós.
Eu sou lá da UNESP, faço uma universidade que fala de corpo, que é de teatro, mas a gente não faz teatro, não faz política, a gente faz um corpo que é totalmente afastado dessas questões de lutar por uma universidade. E o quanto também isso não é uma alienação?
Estudante
Suely Rolnik Estudante Tudo que acontece está no nosso corpo, nosso corpo é que sabe.
O que vocês estão falando, que faz muito sentido pra mim, é que somos todos zumbis. Agora, o zumbi de classe mais favorecida é um zumbi instalado nesse lugar, como se existisse essa ficção de inferior. E o que eu vejo que está acontecendo, é que vocês saíram desse lugar, o corpo se deslocou desse lugar.
Suely Rolnik
Eu acredito que toda luta é válida, a luta pelas escolas públicas, a luta dos negros... O Brasil é racista, mas as pessoas não têm coragem de falar eu sou racista, elas colocam a culpa nos outros. É algo oculto.
Em muitas escolas, apesar de tudo, o aluno acredita que a universidade pública não é dele, que ele tem que pagar uma particular. O que eu mais escuto das pessoas com quem eu estudei é eu tenho que trabalhar pra pagar a minha faculdade. Faculdade é pra branco, pra classe média alta.
Estudante
André Mesquita (pesquisador)
A partir do corpo, acho forte pensar, por exemplo, na ditadura militar, quando os artistas e movimentos sociais iam pra rua num terrorismo de Estado, a única coisa que eles tinham era o próprio corpo, colocar o corpo na linha de frente, se arriscar. Eu vejo isso agora com vocês. A única estratégia para confrontar a polícia e ocupar um espaço é o próprio corpo. E aí você descobre que o seu corpo pode fazer muito mais do que você imagina. Fazer uma ação direta nada mais é que dar corpo ao sentimento e isso tem uma transformação brutal, é por isso que o corpo já não é mais aquele.
Estudante
E eu fico pensando, quem vai querer ser professor daqui pra frente? Ser professor não é um dom, você se constrói. Acho muito importante como essas relações se modificam e como a gente está preparando um baita salto de qualidade em todos os sentidos.
Suely Rolnik
Porque, o que a gente faz na escola não é pensar. O pensamento está conseguindo cumprir sua função? De dar nome ao que está acontecendo, de agir junto, de transformar? Muito mais no movimento das ocupações do que na escola, né? Que seria o lugar de praticar o pensamento.
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Estudante
A nossa escola é considerada a pior da região e a gente enxerga diferente. Talvez o cara que tá atrapalhando a aula, talvez ele não se sinta representado, não se identifica com o ensino, porque o ensino não é dos alunos, o ensino é do diretor, é do professor, é das pessoas que reprimem mesmo.
Estudante
Eu me senti realmente na condição zumbi, é a primeira vez que eu participo do movimento e é muito forte, passar por essas ruas cheias e ver trabalhadores batendo palma, um monte de taxistas, o buzão buzinando. A gente vê que não é só a população jovem que tá abraçando essa causa e que isso não engloba só a educação.
Suely Rolnik
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Porque vocês estão mexendo no estado zumbi geral. Ao conseguir mexer na escola, vai contaminando né? Uma coisa que me deixava muito angustiada e triste é que, desde a ditadura, o pensamento estava paralisado. Estávamos falando do medo. O medo acaba paralisando. O que eu senti já em 2013, agora muito mais intenso, com o movimento nas escolas, é que está voltando o pensamento no Brasil. Pensamento nesse sentido, de acordar, ver o que que o corpo está indicando, pensar, se juntar, agir, isso estava paralisado desde a ditadura. E o movimento de vocês deixa a gente feliz, querendo se meter, estar junto, porque é o que eu sinto, o pensamento está voltando. A gente está saindo de uma patologia, de uma doença muito grave que a ditadura deixou em todo mundo. É legal vocês saberem o quanto a gente é grato por tudo isso que está acontecendo.
Estudante
Eu fico muito feliz de ver a gente acordando. Uns começam a vir por ôba ôba, mas aos poucos eles vão também tomando conta do que está acontecendo. A gente veio cantando o caminho todo...
Estudante
Estudante
É um formigueiro! E mexeram...
Pisa ligeiro, pisa ligeiro, quem não pode com a formiga, não atiça o formigueiro.
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por Carla Prandini
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Ocupamos nossas escolas
Lembramos e revivemos resistência
Tomamos às mãos nossa história
De Zumbi e de Dandara
A gente não vai aceitar
São mais de 200 escolas ocupadas
Essa bagunçação na nossa educação
E como grandes quilombos
Depois de tudo que nós vivemos
Ensinamos uma lição a esse sistema
Ainda querem tirar nossos direitos
Casa Grande que trema
É uma falta de respeito
Porque a escola que parecia uma prisão
E não venham dizer
Durante a ocupação
que é pelo bem do nosso povo
Ganhou cor, papel higiênico e até horta
Porque não é!
Hoje juntos aprendemos
O estudante não é bobo
O que realmente importa
A gente sabe que nossos direitos
Nós tomamos as ruas
Nunca foram concedidos por bondade
E vamos até a vitória
Foram é arrancados
Porque em toda história
Conquistados com muita luta e suor
Venceram aqueles que tiveram coragem
Daqueles que viveram antes de nós
de se levantar e lutar
E digo mais
Digo aos meus companheiros:
Nossa escola nunca esteve melhor
Não se preocupem
Porque são infinitos os talentos que temos
Quando nos chamam de vagabundos
Sempre menosprezados
Enquanto eles ficam lá falando
nas escolas do governo
Nós estamos aqui
Hoje juntos aprendemos
Mudando o mundo
Por que ocupamos? por estudantes de luta
Meninx, não chore! por Sato do Brasil
Ocupamos pra produzir o pão da vida.
Meninx, não chore!
Ocupamos para matar a fome
Meninx, cresça e apareça!
de milhões de bocas famintas.
Meninx, seja adultx!
Ocupamos para semear vida
Não, senhores!
nos quatro cantos da nação.
Serei meninx a correr atrás da bola,
Ocupamos para produzir existência.
meus senhores
Ocupamos para libertarmos
Serei meninx a correr atrás de ideias,
a mãe de nossa gente.
meus senhores
Das cercas da morte,
Serei meninx a correr atrás de sonhos,
da morte do capital.
meus senhores
Ocupamos a escola para tirar
E mais, meus senhores
o conhecimento das grades.
Serei meninx para errar
Ocupamos a educação
quando poderia ter acertado,
para sair da escravidão.
Serei meninx para gritar
Ocupamos a sabedoria
quando poderia escutar,
para tirar as grades da ignorância.
Serei meninx para dar uma porrada
Se voltarem a perguntar:
quando poderia ter soprado,
por que ocupamos?
Serei meninx para silenciar
Em luta, ocupamos
quando poderia sussurrar
para desarmar os fuzis da morte.
Por isso peço a mim mesmx, meus senhores
Ocupamos para destruir
Quando for adultx crescidx
o capital da morte.
que não erra, que não grita
Enfim, ocupamos simplesmente
que não dá porrada, que não silencia
em nome da vida, da resistência,
Que essx adultx crescidx não chore
existência, da LUTA!
quando x meninx que vocês,
Porque do Estado,
Meus senhores, chamam de adultx
não nascem sementes...
Tenha crescido quando ainda meninx.
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No dia 7 de maio, em virtude da violenta desocupação do Centro Paula Souza, fizemos o encontro na ocupação da Diretoria de Ensino CentroOeste, onde estavam muitos dos estudantes que estiveram no CPS. Convidamos nossos amigos Geandre Tomazoni e Rodrigo Araujo, do coletivo Bijari, para colaborarem conosco em uma oficina de produção de cartazes e dizeres que pudessem ser proliferados nas ocupações e pela cidade. Entre amigos, papéis, sprays e estiletes, continuamos conversando sobre as ocupações a partir do corpo, do corpo vivo.
NÃO É SÓ PELA MERENDA!
Grupo Contrafilé
Por que vocês estão ocupando agora? O que motiva ocupar?
Igor Miranda (estudante)
A gente fala da merenda, mas o que eu vejo é uma falta muito maior. Para pra pensar, a gente se juntou com as Etecs, mais de quatro mil estudantes, para lutar contra a precarização da educação. É algo tão amplo que eles querem que a gente aponte para uma ponta ou pra outra. Não dá pra escolher uma coisa ou outra, são direitos, sabe? Direitos que não estão sendo assegurados, então tem que ter uma intervenção dos estudantes, esse é o ponto, tanto que o movimento chega no Rio de Janeiro, no Pará, no Paraguai... Goiás... É muito além da ideia só da merenda. É muito mais do que falar não para as coisas. É o movimento de afrontar algo, por mais que pareça ser disperso.
Doug (estudante)
Eu sou do Guaraci Silveira, em Pinheiros, e lá o curso técnico de edificações é referência na cidade de São Paulo. A gente sabe que nos cursos técnicos falta material. Os alunos de eletrônica tiram do bolso para comprar pecinhas e montar as coisas. A gente percebe que esses problemas se repetem e ainda mais graves nas escolas mais distantes do centro.
Jéssica Lopes (estudante)
Eu faço Etec na periferia e estudo no Fernão de manhã. A realidade das duas escolas é bem parecida. Como o Doug falou, os alunos têm que tirar do bolso. Eu faço informática, temos um laboratório com todos os computadores, nenhum funciona. E a questão da merenda. No técnico noturno, são adultos que estudam, a maioria. Eles chegam cansados e na hora do intervalo eles recebem uma bolacha seca. A única coisa que eu recebo é bomba de gás da PM. No Fernão, comem os 50 primeiros, se todo mundo da escola resolver comer, não tem comida.
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Grupo Contrafilé
Mas como é, você chega, faz a fila, quando acabou, acabou?
Jéssica Lopes
Sim, e o lanche mais barato é R$ 2,50. Eu sou de periferia, minha mãe é assalariada doméstica, todos os dias ela vai me dar R$ 2,50? O Estado deveria nos proporcionar isso e ele não nos proporciona. Estudei minha vida inteira em escola de periferia, agora que eu vim estudar no Fernão. Os professores chegam, escrevem na lousa e sentam. Não conseguimos acompanhar. O 1º ano do Ensino Médio foi o que mais me prejudicou porque eu saí com o caderno completamente vazio, eu não aprendi nada, nada, nada, perdi um ano da minha vida.
Grupo Contrafilé
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Vocês estão falando da merenda, uma boa comida, uma boa matéria, um bom professor, mas tem uma dimensão também imaterial, do invisível, pela qual vocês estão lutando, não tem?
Jéssica Lopes
Acredito que pra elite seja uma coisa bem básica, educação, professor e comida, mas que pra gente faz total diferença, porque sem comida não dá nem pra ler. E sem professor, a gente tem umas três aulas vagas por dia, isso faz diferença, porque a gente precisa passar no vestibular. Aparenta ser uma coisa bem visível... “Ah, esse bando de vagabundos, estão lutando pelo quê? Educação? Mas o que adianta ter uma escola e você não ter estrutura? Não ter professor? Não ter comida? É uma coisa bem além do que a gente vê. E o problema é sempre o aluno, nunca é a gestão da escola. Eu descobri na semana passada que o problema nunca fui eu, é o jeito que as escolas nos ensinam, porque desde pequeno a gente aprende a obedecer, nunca aprendemos a expor ideias. Agora, depois do período de ocupações, a gente senta e debate o que é o amor, o que é o feminismo, eu nunca aprendi isso.... Eu nunca me encaixei na Matemática e na Química, mas eu me encaixo na Sociologia e na Filosofia. E é isso que eles não percebem, temos que nos encaixar em tudo pra seguir a massa, ser bom em tudo pra ser alguém na vida.
Clara A. Lucena (estudante) 73
Eu acredito que as escolas não deveriam ter gestão e que os alunos deveriam escolher as suas matérias. E é claro que temos que aprender Matemática, né?
Igor Miranda
Não deveria existir uma sala de 40 alunos, o máximo deveria ser 25, e que a gente conversasse, que a gestão não incentivasse os amigos a odiarem uns aos outros, que não existisse machismo nas escolas, homofobia. Que os professores nos incentivassem e não nos alienassem, falando que temos que fazer isso e fazer aquilo. Que eles abrissem espaço, falassem: a gente tem essas ideias, por que você concorda, por que discorda, quais são as suas ideias? Pra mim, essa seria a melhor escola.
Ícaro Pio (estudante)
Como se cria um bom aluno? Dando atenção, fazendo o cara entender. Como um professor vai dar atenção pra 40? Então, eles já fazem uma sala de aula pra ter 5% de aluno exemplar, 20% de aluno mediano e 15% de escória . Porque o mercado não suporta 40 bons alunos.
Igor Miranda
E tudo isso gira em torno do mercado de trabalho, do capital. Sempre, sempre, sempre. Você cresce aprendendo a se vestir direito, a falar direito, se você usar uma roupa mais curta você é errada, o mercado de trabalho não vai te aceitar assim. Você tem que entrar naquele padrão, tem que esconder seus piercings, tem que esconder o seu cabelo, tem que esconder a sua essência.
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Doug
O problema da escola não é não ter lugar pro aluno burro, pro aluno preguiçoso, é justamente ter lugar pra esse aluno. Essa hierarquia está instalada em todo o sistema.
Grupo Contrafilé
Tem a ver com o que o Ícaro estava falando, afinal o que é um bom aluno?
Ícaro Pio
Eu sempre estudei e tirei notas boas, só que com o tempo eu comecei a ver que eu não estava aprendendo, só estava me adequando a um sistema. E no fim das contas, quando fazemos um plano para ocupar a escola ou responder à polícia, o que, na minha opinião, é uma quebra desse sistema, uma quebra dessa hierarquia, dessa imposição de como usar esse espaço, quando quebramos esse sistema de alguma forma, começamos a enxergar ele melhor. Por exemplo, meus pais sempre deixaram claro pra mim, por eu ser negro, que racismo existe, ao contrário de muitas pessoas que dizem que não existe. Mas, para mim, o racismo existiria quando alguém me chamasse de macaco, de carvão, de ladrão, e hoje eu vejo que não, que o racismo tá muito institucionalizado, tá nas menores coisas. Acho que a partir do momento em que a gente começa a quebrar esses paradigmas, a gente começa a enxergar o mundo de outra forma. O mundo vira outra coisa.
Grupo Contrafilé
Você começou a entender melhor o seu corpo com as ocupações?
Ícaro Pio
Depois das ocupações eu pintei meu cabelo. Já existe uma resistência com relação ao cabelo crespo e ainda pintar o cabelo, sabe?
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Jéssica Lopes
Eu tinha um plano antes das ocupações, que com 18 anos eu ia fazer cirurgia plástica no nariz. Depois das ocupações eu até furei o nariz. Pra mim foi o maior tabu que eu já quebrei na minha vida, porque eu cresci com as pessoas odiando o meu nariz, dizendo que era a pior coisa que eu tinha no meu corpo e pra mim, furar o meu nariz... Desculpa gente, eu não consigo nem falar... Foi a coisa que mais me impulsionou a ser eu. Não é vitimismo, sabe? A minha mãe fez até a 3ª série e tinha que ajudar os pais porque não tinha dinheiro em casa. Cresci com a ideia de que eu tinha que ganhar dinheiro, tirar ela da favela, esse era o meu plano. E, como eu já disse, eu nunca, nunca consegui me encaixar na escola. Na 6ª série eu cantei um funk e a professora fez um boletim de ocorrência contra mim e fui parar na Febem. Me disseram que eu era uma puta, que eu ficaria grávida com 13 anos, falaram coisas horríveis, minha mãe chorava, eu tinha 12 anos. A periferia tem essa ideia conservadora de que temos que nos encaixar em alguma coisa. Eu fui pra 7ª série com o pensamento de que eu tinha que estudar, mas mesmo assim eu não conseguia, tirava duas vermelhas e o resto azul, uma vermelha e o resto azul.
Grupo Contrafilé
Você tinha dito que para as elites comida até pode parecer sem importância... E realmente, não é só comida, é uma comida boa, de qualidade. Mas isso que você está falando também é motivo para você estar aqui. Você está aqui também porque não pode acontecer isso com uma criança de 12 anos.
Jéssica Lopes
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Uma professora minha de Filosofia falou: gente, vocês sabiam que vai ter uma reorganização e que os alunos vão ter que estudar a 1,5 quilômetros de casa? Fiquei desesperada, tinha acabado de sair de uma escola que era do lado da minha casa, atrás de um ensino melhor. Foi quando começaram as articulações. E o período de ocupação, pra mim, foi a maior coisa da minha vida, aprendi a me politizar, conversei com os meus colegas, aprendi a aceitar as ideias deles, a me sentir bonita... E ainda estou aprendendo. Com as pessoas das ocupações eu consigo falar o que eu quero, consigo ser o que eu quero, usar o que eu quero. E acho que isso é o que me motiva mais. E ver a resistência que essa galera tem, a coragem.
Grupo Contrafilé
Isso de aprender que é bonita é muito profundo.
Camila Rodrigues (estudante)
Esses dias um amigo chegou pra mim e falou: você não é só bonita por fora, você é bonita por dentro. Porque você está numa ocupação, está lutando por seus direitos. Eu falo muito na minha casa de você, quando você foi detida, dançou na frente do Choque. Ficaram todos impressionados. Nossa, ela dançou na frente da polícia!
Jéssica Lopes 77
A questão da beleza pra mim é muito difícil. Um dia antes da ocupação do Fernão eu estava toda maquiada, com o cabelo pranchado, me sentindo super bonita. No outro dia eu acordei toda bagunçada e o JP falou: você é muito mais bonita assim. Aquilo me despertou, mas depois eu morri de novo. Pra me sentir bonita eu preciso estar maquiada, com o cabelo liso. Eu não estaria nem no começo dessa desconstrução se não participasse das ocupações, se não tivesse essa galera do meu lado.
Adrielle Melges (estudante)
Sou secundarista de Campinas e ocupei a minha escola também. Eu tinha bastante esse clichê de ter que estar no padrão que a sociedade impõe, até porque cresci ouvindo isso, fui criada por meus padrinhos, meu pai me rejeitou porque eu nasci menina. Fiz academia desesperadamente por anos, fiz vários rolês pra emagrecer, fiquei vários dias sem comer. E o que mudou mesmo meu pensamento foi a “ocupa”, fiquei com o pensamento mais politizado, comecei a entender que o sistema capitalista nos impõe ser aquilo porque são os padrões que as empresas de beleza colocam, aquilo é o perfeito, meninas magras, brancas... Na ocupação percebemos que não tem como excluir a política, porque a gente tá aqui exatamente por causa da conjuntura política que o país está hoje. E eu tenho que me aceitar, eu sou dona do meu corpo e eu tenho que me sentir bem. Eu sempre quis raspar o meu cabelo e, mesmo tendo o cabelo muito curto, minha família desde pequena me chamava de sapatão. E eu me libertei. Quando me perguntam por que você raspou a cabeça, eu falo que deixei uma Adrielle pra trás e estou construindo uma nova.
Giovanna Milhã (estudante)
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Eu tenho 23 anos, já sou da universidade, mas me identifico muito com o que elas falaram sobre padrão de beleza. Estava pensando sobre a realidade da mulher negra, que é objetificada, hiperssexualizada, mas, ao mesmo tempo, extremamente negada. O cabelo da mulher negra nunca é o cabelo ideal. Mesmo hoje em dia, em que há essa coisa de “ah, aceite os seus cachos”, vemos que é um novo nicho do mercado. O movimento negro, por exemplo, cresceu muito, se tornou mais forte e o capitalismo percebe que, se existe essa pressão, deve dar uma resposta, mas que não seja uma saída por fora do capitalismo. A gente vive numa sociedade com ideologias patriarcais e racistas e não temos direito a exercer nossa subjetividade de forma profunda, a exercer nosso corpo. E eu acho que a gente tem que ter muita tranquilidade para pensar que tem muitas pressões pra que a gente se sinta uma bosta. Exemplos como as “ocupas” são fundamentais para perceber que, coletivamente, a gente faz mudanças que nos ajudam a romper com essas coisas mais sutis, de não gostar do próprio cabelo, da própria barriga o que, na verdade, é muito doloroso... São pressões ligadas à nossa vida e a gente combate quando se organiza.
Igor Miranda
A gente tem o direito de ter nosso cabelo, mas não é só isso, temos o direito de não ter um emprego terceirizado de merda, ter melhores condições de estudo, cotas.
Grupo Contrafilé
Fabiana Prado (artista e educadora):
Direito de existir, de não ser exterminado fisicamente. Que não é só resistir, né? É direito de existir!
Pra gente também parece que, pela primeira vez, a escola tá fazendo sentido. Escola pra quê? Quando a gente vai tentar responder essa pergunta no cotidiano da escola mesmo, essa estrutura de poder tá o tempo inteiro sendo ativada, é ela que rege. E pela primeira vez a gente tá podendo fazer isso, sentar em roda e falar sobre a vida, isso é educação. E a escola poderia ser esse espaço desde sempre. Por que ela deixou de ser, e pra quê, quem é o sujeito da educação? Muitas vezes a gente acha que essa opressão que vocês sentem é por se sentirem nesse lugar do objeto e não do sujeito, alguma coisa atua sobre vocês, uma regra, um poder, uma hierarquia, o fato de estarem enfileirados, o gesto que pedem do nosso corpo na escola é isso, forma de exercer poder. Fila, horário, grade. Por que não ter esse formato aqui?
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Guilherme Ponce (pesquisador)
Podem ter tido milhares de manifestações sociais no mundo até hoje, mas da forma que vocês fazem, do jeito, no tempo, no momento... É singular, de um jeito que nunca existiu antes. Então a produção, o resultado disso também é singular. Vocês acabam criando coisas que vocês mal esperavam, mal imaginavam, novas realidades, inclusive a estética, vocês estão produzindo também novos tipos de beleza, novos tipos de sensualidade, de interação e de força. Acho que até nisso essas ocupações produzem o novo.
Grupo Contrafilé
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O que eu acho muito novo é essas questões estarem entrando na escola. Essa conversa, por exemplo, ah eu não me sinto bonita, porque a mulher negra, o homem negro, o índio, o branco, quem sou eu, meu corpo, eu pensava em fazer uma cirurgia, enfim, é um exemplo de um tipo de conversa educativa. E a própria conexão entre as pessoas. A história de cada um e essa conexão é o lugar onde está a potência da vida e da própria educação. E as escolas geralmente não consideram isso como matéria prima. A escola apaga as diferenças em função de um modelo único. Todo mundo tem que chegar a esse patamar de conhecimento, a esse patamar de estética. Mas por que que este patamar não é um ponto de partida? Todo mundo é homogeneizado em prol de uma suposta igualdade que tem que ser alcançada.
Xablau (estudante)
Na escola, o cara que tá ao seu lado não é seu colega, é seu concorrente, então você tem que se sair melhor que ele. Acabamos não escutando a opinião dele. E na ocupação trabalhamos todo mundo junto. Mas se conversamos com qualquer pessoa na rua, ah qual sua meta de vida? Ter um emprego bom, ter uma casa, um carro, uma família. Ninguém tem um desejo diferente. Tem que estudar pra ser um patrão, até chegar no topo, para daí ser feliz.
Grupo Contrafilé
Xablau
A gente tá falando muito dessa coisa da beleza, que a princípio podemos falar “ah, mas isso não tem nada a ver com política”, mas tem tudo a ver, é politizar o corpo, politizar a vida. Uma capacidade que vocês tiveram nesse movimento foi de chamar as pessoas, quase como se vocês estivessem tocando um berrante pra tribo de vocês na cidade. Vocês abriram a escola pra nós. Então começaram a vir pessoas, adultos, que também estão em outro padrão, não estão nesse padrãozinho de beleza.
