HQUDI: Reflexões acerca das histórias em quadrinhos

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HQ UDI: Reflexões acerca das histórias em quadrinhos

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AUTORES e ORG. Aline Romani Francisco de Assis Luciano Ferreira

Ação realizada com recursos da Lei Federal N 14.017/2020 - Lei Aldir Blanc



HQ UDI Reflexões acerca das histórias em quadrinhos

AUTORES e ORGANIZADORES: Aline Romani Francisco de Assis Luciano Ferreira

Revisão: Leon D’Aguiar e Mariana Anselmo Capa: Francisco de Assis Ilustrações: Luciano Ferreira Diagramação: Aline Romani


Livro produzido com recursos da Lei Aldir Blanc de Emergência Cultural. Alguns artigos foram publicados no Diário de Uberlândia em versão online e impressa.

ISBN 978-65-00-17963-7


SUMÁRIO Apresentação ........................................................................................................03 Regma Maria dos Santos Aline Romani ..........................................................................................................05 A independência do Brasil nos quadrinhos nacionais .................................................................. 07 Ditadura no Ar: uma HQ que rememora um dos períodos mais violentos da história do Brasil.....................................................................................................................................................09 Heróis na vida pública ficção ou realidade ..................................................................................... 11 Crítica pra que? .................................................................................................................................. 13 Feminismo pra que? A mulher no quadrinho brasileiro ............................................................... 15 Humor é coisa de homem ................................................................................................................ 17 Impressões sobre Rê-Bordosa ..........................................................................................................19 De vilãs a heroínas: mulheres nos quadrinhos de heróis ............................................................ 21 O fascínio por pandemias................................................................................................................. 23 Memórias de pesquisa: trajetória e metodologia de análise da Revista Chiclete com Banana através dos seus leitores ....................................................................................................................25

Luciano Ferreira ...................................................................................................... 31 Os voos dos balões ........................................................................................................................... 33 As regras da exceção ........................................................................................................................ 35 Mostras de quadrinhos e fanzines ................................................................................................... 37 Os respiros da inspiração ................................................................................................................. 39 Uma História sobre a 'História'.......................................................................................................... 41 Charges X Ética .................................................................................................................................. 43 Usar cor é fogo! .................................................................................................................................. 45 Quadros dos Quadrinhos.................................................................................................................. 47 Por que Histórias em quadrinhos não são nem Artes Visuais e nem Literatura? (parte 01) .... 49 Por que Histórias em quadrinhos não são nem Artes Visuais e nem Literatura? (parte 02) .... 51 Web Comics ....................................................................................................................................... 53


Clark Kent da vida real ...................................................................................................................... 55 Acertei no Quino ................................................................................................................................ 57

Francisco de Assis ................................................................................................ 59 Um breve panorama das Histórias em Quadrinhos em Uberlândia .......................................... 61 Banda A história além dos quadrinhos ............................................................................................ 63 Henfil ................................................................................................................................................... 65 Lourenço Mutarelli está de volta ...................................................................................................... 67 30 de Janeiro dia do quadrinho nacional ...................................................................................... 69 Alan Moore Maxwell o Gato Mágico ............................................................................................... 71 Daniel Azulay ...................................................................................................................................... 73 O Cartunista do bairro Operário ..................................................................................................... 75 Quadrinhos, Ciência e Corona vírus ............................................................................................... 77 As Lojas de Quadrinhos .................................................................................................................... 79 Deu na Veneta... Animal .................................................................................................................... 81 Bio HQ - Biologia em Quadrinhos ................................................................................................... 83


Apresentação A Lei Aldir Blanc (N. 14.017/2020) foi um importante instrumento para que a arte e os artistas, tão atingidos durante o primeiro ano da pandemia de COVID 19, pudessem, em 2020, obter financiamento para produção de obras literárias, visuais, performáticas, dentre outras. Em um panorama de desencanto, medo e incertezas quanto ao dia seguinte, a lei foi um acalento e uma possibilidade para reavivar a produção cultural. As HQs representam um número expressivo das propostas aprovadas no Brasil por meio dessa Lei. Workshops, livros sobre quadrinhos ou em quadrinhos, webséries, concursos de HQ, podcasts, dentre outros, foram produtos contemplados e, agora em elaboração, divulgação e promoção dessa importante e complexa arte que tem sua própria trajetória no país. Os resultados dessa Lei que leva o nome de um dos artistas mais importante da cultura brasileira possibilitou a publicação do livro - HQ UDI -

Reflexões acerca das histórias em quadrinhos escrito e organizado por Aline Romani, Francisco de Assis e Luciano Ferreira, que aqui tenho a honra de apresentar. Neste livro vários temas e abordagens são tratados, tais como a questão nacional, os heróis, personagens, humor na pandemia, feminismo, regras, inspiração, ética, cor, quadrinistas brasileiros e revistas, a história das HQs em Uberlândia. Há também uma preocupação com aspectos formais e metalinguísticos da elaboração das HQs, como a presença dos balões, as questões de gênero textual, o debate sobre o lugar que ocupa esta arte, para além da literatura e das artes visuais, Os autores não deixaram de tocar na perspectiva que trata do mercado e da dificuldade que enfrenta esta manifestação artística. Com a internet a produção independente permite a exposição de talentosos quadrinistas até então desconhecidos ou relegados a nichos específicos, o que não necessariamente significa uma maior valorização dessa expressão.

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Quem poderia dizer hoje que não há HQ(s) em Uberlândia, excelentes quadrinistas e também uma produção reflexiva, intelectual e assertiva sobre elas? Este livro prova que eles existem, estão aqui e disseminam, não apenas o seu prazer fruidor, mas também suas criações e o conhecimento crítico e analítico sobre elas. A leitura deste livro permitirá conhecer o trajeto das HQ(s) em seus múltiplos aspectos e, mais ainda, compreender que há dimensões políticas, sociais, estéticas e históricas que se ligam ao aprazível contato com essa linguagem! Boa leitura! Regma Maria dos Santos Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP

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Aline Romani Professora nas redes municipal e estadual em Uberlândia/MG. Graduada e pós graduada em História na UFU. Apaixonada por HQ, fanzines e produção underground. Pesquisa o universo dos quadrinhos desde 2012 e finalizou o mestrado em 2018 com a dissertação Ruídos do mau gosto: cuspes, conflitos

e perspectivas urbanas na seção de cartas da revista Chiclete com Banana (1985 - 1990). Atualmente, também é colunista no Diário de Uberlândia e escreve sobre quadrinhos.

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A independência do Brasil nos quadrinhos nacionais

A independência do Brasil em quadrinhos, escrita por Pedro Anísio e ilustrada por Eugênio Colonnese - Edição pré-comemorativa do sesquicentenário da independência (1822 – 1972).

Em 2020, celebramos 198 anos de independência do Brasil e presenciamos a propagação de diversos símbolos nacionais. No primeiro ano da pandemia, marcado pelo isolamento social, na ausência do desfile cívico, restou apenas a lembrança dos heróis pátrios, do cheiro da pipoca feita na rua e a memória de momentos que não vivenciamos senão através da literatura. As histórias em quadrinhos nacionais muito contribuíram para a construção desse imaginário acerca da nacionalidade brasileira. Quem não guarda na memória aquele quadrinho que leu ainda na infância? A representação ilustrada dá vida a imaginação, a objetos e personagens de maneira palpável. As HQs têm grande potencial para construção de memória, sendo elas um produto reproduzido em massa, contribui para a elaboração de uma ideia coletiva. Sabemos que as HQs no início do século XX, carregavam a pecha de arte menor, e eram ainda consideradas uma leitura deletéria à juventude. A literatura brasileira ganha destaque com o movimento modernista e ganha destaque entre os leitores. Neste contexto, Adolf Aizen ativista do quadrinho nacional, fundador e dono da EBAL, investiu em quadrinizar fatos históricos nacionais e para combater a 7


ideia de quadrinho como arte menor e imoral. O projeto tinha caráter paradidático, moralista e o objetivo de agradar grupos conservadores, como a igreja católica, e atrair investimentos estatais. Não era exatamente inventar História, mas impor como verdade o ponto de vista de um setor da sociedade. A narrativa dos quadrinhos frequentemente é usada como instrumento político e ideológico. Na EBAL, por exemplo, ela é parte de um projeto de difusão de uma identidade nacional. No Brasil, a relação estreita de dependência das HQs e os jornais abre um espaço único de colaboração entre jornalistas e cartunistas, permitindo a apropriação da linguagem jornalística pelos cartunistas: ao mesmo tempo que se distanciam da ficção, aproximamse de fatos. Os assuntos de cunho patriótico foram o foco das produções da EBAL desde o início do século até a ditadura militar. Contemplavam uma visão linear, positivista, que não propunha um diálogo com a realidade da maioria dos brasileiros. No entanto, a narrativa heroica dessas histórias atraía o leitor. Esse tipo de narrativa, independentemente da época em que são produzidas, valem-se de uma fórmula: exalta a história dos vencedores, retrata as figuras políticas e omite os demais sujeitos, impondo uma disputa de história no país. Em 1972, foi lançada a “Independência do Brasil em quadrinhos” em comemoração ao dia 7 de setembro. Na capa, D. Pedro I está vestido com roupa militar verde e amarela. Simbólico em tempos de ditadura! Ao mesmo tempo que D. Pedro I é exaltado, Portugal aparece como um exemplo de nação a ser seguida, amenizando os conflitos gerados pela colonização e apagando sujeitos da história que tornaram a independência inevitável. Era comum nestas revistas da década de 70 eleger um protagonista histórico. Em outra publicação da EBAL, “A libertação dos escravos em quadrinhos”, a Princesa Isabel aparece como a libertadora; as personagens são retratadas de modo realista, porém pouco expressivos, afim de atribuir à narrativa um tom de seriedade. O problema da disputa de memória é que ela não afeta apenas a percepção do passado, mas atinge o que somos no presente. As HQs da EBAL contribuíram com um projeto político nacionalista, omitiram os conflitos a fim de provar sua unidade por meio de uma História forjada nos mitos fundadores. Retrataram um país no qual apenas os homens brancos, héteros, de origem europeia eram capazes de atos heroicos em função da defesa da pátria. A estratégia com essas HQs era conquistar os mais jovens, leitores assíduos dos quadrinhos e recontar o passado de acordo com os interesses de grupos abastados, dominantes politicamente, cujo principal interesse era (e é) naturalizar a manutenção de privilégios seculares.

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Ditadura no Ar: uma HQ que rememora um dos períodos mais violentos da história do Brasil

Fragmento da HQ Ditadura no Ar, Coração Selvagem de Raphael Fernandes e Abel (2016)

Escrevo estas linhas no dia 31 de março de 2021, dia em que se completam 57 anos do Golpe de Estado promovido pelos militares no Brasil, com apoio da elite brasileira, parte da sociedade civil e da Igreja Católica. Naquele 31 de março de 1964, iniciou-se uma série de eventos que encerraram o governo do presidente eleito, João Goulart, e marcou o fim da nossa democracia. Foram mais de 20 anos de uma cruel ditadura, que perseguiu, assassinou, torturou, prendeu e censurou qualquer oposição. Foram anos de um regime duro que restringiu e retirou dos brasileiros o gozo de seus direitos como cidadãos, sua liberdade de expressão, seu direito de protestar; foi, além disso, um governo que priorizou medidas econômicas que aprofundaram a desigualdade social no Brasil. Considero que relembrar a história é parte fundamental da construção da nossa cidadania. Manter a memória viva é se manter atento às mudanças, é dar sentido ao presente, é identificar nossas vitórias e encarar nossas derrotas, é impedir que governos autoritários se consolidem novamente. Mas não é apenas o historiador que cumpre essa função. O registro artístico e a produção cultural tem papel fundamental na manutenção dessa memória. Ditadura no Ar, Coração Selvagem é uma HQ que cumpre este papel com excelência. O romance policial em quadrinhos é ambientado em 1969, após o AI-5 (Ato Institucional Número Cinco), o mais duro de todos os Atos Institucionais, emitido em 13 de dezembro de 1968, e demonstra

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preocupação impecável com a verdade histórica, retratando o imaginário da época: linguagem, gírias, vestimentas, o clima de terror que pairava no ar. A história de ficção é protagonizada pelo fotógrafo Félix, que mesmo não se envolvendo diretamente com a política institucional, após o desaparecimento de sua namorada e estudante Nina, passa a procurá-la e é perseguido pelos agentes do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social). Nina foi presa em uma manifestação estudantil e pacífica e nunca mais foi vista. No enredo de Ditadura no Ar, Coração Selvagem, a história de Félix é atravessada pela história de outras personagens que tornam a narrativa ainda mais complexa e interessante. A rotina de trabalho de Félix em um jornal, por exemplo, é fundamental para entendermos a censura prévia, o autoritarismo da própria imprensa e a influência dos militares nas publicações. Todas as personagens que cruzam a jornada do protagonista à procura de Nina têm sua história contada: exílio, tortura, assassinato, perseguição, manifestações pacíficas e luta armada. A palavra comunista ganha destaque nesta trama de opressão e criminalização de ideias. Félix não queria derrubar o governo. Mas conheceu essa mulher sonhadora e se apaixonou pela estudante que desejava mudar o Brasil. Nessa narrativa, o protagonista da história, fotógrafo apaixonado, foi perseguido pelos bedéis do governo porque ousou procurar sua amada, raptada pelo Estado brasileiro. Ditadura no Ar, Coração Selvagem é uma HQ envolvente. Seja pela qualidade artística dos desenhos do cartunista Abel, seja pelo roteiro assertivo de Raphael Fernandes. Você vai se emocionar, se identificar com as personagens, e compreender um pouco melhor a dinâmica da ditadura vivida no Brasil entre 1964 e 1985.

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Heróis na vida pública: ficção ou realidade?

Imagens(memes) retiradas do twitter em 15/03/2021 do perfil “Fenotipicamente cansado”. https://twitter.com/padredobalao_/status/1057949298225221634

Desde o mensalão circula pela internet a narrativa do herói da nação, seja um político, seja um juiz. Quem não se lembra do então ministro do STF, Joaquim Barbosa, que rendeu várias charges como Batman? Bolsonaro, presidente do país, além de ser chamado de mito, também é comparado a heróis de HQs, assim como o ex-ministro Sérgio Moro. No mundo dos memes, gifs e figurinhas encontramos facilmente montagens com os super-heróis da Marvel e DC usando o rosto de políticos e membros do judiciário. Os quadrinhos tem uma enorme capacidade de cativar várias gerações. Personagens famosos tornam-se tão grandes que parecem ser conhecidos de todos nós. A figura do herói, por exemplo, é um tipo de personagem que dita comportamentos desde a Grécia antiga: para Aristóteles é imperativo que o herói trágico seja nobre. Os heróis circulam nas bancas de jornais, nos cinemas e agora apropriados e ressignificados pelo mundo virtual. Eles ganham vida para além do domínio do cartunista que os criou. Quando uma personagem é apropriada pelo público, sua narrativa não funciona apenas como entretenimento, mas também como uma representação de sujeitos reais. A personagem define o sujeito na medida que o sujeito modifica o personagem, ficção e realidade se entrelaçam, embora continuem sendo rigorosamente diferentes. Como toda obra de arte, as HQs carregam traços das vivências e sentimentos do contexto de quem as criou, representam uma realidade. No entanto, a representação não é sinônimo de espelho e deve ser encarada como fragmento daquela realidade de que fazia parte, que a compôs, construiu e transformou. Essa definição pressupõe que cultura não é algo estático, e considera a existência do processo coletivo de construção, inclusive gerando e mantendo discursos de dominação. A cultura não é um elemento exterior à sociedade, que simplesmente completa qualquer ordem social, ela é elemento constitutivo dessa ordem. A cultura não é modo de vida, é processo que cria diferentes e específicos modos de vida, um campo no qual a 11


sociedade, e os indivíduos participam, elaborando seus símbolos e signos, suas práticas e seus valores. Quando determinada cultura, obra, ou personagem é apropriado por um grupo, essa ação esvazia significados imprimidos pelo autor e enfatiza apenas o que interessa nessa relação. As apropriações geram novas representações que fazem referência ao real, ou seja, a algo vivido e compartilhado por meio de símbolos e expectativas. No entanto, quando vestimos sujeitos reais de heróis estamos mediando nossa visão de mundo a partir de uma representação. Nesse caso, não foi o sujeito que inspirou o herói, mas o herói é referência para o sujeito. O elemento ficcional define o imaginário. Essa representação se torna, para alguns, verdade. Não as verdades do acontecido, mas sim as verdades do simbólico, expressas no imaginário de uma época. Essas verdades fazem parte de um campo de representação em que o pensamento se manifesta pelas imagens que vem à mente das pessoas, atribuindo algum significado a narrativa social, isto é, a imagem é transformada pelo imaginário da época. Ao evoca-la, esse significado reaparece mentalmente, mesmo que o referente não esteja mais no campo visual. O imaginário constrói a compreensão do leitor, é ele que o aproxima ou o afasta da personagem, provoca medo, riso, ódio, desejo e vários outros sentimentos. Há alguns problemas nessa afetação, primeiro porque permite interpretações subjetivas de fatos concretos. Segundo por ser permissiva, na medida em que atribui a essas pessoas reais, membros da administração pública, superpoderes imaginários. Em ouras palavras, a afetação é permissiva, isenta o autoritarismo disfarçado de superpoder. Quando vestimos um sujeito público de herói, atribuímos a ele todos os sentimentos despertados por esses personagens heroicos presentes num imaginário coletivo. No entanto, política e justiça não podem ser guiadas por paixões, amor ou ódio. Diferente das HQs, em uma democracia real não se pode permitir que alguém seja inquestionável.

