BEIJO NA POEIRA
Guilherme Zarvos
Pós-diluviana Rio de Janeiro – 1990
APRESENTAÇÃO
Primeiro livro de Guilherme Zarvos, Beijo na poeira foi publicado originalmente em 1990 pela editora pós-diluviana e encontra-se esgotado. A presente edição foi preparada em 2017 para divulgação gratuita e online e reproduz o texto original.
Beijo na poeira é uma novela de ritmo vertiginoso inspirada na passagem de Guilherme Zarvos por Berlim e outras cidades europeias no fim da década de 1980. Descrito por Carlos Emília Corrêa Lima como uma “micro-odisseia”, é também uma espécie de relato incendiário beatnick que revela, em essência, a sabedoria alucinada do autor em seus trinta e poucos anos.
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ÍNDICE
I – Pegando Estrada __________________________________6 II – Banhos Marroquinos ______________________________29 III – Esta Ilha chamada Berlim __________________________84 IV – Tempo Cavernoso ________________________________151
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–I– PEGANDO ESTRADA
A situação era mesmo insólita. Absurda. Teatro do Boal – pensava no momento Daniel. Maldito hora em que resolvi deixar Berlim e vir aqui pra Espanha atrás do sol. Maldita hora que resolvi deixar o cara se enturmar pro nosso lado. Americano filho da puta. Por que vim pra Sevilha em vez de ir pra uma praia? Os olhos do cara parecem os do touro já ferido. Daquele mais furioso da tourada de ontem; não aquele bundão que recebeu vaia geral. Que gente mais louca esses espanhóis; vaiarem o touro como se ele entendesse. Daniel pensava cada vez mais rápido e confuso enquanto o americano passava de um lado para o outro, com a cara cada vez mais alucinada, com aqueles olhos meio parados, de assassino paranoico antes de matar a loura gostosa que o faz pensar na mãe. E americano tem mãe? Porra, que merda! Qual é, não vai parar, não? E o gringo se agitava mais: – Não é possível, eu tinha colocado a nota aqui. Tenho certeza. Desculpem-me, mas vou ter que revistas você. – Pode revistas que não vai encontrar nada esmo – respondia, agressivo, Daniel – Você acha que preciso da merda dos seus cem dólares?
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O americano mal ouvia e já começava a roçar todo o corpo de Markus, que apavorado nem abria a boca... - Eu não peguei nada. Juro! - Ô cara, não fala com essa cara de medo. É absolutamente claro que não roubamos nada. Só esse maluco podia imaginar uma coisa dessa... Vai com calma aí, carinha, que você não está na porrinha da sua cidade do sul dos Estados Unidos com seus tios da Klu-Klux-Klan, e nem você é xerife, - imagina Daniel já o vendo gordo, com 39 anos, meio abastardo como os xerifes do sul. - Desculpem-me, mas vocês vão ter de tirar as calças. - Mas que gringo do caralho” Não vou tirar mesmo! – falava, em português, enquanto Markus, já de cueca, deixava mostrar sua perna fina, comprida e branca, de alemão ainda meio adolescente, que só os seis dias, sem praia, na Espanha, ainda não tinham avermelhado. O americano, no entanto, não se dava por satisfeito e continuava bufando e praguejando para seus deuses: - Não vai ficar assim não – murmurava enquanto fazia um movimento, circular e contínuo, com a cabeça, sempre da direita para a esquerda, como que se safando de uma corda ou de um colarinho apertado. - Vou chamar a polícia – disse friamente. E essa agora – pensou Daniel – que foda negativa... Enquanto o americano saía, batendo a porta, ele mandava Markus rapidamente jogar fora o haxixe que tinham comprado em Barcelona. Apavorado, já se vendo na prisão sevilhana,
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completamente dançado, nem argumentou e já dispensou, em um segundo, janela afora. Depois caiu em si, falando baixinho: - E era do bom... Engraçado o Markus. Daniel tinha ficado seu amigo logo nos primeiros dias em Berlim. Perdido, sem saber o que fazer, na esquina de um Albergue da Juventude, às nove horas da manhã, hora obrigatória de deixar o quarto para a faxina, encostado na ponte, viu passar aquela figura loura de cabelo meio espetado, bem magro, mais alto que ele, desengonçado, com o rosto levemente corado pelo sol surpreendente daquele início de primavera. Vinha acompanhado de quatro cachorros, sem coleiras, todos razoavelmente grandes. Daniel não entendeu nada quando, na frente do sinal vermelho, os quatro pararam esperando, como crianças, a ordem maternal para cruzarem a rua. Ele, com autoridade, deu a ordem e, para surpresa ainda maior, pararam novamente do outro lado, que também tinha um sinal, esperaramno, para então cruzarem a segunda rua e correrem pelo gramado que margeia o rio. Daniel achou muita graça e Markus, notando, gritou-lhe qualquer coisa em alemão. O brasileiro não compreendendo, respondeu com o inglês razoável, do Brasas, mesmo que bastante matado pela praia, pois ainda tinha vergonha do pouco alemão que conseguira aprender nos dois meses que havia passado em Colônia. Foram dois meses difíceis desde sua partida do Brasil. Tinha ido para a Alemanha por acaso pois não aguentava mais a onda do excesso de bola, de não conseguir estudar, das noites viradas e do olhar de reprovação da família. Não dava mais para ficar nessa. Começava a bater um início de culpa, o que já era suficiente para
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pensar que estava entrando em desespero. Daniel sempre teve tudo muito fácil, já que tinha ótima estrela, e não conseguia dosar a espera, a tranquilidade. Qualquer uma mais ou menos, já era horrível: - Biologia Marinha lá não vai dar, então vai ser Ecologia. Não importava muito em que Universidade e o acaso o levava para Colônia, pois um amigo de sua mãe o havia convidado para passar uns meses em sua casa. Chegando, as coisas não foram tão simples. A casa era nos arredores da cidade e Herr Steinmann não parecia nem um pouco interessado em lhe emprestar seu carro lustroso: dos de bom funcionário da Siemens. Depois de quase dois meses sem foder, de tão nervoso, criou umas verrugas na mão direita. Tomou então duas decisões: primeiro, sair da casa em que estava morando e ir fazer um curso de alemão em Berlim, pois haviam lhe mandado m recorte contando todas as maravilhas que provavelmente encontraria por lá; segundo, foi a uma dessas lojas pornôs, em que se vê, de uma cabine, uma mulher nua dançando, e bateu uma punheta de despedida. Markus e Daniel não podiam ser mais diferentes. Daniel, mais atirado, era a mistura praieira do final do Leblon trabalhada pelo sangue aquecido herdado dos avós paternos italianos; formação, portanto, totalmente inconsequente. Markus, pelo contrário, a personificação de uma parte da alma alemã: tímido, com pouquíssimos amigos, preferindo a companhia de seus cachorros, quando num Pub, sempre vestido de roupa escura e gasta, conseguia passar horas olhando ou para o gargalo da sua cerveja Beck’s ou, vagamente, para as janelas vazias. Só tinha namorado
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uma garota na sua vida – já faziam dois anos – e fora com ela, também, que aprendera o pouco que sabia de sexo. Achava as mulheres difíceis, principalmente as alemãs, e estava sempre disposto a se submeter a qualquer condição para conseguir encontrar a sua platônica outra metade: como o destino muitas vezes é benigno, ou até mesmo coerente, poucos meses depois dessas férias, já mais vivido, veio a encontrar finalmente Catarina – meio alemã, meio portuguesa, que foi durante mais de cinco anos sua única mulher. Filho único, seu pai havia morrido quando ele tinha dois anos. Sua mãe, extremamente possessiva, tinha pavor de perder seu maior elo de ligação com a vida. Quando Markus tinha dez anos, ela teve que operar a coluna e ficou semiparalítica tendo, a partir daí, que se movimentar com cadeira de rodas. Ele estudara, desde a operação da mãe, num colégio interno masculino perto de Bochum, sua cidade, de padres Beneditinos. Aos quinze já não aguentava toda aquela pressão canônica pois, cada vez mais, batia-lhe a vontade de levar uma vida normal como a de seus amigos de fim de semana. Markus ficava ainda mais puto quando os padres inventavam um retiro de fim de semana, que o fazia ficar sem vir à cidade por quinze dias. A mãe, muito religiosa, acreditando na tradição dos colégios católicos, tentava influenciar para que ele permanecesse na escola; mas na idade em que entrara agora, os ouvidos se voltavam para sons muito mais fortes que os argumentos da mãe. A gota d’água foi quando se melhor amigo foi expulso da escola porque o pegaram à tarde, no alojamento, dormindo com uma menina de uma escola da vizinhança. Duas semanas depois
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descobriram que dois estudantes da sua sala estavam transando. Questionados, eles apenas falaram que já tinham terminado os exames, onde tiveram excelentes notas, e que decidiram experimentar porque não tinham nada para fazer. O castigo dos padres foi obrigá-los a ficar um fim de semana na escola podando o jardim. Markus entrou, então para um secundário na sua cidade e logo conheceu sua primeira namorada. Durante o ano que passaram juntos a mãe dele fez da vida do casal um inferno. Consegui à base de todas as chantagens emocionais e berrarias – coisa não muito comum em uma mãe alemã – que Veronika finalmente impusesse o ou dá ou desce e ele, ainda muito novo, ficou do lado da mãe. Só que o convívio foi ficando cada vez mais neurótico e Markus, com a desculpa de querer se mudar para Berlim com dezessete anos para não ter que servir o exército, achou um bom motivo para viver a boas centenas de quilômetros dela. Assim, desembarcou na ilha da fantasia, ainda cercada de muro por todos os lados.