A gente tá mostrando muita coisa. Não existe só um jeito, existem vários. Aqui a gente tá mostrando que todo mundo é igual, todo mundo pode falar, expor sua opinião, não é um que toma decisão, é um conjunto.
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OCUPO pra ouvir e ser ouvido ver e ser visto
OCUPO Para afrontar a ausĂŞncia de direitos
OCUPO Pela comida Digna fresca e colorida
OCUPO O amor eo feminismo
OCUPO o mundo
OCUPO minha beleza
OCUPO para cuidar de mim e dos outros
OCUPO para exercer meu corpo
OCUPO para existir
OCUPO Pela amizade Contra a concorrencia
OCUPO Para abrir a escola Pro mundo
OCUPO _______ _______ _______ _______ _______
II.Corpo<
>Escola-Casa< >Mundo
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*
As Cinco Peles, Friedensreich Hundertwasser.
Visão fractal, hologramática Não é antes-durante-depois das ocupações. Porque quando a relação com o seu próprio corpo e o corpo dos outros muda, tudo muda. Você se apossa de você mesmo. Você se conecta com as infinitas possibilidades e faz frente à despossessão. Você entende que a cidade não é prédio, asfalto e farol, mas obra, invenção. E como a maior obra humana, ela pode ser destruída, para ser reinventada. Assim como a escola. A escola é força, não carteira ou apostila. É força coletiva para pensar o mundo, para pensar-se no mundo, para duvidar ou refazer o mundo. Para destruir esse mundo no qual vivemos, se ele não está bom, se ele está sendo um mundo triste, muito triste para quase todos. Quando as cinco peles se conectam, não é mais possível voltar atrás.
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Estado: Espaรงo de desposessรฃo / valor de troca / propriedade
Lรณgica dos secundaristas: Espaรงo de acolhimento / valor de uso / pertencimento
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O SENTIDO DAS NORMAS - AS NORMAS SUFOCAM A VIDA OU ESTÃO A FAVOR DELA? Estudante Estudante ...Não pode usar sandália.
Estudante
Eles põem uns papéis lá com regras de boa convivência... não pode usar boné... ...Não pode tirar foto.
Estudante
Estudante 99
A gente pode fazer uma cartilha com as nossas regras (risos)... Pra ser um bom aluno você deve: participar da democracia na sua escola, participar, participar...
Qual é o papel das normas que os professores leem no começo do ano? Já que eles não fizeram esse ano, a gente pode fazer as nossas e ir lá colar na sala!
As ocupações contemporâneas produzem nos espaços todo um circuito de trocas que mostram que a vida poderia ser daquela forma. Mas não é que a vida poderia ser daquela forma em um tempo-espaço abstrato. Ela já está sendo daquela forma, porque existe uma retomada da conexão com o território (do próprio corpo como território, da escola como território e da cidade como território) que se faz ali. Se criam modos de ser e se relacionar que já são reais mas ao mesmo tempo parecem, em algum sentido, ficcionais. Ficcionais como “absurdos” do ponto de vista da mentalidade burocratizada, ou impossíveis. Mas não, eles estão acontecendo, porque as pessoas estão ali para evidenciar que existe uma sensibilidade coletiva que quer que aquilo aconteça.
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Tornar legível essa verdade ética se torna um ato político na medida em que o poder faz de tudo para associar o que parece impossível, ou o que está nessa liminaridade entre ser ou ainda não ser, ao inexistente. Insistir em existir é, portanto, um modo de lutar. E a re(x)istência tem a ver também com inventar estratégias para fazer circular a emer- gência de tempos e espaços da vida e para a vida, inscrevendo na imaginação coletiva aquilo que se passa em um espaço determinado. O que circula enquanto enunciação a partir da insurreição secundarista são gestos aparentemente banais, que fariam parte da vida cotidiana, se não fossem providos de algum tipo de
ruptura. Os alunos limpando (a escola), pintando a parede (da escola), cozinhando (na escola) comidas frescas (tudo porque querem, porque acreditam que isso é importante como gesto), são atos extremamente políticos em uma escola pública no Estado de São Paulo, nos dias de hoje, porque agir dessa forma, em sua simplicidade formal, não é coisa banal. Não é banal cuidar da escola com carinho. Não é banal o sentimento de amor pelo território que nos constitui e atravessa, pelas pessoas que não conhecemos, pelos espaços por onde passamos, mesmo por aqueles que conhecemos... Pelas árvores, pelos bichos... Em um governo extremamente autoritário, movido pelo ódio, que pensa a escola pública como sua propriedade (ou propriedade daqueles que querem privatizá-la) e não como direito universal, o gesto amoroso se mostra como um perigo porque inverte os sinais, deixa tudo muito claro. Deixa claro quem quer que a escola faça sentido, que valorize a qualidade das relações e da produção de conhecimento, e quem quer que ela seja mais uma máquina produtora de mercadoria - como disseram alguns estudantes: “máquina de moer sonhos”. Enquanto os meninos e meninas querem conexão com a sociedade, o Estado quer apartar, segregar e fazer acreditar que não é possível, com justificativas que vão desde o orçamento até insinuações de que os jovens são “perigosos” e por isso devem ser mantidos isolados.
“...a questão do governo só é colocada a partir de um vazio, a partir de um vazio que, com frequência, foi preciso produzir. É necessário que o poder esteja suficientemente desligado do mundo, que tenha produzido um vazio suficiente em torno do indivíduo e em torno de si próprio, que tenha produzido um espaço suficientemente desértico entre os seres para que possa, a partir daí, questionar-se sobre como agenciar todos esses elementos discordantes desligados entre si, como reunir o separado enquanto separado. O poder cria o vazio. O vazio invoca o poder. Sair do paradigma do governo é partir politicamente da hipótese inversa. Não existe vazio, tudo é habitado, nós somos, cada um de nós, o local de passagem e de articulação de uma quantidade de afetos, de linhagens, de histórias, de significações, de fluxos materiais que nos excedem. O mundo não nos rodeia, ele nos atravessa. O que nós habitamos nos habita. O que nos cerca nos constitui. Nós não nos pertencemos. Nós estamos agora e sempre disseminados por tudo aquilo a que nos ligamos. A questão não é dar forma ao vazio a partir do qual finalmente conseguiríamos agarrar tudo aquilo que nos escapa, mas de aprender a habitar melhor este que lá está - o que implica se aperceber dele, algo nada evidente para os filhos míopes da democracia. Entrever um mundo povoado não de coisas, mas de forças, não de sujeitos, mas de potências, não de corpos, mas de elos. (...)”
*
Comitê Invisível. Aos Nossos Amigos: Crise e Inssurreição. São Paulo: n-1, 2016, p. 93-94.
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O alto é o lugar de poder. A escola se torna uma escola-mirante;
Você toma o espaço para adquirir uma perspectiva daquilo que antes não tinha uma perspectiva. Mas que é uma perspectiva completamente diferente da perspectiva de controle.
Chaves livres Sato do Brasil (Jornalistas Livres)
A primeira coisa que mudou foi que os próprios alunos tinham as chaves das escolas. Eles entraram em salas que sequer sabiam que existiam. Descobriu-se coisas absurdas, mesas de pingue-pongue, livros, totalmente escondidas e não distribuídas para eles. Na escola João Kopke participei da entrega das chaves. Vi a biblioteca antes e depois. Antes eram caixas fechadas, livros jogados pelos cantos, carteiras e mesas amontoadas. Eles arrumaram gôndolas, deixaram tudo separado, criaram uma área de leitura que antes não existia. Dava para ver uma diferença entre a forma como eles montaram o espaço e a forma como ele normalmente é montado. Eles organizaram o espaço para qualquer um usar, não para uma pessoa especialista ter controle dele. Algumas escolas liberavam todas as chaves, outras não, apenas um mínimo espaço e os alunos conseguiam por outros métodos ir abrindo e ocupando. No Kopke, alguns alunos me perguntaram “quer ir em um lugar muito legal?”, pegaram as chaves e me levaram ao teto da escola, que fica no bairro da Luz, na “Cracolândia”. Foi um momento de silêncio, de contemplação, no meio de uma região complicada, que vive em litígio. “Olha, ali fica tal coisa!”, “ali fica outra”, foi muito bonito como, lá do alto, eles foram mostrando o bairro. A escola era um castelo e eles estavam na torre. Aquele espaço, que antes não era deles, nas ocupações passou a ser.
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É o “Panóptico”, conceito que o Foucault inventou no livro Vigiar e Punir, para dar conta dessas estruturas. Pan-opticom, ou seja, a capacidade de, desde um ponto de vista, você ter um controle sobre o todo. No século 19 isso vira um dispositivo de poder, inventam as prisões, os manicômios, as salas de aula, que também têm essa mesma estrutura; o foco inteiro em um professor que transforma as pessoas em uma massa indistinta. Essa massa indistinta é completamente diferente da criação de uma coletividade num espaço de suspensão;
A estratégia de reversão dos espaços e sobreposição dos espaços implica em uma estratégia de transformação da lógica do conhecimento. Cada espacialização implica em uma forma de produção de saberes distintos.
O ESPAÇO QUE É O MESMO, MAS É OUTRO
Jennifer Mendonça (Jornalistas Livres) Grupo Contrafilé Eu passei um dia inteiro numa escola do extremo Sul. A escola é bem diferente das escolas do Centro. Eu olhei praquilo e disse como é que uma criança estuda aqui? Muitas grades, uma caixa d´água com urubus em cima... e eles me dizendo: “Até os urubus têm casa e olha nossa escola como tá”. A escola tinha muito verde, um verde meio descuidado. Eles pegaram as mesas e colocaram na entrada, pegaram esses copinhos de café da sala de professores e plantaram tomates, transformaram a sala de aula em um cinema e todo mundo se juntou... foi muito bonito. Eles tinham um cardápio do que eles iam fazer de comida.
No primeiro dia em que fomos no Fernão Dias, a primeira coisa que vimos foi a estátua do bandeirante encapuzada e eles dizendo que queriam mudar o nome da escola e colocar na entrada uma nova placa.
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André Mesquita
Grupo Contrafilé
Uma imagem que me pegou foi quando a coisa estourou. Num dia tinha quatro escolas, no outro já tinha trinta e cinco. Isso é muito intrigante pra mim, é um fenômeno recente, né? De alguma maneira, algumas manifestações, alguns desejos, eles se espraiam e acho que a gente não consegue nem entender.
Na minha experiência como professora, o tempo todo há uma aflição dos professores de tentar criar regras, de que não pode estragar a carteira, que não pode mexer, esse movimento da instituição tentar preservar o espaço e os alunos irem nessa contramão o tempo todo. E, de repente, ver aquela imagem dos alunos pintando as paredes, construindo esse espaço foi muito forte, quebrou totalmente essa visão. No momento em que eles passam a ter a chave, eles passam a se sentir parte daquele espaço, eles passam a cuidar.
Ana Luisa A. Lucena (estudante)
Eu estava no Godofredo Furtado no dia em que começou o processo de ocupação e parecia que eu estava dentro de um acampamento. As pessoas que participaram criaram uma autonomia muito grande. Eu queria relacionar isso às próprias manifestações e às repressões. As pessoas não temiam mais, elas iam e sabiam que iam ter que enfrentar e não era mais um sentimento de medo.
Grupo Contrafilé 104
No Contrafilé, uma vez inventamos uma terminologia pra conseguir falar uma coisa que a gente queria falar e não encontrava palavra, que é “absurdo público”. É essa ideia de subverter pra gerar uma outra percepção de algo. Uma imagem forte que circulou é aquela da dispensa da escola com montes de enlatados e, por outro lado, o absurdo público dos estudantes, no sentido de inverter a coisa, irem recebendo todas aquelas caixas de orgânicos da feira e falando “a gente quer comer bem”.
Pedro Cesarino
Então essas coisas vão junto a uma explosão, a uma coisa mais “heterotópica”. Não tô dizendo utópica, não tô falando que é uma utopia. Eu tô falando que é uma explosão de espaços que não são exatamente subversivos, mas são espaços outros que se sobrepõem a uma espacialidade dada. A Jennifer falou da imagem de uma escola da Zona Sul encostada no limite geográfico, na mata. Essa imagem fala do problema da Ártemis, que é a divindade da fronteira que separa o interior do exterior da cidade. Quando as pessoas, os homens, os meninos entravam na adolescência, eram enviados para os muros da cidade e tinham que ficar ali no muro da cidade, protegendo a cidade, mas sem as armas todas – capacete, armadura – dos guerreiros, eles lutavam só com uma lança e com pouca roupa. E eles tinham que se virar sozinhos e caçar as feras só com uma faca ou, às vezes, sem arma nenhuma. Ou seja, eles tavam vivendo exatamente nesse ponto de reversão completa em relação à ordem militarizada do exército da cidade. Eles eram os efebos, a efebia é uma instituição na Grécia, de iniciação, de passagem, que faz essa transição entre o mundo externo, selvagem e o mundo civilizado, doméstico da cidade. É interessante ver como essa escola, mesmo que situada no espaço marginal da cidade, tem uma intromissão do espaço selvagem no próprio espaço arquitetônico. Você disse que tem o mato, imagino que seja um jardim meio indomado, mato crescendo nas quadras e que é uma coisa que carcome, que vai corroendo uma ordem decadente, uma ordem de controle que já não funciona mais, que é abandonada, desolada, tudo isso que a gente sabe. Aí você tem outra imposição de espaço que é o espaço dos meninos que começam a querer fazer uma horta com os copinhos. Ou seja, você tem uma sobreposição de espaços distintos, de três invenções, na verdade a terceira é uma invenção efetiva do espaço. Na verdade, eles tão reinventando o espaço que tá desinventado, que tá abandonado, isso é uma “heterotopia”, a criação de um espaço justaposto em cima de outro espaço, conceito do Foulcault. Outro exemplo disso é o que aconteceu quando os estudantes da escola da Praça da Luz, a João Kopke, subiram na parte de cima do prédio. Quando tomaram um espaço que era proibido pra fazer o contrário do que era a proibição. Ou seja, tomaram o espaço para adquirir uma perspectiva daquilo que antes não tinha uma perspectiva. Mas que é uma perspectiva completamente diferente da perspectiva de controle. O que é interessante nesses espaços heterotópicos é essa reversão da lógica do ponto de vista. Isso tem a ver com uma tradição velha que é o problema do ângulo de influência. Toda a noção de poder no ocidente tem a ver com isso, com o ângulo, que é também um ponto de controle. Esse ponto, que é um ponto soberano, principal, ele controla tudo o que está embaixo dele e estabelece uma relação de poder, uma relação de paternidade também. Essas lutas nas escolas são novas, trazem um impulso novo, uma estética nova, mas o problema é velho, existe há muito tempo.
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José Cavalhero
Ícaro Pio
O pátio foi um espaço que se transformou muito. Eles conversavam no pátio, todos os alunos, de todas as séries, por interesse próprio, como se o pátio tivesse a função de lazer e a política entrasse no âmbito do desejo, do prazer também. Como se o prazer contagiasse a política e a política contagiasse o prazer e virasse uma coisa só. Aquele bunker que é a sala de aula explodiu quando foi trazido pro pátio.
No pátio da frente da nossa escola tem uma árvore que a gente pensava que era uma seringueira e é uma falsa sequoia. É uma árvore enorme, chega a ser maior que a própria escola e tem galhos gigantes. E uma coisa legal foi quando jogamos uma corda e fizemos um balanço na árvore!
Toda aula deve ser pública Ícaro Pio
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Tínhamos duas comissões, a de atividades, que era mais de oficinas, e a de aulas. Muitos professores queriam dar aulas. Eu era da comissão de atividades. No começo da ocupação, ficamos uma semana e meia lá sem fazer nada. Aí pensamos, tem que ter aula, temos que fazer alguma coisa produtiva. Renomeamos duas salas da escola, a 5 e a 6, para sala Rosa de Luxemburgo e sala Marighella e nessas salas começamos a ter aulas. Mas não era só nessas salas, tinha aula no pátio, tinha aula no jardim, dependendo da proposta da aula, mas tinha aula que precisava de lousa, né? A gente teve aula de tudo: de dança, forró, exibiram documentários, fizemos rodas de conversas, teatro, muita coisa mesmo. Pra mim, esses quase dois meses equivaleram a mais de dois anos de escola. Na comissão de atividades, também eram aulas, coisas que deviam ser propostas no nosso currículo e que não são. Eles preferem padronizar muita coisa. Dava pra aprender muita coisa de outra forma.
Família é onde todos ensinam Igor Miranda
A Tereza é uma mãe que demonstra ser mãe de todos nós no movimento. Experiências como essa destruíram totalmente minha noção de família. Comecei a sentir uma sensação de unificação de forças. Sinto isso até em nossas conversas, não há uma divisão de grupos. Isso é algo que a gente vinha tentando quebrar dentro da escola há muito tempo: 3º ano é superior, 1º ano são as crianças para quem a gente vai ensinar... Não, todo mundo se ensina.
Disputa dos próprios sentidos das normas, das leis e da ordem: do que é compreendido como legal X ilegal, lícito X ilícito, formal X informal. Reivindicação de uma cidade (com)sentida.
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Qual a configuração do conflito que vai se armando hoje em dia e porque ele se expressa, por exemplo, nas formas de ocupação dos espaços da cidade? É interessantíssimo que a demanda não é mais de participação no Estado, há uma redefinição, é uma disputa pelos ordenamentos dos espaços. Então, ocupam-se as ruas, as praças, os galpões, os espaços, para fazer experimentos de teatro, arte, cinema, manifestações, interrompem-se as vias de circulação. Essa é a inteligência política do Passe Livre, porque é como se ele expusesse o metabolismo urbano quando faz a cidade parar. Aí tem uma questão que é o que é atuar e intervir no coração do metabolismo urbano, seja nos seus circuitos, vias de articulação ou espaços onde esses ordenamentos estão em disputa. Eu diria que é preciso assumir a guerra, porque afinal existe uma disputa atroz pelos espaços, mas também tem uma questão importante de saber como desativar uma lógica que é letal, complicada, que redunda em encarceramento em massa, que é muito violenta… Tem duas coisas importantes então, colocadas no cenário urbano atual: a lógica da ocupação, que não é mais a participação no Estado, e a lógica do ativismo jurídico, cada vez mais importante nos conflitos que estão ocorrendo... Advogados atuam exatamente nesse terreno nebuloso onde não está claro o que é legal ou não… o que é lei e o que é exceção… porque na verdade é a própria ordem urbana que está em disputa, e a disputa é atroz. Não se trata de disputa cultural, multiculturalismo, manifestações culturais. É uma disputa atroz e devemos pensar qual o estatuto do conflito contemporâneo e o lugar da cidade nisso”.
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Vera Telles, trecho de palestra proferida por ocasião do Simpósio Direito à Cidade, realizado nos dias 22 e 23 de novembro de 2014, no âmbito da 31ª Bienal de São Paulo.
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Apropriação de espaços e corpos Lilith Cristina
Uma coisa que usamos muito na ocupação foi o pátio, um espaço que durante o ano a gente não costuma usar, foi sempre só um lugar onde nos jogam até bater o sinal, quando temos que voltar para a sala. Porque lugar de aluno é na sala de aula, não é no corredor, no pátio, na biblioteca, ninguém quer aluno em outro espaço que não seja na sala, sentado em sua carteira. Outro dia fui questionar isso com uma professora, que ainda não tinha começado a dar a aula. Eu estava distribuindo uns panfletos pela sala e ela falou: “Senta”. Eu pedi para terminar de distribuir e ela disse: “Não, você está me desrespeitando”. Respondi: “Eu tenho o maior respeito do mundo pelo professor, mas você está sendo autoritária comigo.” É isso… A gente se apropria do espaço porque queremos estar nele, não porque somos obrigados. Incorporação é o processo de produção de um corpo no qual a relação entre eu e o outro desaparece e o conhecimento passa a se tornar uma forma de partilha, de acoplamento.
Uma configuração política que nasce do desejo.
O pátio virou um espaço de conspiração, todo mundo queria colocar uma ideia ali, algo que influenciasse na vida de todo mundo.
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A vida e o homem foram dissecados num conjunto de necessidades, para depois organizarem a síntese. Pouco importa que tal síntese tenha tomado o nome de ‘planificação socialista’ ou de ‘mercado’. (...) O resultado é o mesmo: deserto e anemia existencial. (...) daí provém, inversamente, a alegria palpável que extravasava das praças ocupadas da Puerta del Sol, de Tahrir, de Gezi (...). Daí a alegria que se agarra a qualquer ‘comuna’. Repentinamente, a vida deixa de estar recortada em pedaços conectados. Dormir, lutar, comer, cuidar, festejar, conspirar, debater, provêm de um mesmo movimento vital. Nada está organizado, tudo se organiza. A diferença é notável. Um apela à gestão, o outro à atenção – disposições em todos os pontos incompatíveis.
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Comitê Invisível. Aos Nossos Amigos: Crise e Insurreição. São Paulo: n-1, 2016, p. 104-105.
A escola como espaço comum Clara Amaral Lucena
Eu dormi no Fernão Dias umas quarenta noites e outras no Godofredo Furtado. O que mais me marcou é que tudo era dividido, compartilhado, desde o que nós pensávamos até o que a gente tinha e o que a gente ganhava, as coisas que chegavam para a gente. Normalmente, quando eu chego em uma escola nova, demoro para me adaptar. No Godofredo, mesmo não sendo aluna de lá, já fui conhecendo todo mundo desde o primeiro dia, me sentia bem como se estivesse em um lugar que era meu, que era nosso, na verdade. Não existia hierarquia, todos tínhamos os mesmos direitos. Se eu quisesse entrar na diretoria para pegar um filme, podia pegar a chave, abrir a diretoria e assistir um filme. Na escola tudo é muito individual, não posso compartilhar meu conhecimento em uma prova, por exemplo, porque é “cola”. Nas ocupações até as mínimas coisas, tudo, tudo era compartilhado e todo mundo se ajudava.
As pessoas que participaram criaram uma autonomia muito grande e já nem temiam mais as repressões nas manifestações.
É muito forte isso de compartilhar tudo num espaço público que é a escola e depois você andar pela cidade e ver tudo diferente.
A cidade passa a ser minha também.
Cada um tinha direito a tudo e, na divisão, o que cada um vai fazer, vai fazer pra todo mundo.
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ONDE MORA O CONHECIMENTO?
Pedro Cesarino
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Na Grécia antiga só eram cidadãos os homens que nasciam na cidade. As mulheres, as crianças, os estrangeiros não eram cidadãos, portanto não tinham papel na política, não tinham direito a voto, não tinham direito a fala na assembleia e assim por diante. E todo o conhecimento que se produzia era associado a uma imagem de controle, uma imagem pública, uma imagem do poder, um controle da estrutura de poder através de uma certa lógica de conhecimento. E o Heráclito rejeita isso e quer ficar com as crianças no templo de Ártemis. É interessante porque Ártemis é a divindade do espaço agrário, a divindade dos bichos, das feras e da caça, uma espécie de Oxóssi, seria um Oxóssi feminino na Grécia antiga. Oxóssi e Logunedé. Então Ártemis é uma divindade arredia, é uma menina, uma espécie de adolescente, ela é sempre fronteiriça, ela tem uma relação muito complicada e de insolência com o poder, com o poder da cidade, com o poder dos homens, com o poder da política.