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Crítica para que?

Bob Cuspe e Meia Oito. Publicação no livro Sexo, Drogas e Rock'roll, de 1984.

No início dos anos de 1980, depois de Rê Bordosa, talvez Bob Cuspe tenha sido o personagem mais popular do cartunista Angeli. Foram várias revistas especiais que davam destaque a ele. Bob Cuspe foi criado para satirizar o movimento punk, mas seu autor acabou se identificando com a cena durante o processo de criação. Nas palavras do cartunista: “Não existia punk nessa época. [Antes da década de 1980, no Brasil] depois, li um livro do [escritor Antônio] Bivar. ... Antes, eu tava muito reticente com o punk. Achava que era modinha importada, não tava entendendo direito. Quando li o livrinho, vi que era minha turma.” Bob Cuspe nasceu como um porta voz de Angeli, aparentemente isentão, o personagem era mal humorado cuspindo para se expressar. O ato de cuspir, aliás, é muito simbólico: suas falas são bem reduzidas e a cusparada parecia ganhar um novo significado a cada tira. Subversivo e de poucas palavras, a personagem agradava seus leitores e assustava a direita conservadora, pois representava a escória da sociedade, os maus hábitos e o mau gosto. Certa vez, chegou a cuspir no Sarney, ainda presidente. Por outro lado, a esquerda ortodoxa se incomodava com sua postura descompromissada em relação as principais pautas daquele momento. A abordagem de Angeli era do cotidiano, não por isso menos política. Ele provocava seu leitor, dando ênfase ao comportamento de uma juventude brasileira que vivia o processo de abertura política após 20 anos de ditadura militar. Período de intensos debates e enfrentamentos. O que estava em jogo era a democracia brasileira e diversos outros projetos que a circundavam. Havia expectativas em torno do fim do regime ditatorial, da instituição de eleições diretas, da recuperação da liberdade de expressão, da liberação dos costumes (liberdade sexual, divórcio, aborto, homossexualidade). Esperava-se que a sociedade civil fosse protagonista da redemocratização. Para o cartunista, era impossível fazer “humor à favor”, pois a crítica era inerente a comicidade. 13


Passaram-se mais de 30 anos e o cuspe cômico do personagem cala fundo em uma sociedade que se mantém polarizada e ainda buscando construir, solidificar e protagonizar sua democracia. Sobreviver à crítica parece hoje uma missão impossível, porém quem deseja mudança deve enfrentá-la. Do contrário, sem que a sociedade brasileira assuma o protagonismo da democracia, assistirá, atônita, a força hegemônica de um Brasil conservador e que não sabe rir.

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Feminismo pra que? A mulher no quadrinho brasileiro

Fragmento da tirinha de Helô Dângelo https://www.almanaquesos.com/eu-nao-preciso-do-feminismo-quadrinho-bomba-ao-revelar-omimimi/ acesso em 16/03/2021

O mercado brasileiro de quadrinhos não é nada promissor, cartunistas nacionais enfrentaram e enfrentam muitas dificuldades. Por muito tempo os quadrinhos infantis dominaram as prateleiras e as bancas de jornais, não necessariamente provocados por uma demanda, mas por uma lógica de mercado. Em 1945, surgiu a Editora Brasil-América Latina que foi grande expoente de vendas. Publicava obras estrangeiras, como o Batman, Tarzan, Superman, e uma das poucas criações nacionais, o Judoka. A EBAL comprava, principalmente dos Estados Unidos, tirinhas e histórias em quadrinhos no sistema de syndicates; criados no início do século XX, eles funcionavam como distribuidoras que tinham como objetivo escoar sua produção pela Europa e América Latina. Maurício de Souza em entrevista à Revista Vozes em julho de 1969, reclamou que “os diretores de jornais, não acreditavam que o público aceitasse as estórias brasileiras. A estória estrangeira, não só a americana, mas também a inglesa e algumas francesas, chega aqui a preço de banana. A tira de jornal está custando apenas um dólar.” Os syndicates popularizaram as histórias em quadrinhos no Brasil, e por outro lado, inviabilizaram a produção e distribuição das histórias nacionais. Não se tratava do gosto ou predileção do leitor por histórias estrangeiras, mas de um mercado desleal, que produzia e distribuía em grandes quantidades. Na EBAL os cartunistas norte americanos eram maioria.

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Quando se procura por quadrinho brasileiro feito por mulheres esse número é ainda mais reduzido. Em uma breve pesquisa, digitei em um site de procura “cartunistas brasileiras” e o resultado foram dezenas de homens cartunistas, apenas Ciça, Fabiane Langona e a Laerte se destacaram como autoras. Da mesma forma que questionamos se os quadrinhos brasileiros foram sufocados pelos americanos, graças a uma lógica de mercado, podemos questionar se não há espaço para mulheres ou se é reconhecido como lugar predominantemente masculino. Com o advento da internet, diversas cartunistas passaram a ganhar destaque. Em 2013, a Folha de São Paulo estreou um espaço exclusivo para produção feminina, intitulado “Quadrinhas”. No entanto, a seção recebeu várias críticas de leitores: “Muito fraca [sic] essas quadrinhas” ou “segregar mulheres num canto especial acaba sempre por cheirar meio mal”. Ora, quando o espaço era exclusivamente ocupado por homens não havia problema? Segundo a cartunista Pryscila Vieira “A mulher sempre é objeto, um estereótipo sem voz: é a gostosa, a burra (...) Então, condicionadas a pensar que todo humor gráfico segue este padrão, muitas mulheres acabaram por sequer procurar por este tipo de arte. Sentem-se agredidas, caçoadas e não gastariam seu suado dinheiro comprando um livro em que são reduzidas ao objeto de piada”. Mesmo diante de alguma resistência, multiplica-se o número de artistas que enfrentaram os obstáculos para divulgar seu trabalho de forma independente. Dito isso, é necessário lembrar que não basta apenas produzir para conquistar espaço no mercado, é preciso investir em produção, distribuição e consumo. Todas essas etapas dependem da divulgação. E é neste ponto que o movimento feminista faz a diferença para dar visibilidade as cartunistas, sejam elas engajadas ou não. Mulheres divulgando e consumindo outras mulheres é uma forma de superar a ideia de que história em quadrinhos é coisa de homem.

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Humor é coisa de homem

Charge de Bruna Maia fonte: instagram @estarmorta

Neste prelúdio, proponho um questionamento e peço ao caro leitor e leitora para que não o responda de imediato, mas que se pergunte ao final deste texto: existe humor feminino e masculino? O primeiro dado que chama a atenção é que mulheres são minoria na produção humorística, seja no cinema, na televisão ou nos quadrinhos. Inclusive, há quem diga que mulheres têm menos graça. Portanto, podemos constatar que achamos engraçado o que é produzido, em sua maioria, por homens. Para entender se há relevância dessa separação por gênero temos antes que definir o que é humor. Para o cartunista Angeli fazer humor é um exercício crítico, logo, a sua função é alfinetar e levantar discussão. Segundo Carol Ito, jornalista, quadrinista e ilustradora, o papel da charge é apontar absurdos, exagerar situações justamente para que sejam compreendidas pelo público de maneira rápida e direta. Sendo assim, compreendemos que fazer humor vai além de fazer rir, é também afetar a verdade de alguém, questionar a visão de mundo das 17


pessoas. Não existem apenas dois lados, mas uma construção complexa de visões de mundo a partir do contexto de cada sujeito, que é atravessado pelo gênero, bem como pela condição social, sexualidade e etnia. Comecei lendo quadrinhos escritos por homens, as personagens que eu admirava, como leitora, eram mulheres desenhadas por eles. Por trás da frase “mulher não tem graça” está escondida uma perspectiva estruturada pelos homens e um modelo de como fazer humor forjado ao longo da história. Ler mulheres não foi uma decisão, eu precisava mais do que a oportunidade de conhecê-las, saber que elas existiam. Foi necessário rever o que era engraçado para mim: piadas sexistas, misóginas, que zombam dos arquétipos femininos e reforçam estereótipos, em nome de uma pretensa superioridade masculina, não fazem mais sentido para a leitora que me tornei. Hoje quero debochar de quem nos impõe uma pressão estética cruel, denunciar assédio e rir dos mínimos absurdos que nós mulheres enfrentamos ao sair na rua ou ao entrar em um aplicativo de encontro. Principalmente, porque isso impacta diretamente nossas vidas e nossos corpos. Quando uma mulher faz humor é um ato político. Ocupar espaços que já foram e são extremamente masculinos é político. Nosso corpo é político. Nos bastidores, feiras e relações mercadológicas a distinção de gênero fica evidente. Por isso a importância de mulheres se apoiarem para romper também com essa estrutura que privilegia cartunistas homens, cis, brancos e héteros como regra. Eles não exercem a hegemonia apenas na produção, mas são eles que estão por trás das editoras, dos garimpos de novos cartunistas e tem grande influência em todo o setor. O coletivo “Mina de HQ” identificou que o número de mulheres produzindo quadrinhos aumentou bastante e, embora não haja dados oficiais para medir essa informação, nos últimos anos mais mulheres se aventuraram na produção de Histórias em Quadrinhos. Acredita-se que um dos fatores que pode ter contribuído para esse aumento significativo é a constante atuação desses coletivos, formados por mulheres, em todos os setores: produção, divulgação e distribuição. Elas atuam não apenas nessas etapas de mercado, como também promovem eventos, incentivam a troca de informações, a convivência e o conhecimento sobre diversos aspectos que envolvem a produção de uma HQ a partir de uma perspectiva mais diversa. Não existe humor de mulheres feito apenas para mulheres, assim como, nós consumimos há tempos o humor feito por homens, e não deixaremos completamente de consumi-lo. No entanto, queremos romper com modelos e padrões patriarcais que se apresentam como a única forma de fazer rir. Queremos implodir as prateleiras separadas para nos embrenhar nos espaços comuns.

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Impressões sobre Rê Bordosa

ANGELI FILHO, Arnaldo. Rê Bordosa: Do Começo ao Fim. Porto Alegre: L&PMPOCKET, 2006.p.108.

Não poderia começar de outra forma, senão apelando para minhas memórias afetivas. Foi na infância que tive contato pela primeira vez com histórias em quadrinhos. Minha tia, professora de português, fazia coleção de gibis. Eu, crescendo em uma cidade do interior, mergulhava em suas revistas pra fugir do tédio. Naquele tempo, meados dos anos 90, não havia uma preocupação tão rígida em censurar quadrinhos para crianças. Bons tempos! E foi assim que conheci Rê Bordosa. Eu era uma garota de 10 ou 11 anos e achava graça naquela mulher desajustada, que era diferente de todas as tias da escola ou da igreja. No fundo eu achava que ela era mais feliz do que as mulheres que conhecia. Mesmo sem referências para uma leitura mais profunda, a personagem me intrigava. Na faculdade, fui reapresentada a Rê Bordosa, uma amiga me apelidou com o nome da personagem. Aos 19 anos, vivia a busca por autoconhecimento e reafirmação sexual. Nós mulheres não somos orientadas ou ensinadas a decidir por nós. Não desejamos, somos desejadas. Às vezes parece até que não temos domínio de nossas decisões e pesam padrões conservadores que nos foram impostos. Dizem por aí que mulher tem que casar, ter filhos, cuidar do lar e se der, ser independente financeiramente. Mesmo diferente, Rê Bordosa era triste e desajustada. A cada quadro, cada tirinha, cada página, a busca por ser uma mulher livre continuava e nunca se consolidava. Rê Bordosa é uma personagem pensada por um homem. Ela é 19


triste porque não encontra seu caminho, ela reproduz um comportamento masculino e machista. Essa mulher não aceita mais cumprir com as expectativas dos homens, ela também quer prazer a todo custo. Toda mulher já foi uma Rê Bordosa, talvez não em público, talvez em silêncio. Porque é difícil se tornar mulher potente em um mundo de referências masculinas. Angeli matou sua personagem, por incomodo, estranhamento, inveja e obsessão. Ela se tornou maior que ele, seu autor e criador, seu dono. Mulheres sexualmente livres o assustavam, como ele mesmo já declarou em entrevista. Rê Bordosa abriu caminhos para uma geração que queria ser mulher de outra forma e não sabia como. Talvez precisou morrer para que outras mulheres contassem suas histórias.

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De vilãs a heroínas: mulheres nos quadrinhos de heróis Mulheres de histórias em quadrinhos de heróis são extremamente exuberantes. Independentemente de seu poder, se são vilãs ou heroínas, elas conquistam com sua beleza personagens e leitores. As vilãs são ainda mais ousadas e usam da sedução como arma.

Mulher Gato e Elektra

fonte: https://br.pinterest.com/pin/847802698575057127/ e https://br.pinterest.com/pin/537054324293408218/

Em 1940, a Mulher Gato surgiu, nos quadrinhos, como antagonista do Batman e garante, até hoje, sua posição como uma das principais vilãs desse universo. Elektra Nachos, assassina altamente treinada e uma das mais personagens mais temidas das histórias da Marvel, conquista o coração do super-herói Demolidor, e o deixa arrasado. Houve até quem mudasse de lado, no universo da Marvel: a Viúva Negra começou como uma vilã do Homem de Ferro, no clima da Guerra Fria, mas logo se tornou espiã e assassina de elite ao lado dos heróis.

Viúva Negra

Fonte: https://br.pinterest.com/pi n/322148179575764463/

Todas as personagens citadas têm em comum um padrão de beleza: corpos curvilíneos, bundas enormes, seios fartos e suas roupas extremamente sensuais. Nota-se que há um propósito em representar essas mulheres como sedutoras: atribuir a essas personagens femininas a ideia hipersexualizada de mulher. Essa representação é muito comum e se relaciona, por exemplo, às narrativas de caça às bruxas que se iniciaram na Idade Média e perduraram, de alguma forma, até hoje. Mulheres provocam uma atração considerada incontrolável, principalmente na ótica das igrejas cristãs. Para o tribunal da Inquisição a

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sexualidade feminina era descrita como algo diabólico, era a quintessência da magia que definia uma bruxa. Apesar da caça às bruxas ter uma explicação multicausal, que vai além da sexualidade feminina, da magia e até mesmo da inquisição, é fato que o poder feminino é temido em toda sociedade patriarcal, e a violência contra as mulheres está diretamente ligada ao comportamento que é esperado delas. Qualquer desvio é considerado perigoso. Existe um empenho em construir um imaginário em que a mulher subversiva, que não se submete à esta lógica, perverte os objetivos sociais e divinos. A bruxa, assim como a vilã, é uma mulher de má reputação, libertina e promíscua, que contradiz o modelo patriarcal de feminilidade: a mulher de boa reputação é a mulher casta e obediente. A insubordinação social está presente nestas personagens que, muitas vezes movidas por vingança, desafiam as autoridades. Nem mesmo as heroínas escapam dessa lógica: quando em situações adversas mostram um comportamento não desejável. Quando Jean Grey, integrante da escola do Professor Xavier em X-Man, é possuída pela entidade Fênix e se torna a Fênix Negra, seu traje se torna ainda mais sexy e seus poderes ainda maiores. E justamente por possuir esses poderes ilimitados, que não podem ser controlados, torna-se uma ameaça ao domínio do Estado e à sociedade. Neste sentido, o conhecimento também é ameaçador. Hera Venenosa, a vilã do Batman, além de sedutora, controla plantas e venenos naturais. Esse conhecimento das plantas e da natureza em geral remete a um poder popular que foi cada vez mais restrito aos homens da ciência. No Renascimento, as mulheres curandeiras eram referência nas revoltas contra o cercamento de terras, pois os seus perseguidores as acusavam de querer virar o mundo de cabeça para baixo. Esse padrão de beleza é um produto vendável, porque foi construído e moldado de acordo com os interesses capitalistas. Há uma motivação ideológica e uma manutenção do poder patriarcal que reforçam a ideia de quanto mais agradável aos olhos, mais mortal para a alma. A repressão do desejo feminino foi colocada a serviço de objetivos utilitários, reduzindo esse desejo às necessidades sexuais dos homens. Ressignificar essa liberdade como vilania é exorcizar todo o seu potencial subversivo e transformador das mulheres.