Não tinham passado nem cinco minutos e já vinha de volta o americano. Daniel sentou na cadeira tentando ficar cool, aparentando estar em nirvana, preparado para a conversa com o polícia. Por dentro, adrenalina correndo solta e dezenas de diálogos alternativos que variavam desde “desculpe mas ele inventou isso” até o “onde é o consulado do Brasil?”. Imaginava o policial
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truculento, o delegado com gomalina escorrendo pela gola e a cela cheirando a mijo. Deu para respirar quando viu que quem acompanhava o ianque era apenas o porteiro. O gringo continuava agitado, falando em inglês que havia sido roubado. Daniel ficou seguro da situação porque podia explicar em espanhol o que tinha acontecido: - Desculpe, mas este cara é um louco. Nos convidou para seu quarto e agora fica falando de dinheiro. Acho que ele está querendo alguma coisa... Daniel, conhecendo os espanhóis, descarregou sua raiva dando a entender que achava que o gringo era gay. O porteiro, que já não estava muito a fim de confusão, tomou o lado de quem podia entender, tanto mais que nunca iria tomar partido do gayzaço: - É melhor vocês três irem embora e acabarem essa discussão aqui dentro do hotel. Vão se entender na rua. - Acho melhor mesmo – falou Daniel, já louco para botar o pé fora da espelunca e dar umas porradas no americano; esperando, é caro, que Markus desse uma ajuda. O gringo perdeu a pose e de louco furioso caiu na deprê. Sentou na cama e não disse uma palavra. Parecia um marido que acabara de ouvir da mulher que ela estava indo embora; a cabeça pendendo para um lado, os braços caídos. Daniel nem discutiu e falou para Markus, que ficara todo o tempo em pé, no mesmo canto em que havia feito seu strip-tease, com os olhos espantados, que saísse do transe e viesse rapidinho embora: - Vamos nessa, merda, o que está esperando? Desceram a escada, já começando a rir da história e ganharam rumo à estação para o trem de Marrocos.
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Markus, de repente, parou de rir e fez uma cara séria: - Eu quero voltar lá. - Esqueça, cara, não vamos procurar o haxixe agora. Se nos virem, vão pensar que jogamos o dinheiro pela janela. Vai dar merda. - Eu quero voltar lá. - Mas por quê? - Eu quero meu melão - O que? - E quero meu melão – repetiu Markus com uma cara triste. Daniel quase esporrou de rir quando lembrou que Markus havia escolhido o melão mais bonito da feira e o tinha carregado, durante o dia inteiro, como se fosse uma criança recém-nascida. Na vida certinha dele, esse tipo de prazer era o que mais curtia: um melão da terra do sol para um tedesco natural! - Você quer seu melão, né, Markus? – continuou a rir Daniel, enquanto dava um abraço puxando-o para a estação. Fora uma viagem complicada para chegar à Espanha. Em Berlim, depois de muito pensar entrei ir para Istambul ou para a Espanha, decidiram pelas espanholas; isto porque Daniel disse que ia comer uma espanhola de qualquer maneira. Havia trabalhado no black, para juntar o dinheiro necessário. Markus conseguiu se empregar numa obra de restauração para uma futura comunidade e, além de receber na boa, tinha possibilidade de, no final desse trabalho, acabar podendo viver num dos apartamento comunitários. Daniel, mesmo tendo seu passaporte italiano, por ser estrangeiro, falar quase nada de alemão e ser mais para preguiçoso,
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tinha sempre que se virar em emprego diferentes; dessa vez foi no bar no Centro Liberdade Espiritual, de tipo Rajneesh, onde todos, desde mães velhas, mães novas, respectivos maridos modernos, criancinhas de cabelo transado, têm sempre o sorriso de quem descobriu a felicidade. Puto da vida, limpava os copos e servia o vinho bem educado e os pães macrobióticos para todos os igualmente saltitantes das festinhas noturnas de sextas e sábados. Aquele ambiente fechado, que durante os dias de semana servia para meditação, ficava abadado e o cheiro dos iluminados, com seus pulinhos e gritos de orgasmos constantes, davam-lhe total enjôo. Por que aqui só tem mulher feia? – pensava enquanto servia mais um copo de vinho de garrafão para uma que lhe passava a mão no peito tentando mostrar que era apenas um cumprimento de gente liberada, mas que na certa jogava para o fim da noite. Durante os dias de semana era a fábrica de geleia de um italiano bonachão que, apesar de simpático, pagava-lhe bem menos do que deveria: tudo bem – achava Daniel – o negócio é aguentar e fazer o maior esporro na Espanha. No começo de julho passaram num Mitfahrenzentral e conseguiram um carro que estava indo para Paris. Chegando lá, sem saber bem o que fazer, ficaram andando de cima pra baixo no Champs Elysées, subiram a Torre Eiffel, foram procurar a Mona Lisa; de noite, depois de um monte de vinho, acabaram indo dormir num parque. A decisão foi uma péssima: passaram um sufoco com três bêbados que resolveram encher o saco. Daniel, por ser brasileiro e se lembrar de algumas palavras em francês, foi na boa; apesar de ter de ficar bebendo conhaque no gargalo lambido, brindando “Vive la France”, enquanto o francês, com uma bado detonante, soltava
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seus ruídos quase mordendo sua orelha. A coisa ficou ruça foi com Markus, porque os outros dois entraram numa de Segunda Guerra e foram ficando cada vez mais agressivos. Durou umas duas horas a paúra até que eles desencanaram; durante o resto da noite mal dormiram, com medo, e ainda de madrugada caíram na estrada. A maior sorte foi que, enquanto comiam uma baguette, das bem forradas, de café da manhã, num bar perto da autoestrada em direção ao sul da França, já pensando na dificuldade de pegar uma carona, entraram três italianos falando alto e discutindo: - Cinco minutos e vinte segundos de vantagem. Foi fácil, fácil – gritava Guido – sua máquina não tem pra mim! Guido Ferzetti com seus amigos Lucca e Ernesto tinham saído de Verona, e depois de um pulo em Paris estavam com vontade de ir para Barcelona e, de lá, para Ibiza. Guido, pequeno e bem moreno, parecia que vinha do sul, talvez da Calábria, mas seus trajes mais do que elegantes, incluindo o mocassim marrom, a jaqueta de brim dobrada nos punhos, deixando aparecer o forro estampado para mostrar a qualidade do produto e, principalmente, os óculos de cento e cinquenta mil liras, o qual manipulava como um objeto de amor, compunha uma imagem mais típica de um carinha do norte da Itália. Lucca e Enesto tinham um visual diferente, mais relaxado: cabelo comprido, jeans e colete de seda colorido. - Então você é brasileiro? – perguntou Lucca num português bem razoável. - É, sou sim. - Deu para ver pelo símbolo Delá Pracá da sua mochila. Comprei uma parecida quando estive no Brasil.