Pedro Cesarino
Na verdade, a gente devia descer, pra falar lá embaixo [Essa conversa aconteceu dentro do MASP e Pedro está se referindo ao vão livre do MASP, onde sempre estão acontecendo diversas manifestações de rua – políticas, artísticas e culturais], porque não faz o menor sentido isso que eu tô fazendo aqui (risos) ... devíamos ir jogar dados com as crianças. No fundo é isso. Por que a gente tá falando tudo isso aqui se o conhecimento tá lá? A Ártemis é o conflito, a discórdia, mas uma discórdia como um dissenso, por exemplo, esses conflitos que vocês estão produzindo em sala de aula com alguns professores. É a divindade que tem essa força de contestação com relação à ordem estabelecida da política e do conhecimento, que tem um espaço determinado, uma estrutura, uma localização, e que diz que você tem que ficar sentada ou sentado lá no teu lugar. A divindade patrona de tudo isso que tá acontecendo nas escolas é ela. E ela também é divindade patrona do próprio Heráclito. Ela é uma divindade fosfórica, que é aquela que transporta o fogo. Fosforus é isso, é transportar o fogo, uma caixa de fósforo é fogo portátil. E o fogo é justamente a ideia de uma vitalidade luminosa, de um tipo de conhecimento que produz uma potência luminosa, que é simultaneamente uma potência de destruição e de construção, de renascimento. Então, é um conflito que produz um renascimento e uma renovação através da luz, ao contrário do conflito destrutivo da guerra que é conduzido pela cidade, pelo Estado, pela dinâmica de poder. Victor Turner, antropólogo dos anos 1970, faz uma diferença entre dois conceitos: o conceito de estrutura e o conceito de communitas. Estrutura é normalidade, é o momento em que você tá encaixado dentro de uma regra específica, de um conjunto de normas, de relações de obrigação, uma espacialização do conhecimento marcada pelo controle. E, de repente, você tem uma quebra disso que instaura um espaço de exceção, um espaço especial, um especial que é liminar, o lugar em que as pessoas suspendem a sua condição de normalidade e se transformam numa espécie de coletividade. Aquilo que a Clara [uma estudante] estava dizendo [sobre as escolas ocupadas]: tudo tinha que ser distribuído, tudo era compartilhado. Nesse momento de suspensão da normalidade, as pessoas abandonam as suas classes, elas se transformam em uma coletividade baseada em algum desejo partilhado ou numa transformação de uma nova condição, uma condição que vai depois colaborar para que a própria sociedade vire outra coisa. Eu fiquei pensando em dois polos, dois vetores de relação de conhecimento, um que é um vetor mais associado à produção de conhecimento pelo controle ou pela instituição de um dispositivo de poder e outro que é o da produção de conhecimento que se dá nos espaços exteriores à essa condição de controle. Se a gente for pensar nessa história do Heráclito, por exemplo, o conhecimento que ele produz tá fora da cidade, dos lugares onde você imaginaria que o conhecimento pudesse acontecer, ou seja, na escola normal. Não é só ali ou especificamente ali que um conhecimento que tem uma potência vital pode existir. Agora, essa tensão entre um conhecimento que é das bordas, dos interstícios, das margens e o conhecimento normalizado, das estruturas de poder, é uma tensão que sempre existe, que não acaba nunca, que volta, adormece e volta de novo, em diversas culturas e em vários momentos históricos e que, no nosso caso presente, acontece de uma maneira muito estranha porque parece que tem simultaneamente uma ameaça profunda de fechamento, de intolerância, de perseguição, de condenação de todas as formas heterogêneas, de tudo que não é normal, de tudo que escapa da normalidade do homem branco, produtivo, heterossexual, encaixado no mercado etc... enfim, esse movimento reacionário que não acontece só no Brasil, mas acontece em vários lugares.
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Pedro Cesarino
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Quando a gente tinha 18, 17 anos, essas coisas não aconteciam. Isso tá acontecendo muito a partir de 2013 no Brasil. Que é justamente o momento em que a gente tem um colapso muito grande da política e uma recrudescência muito forte dos fascismos todos. O problema é que a estrutura não se transforma, ela é extremamente poderosa, ela resiste, porque é uma estrutura de poder, feita pra controlar e pra produzir a manutenção de uma certa condição, de diferença, de exploração. Enfim, mas isso é interessante nessa estratégia, que é uma estratégia de reversão dos espaços e sobreposição dos espaços que implica numa estratégia de transformação da lógica do conhecimento. Porque cada espacialização implica numa forma de produção de saberes distintos. Há outras espacializações possíveis, como, por exemplo, nas sociedades indígenas. Eu morei quase um ano e meio numa aldeia em que tudo acontece dentro de uma casa, que a gente chama de maloca, que virou um termo meio pejorativo. E a casa é um espaço de conhecimento que segue uma lógica completamente diferente daquilo que a gente imagina por conhecimento. A coisa de natureza e cultura é importante, tem muito a ver com essa ideia de que os alunos e as crianças são uma espécie de tábula rasa, uma folha em branco, eles são novos, portanto não têm cultura, não tem conhecimento, são uma natureza selvagem e que você tem que trazer a cultura, inscrever a cultura, como você sulca uma chapa de gravura, tem que criar sulcos, escrever numa folha em branco, porque as crianças, os alunos, não têm conhecimento, não tem nada por si só. É a civilização, ou os professores ou a cultura de uma maneira geral que imprime esse carimbo numa relação entre forma e matéria, como se eles fossem uma forma amorfa, uma ausência de forma que precisa ser mudada, precisa ser cultivada através da imposição de um saber, de um conhecimento que vem de fora. Os índios também são vistos assim, são vistos como alguém que não tem cultura, que são infantis, primitivos, estão na infância da humanidade etc. A ideia é essa. Você projeta, imprime um conteúdo em cima daquilo que não tem conteúdo em vez de imaginar que uma criança, um adolescente, a sociedade indígena, tenham a sua própria forma de conhecimento que pode ser colocada em conexão com o conhecimento que você está querendo trazer, ao invés de imaginar que alguém precisa imprimir um conhecimento. A gente não fala de pessoas “cultivadas”? Tem a ver com isso. Temos que ler para aprender, para aprimorar, para passar a ter uma cultura que antes não tínhamos. A noção de cultura pra gente tem a ver com um esforço de superação. Você produz uma superação de si mesmo, através do trabalho, de um esforço interno e que tem muito a ver com uma técnica de disciplina, você tem que se disciplinar pra poder se superar e se destacar como indivíduo. Essa é uma lógica que vem direto da distinção entre natureza e cultura. É como se tivéssemos que nos domar para poder ler os clássicos, conhecer toda a história da arte, toda a história da filosofia etc.
José Cavalhero
Tem um grande debate na educação sobre isso: é melhor falar em mediação, em formação ou outra coisa...
Pedro Cesarino
Quais são os termos que você tem ouvido?
José Cavalhero
Mediação é um deles. Onde eu trabalhava já não gostavam desse termo também porque de uma certa maneira você ainda é um intermediador... acho muito difícil, nem sei se faz sentido tentar encontrar essas palavras.
Pedro Cesarino
Eu tenho pensado muito sobre isso. Eu tenho gosta do de uns outros termos, que são termos difíceis, mas que são interessantes. Acoplamento, por exemplo. Compatibilidade, compatibilização. Uma maneira de explicar é assim: eu tava falando sobre um monte de coisa, aí eu falei que eu sou especialista numa coisa, que eu vivi uma experiência etc., que é um outro regime de conhecimento, uma outra espacialização dessa forma de conhecimento, aí vocês pediram para eu falar sobre isso [sobre a cultura indígena]. Por que? Por que vocês querem que eu fale sobre os índios? Pra fazer o que com isso?
A BATALHA DO VIVO ANOTAÇÕES 2 Grupo Contrafilé
É uma outra forma de relação entre natureza e cultura, é uma inspiração...
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Pedro Cesarino
Mas aí a questão é: como é que a gente cria acoplamento. Algum estudante falou: “Aí, apareceram uns índios nas escolas [para apoiar as ocupações] que a gente nem sabia quem eram”. Como é que se estabelece um acoplamento com isso? Por exemplo, se a gente nem sabe se eles estão a fim de serem acoplados?
Sato do Brasil
Mas isso não faz parte do acoplamento? Saber se eles querem ser acoplados? C
M
Y
CM
MY
CY
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K
Pedro Cesarino
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Eu tô dizendo isso porque muitas vezes, eu sei que não é o caso aqui, eu fico muito cansado de ficar ilustrando questões com um outro tipo de exposição cultural da qual eu seria uma espécie de porta-voz. Eu não sou porta-voz de nada. Eu não falo por uma outra sociedade ou por uma outra forma de organização. Eu falo de um problema de tradução ou de acoplamento, eu falo de alguém que pensa entre referenciais distintos e, de uma certa maneira, tenta lançar um ponto de vista Estudante distinto sobre esses distintos referenciais, mudando de posição.
A CASA COMO DUPLO. A ESCOLA COMO CASA? A ESCOLA COMO DUPLO?
Pedro Cesarino
Eu falei que eu supostamente sou uma pessoa especialista em coisas velhas. Na verdade, não é bem isso. Sou especialista em outras maneiras do contemporâneo. O contemporâneo não é uma coisa só, existem diversas formas de contemporaneidade. As escolas estão aí, mas a gente vive há quinhentos anos num país em que a gente não sabe o que mais está aí.
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Pedro Cesarino
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Eu vou falar sobre como funciona o conhecimento numa maloca dos índios Marubo, esse povo com o qual trabalhei e que vive perto da fronteira com o Peru. As malocas têm uma estrutura meio ovalada, uma porta das mulheres e outra dos homens. A porta dos homens tem dois bancos paralelos. Uma maloca grande dessas pode chegar a ter 200 pessoas. Os homens, os chefes, os xamãs, os adolescentes, todos sentam aqui. As crianças ficam mais por aqui, nesse espaço do meio, junto com as mulheres. Tem uma divisão entre homens e mulheres, mulher não senta aqui, só as velhas às vezes podem sentar. E os pajés, os xamãs armam uma rede aqui assim, mais ou menos nessa altura, é como se a gente estivesse sentado nessa linha e tem um cara em cima. Quando uma pessoa vem de fora, um visitante, por exemplo, ele para aqui. Para e fica falando pra dentro, as pessoas escutam: eu sou fulano, vim aqui fazer tal coisa. Pode entrar fulano. O fulano entra, senta aqui. Imediatamente quando ele senta, alguém vem e traz comida pra ele. Aí as pessoas perguntam o que ele veio fazer. Ele fala, é sempre uma questão diplomática, uma coisa política que precisa ser resolvida. Ele fala e tudo bem. E aí acontecem com muita frequência as tais das sessões de pajelança ou sessões xamânicas, na qual o xamã vem, essa rede aqui é armada, ela não fica sempre armada, esse cara deita aqui, fica deitado primeiro, aqui tem um monte de gente sentada, aqui é também onde ficam pratos de comida, no meio, as pessoas comem no chão. Depois os pratos de comida são tirados, os cachorros vêm, invadem aqui e comem toda a sujeira. De noite, quando toda essa bagunça da comida passou, a maloca vai esfriando, as crianças vão dormindo, o xamã aos poucos deita na rede, os homens em volta sentam aqui e começam a tomar ayahuasca, uma bebida que os índios usam nessa região da Amazônia. Esses caras aqui começam a dar as cuiazinhas de ayahuasca pra esse xamã e aplicar rapé, com um inalador de rapé muito comprido. Ele recebe umas doses de rapé, toma ayahuasca, deita e fica uma hora lá como se ele estivesse completamente morto. Depois, quando ele acorda, senta de costas pra porta e começa a cantar. O primeiro canto dele narra a saída dele mesmo pra fora dele. Ele sai e vai pra cá, o duplo desse corpo que tá aqui, outros chamariam de alma, mas eu não gosto de chamar de alma, gosto de chamar de duplo. Ele canta isso, eu saí de mim, tô lá, em tal lugar. E nesse tal lugar, tô encontrando as pessoas tais, que são os espíritos dos pássaros, dos animais que vivem em outras malocas iguais a essa maloca. A gente vê uma copa de árvore, por exemplo, mas, na verdade, os espíritos de pássaros que estão ali veem aquela copa de árvore como uma aldeia e moram também numa maloca... Os cantos mudam, são sempre diferentes. Os cantos são mensagens sobre as visitas e as pessoas que ele encontrou, que são os espíritos de todos que ele vê por aí e a gente só consegue ver isso quando a gente sonha ou quando a gente morre ou quando você toma ayahuasca, essas coisas.
Pedro Cesarino
Aí ele diz: encontrei o espírito de fulano, convidei o espírito do fulano pra entrar aqui na minha casa, aí o espírito do fulano vem, entra dentro do corpo dele. Estávamos falando do problema do fractal e, na verdade, o que acontece é que essa estrutura arquitetônica se recapitula pra dentro da própria pessoa, a pessoa é habitada por duplos internos, a pessoa tem pelo menos três duplos, do lado direito, do lado esquerdo e do coração, só que esses duplos não veem o espaço em que eles vivem como corpo, eles veem esse espaço como uma maloca, então, pra si mesmos, eles vivem numa estrutura arquitetônica interna, do nosso corpo, que é igual a essa em que a gente vive aqui. É como se o prédio em que a gente tá fosse uma pessoa que pra si mesma se concebesse como um corpo e não como um prédio. Isso é um fractal, que é a repetição de uma mesma estrutura indefinidamente, em escalas diferentes. Então esse canto se refere ao momento em que o duplo desse xamã saiu de dentro da casa dele, portanto, você tem uma replicação entre essa estrutura aqui que tá sendo vista pelas pessoas que estão sentadas e a outra estrutura homóloga que acontece dentro da pessoa. Ele sai, conhece outras pessoas, as pessoas entram e vêm pra cá cantar. É como se você saísse da sua casa e fosse pra casa do fulano, seu amigo, seu vizinho, entrasse e falasse e aí, o que você tem a dizer? E você começa a falar: eu cheguei aqui, eu vim de tal lugar, eu viajei, vi isso, isso e isso, aprendi tal e tal coisa, tô aqui pra contar pra vocês o que eu aprendi. Só que isso tudo é cantado. E você passa um ensinamento ou pode eventualmente curar as pessoas que estão ali naquele lugar. Depois fala tchau, vou embora, sai, volta pra sua casa. Só que a casa é um corpo. Então isso tem muito a ver com as camadas, as peles, que você estava falando. Mas não são camadas, tipo casacos. É uma estrutura reversiva, uma estrutura holográfica. Do ponto de vista de quem vive dentro, o seu corpo é uma casa. Então, o conhecimento tem a ver com essa replicação de um espaço partilhado, que é um espaço humano, que é completamente contrário à lógica da divisão entre natureza e cultura. Ou seja, tudo é cultura, você sempre tem cultura pra todos os lugares possíveis. O que você faz é criar conexões ou acoplamentos, conexão é uma palavra que eu tenho gostado bastante também, conexão entre distintas culturas que são na verdade as mesmas. O que me interessa muito, a maneira como penso o meu trabalho com os Marubo é essa. O que eu fiz, no meu doutorado e depois também, foi trabalhar com a tradução justamente desses cantos. Trabalhava muito com os xamãs, direto, pra traduzir, pra interpretar, pra entender e isso dependia de uma transformação do meu próprio corpo. Eu tinha que estar lá e viver nesse espaço, comer nesse espaço, dormir nesse espaço, produzir um corpo. Então eu tive que alterar o meu corpo, tive que criar uma espécie de acoplamento, de extensão, pra poder entender, pra poder criar uma relação de conhecimento.
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Grupo Contrafilé
Acho que é nesse sentido que queremos te ouvir sobre o que aprendeu ali, não no sentido de te colocar como um porta-voz. Por exemplo, o que que você teve que “superar”, quais foram os embates para você criar esse outro corpo... entende?
Pedro Cesarino
O interessante no que você tá falando é que não teve um embate tipo, eu tenho que fazer alguma coisa, porque a nossa lógica é sempre muito essa: eu tenho que fazer alguma coisa pra me superar, me cultivar, me melhorar, aperfeiçoar. Foi um pouco o contrário disso, foi deixar de fazer uma série de coisas... sobretudo se individualizar... nesse modelo, a noção de indivíduo não existe, não faz o menor sentido, existe uma rede de acoplamentos fractais. Rede é um fractal de acoplamentos, né? Você não tem um indivíduo, você tem uma pessoa que é uma multiplicidade de conexões. O pajé é isso, ele é um ponto de conexão entre vários outros pontos de conexão. O que eu tive que fazer foi isso, foi me desindividualizar aos poucos e entender que o conhecimento não vinha só de mim ou do meu esforço individual, da minha capacidade de canalizar um monte de livros, de referências, pra produzir uma tese. Entender que em outras lógicas de conhecimento, as coisas se dão através de outras formas.
José Cavalhero 120
É bem nesse sentido a importância de trazer pra discussão uma constante impermanência quando a gente pensa em mediação, educação, formação. Porque parece que sempre precisa ter pressuposto um eu e/ou um outro; o coletivo e/ou o individual.
Pedro Cesarino
Coletivo X individual; eu X outro; ou o ponto de vista, o controle. Tem que ter sujeito e objeto... professor é sujeito, os alunos são objetos. Eu tenho, todo dia, o tempo inteiro, que desconstruir isso. E isso, mesmo eu dando aula na FFLCH na USP, onde tem pessoas estudando Foucault, a sociedade de controle, o panóptico. Eu falo, gente, vocês estudam Foucault e chegam aqui na sala de aula e querem que eu ensine, que eu vomite um conteúdo pra vocês, ficam aí esperando aquela voz de autoridade que vai dar uma palestra, eloquente, isso não vai fazer com que vocês produzam um corpo que é um corpo no qual a relação entre eu e o outro desaparece e o conhecimento passa a ser uma forma de partilha por acoplamento. Esse é um problema sério porque o conhecimento pra valer não é essa relação dual, não parte disso. A não ser que a gente pense, voltando ao que eu estava dizendo antes, em duas formas de conhecimento. Uma que é o conhecimento como dispositivo de controle, e esse sempre é um conhecimento que separa A de B, sujeito de objeto, aluno de professor, público e palestrante, o artista individualizado e o público consumidor de arte, leitor e escritor e várias outras ramificações. Agora, as outras formas de conhecimento sempre são formas que se dão por acoplamento.
Grupo Contrafilé
É interessante relacionar esse relato que você estava fazendo com os relatos que vieram das experiências das ocupações, do momento em que a ocupação se torna significativa, quando o prédio deixa de ser um lugar no qual os estudantes vão por obrigação e começa a ser um lugar no qual vão porque querem. Eles nos contaram como esse vínculo foi mudando, porque eu acho que, ao final das contas, essa experiência é muito do grupo construindo vínculos, é de construção de um vínculo super forte, tão forte que você acaba habitando uma estrutura que vai nascendo também dentro de você. E essa estrutura é compartilhada com outras pessoas que vão se tornando como uma comunidade. Nos relatos dos estudantes têm vindo muito isso, o momento no qual eles começam a enxergar de outra forma o prédio e o prédio vira casa, vira o lugar onde vão dormir juntos, onde vão comer juntos, onde vão preparar comida, vão revisar o que estão comendo, receber outras pessoas juntos. E também veio essa coisa de não ter que fazer um esforço para se integrar no lugar. A Clara [uma das secundaristas que participou do processo] falou muito isso: quando você chega numa escola nova, você tem que fazer um esforço enorme pra se relacionar com as pessoas, mas nesse momento em que as escolas estavam ocupadas, ela chegou e a relação estava acontecendo, então ela foi incorporada imediatamente, estava dentro.
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Pedro Cesarino
A questão é qual a imagem de conhecimento que se produz depois de um estado de exceção como a ocupação das escolas, qual é o mundo que se cria a partir daí. E o grande desafio é esse, porque as nossas condições de produção de um outro mundo possível estão sendo minadas. Não é só que a gente tem um macrocontrole. Uma coisa é se a gente vive numa estrutura de ditadura, porque aí existe um controle muito claro. Mas vivemos uma coisa que não dá pra dizer se é melhor ou pior, eu acho que talvez não seja tão pior, porque pelo menos você vive, não é assassinado diretamente, é assassinado aos poucos, né? São os microcontroles, é a proliferação de microcontroles que vão minando a nossa capacidade de potência e o que faz com que pareça impossível inventar um outro mundo possível. A gente tem desde a imposição de desejos, de imagens, do que deveria ser um corpo desejante, até, enfim, travas burocráticas, empecilhos legais, grana pra conseguir sobreviver, aconchambrar as coisas pra conseguir fazer uma grana pra conseguir pagar as contas, enfim, milhares de microcontroles que vão fazendo a gente aos poucos travar... talvez isso tenha um pouco a ver com a lógica imprevisível dessas manifestações, que não é totalmente nova nem exclusiva do Brasil, vem desde a Primavera Árabe, Occupy Wall Street, o 15M da Espanha, vários movimentos que criaram novas configurações políticas, que são configurações de desejo que, essas, sim, são extremamente revolucionárias e importantes, e é aí que a gente tem que apostar.
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Grupo Contrafilé
Um aprendizado forte para nós dessa experiência com o movimento secundarista em conexão com pensadores e atores sociais diversos, foi entender que a transformação não ocorre como um antes-durante-depois, não é linear ou não é apenas linear-temporal-horizontal. Mas é, talvez até muito mais, uma transformação que ocorre no modo de estar no mundo que, ao se transformar na escala do corpo, é capaz de mudar a relação com todas as diversas camadas da vida – corpo-roupa-casa-sociedade-mundo ou corpo-escola/casa-mundo. Ao se conectar com o seu próprio corpo, há uma possibilidade de conexão com tudo enquanto vivo. Essa é uma visão fractal que não está presente apenas no movimento dos secundaristas. Na realidade, enquanto sabedoria ancestral, como nos ensinou Pedro Cesarino, ela está presente na cultura Marubo, por exemplo, quando esta traz a casa como duplo. Ou seja, a casa sendo um espelhamento do que está dentro das pessoas que nela habitam e vice-versa, as pessoas carregando dentro de si a casa. Acho que o que aprendemos é que esse tipo de sabedoria diz respeito diretamente a um tipo de conhecimento específico no/do mundo que é o conhecimento da conexão com o mundo enquanto vivo. E isso, necessariamente, passa pela possibilidade de compreensão de si enquanto vivo, conectado e agente diante do mundo. No momento em que nosso corpo e a casa têm o mesmo status de vivo, isso se expande para todas as relações, pois é uma cadeia de conexão do vivo que se forma. Então, corpo-casa-mundo compõem um vetor de vida, um interferindo no outro de modo ininterrupto, e espelhando o outro. Essa imagem fractal de que tudo o que está fora é o que está dentro e vice-versa... Vendo a imagem das 5 peles do Hundertwasser, ouvindo sobre a sabedoria da casa como duplo dos Marubo, não resistimos a pensar o quanto o movimento dos secundas tem a ver com um desejo que está muito ligado com isso. Ligado a essa necessidade de "fazer corpo com aquela terra/território que é a escola". Um desejo de se ver efetivamente ali. De que aquele espaço se conecte com esse dentro que é fora também, porque quando os meninos e meninas começam a fazer-se mais quem são a partir e através das ocupações, eles não apenas "abrem o território" da escola para o fora, neste caso para a sociedade; como chamam o seu povo com isso. E então começam a chegar nas escolas e a se conectar com os secundas as pessoas que se identificam com aquela força, com aquela potência. Todas as "peles" se fazem presentes – dentro do corpo, escola como casa, o fora-sociedade/comunidade. Passa a existir um vetor que liga essas camadas que estavam antes completamente desconectadas.
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Peter Pál Pelbart
CARTA ABERTA AOS SECUNDARISTAS
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Peter Pál Pelbart é professor no Departamento de Filosofia e no Núcleo de Estudos da Subjetividade da Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-SP. Estudioso da obra de Gilles Deleuze, traduziu para o português Conversações, Crítica e Clínica e parte de Mil Platôs. Escreveu sobre a concepção de tempo em Deleuze (O tempo não-reconciliado, Perspectiva, 1998), sobre a relação entre filosofia e loucura (Da clausura do fora ao fora da clausura: Loucura e Desrazão, Brasiliense, 1989 e A Nau do tempo-rei, Imago, 1993) e sobre a relação entre política e subjetividade (A vertigem por um fio: Políticas da subjetividade contemporânea, Iluminuras, 2000, e Vida Capital, Iluminuras, 2003). É membro da Cia Teatral Ueinzz.