Hera Venenosa

Fonte: https://aminoapps.com/c/batmanbrasil/ page/blog/bryce-dallas-howard-falasobre-a-heravenenosa/r8ZN_r3Teu0EgDWd4lPVPEb 4X3QdmBmxdo

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O fascínio por pandemias

Personagem Rick Grimes da HQ The Walking Dead, publicado pela Image Comics de 8 de outubro de 2003 à 3 de julho de 2019.

De proibidos e perigosos a sucesso de vendas, os quadrinhos de terror levantam polêmicas na sociedade desde o início do século XX. Dividem até os leitores mais apaixonados por quadrinhos. Muitas vezes considerado uma literatura de baixa qualidade e mau gosto, conhecidos pelas cenas de muito sangue e violência, os quadrinhos de terror também são esteticamente impactantes e fascinantes. Uma história bem desenhada não precisa de uma só palavra para causar arrepios ao leitor. HQs de terror têm uma ligação estreita com o quadrinho alternativo e com bandas heavy metal, seu intuito é causar impacto, desnudar os horrores de uma sociedade hipócrita, fazer sangrar o cidadão de bem. No entanto, essa é só uma vertente dentre muitas outras. A origem das histórias de zumbi, tão aclamadas atualmente e também consagradas no cinema e crossovers, é calcada, principalmente, no preconceito e no medo do outro. Alguns estudiosos dão conta que os mortos vivos representariam na Europa a “invasão” estrangeira. As hordas destruidoras são uma metáfora para afirmar que em um mundo civilizado os imigrantes destroem tudo que veem pela frente, transformando-o em caos. Ainda existe outro significado, que originou a palavra zumbi: na Martinica e no Haiti, poderia ser um termo geral para descrever um espírito ou um fantasma, qualquer presença perturbadora que assumiria milhares de formas à noite. “White Zombie”, filme de terror independente lançado em 1932 nos EUA, surge bem no fim da ocupação americana no Haiti. Durante este período, os 23


Estados Unidos assumem uma postura de um país modernizador e com uma missão civilizatória, alertando para a má influência das demais culturas. O terror provocado pelo filme girava em torno da história de um casal, Madeleine e Neil, que em uma viagem ao Haiti encontram um feiticeito maligno. O feiticeiro se apaixona por Madelaide e a transforma em zumbi, a fim de dominá-la. Neil, volta para casa com a presença perturbadora de Madelaine. Enfim, o feiticeiro significa uma influência maligna de outra cultura, capaz de transformar as pessoas em algo temível. A superstição passa a ser culpada pelo fim trágico do mundo civilizado. O zumbi remete ao fim da sociedade americana e a barbárie. É interessante como a figura de um líder ganha importância nas histórias de pandemia e caos, mesmo que seu comportamento seja questionável, ético e moralmente. Sem ele o grupo se perde e não consegue colaborar ou se comprometer com o coletivo. É preciso alguém, de pulso firme, para manter a ordem e lembrar a todo tempo que ainda podemos ser civilizados. Por outro lado, os vilões dessas histórias, para além dos zumbis, são líderes e defensores de comunidades ditas primitivas, que colocaram seu instinto de sobrevivência a frente de sua pretensa humanidade. É comum aparecerem discussões filosóficas e religiosas sobre o suicídio, canibalismo, incesto e promiscuidade. Todo esse imaginário nos leva a refletir sobre o outro, aquele que não se parece comigo. Hierarquizamos culturas como modos de vida superiores ou inferiores. Nada é por acaso. Em pleno surto de COVID-19, há quem afirme, sem fundamento científico algum, que o vírus é fruto de hábito alimentar estranho dos chineses, de praga divina, ou de conspiração de grandes empresas internacionais. Debates televisivos calorosos (e irresponsáveis) são promovidos para decidir qual atitude seria mais ética no caso de impossibilidade de atendimento da população contaminada: quem deve ser salvo primeiro, os presidiários ou os cidadãos de bem? O debate é apenas uma reprodução da dicotomia bem e mal tão difundida pelo quadrinho e cinema estadunidense. O fascínio por HQs de terror causado por uma pandemia pode estar relacionado a bons diálogos, reflexões e cenas de suspense. No entanto, eles nos provocam sentimentos mais profundos, nos arrancam da rotina e nos permitem perceber a concretude da vida. A destruição é o mais fascinante dos desafios humanos, ela nos obriga a renascer, mas não sem antes nos colocar diante de nossos medos, e principalmente, diante das vontades mais reprimidas. A autorização para ser egoísta e para revelar o pior de si é um sintoma da iminência do fim. Afinal, o inferno são os outros.

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Memórias de pesquisa: trajetória e metodologia de análise da Revista Chiclete com Banana a partir da seção de cartas dos leitores1 “Look what's happening out in the streets Got a revolution, got to revolution Hey I'm dancing down the streets Got a revolution, got to revolution” Autor (J.A.)

Relembrando minha trajetória acadêmica, começo escrevendo estas memórias de pesquisa ao som de Volunteers, uma de minhas músicas prediletas da banda Jefferson Airplane, buscando o mesmo sentimento que me levava a escutar música na rua, compartilhar fitas k7, ler quadrinhos, estar com os amigos e buscar um mundo melhor para viver. Penso que, mesmo em momentos de reflexão, revolta ou indignação, há um certo prazer em trilhar o caminho da liberdade. Espero dar sentido ao gozo que experimentei em todas as etapas da minha pesquisa, afinal, há diversão em aprender, descobrir, examinar e refletir, sem que para isso o método seja abandonado ou banalizado. Assim, adianto que todas as minhas escolhas foram fiéis aos meus questionamentos como pessoa e historiadora sem evitar o incômodo, que quando ressaltou aos olhos me colocou sempre outra e mais outra pergunta. Nesta trajetória, da graduação em 2012 até meados de 2021, percorri alguns caminhos pesquisando a revista “Chiclete com Banana” 2 e neste período algumas abordagens foram fundamentais para chegar a conclusões assertivas, enfrentei um longo processo solitário de tomada de decisões, seja adotando certos posicionamentos metodológicos e ideológicos, seja criticando e superando outros. No primeiro momento, foi importante perceber a revista como um produto mercadológico, ao mesmo tempo em que é também espaço de expressão cultural, artístico, admitindo as relações sociais e de troca como algo significativo para parte da juventude brasileira daquele período da década de 80. Antes de iniciar a pesquisa, a existência da revista “Chiclete com Banana” parecia um caso isolado nesta "década perdida", em um país que vivia uma estagnação econômica: uma forte retração da produção industrial, um menor crescimento da economia, e principalmente, a perda do poder aquisitivo da população. No entanto, ao mergulhar nesse universo dos

Trechos adaptados da Introdução da dissertação de minha autoria, “Ruídos do mau gosto: cuspes, conflitos e perspectivas urbanas na seção de cartas da revista chiclete com banana (1985-1990)”, finalizada e aprovada em 2018, pelo Programa de Pós Graduação da História (coloca o nome oficial do programa), da Universidade Federal de Uberlândia. 2 Pesquisei a revista Chiclete com Banana durante a graduação, que foi objeto de pesquisa da minha monografia: ROMANI, Aline. A Revista Chiclete com Banana e o sentimento de liberdade: resistência, conflitos e alienação na década de 1980. Monografia (graduação em História) – Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia.2013. A revista “Chiclete com Banana” foi objeto de minha pesquisa durante o curso de graduação em História, pela UFU, e também objeto de minha Monografia intitulada Chiclete com Banana e o sentimento de liberdade: resistência, conflitos e alienação na década de 1980, defendida em 2013. Disponível em: <site>. Acesso em 01 abr 2021. 1

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quadrinhos verifiquei uma intensa produção, de diversos cartunistas, criações e personagens consistentes e com visibilidade na grande mídia. A cena envolvia artistas com forte influência underground, que tratavam de temas polêmicos de forma debochada e até mesmo escatológica. Faziam humor com o cotidiano das pessoas e seus comportamentos, satirizavam o status quo e, ainda assim, ganharam espaço no mercado convencional brasileiro dos quadrinhos. Se antes percebia esse posicionamento como ambíguo, durante a pesquisa procurei entender as contradições como parte fundamental da história, pois são nelas que residem as transformações. No segundo momento, ainda na monografia, tornou-se um desafio pensar a recente democracia brasileira, considerando outros aspectos, que não o institucional, o burocrático ou o legal. O objetivo foi tratar os conflitos que envolviam o processo de democratização do Estado, por meio dos quadrinhos e da comunicação, e principalmente, questionar o modelo de história factual que insistia em traçar marcos em períodos de transformações drásticas. Além disso, questionar um modelo de história marxista e superestrutural que defende a narrativa de uma condução à democracia brasileira por uma classe dominante. A partir do desenvolvimento da pesquisa, entendi a democracia como um processo, ainda hoje Antes de decidir pesquisar a revista “Chiclete com Banana”, era uma grande fã do cartunista Angeli. Comecei lendo suas tirinhas na Folha de São Paulo na década de 1990, fui uma adolescente apaixonada. E nos sebos, já cursando a graduação em História, conheci a revista e me encantei. No decorrer da pesquisa, superei esse sentimento e enfrentei as contradições. Abandonei o lugar confortável de fã e colecionadora, e busquei a postura de uma pesquisadora, que se incomoda, questiona, duvida, compreende e explica. Por fim, meu amadurecimento, minha trajetória e experiência enquanto mulher suscitaram questões específicas desse sujeito feminino. Vieram à tona alguns incômodos que me levaram a questionar a participação da mulher na revista como: leitora, personagem, seu lugar de destaque; e ainda, a contribuição do periódico e dos leitores para uma visão limitada e ambígua da rebeldia feminina. Segundo Thompson: “Não vivemos em um mundo isolado da historiografia”, “compartilhamos terminologias com nossas fontes, em momentos e significados diferentes e isso deve ficar claro.”3 O historiador formula suas perguntas do presente, partindo de suas angústias, mas voltando-se para o passado. Tendo em vista o trabalho reflexivo do historiador, eu não posso deixar de considerar novos questionamentos que surgiram após o recente golpe à democracia brasileira – que por decisão do Congresso e apoiado por um público restrito em manifestações televisionadas – retirou da presidência do país a então eleita Dilma Rousseff. Depois de 2018, Bolsonaro foi eleito 3

THOMPSON, Edward Palmer. As peculiaridades dos Ingleses. In:________. As peculiaridades dos

ingleses. Campinas: Ed. UNICAMP, 2001. p.98.

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presidente e com ele, a promoção do fascismo no Brasil e de um projeto genocida que alcança dados de mortalidade alarmantes em 2021, no auge da pandemia de COVID-19. Diante dessa conjuntura, propus uma investigação que pressupôs a importância do papel dos sujeitos e principalmente dos meios de comunicação, na formação e circulação de grupos rebeldes, revolucionários, mas também, reacionários e conservadores. Despertou em mim o interesse pelos grupos urbanos e juvenis que tinham uma relação estreita com a revista “Chiclete com Banana”, os conflitos entre eles, seus desejos, a noção de liberdade, rebeldia, democracia. A seção de cartas apresenta uma perspectiva interessante das redes de relações, dos conflitos morais e das contradições vividas por grupos urbanos e juvenis. Escolhi, então, trabalhar a partir das cartas enviadas pelos leitores à revista, buscando nessas fontes vestígios dessa rede de comunicação, propondo uma análise da relação dialógica entre artista e leitor, e aprofundando nas disputas e conflitos sociais. Ou seja, entendendo que toda comunicação envolve pelo menos dois sujeitos, aquele que fala e o que escuta e compreende, “a relação com o sentido é sempre dialógica. O ato de compreensão já é dialógico”.4 Ao me aproximar dos leitores, por meio da seção de cartas, notei uma grande relevância desses sujeitos na construção da revista, para além do papel de mero receptor. Destaco com igual importância os grupos ou coletivos, sejam eles ligados a estilos de música, de vida, ou gangues urbanas e grupos com interesses em comum, como fanzineiros, cartunistas e fã-clubes. Muitos desses grupos se auto intitulavam subsociedades, se percebiam como grupos ou pequenas comunidades que construiriam seu modo de vida próprio, mas não isolado, muitos em negação ou oposição ao sistema capitalista. Motivada pelo materialismo cultural, desenvolvi uma metodologia que privilegia o olhar sobre os sujeitos e evita modelos já formatados. O método da pesquisa foi construído à medida que consultava as fontes e levantava questões. Outras evidências, além da revista “Chiclete com Banana” e sua seção de cartas, foram necessárias e importantes para entender e explicar as tramas em torno daquelas publicações. Dentre elas, foram analisadas entrevistas do cartunista Angeli e do editor Toninho Mendes, o Código de Ética para publicações de quadrinhos, além de leis que regulamentavam essas publicações recomendando a proibição do material para menores de 18 anos. Resgatar o processo de produção e consumo da revista não significa reproduzir um evento do passado, ou remontar cronologicamente a história da revista, tampouco alcançar uma verdade absoluta sobre fatos. Procurei recuperar ideias de um grupo contra hegemônico, reavendo áreas rejeitadas, e reformular as interpretações seletivas e redutivas relacionadas a juventude ao longo desses anos.5 Busquei por vestígios na confrontação dessas fontes, e na análise crítica desses materiais investigados, explicações para a BAKHTIN, Mikhail. O problema do texto. In: ______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.p. 350. 5 WILLIAMS, Raymond. Tradições, Instituições e formações. In:______. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro : Zahar, 1979.p.119. 4

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popularidade da revista, para o posicionamento político dos sujeitos envolvidos e seus conflitos. Segundo Aróstegui, a complexidade e heterogeneidade das relações humanas são os problemas essenciais do objeto historiográfico. O autor explica o estado da mudança, não apenas se preocupa em descrevê-la.6 Thompson traça o que ele entende como lógica histórica: Um método lógico de investigação adequado a materiais históricos, destinado, na medida do possível, a atestar hipóteses quanto à estrutura, causação, etc., e a eliminar procedimentos auto confirmadores (instâncias, ilustrações). O discurso histórico disciplinado da prova consiste num diálogo entre conceito e evidência, um diálogo conduzido por hipóteses sucessivas, de um lado, e a pesquisa empírica do outro. O interrogador é a lógica histórica, o conteúdo da interrogação é uma hipótese (por exemplo, quanto à maneira pela qual os diferentes fenômenos agiram uns sobre os outros). O interrogado é a evidência. Com suas propriedades determinadas.7