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- Tu morou lá, cara. Onde? - No rio. Primeiro em Copacabana, na Prado Júnior; uma barra pesada. A maior zona! Cheguei a prometer casamento para uma puta que no final já não me cobrava nada. Até hoje ela me manda carta com foto e tudo! Depois em Santa Teresa, com um amigo, e quando o Ernesto chegou, alugamos um apartamento de temporada na Prudente com a Vinícius de Morais. O maior barato! Daniel achou graça no sotaque italiano, no entanto via que o cara falava fluente: sinal de que tinha se dado bem no Rio. - Foram para mais algum lugar? - Claro...Búzios, Ajuda, Salvador, Olinda e Jericoacoara. O carnaval em Olinda foi demais. Conhecemos uns caras que fantasiaram o Ernesto de Emília, aquela personagem da novela de criança, e ele saiu pelas ladeiras com uma mamadeira de cachaça, se abraçando com os negões e com as mulata. - Há quanto tempo atrás você teve no Brasil? - Acabei de voltar para a Itália fazem menos de três meses. - E já está viajando. Como é que você faz? - Qual é o seu nome? - Daniel. - Sabe o que é, eu não gosto de comentar sobre meu business. - Ah, falou... Enquanto Daniel e Lucca conversavam, Markus falava em inglês com Guido. Daniel virou para o lado e brincou: - Ué, italiano falando inglês. Que surpresa! Guido, sem cerimônia disse satisfeito:
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- Permita que me apresente. Guido Ferzetti, representante comercial. - Representante de que? - Eu represento uma fábrica de máquinas de lavar e por isto passei seis meses na América, em Detroit. Fiz muito sucesso com as americanas. - Também, com sua cara de John Travolta, deve ter sido moleza – implicou Daniel. Guido pareceu não notar a gozação e deu uma aprumada como se estivesse olhando orgulhoso para o espelho antes de sair para uma festa. Nisso Lucca perguntou para onde os dois estavam indo e, como Daniel respondeu que estavam procurando pegar carona para Barcelona, o italiano, na maior simpatia, ofereceu uma para os dois. - Porra, legal de montão! Ei, Markus, Deus é mesmo brasileiro, os italianos vão nos dar uma carona! Enquanto isso, Guido voltava a falar alto: - Cinco minutos e vinte segundos. Imagine se fosse com a máquina que vou comprar no ano que vem! Seguindo os italianos para fora do bar Daniel foi pensando o quanto eles eram legais, pois na certa ficariam meio apertados a cinco; mas quando chegaram no carro, entendeu por que Guido tanto insistia na história dos cinco minutos: ele havia juntado o dinheiro de um ano de trabalho para comprar uma moto – fora ainda dever uma parte – e estava absolutamente fascinado pelo seu cavalo: - Então, brasileiro, o que acha da minha Paris-Dacar? - É demais; anda bem?
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- Estou dando um passeio no Lucca; só aqui dentro de Paris levei cinco minutos e vinte segundos – repetiu Guido olhando para o Rolex. - Mas na cidade é uma brincadeira – falou Daniel para implicar. - Então você vai ver na estrada. Ano que vem com minha máquina nova, então, o Senna que se cuide. Os quatro entraram no carro e realmente via-se que ele não mentia. Ia na frente barbarizando e Lucca, na direção do carro, não forçava porque sabia que podia dar merda grande. Markus ainda mais branco que o normal, se segurava no banco de trás tentando mostrar tranquilidade nas curvas a cento e setenta. Desse modo no final da tarde já entravam num restaurante na Praça Real em Barcelona. Quando servidos, os italianos, vendo aquela quantidade de comida, se sentiram em casa; Daniel não se surpreendia, lembrando seus pós-surf no Degrau ou os domingos na casa dos avós. Markus, cerimonioso, olhava o excesso quase como um pecado. Na mesa ao lado, duas alemãs olhavam espantadas a quantidade de tigelas de de vinho, sorrindo com uma certa gulodice. Guido já tendo comido, comprou duas rosas, das vendidas avulsas pelos floristas, dessas que andam pelas mesas, e foi se sentar junto das alemãs. Para seu azar elas não falavam inglês e o jeito foi pedir a Markus para ser seu intérprete: tirava os óculos, botava os óculos, franzia as sombrancelhas, sorria tentando ser sedutor. Os outros três pularam também de mesa, levando mais duas jarras de vinho branco da casa.
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- Mas vocês são alemãs? – Perguntava, redundante, Guido. – Sabem que gosto muito de Munique? - Ah, você conhece Munique? Minha mãe mora lá – disse a mais bonita. - Não, não é bem isto – engasgou Guido – Vi um documentário no canal 5, do Berlusconi. Você o conhece? Presidente do meu time – dizia para fugir do assunto. – Belíssimo mesmo é o Lago de Garda, com a sua água pura – mentia, certo que desta vez agradaria. É o lugar dos alemães. - É bonito, estivemos juntas no ano passado; mas é muito cheio – respondeu sem nenhuma polidez a alemã, um pouco que esnobando Guido, um pouco que lisonjeada por estar sendo cantada. Sem a menor sutileza, ele insistia: - Depois do jantar vamos dar uma volta na minha moto? Vou lhe mostrar as luzes da cidade – encarava cheio de si, esperando a tradução de Markus. A alemã não disse sim nem não, mas Daniel, notando a situação, resolveu encher o saco e pediu para Markus dizer que ela havia dito que nunca tinha encontrado um italiano tão sedutor. Os olhos de Guido brilharam: - É verdade? - É claro, Guido – dizia Daniel não se contendo e rindo. – A gata falou abertamente com o Markus. Guido se empolgou ainda mais: puxava assunto, dava olhares profundos, tirava e colocava seus óculos escuros, tentava dar uma encostada na alemã. Tanto importunou que as duas pediram a conta e saíram do restaurante. Porém Guido nem se tocou.
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Enquanto elas se levantavam, beijou as mãos da mais bonita, que ficou espantada, e pediu o nome da pensão em que elas estavam. Dando uma desculpa, perguntaram pelo nome da pensão dele e falaram que ligariam no dia seguinte. Estava na cara que ele nunca receberia qualquer chamado; mas estava pra lá de convencido e, durante o resto do jantar, volta e meia virava para Markus e perguntava: - Ela disse o mais sedutor? Markus, não acostumado com esse tipo de brincadeira, sem jeito por não saber mentir, olhava para Daniel pedindo ajuda. Este, rindo, insistia: - Acho que esta você já ganhou. Ela está completamente na sua. Na oitava jarra, já entortados resolveram se levantar para dar uma andada pela Rambla para ver o movimento. Depois de pagar a conta e do mijatório tradicional, saíram em direção à rua do lado onde tinham estacionado o carro e a moto. Iam rindo e Lucca e Ernesto, já neste momento tendo entendido a gozação, ajudavam Daniel a deixar Guido cada vez mais entusiasmado. Ernesto fingia que estava enciumado com a sorte do cara, enquanto Lucca falava: - Acho que ela roçou meu pé pensando que era o do Guido. De repente, ninguém entendeu nada. Guido ficou completamente branco, parecendo que ia desmaiar. Ernesto, assustado, segurou-o pelo braço: - O que você tem, está passando mal? Em estado apoplético, com os olhos esbugalhados, sem falar nada, apontava em direção do carro.
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- Hãn, hãn, hãn – continuava a apontar, sem sair do lugar. Lucca prestou mais atenção e desvendou a causa do choque anestésico: tinham roubado a moto... - Calma, Guido, que nós vamos achar – falou Ernesto. – Vamos na polícia dar queixa. - Está no seguro? – perguntou Daniel tentando ser solidário. Guido continuava sem conseguir falar e esboçou seu segundo som: - Não, nãn... - Calma, vou lá no restaurante pegar um copo de água com açúcar que vai lhe fazer bem – correu Ernesto. Ao voltar, na maior rapidez, a situação continuava péssima. Guido, agora sentado na porta de um edifício, continuava com os olhos esbugalhados: pelo menos conseguiu beber a água e ia, aos poucos, recobrando a cor. Porém, falar, que seria bom, nada. - Guido, presta atenção, fala comigo – dizia Lucca segurando no queixo do amigo. - Hãn, hãn – repetia angustiado, fazendo força para falar. - Assim não dá, é melhor antes de dar queixa na polícia irmos a um médico, pois ir à polícia deste modo não vai ser bom – falou Lucca. Daniel, com o seu portunhol, perguntou para um senhor onde era o hospital mais próximo; chegando lá foram entrando direto pela porta de emergência, achando que Guido estava tendo um ataque. A enfermeira pediu que esperassem, mas Lucca, falando alto, querendo comprar briga, disse que exigia um médico naquele minuto, pois seu amigo estava morrendo.