Carta Aberta aos Secundaristas, gentilmente cedida por Peter para esta publicação, foi lida no Colégio Fernão Dias Paes, em 28 de abril de 2016 durante debate público em torno do tema da Ética, com a participação de Marilena Chauí, alunos, pais, professores e funcionários da escola, por iniciativa de Dalva Garcia, professora da escola e da PUC-SP. Na madrugada seguinte, alunos da escola resolveram retomar a ocupação em solidariedade à ocupação do Centro Paula Souza.
Eu quero saudar os secundaristas aqui presentes, professores, funcionários, pais de alunos, amigos e simpatizantes desse movimento glorioso. Agradeço a oportunidade de falar numa escola em que estudei por sete anos, numa época em que o ensino público gozava ainda de grande prestígio e credibilidade, estabelecimento esse que recentemente foi palco de um dos mais pioneiros e combativos momentos na eclosão do movimento.
meu ver não foi o mais importante. Vocês introduziram, em paralelo ao teatro esgotado e degradado da representação institucional, uma nova coreografia política, carreando uma atmosfera de grande frescor, um afeto coletivo inusitado, uma dinâmica de proliferação e contágio, uma maneira inédita de manifestar a potência multitudinária que prolongou o que de melhor houve em 2013, sem se deixarem capturar pelo que de pior ocorreu ali.
A ocupação de mais de duzentas escolas no final do ano passado pelos secundaristas de São Paulo, em protesto contra um plano de reorganização da rede pública estadual pelo governo Alckmin, passará para a história como um dos gestos coletivos mais ousados na história recente do Brasil. Eu diria, sem titubear, que esse movimento destampou a imaginação política em nosso País. A coragem e a inteligência com que essa luta foi conduzida, a maneira democrática e autogestiva com que se sustentou, as formas de mobilização e comunicação que aqui se inventaram, o modo em que soube suscitar diálogo e conexão com as diversas forças da sociedade civil, a maneira autônoma que demonstrou ao longo de todo o trajeto, merecem nossa mais viva admiração e aplauso. Entretanto, mais do que isso, constituíram para todos nós uma verdadeira aula de ética e de política. Se nossos políticos aprendessem um por cento do que aqui se ensinou, nosso País seria outro.
Independentemente do desfecho concreto do movimento, foi um momento em que a imaginação política se destravou. A imaginação política não é uma esfera sonhadora e desconectada da realidade, ao contrário, é precisamente a capacidade de se conectar com as forças reais que estão presentes numa situação dada, as forças do entorno, mas também as forças vossas. As ocupações desencadearam um processo imprevisível cujo caráter ao mesmo tempo disruptivo e instituinte deixou a todos estupefatos. Não cabe a mim fazer a análise do que ocorreu, e sim aos que protagonizaram o movimento e o expandiram, no corpo-a-corpo, no dia-a-dia, no embate físico, no antagonismo ético, na inteligência coletiva.
Como se dizia na época, enquanto as crianças se comportavam como verdadeiros políticos, os políticos conduziam-se como crianças. Há muito que meditar a respeito dessa inversão, e estamos longe de ter extraído dela as lições e consequências que se impõem. Uma coisa é elogiar a maturidade, a responsabilidade, a organização interna, toda a prudência que não deu margem à vilania da mídia, que apenas buscava os sinais de baderna, orgia, drogas, para criminalizar o movimento. Embora essa cautela tenha sido eficaz, a
Mas posso dizer, desde fora, que vocês operaram um corte na continuidade do tempo político. Isto significa que a percepção social e a sensibilidade coletiva na cidade de São Paulo sofreram uma inflexão. É toda a dificuldade de uma ruptura: ela não pode ser lida apenas com as categorias disponíveis antes dela, categorias essas que a ruptura justamente está em vias de colocar em xeque. A melhor maneira de matar um “acontecimento” dessa ordem é reinseri-lo no encadeamento causal, reduzindo-o aos fatores diversos que o explicariam e o esgotam, ao invés de desdobrar aquilo que eles trazem embutido, ainda que de modo balbuciante ou embrionário, de novo, de inaugural, de fundante.
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Aos olhos de nossos gestores políticos, a resistência dos secundaristas não passava de uma reação passageira, de um estorvo a ser rapidamente removido, uma insanidade juvenil. Mas, de repente, inverteu-se a equação – insanidade era o que apareceu aos olhos de todos, da prepotência surda do secretário de Educação à barbárie fascista da polícia militar, protegida pelo Secretário de Segurança, e que se abateu sobre o corpo das crianças e jovens de maneira intolerável, fora ou dentro das escolas.
se desloca – e sem que se entenda como nem por quê, de pronto parece que tudo mudou: ninguém aceita mais o que antes parecia inevitável (a escola disciplinadora, a hierarquia arbitrária, a degradação das condições de ensino), e todos exigem o que antes parecia inimaginável (a inversão das prioridades entre o público e o privado, a primazia da voz dos estudantes, a possibilidade de imaginar uma outra escola, um outro ensino, uma outra juventude, inclusive uma outra sociedade!).
Eu queria insistir nesse aspecto tão importante, a meu ver – um acontecimento como o do ano passado, com seu cortejo de arbítrio, violência, abuso, mas também de mobilização, iniciativa, afirmação, representou um corte abrupto na percepção social sobre o ensino, a escola, a polícia, o Estado, o poder, o desejo. Essa ruptura, essa reviravolta e o seu efeito significam o seguinte: o que até então era a trivialidade cotidiana, de repente torna-se intolerável. Por exemplo, se até então parecia natural que quem decidia sobre os equipamentos escolares eram os gestores, nos seus gabinetes, subitamente isso aparece como uma aberração intolerável. Com isso, todo um conjunto de coisas torna-se intolerável. A mercantilização da educação, as relações de poder vigentes dentro da escola, a disciplina panóptica, os modos desgastados de ensino, aprendizado, avaliação, até mesmo o objetivo da escola… Ao mesmo tempo, em contrapartida, o que até ontem parecia inimaginável (os alunos poderem ocupar e gerir os espaços que lhes são destinados, não apenas para reivindicar seus direitos, aprofundá-los, ampliá-los, mas também para experimentar a força de um movimento coletivo, autogestivo, suas possibilidades inúmeras e inusitadas) torna-se não só possível, mas desejável.
Um acontecimento no sentido forte da palavra, como o que foi produzido no bojo desse movimento, divide o tempo em antes e depois. Não dá mais para voltar atrás – algo de irreversível se deslocou no corpo, no afeto, na imaginação, na compreensão dos estudantes, mas também dos seus pais, dos professores, das suas famílias, na comunidade, na cidade.
De pronto, já não se tolera o que antes se tolerava, e passa-se a desejar o que antes era impensável. Isso significa que a fronteira entre o intolerável e o desejável
E o que aconteceu torna-se uma espécie de farol, de incandescência, de marca indelével, de referência incontornável – já não é possível fingir que nada aconteceu, que se pode passar por cima disso, que se pode voltar para a mesma subserviência ou apatia ou passividade de antes. É que foi muito forte o que se viveu, foi muito intenso, foi muito vital, foi mais do que uma experiência, foi uma experimentação coletiva, micropolítica e macropolítica, que abriu um campo de possíveis, e, por conseguinte, pode ser retomada a qualquer momento, e pode ser prolongada, ampliada, transposta, tal como de fato vai contagiando outros Estados do Brasil, de forma variada. Godard dizia que as crianças são prisioneiros políticos. Nada mais verdadeiro. Não digo apenas na mão das famílias, das escolas, dos psicólogos, dos psiquiatras, dos pedagogos, da mídia, do mercado, dos jogos eletrônicos destinados a eles etc.
É justo nos momentos em que a prisão revela sua arbitrariedade, e sua legitimidade é posta em causa, é justamente aí que aparece sua força e fragilidade, seu peso e sua vulnerabilidade, e fica evidente que grande parte de sua eficácia repousa sobre o medo e a intimidação. O mesmo se pode dizer dos secundaristas: no momento em que percebem que estão à mercê das instâncias várias do Estado incumbidas de decidir do seu destino com uma simples canetada, é justo quando percebem o quanto esse poder desmesurado pretende decidir sobre sua vida a mais cotidiana, é então que tudo se revira, pois é quando deixam de estar à mercê porque sentem o intolerável da situação, e não podem fazer diferente senão ir para o enfrentamento, para a resistência ativa e passiva, para as ruas, furando com grande ousadia o bloqueio midiático, o bloqueio militar, o bloqueio jurídico, o bloqueio do medo ou da intimidação.
que fica claro que esta é uma miragem enganosa, disseminada pela cultura midiática e publicitária, por um suposto consenso capitalista que camufla formas de vida em luta, não apenas classes em luta, com todas as segmentações e heranças malditas, escravistas, racistas, elitistas etc., mas também conflitos entre modos de existência que colidem, formas de vida distintas em embate flagrante, anseios plurais. É fácil constatar que modelos de vida majoritários, por exemplo o da classe média tomada como padrão, propagado como um imperativo político, econômico e cultural, de consumo desenfreado, e que se impôs ao planeta inteiro – dizima cotidianamente modos de vida “menores”, minoritários, não apenas mais frágeis, precários, vulneráveis, mas também mais hesitantes, dissidentes, ora tradicionais como o dos quilombolas ou indígenas ora, ao contrário, ainda nascentes, tateantes, ou mesmo experimentais, como os que vocês ensaiaram.
Talvez possamos dizer todos o mesmo, hoje, nesse momento gravíssimo que atravessamos de ascensão de um fascismo pavoroso, talvez sejamos todos prisioneiros políticos em meio a um estado de exceção onde o maior conluio entre canalhas de toda espécie esteja virando a mesa da democracia dita representativa. Mais do que nunca, a lição que vocês deixaram é de importância capital. Pois é preciso ir muito além das categorias ainda manipuláveis pelo discurso político, ou mesmo mensuráveis pelos planejadores e economistas, e redesenhar o campo das possibilidades de vida.
Não é fácil recusar a predominância de um certo modo de vida genérico, bem como o modo de valorização que está na sua base – por exemplo, essa teologia da prosperidade, que não é exclusividade das igrejas pentecostais, e que vai se infiltrando por toda parte. Como escovar essa hegemonia a contrapelo, revelando as múltiplas formas que resistem, se reinventam ou mesmo se vão forjando à revelia e à contracorrente da hegemonia de um sistema de mercado, modulado por mecanismos de controle e monitoramento eficazes e sutilmente ou nada sutilmente despóticos?
Ousemos a pergunta: e se essa operação de destampe da imaginação política se estendesse à sociedade como um todo?
Isso se agrava muito no contexto atual, frente a esse golpe parlamentar-financeiro-midiático-jurídico- policial-religioso, onde vem à tona todo nosso arcaísmo escravista aliado à mais perigosa manipulação da fé, que vai de par com interesses econômicos precisos e uma máscara de legalismo e modernidade autoglorificada.
Se por vezes temos a impressão de que todos almejam o mesmo, dinheiro, conforto, segurança, ascensão social, prestígio, prazer, felicidade, há momentos em
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Sim, vivemos num momento especialmente cruel, em que o caráter mais flexível, anônimo, ondulante de alguns mecanismos de poder econômico e político não consegue esconder a brutalidade mais retrógrada da qual ele depende, e com a qual ele se conjuga violentamente, imputando a violência, como sempre, aos que contestam essa aliança espúria, criminalizando os que a recusam com veemência. Então, toda a questão é como alargar o campo da política, ou pensar a dimensão política das formas de vida, e da sensibilidade que lhes corresponde, ou para formulá-lo de maneira ainda mais precisa: como pensar a própria política à luz dessa questão das formas de vida que lhe antecede? Talvez Foucault continue tendo razão: hoje em dia, ao lado das lutas tradicionais contra a dominação (de um povo sobre outro, por exemplo) e contra a exploração (de uma classe sobre outra, por exemplo), é a luta contra as formas de assujeitamento, isto é, de submissão da subjetividade, que prevalece. Pois nosso tempo inventou modalidades de servidão inauditas. E o que os secundaristas nos ensinaram é que também as formas de resistência se reinventam.
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A horizontalidade e a ausência de centro ou comando nas ocupações e nas manifestações dramatizaram uma outra geografia da conflitualidade. É difícil nomear uma tal mudança, e sobretudo transformá-la em pauta concreta. Como traduzir em propostas as novas maneiras de exercer a potência, de fazer valer o desejo,
de expressar a libido coletiva, de driblar as hierarquias, de fazer circular o discurso sem ficar à mercê da lógica da representação, de redesenhar a escola, de fazer ruptura, dissenso? Em todo caso, tudo indica que a ocupação das escolas não visava e não visa exclusivamente a elevação do “nível de ensino”, o respeito aos espaços de aprendizado, às modalidades de consulta e decisão, para não dizer gestão, sem falar das coisas mais elementares como a garantia da merenda, mas de algum modo, nessa experimentação vieram à tona muitas outras coisas. Se os protestos tangenciaram uma recusa da representação (ninguém nos representa, ninguém pode falar em nosso nome, nem sequer alguém de nós que pretendesse ser nosso representante), talvez também expressaram certa distância em relação às “formas de vida” que se têm imposto brutalmente nas últimas décadas, no nosso contexto bem como no planeta como um todo, e que atravessam a escola, fatalmente: produtivismo desenfreado, aliado a uma precarização generalizada, mobilização da existência em vista de finalidades cujo sentido escapa a todos, capitalização de todas as esferas da existência — em suma, um niilismo biopolítico que não pode ter como revide senão justamente “a vida multitudinária posta em cena”, nas escolas, nas ruas, nas praças, na Assembleia Legislativa, na autarquia estadual que administra as Escolas Técnicas de São Paulo etc. Em meio a reivindicações muito concretas, pontuais, precisas, muitos outros desejos se deixam expressar na dinâmica do próprio movimento. Reivindicações podem ser satisfeitas, mas o desejo obedece a outra lógica – ele tende à expansão, ele se espraia, contagia, prolifera, se multiplica e se reinventa à medida em que se conecta com outros.
Falamos de um desejo coletivo, onde se tem imenso prazer em ocupar coletivamente um espaço antes policiado, em ir à rua juntos, em sentir a pulsação multitudinária, em cruzar a diversidade de vozes e corpos, sexos e tipos, e apreender um “comum” que tem a ver com as redes, com as redes sociais, com a conexão produtiva entre os circuitos vários, com a inteligência coletiva, com uma sensorialidade ampliada, com a certeza de que a escola deveria ser o coração de uma sociedade, e não seu apêndice agonizante, assim como em 2013 alguns sustentaram que o transporte em São Paulo deveria ser um bem comum, assim como na Turquia os jovens consideraram que o verde da praça Taksim em Istambul era comum, assim como o deveria ser a água, a terra, a internet, as informações, os códigos, os saberes, a cidade, de modo que toda espécie de privatização e enclosure na sua versão atual constitui um atentado às condições da produção contemporânea, que requer cada vez mais o livre compartilhamento do comum. Tornar cada vez mais comum o que é comum – outrora alguns chamaram isso de comunismo. Um comunismo do desejo. A expressão soa hoje como um atentado ao pudor. Mas é a expropriação do comum pelos mecanismos de poder que ataca e depaupera capilarmente aquilo que é a fonte e a matéria mesma do contemporâneo – a vida (em) comum, a inteligência comum. Talvez uma outra subjetividade política e coletiva estivesse se experimentando, nesse movimento e em outros, como o do Parque Augusta e muitos outros, para o qual carecemos de categorias e parâmetros. Mais insurreta, mais anônima, mais múltipla, de movimento
mais do que de partido, de fluxo mais do que de disciplina, de impulso mais do que de finalidades, com um poder de convocação incomum, mas também com uma capacidade de organização horizontal, sem que isso garanta nada. É difícil medir tais movimentos sem usar a régua da contabilidade de mercearia ou do jogo de futebol. “Quanto lucramos”, “no que deu”, “quais forças favoreceu”, “no final quem venceu”? perguntarão. Não se trata de menosprezar a avaliação das forças em jogo, sobretudo num país como o nosso, em que uma vasta aliança conservadora distribui as cartas e leva o jogo há séculos, independente dos regimes que se sucedem ou do que dizem as urnas. Ou seja, não se trata de confiar no deus-dará, mas ao contrário, aguçar a capacidade de discriminar as linhas de força do presente, fortalecer aquelas direções que garantam a preservação dessa abertura, e distinguir no meio da correnteza o que é redemoinho e o que é pororoca, quais direções são constituintes, quais apenas repisam o instituído, quais comportam riscos de retrocesso. Nisso tudo, não se deve subestimar a inteligência cartográfica e a potência psicopolítica dos secundaristas. Eu diria, para retomar uma fórmula conhecida, que uma das definições de ética é a de estar à altura do que nos acontece. Creio que o movimento dos secundaristas esteve plenamente à altura do que lhes aconteceu, do acontecimento que lhes foi dado experimentar, inventando dispositivos concretos que permitiram sustentá-lo, intensificá-lo e expandir-se. Só posso desejar que essa conversa seja parte dessa movência, mesmo nas condições muito adversas do presente, que não tendem a arrefecer.
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IMAGEM:BijaRi
III.Engajamento com o mundo
Em Istambul, Nova York, Madri ou São Paulo, a ocupação de espaços por longos períodos tem sido uma das principais táticas empregadas pelos movimentos. Mesmo nas ocupações temporárias – que duram o tempo de uma manifestação -, o local ocupado já carrega uma simbologia importante. É o que Charles Tilly denomina ‘geografia simbólica’: os lugares carregam significados que comunicam a mensagem que o movimento quer disseminar. Não por acaso, o movimento Occupy toma o Zuccotti Park, em frente a Wall Street, símbolo do controle das finanças corporativas na vida política e social do país, responsável pela crise financeira e pela enorme concentração de renda (o ‘1% contra 99%’, principal slogan do movimento). Não por acaso, a ponte estaiada, símbolo da São Paulo financeirizada global, é ocupada na manifestação de 17 de junho. As ocupações temporárias representam também uma freada brusca no moto-contínuo do funcionamento das cidades, tornando visíveis temas submersos sob a avalanche do cotidiano. Mas a ocupação de longa duração – como experimentada na praça Tahrir, no Cairo, na praça Taksim, em Istambul, ou no Zuccotti Park, em Nova York, assim como em edifícios vazios de São Paulo e de outras cidades brasileiras – traz outro componente: a possibilidade de experimentar e ‘prefigurar’, ou seja, de exercer formas de organização, de tomada de decisão, de autogoverno e de gestão da vida coletiva, e de instaurar alternativas no presente, ensaiando futuros possível.
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Rolnik, Raquel. Guerra dos Lugares – A Colonização da Terra e da Moradia na Era das Finanças. São Paulo: Boitempo, 2015, p. 377.
Teve um debate na nova esquerda americana chamado Pré-Figurativo, de como você, ou às vezes, circuitos amplos, usam a frase do Gandhi: ‘Seja a mudança que você quer ver no mundo’, mas a forma é diferente. Então, a assembleia tenta ser a democracia que a gente quer e tenta exercer. A ocupação também. (...) Agora, na Praça da República em Paris está tendo um Occupy, onde se organiza a comida comunitária, segurança comunitária, assembleia comunitária, então, ali você está num esboço de mundo diferente.
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Jean Tible em entrevista concedida à revista Caros Amigos, 2016.
A CARTEIRA ANDANTE Quando vemos uma imagem dos estudantes com cadeiras abraçadas ao seu corpo, isso nos parece muito mais potente e político do que uma manifestação na qual milhares de corpos com as mesmas cores e marcas gritam palavras de ordem. Ao invés de sentados dentro de uma sala de aula, obedientes a uma ordem que nem sempre lhes ouve, nem sempre lhes representa (ou nunca) estes estudantes se fazem agora corpos públicos subvertendo a função da cadeira, fazendo-se corpos-cadeiras. Este objeto não mais disciplina os seus corpos, mas é por eles colocado para andar. Uma cadeira andante, que se encaixa no corpo de alguma forma, e serve como uma espécie de escudo contra a força policial descontrolada, e também de instrumento para batucar. Podemos ver aí um modo de fazer política, no qual o estudante aparece como estudante e não como um corpo anônimo ou um número. Segundo o sociólogo Jean Tible, em entrevista à revista Caros Amigos (no. 80, 2016), existe nos movimentos sociais contemporâneos, que indicariam o nascimento de uma nova esquerda, um aspecto pragmático, no sentido de que aquilo que é imaginado está totalmente colado a uma prática, uma práxis, e é esta que faz nascer uma nova linguagem, um novo imaginário, a partir de conexões que de fato se estabelecem no mundo. Neste sentido, é a própria vida, em todas as suas dimensões, que se torna o terreno da política. Não à toa, os secundaristas evidenciam que o espaço da cidade e o tempo do cotidiano são o espaço-tempo por excelência da política; e que o seu corpo de estudante é, por excelência, um corpo político.
Nas ações com as “cadeiras-andantes”, não há como diferenciar “formas de protesto” do fazer político cotidiano. A política aparece como estando presente no próprio ato de carregar a sua cadeira de aluno pelas ruas da cidade; não sendo o lugar do protesto uma coisa e o lugar da política uma outra coisa. O lugar da política não é um lugar diferente do lugar do corpo, de sua mobilidade no espaço e na própria cidade. Assim, se faz aquilo que se fala no próprio espaço do qual se fala. Ocorre que aqui a política é exercida plenamente apenas na medida em que o livre uso do mundo, ou o retorno do comum ao comum, acontecem. Há um forte componente de sobreposição temporal e espacial, heterotopias são compostas a partir disso e passam a circular enquanto imaginação e sensibilidade coletiva. E, portanto, temos também operando a figura da metacognição, na qual o processamento cognitivo de uma situaçãoproblema não ocorre abstratamente, mas no momento mesmo em que esta situação está ocorrendo e no espaço no qual ela deve ocorrer.
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Igor Miranda
BASE E REDE
Para mim, o principal erro de qualquer partido, de qualquer grupo, é que não se luta pelos interesses de uma base. Eu penso muito nisso e acho que o movimento principal pela educação vai muito além da educação, o problema é muito maior. Eu vi uma história de um secundarista de 64, Edson Luís, que morreu no Calabouço. E eu acho muito louco porque, na história, fala que foi um tempo em que eles começaram a se misturar com outros grupos, com o movimento dos sem-terra, com o movimento operário e eles se juntavam pra fazer reuniões, pra decidir quais seriam os rumos daquela luta. Então, eu vejo que o movimento é mais do que a gente e a minha intenção é tentar reunir esses grupos. Acho que a luta maior começa a partir desse momento, em que esses grupos começam a interagir e perceber que o problema é de base e que é de todo esse coletivo. Tem aquela frase do Einstein que eu gosto muito, quando fala dos que fazem sempre a mesma coisa, esperando resultados diferentes. Isso aí, pra mim, é a forma mais clara de que nunca vai haver resultado diferente. Eu levo muito esse princípio pros espaços em que estou, de que ocupar é uma ideia boa, mas não deve se repetir, até pra não estragar lutas futuras. Temos que pensar em novas táticas, novos resultados. Eu comecei a conhecer outros grupos, a interagir com eles, pra ver como funcionam. E o mal dos grupos partidários, sindicalistas é que eles não têm esse interesse pela base, de tratar como base. Aí o pessoal fala assim: ah, mas o único modo de se reunir é se organizar e pra isso existe o sindicato. Mas, a partir do momento em que o espaço já é vendido, ele não leva os princípios que têm que ser levados pelo coletivo. Acho que é por isso que a movimentação começa por fora e as pessoas começam a se reconhecer nessa movimentação, sem essa coisa de representatividade de excelência. Eu gostei dessa maneira, mesmo sem saber no que vai dar, mas tá sendo uma movimentação. Eu não quero morrer pra ver alguém fazer a luta, eu quero fazer a luta agora.