Iniciei a pesquisa organizando minhas fontes: foram digitalizadas as 24 revistas “Chiclete com Banana” publicadas entre 1985 e 1990, todas pertencentes ao meu acervo pessoal. As páginas digitalizadas em arquivos de imagem facilitaram manuseio e possibilitaram a demonstração das figuras selecionadas para compor o texto final. Depois de digitalizadas, foram catalogadas todas as 1672 cartas publicadas pela revista desde sua criação, até a última publicação inédita em 1990. Nesta planilha levantei dados quantitativos como: cidade, estado e gênero dos leitores, dados utilizados sem que houvesse generalização, já que esta elimina contradições e impede a verificação da diversidade. Além disso, foi feita uma análise prévia e qualitativa das cartas que tiveram seu conteúdo publicado. Dos 1672 leitores, 852 tiveram apenas seus nomes, cidade e estado registrados. Ou seja, as 820 cartas restantes foram divididas por tema e receberam observações quanto ao seu conteúdo. Essa seleção inicial de fontes foi fundamental para construir uma linha de raciocínio dentro da pesquisa e principalmente organizar a escrita. Começar pelas cartas evitou que eu construísse um modelo a priori: o perigo nestes casos, é pinçar as evidencias sem considerar sua totalidade e até mesmo eliminar o incômodo, ou seja, aquelas informações que não corroboram com a hipótese pré-formulada. Sendo assim, evitei a criação de instâncias e o uso de materiais como ilustrações, visto que as relações humanas sofrem mudanças em tempo e espaço, não podendo ser aplicada às várias sociedades uma mesma ARÓSTEGUI, Julio. A explicação e a representação da história. In: A pesquisa histórica: Teoria e método. Bauru, SP: EDUSC, 2006 7 THOMPSON, Edward Palme. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar.1981.p.49 6

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definição ou contexto. A evidência não pode ser ilustração da intenção prévia do historiador, a fonte não revela por si mesma a história, ela deve ser interrogada. Pretendi responder a questões de como e porquê das transformações socioculturais, considerando que o homem é sujeito dessas transformações durante o decorrer do tempo. Sendo assim, me interessei pela rede de relações estabelecidas por esses sujeitos, não apenas a prosopografia do cartunista, mas também como aqueles leitores ajudavam na construção da revista, desde o processo de produção, até a divulgação. E ainda, o que essa trama significou diante daquele contexto histórico, o que era discutido naquele espaço, como isso dialogava com a conjuntura. O historiador deve se esforçar para explicar não apenas o estado social abordado, em uma determinada comunidade, mas também buscar as relações com o passado e as mudanças. Não pretendi, com minha pesquisa, trazer fatos políticos sucessivos, mas identificar o estado de certa comunidade a partir de vivências, buscando várias dimensões da vida dos sujeitos, incluindo valores, sentimentos, emoções, hábitos e costumes. Entendo que os quadrinhos são uma linguagem que compõe uma rede de comunicação. No caso da “Chiclete com Banana”, a revista busca reagir e resistir à lógica da grande mídia, como forma de estabelecer diálogo com a realidade vivida, em um contexto de redemocratização – enquanto um processo de reorganização da sociedade civil e das transformações da cultura política. A comunicação não pode ser entendida como dimensão paralela ou reflexa da realidade social, mas que antes, e com mais peso nas sociedades contemporâneas, deve ser analisada como dimensão central na configuração e nos rumos dos processos sociais, propondo que entendamos os processos urbanos como processos de comunicação.8

O leitor é a figura central dessa análise e não cabe a mim, como historiadora, tratá-lo de forma inferior ao cartunista no que tange a esse processo de comunicação, mesmo considerando que Angeli tinha um poder maior para se expressar, sendo ele o autor e protagonista da revista. O leitor não aparece, segundo minha abordagem, como mero receptor. Ele faz parte da construção das personagens e dos temas abordados. O propósito sempre foi pensar a revista “Chiclete com Banana” como um território, um lugar de construção do urbano e dos seus símbolos, comportamentos e definições, considerando o momento de profundas transformações vivenciado no Brasil pós Ditadura Militar.

MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2008. 8

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Luciano Ferreira é cartunista uberlandense do Triangulo Mineiro. Publicou no Jornal Correio de Uberlândia. Tem livro e teve banda. Gosta de quadrinhos tortos. De música papo reto. E de cinema que não seja de um quadro só. Atualmente é colunista do Diário de Uberlândia.

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Os voos dos balões

Ilustração do autor

Os balões de quadrinhos são um recurso gráfico ao qual se pode atribuir fala, pensamento e diversas expressões a um personagem, utilizando as possibilidades de expressão visual para representar não só a fala, mas também pensamentos, entonações, timbres e outras formas de expressão sensorial. De modo geral, os quadrinhos até o séc. XIX não utilizavam balões, pois os diálogos e narrações eram alocados em quadros ou legendas paralelamente colocadas aos desenhos, sendo que mais adiante, com o marco mais popularmente conhecido através do personagem Yellow Kid, foi onde o uso de balões começou a ganhar destaque. A dinâmica gráfica/emocional dada pelos balões é frutífera em diversas possibilidades, especialmente em termos de condução narrativa, pois a disposição dos balões/diálogos tende articular uma sequência de ideias e acontecimentos de forma a promover o interesse e as reações do leitor. O uso e estilo dos balões nos quadrinhos é bastante diverso e até mesmo relativamente contraditório, cabendo ao leitor ter alguma experiência na leitura ou capacidade intuitiva para distinguir as funcionalidades gráficas no uso de alguns tipos de balões. Um caso marcante é o uso de balões com formato retangular ou quadrado, pois em casos específicos (como nos quadrinhos belgas), esse tipo de balão é de uso comum e não representa qualquer alteração ou identificação na fala. E em outros casos, o uso de balões 33


retangulares tende a ser utilizado como representação de uma fala robótica, algo de origem eletrônica. Dentro do campo do Poema Processo, na obra “Arte Correio”, de Paulo Brusky, o balão surge como tela, contendo uma reprodução de imagem que ao mesmo tempo contêm um texto invertido, sugerindo um jogo de representações e funções a partir da funcionalidade dada pelos balões de quadrinhos. Ou a obra do poeta brasileiro Álvaro de Sá, intitulada 12x9, onde os balões deixam de usar palavras e onomatopeias, para usar figuras geométricas como mote narrativo. Assim, para além do uso restrito das Histórias em Quadrinhos, os balões também são um recurso gráfico de amplo uso cultural e mercadológico, onde sua funcionalidade conceitual auxilia a comunicação com pessoas de qualquer idade e classe social. Com isso, os balões ganham vida própria, uma independência dos quadrinhos que chegou ao patamar de ser usado como logo do aplicativo Whats App. Mas ainda assim, dentro dos quadrinhos, os balões podem ganhar outros contornos, outras potencialidades no modo de se relacionar com as imagens, talvez até abandonando certo caráter de complementariedade em relação às imagens e se firmando como um ente estético a ser tratado com mais especificidade.

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As regras da exceção

Ilustração do autor

Em 2001 comecei publicar minhas tiras de quadrinhos em um jornal da cidade, e com isso pude usar, como referência, várias publicações e experiências gráficas que expandiram o entendimento da narrativa visual, tendo aí os superheróis, quadrinhos estrangeiros e várias publicações nacionais que circulavam sem muito alarde na mídia. No dia da minha estreia, fui entrevistado e fiz ponderações sobre meu processo criativo e sobre influências, e, embora não tenha mencionado as referências que cito aqui, pude falar sobre o método de recolher elementos cotidianos para compor as histórias. Evidentemente esses conceitos não eram o foco central da minha entrevista, no entanto ajudariam a dar um contexto do tipo de produção quadrinística que estava por vir, pois junto com minha produção, outros artistas também seguiam o mesmo caminho, onde diversos tipos de normatizações nos quadrinhos eram rompidas, sejam no modo de se fazer ou na maneira de veicular, a somar, mais adiante no tempo, o fato de que os jornais online lentamente iriam abrir mão de tiras e charges, especialmente porque essas últimas não tinham mais a sincronia editorial e cronológica em um mundo onde as notícias não podiam mais se acumular em 24 horas até serem publicadas. Levando esses fatores em conta, decidi não publicar material convencional de quadrinhos naquele jornal, criei apenas um personagem recorrente (Felisberto, um rapaz que eu concebi como um uberlandense comum), cujas tiras apareciam ocasionalmente, junto com tiras aleatórias sobre temas do momento e como personagens circunstanciais. 35


Geralmente publicava séries sobre temas com séries que variavam de duração, retomando temas em outros momentos ou abandonando no caso de temáticas baseadas em noticiários. Mesmo alertado por colegas que o ideal seria trabalhar unicamente com um personagem, a fim de criar o vínculo entre ele e o autor, arrisquei na aleatoriedade, pois tinha em mente que ao escolher um personagem e um universo só, perderia a oportunidade de navegar em outros campos. Nesse ponto, os caminhos cruzados pelo uso comercial e não convencional de quadrinhos na mídia, ajudou a formular técnicas de narração, enquadramentos e até mesmo de uso do espaço dentro das páginas do jornal, experimentando recursos e testando a resposta da audiência, ajudando a ampliar minhas capacidades técnicas e me preparando para diversos tipos de produção quadrinística. E como diz meu colega Fernando Duarte, as ideias acabam, mas a obrigação de publicar não. Sendo assim, busquei produzir com bastante antecedência, para evitar repetir ou faltar material inédito, contudo o entusiasmo de poder experimentar e dialogar com o espaço editorial fez valer todo o esforço.

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Mostras de quadrinhos e fanzines

Ilustração do autor

Como boa parte dos quadrinistas, comecei a publicar em fanzines, participando de mostras de quadrinhos formais e informais, e por isso quero ponderar sobre esse tipo de atuação cultural, por entender que as relações que são construídas aí, são de grande importância para o desenvolvimento artístico, notando que isso vale não só para os artistas, todavia também para editores, divulgadores e entusiastas em geral. Entre 1996 e 2000, participei de diversos fanzines e mostras de quadrinhos, onde pude receber comentários específicos sobre meus trabalhos, e a partir de comentários mais técnicos, obtive avaliações mais claras, olhares que ajudariam a encaminhar de modo mais adequado, os recursos de produção que eu dispunha naquele momento. Foi ali que elegi a tira de quadrinhos como meu formato de trabalho, já pensando na eventualidade de publicar em algum jornal. Além disso, fiz contato com alguns quadrinistas locais, que ao encaminhar as relações para laços autênticos de amizade, teve um efeito benéfico em minha autoestima, agindo no sentido de acabar com algumas inseguranças e dúvidas e solidificar minha capacidade artística. Minha participação em fanzines como “Rabo de Galo” e mostras de quadrinhos como a do Bar do Cowboy e Colégio Nacional, foram meus primeiros passos no sentido de uma produção autoral, que em poucos anos me levariam a publicar em jornais e revistas. Como diz o ditado popular “Estava juntando a fome com a vontade de comer” e queria muito registrar “na 37


História” causos e casualidades da nossa produção artística regional, queria que minha produção quadrinística fosse uma espécie de espelho da nossa cidade. E de fato ocorreram várias reflexões, especialmente sobre questões pragmáticas. Com tudo isso, a minha expectativa de retorno artístico vinha em escalas cada vez maiores, pois se antes minha preocupação era a de ser aceito como desenhista ou se a qualidade técnica do meu trabalho era aceitável, logo passou a ser sobre como criar roteiros, espaços de visitação pública, divulgação e questões afins. Ignoro se hoje ocorreria da mesma forma, pois ao utilizarmos a internet como veículo de divulgação de quadrinhos, todas essas questões práticas, as dificuldades e principalmente as reações presenciais, tendem a ser reduzidas quando se trata de relações via redes sociais. Também não posso dizer que são melhores, porém para além dos registros meio protocolares de curtidas de um trabalho, acredito que exposições e trabalhos vistos de forma presencial dão outra dinâmica na apreciação de quadrinhos e isso precisa ser levado em conta, pois independente da forma, acredito que esse tipo de experiência é essencial.

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Os respiros da inspiração

Ilustração do autor

Quando se trata de charges políticas ou temas comportamentais, os cartunistas tem munição variada para recarregar seus trabalhos. Entretanto, e quando o recurso de fazer quadrinhos a partir do mundo real, não é suficiente ou adequado para o cartunista realizar seu trabalho? Onde buscar recursos? Muitas vezes não se trata só de falta de referências, podemos encontrar exemplos onde os retratados em charges acabam sendo vistos pelo público com tolerância em relação às suas falhas de conduta e de caráter. Esse fenômeno provavelmente está relacionado com a dificuldade que alguns artistas têm em perceber que dar espaço para essas pessoas na mídia é o resultado de autopromoção, é uma peça publicitária. O cartunista Angeli relatou à Playboy que o ex-ministro Delfim Netto emoldurou uma charge que o satirizava, e então Angeli notou que celebridades ironizadas nas charges estavam tirando proveito do prestígio que era “aparecer” nos jornais. Apelar para uma “poupança” de ideias também pode ser problemático. Um cartunista que trabalha em Uberlândia, já me relatou que em suas primeiras semanas de trabalho na profissão, esgotou o seu baú de ideias e foi necessário repensar o seu processo de criação, possivelmente menos focado em intuição e mais em pesquisa. E como ficam os artistas quando estão presos entre a falta de assunto, armadilhas de autopromoção e esgotamento de ideias?

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Uma das saídas é escolher um tema que tenha caráter universal, como reflexões sobre a condição humana, pecados e similares, pois além de permitir releituras, também ajudam refletir sobre o próprio modo de produção, e ao trabalhar com esse tipo de tema, podemos fazer escolhas que iluminem nossos pontos fortes, seja traço, narrativa, inventividade e etc. Muitas vezes ao trabalhar no dia a dia sem refletir sobre o processo de transformar uma notícia em charge, podemos automatizar esse procedimento sem nos dar conta das armadilhas que isso pode gerar. Não são só os exemplos que estão nessa coluna, existe a possibilidade de que isso legitime uma série de problemas que deveriam ser evitados por cartunistas, como ignorar questões éticas e a pluralidade dos pontos de vista e problemas que surgem dentro de determinados contextos. É preciso notar que temos a concorrência quase desleal dos memes, cujo procedimento de reutilizar elementos previamente existentes, garante rapidez de produção e permeabilidade de público, fatores que nem sempre um cartunista tem a seu favor. Não se trata aqui de criar um manual de instruções, todavia refletir sobre o nosso momento histórico, onde o processo de criação precisa de uma imediata pesquisa para evitar cair em um plágio acidental.

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Uma História sobre a ‘História’

Tira do autor

No início dos anos 2000, publiquei uma tira chamada “Uma História sobre a História”, e tal como qualquer tira de jornal, seus elementos gráficos são comuns e reconhecíveis. Mas o motivo de abordar essa tira em específico vem pelo fato dessa tira ter sido recebida com um grande (e justo) espanto na época que foi lançada, pois assim como outros trabalhos, eu procurei criar um tipo de narrativa que fosse além daquela associada aos quadrinhos e tiras de jornal. O esquete é bem simples: o 1° quadro mostra um sujeito fugindo de um tornado/tempestade; o 2° o mesmo personagem assustado, regando uma planta; no 3° e no 4°, o personagem semeando o chão com um saco com “sementes de vento”. Todos esses elementos fazem alusão ao ditado popular “Quem planta vento, colhe tempestade”, embora nesse caso a ordem com a narrativa esteja de trás para frente. Mesmo que os elementos gráficos fossem convencionais, alguns leitores do jornal onde ela foi publicada ficaram inquietos, provavelmente com dúvidas sobre a qualidade da construção narrativa ou até mesmo incomodada em os seus valores conservadores em termos de Arte. Cheguei a levar um puxão de orelha, onde um artista da cidade me sugeriu emprestar algumas revistas de quadrinhos, para que eu estudasse e aprendesse como se faz quadrinhos. Considerei a sugestão como uma forma sincera de ajuda, no entanto nunca deixei de sentir um estranhamento quando artistas se posicionavam de forma conservadora a respeito de quadrinhos, especialmente no sentido de que é uma arte superficial. Vale lembrar que isso foi há quase duas décadas atrás e que hoje temos uma diversidade de estilos, narrativas e outros elementos que seriam considerados inapropriados para os quadrinhos triangulinos dos anos 2000. Contudo ainda me intrigava que quem estudou movimentos de vanguarda e suas rupturas, reagisse de forma conservadora a uma mera e efêmera tira de jornal.