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A mulher, olhando para Guido, achou que não era muita coisa, porém, para não discutir, chamou um médico que chegou de cara amarrada: - Qual foi o problema? Daniel, cheirando a vinho, foi tentar explicar a historia, mas o médico não fazia o menor esforço para entender o seu portunhol enquanto examinava o engasgado. - Como você se chama? - Hãn, hãn – murmurou... - O que ele tomou? Daniel respondeu que não haviam tomado nada, que o problema era outro, mas o médico, irritado, não o deixou explicar: - Este jovem não tem nada. Vocês devem é ter tomado droga. Saiam daqui. Tenho mais o que fazer. Os cinco saíram em direção à pensão que ficava na mesma praça do restaurante: o silêncio era total. - Vai ver que daqui a pouco ele melhora – dizia Daniel tentando ser simpático. - É, amanhã vamos à polícia. - Não, é melhor irmos o mais rápido possível para vermos se recuperamos a moto – insistiu Ernesto virando-se para Lucca. - Hãn, hãn – concordou imediatamente Ferzetti. Chegando na delegacia de furtos, Daniel, dizendo que Guido não entendia nada de espanhol, conseguiu evitar que tivesse que responder qualquer coisa. No outro dia de manhã deixaram-no dormir bastante para ver se acordava bem:
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- Guido! Guido! Acorda! - cutucou-o Lucca, enquanto todos tinham a certeza de que ele estava curado. - Hãn, hãn – recomeçou, enquanto Lucca, entre preocupado e de saco cheio, falou: - Merda, Guido; vai ser pra sempre? Com cara triste, Guido não respondeu. Parecia que estava com uma saúde invejável: só não falava. Daniel e Markus, mesmo solidários, estavam com vontade de ir naquele mesmo dia para Sevilha, mas não queriam deixar os italianos, que foram super gente fina, naquela situação. - Vamos tentar outro médico – sugeriu Markus. Uma hora e meia depois chegaram a um outro hospital e o médico confirmou que ele não tinha nada. Lucca e Ernesto decidiram, então, mandar Guido de volta para a Itália de avião, pois sabiam que ir para Ibiza com ele naquela situação ia ser a maior roubada. Estava na cara que o italiano não gostou da solução pois começou a gesticular e repetir bem alto seu segundo repertório: - Nãn, nãn, nãn – gritava. Forçaram-no a entrar no carro e foram pega as roupas na pensão: - De lá a gente liga para sua mãe – propôs Ernesto. - Nãn, nãn – implorava. Markus e Daniel decidiram acompanha-los até o aeroporto, para depois, pegarem o trem para Sevilha. Durante todo o caminho Guido, puto da vida, nem soltava mais seus grunhidos. Seus amigos se sentiam culpados, mas não havia outra saída. Estacionaram o
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carro e foram andando, de cabeça baixa, como depois de uma partida de futebol perdida, para a entrada do aeroporto. Quando estavam quase na porta, Guido, distraído, pisou num monte de merda e sua reação foi instantânea: - Mas que Catzo!!! – enquanto os outros quatro olhavam espantados, gritou: - Dio mio, io parlo!!! Estava curado, era hora de zarpar para Ibiza. - Vamos comemorar – falou alegremente Ferzetti parecendo já ter esquecido o roubo. – A festa é por minha conta! Por mais algumas horas a viagem para o sul da Espanha estava adiada e voltaram a sentar-se num restaurante para agradecer a Baco. Depois de duas horas de conversa, tendo passado toda a merda juntos, Lucca já considerava Daniel um amigo e resolveu contar a história de seus “business”: - Sabe como é, cara, eu tinha chegado do Brasil com grana suficiente, pois eu trabalho em Verona com promoção de festas e dá para juntar legal. Mas depois de cinco meses o dinheiro foi encolhendo e tive que pedir para meus pais mandarem dois mil dólares emprestados. Eu sabia que ia ser uma bosta chegar de volta duro e ainda devendo essa grana. Foi quando encontramos um italiano de Milão, conhecido deu ma amiga nossa de Verona. Tadeo é um tipo único: foi para o Brasil para fugir da heroína; mas o maluco resolveu bancar o químico e fica destilando remédio de olho para se picar. A alquimia dele, sei lá, faz a transa virar morfina. O cara está tão ruim como devia estar lá em Milão. Meio deprimente. Está até manco de tanto se aplicar na perna. De qualquer maneira, penso que cada um sabe da sua e ele, num dia, perto da época em
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que eu deveria voltar, perguntou porque a gente não levava um pouco de coca para a Itália, pois daria fácil para pagar o que eu estava devendo e ainda sobraria para uns três meses. Na verdade, fiquei assustado porque nunca tinha feito qualquer transa dessas, mas o Tadeo me garantiu que não haveria o menor problema. Nisso, Ernesto, rindo, interveio: - É, foi um desvirginamento completo! Lucca, passado, respondeu: - Você é que tem merda na cabeça e é otário. Daniel entrou na discussão para acalmar: - Pera aí, continua a história... Mas ao invés de Lucca foi Ernesto que, rindo, continuou a contar: - Esse maluco só não morreu porque é sortudo. O Tadeo falou pra ele fazer umas trouxinhas, enroladas em fita adesiva e preservativo, e enfiar no cu. Lucca, que ficou com medo de gostar e virar viado, queria engolir tudo. Na certa ia dar uma merda no estômago e eu teria que entregar o corpo para sua mãe. Mas na última virada de noite, já que ia pegar o avião antes de mim, ele resolveu assumir sua tendência noturna e até hoje, não sei bem como, enfiou a porra toda e foi cagar ela lá em Verona. Daniel não se conteve: - Doeu muito, Lucca? - Brasileiro malandro, no Rio é que só tem viado. - Calma, Lucca – apaziguou – você se deu bem? - Não, na verdade não valeu a pena. Fui mais pela empolgação da história. Chegando lá, mesmo tendo antes secado bem, estava tudo empapado. Para passar também não foi uma legal; sempre
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gente que você não quer fica sabendo, ou então são os amigos querendo de graça. Pior é o risco da transa vazar ou de ser pego no aeroporto. Quando desci do avião tinha cachorro na alfândega e suei frio. Mas, de qualquer maneira, deu para fazer essa viagem. Ernesto encarnou: - Mas os cachorros cheiraram seu cu? - Merda, Ernesto, então conta o que aconteceu com você. - Eu não estava precisando de dinheiro. - E por isso bancou o otário? Sabe qual é, Daniel, o Ernesto ficou com medo de morrer ou de ser pego e um amigo do Tadeo, um surfista chamado Rato, falou que ia ajuda-lo a mandar de uma maneira mais segura. Disse que ia prensar num livro e que depois era só enviar para um endereço na Itália. Eu não estava levando o tal do Rato muito a sério, mas Ernesto ficou todo empolgado. Me lembro que pegamos um fusquinha despencando e fomos comprar uma prensa lá no subúrbio. Nisso ele já foi se fodendo porque um guarda parou o carro e a documentação estava vencida. Aí o Rato falou que quem tinha de pagar para o guarda era o Ernesto porque ele só estava ajudando. Ajudando e cheirando. O cara era um animal! Naquela noite ficamos até tarde no apartamento que tínhamos alugado e o Rato só dando explicações lógicas: - Aí rapeize – Lucca dizia imitando o rato – escolhe o otário da cidade e manda para o endereço dele. Depois vocês passam e pegam o livro; o babaca não vai sacar nada. Vai ficar na maior felicidade de receber um presente! O Ernesto até escolheu, para se vingar, um cara que tinha transado com a sua namorada. No outro dia ele foi me levar no aeroporto e deixou o Rato no apartamento
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sozinho. Quando voltou o brasileiro tinha levado toda a coca do Ernesto otário. - Mas por que você deixou ele lá? – perguntou, surpreso, Daniel. - Como é que eu ia saber? O Tadeo me disse que ele era seu amigo. - Mas tu não sabe que lá naquela selva tá cheio do que a gente chama de “carioca esperto”? É aquele cara que só quer se dar bem, que não tem amigo. Não dava pra ver que o nome do cara era Rato por algum motivo? Você não fez nada? - Eu e o Tadeo fomos à casa dele no mesmo dia, mas ninguém atendia. No outro fomos lá, novamente, e ele estava com a luz apagada e só umas velas acesas. É claro que estava na maior cheiração; só que o mentiroso disse que não tinha sido ele. Além disso, tinha mais três caras grandões. Todos mal-encarados. Se fosse aqui na Itália, ele estaria fodido, mas no Rio, o que eu podia fazer? - É, rapaziada, dá até vergonha, mas nego fissurado apronta dessas mesmo. - Isto foi bom para o Ernesto ficar mais acordado – falou Lucca – lá em Verona ele também é muito vacilão; acredita em todo mundo. Daniel, querendo mudar de assunto, pois sabia que estava atrasado, chamou o garçom e pediu a conta. Guido, sempre cavalheiro, correu para pagar a da despedida. Na saída Luca deu, ainda, mais um help:
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- A gente leva vocês até a estação. Vou escrever nosso endereço em Verona e assim vocês passam na volta por lá. Tenho umas amigas melhores que as morenas de Ipanema. Vocês vão ver!