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Pedro Cesarino
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Na verdade, o que eu ia dizer é isso que você tá falando. Só vou trocar em miúdos, estender um pouco mais. Porque a gente, as pessoas da minha geração, parte das pessoas que estão aqui são da minha geração, viveu um tipo de experiência política diferente do que tá acontecendo agora. O que a gente tá vivendo agora é o fracasso total do tipo de política sob o qual a gente cresceu, que é a política dos partidos e da representação. Você tem o movimento social e os representantes do movimento social, que entram dentro da política, o que se chama de macropolítica, política grande, em que você vai discutir com deputado, com senador, com cargos na estrutura de administração pública pra poder fazer as coisas etc. E depois, isso tudo começa a fracassar por várias razões, até porque as pessoas que representavam as tais das bases, como você tá dizendo, começam a trair as próprias bases, o que leva à confusão que existe hoje. Mas, ao mesmo tempo em que isso começou a fracassar, e isso não aconteceu só no Brasil, aconteceu em vários lugares do mundo, você começa a ter um outro tipo de organização política que é uma organização mais horizontal. O modelo antigo é uma organização vertical, você pega as coisas que estão acontecendo no plano horizontal, junta e põe um representante lá em cima que passa a falar pelas outras pessoas. Essas organizações mais horizontais se criam através do estabelecimento de vínculos entre pessoas, mantêm as diferenças entre as pessoas, mas não permitem que esses vínculos produzam um representante. A minoria é aquilo que o Estado estabelece, cria e pacifica. Se você considerar os povos indígenas como uma minoria, considerar os LGBT – lésbicas, gays, trans etc. – como outra minoria, os afrodescendentes como outra minoria e assim por diante, você controla essas minorias, você sabe quantas pessoas têm, você oferece políticas públicas para aquelas pessoas, que são sempre mais ou menos, muito piores do que as condições de existência que a gente tem, mas põe uma coisinha lá que é só pra minoria não encher o saco. A ativação minoritária é uma outra coisa, ela não corresponde a uma classe demográfica, uma classe que você sabe qual é, você controla, você identifica. A ativação minoritária é incontrolável, você não consegue identificar. E ela escapa das classes, ela ultrapassa as classes, ela explode as categorias, ela vira uma série de considerações e conexões entre isso que vocês chamaram de amigos. Que é extremamente poderosa e cria uma reversão de todos os códigos. Por exemplo, os códigos estéticos, em que você vai lá e coloca uma asa numa carteira. Aí você não tá exatamente segmentando, você tá revertendo a estética da carteira, que era fixa, e produzindo uma outra imagem a partir de uma ativação poética. Achei muito legal o que você falou da outra vez, quando se falou muito em tática e você disse que é uma tática, mas é uma tática poética. Por que é uma tática poética? Porque os vínculos que se produzem são vínculos que se produzem através de uma afetividade que, de alguma maneira, é poética. E isso faz parte dos devires minoritários. Por exemplo, os povos indígenas poderiam ter desaparecido há muito tempo.
Pedro Cesarino
Eles estão há quinhentos anos sendo massacrados. Por que eles não desapareceram? Porque eles sempre tiveram e souberam mobilizar essas táticas. É como se tivesse uma estrutura de poder ali querendo te sugar e você encontra uma maneira de escapar. Por causa disso esses povos sempre existiram. Então, para responder à pergunta “o que fazer?”, talvez uma possibilidade – claro que não tem uma resposta, quem sou eu para dar uma solução pra qualquer coisa – seja identificar os momentos em que isso já aconteceu, aqueles coletivos que já usam esse tipo de estratégia há muito tempo, no caso dos povos indígenas, e ampliar ainda mais as ramificações dessa rede horizontal. Encontrar mais aliados. Porque uma coisa é quando você tem uma filiação, você tem relações hierárquicas dentro de uma estrutura de relações fixas, ou seja, você já é alguém que pertence a uma família, você é um aluno da série tal, do ano tal, da escola tal, você é o José da Silva, seu pai é o Paulo da Silva, sua avó... etc. Você já está dentro de uma estrutura de filiação muito clara. Outra coisa é quando você começa a criar outras alianças a partir de outras formas de existência possíveis. E são essas alianças que vão produzir algo que possa ir além do momento de exceção, que crie um prolongamento ou uma inovação mais forte. Acho que é isso, tem que explorar ainda mais a maneira pela qual é possível ativar formas de coletivização ou de vínculos que tragam mais potência e expandam mais essa rede, a ponto dessa rede não poder ser totalmente identificada, ou seja, o governo do Estado, as tropas de choque, o secretário da educação, não vão saber onde passa o corte da rede, onde é que você corta a rede. Porque as minorias são cortadas. Não só as minorias, as maiorias também. Ou seja, as maiorias só existem por causa das minorias. Tudo isso é cortado, é segmentado, você sabe muito bem até onde vai, onde termina, então você consegue controlar melhor. Mas quando você tem uma rede, que não estabelece cortes, porque os pontos vão se multiplicando numa outra lógica, eles vão se ramificando através de dinâmicas de intensidade e de afeto, e de intensidade de afetos, elas não são quantificáveis, elas não são números. Por outro lado, quando se quantifica uma minoria, então tudo bem, não importa, o Estado vai lá, prende todo mundo, acabou, resolveu. Mas aquela que não é quantificável é uma rede qualitativa, uma rede intensiva, não é uma rede de números, é uma rede de afeto, de relação, que você cria com os outros pontos da rede. Você não consegue estabelecer um corte e isso perdura. Pode ser que você tenha cinco anos sem acontecer nada, tudo dentro da normalidade e, de repente, a rede explode de novo, ela volta, aparece de novo. É esse tipo de movimentação que é a movimentação política que a gente aposta que possa fazer uma diferença no Brasil nos próximos tempos. Porque aquela outra, ela tá acabando. Se a gente conseguir efetivamente ampliar a intensidade dessa rede, isso tem uma potência, aí sim, capaz de mudar a macropolítica e aí a gente vai conseguir produzir um fato novo. Em alguns lugares isso foi totalmente abafado, como na Turquia, de uma maneira muito forte e hoje a Turquia tá muito pior do que tava antes, endureceu de uma maneira absurda. O Egito também.
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Grupo Contrafilé
Quando você estava falando, eu comecei a pensar nas imagens que os secundaristas produziram. Eu não sei, é difícil captar em imagem a imaginação política desse movimento das ocupações das escolas porque tá muito nesse lugar, de uma potência que é muito do afeto, não é a despotência da bandeirona vermelha e disso que tá totalmente estabelecido, que não produz nada que desloca, não chacoalha nada. Mas tem alguma coisa que acontece ali, da ordem dos afetos e que pode ser visto em algumas imagens, por exemplo na barricada de carteiras escolares fechando o trânsito, tem alguma coisa que se produz num lugar que é muito invisível mesmo, mas que, se instalando enquanto imagem ou não, ou enquanto experiência no corpo, eu acho que isso se movimenta numa rede. É quase como se a gente não conseguisse capturar como símbolo isso que acontece enquanto potência, não é símbolo, é alguma outra coisa que se movimenta e que pega num outro lugar, num lugar que é muito corporal.
Igor Miranda
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O que a gente traz é uma ideia acho que da Rosa de Luxemburgo, o que ela fala é bem isso: a tática traz o povo e não o povo traz a tática. A gente tem esse mesmo olhar, a gente não tem bandeira nem nada. As pessoas falam, são os estudantes que estão ali, as pessoas que estão ali, uma revolta popular, é o desejo da população, não o desejo de um grupo ou de outro. E quando esses partidos ou grupos levantam bandeiras, é porque acham que podem fazer a diferença, mas fazer sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes, acho que é a maneira mais tosca de se tocar uma luta. Eu acho que uma forma de luta diferente vem dessa ideia de que é a base que tá lutando, não é um partido, não é nada desse tipo. Então, as pessoas começam a se sentir parte disso, eu acho que isso forma a luta, isso dá outro nível pra luta.
Pedro Cesarino
Grupo Contrafilé
Você tá falando em uma base, não é uma base, são várias bases. E essas bases precisam se conectar.
E o que que é base?
Pedro Cesarino
Então, que que é base? Muito importante isso. Olha como a imagem é forte. A base é uma coisa em cima da qual a gente constrói algo. Então, se você constrói algo é porque tem alguma coisa em cima dessa base. Uma rede, não vai nada em cima da rede, pode ter criança pulando em cima da rede. Mas a rede não tem algo em cima nem algo embaixo. A rede tem lados e todos os lados são iguais a eles mesmos. Então, o que vocês tão fazendo não é mais uma base, é uma rede. Antes, o que se fazia, era base. Se você for conversar com o pessoal dos movimentos sociais, eles vão te dizer que vocês são uma base. Só que a maneira pela qual vocês se comportam e vocês ativam não é da base, é da rede. E é isso que o MPL fazia e faz ainda e é o que aconteceu em vários outros lugares do mundo. Essa é a tática e essa tática é extremamente poderosa e tem que se multiplicar. O problema da base é de soma, você tem que somar, o da rede é de multiplicação.
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Igor Miranda
Quando eu falo base é a população em geral, não tô falando de um grupo, ainda não consigo definir as pessoas como um grupo nem as escolas como pontos. Nas escolas, pra mim, tá todo mundo junto e misturado.
Grupo Contrafilé
Quando você fala base, eu não escuto base como uma categoria, por exemplo, “os trabalhadores”, eu escuto base como “ali onde tá o problema, onde tá emergindo a questão que precisa ser manifesta”.
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Igor Miranda
Pra mim, todo mundo que participou das ocupações, eu não pensava como pontos, era mais como os espaços que a gente têm na cidade conectados, mesmo estando separados.
Grupo Contrafilé
Acho que estamos chamando atenção pra isso porque as palavras assim como as cores, as bandeiras, dizem muito. Mas estamos entendendo algo assim: é com um estudante que todo mundo se identifica, assim como o MPL trabalha com a circulação na cidade - e o movimento na cidade pode ser entendido de muitas formas, a mobilidade do corpo, a mobilidade como desejo de se movimentar livremente. Isso fala de todo mundo, são lutas que falam da escola, de como se movimentar na cidade, da praça, das coisas da vida enquanto se vive uma experiência de vida, enquanto essa forma-comício “fala sobre”. Já foi eficiente, mas hoje em dia… Porque não vemos ali a coisa acontecendo no momento mesmo da enunciação. Por outro lado, nas comentadas imagens das carteiras, nós vemos, é concreto, é material, uma carteira sendo deslocada, estamos falando do que é. Cada vez mais a política tem que falar da vida, do desejo. Queremos pensar na escola pública, entende? Temos desejo em pensar isso!
Pedro Cesarino
Acho que o ponto é esse. É uma coisa dentro da escola, sim, mas o problema é que escola não é só o que tá dentro. Todo mundo é afetado pelo que acontece dentro da escola, seja quem efetivamente estuda na escola, seja quem não estuda. Então, ou a rede toda começa a perceber que o que acontece com os estudantes secundaristas é um problema nosso ou esse problema vai existir e nunca vai mudar. A gente viu essa história que aconteceu pouco tempo atrás das pessoas começarem a colocar no facebook eu sou guarani-kaiowá, começaram a mudar a foto do perfil, isso é um indício do que eu tô falando. As pessoas começaram a perceber que aquele problema era delas e não só dos guarani-kaiowá que estão sendo perseguidos por fazendeiros no Mato Grosso. Não é uma coisa boba, ingênua, ah que legal índio, não é isso. As pessoas começam a se dar conta da complexidade da rede e de que os pontos da rede são vários e precisam se multiplicar numa escala intensiva. O depoimento da Lilith: eu não sabia como ocupar, mas eu tinha que fazer aquilo, ou fazia aquilo ou perdia a minha escola.... Aprender fazendo. Isso é fundamental, porque isso efetivamente é o que movimenta a rede e produz um fato criativo novo que é um fato potente…
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Grupo Contrafilé
Estávamos construindo em função do Estado ou contra o Estado. Agora é uma equação complexa que vivemos. O fato de que todo o tempo existam discursos e práticas democráticas e extremamente antidemocráticas se enfrentando, se construindo e se desconstruindo umas às outras, torna a leitura da situação difícil. É difícil ter amizade, ter criatividade, ter paixão, quando tudo isso está sendo corroído por sensações que são desencontradas. Chegamos na praça e encontramos as pessoas empolgadas. Depois vem o Estado e aplica políticas econômicas conhecidas em total aliança com o mercado financeiro, assina lei antiterrorismo, agora somos todos terroristas, essa mesa inteira está fichada, é sabido que a polícia está fazendo isso. Talvez a questão real seja como a gente politiza ou repolitiza a amizade, não deixa a coisa morrer, faz apodrecer a árvore por dentro para que ela caia e abra uma clareira para a verdadeira potência política. Porque não existe fazer por fora. Ao mesmo tempo, como se cria autonomia nas lutas? As ocupações das escolas pressionam a instituição por dentro. Na verdade, não é uma estratégia, uma fórmula, uma ideia que vai salvar a gente, é uma conjunção de muitas coisas...
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O que está realmente em questão é, na verdade, a possibilidade de uma ação humana que se situe fora de toda relação com o direito, ação que não ponha, que não execute ou que não transgrida simplesmente o direito. Trata-se do que os franciscanos tinham em mente quando, em sua luta contra a hierarquia eclesiástica, reivindicavam a possibilidade de um uso de coisas que nunca venha a ser direito, que nunca venha a ser propriedade. E talvez ‘política’ venha a ser o nome dessa dimensão que se abre a partir de tal perspectiva, o nome do livre uso do mundo. Mas tal uso não é algo como uma condição natural originária que se trata de restaurar. Ela está mais perto de algo novo, algo que é resultado de um corpo a corpo com os dispositivos de poder que procuram subjetivar, no direito, as ações humanas”.
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Entrevista de Agamben concedida ao jornal Folha de São Paulo, 18 de outubro de 2005, citada por Paulo Arantes em ibidem, p. 393.
Pedro Fiori Arantes
REFAZENDO ESCOLAS
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Pedro Fiori Arantes é arquiteto, membro do coletivo Usina e professor de História da Arte na Universidade Federal de São Paulo - Unifesp.
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O ensaio Refazendo Escolas foi escrito por Pedro Fiori Arantes a partir de seu encontro com o vídeo Escolas, de Graziela Kunsch, 2016, exibido de março a junho deste ano no MAM - Museu de Arte Moderna de São Paulo. Pedro e Graziela gentilmente cederam o texto e frames do vídeo selecionados pela própria artista - para publicarmos neste caderno.
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Quando ocorreu a rebelião dos estudantes secundaristas em São Paulo, no fim de 2015, com mobilizações de rua e ocupações em quase duzentas escolas estaduais, em protesto contra a reorganização imposta unilateralmente pelo governo, uma das reivindicações era sintomática: reconhecer que os estudantes não são objetos do sistema educacional, mas sim seus sujeitos. A ação espontânea, em rede, inicialmente inspirada na luta dos estudantes chilenos, compreendeu as ocupações como tática de resistência e denúncia da estratégia autoritária do Estado paulista que previa fechar escolas em nome de uma suposta racionalidade administrativa e redução de custos. Separar o Ensino Médio do Fundamental, com uma pseudo justificativa pedagógica, era também um passo importante para o governo estadual se desincumbir das crianças menores e repassar aos municípios as escolas de Ensino Fundamental. O governo tentou retomar as escolas por meio de mandatos de reintegração de posse. Na luta pela posse da escola, de um lado o Estado assumia a posição de proprietário, enquanto os estudantes reivindicavam seu direito de uso: “a escola é nossa” – era o lema pendurado na entrada de várias delas. O juiz responsável pelo julgamento do pedido negou a reintegração e, em sua sentença, afirmou que havia legitimidade no ato, pois tratava-se de um problema de “política pública”, envolvendo crianças e adolescentes, sendo mais que necessário a resolução do conflito por meio de diálogo e negociação entre as partes. Intransigente, o governo não iniciou interlocução, criminalizou os estudantes e reagiu com bombas e pauladas da Polícia Militar. Hoje, o governo estadual conseguiu dispensar a mediação da justiça nas reintegrações de posse, intervindo diretamente com a polícia. De Piaget a Pinochet, a questão da educação foi transformada em São Paulo em praça de guerra com
confrontos diários. Inúmeros apoiadores passaram a ir às escolas, acompanhar as discussões, ajudar com alimentos e material de limpeza, propor oficinas, realizar apresentações e debates. Surgiram movimentos de pais em defesa dos filhos nas ocupações, como última instância de proteção aos estudantes, uma vez que o Estado não os defendia, ao contrário. Depois de mais de um mês de conflito aberto, caiu o Secretário da Educação e a reorganização imposta foi provisoriamente suspensa (contudo, retomada de forma disfarçada neste ano de 2016). Se o sentido confrontacional foi o mais destacado pela mídia, pouco se conheceu, a não ser por quem esteve lá, a dimensão imaginativa e experimental das ocupações. Diante do poder repressivo estatal os estudantes descobriram sua capacidade de organização e mobilização e exigiram participar das decisões e ações que dizem respeito à sua formação, seus corpos, mentes e espaços educativos. E, dentro das escolas ocupadas, foram criadores de novas situações de organização e uso do seu tempo-espaço. A disputa pela condição de sujeitos capazes de transformar sua história e seus lugares, a reivindicação da própria humanização, contra sua redução a mero número estatístico, num ensino de massa precarizado, repressor e disciplinador, é tema de um vídeo discreto, mas audacioso, da artista Graziela Kunsch, em exibição de março a junho de 2016 no setor educativo do MAM-SP, quando é projetado para estudantes e escolas visitantes continuarem reconhecendo, debatendo e propondo novos caminhos para a educação pública. É parte de seu Projeto Mutirão, no qual a artista apresenta vídeos disparadores de rodas de discussão sobre formas de opressão e subversão da vida cotidiana nas lutas pelo direito à cidade.
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Diferentemente de outros excertos do Projeto Mutirão, em geral vídeos curtos de plano único, o vídeo sobre o levante secundarista de 2015 é composto por uma sucessão de 26 imagens fotográficas filmadas, com oito segundos de duração cada. As imagens originais foram produzidas pela autora ou coletadas na rede, em diferentes escolas estaduais na capital [1], sem áudio, formando uma pequena composição visual alegórica desta mobilização estudantil: uma forma de revelação de uma verdade oculta que opera não como mera apresentação do real, mas como uma versão, no campo da representação, de como foram ou poderiam ser as coisas, segundo uma narrativa que é política, mas também estética.
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O primeiro conjunto de doze imagens surpreende por não retratar nenhum estudante – afinal são eles os sujeitos da rebelião –, mas apenas carteiras escolares, nas mais diversas situações. Há uma progressividade na escolha das fotografias, com sentido de movimento e organização. O ponto de partida é uma imagem de cadeiras e mesas escolares dispostas de modo convencional, disciplinar, em uma sala precária, com pintura descascada, trincas e massa corrida em pontos da parede. Logo após, as cadeiras estão empilhadas nos corredores, em situação caótica, formando barricadas e bloqueando a passagem de quem vem de fora. É o primeiro momento de negação, que remete à tradição das barricadas (da Comuna de Paris a Maio de 1968, dos bloqueios de vias pelos piqueteiros argentinos ao “como ocupar uma escola” dos
estudantes chilenos e, também, às ocupações e barricadas de sem-teto no Brasil). A seguir, uma sala com um carrinho de pedreiro, material de pintura e cerâmicas para o piso. lose em duas delas nos faz imaginar dois estudantes ou trabalhadores que estivessem ali sentados. O sentido de diálogo e construção começa a surgir no ar. A negação é determinada e agora positiva algo novo: é instituidora de uma nova relação que emerge nas imagens seguintes. Nas salas de aula já reformadas e pintadas, surgem cadeiras e mesas dispostas de forma não linear, sem as fileiras de espectadores em relação ao professor. São dispostas em círculos concêntricos, aonde todos se veem, em diagonal, em grupos de trabalho, indicando outras formas de diálogo e interação na classe, mais democráticas e participativas, menos hierárquicas e disciplinadoras. O pulo seguinte é para fora da sala, quando cadeiras em roda, no pátio da escola, já dispensam os limites das quatro paredes da classe. Não há como não imaginar, em todas essas cadeiras vazias, que ali estão pessoas, crianças e adolescentes em formação, corpos irrequietos querendo o novo. As cadeiras são, assim, sinais da mobilização insurgente, metáforas narrativas dos estudantes em movimento, e pelo modo como são apresentadas, aparecem como dotadas de vontade e intenção transformadora.
A escolha de imagens e a montagem de Grazi é uma resposta à reificação dos estudantes pelo sistema educacional estatal: enquanto pessoas são transformadas em objetos, as carteiras são aqui humanizadas, como sujeitos com intenções determinadas. Essa ironia alegórica constitui um “primeiro ato” do vídeo, que irá a seguir introduzir, afinal, os sujeitos estudantes. A décima segunda imagem faz essa transição. Aparecem um colchonete no chão e um violão branco sobre mesas – rastros de alguém acampando, ocupando a escola de forma não convencional. Na imagem seguinte os colchonetes se multiplicam, cada um com seu lençol cheio de desenhos, um deles com um ursinho de pelúcia sobre a coberta e, no canto, o pé de alguém. Feita a transição para o “segundo ato”, aparecem finalmente os jovens ocupando e transformando o espaço e sua vida cotidiana na escola. Nas cinco fotos seguintes, os estudantes cuidam da casa-escola organizados em mutirão: preparam refeições na cozinha, tratam do jardim, limpam salas, pintam muros etc. A escola é tratada não mais como espaço disciplinar de uma escola estatal impessoal, mas como
espaço experimental do comum. O não-lugar, no sentido de Marc Augé, da escola genérica, padronizada, é transformado em lugar apropriado e ressignificado pelos estudantes. Eles sabem que nela transcorre um bom tempo de suas vidas, que deveria, talvez, ser o melhor tempo, o de descoberta de histórias, sentidos e novos companheiros. A escola é assim reinventada pela autogestão dos estudantes, com seus corpos, ritmos, cores, movimentos – num exercício experimental de liberdade. Mas, lembremos, esse território livre não é um fato dado, está em luta, em enfrentamento com o poder autocrático estatal. As cadeiras-sujeito voltam à cena, dispostas agora na rua, sobre uma faixa de pedestre, já fora dos muros da escola. Estão em meio a uma névoa de gás lacrimogênio, resultado das bombas lançadas contra os estudantes. Grazi retoma aqui a narrativa alegórica das carteiras, reencandadas pelo sentido emancipador do ensino, desta vez no front, em choque com a polícia violenta enviada pelo governador. Este é o único momento em que há um movimento de câmera, no interior da imagem, desde cones laranjas até um carrinho de supermercado, no qual os estudantes transportavam as cadeiras para a rua.
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A passagem seguinte choca. Do meio da avenida esfumaçada, passamos a um close da lata de carne empacotada da Friboi para a merenda escolar. De novo a lembrança do estudante-objeto, número, ensino enlatado. E surgem mais pacotes de carne, agora da Swift, e suco artificial Tang. Referências aos gangsters da carne de Chicago, tema da famosa peça de Bertolt Brecht, A Santa Joana dos Matadouros, ou aos desmatadores da Amazônia para expansão do gado e soja, somam-se agora, evidentemente, à citação indireta à máfia da merenda, liderada por deputados governistas e que desviou recursos das escolas – motivo atual (em maio de 2016), de nova mobilização estudantil, agora na Assembleia Legislativa e nas ETECs, escolas de período integral em que os estudantes não recebem nada para se alimentar.