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Com tudo isso, eu convido o leitor para refletir sobre o caminho que as Charges, Tiras e as demais manifestações das Histórias em Quadrinhos passaram até que pudéssemos ter um cenário promissor em termos de vendagens e qualidade. Superar o estigma de que as Histórias em Quadrinhos eram uma produção artística exclusiva para crianças, levou bastante tempo e ainda precisa avançar mais, visto que alguns leitores ainda estão presos nesse conceito. De modo geral, o aproveitamento quadrinístico em outros campos, como infográficos e memes, trouxe uma mudança no entendimento de Quadrinhos, indo além da auto sustentabilidade como negócio, todavia também ampliando significativamente as experiências estéticas para os leitores de todas as idades.

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Charges X Ética

Ilustração do autor

A leitura de charges, tiras e cartuns em jornais impressos é (ainda) um hábito cultivado por boa parte dos leitores, que por sua vez reconhecem formal ou informalmente as charges como um gênero jornalístico, e ainda que recebam outros nomes ou formas artísticas, esse tipo de produção tem o potencial de captar a atenção do leitor, especialmente pela rapidez comunicacional das imagens: articulam toda uma relação de contextos e informações, em sínteses visuais, apontando nessas sínteses e nos textos, informações que podem servir de base para a formação de opinião, apontar contradições e etc. Comparando com o uso de memes para comunicar sobre temas como política ou costumes (geralmente anônimos ou não creditados), charges tem autor definido e é um gênero textual afinado com a linha editorial e respeitando as limitações éticas e de moralidade que um jornal precisa se comprometer. Esse comprometimento ora guiado pelo próprio Código de Ética Jornalística, ora guiado pelo senso comum dos leitores, reflete-se em grande parte dos casos na forma que os cartunistas constroem seu universo de imagens, não só evitando imagens excessivamente provocadoras (escatológicas, pornográficas entre outras), mas também evitando retratar informações que não correspondam à aferição dos fatos, ou seja, o artista pode exagerar um fato, “caricaturizar” uma celebridade, ridicularizar um gesto, mas em geral não pode expressar, graficamente, interpretações que não correspondam a um fato averiguado. Evidentemente esses procedimentos se restringem às charges de natureza política e comportamental, conceitualmente diferentes de trabalhos gráficos de natureza ficcional, que quando muito, fazem uma releitura de fatos utilizando métodos de representação simbólica e sem referência direta aos 43


fatos jornalísticos e frequentemente publicados em momentos que não permitem uma relação direta de nexo contextual. Mesmo quando o limite entre uma charge “ficcional” e “jornalística” fica impreciso, temos como guia a reputação do chargista e sua capacidade técnica, que junto a outros fatores, podem equilibrar os elementos de forma adequada a incentivar a reflexão e o desfrute das possibilidades artísticas. Assim, charges produzidas em contextos jornalísticos, ainda que não tenham obrigação de seguir o código de ética institucional de jornalistas, precisa se associar ao compromisso dos jornais no sentido de manter “o pé no chão” para não alienar os leitores com informações que podem levar às fake news e à consequente perturbação de noções de cidadania, ética ou qualquer procedimento que prejudique a relação dos leitores com a realidade.

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Usar cor é fogo!

Ilustração do autor

O uso das cores nos quadrinhos reforça a narrativa mesmo sem usar elementos perceptíveis e vai além das funções habituais de preenchimento, profundidade e iluminação: desenvolver a história a partir de aspectos subliminares, aproveitando de simbolismos e relações culturais, para criar uma narrativa paralela, complementar. Em um dos exemplos mais conhecidos, na HQ Watchmen (de Allan Moore e Dave Gibbons, 1986) cores são ocasionalmente distribuídas ao longo dos quadros de forma criar uma estrutura concêntrica, que remete às mandalas e ao mesmo tempo sugerindo uma analogia visual em relação às ramificações que norteiam a trama. Já no uso corriqueiro das HQ´s com elementos já estabelecidos, trabalha-se para sugerir cromaticamente as emoções de uma história. Descontrole, raiva e violência geralmente usam cores vibrantes como vermelho, amarelo ou laranja. Cores frias como azul e violeta são usadas quando o tom é triste e deprimente. Notem que isso tende a ser embasado em correlações fisiológicas e naturais. Quadrinhos infantis geralmente fazem uso de cores primárias de forma mais ostensiva, trabalhando com correlações de cores para propor agrupamentos, identificar times, turmas e etc. Esse recurso geralmente tem a função de ajudar as crianças-leitoras a categorizarem grupos a partir de dicas visuais, podendo propor, nesse tipo de obra, a ideia de cor enquanto noção moral ou ética, como é o caso do onipresente uso de cores escuras em contraposição a cores claras enquanto oposição de valores. Vale lembrar que no início do séc. 20, os gibis começaram a usar cores em suas impressões, e ainda que também fossem predominantemente primárias, 45


provocaram um aumento de demanda do público por conta do efeito psicológico na dinâmica da leitura das imagens. As cores davam um tempero a mais no arroz-e-feijão do preto & branco. Despesas altas e dificuldades técnicas levaram a indústria gráfica da época a pesquisar formas de coloração impressa, tendo em vista a necessidade de garantir produtos com baixo custo. Houve um importante passo para a expansão da indústria gráfica e por consequência, influência em outros campos. Não só na estética, mas no uso dos recursos técnicos que foram disseminados a partir dessa demanda. Cabe lembrar que a partir dessa relação, os esquemas de cores de quadrinhos foram além do seu nicho, como na publicidade ou de forma mais indireta, no Audiovisual, onde Cinema e TV, que mesmo tardiamente, imitavam o uso das cores quadrinística em filmes e séries de TV. Quem não se lembra das coloridas onomatopeias da série Batman dos anos 1960? POW!!!

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Quadros dos Quadrinhos

Ilustração do autor

Ao contrário do Cinema, da Pintura e de outras artes que usam suportes com dimensões específicas para exibir um conteúdo artístico, as Histórias em Quadrinhos podem se dar ao luxo de reinventar a “moldura” de cena de forma dinâmica e criativa, interferindo no modo que o leitor percebe várias relações entre as imagens, textos e a utilização do espaço. E aqui não é o caso da internet, aonde a exibição isolada de um único quadro, ou o painel de exibição de imagens, tem efeitos e procedimentos diferentes daqueles encontrados em publicações impressas, embora isso mereça ser tratado em outro artigo, com a atenção que a especificidade desse tipo de publicação merece. O encadeamento narrativo dos quadros nas HQ´s é tão vasto, que é impossível encerrar o assunto aqui, no entanto vale uma breve reflexão para que o leitor possa apreciar esse aspecto das HQ´s. E para isso eu proponho aqui um exercício simples de comparação entre a separação entre linhas de texto e os quadros de Quadrinhos, sendo que cada linha representa um espaço equivalente a de um quadro. – O Dado – Rolando sobre a vida – Jogou contra o chão Vemos aqui que os espaços entre as frases dão certo respiro entre um texto e outro, permitindo um curto período de pausa onde o leitor pode processar o significado das palavras de forma tranquila.

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No exemplo a seguir, o mesmo texto é apresentado sem espaços e sem uma pontuação que incentive pausas na leitura, evidentemente com a intenção de torna-lo mais rápido e fluído: – O Dado rolando sobre a vida jogou contra o chão. Como já havia adiantado, a leitura desse texto é diferente do texto anterior e ainda que não tenha a intenção de entrar nos detalhes de pontuação e sintaxe, a sugestão é que o leitor faça uma comparação, ainda que intuitiva, com a imagem que ilustra esse artigo. Seja como for, em geral não damos muita atenção ao modo que os quadros são dispostos em uma história em quadrinhos, contudo certamente o uso desse recurso é tão ou até mesmo mais importante do que os desenhos e o texto. Veja a linearidade dos quadros das tiras de Garfield e compare com as tiras da Laerte, os grandes quadros dos gibis de super-heróis, com a regularidade formal do Maurício de Souza. Em cada um desses casos, a forma dos quadros (co) responde ao conteúdo desenhado e escrito, na medida em que a dinâmica da narrativa pede uma “moldura” que valorize o que está registrado ali, seja a exploração de um espaço geográfico de campo de batalha, o espaço social de um grupo de crianças ou um espaço fantasioso de um delírio, cada momento pede que sua “moldura” privilegie uma determinada informação, ainda que isso sacrifique ou valorize a moldura e por consequência, a obra.

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Por que Histórias em quadrinhos não são nem Artes Visuais e nem Literatura?

Ilustração do autor

Para começar essa conversa, pegue qualquer história em quadrinho e copie só o texto… Se o texto explicar por si só, se “contar” a história, então teremos um eventual texto literário. Mas se não ocorrer isso, se a dinâmica entre as ações das imagens complementar ou for essencial para o leitor acompanhar o que se passa em uma história, então podemos dizer que as Histórias em Quadrinhos são essencialmente, Artes Visuais? Acredito que não, pois além do fato histórico de que narrativas gráficas são tão ou mais antigas que pinturas, esculturas e outras formas de artes visuais, também há o fato de que a estruturação das imagens explicita atos, gestos e contextos e que isoladamente, não carregam por si só, todo o sentido que uma história inteira pode carregar. Quer dizer, podemos até deduzir ou recordar de uma história inteira, a partir de um único quadro, apenas se os elementos representados ali, já forem previamente conhecidos. Meu nariz não vai crescer se eu falar que se você ver a imagem de duas toras de madeira cruzadas, imediatamente vai lembrar da história de Jesus, que aliás era carpinteiro. Mas Gepeto também era carpinteiro e a sugestão trapezoidal que há entre o tronco e os membros, as partes de uma figura antropomórfica, poderia remeter a uma cruz. Esse exemplo superficial pode nos ajudar a nos lembrar do poder do condicionamento e do quanto isso pode ser importante para uma narrativa baseada em sequências de imagens e de textos, pois ao jogar com elementos simples como madeira, cruzes, marionetes e geração de vida, nós já 49


relacionamos indiretamente duas histórias que na superfície, não tem relação alguma. O mesmo tipo de procedimento também vale para narrações literárias, onde homonomias, sinônimos, heterônimos e uma infinidade de figuras de linguagem, podem ser utilizadas em simbiose com imagens e suas articulações. Mesmo que o texto seja condutor em uma grande parte da produção de quadrinhos e que isso deixe as imagens em segundo plano em relação à narração, isso não exclui automaticamente os casos de Histórias em Quadrinhos onde não há texto algum ou a relação entre texto e imagem é feita de forma a provocar uma fusão de sentidos e interpretações. Nesse último caso, temos como exemplo as onomatopeias, que, grosso modo, são aquelas palavras “desenhadas” e cujo desenho imita o efeito e o sentido que essa palavra tem, amplamente utilizadas em HQ´s e animações. Com as onomatopeias, temos a fusão entre o sentido abstrato de uma palavra e a percepção gráfica de uma forma visual previamente conhecida, gerando uma fusão de sentidos simultâneos, porém podem ter sentido textual ou figurativo, se realizados separadamente. Continua...

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Porque Histórias em quadrinhos não são nem Artes Visuais e nem Literatura?

Ilustração do autor

No último artigo comentamos sobre o potencial de conjunção simbólica das onomatopeias, tendo em vista que nesse caso, a mistura entre aspectos gráficos e literários se fundem com bastante equilíbrio em termos de significado. O uso de imagem e texto é algo que as HQ’s utilizam a partir das Artes Visuais e da Literatura, no entanto o predomínio é da articulação dos elementos, não só do texto ou da imagem. Evidentemente isso pode variar de caso para caso, especialmente em adaptações de clássicos, onde algum traço tende a ser mantido a fim de manter suas características originais. 51


Acredito que uma crônica que indica Por que Histórias em quadrinhos não são nem Artes Visuais e nem Literatura? Diferenciação essencial das HQ´s em relação à Literatura e às Artes Visuais está no fato de que mesmo usando articulações de linguagem em comum, os quadrinhos podem abrir mão do texto e de imagens, sem que cause perda de sentido e de intencionalidade. Sim, o vazio faz parte do DNA das HQ´s, afinal é na chamada “sarjeta” (o espaço que fica entre os quadrinhos) que a sugestão das ações ocorre. Esse “vazio” preenche o que não é dito ou mostrado. É nele que coisas importantes acontecem. A sarjeta é um elemento que se articula na capacidade de atenção e abstração do leitor, onde ele é levado a “completar” as partes vazias entre os quadros. E aqui nem sempre temos o determinismo narrativo que o Teatro e o Cinema compartilham, pois se um gesto simples pode ser mostrado em um só plano, nas HQ’s tendem ser mostrados em quadros separados pelo vão da sarjeta. E o título de “9° Arte” para as HQ’s, vem não só pelo mérito, todavia também por conta dos seus elementos constituintes, pela especificidade que os quadrinhos têm em relação com outras artes. Uma lista das artes e suas características básicas poderá nos auxiliar a compreender o motivo: 1ª Arte – Música: Organização dos sons; 2ª Arte – Dança/Coreografia: Representação física de movimentos; 3ª Arte – Pintura: Organização de formas e cores em superfícies e suportes; 4ª Arte – Escultura: Estruturação de volumes em materiais; 5ª Arte – Teatro: Encenação, representação de elementos da realidade; 6ª Arte – Literatura: A articulação das palavras de forma a obter um efeito estético sobre o leitor; 7ª Arte – Cinema: Projeção visual contendo sons, imagens e texto; 8ª Arte – Fotografia (reprodução realista obtida da captura da luz através da câmara escura); 9ª Arte – Quadrinhos (cor, palavras e imagens articuladas em um suporte a fim de criar uma narrativa); As HQ usam elementos de outras artes a fim de construir um repertório próprio, e ainda que determinadas obras e características sejam umbilicalmente ligadas à Literatura ou Artes Visuais, o modo de narrar é totalmente diverso. Se o exemplo de HQ´s que aboliram texto ou a estética própria das Artes Visuais, não é suficiente, tomemos o exemplo de quadrinhos online, onde a natureza própria dos sistemas de exibição de imagens propõe de modo quase acidental, novas formas de narrativa, onde a interação (uma especificidade das HQ) alcança outros patamares e abre espaço ao acaso (que é um elemento bem característico da Música e do Teatro), para variações de suporte (fenômeno que ocorre frequentemente com o Cinema) e com outras variações de natureza técnica.

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Web Comics

Ilustração do autor

Webcomics são publicações de quadrinhos feitas ou adequadas aos diferentes suportes e interações dentro do ambiente da internet. Ou seja, são quadrinhos que foram feitos ou adaptados para serem veiculados nas redes sociais, sites, blogs e afins. A princípio não diferem dos quadrinhos em suporte físicos, como papel, porém as webcomics têm diferenças radicais no manuseio de páginas, pranchas e qualquer outro formato de publicações de quadrinhos. Não se trata apenas de variar o tipo de espaço físico onde se pode ver uma ilustração ou uma sequência de ilustrações. Trata-se de ter opções potencialmente determinísticas na forma onde o leitor pode ler as imagens. Como nos quadrinhos em papel, boa parte das webcomics oferece liberdade para que o leitor pule, avance e possa ampliar as ilustrações ao mesmo tempo em que oferece uma sequência de pranchas (quadros, segmentos, páginas e etc.) que obedecem a uma cadência em crescente. Porém, o espaço para as ilustrações tende a ser bem menor do que aquele que encontramos em páginas de quadrinhos em papel e isso implica em uma diminuição de quadrinhos e de outros elementos gráficos, possibilidade esta que acaba por diminuir a dinâmica entre esses mesmos elementos gráficos. Com essas limitações em vista, boa parte das produções nesse suporte busca enfatizar o diálogo entre os elementos dinâmicos de uma forma diferente: ao invés da alternância de dinâmicas gráficas em uma sequência interligada pela 53


ação, usam o entrecorte de uma prancha e outra (que poderíamos chamar grosseiramente de “página da web”, ainda que não seja a nomenclatura adequada) como fio condutor da narrativa visual. Ou seja, se em papel a ação ocorria de forma linear, percorrendo a lateralidade que os quadros compartilham entre si, nas webcomics tal dinâmica fica entrecortada pela passagem entre uma imagem e outra, tal como ocorre quando passamos uma página de um livro para ler o próximo parágrafo. Por conta desse tipo de elemento de interação e de outras eventualidades, a leitura de Webcomics pede outro tipo de sensibilidade aos leitores de quadrinhos, especialmente considerar que não são linguagens que competem entre si, entretanto são, de fato, complementares, são uma oportunidade expressiva, diferenciada e que ainda tem muito para ser explorada. E para além da leitura específica de quadrinhos online, ainda aparecem questões publicitárias, técnicas e sociais, afinal de contas, o uso de dados de internet pode inviabilizar o livre acesso a conteúdos, seja por restrições financeiras, seja pelo excesso de conteúdos não relacionados com a produção artística em si. Porém para o mundo dos quadrinhos, o desafio das webcomics está aí e não dá para virar a página.