– II –
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BANHOS MARROQUINOS
- Andar com brasileiro dá nisto: nunca sabemos o que vai acontecer. - Qual é o problema? Perdemos o trem. Foi mal. Também estava com vontade de ir. Foi excesso de vinho. Mas acho que valeu a pena demais ter conhecido os italianos. Já estou pensando é nas gatas de Verona! - Você fica pensando nelas e nós, até agora, não tivemos com as espanholas que você tanto falou! - Fica calmo, gringuinho, que logo você vai recuperar todo seu atraso; se é que ainda se lembra como se faz! Markus ficou vermelho com a brincadeira mas, tímido, não soube responder. - Pera aí, brother, é brincadeira. Só sou de falar. Você vai ver como vamos nos dar bem...mas, para variar, estou a fim de um programa cultural. Me falaram do museu do Miró e de uma catedral de um arquiteto muito louco que o Caetano, lembra? Aquele compositor que você se amarrou? Numa de suas músicas ele fala do tal do Gaudí. É estranhaço, vi num pôster. Está afim? - Claro, vamos logo. - Não é que sua companhia não seja demais, mas agora fiquei pensando que sou o maior babaca do planeta por ter esquecido o endereço da Carla em Berlim. Estava certo que a veria por estas bandas. Imagine eu dar um rolé com ela por um parque. A gata está me devendo até hoje os beijos daquela noite. De qualquer maneira, fica para a próxima.
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Depois de andarem a pé quarenta minutos em direção ao museu, tendo cortado o caminho por um morro, do outro lado uma música chamou a atenção de Daniel: - Pera aí, cara, não está escutando? É Carmem, do filme do Saura, vamos chegar mais perto para ver. - Eu adoro música espanhola; também vi o filme que você falou. - Porra, está fechado. Que grande merda. Vamos pular a cerca! - Não, Daniel, não vê que é proibido? - Que proibido que nada; é só mato, ninguém vai nos ver...Cara, não é demais! - Puxa, um balé; não dá para acreditar! Os dois tinham entrado num parque público e sentaram, para não serem vistos, entre as árvores do mato que, de cima, contornavam o palco e as cadeiras, formando um anfiteatro. Lá do alto era lindo o visual das cores das roupas das mulheres e o som da batida compassada dos pés e das mãos. Seriedade completa por ser dia do ensaio geral. Na beirinha, envolvidos pelas moitas, só com as cabeças aparecendo, deliravam geral, principalmente fixados na tentativa de enxergar a cor de cada uma das calcinhas das bailarinas enquanto as saias negras, vermelhas e as estampadas com bolas amarelas ou azul-turquesas, ganhavam o alto, levantadas pela coreografia radical. De repente Daniel e Markus ouviram mais acima, do lado de fora da cerca que tinham pulado, umas risadas e o barulho de algumas pessoas; talvez dois casais correndo. Por azar, ou de propósito, começaram a rolar umas pedras. Duas ou três passaram
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bem perto deles, sendo que uma foi de encontro a um refletor que, explodindo, aprontou o maior estrondo. No palco, depois de um segundo de silêncio espantado, uma correria; afinal, tudo é motivo para se acreditar em atentado na Espanha. Lá embaixo, rapidamente, apareceram policiais gritando, e um apontou: - Ali; aqueles dois! Daniel, já acostumado com a barra pesada da polícia brasileira, sabia que se corressem seria pior; ainda mais por já estarem errados por ter pulado o muro: - Calma, Markus, não sai correndo que os caras nos pegam. - Mas não fomos nós. - É, tomara que acreditem... Nem se passou um minuto e a dupla do grandão e do pequeno, com os seus radinhos irritantes, já cercavam os dois. O mais mau chegou gritando: - Que foi isso, quem são vocês? Daniel balbuciou em portunhol: - Desculpe, nós só estávamos olhando... - Estrangeiros, né? Passaporte. O grandão pegou com brutalidade o passaporte entortado, sheipeado pelo bolso de trás, e já foi querendo mostrar o caminho para “o de costume”; o menor, mais calmo, tentava conversar com Markus usando as poucas palavras em inglês que sabia. - Alemão, o que está fazendo aqui? - Escutem – ponderou Daniel – sei que parece meio absurdo, mas as pedras vieram lá de cima. Nós ouvimos umas risadas e, logo
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em seguida rolaram as pedras. Não sei nem se foram jogadas ou se foi erosão. - Você fala espanhol, aonde aprendeu? – perguntou o grandão com cara de meganha da ROTA, daqueles mais filhos da puta. Daniel pensou no azar que estava sendo, bem naquele momento, o seu dialeto de brother latino-americano estar saindo correto: - Eu não falo espanhol; é português com acento... - Acho melhor irmos conversar na secretaria, que está ficando escuro. Lá vamos acertar isso do nosso modo. O coração disparado dos dois deve ter chamado atenção de Deus e, nisso, o pequeno falou para o outro: - Calma, Carlos, os rapazes estão dizendo a verdade. Eu vi de onde saíram as pedras. Só queria ouvir a explicação deles para confirmar. - Mas você tem certeza? De qualquer maneira, eles estão em situação irregular. O parque fechou há mais de uma hora. Daniel interferiu com a voz mais humilde que podia fazer: - Desculpem, sabíamos que estava fechado, mas não resistimos à música e à dança espanhola. São divinas! A humildade pareceu ser uma boa arma, ou então a frase desmunhecada: só lhes mostraram o caminho do portão.
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No outro dia pegaram, ao invés de um trem, um ônibus para Sevilha. A paisagem semidesértica do sul da Espanha, com as oliveiras descendo as colinas, deixou-os abestalhados: - É engraçado que a paisagem não muda muito, mas estas cidadezinhas pintadas de branco e estas colinas sem fim são lindas – viaja Markus. - É, não imaginava tão legal. Imagine como deve ser um deserto de verdade. Vamos para o Marrocos ver? - O que, Daniel? Para o Marrocos? - É aqui perto. A gente vai numa ótima. - Pode ser, mas vamos primeiro chegar a Sevilha, está bem? No final da tarde andaram pelo centro velho. Voltaram a comer de montão, e Markus já parecia engrenado nos novos hábitos: muito vinho e carneiro para um alternativo herético.
De manhã acordaram depois do meio-dia. A cidade estava deserta, mas no final da tarde ia haver tourada. Markus não queria ir por ser contra seus princípios, porém, acabou, mais uma vez, convencido por Daniel. Na saída ele entrou numa de encher o saco do Markus: - Eu vi que na primeira furada você virou o rosto. Ficou impressionado, Tedesquinho? Não gostou das espetadas no filé do touro? Que tal comermos um bife mal passado agora? - Na verdade achei tudo isto uma selvageria. Coisa de bárbaros.
