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Dossiê Cinema: Expressões de Poder
from REVISTA TABU #48
DOSSIÊ
Cena de Dr. Fantástico
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CINEMA: EXPRESSÕES DE PODER
A sétima arte é não só uma grande comentadora da história, como é, também, reflexo dela. As turbulências políticas do século XX se manifestam na telona das mais diversas formas: construindo discursos, transmitindo ideologias, expondo facetas obscuras dos conflitos que marcaram nossa época.
Neste dossiê, temos Stanley Kubrick e Elia Kazan como protagonistas de relações intensas entre cinema e política. Um como dono de uma extensa filmografia cujo olhar se volta para o horror e o patético da guerra. E o outro como uma figura que se viu no olho de um furacão que desestabilizou a cultura norte-americana, o macartismo.
DOSSIÊ
GUERRA ABERTA: KUBRICK CONTRA A SOCIEDADE FALOCÊNTRICA
por DODÔ AZEVEDO
“Isso já não é música”, disse um extasiado Bruno Walter a Thomas Mann, sobre “Tristão e Isolda”, de Wagner. Kubrick também já não é cinema. Há um consenso na academia em observar o cinema como suporte moderno para a filosofia. Esses acadêmicos defendem a ideia de que os filósofos só escreviam livros porque não havia ainda sido inventado o cinema. E que a melhor filosofia foi, a partir do meio do século XX, produzida por cineastas. Kubrick seria o maior dos filósofos contemporâneos. Seu principal tema: a guerra. Seu principal filme de guerra, Nascido Para Matar, filmado e lançado nos anos 80.
Rambo I, Rambo II e Rambo III, Chuck Norris, Nascido em Quatro de Julho e Platoon foram os filmes de guerra que mandaram nas bilheterias dos anos 80. Em comum, o expurgo dos fantasmas da derrota no Vietnã e a vitimização do soldado americano explorado pelo sistema e colocado para lutar contra inimigos sem rosto, sem identidade.
Nascido para Matar (Full Metal Jacket, 1987), adaptação do livro de não ficção Short-timers, de Gustav Hasford, veio para romper com esta tradição. É o primeiro filme de guerra, não só dos anos 80, no qual os soldados não são jovens coitadinhos que foram parar na guerra, e sim boçais produtos de nossa cultura falocêntrica, essa cultura patriarcal que está em nosso oriente e ocidente, em nosso presente e passado. E o primeiro filme no qual o conceito clássico de herói foi inventado na Antiguidade para justificar os atos de guerra masculinos. Embora haja uma jornada do herói em Nascido para Matar, Joker, o personagem principal, só cumpre sua jornada quando comete seu primeiro assassinato. O Jokerman Bob Dylan de Kubrick cumpre afinal o que está escrito em seu capacete e dá o nome em português ao filme: Nascido para Matar (Born to kill). - É uma teoria junguiana, senhor. Eu estou tentando explicar algo sobre a dualidade do homem – explica Joker a seu coronel quando este indaga sobre a inscrição no capacete. Ao ouvir a explicação, desconfiado, o coronel pergunta: - De que lado afinal você está, filho? A filosofia kubrickiana sobre a guerra é que ela é a mais perfeita tradução da dualidade do homem. Somos todos nascidos para matar.
Em 2001 – Uma Odisseia No Espaço (2001: A Space Odissey, 1968), o ato do primeiro homem, do primeiro macaco, ao ser ungido com o dom da inteligência, é perceber que com um pedaço de osso se pode assassinar o macaco rival. O primeiro ato da inteligência humana é praticar o assassinato. O macaco assassino, ao terminar o ato para o qual nasceu, regojiza-se jogando o pedaço de osso, a arma, para o alto. O osso, a arma, esta primeira tecnologia humana, voa nos ares sob o céu azul. Quando desce, na maior elipse da história do cinema, já estamos dezenas de milhares de anos no futuro, e o osso, a arma, já não é mais um osso, é sim o foguete. O impulso que nos faz criar de um osso uma arma útil de dominação nos faz criar foguetes, também uma tecnologia de dominação. Nosso impulso assassino é o pai de tudo, nos diz Kubrick sem dó nem piedade. Não dá para negá-lo. E enrustir conflitos é precipitar massacres. A dualidade do homem, a aceitação de seus conflitos, é o que move todos os personagens masculinos, todos os protagonistas de Kubrick. O cineasta viveu recluso entre as mulheres que amou. Num ato ousado e condenado pela sociedade, casou-se em 1958 com uma mulher divorciada que já tinha uma menina, a pintora Christiane Harlan. Juntos, tiveram mais duas filhas. Stanley Kubrick viveu para e por elas. Em vida, foi acusado de misógino.