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Clark Kent da vida real

Ilustração do autor

A partir da historicidade das charges – que tratam graficamente questões sociais, políticas, econômicas e afins – e de quadrinhos de caráter biográfico ou autobiográfico, o gênero de “Reportagem em Quadrinhos” (ou Quadrinhos Jornalísticos) surge como resultado das transformações que o próprio Jornalismo tem sofrido nas últimas décadas, onde questões como o Infotenimento (informação com entretenimento) o ‘’New Journalism’’ (com os relatos em primeira pessoa, romances de não-ficção de expoentes como Truman Capote e Hunter S. Thompson), entre outras, que incentivam a investigação de caráter jornalístico a partir de outros meios, modos e métodos. Art Spiegelman e sua novela gráfica “Maus” é referência na produção de Quadrinhos Jornalísticos, por tratar de forma mista os aspectos autobiográficos e alegóricos da vida de sua família, sobrevivente do Holocausto. O desenhista maltês Joe Sacco, que também é jornalista, realizou reportagens investigativas sobre a situação dos palestinos em zona de conflito, privilegiando a construção de seus personagens a partir de relatos verídicos. Temos também o brasileiro Vitor Teixeira, a iraniana Marjane Satrapi (autora da HQ Persépolis, que mais tarde virou animação) e a novela gráfica portuguesa “Reportagem Especial" (2016), todas partindo de premissas jornalísticas ou a partir do trabalho investigativo de jornalistas.

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Enquanto meio, os quadrinhos dão alguma liberdade para compor e organizar os fatos reportados, pois ainda que o uso de elementos gráficos não esteja adequado aos padrões de verificação característicos do jornalismo, seu deslocamento visual e estético tende a não comprometer a relação com os fatos. Enquanto modo e método, as tendências gerais de pesquisa e registro de reportagem se mantêm, respeitando as múltiplas verificações de fatos, o sigilo da fonte e os aspectos gerais do Código de Ética Jornalística. As possibilidades estéticas e na articulação de fatos a partir das possibilidades dos quadrinhos, não altera a intenção jornalística, podendo até aprimorar e explorar graficamente os pontos vagos de um relato, ou utilizar fontes documentais de forma integrada à narrativa gráfica. Com essas potencialidades e com um público fiel, as Reportagens em Quadrinhos podem compor elementos que se entrelaçam e atiçam o interesse do leitor, dando um passo adiante nas possibilidades de expressão artística e jornalística, onde pautas e temas que sejam de alguma forma, negligenciadas: possam receber não só a atenção devida, contudo também um tratamento adequado a cada necessidade, seja enfatizando as questões visuais e gráficas, seja pelo aprofundamento no tema para citar alguns exemplos.

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Acertei no Quino

Disponível em: https://argentinaya.com.ar/wp-content/uploads/2020/10/fallecimiento-quino1000x600.png. Acesso em 11 de março de 2021

Fui mafaldado bem jovem, criança ainda, e de cara nutri alguma antipatia pela Mafalda, afinal de contas ela fazia coisas que os adultos me proibiam de fazer: perguntar demais, confrontar, refletir, mostrar insegurança e por aí vai. O fato dela não aparecer em produtos para crianças, em latas de extrato ou coisa do tipo, também me deixava desconfiado, parecia que ela não fazia força pra ser feliz… Sei lá, talvez ela fosse muito semelhante aos resmungões que apareciam na TV ou em reuniões de vizinhos. Demorou um tempo até que eu fizesse as pazes com a Mafalda e começasse a prestar atenção no Quino, pra daí saber que ele era argentino, que fazia charges, que frequentemente essas charges não usavam palavras, que usava e abusava do P&B. Logo percebi que seus personagens eram elegantes, sempre de terno, chapéu, bem vestidos, até mesmo os mais pobres. Percebi também que o traço de Quino, tinha um estilo antigão, parecia coisa de jornal muito velho, daqueles que eu encontrava no fundo de armários, atrás da caixa de ferramentas, pra não sujar a tábua de óleo. Aí comecei a pensar “será que esse Quino tá querendo fazer algo diferente?”, “será que não vai seguir as novas modas e mudar seu traço? Usar mais cores, ser mais moderno?”. Desconfiei que tinha algo estranho com o Quino, comecei a achar que ele era um daqueles rebeldes que apareciam em filmes 57


e séries, daqueles meio tan-tans de óculos redondos e livros ensebados na mão. Mais ou menos nessa época, a Argentina foi bicampeã na Copa do Mundo de 1986, disputada no México e eu comecei a ganhar a noção que os brasileiros hostilizavam demasiadamente os argentinos, eu tava feliz porque a Copa veio pra nossos hermanos, mas muitos amigos e celebridades não viam isso com otimismo. Daí começou a minha malfadada vida de trabalhador, entregando roupas, office-boy, auxiliar administrativo, enfim, o bom é que vinha o salário pra comprar revistas e gibis. Aí começo a ver que espanhóis, mexicanos, colombianos e outros manos, também tinham uma produção de quadrinhos que são bem legais e estimulantes, que não eram exceções, todavia tal qual a galera do Pasquim, Millôr e outros brazucas, eram referência em sua área. Enfim, graças ao Quino, Mafalda e meu amigo chileno Roberto Vergara, comecei a ver os quadrinhos sul-americanos com o olhar que esses trabalhos merecem, seja em relação à técnica, narrativa, articulação de elementos gráficos, graça e etc. Mas taí, 30 anos depois disso, Quino se foi. Sinto um pouco de remorso por não ter pedido bença ou ter feito mais “propaganda”, talvez a necessidade de falar mais sobre os quadrinistas brasileiros tenha atrapalhado nisso, se bem que o próprio Quino não era chegado a holofotes, ouvi dizer que ele não era chegado a entrevistas e mídia. Tanto que contornou a própria gênese de Mafalda (que foi criada para uma campanha não divulgada de eletrodomésticos) e não fez dela um produto. Só quero dizer para vocês que a capacidade de expressão gráfica que ele tem é algo invejável e parecia fazer parte de um processo que pretende contornar a dificuldade de traduzir tiras escritas em espanhol para outras línguas. Esse tipo de sensibilidade, considerando o contexto da década de 1960 em diante, certamente está relacionado com sua perspicácia em representar a Mafalda enquanto mulher, jovem e especificar sua localização geográfica (a qual ele poderia ter feito de modo genérico), pois com isso Quino acompanhou de perto as transformações que estavam ocorrendo ou por ocorrer, como as de Maio de 1968, os movimentos de autonomia político-ideológica de países sulamericanos e o movimento feminista. E por favor, aceite uma dica que vale por uma cabeça: jogue “Quino cartum” na sua página de pesquisa favorita, busque por “Imagens” e veja se não é como ganhar numa mega sena artística. Gracias por ajudar a nos enxergarmos melhor, Joaquín Salvador Lavado Tejón, o Quino , 17 de julho de 1932 - 30 de setembro de 2020.

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Chico de Assis Como quase todo leitor tive os primeiros contatos com os quadrinhos muito menino, onde a memória já quase não alcança. Algumas vezes sinto saudades do cheiro de papel jornal barato, das cores exageradas e erros de registro na impressão das revistas dos anos 70. Ao correr do tempo as leituras e referências se ampliam, e a curiosidade mostra que o universo abarcado por essa linguagem é virtualmente infinito. Tento manter o contato com obras de diferentes técnicas narrativas, temáticas, de autores de diferentes nacionalidades. Gêneros como ficção cientifica, humor, terror, erótico, drama, faroeste e qualquer outro que se invente, inclusive o que recentemente se convencionou chamar de Jornalismo em Quadrinhos me despertam interesse, e também a relação com outras artes como o Cinema, Pintura, Literatura, Teatro, Arquitetura, Música. Mas tenho particularmente buscado compreender as características essenciais da linguagem através de livros teóricos e da história dessa mídia, e dentro de minhas limitadas possibilidades produzir alguma reflexão escrita.

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Um breve panorama das Histórias em Quadrinhos em Uberlândia Publicado em 08/10/2019

Hoje começamos, aqui, uma coluna sobre Quadrinhos, e considero que seria interessante falar sobre os autores de nossa cidade. Tenho acompanhado a cena há bastante tempo e, embora haja lacunas por ser uma apresentação muito resumida, acredito que seja um panorama razoável e importante da história local dos Quadrinhos e do humor gráfico. Em outros momentos pretendo falar mais profundamente sobre um autor, título ou período. Em 1984 foi lançada a “Kakunda”, com quadrinhos de Fábio Piva, Maurício Ricardo, Zeca Ligeiro, Weber Abrahão e Valtenio Spindola. Para o lançamento, segundo relatos, foi tomado emprestado de uma funerária um caixão onde foram colocados todos os exemplares da revista. Bem ao espirito da época, um cortejo subiu a Afonso Pena acompanhado da Banda Municipal que tocava alternadamente a marcha fúnebre e um frevo. O material apresentado tinha boa qualidade e uma temática muito interessante, de guerra nuclear até a relação entre religião e sexualidade. A publicação, entretanto, não passou do primeiro número, a impressão e a distribuição nesse momento ainda eram questões bastante complicadas. Maurício Ricardo e Valtênio, que já publicavam em Jornal local desde o início dos anos 80, continuaram seus trabalhos publicando charges e também tirinhas, onde apareceram personagens que marcaram o público, com maior destaque talvez a dupla Uru e Bu, e a Serpente Mágica. Mais tarde, já a partir de meados dos anos noventa, em algum momento ambos foram editores e 61


responsáveis por abrir espaço para um número bastante expressivo de cartunistas e quadrinistas locais: Roberval Coelho, Adriana Porfirio, Moisés, Fredd, Nino Vilela, Luciano Ferreira, Fernando Duarte dentre muitos outros. Muitos ainda hoje trabalham com quadrinhos, ilustração e animação. Em 1998, capitaneada por André Guillaume, sai a Revista “Nektar”, com Rodrigo Lara, Alexandre Grecco, Rosemário H. S., José Neto, Rogério Rocha, Roberval Coelho, entre outros artistas locais e alguns convidados. Com boa qualidade artística, impressão, formato, diagramação, detalhes muito bem cuidados e uma estratégia de divulgação bem ousada para aquele momento, a Nektar chamou a atenção no meio, com boas críticas em jornais de circulação nacional, como o Estado de Minas e Folha de São Paulo. Depois de três tentativas de distribuição a Revista infelizmente encerrou suas atividades. Entre o final dos anos 90 e meados dos anos 2000 foram publicados fanzines de Quadrinhos como “O Rabo de Galo”, números 01 e 02, e as tiras de autores locais continuavam a sair na imprensa. Já no final da primeira década sai a “Camiño Di Rato” número 01, editada por Rosemário e Matheus Moura, com

uma fantástica ilustração em aquarela para a capa. A revista Chegou em 2015 ao número 08, com autores locais e de outras regiões. Entre 2009 e 2015 são publicados também sete números da revista “O Q de Quadrinhos”, de Jimmy Russ, com trabalhos de diversos autores locais junto com o trabalho de seus alunos em oficinas de Histórias em Quadrinhos.

Hoje temos uma produção diversa e de muita qualidade saindo em coletâneas como a “Basídio”, números 01 e 02, ou a “Meia Cura”, de João Agreli. As leis de incentivo à cultura e o financiamento coletivo deram um bom fôlego tanto para as coletâneas quanto aos álbuns solo. Por fim, destaco o “Raiz”, de Dudu Torres e “Romaria”, de Alexandre Carvalho, ambos indicados ao prêmio HQ Mix, principal prêmio do país nessa linguagem, e “Quem matou o Caixeta?”, de Rainer Petter, concorrendo ao Prêmio Jabuti na categoria: Quadrinhos.

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Banda – A história além dos Quadrinhos. Publicado em 19/11/2019

Lançada no início desse mês de novembro, o primeiro número da revista “Banda” nos traz questionamentos sobre os clássicos dos Quadrinhos Brasileiros. O que faz de uma obra, nessa linguagem, um clássico? É possível falar em clássicos entre as obras nacionais? Quais são eles? Por que obras tão importantes não estão acessíveis ao público? Nascida dos esforços de Douglas Utescher, designer e proprietário da Ugra Press, loja e editora alternativa, Carlos Neto, Gustavo Nogueira e Thiago Borges, todos os três jornalistas especializados em Quadrinhos, a revista pretende ser bimestral e focada na produção brasileira, essa primeira edição foi viabilizada via financiamento coletivo e agora pode ser adquirida na loja Ugra pelo leve preço de Vinte Reais. Com trinta e quatro páginas Banda apresenta uma reflexão de Ramon Vitral sobre a relação do tempo com as obras clássicas em várias linguagens e as possíveis especificidades no campo dos Quadrinhos. Especialistas e autores de Quadrinhos, entre eles nomes bem conhecidos, profissionais que acompanham a produção crítica e teórica do meio: Gonçalo Junior e Sonia Luyten foram chamados para apresentar uma lista de cinco clássicos e um possível futuro clássico da produção nacional. Thiago Borges escreve sobre a difícil relação dos Quadrinhos Brasileiros com o mercado, e a quase completa ausência de obras seminais em livrarias, bancas ou bibliotecas: “Como considerar algo relevante historicamente se ninguém mais consegue lê-lo? Os artistas de renome são mais reconhecidos que suas próprias obras? E as HQs 63


feitas por mulheres precursoras: onde estão?” Carlos Neto fez uma sublime entrevista com Lourenço Mutarelli, esse que é, sem sombra de dúvidas, um dos grandes nomes dos Quadrinhos brasileiros. Para finalizar Gustavo Nogueira fala sobre o premiado “Angola Janga”, álbum escrito e desenhado por Marcelo D’Salete, um nome de enorme relevância da produção atual. Nesse primeiro número, a Banda deu um show! Apresentação, diagramação, ilustrações, capa, temática, textos, enfim! Tudo realmente muito bom, não desafinou em nada, embora com sua pegada ligeiramente punk rock desafinar não seja propriamente um problema. Aguardemos as próximas apresentações, estarei na primeira fila. Vida longa à Banda. Vida longa aos Quadrinhos Nacionais.

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Henfil Publicado em 17/12/2019

Henrique de Souza Filho, nascido em 1944 em Ribeirão das Neves - Minas Gerais. Adotou o nome Henfil com a fusão das primeiras sílabas do nome e sobrenome, à moda dos cartunistas franceses, por sugestão do escritor Roberto Drummond, seu primeiro editor, que o “obrigava” fazer ilustrações para a Revista Alterosa de Belo Horizonte, com a qual colaborou a partir de 1964. Henfil não tardou partir para o Rio de Janeiro, de onde seu trabalho alcançou dezenas de publicações em jornais e revistas da época, como o Jornal dos Esportes, Cruzeiro, Realidade. No entanto seu nome é realmente indissociável do semanário Pasquim, Jornal satírico de resistência política e cultural ao regime militar, com nomes a título de exemplo: Jaguar, Ziraldo e Millôr Fernandes. A publicação foi um sucesso estrondoso, tão inesperado quanto bem-vindo. Aqui os “Fradim”, personagens de Henfil, alcançaram reconhecimento nacional vindo a se tornar uma publicação autônoma em revistas em Quadrinhos, distribuídas pela própria editora do Pasquim. No início dos anos 1970, Henfil parte para os Estados Unidos e se instala em Nova York. Queria mergulhar nas entranhas do imperialismo, conhecer a estrutura de dominação cultural que buscava se impor ao mundo. E também pela possibilidade de tratamento da hemofilia, doença hereditária da qual era portador. A experiência na área de saúde foi dramática, contudo o cartunista conseguiu o feito quase impossível para um estrangeiro: trabalhar com um syndicate (nome dado às distribuidoras de conteúdo nos EUA). A discussão para a assinatura do contrato foi longa, porque ele não aceitava que seus 65


personagens fossem usados em material publicitário ou mesmo transformados em filmes de animação. Suas tiras com os “Fradim”, que ali foram chamados de “Mad Monks”, começaram a ser publicados em jornais de forma promissora para um artista desconhecido no país, mas em menos de dois meses as redações começaram a receber cartas de leitores, em grande número, o acusando de: “ateísta”, “comunista”, anticlerical”, “escatológico” dentre outros elogios. O contrato acaba sendo rescindido em um acordo entre as partes, e, embora houvessem vários convites para trabalho em revistas alternativas e outros veículos fora do mainstream, Henfil decide que é hora de retornar ao Brasil. Essas aventuras são contadas no livro “Diário de um Cucaracha”, compilação de cartas que enviou durante dois anos para familiares e amigos. Além de Quadrinhos e Cartuns, trabalhou em programa de televisão, um filme longa-metragem, “Tanga (deu no new York times?)”, Crônicas, Livro reportagem, literatura infantil, produção de teatro, tudo isso sempre com um posicionamento político muito enérgico e certeiro. Foi figura chave no movimento pelas diretas já, e sua posição radical nesse momento lhe rendeu: muitas críticas; alguns achavam que o tipo de humor que ele fazia estava ultrapassado depois da “abertura política”. Definia-se, sobretudo, sendo um jornalista, todavia em várias ocasiões onde seu trabalho nos Quadrinhos foi criticado, demonstrou uma imensa consciência artística defendendo sua obra. Falecido muito jovem, em 1988, mesmo ano da promulgação da constituição ainda vigente, estaria agora com 75 anos. Henfil faz grande falta à alma brasileira, e seu trabalho é muito menos visto e divulgado do que deveria sobretudo nesse momento de tamanha fragilidade da democracia.