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- Bárbaro, que eu me lembre, era seu tetravô no tempo dos romanos. Acho que comiam carne humana. - Não vem com esta história de novo; cada vez que falo qualquer coisa com que não concorda, ou você fala da Segunda Guerra, ou dos Hunos. Agora eu só estava falando que não gostei da tourada. - É, realmente, depois da terceira fica mais ou menos tudo igual; mas de qualquer maneira, é o esporte nacional e a galera vibra. Eu curti. Afinal, só sou verde-alternativo lá em Berlim. Aqui sou macho latino e quero ver carne e sangue; quem sabe até uma furadinha de leve num desses toureiros metidos a muito homens mas jeito meio barga – disse rindo e mostrando os músculos. Markus, como sempre, não discutiu e apenas balançou a cabeça. Para ele as coisas eram certas ou erradas e vida alternativa não era uma brincadeira. Não ligava muito para o que Daniel falava, pois gostava muito dele e o considerava meio maluco. Na sua cabeça, Daniel e um componente de uma ala da Escola de Samba, representavam o que imaginava que era o Brasil. Sabia das favelas, da destruição da Amazônia e da matança dos índios. Tinha uma opinião afirmativa sobre estes problemas, mas era como se fosse outro país e seu amigo fazia parte de Copacabana, das mulatas, da Bahia... - Bom, agora que já é noite, ouvi falar que tem um lugar chocante, na Beira-Rio, com uma festa enorme. Aí, meu irmão, é lá que vamos achar a mulher da nossa vida! Andaram mais de meia hora, porque a Beira-Rio ficava um pouco afastada da cidade velha. Cada vez mais, as luzes das
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barracas, em linha, lá no fundo, iam aumentando e a empolgação dos dois também: - Deve ser chocante; vê quantas luzes. Vamos andar mais rápido. - É bem maior que eu pensei – respondeu Markus. Chegando lá, a festa era realizada dentro de bares grandes, feitos de madeira, e em cada um ocorriam coisas diferentes, como nas quermesses que acontecem em todos os lugares. Só que, do lado de fora, construíram grandes caramanchões em que se podia dançar. Ainda naquela confusão de gente e de barulho a empolgação continuava, mas na volta da primeira passada o ânimo já começava a cair: - Parece uma Feira da Providência qualquer lá no Rio, ou festa de interior. Não esperava isso. Essa música discoteque é uma grande bosta – reclamava irritado. - Vamos entrar naquela ali que parece a melhor. - Tá bem, já que viemos até aqui... O caramanchão em que os dois entraram era o mais agitado, mas durante quinze minutos só ficaram parecendo gostar, o que irritava, ainda mais, Daniel: - Vamos embora que não aguento mais esta música. No entanto, quando os dois iam saindo, um tom diferente apareceu no ar. As pessoas eram as mesmas, mas nessa fração de segundo tinha-se a sensação de que tudo havia mudado. Nesse intervalo mínimo da parada da música, o ar de cada uma daquelas trezentas pessoas se modificou: ganharam porte, um movimento sincronizado, um olhar mais reto. As mesmas trezentas pessoas que
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dançavam americanizadas com o consumo fácil de qualquer discoteca de segunda, agora se individualizavam; cada um com seu próprio estilo, mesmo que compondo um conjunto. Era a sevilhana que começava. - Cara, é disto que eu estava atrás – gritava Daniel. Três centenas de corpos em movimento. A música, misturando sons de origens tão diversas, completamente familiar. Os corpos empinados, tentando tirar de si o máximo de elegância. - Olha aquelas duas gatas – apontou Daniel. Elas pareceram notar e ter gostado. Enfrentaram-se ainda mais: duas fêmeas, mesmo que adolescentes, dançando uma na frente da outra, prestando atenção no movimento da rival, desenhando com as mãos, afiadas e leves, o próximo movimento, ainda mais bonito, que poderia fazer qualquer uma delas ganhar a disputa da beleza e do tesão. O pescoço enrijecido, o queixo orgulhoso, o cabelo negro escorrido, a ideia de uma andaluza, já sem freio de família ou religião, vestida de negro, ainda, mas com a loucura do corpo quente. Dezenas de pares, mulheres se encarando, concorrendo, casais na sedução, por todos os cantos. Mas eram aquelas duas, e somente elas, que os dois olhavam. Que não houvesse vencedora. A sorte estava do lado deles e delas, pois Markus, Daniel, Celeste e Maria da Saudade tinham desejos que se harmonizavam e os dois casais se formaram naturalmente: - Adorei seu nome – falava a primeira coisa que vinha à cabeça, Daniel. - Obrigada, de onde vocês são? – dizia Celeste.
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- Eu sou brasileiro, mas acho que tenho algum sangue espanhol – mentia. - Por que? - Porque saí de Berlim certo de que ia acontecer esta noite. Celeste riu meio vermelha, meio sacana. Markus falava bem devagar com Saudade que, sendo tímida como ele, parecia saber menos palavras em inglês do que na verdade sabia: - Mas sua pronúncia é ótima – Markus incentivava. - Não sei, estou aprendendo há vários anos, na escola das irmãs, mas acho que não sei nada – fala baixinho. - Que irmãs? – perguntou Markus. - O colégio de freiras em que nós todas lá em casa estudamos. Em quinze minutos já estavam sentados em outro bar tomando sangria: - Você tem de ir para o Rio no verão. Na praia de Copacabana tem um bar que faz uma sangria ainda melhor do que esta. Você vai se amarrar. - Mas não é perigoso? Li que uma garota sozinha, no carnaval, pode ser atacada a qualquer momento. - O que é isto, Celeste? Não tem problema nenhum. Além do mais, você vai estar na maior proteção – dizia aproveitando a oportunidade para chegar mais perto e segurar o braço dela. Como Celeste não o retirou, era sinal que o caminho estava limpo; e Daniel, mais confiante, já trabalhado pela sangria, usava todos seus argumentos. Uma hora depois os primeiros beijos e a proposta para o passeio à beira-rio
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- O Markus é supernatureza e me disse que queria passear lá perto do bosque essa noite. Vamos lá? Markus, vermelho, confirmou: - É, eu tinha dito pra ele. Celeste, entendendo a situação, pensou algum tempo antes de dizer qualquer coisa, enquanto Saudade, mais ingênua, concordou na hora: - É mais bonito durante o dia, Markus, mas se você quer, mesmo agora é um bonito passeio. - É que amanhã estamos pensando em almoçar num restaurante do outro lado da cidade – inventou Daniel, rapidamente. - Então, vamos, aceitou finalmente Celeste. Os beijos no caminho já estavam escrachados e Saudade e Markus, constrangidos, fingiam que não viam. Sentaram no gramado, já neste momento separados por mais de cem metros, e cada casal curtiu sua festa como pôde.
Porra, Markus, a Celeste é demais! Nunca pensei. Estou apaixonado. Acho que vou morar na Espanha – delirava – a merda é que foi só ontem. Hoje ela foi com a família para a praia. Não é que a sacana disse que não podia me ver lá porque tinha um namorado. Mas, que ela gostou, eu tenho certeza. No começo foi aquela dificuldade: o sim e não, o só um pouquinho. Mas na hora que ela abriu mesmo, eu é que tentei segurar; mas não deu. A gata era boa demais; muito louca. Acho que vou ter um filho sevilhano.
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Markus parecia não gostar da conversa, pois olhava para o chão o tempo todo. Daniel havia notado, mas queria um ouvido para comentar: afinal, era como gozar de novo. - Os peitos dela, cara, são uma perfeição, já estou de pau duro só em pensar. Markus, ainda mais fechado, olhava pela janela. Daniel insistia: - E você como é que foi? Comeu a freira? Ele se virou fixando Daniel com uma cara que nunca havia feito. Uma mistura de humilhação, raiva e espanto. Mas, como das outras vezes, não conseguiu dizer o que sentia. Só os olhos azuis ficaram de repente muito tristes. - Ô amigão, me desculpe. Só tava brincando. Não quis lhe ofender. Markus não dizia uma palavra e continuava olhando para fora da janela. Era como se nem estivesse ouvindo as desculpas; ter ficado de mãos dadas com a Saudade, ter passado a noite conversando na Beira-Rio, ter trocado endereço, ter dado um beijinho de até qualquer dia, sem língua, mas com carinho, teria sido uma noite perfeita se Daniel não estivesse estragando tudo contando sua vantagem; pois, agora, ficava achando que se tivesse insistido, se da mão passasse para o braço, talvez, também tivesse conseguido transar. A noite à beira do rio perdia, assim, todo seu mistério: sua história ficava menor. Banal. Ao invés de feliz, como até aquele momento estava, se sentia diminuído ou, pior mesmo, um pouco otário. - Sabe qual é, Markus? – falou sério, segurando o ombro do amigo – quero lhe confessar uma coisa. Eu sou babaca mesmo.