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Hoje, os autores reconhecem a importância de “heroínas de Kubrick”. A redentora cantora de boteco do final de Glória Feita de Sangue (Paths of Glory, 1957); a toda desejo, curiosidade e poder Lolita (Lolita, 1962); a suprimida de Dr. Fantástico (Dr. Strangelove, 1964) e 2001; as objetificadas de Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, 1971); as vitimizadas de Barry Lyndon (1975) e O Iluminado (The Shining, 1980); e, finalmente, a vingadora de Nascido para Matar (1987). Começando pelo fim, Nascido Para Matar termina com todo um pelotão de marines machões americanos sendo dizimados um a um por uma única mocinha adolescente franco-atiradora vietnamita. Eles todos treinados para serem máquinas de matar (Chuck Norris e Rambo), ela pura ideologia do oprimido versus o invasor opressor. “Shoot me! Shoot me!”, sussura a mocinha ferida mortalmente no fim do filme, implorando para que Joker, o herói diletante, lhe dê um tiro de misericórdia. Kubrick, de novo sem pena, está ali menos para fazer cinema (e agradar a audiência) do que para fazer filosofia. Dirige a atriz vietnamita Ngoc Le de modo que ela torne a cena perversamente erótica, proferindo as palavras “me mate, me mate!” como se dissesse “me coma, me coma!”. Outra jogada de Kubrick – que, no fundo, fazia filosofia e cinema como um estrategista militar (é lendária a sua obsessão por jogar xadrez) – coloca toda a plateia em xeque ao esconder, antes da execução, a identidade do franco-atirador que está desferindo contra os fuzileiros americanos “os tiros mais dolorosos da história do cinema”, segundo o lendário crítico americano Roger Ebert.
Por serem todos muito machos, convictos e invencíveis, os assassinatos dos fuzileiros, um a um, nos fazem pensar que o misterioso franco-atirador só pode ser um sujeito ainda mais macho do que eles, um vietnamita com três metros de altura e uma arma fálica do tamanho do maior pênis que se pode imaginar. Kubrick joga com nossos pré-conceitos, reforçados pelos filmes de guerra dos anos 80, no qual os vilões eram só sujeitos grandes e machos, sem identidade.
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Cena de Nascido Para Matar
Quando revelada, a menina franco-atiradora – e seus cabelos maria-chiquinha a denunciar uma inocência perdida à força – torna-se imediatamente o único personagem com identidade no filme. Com identidade, mas sem nome. Sem nome para poder representar toda a ideia de terceiro-mundista reprimido, de todo o matriarcado destroçado. De trás para a frente, voltando ao filme, vimos os pervertidos fuzileiros navais americanos perpetrarem toda sorte de lascívia e amor pelo falo, explorando prostitutas vietnamitas a quem tratam como um pedaço de carne. Essa era a guerra de Kubrick. Não pelo feminismo, mas uma demonstração didática, filme a filme, da falência da sociedade falocêntrica. Não é o mundo que está acabando em todos os seus filmes, é o desejo e a intuição de que nossa obsessão pelo falo vai nos levar à ruína.
Falocêntricas, as armas são os objetos preferidos para demonstrar sua tese. É inesquecível a nigérrima piada do comandante caubói, em Dr. Fantástico, cavalgando uma bomba atômica em forma de pênis gigante, num êxtase sexual comemorado com o consagrado “Hurra!” texano.
E, nos anos 80, resolveu-se inventar este supersoldado americano, esse Rambo, esse Chuck Norris, todos besuntados em óleo e carregando suas armas-falo na mão. Trata-se, na verdade, dos filmes mais gays (nada contra) e enrustidos (tudo contra) da história do cinema americano.
Dodô Azevedo é filósofo, professor e cineasta.
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Terry Malloy (Marlon Brando) sendo ameaçado. Cena de Sindicato de ladrões
TODOS OS NOMES
por LEONARDO PETERSEN LAMHA
Guerra e abstração
AGuerra Fria não ameaçava apenas com o calor da pólvora ou da fissão nuclear. Havia também a frieza de um combate ideológico: uma batalha de rumores, imagens e nomes. Uma das maneiras de os Estados Unidos lidar com os inimigos na década de 1950 era por meio da palavra, interpelando o opositor com o Comitê de Atividades Antiamericanas, conhecido pela sigla HUAC (House Un-American Activities Committee). Proliferaram-se, com os interrogatórios, as famosas listas negras, que continham nomes de produtores, roteiristas e diretores ligados ao comunismo. O objetivo era colher nomes, e sua maior obra foi a instauração do personagem delator – o dedo-duro.