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Lourenço Mutarelli está de volta. Publicado em 14/01/2020

O título acima tem duas mentiras! Mutarelli, embora tenha morrido e ressuscitado várias vezes, nunca partiu e também não está voltando produzir Quadrinhos. Desde sua primeira auto publicação no final dos anos 80 com os fanzines “Over 12” e “Solúvel”, passando pela publicação, na primeira metade dos 1990, de álbuns como Transubstanciação. A partir de 1999, já na editora Devir, com a história do detetive Diomedes nas quatro partes da “Trilogia do Acidente”, Lourenço vivenciou essa jornada, ou peregrinação, que é: produzir e publicar Quadrinhos no Brasil. Com “A Caixa de Areia”, em 2006, essa jornada se encerra, ou faz um hiato – nunca se sabe. Toda sua produção nessa linguagem recebeu muitas premiações, e apresenta sempre uma qualidade artística e narrativa inquestionáveis, momentos sublimes estão sempre presentes, nas histórias curtas “Estampa Forjada” e “Morfologia”, por exemplo, publicadas em “Mundo Pet”, a única onde seu trabalho saiu em cores, ou mesmo em trabalhos do início de carreira republicados na coletânea Sequelas. Contudo “A Caixa de Areia” talvez seja mesmo sua obra prima. Depois da leitura de “Capão Pecado”, do escritor Ferréz, que traz uma dedicatória a Mutarelli, ele resolve experimentar a literatura, e apresenta em 2002: “O Cheiro do Ralo” – devolvendo para Ferréz a dedicatória. Seu livro chama a atenção rapidamente no meio literário e acaba sendo adaptado para o cinema em um longa-metragem de Heitor Dhalia. Novas portas se abrem e 67


Lourenço realiza trabalhos em cinema, teatro, artes visuais além de continuar na literatura, com uma produção intensa. Como efeito colateral se afasta dos Quadrinhos. Embora tenha publicado, por insistência de editores o “Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente”, e encartado uma HQ experimental no livro “O Grifo de Abdera”, os Quadrinhos já não são uma linguagem central para o autor. De volta ao título, qual é a volta? Não é outro senão o próprio Ferréz, completando um instigante ciclo, que junto com a editora Comix Zone traz em um grande álbum a reunião dos trabalhos: “Transubstanciação”, “Desgraçados”, “Eu te Amo Lucimar” e “A Confluência da Forquilha”, compilando a fase dos Quadrinhos de Mutarelli de 1991 até 1997, sob o apropriado título de “Capa Preta”. As histórias em Quadrinhos no Brasil nunca tiveram um cenário tão rico e diverso, e quem o contempla talvez não saiba que há poucas décadas, tudo isso, era um tanto diferente. Muitos grandes artistas nacionais, hoje, rendem homenagens e fazem citações ao trabalho de Lourenço Mutarelli, e não restam dúvidas de que ele é um marco nessa trajetória. O fato desses trabalhos agora republicados terem ficado tanto tempo fora de catálogo dizem muito mais sobre a inaptidão ou desinteresse do mercado editorial do que sobre a qualidade dos trabalhos. Entretanto, talvez o futuro seja esse mesmo, tomar em nossas próprias mãos esse “mercado editorial”. Viva Mutarelli. Viva Ferréz.

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30 de Janeiro – dia do Quadrinho Nacional Publicado em 28/01/2020

A partir do ano de 1984 e por inciativa da AQC-ESP (Associação dos Quadrinistas e Cartunistas do Estado de São Paulo), o dia 30 de janeiro se torna a data em que se comemora o “Dia do Quadrinho Nacional”. A escolha remete a data de publicação, em 1869, daquela que consideraram a primeira História em Quadrinhos Brasileira: “As aventuras de Nhô-Quin ou impressões de uma viagem à corte”, de autoria do cartunista ítalo-brasileiro Ângelo Agostini. Há discordâncias sobre essa ser, de fato, a primeira HQ Brasileira, ou sobre a importância de buscar essa “obra original”, mas isso é outra história. Nascido em 1843 na região do Piemonte, na Itália, e tendo passado a infância e adolescência em Paris, na França, Agostini chega a São Paulo aos dezesseis anos de idade, e aos vinte e um inicia sua carreira de cartunista e artista gráfico fundando o jornal ilustrado “Diabo Coxo”. Depois de algumas outras publicações de vida mais ou menos efêmera, ele se transfere para o Rio de Janeiro, onde publica na revista Vida Fluminense – a inaugural HQ do personagem Nhô-Quin. Posteriormente funda a “Revista Ilustrada”, seu principal veículo e um marco na história editorial brasileira. Durante quatro décadas Ângelo Agostini dirigiu suas próprias publicações, escreveu ilustrou, fez caricaturas e quadrinhos, sempre com uma verve crítica extremamente ácida e corajosa, sua trajetória se confunde com a da própria imprensa brasileira nesse período de enorme efervescência, de transformações técnicas, estéticas e também políticas. Agostini foi, sobretudo, um artista e deixou sua marca indelével na história do humor gráfico no Brasil. 69


Para além de algumas controvérsias sobre o que é ou não História em Quadrinhos, e a respeito da paternidade e nacionalidade dessa linguagem, o essencial talvez seja de fato: conhecer e reconhecer a qualidade e inventividade desse artista ítalo-brasileiro. Sem nos furtar a reflexão sobre o presente e o futuro dos Quadrinhos Nacionais, 151 anos depois de Nhô-Quin,

e 35 anos em que a data de 30 de janeiro foi escolhida para representa-los, há verdadeiramente o que comemorar? Apesar de atravessarmos tempos realmente muito inóspitos para a arte e a cultura em nosso país, eu acredito que sim! A produção brasileira vive um momento sem precedente, de enorme qualidade e diversidade técnica, estética e temática. Sementes que foram há muito tempo plantadas e durante muito tempo cultivadas por tantas e tantas pessoas: germinaram e cresceram, formam agora um ecossistema! E que seja rapidamente uma floresta que as motosserras jamais alcancem.

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Alan Moore – Maxwell, o Gato Mágico Publicado em 10/03/2020. 22/09/2020

É improvável encontrar entre leitores de Quadrinhos alguém que não conheça Alan Moore. Responsável por trabalhos como “Monstro do Pântano”, “Watchmen”, “V de Vingança” e muitas outras obras de grande relevância, Alan Moore é considerado um dos maiores roteiristas da história dessa linguagem. O que muitos não sabem, entretanto, é que ele foi o autor de uma tira de humor em um jornal de sua cidade Northampton. “Maxwel, o Gato Mágico” foi publicado semanalmente nas páginas do “Northants Post” entre os anos de 1979 e 1986, sob o pseudônimo de Jill de Ray. Embora em um dado momento já tivesse reconhecimento mundial com seus trabalhos para grandes editoras americanas, recebendo valores incomparáveis com as 10 ou 12 Libras semanais pagos por sua tira, Alan não pretendia encerrar esse trabalho, e só o fez em função de o jornal haver publicado um artigo abertamente homofóbico. E essa é apenas uma amostra da admirável postura moral e política do autor. Escrita e desenhada por Moore, a tira segue um padrão fixo de 5 quadrinhos e explora bastante os limites da linguagem, às vezes “desobedecendo” os requadros, ou por exemplo, em um episódio onde nos é mostrado o lado “avesso” da tira. Crítico extremo da “Era Thatcher”, o autor usava esse espaço para expor sua visão política e ao mesmo tempo tal como um laboratório para experimentar técnicas e as possibilidades do meio, esteticamente; tudo isso, é claro, sem esquecer que se tratava de uma tira de humor. Sobre isso, Eddie Campbell, seu parceiro de trabalho em “Do Inferno” diz: “Quando a nova geração de historiadores/críticos reavaliar a história dos Quadrinhos e começar a selecionar quais tiras beberam fundo no espírito dos anos 1980, 71


tenho a sensação de que Maxwell será devidamente reconhecida como obra de relevância e não só aquela coisinha que o Alan Moore fazia nas horas de ócio.” Uma reunião desse trabalho foi publicada uma única vez, ainda no ano de 1986, pela editora inglesa “Acme Press” em quatro volumes com edição e tiragem bem modestas. Mas... A jovem e ousada editora brasileira “Pipoca e Nanquim” resolveu suprir essa lacuna e assim traz uma edição em volume único com 132 páginas, todas as tiras restauradas, inclusive uma que estava perdida nos arquivos do jornal e outra de 2016, desenhada devido à ocasião do encerramento das atividades do “Northants Post”, além de um prefácio de Eddie Campbell; posfácio do próprio autor; tradução e notas de Érico Assis, Érico que foi também tradutor para português de uma biografia de Alan Moore; texto de Flávio Pessanha, estudioso da obra de Moore; textos e notas dos editores e uma galeria com vários artistas como David Lloyd e Brian Bolland representando Maxwell. Uma edição com o cuidado que o “velho mago” merece, e pela primeira vez em um idioma que não o inglês, o feito é tão notável que foi notícia no “Bleending cool”, site de notícias dos EUA sobre Quadrinhos, que termina com uma chamada aos editores de língua inglesa do tipo: “Veja o que vocês NÃO estão fazendo!”. O álbum, lançado nesse mês de março, pode ser comprado no site da editora. Como ação de divulgação está acontecendo um sorteio nas redes sociais de 200 bookplates autografados por Alan Moore, o que deve ser retomado em breve. Em época de louvor ao empreendedorismo de ocasião prefiro pensar que esse é o resultado do esforço de pessoas que decidem trabalhar com aquilo que amam de verdade. Parabéns “Pipoca e Nanquim”.

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Daniel Azulay Publicado em 07/04/2020

História em Quadrinhos não é coisa de criança! Ou melhor: Não é coisa apenas para crianças! É uma linguagem extremamente rica e que pode ser usada para expressar qualquer tipo de conhecimento cientifico, jurídico, histórico, artístico e etc. Também em diversos gêneros como terror, erótico, humor, romance policial, ficção cientifica. Para todos os públicos. Inclusive para crianças. E aqui temos um ponto importante porque é na infância que se forma, em grande parte, o gosto pela arte em geral, e pelas HQs em particular. A imensa maioria dos leitores e mesmo dos artistas que se expressam nessa linguagem tiveram seus primeiros contatos com ela muito, muito jovens. Portanto, é preciso estar atento à qualidade e formas de difusão dos Quadrinhos para o público infantil. Daniel Azulay embora tenha trabalhado também com outras linguagens e para outro público, ficou muito marcado por sua obra voltada para crianças. Não teve o sucesso comercial e o alcance de um Maurício de Souza, e nem considero que esse fosse seu propósito, contudo quem cresceu nos anos 1980 seguramente teve contato com seu programa de televisão. Tudo era muito mágico, com um certo ar ingênuo até. Desde verdadeiras aulas de construção de brinquedos com sucatas até a apresentação de seus personagens dos quadrinhos da “Turma do Lambe Lambe”. Professor Pirajá, Xicória, Gilda, Piparote... Impossível para “Jovens anciãos” como eu não sentir saudades. Uma saudade boa, todavia também dolorida. Azulay nos deixou no último dia vinte e sete de março, e aos setenta e dois anos guardava sua inesquecível feição angelical, uma “cara de criança”, feliz e animada. Lutando contra uma 73


leucemia acabou por contrair o Corona Vírus. É difícil não pensar em quanto ainda perderemos de nossa arte, de nossa alegria e de pessoas queridas para essa pandemia e para a incompetência e/ou descaso de tantos gestores político/econômicos ao redor dessa terra, hoje mais plana do que plena. Embora o coração esteja triste, para nos alegrar os olhos circulam na internet centenas de ilustrações homenageando nosso querido artista, demonstrando como foi importante seu trabalho, como inspirou tantos outros a também produzir arte, a contar suas histórias e a tentar tocar as pessoas. Diante do espelho da morte o que nos resta talvez seja refletir sobre os sentidos da vida, e como só é possível construir esses sentidos: coletivamente. Daniel deixou um legado para toda uma geração. E sim! Sua vida valeu a pena, e sua alma continua... Grande. Que tudo isso que vivemos hoje passe da forma menos cruel possível, e que não nos esqueçamos nunca mais: não existe sociedade saudável sem ciência, sem cultura, sem arte e sem afeto.

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O Cartunista do bairro Operário Publicado em 02/06/2020

Valtenio Spindola viveu seus últimos dias na mesma casa em que nasceu – na Rua Jataí, em Uberlândia-MG. Na verdade, depois de trabalhar como Cartunista e Jornalista em diversos jornais de Minas, em Araxá, ou Uberaba e São Sebastião do Paraíso, cidades onde fixou residência em algum período, já faziam alguns anos que pouco saía dos espaços do bairro. Houve uma época na qual nos víamos quase diariamente, e se não o encontrasse em casa, bastava ir até a antiga loja de fotos na esquina, ou ao lado onde ele estaria invariavelmente tomando um café e batendo um papo com o Seo Zé sapateiro, ou vez ou outra o encontrava na rua de baixo, no Boteco e sinuca do Seo Raimundo, um nordestino de quase 90 anos ainda muito forte e bastante sarcástico. Domingo era dia de feira, e também de uma cachaça e torresmo no bar da Janice, do lado de baixo da Avenida Monsenhor... Tudo isso em um raio de menos de 500 metros, esse era o universo, infinito e indiferente ao espaço tempo, que tive o prazer de compartilhar com ele. Depois de ter vencido o salão de humor, publicado livro de quadrinhos, tiras e charges em jornais de grande circulação, e como editor ter sido o responsável pela abertura de espaços para vários autores da cidade, e mesmo sendo profissional há tanto tempo: estava sempre disponível para participar de fanzines com autores eventuais como eu. Valt seguiu fazendo sua charge diária para um jornal local até que este encerrou suas atividades em 2017. Olhando seu trabalho desse período não posso deixar de pensar da frase de Tolstói: “Fale de sua aldeia e estará falando do mundo” – em seus desenhos representava a gente do bairro, sempre havia senhoras estendendo roupa no 75


varal, baleiros e velhos balcões de madeira de mercearias, não importa qual fosse o assunto tratado, era sempre a partir da voz de uma dessas pessoas “simples” “cotidianas”. A impressão que fica é que o trabalho era feito pensando nos conhecidos do quarteirão, e pouco importava a opinião geral. Valtênio nos deixou há exatamente um ano, no dia 02 de junho de 2019. Foi emocionante ver a enormidade de amigos que apareceram e compareceram para apoia-lo no momento em que tanto precisou. Ele era uma pessoa querida, com uma história bonita. Contraditório e confuso como todos somos, mas definitivamente um ser de sentimentos nobres. A saudade ainda aperta, e nem é assim tão fácil como parece escrever esse texto. Conversávamos sobre Monty Python; os antigos gibis do Mortadelo e Salaminho da RGE; também sobre a época em que havia no cine Bristol uma sala onde se podia fumar e tomar cerveja assistindo aos filmes; sobre o “Allegro non Troppo” e sobre outras coisas que talvez nem existam. Contudo as conversas não eram sempre sobre o passado, fazíamos planos e projetos mirabolantes para o futuro, um deles era criar, em Uberlândia, uma Gibiteca, espaço onde se pudesse, ao mesmo tempo, preservar a produção dos artistas locais e promover atividades e formação para os mais jovens, dessa maneira divulgando a linguagem dos Quadrinhos que tanto nos fascinava e fascina. A casa da Rua Jataí onde ele nasceu e se despediu é das poucas que ainda mantém a arquitetura original: telhado quatro águas, alpendre, janelas de madeira – merecia ser preservada, restaurada e transformada em “Casa dos Quadrinhos de Uberlândia” ou “Gibiteca Valtênio Spindola”.