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Tudo que falei foi mentira. Na real, não consegui transar com a Celeste. Markus, entendendo o jeito, olhou-o com uma cara mais alegre e mentalizando que os brasileiros eram todos assim mesmo, perdoou, mais uma vez, seu melhor amigo. - É, deu pra perceber. Os gemidos devem ter sido feitos por um casal de corujas que vimos lá no mato. Daniel contente com o nada habitual humor do seu brother germânico desconversou, dando-lhe um abraço, e propondo seguir viagem. Não resistindo provocou: - Então vamos para o Marrocos. Juro que você vai tirar o véu negro de uma egipciana!
No Marrocos, entretanto, as coisas não foram tão fáceis como imaginava: - Vamos direto para Marrakech fumar um marroquino que ou vai nos fazer flutuar para a ponta do Atlas, ou atravessar o Saara rumo a Bagdá. Chegaram em Marrakech, pela manhã, e logo deu para perceber que o ritmo era pesado. - Não, obrigado, já temos hotel – respondia pela décima vez, e olhando para Markus, irado, afirmava: - Assim tá demais; os caras insistem em tudo. Querem vender a própria mãe! - Mas no Brasil não é assim? – perguntava para implicar. Daniel, não entendendo, respondia sério:
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- Não, lá também pedem dinheiro e insistem um pouco, mas aqui leva fácil qualquer campeonato. Não estamos nem a três horas nesta praça e já estou ficando maluco. - Então vamos tirar umas fotos; isto parece um grande circo. A praça central da medina estava linda. Milhares de pessoas se aglomeravam entre os vendedores e as atrações. Cobras, macacos e faquires. Era como nas Mil e Uma Noites, mas com o foco voltado para o caça-níquel dos turistas. - É melhor nós darmos algum dinheiro pois ele já está ameaçando gritar. - Mas eu só tirei uma foto dele com as cobras no pescoço. Não vou dar é porra nenhuma. - Não sei não Daniekl, o cara está gesticulando e está vindo na nossa direção... - O que não se tem de pagar nesta merda? – sacou o dinheiro, cada vez mais invocado, enquanto o marroquino, bem escuro, esquelético e com o cabelo liso, comprido, grande e preto, endurecido pela sujeira, se acalmava recebendo sua moeda. – Vamos dar uma volta por outras bandas.
Desculpe-me, senhor – falou um sujeito simpático e jovem. - Senhor? Está me achando com cara de que? – Daniel respondeu agressivo. - Desculpe-me, mas sou estudante e nosso grêmio gostaria de fazer uma petição às autoridades, visando à construção de um
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campo de futebol e o oferecimento das camisas, e gostaríamos de contar com suas assinaturas para engrandecer nossa lista. - Mas somos estrangeiros; porque a gente deveria assinar? - Para nos dar maior credibilidade – afirmou o jovem – o turismo é encarado nesse país com a maior seriedade e os estrangeiros são muito respeitados pelos órgãos oficiais. Tenho certeza que a assinatura de vocês em muito ajudaria nossa causa. - Não vou assinar nada – retrucou seco. O jovem fez uma cara de tamanho desapontamento que Markus, com pena. Disse que iria assinar: - Olhe, posso assinar pela sua causa; acho justo. Mas eu gostaria de avisar que sou, também, estudante e que não tenho dinheiro; se tivesse até contribuiria com algum... - O que é isso? – interrompeu o jovem – entendo completamente; estou agradecido com sua generosidade. Sua assinatura vai ser muito importante. Daniel, se sentindo culpado diante da grandiosidade de Markus, resolveu assinar também...meio segundo depois dos dois escreverem, a expressão do marroquino mudou: - Agora, por favor, a contribuição. - O que? Você está louco? Você disse que não precisava de dar nada. - Agora, a contribuição – repetiu impassível o jovem – quem assina essa lista deve contribuir, pois, se não, terei de prestar conta aos outros membros do clube. - Você está é maluco. Não vamos dar nada. Nós somos estudantes; vai pedir dinheiro para os gringos – gritou Daniel, esquecendo que também era um.
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- Assinou, tem de contribuir – exigiu o rapaz, já querendo esquentar. - Nessa essa cara não me pega – pensou Daniel – vamos sair correndo – gritou, enquanto dava uns cem metros rasos, seguido por Markus, ao som de filhos da puta, cada vez mais distante. - Que sol de matar, brother. Eu dava tudo por uma cerveja. Que país da porra; é proibido vender cerveja! - Eu perguntei para outros alemães e me falaram que tem uns lugares especiais que vendem bebida; são meio escondidos ou, então, só nos hotéis de luxo. - Hotel de luxo é pra alemão gordão e vermelho, daqueles camarão da Malásia; vamos achar esse tal antro do álcool. Depois de muito perguntarem, encontraram a tal loja: compraram logo cinco litros para não ter erro, colocaram as latas em duas sacolas e foram andando à procura de uma sombra. - Ali, acho que é um oásis... tem três árvores e nenhum árabe. Deve ser milagre – escancarou Daniel. Sentaram e começaram a beber; não passaram da segunda lata, cada um, e um senhor apareceu aos gritos; parecia que estava tendo um terremoto. Gritava um amontoado de sons que, de início, não faziam o menor sentido. - Porra, Markus, o que esse matusalém quer? - Não brinca, parece que a coisa é séria. O senhor vestido de roupa branca, já gasta, com barba por fazer, apesar de frágil impunha respeito. Dava para ver que era um popular, mas pelos seus gestos impositivos fez com que o brasileiro se levantasse pedindo desculpas sem saber bem por que.
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- Que estupidez – falou baixo Markus, meio que fazendo uma reverência, meio que saindo de costas – vamos embora rápido. Já deu pra entender por que o velho está tão bravo; estamos bebendo cerveja em frente a uma mesquita. Saíram dessa vez dando razão ao senhor, mas Daniel não se conformava na total: - Como é que ia dar para saber que lá em cima do morro tinha uma mesquita? O cara tinha razão, mas o problema daqui é que em cada esquina tem um templo; é pior que na Bahia. Só que lá a gente não dispensa nem o do bom, quanto mais bebida. No final da tarde saíram tortos e voltaram para a praça central. Baco ajuda os fracos e agora tudo batia melhor; o sol se pondo, a música, a poeira contra os raios de sol, a multidão e os prédios avermelhados pelo pó amorteciam qualquer desgosto. - Olha aí, Daniel, em cima do muro, aquele casal de cegonhas. - Cara, nunca tinha visto uma cegonha... é demais, que coisa doida! Pensei que cegonha era coisa lá da Noruega; que moravam perto das renas do Papai Noel. Logo aqui nesse deserto. Acho que vou alucinar: este céu azulzaço, a poeira vermelha e as cegonhas brancas... só pode ser uma homenagem à bandeira francesa. Ficaram olhando uma meia hora. Já estavam começando a se sentir locais, quando um guri aparentando uns doze anos se aproximou: - Me dá um dinheiro. - Ô moleque – brincou Daniel – cai fora que não sou gringo. O garoto não se fez de rogado. Fechou os punhos e tentou ameaçar Daniel. Este, acostumado na praia com uns pivetes três vezes mais fortes do que o moleque, achou que era brincadeira e
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lhe deu dois cascudos. O menino não chiou e até saiu rindo; parecia que tinha gostado da brincadeira. Markus e Daniel resolveram, então, dar um passeio e saíram por uma rua estreita. Cerca de cinco minutos depois, do teto de uma das casas brancas, começou a chover uma dezena de pedras, que, se jogadas com mais força, poderiam tê-los machucado seriamente: era o garoto mais três amigos descontando os cascudos. Mais uma vez a fuga Batman e Robin à procura de uma caverna. - Esta Marrakech já deu pra bola. Vamos embora amanhã cedo. Não estou a fim de ser malhado o tempo todo – reclamou Daniel – vamos pra Fez que na certa vai ser mais legal.
No trem, conversando com uns holandeses, deu para saber que em Fez a situação era de igual para pior. Ficar dentro da medina nem pensar. Na parte nova tinha umas pensões bem razoáveis: chegaram ao entardecer e foram direto comer e dormir. No outro dia, depois do café da manhã, com disposição, decidiram ir andando em direção à medina. Logo foram abordados por um I help you; mas depois de explicarem dez minutos a situação de penúria em que se encontravam – um berliner viajando com um cucaracho – deu para convencer que não tinham muito para serem ajudados. O dinheiro era realmente pouco: - Mas, se vocês não têm dinheiro, por que não ficam na sua terra? – reclamou, orgulhoso, o primeiro voluntário do dia, enquanto ia saindo batido. Os dois meio putos com a ofensa, apressaram o passo.