Incontáveis artistas e produtores tiveram suas vidas arruinadas pelos delatores. Mesmo décadas depois do fim do macartismo – como ficou conhecido o período em que o senador Joseph McCarthy liderou o comitê –, a maioria dos acusados de subversão não conseguiu reconstruir a carreira. O caso de Elia Kazan é um retrato do período, um dos mais famosos delatores de sua época. Em 1952, o diretor – assumidamente ex-comunista – entregou diversos colegas à HUAC. A pecha de dedo-duro nunca descolocou de Kazan. Até hoje, a imagem dele é controversa na indústria de cinema norte-americana; importantes nomes do ramo, como Sean Pean (cujo pai foi perseguido pelo macartismo), desabonam o diretor. Antes de chafurdar na polêmica que marcaria sua vida, Kazan já era considerado um grande diretor, responsável por extrair performances arrebatadoras de futuras deidades, como Marlon Brando. Alguns argumentam que foi por medo de perder sua carreira que Kazan fez o que fez. Ele próprio confessaria, anos mais tarde, que tinha ojeriza ao Partido Comunista, do qual fizera parte e com o qual tinha se desiludido. Tenha sido por pressão ou por convicção, o diretor até hoje carrega o estigma – não muito dignificante – de alcaguete.
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A resposta de Miller
Do outro lado, estava o dramaturgo Arthur Miller, amigo e colaborador de Kazan, conhecido como “a voz moral da América”. Kazan havia produzido para o teatro, entre outras peças premiadas de Miller, A morte do caixeiro-viajante.
Miller, dentre incontáveis outros amigos, rompeu com Kazan após 1952. Ato contínuo, dirigiu até Salem, em Massachusetts, onde mergulhou nos arquivos sobre a paranoia geral instaurada por acusações de bruxaria e o subsequente enforcamento em massa que abalaram o então vilarejo em 1692. Um ano depois, terminaria a peça As bruxas de Salem (The crucible), sua resposta ao macartismo e também uma espécie de mensagem-bomba para Kazan a respeito da moralidade de se “nomear nomes” (do inglês, name names). John Proctor, herói de As bruxas de Salem, é um fazendeiro respeitado na cidade que acaba sendo acusado de bruxaria (witchcraft). Muitos outros foram acusados, e a benevolência do Estado podia absolvê-los desde que nomeassem e confessassem o seu envolvimento e, se possível, delatassem outras pessoas. A denúncia já era o suficiente para que se instaurasse a suspeita, já que a bruxaria era um crime “sem marcas”. Uma vez acusado, ou se assumia a bruxaria ou se morria enforcado. John Proctor não cedeu nem na iminência da morte. A peça termina com “o grito das profundezas da alma” de Proctor implorando para que o governo o levasse, mas que “deixassem seu nome”. Ele não assina e é enforcado.
Alegorias
Miller e Kazan possuíam um projeto sobre os estivadores do Brooklyn, que serviria de metáfora do macartismo, e que havia sido abandonado com o rompimento dos dois. Logo depois do depoimento na HUAC, Kazan dirige Sindicato de ladrões (On the waterfront, 1954), um filme comumente visto como sua resposta às acusações de que traíra os amigos e também a própria moral no episódio da delação. No longa, Terry Malloy, interpretado pelo
O cineasta Elia Kazan e o dramaturgo Arthur Miller
jovem Marlon Brando, precisa escolher entre depor contra o sindicato corrupto que controlava os estivadores ou continuar passando a vida “delatando a si mesmo”, isto é, vendo os companheiros morrerem e a sua vida subordinada a uma organização. Terry Malloy acaba optando pelos companheiros.
Como alegorias do macartismo, ambas as obras são facilmente resolvidas por um ato automático de interpretação – principalmente o filme de Kazan: ele via a HUAC, e tudo que ela representava, em termos autoritários: uma escolha menos pior do que o comunismo. Sua experiência com o partido o desencantou. Como seu herói estivador, Kazan escolheu uma entre duas alternativas igualmente difíceis. A decisão de entregar colegas de profissão, no calor da época e num país em que o comunista era o inimigo, pode ter soado para Kazan como uma redenção ou como uma necessidade; mas nada foi fácil. Apesar de Malloy terminar como herói e Proctor acabar morto, há mais semelhanças que diferenças entre Sindicato de ladrões e Bruxas de Salem: os personagens lutam por um valor que deveria ter continuado em posse deles próprios, mas que foi vasculhado e devassado pelo poder. Proteger o próprio nome, livrando-o das garras do poder, é como salvar a própria alma. Assim como seus personagens, Kazan e Miller também lutaram por isso.
Leonardo Lamha é roteirista, e crítico literário e cinematográfico.