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Artigo Orson Welles & W. Shakespeare

O centenário do cineasta Orson Welles está sendo celebrado este ano ao redor de todo o mundo. Para se juntar ao coro, TABU convidou um especialista no assunto, Adalberto Müller, que comenta aqui o encontro de dois gênios: as adaptações de Welles da obra de William Shakespeare.

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Orson Welles & Shakespeare: o bardo e o cineasta

por ADALBERTO MÜLLER

Orson Welles em Julius Caesar, 1937, Mercury Theater. Cortesia: Special Coll. University of Michigan.

divulgação

Consta que Orson Welles teria ouvido de sua mãe, no leito de morte, aos nove anos, os seguintes versos de Shakespeare: “O lunático, o amante e o poeta / são de imaginação compostos”. Consta também que o menino Orson fora educado em casa lendo peças de Shakespeare. A intimidade com a língua do Bardo o levaria a escrever, aos 15 anos, um livro sobre modos de encenação das suas peças (Everybody’s Shakespeare). Depois de viajar pela Europa e trabalhar como ator em Dublin, Welles começa, aos 20 anos, uma carreira meteórica de diretor na Broadway, encenando um Macbeth (1935) unicamente com atores negros – e com tambores africanos no palco – e uma desafiadora adaptação de Julio César (Julius Caesar, 1937), com claras alusões ao fascismo. Quando desce o pano da estreia de Julio César, o jovem diretor já é uma das figuras centrais do teatro moderno americano. Na transição do teatro para o rádio – que, na época, era o equivalente da TV –, adaptou várias peças de Shakespeare. Mas se transformou numa celebridade nacional graças ao programa A guerra dos mundos (1938), anunciando que os marcianos estavam invadindo a América, o que não apenas paralisou o país e aterrorizou muita gente, mas atraiu a atenção dos estúdios hollywoodianos. Assim, aos 23 anos, Welles desembarcava em Hollywood para dirigir quatro filmes na RKO. O primeiro deles, Cidadão Kane (Citizen

“Otelo é para muitos críticos a obra-prima de Welles. E é, certamente, uma das encenações mais vibrantes e perfeitas do texto shakespeariano”

Kane, 1941), se tornaria um marco divisor da história do cinema, trazendo inovações formais que seriam usadas e repetidas anos a fio pelo cinema americano, europeu e mundial. O quarto filme da RKO, É Tudo Verdade (It’s All True, 1942/1993), permaneceu inacabado por razões políticas: era um documentário musical, filmado no Rio de Janeiro, que tentava sintetizar uma visão panamericana e interracial, por meio de uma história paralela do jazz e do samba. Depois do fracasso (involuntário) de É Tudo Verdade, Welles encontra dificuldades para realizar seus filmes. Dedica-se por um tempo à política, ajudando a reeleger Franklin Delano Roosevelt. Depois de filmar – no México – uma obra-prima do cinema noir com sua ex-mulher Rita Hayworth, A Dama de Xangai (The Lady from Shanghai, 1946), muda-se para a Europa. Mas retorna a Hollywood, rapidamente, em 1948, para a filmagem relâmpago de Macbeth, realizando a proeza de criar uma obra-prima com um orçamento baixíssimo, que o obriga a usar figurinos e cenários baratos. Apesar disso, Macbeth é saudado como uma das melhores adaptações da obra de Shakespeare para o cinema, sobretudo devido à força das luzes expressionistas e da atuação de Welles como Macbeth. Novamente em exílio na Europa, gasta quatro anos tentando filmar e finalizar Otelo (Othello), que estreia e vence o festival de Cannes em 1952. Otelo é para muitos críticos a obra-prima de Welles. E é, certamente, uma das encenações mais vibrantes e perfeitas do texto shakespeariano. Mesmo pintado de preto, Welles é impecável na pele de um Otelo que vai sendo devorado pelo ciúme, enquanto a bela Susanne Cloutier (Desdêmona) parece se desmanchar como um torrão de açúcar; as angulações de câmera, os contrastes barrocos de luz e sombra, tudo no filme parece ser um tributo ao gênio do dramaturgo inglês. Rodado com parcos recursos, o filme encobre suas falhas de produção com pura magia. Pois Welles sempre foi um mago, tirando coelhos da cartola, e sempre com um ás na manga. Em 1956, Welles faz novamente um filme em Hollywood, A Marca da Maldade (Touch of Evil), e novamente choca os produtores e o público com uma crítica severa à corrupção policial nos EUA, colocando em cena, pela primeira vez, os efeitos do uso de drogas alucinógenas. Nos anos 60, volta à Espanha

e tenta finalizar seu primoroso Dom Quixote (Don Quijote), iniciado em 1956, no México, e nunca concluído. Durante esse tempo, produz – novamente com recursos mínimos e atores amigos – um filme que condensa cinco peças de Shakespeare, chamado Falstaff (Chimes at Midnight, 1966).

Em Falstaff, a cena da batalha de Shrewsbury é um grandioso tributo a Eisenstein, e mostra uma das características essenciais do cinema de Welles: a força da montagem. Na verdade, desde os anos 50, Welles começava a montagem ainda durante as filmagens, o que determinava o seu ritmo e o seu andamento característicos. Com todas as imperfeições de produção, talvez Falstaff seja também a obra-prima de Welles. A verdade é que tudo em Welles parece ser obra-prima, apesar de ter sido um dos cineastas mais injustiçados por seus produtores. Boa parte de seus filmes permanece inacabada; hoje, alguns vão sendo desenterrados, como é o caso da comédia-pastelão Too Much Johnson (1937), recentemente descoberto num porão italiano. Esse primeiro filme de Welles havia sido feito para ser projetado em cena na peça homônima, que já seria um espetáculo “multimídia”. Como em Shakespeare, os últimos filmes de Welles põem em confronto as noções de verdade e falsidade, de realidade e ficção, de aparência e ilusão: A História Imortal (The Immortal Story, 1969) e Verdades e Mentiras (F for Fake, 1972). Nesse último, vemos toda a força de Welles como diretor-montador. Em suas mãos, a montagem se converte em magia. Ao mesmo tempo, como em todos os seus filmes, Welles também expõe as vísceras do cinema, mostrando que, quase sempre, nos deixamos iludir por aquilo que vemos. Em Welles, é tudo verdade e é tudo mentira. Pois, como disse o Bardo, somos feitos da mesma matéria dos sonhos.

Adalberto Müller é professor de Teoria

Literária na UFF. Seu livro Orson Welles: Banda de um Homem será publicado em breve pela Editora Azougue.

Homenagem: Orson Welles e sua musa Oja Kodar

O cineasta dirige sua mulher, Oja Kodar, no filme The Deep (1970). Fotos gentilmente cedidas por Oja Kodar. Acervo pessoal da artista

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