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Mas a sequência de comida enlatada de má qualidade se transforma numa imagem de um rapaz cercado de cenouras, cortando-as em rodelas, lembrando que a alimentação dos estudantes deveria não apenas ser mais saudável, fresca e natural, como também articular-se com a agricultura familiar e a reforma agrária, como prevê o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar) – ao invés de render dinheiro para grandes trusts como a Friboi e a Swift. O vídeo se encerra apresentando a fachada da escola Rachid Jabur, com uma enorme faixa: #ocupado – para quem ainda não entendeu do que se trata, essa é a imagem mais direta do vídeo. A surpresa fica com a
última imagem, que faz a conexão do looping, quando o vídeo volta automaticamente ao início. É um rapaz pulando um muro. Não se sabe para qual lado ele pula, mas não importa. Seja pulando para dentro da escola ocupada ou desta para fora, ele está em movimento, com sua capacidade de invenção, mobilização e transformação para outros lugares da cidade. Resta saber como um vídeo sensível e incisivo como este, não discursivo nem panfletário, pode ser uma arma poderosa de reflexão e mobilização sobre processos em curso. Ele exige um tempo lento de recepção e reflexão, um silêncio e um cuidado que não obedece a circulação frenética das imagens “virais” que se multiplica nas redes, de consumo fácil e imediato. Não que ambas formas de comunicação sejam excludentes, mas é preciso reaprender a leitura mais densa das tramas que organizam imagens aparentemente banais e suas narrativas. Na montagem de Grazi não há mistério técnico, ao contrário, o vídeo ensina a fazer, estimula cada um a compor e montar, como uma colagem. Mas possui uma inteligência visual e narrativa incomum nesses tempos de proliferação de um certo tipo de mídia tática ligeira. Por isso, mereceria ser visto e debatido por aqueles (e outros) estudantes rebeldes em suas escolas e coletivos, estimulando a reflexão e a memória, colaborando para manter vivas as hipóteses de reinvenção do espaço e da vida cotidiana escolar, e mesmo da forma de se fazer política e autogestão, por aqueles que sacudiram (e ainda sacodem) um dos Estados mais conservadores e militarizados do país.
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As imagens que compõem o vídeo foram feitas por Graziela Kunsch em escolas ocupadas em São Paulo em novembro e dezembro de 2015 e também a partir de fotografias baixadas da internet, publicadas sem créditos de autoria. Essas imagens estavam nas páginas de Facebook das autodenominadas Escolas de Luta ou Ocupações E.E. Ana Rosa, Dica (E.E. Emiliano Cavalcanti), E.E. Fernão Dias Paes, E.E. João Kopke, Mazé (E.E. Maria José) e E.E. Salvador Allende e na página do coletivo O Mal Educado.
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Suely Rolnik
A HORA DA MICROPOLÍTICA
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Suely Rolnik é psicanalista e professora titular da PUC-SP (onde fundou o Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade no Programa de Pós-Graduação de Psicologia Clínica) e foi professora convidada do Programa de Estudios Independientes, programa de mestrado do Museu contemporâneo de Barcelona, de sua fundação (2007) ao seu encerramento (2014). Dedica-se à investigação das políticas de desejo em diferentes contextos e situações, abordadas de um ponto de vista teórico transdisciplinar e indissociável de uma pragmática clínico-política. É desta perspectiva que participa ativamente no debate internacional por meio de conferências, laboratórios, publicações e curadorias. Concebeu e realizou o Arquivo para uma Obra-Acontecimento. Projeto de ativação da memória do corpo das proposições artísticas de Lygia Clark e seu contexto (65 filmes de entrevistas) e foi curadora, junto com Corinne Diserens, da exposição Somos o molde. A você cabe o sopro. Lygia Clark, do objeto ao acontecimento (Musée des Beaux-arts de Nantes, 2005, e Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2006). Foi uma das fundadoras da Red Conceptualismos del Sur, que hoje reúne 60 pesquisadores de diferentes países da América Latina que se dedicam à arte conceitual no continente, estabelecendo arquivos de artistas e grupos, assim como formas de tornar tais arquivos públicos e garantir sua permanência no país. Publicou inúmeros ensaios em livros, revistas e catálogos de arte no Brasil e/ou no exterior.
A Hora da Micropolítica é um trecho da entrevista concedida por Suely Rolnik a Aurora Fernández Polanco e Antonio Pradel a Re-visiones, revista de arte e pensamento visual contemporâneo, bilíngue espanhol/inglês (# cinco – Madrid, 2015). Link da entrevista mencionada: http://www.re-visiones.net/spip.php?article128. A entrevista foi traduzida para o português por Josy Panão e este trecho foi trabalhado para sua publicação como livreto (São Paulo: N-1, 2016). Como uma ghost writer de seus entrevistadores, Suely inventou novas perguntas para anteceder e introduzir textos que não constavam do original. Tais perguntas foram enviadas aos entrevistadores, os quais entraram no jogo e as tomaram para si.
Como você vê o que está acontecendo com os governos de esquerda na América Latina? Estamos em plena destruição dos governos de esquerda na América Latina. Se este estado de coisas resulta de uma nova estratégia de poder do capitalismo globalitário em sua versão financeirizada, é evidente que ele resulta igualmente de um limite da própria esquerda que se revela mais contundentemente em sua impotência face a esta nova estratégia de poder. O âmago de tal estratégia consiste em uma tomada de poder do Estado que não se vale da força militar, como era o caso durante o capitalismo industrial especialmente no continente latino-americano, mas sim da força do desejo – e, portanto, da força da própria vida individual e social –, com o fim de torná-la reativa. É verdade que tal dimensão micropolítica do poder não é nova, mas na etapa atual do regime capitalista ela ganha um lugar central e se refina, assim como aprimora-se sua articulação com a tradicional estratégia macropolítica (que atua apenas no âmbito do Estado). Isto faz com que seja muito mais difícil decifrá-la e combatê-la. O imaginário das esquerdas não abarca a dimensão micropolítica e, sendo assim, não tem como decifrar a estratégia de poder do capitalismo financeirizado, e muito menos combatê-lo. Não resta dúvida de que a experiência que estamos vivendo na América Latina é muito triste e assustadora, mas há que reconhecer que ela está sendo igualmente valiosa. Por quê? Porque nos permite reconhecer o que a esquerda pode e também o que ela não pode, dados seus limites, inerentes à sua própria lógica. O que a esquerda pode é praticar a resistência no âmbito do Estado (que se esteja dentro dele, ou fora dele nos movimentos sociais). Uma forma de resistência cujo foco é lutar por uma democracia que não seja somente política, mas que seja também econômica e social – uma distribuição mais justa da riqueza material e imaterial. Nesse âmbito, a esquerda representa sem dúvida a melhor posição possível –
ainda que, em sua atuação nos governos ditos “de esquerda” varie o grau de ampliação da democracia almejado por cada um deles, que é inversamente proporcional à sua maior ou menor cumplicidade com a agenda neoliberal.[I] Por isso, sinto gratidão pelos ancestrais de esquerda, que são os que lutaram no contexto da democracia burguesa, apesar de alguns terem sido mais lúcidos, mais valentes, mais persistentes e, sobretudo, mais íntegros que outros. No âmbito macropolítico, ser a favor de um Estado mais justo e com menos permeabilidade ao neoliberalismo é o mínimo do mínimo a que se pode aspirar; não se ter sequer essa consciência moral já é do domínio da psicopatologia, com forte tendência à perversão e à psicopatia, nas quais a existência do outro não conta. O problema é que não basta ter essa consciência de cidadania… Por que não basta? É a isso que você se refere quando afirma que é preciso reconhecer o que a esquerda pode, mas também o que ela não pode? Sim, é isso. Se o destino das assim chamadas “revoluções do século XX” foi por nós vivido como uma traição que nos deixou perplexos e decepcionados, é porque ainda mantínhamos a crença de que um dia existiria essa totalidade que designávamos pelo nome de Revolução, herdeira da ideia monoteísta de paraíso. No entanto, o que está acontecendo – não só na América Latina, mas também em escala internacional – nos lança em outro nível de lucidez que inclui um saber ético (orientado pela vida, e por aquilo que deve ser transformado para que ela recupere a força de sua pulsação). Tal saber é distinto de uma consciência moral (orientada por modos de existência pré-estabelecidos e pelas visões que lhe correspondem). É desse ponto de vista que se revela o limite do que pode a esquerda – o limite da cultura moderna ocidental, da qual ela mesma faz parte.
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É inegável o grande perigo que representa a atual derrocada mundial das esquerdas e a ascensão ao poder de forças macropoliticamente reacionárias e micropoliticamente reativas e conservadoras. Entretanto, é precisamente a gravidade dessa experiência que nos leva a perceber que não basta atuar macropoliticamente. Porque, por mais que se faça no plano macropolítico, dentro e fora do Estado, por mais brilhante que sejam as ideias e as estratégias, por mais corajosas que sejam as ações, por mais êxito que tenham, por menos autoritárias e corruptas que sejam – do ponto de vista micropolítico, o que se consegue é apenas uma reacomodação do mapa vigente, com menos desigualdade econômica e social e com uma ampliação do direito à cidadania. Se estas conquistas são, sem dúvida, indispensáveis – e devem inclusive ser muito mais aprimoradas e ampliadas –, deixa-se de lado outras conquistas essenciais, sem as quais não há possibilidade de mudança efetiva. É que a cartografia social e cultural permanece regida pela mesma lógica baseada numa micropolítica reativa. E tudo volta para o mesmo lugar, exatamente aquele do qual pretendíamos sair.
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Isso não me surpreende de maneira alguma, tampouco me provoca ressentimento, raiva ou ódio, nem faz com que eu me sinta traída, porque sei que no âmbito dessa lógica, não poderia ter sido de outra maneira. Ao invés de sucumbir à melancolia – ou seja, à impossibilidade de fazer o luto do objeto perdido, mantê-lo idealizado e permanecer eternamente colada a ele como condição para existir –, sinto que graças ao desmoronamento desse mundo e de sua idealização, podemos reconhecer mais claramente que é preciso nos deslocarmos da micropolítica dominante, que abarca as próprias esquerdas. Refiro-me à micropolítica reativa do inconsciente colonial-capitalístico que comanda o sujeito moderno que, todavia, encarnamos, inclusive nas esquerdas. É nessa direção que se move um novo tipo
de ativismo, que vem se propagando na sociedade brasileira, principalmente nas periferias, em especial entre jovens, negros e LGBT – e, no interior destes, mais especialmente entre as meninas. Com uma lucidez e uma inteligência extraordinárias, inventam-se múltiplas formas de ação micropolítica em seu sentido ativo. Estas talvez já não caibam no imaginário das esquerdas, sobretudo em sua versão partidária e sindical, e menos ainda no binômio esquerda versus direita, no qual situa-se tal imaginário e onde ganha seu sentido. Trata-se de uma nova maneira de decifrar a realidade, de situar os problemas e de atuar criticamente a partir deles; em suma, de uma nova concepção da política.
Você criou, há alguns anos, essa noção de “inconsciente colonial”, e vem desde então trabalhando com ela. Como você definiria essa noção agora? E por que passou a denominá-la “inconsciente colonial-capitalístico”? Sim, tem razão, é importante esclarecê-lo para nossa conversa. Mas para isso, necessito colocar primeiro algumas ideias um tanto densas e que nos tomarão um certo tempo. Elas dizem respeito a duas das múltiplas experiências simultâneas que fazemos do mundo, as quais resultam de duas distintas capacidades de que a subjetividade dispõe para apreendê-lo. E se preciso descrevê-las para responder tua pergunta é porque a definição de uma política do inconsciente – e, portanto, do desejo – depende do grau de uso ou de não uso que a subjetividade faz de tais capacidades.
A primeira é a experiência imediata, baseada na percepção que nos permite apreender as formas do mundo em seus contornos atuais – uma apreensão estruturada segundo a cartografia cultural vigente. Em outras palavras, quando vejo, escuto ou toco algo, minha experiência já vem associada ao repertório de representações de que disponho e que, projetado sobre este algo, lhe atribui um sentido. Trata-se da experiência do que chamamos de “sujeito”. Se essa capacidade cognitiva é, sem dúvida, indispensável para a existência em sociedade, ela não é a única a conduzir nossa existência; vários outros modos de apreender o mundo operam simultaneamente, constituindo a experiência complexa a que chamamos de subjetividade. O problema é que, em nossa tradição ocidental, confunde-se “subjetividade” com “sujeito”, porque na política de subjetivação que predomina nesta cultura é apenas esta a capacidade que tende a estar ativada. Um outro tipo de experiência que a subjetividade faz de seu entorno é a que designo como “fora-do-sujeito”: é a experiência das forças que agitam o mundo enquanto corpo vivo e que produzem efeitos em nosso corpo em sua condição de vivente. Tais efeitos consistem em outra maneira de ver e de sentir aquilo que acontece em cada momento – às quais Gilles Deleuze e Félix Guattari deram o nome, respectivamente, de “perceptos” e “afectos”. Estes não têm nem imagem, nem palavra e nem gesto que lhes correspondam e, no entanto, são reais – dizem respeito à dimensão viva da matéria do mundo, cujos efeitos compõem esse outro modo de apreensão, précognitivo, o qual denomino “saber-do-corpo”. E se este é parte integrante da subjetividade, aqui já não se trata da experiência de um indivíduo, tampouco existe nesta experiência a distinção entre sujeito e objeto. É que nesta dimensão de nossa existência somos parte do corpo vivo da terra e não há separação entre nós e o
mundo, já que este “vive” efetivamente em nosso corpo sob o modo de afectos e perceptos e faz parte de sua/nossa composição, a qual se faz num processo contínuo de re-criação de si impulsionado pelos mesmos. Essas outras maneiras de ver e de sentir formam uma espécie de germe de mundo que nos habita. Somos então tomados por um estranhamento, dado o fato de que este germe é, por princípio, intraduzível na cartografia cultural vigente. Ele é exatamente o que lhe escapa e a coloca em risco de dissolução. É que, por não corresponder às novas experiências da vida e suas demandas, tal cartografia lhe produz uma asfixia que a leva a nos pressionar para agirmos em direção a uma mudança. Sendo essas duas experiências simultâneas e indissociáveis e, ao mesmo tempo, irredutíveis uma à outra, sua relação é paradoxal. Gera-se entre elas uma fricção que desestabiliza a subjetividade e a lança num estado de inquietação que lhe causa um mal-estar. Tal mal-estar constitui uma experiência primordial, pois é o sinal de alarme que nos indica que a vida nos levou a um estado desconhecido, o qual impõe ao desejo uma exigência de agir para recobrar um equilíbrio vital, existencial e emocional. O desconforto da instabilidade e a exigência de trabalho que esse nos impõe são inevitáveis, pois que intrínsecos à vida em sua essência de processo contínuo de criação e diferenciação das formas em que a mesma se materializa. O que muda de uma cultura a outra ou de uma época a outra é a política de desejo predominante, o modo de resposta do desejo à experiência da desestabilização e ao mal-estar que ela provoca. Essa diferença não é nem um pouco neutra, pois cada tipo de resposta do desejo imprime um certo tipo de destino às formas da realidade – são distintas formações do inconsciente no campo social.
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Estudante
E em que consiste esta diferença entre distintas políticas do desejo face a essa inevitável desestabilização? E quais efeitos na realidade teria cada uma delas? Apontarei dois extremos no leque variado e variável de políticas do desejo face ao desconforto provocado por esse fenômeno incontornável: da mais ativa à mais reativa. É evidente que tais extremos não existem em estado puro, pois estamos sempre oscilando entre várias micropolíticas. O que importa é termos consciência disso e nos dispormos a combater nossas tendências reativas. Este é o trabalho de uma vida: um trabalho incessante e que está no âmago da ética de uma existência. No primeiro extremo, aquele de uma micropolítica ativa, as duas capacidades acima mencionadas encontram-se acionadas. E o mais importante é que a subjetividade, nesse caso, consegue sustentar-se na tensão da desestabilização que a fricção entre elas lhe provoca, o que lhe dá condições para manter-se à escuta dos afectos que lhe estão gerando seu mal-estar. Com isso, o mundo larvário que nela habita terá grandes chances de germinar e é na ação do desejo que se plasmará esta germinação. Tal ação consistirá num processo de criação que, orientado pelo poder de avaliação dos afectos, irá convertê-los em imagem, palavra, gesto, obra de arte, modos de existência ou outras formas de expressão quaisquer. E se essa operação consegue realizar-se plenamente, ela dará uma consistência existencial ao germe de mundo, ao materializá-lo e dotá-lo de um corpo sensível. Por ser portador da força de sua pulsação, tal corpo terá um poder de contaminação de seu entorno. É que quando as subjetividades afetadas pelas mesmas forças encontram este corpo, se estabelecem as condições para que elas também consigam sustentar-se no estado de desestabilização, de maneira tal que um processo de
criação possa desencadear-se levado por seu próprio desejo. E o mundo virtual que as habita se atualizará, por sua vez, em outras tantas imagens, palavras, gestos, obra de arte, modos de existência ou outras formas de expressão quaisquer. São distintos devires de si mesmo e de seu campo relacional. O efeito dessa política de ação do desejo é, portanto, o de uma transformação da subjetividade e de seu campo relacional imediato e, a partir dele, de outros campos relacionais das subjetividades que o habitam e assim por diante, capilarizando-se rizomaticamente pelo corpo do mundo.
A bússola que conduz o desejo nesse processo é uma bússola ética: sua agulha aponta em direção à própria vida, àquilo que está pedindo passagem para que esta continue pulsando. Uma bússola que não orienta o desejo segundo uma forma na qual a vida se encontre materializada, seja ela qual for (bússola moral), pois é precisamente uma nova forma que terá que ser criada para que a nova maneira de ver e de sentir se materialize e encontre seu lugar. A referência que orienta a agulha desta bússola como critério primordial de avaliação é a perseverança na potência do vivo que constitui nossa essência, a qual busca expandir-se para ampliar nossa capacidade de existir, o que se materializa na permanente construção da realidade. É o que, de diferentes modos, Espinoza designou por “conatus” e Nietzsche por “vontade de potência”.
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E se estas duas capacidades não se encontram ativas, o que acontece? Neste caso, é totalmente distinto o que se passa com o desejo e é, precisamente, esta diferença o que define uma micropolítica reativa, aquela que decorre do inconsciente colonial-capitalístico. Tal regime do inconsciente consiste na desativação da potência que o corpo tem para decifrar o mundo a partir de sua condição de vivente – ou seja, o saber-do-corpo, neste caso, encontra-se inacessível. Por estar bloqueada a experiência da subjetividade fora-do-sujeito, composta pelos efeitos do mundo no corpo, esse tipo de subjetividade vive o mundo como se estivesse fora dela e passa a existir e a se orientar somente a partir de sua experiência como sujeito. Constitui-se assim uma subjetividade “antropo-falo-ego-logocêntrica”, como costumo designá-la, cujo horizonte começa e termina no próprio sujeito: um si-mesmo concebido e vivido como uma unidade fixa, pertencente a uma totalidade fixa, separada do mundo. E como o sujeito se constitui da cartografia cultural que lhe dá sua forma e com ela se confunde como se fosse o único mundo possível, ele interpreta o desmoronamento de ‘um’ mundo, como um sinal do fim “do” mundo e de si mesmo. Em outras palavras, a subjetividade vive a fricção do paradoxo existente entre aquelas duas experiências como uma ameaça de autodesagregação. Tomado pelo medo, o mal-estar que essa experiência paradoxal lhe provoca transforma-se, então, em angústia do sujeito. 158
O desejo é então convocado a recobrar um equilíbrio apressadamente e o faz tentando recompor um mundo por meio do rastreamento de produtos que o mercado lhe oferece. São coisas, mas também – e sobretudo – formas de existir e imagens de mundo a elas associadas, sedutoramente veiculadas pelos meios de comunicação de massa. Fragilizada, a subjetividade os
idealiza, agarra-se a eles e os consome com a finalidade inconsciente de mimetizá-los, de modo a refazer-se rapidamente um contorno reconhecível e livrar-se de sua angústia. Reduzida ao sujeito, só restam à subjetividade duas escolhas para interpretar a causa de seu mal-estar: seja uma suposta deficiência de si mesma, o que transforma o mal-estar em culpa e sentimento de inferioridade, seja a maldade que lhe está sendo supostamente dirigida por alguém de seu entorno, o que transforma seu mal-estar em ódio e ressentimento. E os produtos que ela irá consumir para se acalmar dependem do tipo de interpretação que ela faz de seu desconforto. E em que se diferenciam os produtos que a subjetividade consome em cada uma dessas suas interpretações? No primeiro caso, para livrar-se da angustiante ameaça de exclusão que sua suposta inferioridade lhe traz, o desejo a conectará a produtos tais como roupas da moda, cosméticos, apetrechos para a casa, carros etc. – em suma, a tralha toda que a mídia oferece para todos os gostos e todas as camadas sociais. O que eles têm em comum é o fato que acabo de mencionar: tais produtos são sempre apresentados em cenários com personagens idealizados os quais, deslumbrada, a subjetividade tentará mimetizar. E para aplacar seu sentimento de inferioridade, o desejo a conectará a produtos de tarja preta da mega indústria farmacológica, a terapias esotéricas, a previsões astrológicas, a igrejas, a livros de auto-ajuda, mas também a teorias filosóficas complexas e, neste caso, tanto faz quais. É que nessa política de desejo, diferentes visões de mundo passam a equivaler-se como discurso prêt-à-porter que serve de guia para uma subjetividade que se dissociou de sua condição de vivente e não tem como encontrar palavras para o que lhe acontece.
Como os demais produtos, eles são usados como perfumes para neutralizar os maus odores da vida em seus pontos infeccionados que esse tipo de subjetividade não suporta sentir porque se apavora. No segundo caso, o desejo se conectará a narrativas que tenham como personagem principal um bode expiatório que lhe sirva de tela para a projeção de seu mal-estar. E o personagem demonizado pode ser uma pessoa, um povo, uma cor de pele, uma classe social, um tipo de sexualidade, uma ideologia, um partido, um presidente e outros tantos. Isto pode levar a ações extremamente agressivas, cujo poder de contágio tende a criar as condições para o surgimento de uma massa fascista. O que aconteceu no Brasil no transcorrer da preparação do golpe encaixa-se perfeitamente nesse segundo caso. “A culpa é da Dilma”, aquela espécie de mantra que tomou conta do país, surgiu do consumo da ficção que a mídia criou, tendo Dilma no papel de bode-expiatório, como parte da estratégia para preparar o golpe. Você deixou claros os efeitos da micropolítica ativa. E quais seriam os efeitos da micropolítica reativa? O efeito fundamental desta micropolítica é a conservação do status quo. Convocada pelo mal-estar, a potência do desejo é desviada de seu destino criador e canalizada para alimentar o mercado e produzir capital. A mídia, personagem central no cenário do capitalismo globalitário financeirizado, intensifica a desestabilização, reforçando o fantasma do perigo de desagregação iminente fabulado pelo sujeito; com a exacerbação do medo, a potência do desejo tende a transformar-se em potência de submissão. Este sim é um perigo real, o qual se alimenta do perigo imaginário do sujeito. A situação que estamos vivendo é uma incubadora desse perigo real.
Bem, aqui termina o passeio meio longo pelas políticas do desejo – da mais ativa à mais reativa – face ao mal-estar do paradoxo entre duas das múltiplas experiências simultâneas que fazemos do mundo. Agora sim posso responder à tua pergunta sobre o que entendo exatamente por inconsciente colonial, e porque lhe agreguei mais recentemente a qualificação de “capitalístico”. Se passei a designar por “colonial-capitalístico” o regime de inconsciente que corresponde à política do desejo dominante na cultura moderna ocidental, não é apenas porque o capitalismo nasce junto com esta cultura e é inseparável da empresa de colonização de parte do planeta levada a cabo pela Europa Ocidental. É também – e sobretudo – porque com sua versão financeirizada, o capitalismo vem logrando expandir seu projeto colonial a ponto de englobar o conjunto do planeta. Diante disso, faz sentido chamar o atual regime de “Capitalismo Mundial Integrado” (CMI), como propôs Guattari, já em 1980 [II] (é impressionante o quão precocemente ele vislumbrou o fenômeno da integração internacional do capitalismo financeirizado, que se deu a partir da segunda metade dos anos 1970 e com o qual este consolidou seu poder). O autor sugere substituir o termo “globalização” por CMI porque, para ele, o termo globalização encobre dois sentidos essenciais do fenômeno que ele nomeia: de um lado, o fato de que esse fenômeno é exclusivamente econômico e, mais especificamente, capitalista e, de outro lado, sua dimensão colonizadora, já que hoje não há mais atividade humana alguma no planeta que lhe escape. Como um tsunami, em sua versão neoliberal, a política de desejo colonial-capitalística espalha-se por toda parte, inundando tudo com uma velocidade e uma força incontroláveis.