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Quadrinhos, Ciência e Corona vírus Publicado em 28/07/2020

Histórias em quadrinhos tratando de temas científicos não é propriamente uma novidade. Já nos anos 1950, a editora EBAL trouxe a coleção “Ciência em Quadrinhos”, essa publicação, junto com outras de temas históricos e adaptações literárias, fez parte de um esforço da editora em responder ao feroz discurso contra essa linguagem e que a acusava de empobrecer o raciocínio lógico, entre outros argumentos que ironicamente nada tinham de base científica. A verdade é que o tema ciência não é nem um pouco estranho ao universo dos Quadrinhos, desde aventuras onde o Tio Patinhas e seus sobrinhos “viajam” dentro de uma folha mostrando a fotossíntese e demais processos bioquímicos dos vegetais, até aventuras futuristas que estimulam a imaginação científica. Algumas vezes podem pecar por ser excessivamente didáticas e outras por tratar com descuido o discurso cientifico, o que não podemos é acusar as Hqs de ignorar o tema. A preocupação com a divulgação científica entre jornalistas, sobretudo de departamentos de comunicação em universidades, tem crescido bastante, e junto com isso o uso de Quadrinhos como ferramenta de difusão. Como exemplo temos a HQ “Ciclos” de autoria do biólogo Luciano Queiroz e do cartunista Marco Merlin, construída com base em um artigo científico sobre insetos aquáticos, ou a bem humorada série “Cientirinhas”, também de Merlin e grande sucesso na internet. “A história da ciência em Quadrinhos”, projeto da UFOP ou “Os Cientistas”, tira produzida por jornalistas e pesquisadores que buscam desmistificar o cotidiano de quem trabalha nessa área, é publicada diariamente em jornal de Campinas até 2002 e posteriormente em coletânea. 77


O advento da pandemia da Covid-19 nos mostra que tão urgente quanto criar uma vacina ou descobrir um tratamento eficaz para a nova doença é conseguir informar e formar a população, em geral, para uma compreensão cientificamente pautada da realidade. A despeito da inaptidão, desinteresse e descaso de parte do governo, nós vemos profissionais de saúde, das ciências e da educação e comunicação redobrarem esforços nesse sentido, e as histórias em Quadrinhos estão mais uma vez presentes. Nessa seara temos a “Combate ao Covid-19, todos pela saúde de todos” de Alexandre Montandon e “Super poderes contra o Corona vírus” do Social Comics, ambas com explicações sobre a doença e como se comportar para evitar o contágio. No entanto, lembremos que ciência não é só o que se faz no laboratório com reagentes químicos e microscópios – temos as ciências sociais, a psicologia, a antropologia e tantas outras áreas das Ciências Humanas. E algumas HQs tratando do aspecto social, econômico e político em relação a Covid-19 são realmente surpreendentes, seja pela reflexão que sugerem ou pelo fato de terem sido feitas com tamanha agilidade em relação ao aparecimento do fenômeno de que tratam. São elas: “O Momento”, do autor Sonny Liew de Singapura; e as brasileiras “Pandemia na Quebrada” e “Farol de Quebrada”, de Sirlene Barbosa e João Pinheiro; e também a reportagem em Quadrinhos “O País não pode parar”, obra de Vitor Teixeira e Guilherme Weimann; todas belíssimas crônicas ilustradas retratando as esperanças e desesperos da luta que vivemos diariamente. Se as histórias em Quadrinhos foram, um dia, negligenciadas como objeto de estudo, penso que no futuro, caso haja algum, os historiadores não poderão compreender nosso tempo sem se voltar também para essa linguagem artística.

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As Lojas de Quadrinhos Publicado em 11/08/2020

O cenário de edição e distribuição de Quadrinhos tem mudado – como quase tudo de forma muito rápida. Até, pelo menos, o início do século XXI, grande parte do que circulava da produção nacional nessa linguagem era através de distribuição em bancas, e exigiam tiragens excepcionalmente grandes, o que de muitas formas inviabilizava o aparecimento de novos autores. Sempre houve, é claro, uma distribuição alternativa através dos fanzines e outras formas de publicação, com os autores/editores criando uma grande rede de interação e cooperação. O esforço pela construção e manutenção desse cenário é digno de aplausos. O principal nome entre esses alternativos é provavelmente Marcatti, autor de Frauzio, dentre inúmeros outros títulos. Marcatti, que possui uma pequena “gráfica” em sua própria casa e basicamente produz, edita, imprime, divulga e distribui seu trabalho desde finais dos anos 1970. Quase inacreditável! O momento que vivemos hoje é sem igual na história das HQs Brasileiras em termos de quantidade, qualidade e, sobretudo, diversidade segundo alguns críticos; e isso se deve muito a esse cenário anterior, todavia o surgimento da internet foi o que possibilitou a um grande público conhecer essa produção que estava de certa forma: Represada. E se a internet deu musculatura à cena, outros órgãos que ajudaram construir tal produção foram eventos tais como: o FIQ (Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte), a inclusão da linguagem no PNBE (Programa nacional biblioteca da escola) com aquisição, por parte do Estado, de grandes tiragens e a consequente criação de demanda por profissionais dos Quadrinhos, os editais de incentivo à cultura, 79


como o ProAC de São Paulo, espaços que permitiram vir à luz trabalhos de grande vigor artístico e experimentações que raramente sairiam por uma editora tradicional, e por último, mas não menos importante: a expansão das lojas de Quadrinhos. Nos Estados Unidos nos anos 1960, as “Head Shops”, lojas que vendiam produtos ligados às drogas psicodélicas, música e Quadrinhos Underground foram extremamente importantes para a difusão de autores “malditos” como Crumb, por exemplo; Londres tem a icônica Forbidden Planet, entre outras mais “acolhedoras”; Bruxelas tem suas diversas lojas e galerias com álbuns de luxo e originais de autores consagrados. No Brasil essa cultura das lojas especializadas é mais recente, entretanto tem feito de forma brilhante uma parte na consolidação do cenário de Quadrinhos que não pode ser feita por outros meios. A internet é acessível para quase todos, no entanto o volume de informações e a dispersão gerada dificulta o encontro com aquilo que vai cativar nossa sensibilidade. Os editais e eventos são: eventuais. Presencial e permanente, a loja de Quadrinhos é nosso templo, aquele lugar onde dividimos ou colocamos à prova nossas crenças. Encontros com autores/debates com críticos e jornalistas especializados, lançamentos de materiais alternativos dentre inúmeras atividades de suma importância para a costura e consolidação, não apenas de um mercado, mas de uma identidade para o Quadrinho Nacional. Os proprietários dessas lojas não as veem apenas como negócios, muitas vezes são também apaixonados por Quadrinhos, e isso faz uma grande diferença. A Ugra, além de organizar encontros, tem seu próprio selo funcionando como uma editora alternativa, a Itiban participa da organização da Bienal de Quadrinhos de Curitiba, a Monstra trouxe ao Brasil o David Lloyd - Desenhista do V de Vingança. Em Goiânia, temos a Mandrake entre tantas outras lojas e tantos outros encontros país a fora, não apenas no Rio e São Paulo, como antes era praxe. Mas, como anteriormente dissemos: “As coisas tem mudado rapidamente, infelizmente nem sempre pra melhor”. A degradação política e econômica que o país tem vivido já há algum tempo, somada com a pandemia nesse ano de 2020, deve dificultar muito a sobrevivência de alguns desses espaços. E a interne se por um lado possibilita acesso e visibilidade, por outro pode construir um monopólio extremamente nocivo para o mercado editorial como um todo e para os Quadrinhos em específico. Continuemos a apoiar nossas lojas, a divulgar seus esforços, já sobrevivemos a outras tempestades, e ao fim, o que sobra e o que salva é sempre: a Arte e a Cultura.

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Deu na Veneta... Animal!

É muito curioso, ou mesmo estranho, perceber como uma parcela de leitores de Quadrinhos ainda considera essa linguagem algo exclusivo do “Universo Nerd”. Não saberia precisar o tamanho dessa parcela, mas ela é, de qualquer forma, uma ilha. E em uma terra tridimensional e esférica existe uma enormidade de outros continentes a serem considerados. Histórias em Quadrinhos vão muito além de sua face “industrial”, mais visível para desavisados, e por suas repetidas monotemáticas e maniqueístas questões. Nos anos 80 estiveram nas bancas revistas com humor político bastante ácido e muito “sexo, drogas e rock’n roll”, que possivelmente desagradaria hoje a um certo público mais moralista que sobrevoa redes sociais. Entre as de maior sucesso estão as publicações da “Circo Editorial”: “Chiclete com banana”, “Geraldão” e “Piratas do Tietê”; e a “Animal” da VHD Diffusion. Essa última chegou às bancas em 1988, trazendo nomes como: Charles Burns, Massimo Mattioli, Martin Veyron, Jano, Stefano Tamburini, Philippe Vuillemin, Pazienza, entre tantos outros que apareciam pela primeira vez para um grande público no Brasil. Além do icônico encarte “MAU” espaço de experimentação gráfica e literária. Termos como: vanguardista, radical e inusitada são frequentemente usados para definir a publicação. Revistas como a espanhola “El Víbora”, a italiana “Frigidaire” e a norte americana “Heavy Metal”, são consideradas suas referências. Durando vinte e dois números e mais oito edições especiais a publicação infelizmente se encerra no final de 1991. Aos curiosos ou

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saudosistas a editora Veneta traz uma nova edição do encarte “MAU” que acompanha gratuitamente a compra de qualquer item de seu catálogo. Rogério de Campos, ex vocalista da banda “Crime” e ativista político, foi idealizador e coeditor da “Animal” até aproximadamente o número onze. Posteriormente escreveu sobre Quadrinhos e outros temas em publicações como “Folha de São Paulo”, “Bizz” e “SET”. Em 1993 funda, junto com André Forastieri, Cristiane Monti e Renato Yada, a editora inicialmente chamada de “Acme”; em 1998 já como “Editora Conrad” publicam o livro “Comic Book, o novo quadrinho americano” com trabalhos de autores representados pela norte americana “Fantagrafics” como: Daniel Clowes, Peter Bagge, Gilbert Hernandez e Joe Sacco, mais uma vez nutrindo o mercado editorial brasileiro com uma alimentação saudável e muito mais saborosa do que os habituais enlatados. A “Conrad” foi também uma das principais responsáveis pela difusão dos “Mangás” no país iniciando com a publicação do clássico “Gen, pés descalços”. A partir de 2012, Rogério de Campos responde como Diretor Editorial pela “Veneta”, que conta em seu catálogo com Robert Crumb, Alan Moore, Milo Manara, Marcello Quintanilha, Cynthia B, Marcelo D’Salete, Juscelino Neco, Ana Luiza Koehler, Wagner Willian e mais uma longa e bela lista de autores, alguns dos quais a editora tem ajudado a levar para além das fronteiras como João Pinheiro e Sirlene Barbosa, premiados em 2019 em Angoulême, pelo álbum “Carolina”, sobre a autora de “Quarto de Despejo”. Trouxe de volta a “Coleção Baderna”, de livros sobre, e de ativismo político, e publicou o livro “Imageria”, onde o próprio Rogério busca exumar o cadáver de alguns assentimentos sobre a história das Histórias em Quadrinhos. A “Veneta” se apresenta com a seguinte frase: “Essa editora tem como responsabilidade social desafiar convenções. Os consensos manufaturados, as autoridades em geral e, se necessário, seus leitores.” E o editor confessa: “Não entendo de Histórias em Quadrinhos”. Longe de disseminar conflitos geracionais, nada é mais ridículo do que uma conversa que se inicia com: “ah, no meu tempo era...”, mas, se há hoje alguma querela, prefiro dividir um trago com velhos anarquistas do que com jovens nerds.

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Bio HQ.

A Linguagem das Histórias em Quadrinhos tem cada dia mais sido usada para tratar de temas científicos. Muitas vezes a questão aparece de forma muito simplificada, apenas como mote para criar uma aventura, o que é já muito muito bom. Muitos quadrinhos tentam aproximar o leitor de questões cientificas, mas via de regra o entretenimento é mais importante que a reflexão e exposição de dados de pesquisas. Mas algumas vezes a ciência é o fato central. Embora não seja uma novidade é ainda raro, se consideramos o volume total da produção, as HQs “cientificas”, ou a exposição de hipóteses de pesquisa em forma de quadrinhos. A mais antiga de que tenho notícia no Brasil é a tese de doutoramento de Momtchilo Russo na Universidade de São Paulo, sobre endotoxinas apelidadas de “Diabos Azuis”, transformada em quadrinhos com a colaboração dos artistas Marilene Pini e Gofredo da Silva Telles, publicada em 1982. Segundo o autor a História em Quadrinhos era ideal para apresentar o trabalho, pois a capacidade de síntese dessa linguagem seria a melhor forma de expressar sua complexidade. No mundo há certamente um oceano de possibilidades sendo executadas, como nos mostra o “erc Comics”. Publicação do “The European Research Concil” dedicada à divulgação cientifica em Quadrinhos. Hoje se tornou urgente e imprescindível que a comunicação cientifica alcance um grande público. Vamos, portanto falar de algo mais recente e mais próximo de nossa realidade, “Bio HQ, Biologia em Quadrinhos”. Publicado pela Zarabatana Books, e realizado por iniciativa de João Agreli, Rosângela 83


Dantas de Oliveira e Solange Cristina Augusto, todos professores e pesquisadores universitários. São dez Histórias em Quadrinhos resultantes de um “laboratório/diálogo”, da experimentação e interlocução entre natureza, ciência e arte. Buscando aproximar da vida cotidiana conhecimentos bastante específicos da Biologia, nas áreas da Ecologia, Botânica, Zoologia e microbiologia. Os personagens são abelhas, formigas, aranhas, mariposas, vespas e plantas, além de onça e lobo-guará. Enquanto o conteúdo fala da relação de interdependência entre as espécies que compõe um ecossistema, a forma traz a interconexão entre arte e ciência. A obra nos permite portanto refletir, a partir de conceitos e estudos sólidos, sobre nossa relação com as outras espécies e como nossa própria sobrevivência depende de reelaborar essa relação. E sua forma artística nos permite perceber como nós, seres da linguagem, temos a capacidade de difundir nossos conhecimentos e anseios atravessando tempo e espaço, “contaminando” outros indivíduos construindo “redes”, “famílias”, “reinos”, “sistemas”. Falar sobre a diversidade estética e técnica das imagens, e como elas se conectam ao conteúdo é algo relevante, mas não é a pretensão desse pequeno artigo, não deixo entretanto de ressaltar a alta qualidade dos trabalhos apresentados; e destacar como me impressionou a belíssima arte da HQ “Vivendo Intensamente”, ilustrada por Guilherme Marques Ferreira. Mas o mais importante é reconhecer o trabalho de vinte e sete pessoas, entre pesquisadores e artistas e como ele nos é apresentado com unidade e qualidade artística e conceitual. E o esforço em resistir à uma maré de obscurantismo anticientífica e antiarte. Isso é o mais importante, a ser apoiado e comemorado nesse momento. Algum governo, ou política de estado minimamente séria, adotaria esse trabalho como material paradidático nas escolas públicas, pois ele mostra não apenas o potencial da ciência e da arte na educação, mas o que é possível fazer quando essas duas dimensões da vida humana se unem, e a universidade salta seus próprios muros.

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contato: contatohqudia@gmail.com 85


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