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Grupo Contrafilé
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É com base na desconexão com o saber-do-corpo que se dá essa instalação mundial do capitalismo financeirizado. No lugar das narrativas singulares, variadas e variáveis, que seriam criadas a partir deste saber, impõe-se a todos um discurso único que Laymert Garcia dos Santos chama muito apropriadamente de “ocidêntico” [III]. Tal discurso sobrepõe-se à experiência da vida humana e a homogeneiza, por meio da sobrecodificação de suas múltiplas formas e de sua permanente transformação. Como um fantasma, o ocidêntico baixa na subjetividade e passa a conduzir o desejo. Confundida com o fantasma, é por sua livre e espontânea vontade que a
subjetividade passa a agir nessa direção. É neste sentido que não há resistência se não exorcizamos o fantasma do ocidêntico, em suas múltiplas versões – inclusive as das esquerdas –, o que depende de recobrar a escuta do saber-do-corpo e de agir no sentido do que ele nos indica. Então, é ao inconsciente colonial-capitalístico que você se referia quando afirmava que o que pode a esquerda se choca contra seu próprio limite? Seria este limite o regime de subjetivação que você chama de antropo-falo-ego-logo-cêntrico, e do qual a própria esquerda faria parte?
Sim, exatamente. O poder do inconsciente colonialcapitalístico engloba a subjetividade da própria esquerda, já que ela nasce no interior da mesma cultura e dela forma parte. Por não alcançar a experiência do fora-do-sujeito e a experiência subjetiva ficar reduzida ao sujeito, esta é vivida e entendida como sendo do âmbito do indivíduo – pois, conforme assinalei, é na experiência fora-do-sujeito que somos os efeitos das forças do mundo em nosso corpo e a partir deles estamos sempre em processo de recomposição. Se bem que essa ideia de redução da subjetividade ao indivíduo é própria da perspectiva antropo-falo-egologo-cêntrica em geral, em sua versão de esquerda, isso a leva a considerar que a prática de decifração do mundo a partir de seus efeitos na subjetividade (prática de uma micropolítica ativa) é movida por interesses individualistas. Sendo assim, tal prática é tachada de burguesa, o que a torna abominável; com base nessa interpretação, se desvaloriza e se rechaça a resistência no âmbito micropolítico. O mais paradoxal é que esse argumento justifica e reforça a desconexão com o saber-do-corpo, precisamente aquilo que caracteriza a subjetividade burguesa com seu inconsciente colonial- capitalístico. Em outras palavras, a subjetividade das esquerdas tende não só a reproduzir a micropolítica reativa, mas a enaltecê-la em nome de seus ideais. Abandonar esse modo de subjetivação passa por um “devir revolucionário”, como dizia Deleuze. Tal devir é impulsionado pelas irrupções de afetos que nos chegam pelo saber-do-corpo e que nos forçam a reinventar a realidade: são momentos em que a imaginação coletiva é acionada para criar novas maneiras de existir, outras alianças, novos sentidos. Estes se dão em várias direções e de modos distintos já que atualizam experiências singulares dos efeitos das forças que agitam a realidade, em determinado
momento e contexto, efeitos que estão presentes em todos os corpos. Ora, isso não tem nada a ver com “A” Revolução, com R maiúsculo, total e absoluta, pois, por princípio, tal bloco monolítico não abrange os devires revolucionários. Com distintas nuances, a ideia de “Revolução” orienta as ações do desejo na política de subjetivação antropo-falo-ego-logo-cêntrica em suas distintas versões de esquerda – sejam elas institucionais ou não, que estejam ou não atreladas a um totalitarismo do Estado. O fato da ideia de revolução restringir-se ao plano macropolítico é mais um dos sintomas da micropolítica reativa que rege sua imaginação comandada pelo inconsciente colonial-capitalístico. Por não ter como atuar no sentido de reinventar a realidade nos pontos onde isso seja necessário desde e diante do que a vida pede, o desejo termina por atuar contra a vida; torna-se reativo. É isto o que está por trás da surdez das esquerdas diante da catástrofe ecológica que ameaça a vida no planeta, assim como sua incapacidade de fazer-se vulnerável à singularidade das culturas indígenas e de outros tantos modos de existir que escapam ao discurso único do “ocidêntico”. Por essa razão, o único direito que tais governos e seus respectivos partidos lhes reconhecem – e olhe lá – é o de cidadania, o que deixa de fora seu direito de existir na singularidade de sua forma de viver. [IV] Nesse aspecto, eles são tão micropoliticamente reativos quanto os governos ditos “de direita” do ponto de vista macropolítico. É por essa razão que eu dizia que não basta tomar para si a responsabilidade como cidadão (o mínimo indispensável); é preciso, mais amplamente, tomar para si a responsabilidade enquanto ser vivo, de modo a agir no sentido de uma micropolítica ativa. Essa é a condição para nos tornarmos agentes da criação de modos de existência coletivos, o que começa em nossa própria existência, mas não termina nela.
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Mas conquistar essa possibilidade depende da quebra do feitiço do poder tsunâmico da micropolítica reativa do CMI e seu discurso ocidêntico, que se alastra por todas as esferas da vida humana e destrói seus modos de existir. A quebra deste feitiço passa por reconhecermos os efeitos tóxicos da estratégia do CMI em nossos próprios corpos e não nos submetermos a eles, resistindo nesse mesmo plano. Isso depende de uma desidentificação com os modos de existência que o CMI constrói no lugar daqueles que devastou, afim de que possamos desertá-los. Tal desertificação desesta-
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biliza o poder, o que torna esse combate muito distinto daquele que tem por alvo a tomada de poder. Trata-se aqui de um combate que não se faz por meio da oposição ao poder ou por sua negação, mas sim por meio da afirmação de uma micropolítica ativa, a ser investida em cada uma de nossas ações cotidianas – inclusive naquelas que implicam nossa relação com o Estado, que estejamos dentro ou fora dele. Não será exatamente esse tipo de combate que está sendo levado pelo novo tipo de ativismo que vem proliferando na sociedade brasileira?
[I]
Numa apresentação intitulada Linguagens Totalitárias, realizada por Laymert Garcia dos Santos no Programa de Ações Culturais Autônomas (P.A.C.A.), o autor nos propõe que, mais do que pensar em termos de esquerda e direita, deveríamos pensar em termos de uma menor ou maior permeabilidade do Estado ao neoliberalismo, a seus pressupostos e ao modo em que este atua em escala planetária. Este insight nos dá um valioso instrumento para problematizar o binômio esquerda versus direita que já não nos serve para pensar a situação contemporânea, ainda que do ponto de vista micropolítico não baste ser menos permeável à agenda neoliberal. A apresentação foi realizada na Casa do Povo (São Paulo, 12/11/2015) com o apoio de Projetos Episódios do Sul, Goethe-Institut São Paulo e América do Sul. O filme da apresentação encontrase disponível em: https://vimeo.com/153449199 e foi reeditado sob a forma de livreto na série Pandemia, N-1 edições.
[II] A
noção de “Capitalismo Mundial Integrado” foi sugerida por Félix Guattari numa conferência em um seminário do grupo CINEL (Paris, 1980). Foi publicada pela primeira vez em 1981 sob o título O Capitalismo Mundial Integrado e a Revolução Molecular, na coletânea de textos do autor Pulsações políticas do desejo: Revolução Molecular (São Paulo: Brasiliense, 1981; organizada e traduzida por Suely Rolnik). Ver desdobramentos desta noção em Guattari, Félix e Rolnik, Suely, Micropolítica. Cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1ª ed. 1986. ISBN: # 978-85-326-1039-3.
[III] Ideia proposta por Laymert Garcia dos Santos na mesma apresentação. [IV]
Eduardo Viveiros de Castro vem trabalhando nesta ideia há muito tempo. Sua menção mais recente foi em Os involuntários da pátria, aula pública durante o ato Abril Indígena, Cinelândia, RJ, 20/04/2016. A fala foi veiculada eletronicamente, entre outros, em http://depredando.tumblr.com/post/143332349965 e reeditada sob a forma de livreto na série Pandemia, N-1 edições.
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IV.Codigos
de Abertura
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O poder contemporâneo é de natureza arquitetônica e impessoal, e não representativa e pessoal. (...) Os políticos não estão lá para isso [nos representarem], eles estão lá para nos distraírem, uma vez que o poder está em outro lugar. Ninguém o vê porque todos o têm, o tempo todo, à frente dos olhos - na forma de uma linha de alta tensão, de uma rodovia, de um semáforo, de um supermercado ou de um programa de computador. (...) O poder é a própria organização deste mundo, este mundo preparado, configurado, ‘designado’. Aí está o segredo: não há segredo ‘algum’. O poder agora é imanente à vida (...). Determinada a disposição do espaço, governa os meios e os ambientes, administra as coisas, gerencia os acessos (...). É em estruturas de aço que as leis contemporâneas se escrevem, e não com palavras. (...) O grande mérito da luta contra o TAV [Trem de Alta Velocidade] na Itália é ter mostrado, com tanta clareza, tudo o que há de político num simples canteiro de obras públicas. (...) Quem quiser empreender o que quer que seja contra o mundo existente deve partir daí: a verdadeira estrutura do poder é a organização material, tecnológica, física deste mundo. (...) ‘O poder, de agora em diante, é a ordem mesma das coisas, e a polícia está encarregada de a defender’. (...) No tempo em que o poder se manifestava por editais, leis e regulamentos, ele deixava lugar à crítica. Mas um muro não se critica: ou ele é destruído ou grafitado. Um governo que ‘dispõe’ a vida por meio de seus instrumentos e planejamentos, cujos enunciados tomam a forma de uma rua ladeada de circuitos e repleta de câmeras, pede apenas, com frequência, uma destruição também sem palavras.
*
Comitê Invisível. Aos Nossos Amigos: Crise e Insurreição. São Paulo, N-1, 2016, pgs. 99-103.
No processo que vivemos com os estudantes secundaristas, aprendemos que ocupar tem a ver com liberar um território, torná-lo novamente um território comum e evidenciar o seu estado para o mundo. Quando os estudantes ocuparam as escolas, não à toa um de seus primeiros anseios foi poder ter acesso às chaves, não apenas da entrada principal do prédio, mas de cada sala, de cada dispensa escondida, de cada canto remoto. Assim, descobriram diversos lugares que não conheciam, materiais que nunca lhes foram disponibilizados, possibilidades que não imaginavam que poderiam ter – como, por exemplo, livros, teatros, equipamentos que ficavam guardados ou com o acesso bloqueado. Nesse sentido, ocupar é uma contra-chave, ou um código que serve para romper o código, ou romper a própria lógica de uma codificação produzida para excluir e segregar. Os códigos existem e são feitos para que possamos traduzir o mundo, nos comunicarmos, por isso, não é dado que os códigos sirvam tão somente para fechar, e isso ficou muito claro nessa luta. A ocupação serviu para abrir, em todos os sentidos, a escola para o mundo, assim como as chaves serviram para abrir as portas, os espaços, os possíveis existentes nos espaços, afrontando o seu eterno fechamento, essa espécie de perversão que aparta de um estudante a possibilidade de ter uma boa biblioteca, bons livros, quando esses livros estão ali, ao seu lado, mas em caixas, escondidos, obviamente negados. A eterna lógica de maltratar o outro porque este é visto como um inimigo, no caso brasileiro, um inimigo que não chega nem a ser estrangeiro, é um inimigo interno mesmo - e sabemos bem os porquês disso.
Com a ocupação dos secundaristas, pudemos ver o estado, o interior das escolas, os meninos e meninas, suas caras, seus gestos, suas expressões e, talvez mais importante que tudo, os seus desejos. Conversamos com os estudantes sobre essa lógica de abertura do território para o mundo em algumas ocasiões, primeiro quando tivemos uma espécie de insight de que eles chamaram a sociedade para dentro das escolas, de que eles como que tocaram um berrante e disseram “venham, estamos esperando vocês para que possamos juntas/os re-pensar tudo da escola”. Depois, em um momento muito emocionante, quando ocorreu um encontro entre o Grupo Contrafilé, os secundaristas e TC Silva, mestre quilombola, referência da Rede Mocambos, rede que conecta quilombos de todo o Brasil. Nesse encontro, conversamos sobre a relação entre a luta dos secundaristas e a luta quilombola e percebemos que, assim como o TC planta baobás para liberar territórios, para mostrar que aquele território é um território que está vivendo um processo de liberação, ou que é um território livre, os estudantes ocupam as escolas para produzir isso, abrindo-as para todas/os, que começam a se sentir no direito de pensar a escola coletivamente. O que eles produziram foi uma sensação de absurdo: “Como assim, não pensamos nisso enquanto sociedade? É a educação dos nossos filhos, netos...”. Com isso, eles subverteram a distorção do Estado enquanto dono privado da educação. E liberaram uma urgência de muita gente, que acredita ser possível haver um uso mais livre do mundo e das coisas do mundo, e das ações no mundo...
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Estudante
É uma coisa você estudar a situação política do Brasil quando você tá sentada na frente de um quadro olhando o professor explicar tudo. Só que é outro rolê você estar lá numa ocupação... Levando tiro, porrada, bomba... Numa assembleia... É por isso que as pessoas não conseguem no período de aula trocar uma ideia assim. É por isso que elas não conseguem vir debater com o professor, é por isso que elas não conseguem debater com a gestão e falar: não vamos fazer isso aqui, porque tem que fazer assim e temos o direito de fazer assim...
MOVIMENTOS QUE VÊM ABRIR OU RE-ABRIR A IMAGINAÇÃO POLÍTICA, PORQUE O FECHAMENTO É UM PERIGO.
Estudante
A nossa vida inteira a gente é ensinado a aceitar tudo o que acontece com a gente…Temos que entender a situação política do país na pele…
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Estudante
Acho que, na verdade, o que tá todo mundo querendo é um modelo que possa ser constantemente aberto… Um não-modelo…
Uma ocupação militar é o controle de um espaço e a dominação de um território insurgente ou inimigo. Já a ocupação empreendida por um movimento social significa ‘liberar’ o lugar para permitir que a população nele intervenha, desafiando a tentativa das autoridades de excluí-la (de um lugar, de um projeto, de um processo decisório). Trata-se, portanto, também de confrontação, mas em sentido inverso ao da ocupação policial/militar.
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Rolnik, Raquel. Guerra dos Lugares – A Colonização da Terra e da Moradia na Era das Finanças. São Paulo: Boitempo, 2015, p. 377.
TC Silva
É pra repensar mesmo. Mas será que já foi pensado de verdade? Às vezes pensou e pensou de um jeito meio torto.
É preciso repensar: o que são e como [1] são nossos mestres?
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[1]
Em junho de 2016, a 3ª edição da mostra Ciranda de Filmes teve como tema Mestres - referências para um tempo de incertezas. A convite de suas idealizadoras, Patrícia Durães e Fernanda Heinz, o Contrafilé participou do evento instalando uma mesa-lousa no espaço Itaú de Cinema, ao redor da qual promovemos um encontro entre TC Silva (Rede Mocambos), estudantes de luta (Lilith Cristina, Ícaro Pio, Igor Miranda, Cássia Quézia, Morena Hee e Layla Xavier Silva) e o público espontâneo da mostra. O fio do afeto-quilombo ligou um baobá ancião aos baobás jovens (estes que aquilombam escolas), tramando e ampliando a rede.
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Grupo Contrafilé
TC, você é importante para a gente e para a história do Contrafilé, a Rede Mocambos, rede dos quilombos, é uma referência de organização autônoma na América Latina, não só no Brasil. Sentimos que existe uma potência em aproximá-lo do movimento secundarista, que pra gente é um movimento muito mestre, que nos ensina muito. Neste momento político em que estamos é fundamental abrirmos estes espaços para pensar de um lugar sensível, do qual podemos fazer novas conexões, puxar fios. Que conexões existem entre o movimento quilombola, o baobá e o movimento secundarista? E como esta mesa-lousa, que não é a lousa vertical, de um único mestre, detentor absoluto do conhecimento, pode nos apontar caminhos? Como podemos repensar o que é um mestre? Só pessoas podem ser mestres? TC, como você pensa isso a partir da experiência quilombola? E os secundaristas de luta, como vocês pensam a figura do mestre?
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TC Silva
Não me chamo de mestre, mas reconheço a figura de mestre. Eu vivi numa comunidade quilombola com meu tio avô. Eu tinha 9 anos de idade, ele tinha 96. A nossa diferença de tempo era de quase um século. Vivi com ele um curto espaço de tempo, mas herdei toda a bagagem da tradição africana que ele carregava. No mato, tudo é bem definido, pelas 17h os pássaros começam a se recolher, os animais fazem uma algazarra muito grande, é tudo muito barulhento, a gente começa a sentir o cheiro da noite chegando. É um negócio impressionante aquele momento, é mágico. Eu estava sentindo isso quando meu tio avô, sentado em um tronco perto da casinha de pau a pique em que ele morava, debulhava milho e jogava para as galinhas. Ele era muito ágil, uma pessoa inteira, eu me pareço com ele, reconheço ele em mim. Ele me chamou e disse: “Ê menino, senta aqui comigo, conta pra mim o que que você viu, como é que foi seu dia”. Um contador de histórias, que todo mundo para pra ouvir, pede pra eu contar como foi meu dia! Que que eu vou falar pra ele? Eu senti que ele me observava e percebi que ele sentia que eu também observava ele. E naquela fração de segundo me senti tão idoso quanto ele e senti ele tão novo quanto eu, não existia diferença entre nós. Foi meu rito de passagem. Foi a primeira pessoa pra quem eu contei história, um grande contador. Acho que mestre é aquele que se reconhece, que compreende sua própria existência. Mestre não é aquele que estudou pra. Não, ele nunca leu os clássicos, mas sabia tudo da vida. Tinha uma capacidade muito profunda de compreender as coisas, a cultura do observar, de se relacionar com o tempo e não ter pressa, e não antecipar nada, reconhecer cada momento, cada palavra, cada som. Tudo tem significados. E aquele que observa, que se dá o tempo da observação, acaba se alimentando dessa sensibilidade. Isso é uma coisa que é possível pra todo mundo. Então, potencialmente, somos todos mestres.
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Ícaro Pio
Antes de ocupar a escola, a relação com o professor era bem diferente. Essa coisa de ah, ele é meu mestre e eu sou o discípulo, ele tem o conhecimento e eu não. Isso foi uma coisa que aprendemos, que todo mundo pode ser mestre. Você falou que potencialmente todos somos, basta querer, basta se deixar ser, é muito forte isso.
TC Silva
... Eu preciso saber quem eu sou, o que que eu sou...
Igor Miranda
O ambiente escolar te ensina a obedecer, simplesmente isso. Não existe diálogo entre saberes. O papel do professor é passar a matéria, para ele pouco importa se o estudante vai ou não saber aquilo, é passar matéria, é tirar nota, ou dez ou zero. E isso vai definir quem você é, isso é ser “normal”. Agora, se questionamos qualquer coisa, se saímos do normal, somos um produto que deve ser eliminado.
TC Silva 172
Não aproveita o potencial, né? Transforma em problema.
Cássia Quézia (estudante)
Pensando a partir das ocupações, não basta você ser um professor, qualquer faculdade que você fizer vai te dar um certificado, mas isso não te torna um mestre. Ser mestre é muito além, é passar o seu conhecimento, sua opinião, não alguma coisa que o governo vai lá e impõe. E é você que vai saber o momento, que vai ver o que as pessoas precisam.
Lilith Cristina
Eu gostei muito do que o TC falou sobre o conhecimento. Na ocupação a gente se olhava, olhava pro outro, se percebia no espaço e pensava nas nossas ações, o que que eu tô fazendo aqui, o que eu posso fazer pra melhorar a minha pessoa, isso não acontece na escola porque não somos preparados para nos reconhecermos, para nos percebermos no espaço. A gente nem sabe o que está fazendo na escola. Existe um mecanismo automático: sentar direito, olhar pra frente, ouvir o professor, levar aquilo que ele tá falando como verdade absoluta ou nem prestar atenção e acabou.
Layla Xavier Silva (estudante)
Na escola a gente não é estimulado a sonhar, a olhar pro mundo e para si mesmo e pensar “o que eu quero ser?”, dentro do Estado, da escola, não somos estimulados a ter um olhar crítico pro mundo. Quando a gente entra na escola a gente se depara com a ideia de que o conhecimento está apenas nos livros e que o olhar das pessoas sobre o mundo, as vivências, independente da idade das pessoas, não são conhecimento.
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Mulher 1
Essa coisa que você falou, o Estado não tem que te motivar. Se a gente começar com essa lógica, tudo vai ter que vir do Estado. E o rei está morto. O Estado faliu enquanto instituição. A motivação é nossa, o Estado só não pode atrapalhar.
Layla Xavier Silva
Quando eu me referi ao Estado, foi pensando na questão da escola. Eu acho que a escola tem que ser um espaço onde somos estimulados, porque nem todo mundo tem outros espaços de referência.
TC Silva 174
A gente, por exemplo, tem instrumentos para ser preto e continuar vivo. Imagina que instrumentos nós tivemos que inventar nesse Estado institucionalmente racista? A gente tem que discutir o Estado, sim.
Igor Miranda
As escolas foram abertas, tiveram o poder popular reacendido. Mas na USP, por exemplo, não tem espaço pra gente, eu não vejo a galera pensar em entrar na USP. A posição do professor é ah, trabalha aí que você paga uma faculdade, saca? E por que o jovem precisa de cota pra entrar em uma universidade pública? Não é bem assim, não é uma questão de motivação.
Cássia Quézia
E não é que a gente quer entrar na USP, a gente tem que entrar na USP! A USP é nossa.
Grupo Contrafilé
Vocês estavam ali na escola, mas era como se vocês não estivessem. E de repente, nas ocupações, tudo se integrou e vocês tornaram-se inteiros, puderam compartilhar conhecimento, assim como os professores que apoiaram. Uma coisa que o TC nos ensina muito é sobre o conhecimento compartilhado. Ele vai plantando baobás em vários tipos de territórios, o baobá, árvore africana ancestral, é uma chave para abrir. Território que tem baobá é território livre, território de luta, é um movimento de abrir pra compartilhar. E uma coisa que vimos no movimento secundarista é que quando vocês ocuparam, abriram a escola pra gente. “Vocês são o baobá da escola”. E eu acho que, sim, temos que discutir o Estado, porque ele trava essas operações. A nossa “rexistência” é com X, de resistir existindo. Temos que discutir, sim, porque ele mata, extermina, do nível mais real ao mais sutil.
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TC Silva
E o pior é que o Estado coloniza nossas mentes porque tem controle sobre tudo, sobre os meios de comunicação. Estávamos agora em Cuba e tudo que se sabe do Brasil, do que está acontecendo nesse momento, é pela Globo. E essa colonização faz a população ficar silenciosa, obediente e, de repente, a gente tá aí, vivendo um golpe.
Mulher 2
Esse processo de ocupação coloca em xeque o espaço da escola enquanto espaço que nasceu dentro de um modelo civilizatório que exclui pobres, negros, a mulher, os indígenas. É interessante a gente perceber que, hoje, o que os meninos e meninas das escolas públicas estão colocando aos professores e a todos nós é: é preciso descolonizar mentes! Isso é lindo.
Mulher 3
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Enquanto aluna, vivi muito esse processo de não me encontrar dentro da escola. E mesmo assim eu fiz Pedagogia, dou aula para crianças pequenas. E como fazer com que tudo que a gente trabalha na educação infantil se estenda? Que tem a ver mais com conhecimento de vida do que com conteúdo, com fazer junto, não ter divisão por disciplinas, onde a gente prioriza a afetividade... Na educação infantil a gente pode ir contra esse sistema escolar. E esses espaços, comunidades, essas trocas, ocupações, vão respondendo um pouquinho de como isso é possível.
TC Silva
A concepção civilizatória do ocidente é muito diferente da África. E veja, nós estamos no Brasil... Se alguém de fora te perguntar qual a cultura do seu país, você vai falar do quê? Vai falar de capoeira, candomblé, samba, maracatu, bumba meu boi, tambor de crioula... Então, olha o tamanho da estupidez, os colonizadores, estúpidos e quadrados como são, continuam querendo projetar o futuro do Brasil. E a gente tá indo na conversa. A concepção africana de mundo é sou porque somos, nada pra mim, tudo pra nós. Nossa terra, nossa comida, nossa casa, nossas crianças. E esses caras têm o quê pra ensinar pro mundo? Então, ou a gente se descoloniza ou a gente vai fazer aquilo que o colonizador sempre quis que a gente fizesse, obedecer a estupidez dele.
Ícaro Pio
Vocês falaram de não apenas resistir mas existir. Quando ocupamos uma escola, quando, enquanto negros, vamos em lugares não frequentados por negros ou quando entramos na USP, existimos. A gente ser a gente é isso, sabe? A partir do momento em que existimos, mostramos que a realidade posta não é a única. A gente tem que ser contra esse Estado que faz de tudo para excluir a gente de uns lugares e incluir a gente em outros totalmente diferentes.
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Grupo Contrafilé
Uma coisa que sentimos é que corpos historicamente violentados desde a barriga, nas ocupações puderam mudar de posição. Nas escolas ocupadas não existe uma noção proprietária do espaço de ensino e aprendizagem, o espaço é comum, é de todo mundo e o cuidado com o outro tem muito a ver com o cuidado do tio avô do TC, um senhor de noventa anos que cuida de uma criança e troca com ela, tem a ver com esse afeto entre vocês que faz com que os corpos possam existir. Agora, a gente também tem que se perguntar o que está acontecendo com vocês depois das ocupações. Sabemos que muitos estão sendo perseguidos. Quando retornam da ocupação pra sala de aula, como diretoras e professoras cuidam de vocês? Vocês aprendem e ensinam o que é ser mestre a partir do lugar do afeto e o Estado ataca isso na raiz, usando a lógica da perseguição, da violência, do extermínio, lógica contrária à vida. A gente precisa entender que está tratando com essa força o tempo inteiro, ela é muito poderosa.
Cássia Quezia
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É uma perseguição tão grande que querem tirar Filosofia de dentro das escolas! Filosofia, Sociologia! E por quê? Tá incomodando alguém? Quando a gente começa a ir atrás do que é nosso, eles começam a ficar assustados. Ocupar escola é abrir, mostrar pra todo mundo que aquilo tem que ser daquele jeito e não do jeito que os caras querem, porque senão a gente nunca vai ter nada. A questão não é só excluir os negros, pobres e periféricos. É excluir trans, mulheres, gays, lésbicas, excluir tudo! O normal é só eles... Homem, branco, rico, dentro dos padrões estabelecidos por eles.
Morena Hee (estudante)
A ocupação foi um espaço onde começamos a questionar essa coisa do perfeito. A gente tinha um ideal em comum, mas também muitas diferenças, começa que tinha menino e menina, imagina a segregação que não é isso. A gente teve que criar cota dentro da ocupação nas comissões, comissão de segurança, 50% da comissão vai ser feminina, sim. Criou-se um coletivo feminista na ocupação. As meninas falavam, os meninos falavam, a gente tinha assembleia todo dia, assembleia de cinco horas. E a gente cuidava daquele espaço, um espaço que não é meu, não é dele, é de todo mundo. E este ano, quando a gente reocupou as escolas e as diretorias e quando começaram as perseguições, fui escoltada de um lugar pro outro por uma viatura que nem olhou na minha cara, mas me levou até onde eu ia, foi um terrorismo, andei três quilômetros de noite, sozinha, sentindo que a qualquer momento eles podiam me bater. Chegando na ocupação eu estava transtornadíssima, descobri que outros companheiros foram perseguidos e não só perseguidos, como realmente a polícia veio, parou, já sabia o nome, já chamava pelo apelido, sabe? Estamos marcados e isso não é fácil. Estamos lidando com adultos e adultos que não são bobos, o governo do Estado não é impulsivo, de modo algum, pelo contrário, ele espera. E eles estão esperando muito, esperando achar nosso ponto fraco e temos que tomar cuidado, precisamos aprender a segurar a emoção, porque eles não são como a gente, são um negócio, sei lá, um sistema, uma corporação, uma coisa tão desumana que eles nem conseguem agir por sentimento, se o Alkmin quisesse, já tinha jogado uma bomba na gente, se fosse agir por emoção. É um absurdo esse terrorismo, a gente se sentindo observado todo o tempo. Eu tenho 16 anos, isso é normal?
Grupo Contrafilé 179
É o normal deste Estado em que a gente vive, um Estado de exceção permanente. Podemos pensar em um trabalho de contra inteligência baseado no afeto... Nesse afeto de todos por vocês, como se fosse um contra fichamento, a gente ficha todo mundo... Mas pra proteger, a sociedade protegendo contra o Estado.
Morena Hee
Estamos arriscando a nossa vida e a de todo mundo que a gente conhece. E essa ficha, pelo menos pra mim e pra muitos companheiros, caiu agora. A que ponto chegamos fazendo na ocupação a escola utópica, onde os alunos fazem a gestão, limpam, cozinham, onde os alunos decidem que horas vai ser a aula de Português, que horas vai ser a de Matemática, onde os alunos decidem se querem ir pra essas aulas ou não e os que querem vão e a aula é muito mais dinâmica porque só quem quer estar ali, está ali.
Mulher 3
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Eu tive a sorte de acompanhar algumas ocupações em Campinas e uma em Bauru na qual a escola ocupada tinha uma gestão compartilhada pelos alunos e pela comunidade. A galera da comunidade fazia assembleia junto com os alunos, na porta da escola. E era muito interessante porque as atividades que aconteciam na escola vinham da comunidade. Tinha gente que sabia dar aula de yoga, ia dar aula lá. Aula de tricô, conhecimentos que permeiam a mesma rua, mas que nunca tinham encontrado o lugar de serem compartilhados. Coisas que ficavam nas casas, na escola, mas separados. Aí, de repente, aquela escola virou um espaço onde os vários mestres que existiam naquela rua – e eu considero mestres também os alunos – podiam compartilhar. Viraram aquele espaço de ponta cabeça, trocaram tudo, um espaço que era um canto isolado, de repente, foi totalmente colorido, virou uma horta, um lugar onde se ensinava a plantar, onde se ensinava a grafitar, a bordar e isso é incrível.
Grupo Contrafilé
E o que deveria ser uma escola senão isso!?
TC Silva
Orientado pela concepção de mundo africana, o território é o que nos define. Porque o território não é uma escola isolada de mim. O mestre não é uma pessoa distante de mim, que virou mestre porque se formou na academia. Primeiramente, quem somos nós? Isso é o princípio básico. A sociedade, o que ela faz é nos roubar de nós. Uma música que se chama Tempo de sonhar, diz assim:
“Vem, viver é fácil Como poder avoar Voar até além de onde vai a luz No fundo escuro de nós”
TC Silva
Muito legal vivenciar esse momento aqui com vocês, pessoas tão novinhas imbuídas de uma coragem, uma inteligência… A gente quer fazer outro mundo, mas vamos fazer esse mundo ser bom pra todo mundo. Em nossa rede de comunicação quilombola, a Baobáxia, a gente não usa servidor do Google, a gente só trabalha com software livre, temos uma rede de desenvolvedores espalhados pelo Brasil e fora também. A gente chama isso de mucua, não chama de servidor, “mucua é o nome do fruto do baobá que carrega a semente, como vocês, que são sementes boas, vocês não são sementes transgênicas, são sementes criolas! Sementes transgênicas não geram vida”.
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Pedro Cesarino
APRENDER COM AS CRIANÇAS // NEGOCIAR COM OS HOMENS
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Pedro Cesarino é professor do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo. Publicou Oniska - poética do xamanismo na Amazônia (Perspectiva, 2011) e Quando a terra deixou de falar - cantos da mitologia marubo (Editora 34, 2013), entre outros livros e artigos.
Pedro foi convidado para participar de dois encontros realizados neste projeto, os quais se deram ao redor da mesa-lousa do Espaço-Dispositivo montado no MASP, junto à estudantes secundaristas, educadores, pesquisadores, ativistas, artistas e outros parceiros. No primeiro encontro pensamos juntos sobre como as ocupações subvertem o espaço da escola, que mesmo sendo o mesmo passa a ser outro e, deste lugar, nos perguntamos: afinal, onde está o conhecimento? No segundo encontro com Pedro aprofundamos reflexões sobre o espaço da norma, o espaço da exceção e o espaço por fazer. O texto Aprender com as crianças // negociar com os homens, foi escrito por Pedro a partir destes encontros.
Heráclito teria vivido no século VI a.c. em Éfeso, na Grécia. Misantropo, passou um tempo nas montanhas alimentando-se apenas de ervas. Era conhecido como skoteínos, o obscuro, e também por aquele que se exprime por meio de enigmas. Em seu livro dedicado a este pensador pré-socrático, Heidegger reproduz duas histórias que costumavam ser contadas sobre ele:
Heráclito preferia brincar com as crianças a ir discutir política com os cidadãos na assembleia. O conhecimento, para ele, não estava na política dos homens, mas no jogo das crianças. Heráclito, a rigor, despreza e ironiza o conhecimento dos homens, os cidadãos autóctones das antigas cidades gregas.
"Diz-se (numa palavra) que Heráclito assim teria respondido aos estranhos vindos na intenção de observá-lo. Ao chegarem, viramno se aquecendo junto ao forno. Ali permaneceram, de pé, (impressionados sobretudo porque) ele encorajou os visitantes espantados a entrar, pronunciando as seguintes palavras: 'Mesmo aqui os deuses também estão presentes'."
Na cena acima descrita, o pensador arredio estava no tempo de Ártemis, chamada também de "a portadora da luz", phosphóros, a caçadora virgem que traz consigo uma tocha ao vagar pelo mato acompanhada das ninfas. Heidegger lembra que as ninfas são as donas dos jogos tais como das cordas, do arco e da lira. Ártemis, a portadora da luz, é também divindade da luta, eris, o conflito vital.
"Ele se dirigiu ao santuário de Ártemis para lá jogar dados com as crianças; dirigindo-se aos efésios (seus conterrâneos) que estavam de pé ao seu redor, exclamou: 'Seus infames, o que estão olhando aqui tão espantados? Não é melhor fazer o que estou fazendo agora do que cuidar da pólis junto com vocês?'" [1]
A meio caminho entre a infância e a vida adulta, repele o negócio dos homens e protege espaços tais como aqueles em que Heráclito decidia habitar: entre as crianças, em meio ao fogo, nos umbrais. A caçadora não vive exatamente no espaço da pólis, mas sim no ágron, a região selvagem que circunda a vida civilizada.
Em um dos encontros promovidos pelo Grupo Contrafilé no projeto Espaço-dispositivo para conversar sobre a escola que queremos: se a escola se repensa, o que acontece com os outros espaços? realizado no Museu de Arte de São Paulo em 2016, a jornalista Jeniffer Mendonça relata a sua visita à Escola Estadual Tancredo de Almeida Neves na Zona Sul de São Paulo, que havia sido ocupada pelos estudantes secundaristas nos últimos meses de 2015. A escola fica
nos arrabaldes da cidade, com uma vista privilegiada para a floresta tropical com a qual São Paulo faz divisa. Em seu interior malcuidado, o mato cresce nos interstícios do concreto, entre uma e outra fenda aberta ao acaso na arquitetura disciplinadora. Os estudantes, ainda assim, separaram cuidadosamente pedaços de sucata que poderiam servir para plantar mudas diversas, colocadas à disposição daqueles que decidiam visitar a ocupação.
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Como sabemos, o movimento chamado de Primavera secundarista de 2015 não se restringiu apenas a esta escola da Zona Sul de São Paulo. Viralizou por diversas outras escolas espalhadas por todo o país. Em São Paulo, terminou por levar à queda do secretário da educação do Estado de São Paulo, Herman Woorvald, que já havia sido reitor da Universidade Estadual Paulista (UNESP) e que encabeçava uma reforma das unidades de ensino proposta de maneira autoritária, sem o estabelecimento de consultas prévias à própria comunidade.
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"A proliferação de direitos fundamentais causou a trivialização do conceito de direito e, com esse nome, começaram a ser exigíveis desejos, aspirações, anseios, vontades mimadas e até utopias"[2].
A queda foi um revés para o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, e uma vitória parcial dos estudantes secundaristas (alguns, entretanto, preferiam falar em uma conquista ao invés de uma vitória, pois a reforma fora apenas adiada pelo governador). Alguns meses depois, o secretário sucessor, José Renato Nalini, escreve um artigo no qual argumenta contra a educação pública financiada pelo Estado, em sua visão demasiadamente inchado. Destaco aqui a seguinte passagem:
De acordo com um levantamento, no Brasil de 2016, 53,5% da população pertencem às classes D e E, com renda familiar de até R$ 1.957,00; outros 27,9 % pertencem à classe C, com renda familiar de até R$ 4.720,00. A mensalidade de uma escola particular de bom padrão na cidade de São Paulo, tal como a São Domingos, em Perdizes, gira em torno de R$ 2.000,00 para o ensino médio[3]. Outras, menos conhecidas, tais como o Liceu José de Alencar, no bairro Aricanduva, cobram R$ 1.000,00 também para o Ensino Médio[4]. Para 81,4 % da população brasileira, o acesso a escolas particulares é, portanto, praticamente impossível. O direito à educação gratuita, pública e de qualidade não é um mimo ou um anseio. É uma necessidade tão elementar quanto a alimentação. Que risco oferece uma população estudada e bem alimentada?
Após desocupar a Escola Estadual Maria José, situada à rua Treze de Maio nº 267, no bairro da Bela Vista, a estudante secundarista Lilith Cristina decidiu condecorar o diretor da escola com uma medalha de Honra ao Mérito. O diretor estava acompanhado pela Tropa de Choque da Polícia Militar do Estado de São Paulo. A estudante Lilith não se considera como líder da Primavera secundarista. Ela é apenas mais uma pessoa a reivindicar os seus direitos. A Primavera secundarista é um movimento sem lideranças. Todos os participantes do movimento portam uma tocha de luz, propagam uma espécie vital de conflito. A ironia poética é uma de suas estratégias.
As tradicionais carteiras de ferro e plástico, cadeiras desconfortáveis acompanhadas por um braço que se quer passar por uma pequena tábua para anotações, foram um dos signos fundamentais da Primavera. Em uma de suas imagens emblemáticas, ganham asas, sugerem um Hermes juvenil, indócil, responsável pelas transformações e passagens a novos tempos. As carteiras foram também vestidas pelos secundaristas, como se fossem espécies de coletes-poéticos, vale lembrar, e bastante distintos daqueles à prova de balas usados pela Polícia Militar que acompanhava e, diversas vezes, reprimia os protestos.
Seriam também empilhadas em piquetes, dispostas em cruzamentos e avenidas de grande movimentação nos quais aulas e outras manifestações eram realizadas. Fernando Sato, ativista e artista, relatava sua visita a escola João Kopke, ocupada no centro de São Paulo. Sua laje, outrora inacessível aos estudantes, oferecia uma vista privilegiada daquela região antiga da cidade. A vista agora se revelava como o lado avesso das formas de controle, que negam à comunidade o acesso e utilização completa de seu próprio espaço arquitetônico. Instaurava-se ali a vista de um espaço transitório, intermitente, provavelmente fadado a desaparecer na volta à normalidade. A estudante secundarista Clara Amaral Lucena, destacava o sentimento de irmandade desencadeado pelas ocupações, nas quais os participantes deixavam temporariamente de lado as suas diferenças para produzirem uma rede de afetos que se espalhava pelas mais distintas tarefas, tais como cozinhar, fazer faxina, organizar atividades culturais, conversar com a imprensa e assim por diante. Daí a ausência de liderança: um estudante que, num determinado dia, era escolhido para porta-voz e tinha então que tratar com a mídia e a polícia estaria, no dia seguinte, descascando batatas ou fazendo faxina. Nas ocupações, produzia-se uma outra forma de vínculo que, aos poucos, foi responsável por resgatar o interesse pelo conhecimento e a sensação de pertencimento a uma escola e a uma comunidade. Não à comunidade imposta pelas formas de controle, pelos velhos professores que não aceitavam ter a sua autoridade questionada, mas por uma comunidade
construída pelos vínculos horizontais, refeita desde a sua base, restaurada a partir do seu sentido primeiro. Eis aí uma manifestação exemplar da noção de communitas sobre a qual falava há tempos o antropólogo Victor Turner: um laço provisório de fraternidade surgido nos momentos de passagem, ruptura e transformação e, por isso mesmo, oposto à normalidade da estrutura e suas dinâmicas de poder. Sociedades sadias, argumentava o autor, são aquelas nas quais se dá a oscilação entre os dois polos, pois cabe justamente à communitas a capacidade de reavaliar e reinventar a vida normal. A Primavera estudantil é um fenômeno inédito na história brasileira, acomodada com o descaso e desmantelamento do sistema educacional público que se instaura a partir da Ditadura Militar, de 1964 a 1985. O período da redemocratização é caracterizado, de maneira geral, por uma apatia da sociedade civil com relação aos seus direitos. A Primavera, assim como os protestos de 2013, marcam uma virada fundamental com relação a tal apatia e iniciam uma tomada de protagonismo político pela população – potente, mas ainda pouco constante para que seja capaz de consolidar a dinâmica de uma sociedade efetivamente sadia. Tal dinâmica é cerceada sobretudo pelos mecanismos de controle, que, nos tempos recentes, cederam à tentação de um novo golpe, com táticas repaginadas. Mais uma vez, é a política negativa dos homens que se impõe sobre corpos vitais, seus fluxos e manifestações de conhecimento.
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As ocupações nas escolas são marcadas, assim, pela produção de um estado liminar, pela instauração de uma irmandade entre os seus participantes, pelo uso da ironia e das subversões estéticas, pela tentativa de restaurar a normalidade a partir de um sentimento e de uma reivindicação ética. Mas, de alguma forma, tal estado ainda não consolidou propriamente a sua novidade e tenderá a ser reincorporado, de maneira mais ou menos perversa, pelos dispositivos de poder da normalidade. A partir daí, a sua potência tenderá a se dissipar, a ser vencida pelo cansaço ou pela vontade de destruição e de controle da política dos homens. Como garantir que essa vitalidade não se dissipe, que consiga deixar rastros que não apenas façam jus à liminaridade outrora instaurada, mas, também, que encaminhem a produção de um outro modo de existência? Em que medida distintas formas de ocupação
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(das escolas brasileiras, da Praça Tahrir, no Cairo, da Praça Taksim, em Istambul, e da Puerta del Sol em Madri, entre outras) implicam efetivamente na produção de uma nova política, na qual os processos de produção de conhecimento não sejam capturados pelos mecanismos de controle? Ou as manifestações em massa das lutas contemporâneas estarão fadadas a se extinguir logo após a sua eclosão? Na realidade, os cortes produzidos pela política dos homens estabelecem um equilíbrio tenso com os fluxos transformadores e mais ou menos desigual nesta ou naquela situação (a retomada autoritária e ainda mais repressiva no Egito e na Turquia podem ser compreendidos como a face mais negativa deste processo, que talvez encontre uma saída mais propositiva na Espanha e na progressiva consolidação de uma nova força política, mesmo que marcada por contradições).
Maio de 1968 será sempre um exemplo: toda uma estética, toda uma estratégia poética, toda uma invenção de subjetividade partiu dali. Até hoje, essas transformações se mostram determinantes. Produziu-se efetivamente um novo modo de existência que, desde então, passaria a se equilibrar com as formas de controle ou, em outros termos, com aquilo que Jessé de Souza chamou recentemente de "Partido da sociedade para poucos" (e sua contraposição ao Partido da sociedade inclusiva)[5]. Maio de 68 não foi, portanto, apenas uma ocupação, não foi apenas uma passagem, mas sim uma transformação propriamente ontológica, capaz de projetar novos contornos para o pensamento e para a agência política. Como isso se tornou possível? E quais serão, por sua vez, as operações envolvidas no processo atual, bem como o léxico que o caracteriza? Agenciamentos, estratégias,
poéticas, alianças, bases, redes, conexões entre distintas capacidades – são todos termos que apontam para dinâmicas em construção. Outras existências possíveis de fato já convivem em paralelo com esse mundo pendular dos dois partidos (da sociedade para poucos e da sociedade inclusiva) e podem servir como um contraponto para a reflexão. É o caso das sociedades ameríndias, que lançam mão de estratégias de resistência não exatamente compreensíveis a partir de uma condição de liminaridade. Elas se situam de fato em uma posição marginal com relação à política dos brancos, mas ainda assim não podem ser compreendidas exatamente como situações de suspensão tais como as instauradas pelas ocupações.
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O xamã yanomami Davi Kopenawa publicou recentemente um livro, A queda do céu (Companhia das Letras, 2015), que utiliza um dos mais importantes dispositivos de controle dos brancos, a escrita, como uma ferramenta política capaz de denunciar os riscos e as razões de seu potencial destrutivo. Em sua comunidade, Kopenawa também proíbe a solicitação de aposentadoria pelos mais velhos[6] – largamente utilizada em outras comunidades indígenas e responsável por introduzir os dilemas da monetarização em uma realidade completamente outra. Os Guarani do Sudeste e Centro-Oeste brasileiro burlam a demar- cação de territórios pelo Estado nacional através de seus deslocamentos que, antes de revelarem uma espécie de nomadismo primitivo, apontam mais para uma complexa topografia virtual constituída por alianças entre parentes e tentativas de superação das condições desoladoras deste mundo.
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[1]
Essas estratégias, entre tantas outras, não apontam exatamente para a produção de uma transitoriedade que exige ou impulsiona a transformação da situação política vigente. Elas se referem, antes, a um outro modo de existência, autônomo o suficiente para sobreviver, ao longo dos últimos séculos, à destruição de seu mundo anterior e às ameaças constantes advindas de suas fronteiras com a sociedade dominante. Como, mais uma vez, isso se tornou possível? Como se explica essa capacidade de resiliência que não as deixou sucumbir por completo à voracidade da política dos homens? Talvez a compreensão de seus léxicos particulares, não apenas ou exatamente de suas línguas, mas de suas categorias produtivas, de suas estratégias cosmopolíticas, possam nos trazer alguma luz.
Heidegger, Martin. Heráclito. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1998, pp. 36-37. [2] http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2016/04/1758771-secretariode-sp-exclui-educacao-de-papel-do-estado-e-gera-reacao-negativa.shtml. Acesso em 01/06/2016. [3] http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,classe-a-tem-maior-fatiada-renda-do-pais,10000007285. Acesso em 01/06/2016. [4] http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2015/10/1700562-compare-asmensalidades-de-1047-escolas-privadas-de-sao-paulo.shtml. Acesso em 01/06/2016. [5] http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2016/02/1740875-o-partidoda-sociedade-para-poucos-jesse-souza-rebate-marcus-melo.shtml [6] De acordo com Ailton Krenak, em comunicação apresentada nos Dias de Estudo da 32ª Bienal de São Paulo, 10 de junho de 2016.
A BATALHA DO VIVO ANOTAÇÕES 3 189