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- Ei, senhores! – abordou logo em seguida nova pirataria – em que posso ajudá-los? - Em nada – comandou desta vez Markus, perdendo sua timidez e calma habituais. – Não queremos nada e não temos dinheiro. O estranho, naquele momento, foi que Daniel sentiu pena; o jovem fez uma cara de triste e ofendido, parecendo que nem ia argumentar e já ia embora: - Ô Markus, será que a gente não foi longe demais? - Já estava cansado, Daniel, me desculpe. Mal deu dez passos, a pirataria rumou de volta: - Acho que vocês não me entenderam. Não quero nada de vocês. Meu pai é comerciante e tenho dinheiro de sobra – disse mostrando a carteira, para deixar ver que realmente estava completa. Daniel já estava arrependido de ter caído na conversa mas este cara era realmente mais simpático do que os outros. Tinha uns olhos super rápidos e uma risada maneira. - Qual é o seu nome? – perguntou Daniel. - Muhammed – respondeu com um sorriso cheio. - O que você faz da vida? - Estudo inglês; é por isto que quero conversar com vocês. Preciso treinar para pensar no meu futuro. Como iam almoçar e a comida era bem barata, os dois resolveram convidar Muhammed para ir com eles; suas histórias eram demais. - É isso, amigos. Conheci uma inglesa bem branca e grande – mostrou Muhammed, deixando claro que era das bem gordas – que
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se apaixonou por mim. Ela é realmente linda e rica. Trabalha numa loja, mora num apartamento de noventa e sete metros quadrados e tem carro próprio. - Como é que você sabe tudo isso? – perguntou Daniel, rindo. Muhammed, imperturbável, respondeu: - Escrevi querendo saber, pois não estou com vontade de ir para a Inglaterra para passar necessidade. Afinal, meu pai é comerciante. - E ela realmente quer que você vá lá? – perguntou Markus, surpreso. - Disse que me manda passagem. - E seu pai, o que diz disso? - Meu pai está muito ocupado com seus negócios e não sabe o que se passa com meus sentimentos. Vou pensar seriamente antes de me decidir. Daniel e Markus não paravam de rir da descrição dos móveis e dos aparelhos elétricos da casa da inglesa Muhammed sabia de cor as marcas e o ano de fabricação de cada coisa. Daniel só ficava imaginando as cartas de amor trocadas entre os dois: que é troca dá para ver: mas em que negócio louco pode acabar tudo isso? – pensava, enquanto Muhammed comia e descrevia suas metas. - É isto, meus irmãos, se não der certo vou para a Alemanha – falou, sem ligar a mínima para o fato de Markus ser alemão – Lá é só casar e o governo nos dá até mobília. Fazendo uns três filhos ficarei rico; volto para Fez e abro meu negócio. Talvez compre uma Mercedes e, na volta, vire chofer de táxi. Para trabalhar num hotel com velhas ricas. O faturamento é muito bom.
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Markus, incomodado, acelerou o pedido da conta, enquanto Muhammed, parecendo satisfeito, com um grande arroto, propôs: - Bom, agora que já comemos vamos passear na medina. É realmente uma beleza. Um passeio inesquecível. Vou mostrar tudo para vocês. - Escuta, Muhammed – falou sério Daniel – nós realmente não temos dinheiro; convidamos você para o almoço porque gostamos de você. Mas, por favor, já estamos cansados de ter que discutir depois. Nós somos estudantes. - Que é isso, Daniel, eu quero mostrar as belezas de minha cidade para meus dois novos grandes amigos. Saíram, ainda que cabreiros, seguindo Muhammed rumo à medina. Realmente, em Fez a situação era muito pior. Nam edina, um labirinto composto por centenas de pequenas lojas, era impossível situar-se sem a ajuda de um local. Muhammed estava muito solícito e parecia pronto para dar toda a força: - Vamos por aqui, quero mostrar uma loja de tapetes para meus amigos. - Puxa, que demais! Quanto custa? – perguntou Markus por perguntar. - É baratíssimo, para vocês, é claro. O brasileiro, já notando um ar modificado no seu guia, interveio: - O Markus só perguntou para ter uma ideia. Ele não tem dinheiro nem para comprar um rabo de camelo. - Sentem aqui que vou mostrar esta pilha, dos pequenos, para vocês.
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- Não, Muhammed, não tenha esse trabalho. Estamos adorando, mas gostaríamos de ver outros lugares – falou Daniel. - Vejam que cores lindas – continuou Muhammed, parecendo não ouvir. - Muhammed, eu já disse que não vamos comprar nada; vamos embora – insistiu Daniel. Nisso Markus saiu da loja, enquanto ouvia um início de discussão entre Muhammed e outro homem. Daniel o seguiu e ficaram esperando lá fora. Na certa o tal senhor conhecia muito bem Muhammed. O jovem marroquino deixou a loja pretendendo parecer natural, mas sua cara mostrava uma evidente contrariedade. - Então, meus amigos, por que não compram alguma coisa? - Ô Muhammed, está brincando conosco? – disse Daniel. - Meu pai gostaria de oferecer, lá dentro, um chá para vocês. Afinal, amigo meu é amigo de toda a família. - Muito obrigado. Agradeça muito a seu pai, mas vai ter de ficar para a próxima. Nós vamos embora – falou calmamente Daniel. - Está bem, não tem problema, vou mostrar outros lugares para vocês. Andaram por várias das ruazinhas. Visitaram sete ou oito lojas: o cheiro das especiarias, os objetos de metal trabalhados com perfeição, o queijo de cabra, o chá e o fumo de pipa fortes, inebriavam-lhes o cérebro. - É lindo, Muhammed; se não fosse você não conheceríamos lugares tão diferentes – cumprimentou Markus.
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- É, adorei a pipa – brincou Daniel – só que eu meu país botamos um fumo diferente...mais natural! Muhammed pareceu não entender a brincadeira e continuou a liderar a ronda: - Vamos por aqui; vocês vão gostar. Entraram num beco sujo; do fundo vinha um cheiro insuportável. Ambos não sabiam onde estavam, mas queriam se mandar: - Calma, esperem. É aqui que tingimos os tapetes. - Nossa, que maneiro; é assim que se faz? – observava espantando Daniel olhando aquele monte de peles de carneiro e resto de lã amontoados. Mesmo curioso, tentava respirar só pela boca para poder suportar o cheiro, enquanto ouvia o resto da explicação. - Bom, agora que já conhecem o processo, venham conhecer o escritório. Lá dentro um senhor grande e gordo ofereceu-lhes chá: - Então, meus filhos, o que estão achando do Marrocos? - Estamos adorando – respondeu, Markus, gentilmente. - Abdul – gritou – traga nossos tapetes para os senhores olharem. Daniel se ouriçou todo mas, se contendo, explicou: - Muito obrigado, senhor, mas já olhamos muitos hoje. São realmente uma perfeição. Meus pais adorariam ter um. Vou lhes enviar o endereço daqui para quando, nas férias, visitarem o Marrocos. O senhor, imperturbável, começou o ritual da tortura: da mesma forma que nos outros lugares, passava e repassava cada
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uma das peças, de modo a constrangi-los tanto que, não aguentando mais, acabassem por ceder e comprar qualquer um. Daniel e Markus, num acesso telepático, se levantaram ao mesmo tempo: - Muito obrigado, mas temos que ir – falou firme Daniel. - Mas vocês não vão comprar nada? – perguntou o senhorentão por que estão aqui? - Porque Muhammed nos trouxe – respondeu agressivo. Depois de uma meia dúzia de frases ditas rispidamente para Muhammed, naturalmente em árabe, o senhor se virou para os dois e impávido disse: - A visita ao meu estabelecimento custa cinco dólares para cada um. Os dois olharam atônitos, mas sentiram que a barra ali dentro, naquele beco imundo, com aquele gordo nervoso, não era nada parecida com o centro de Viena. Pagaram sem discutir e foram saindo de fininho. Lá fora, aliviados, mas putos da vida com Muhammed, ficaram esperando cinco minutos para tomar satisfações. - Este merda não vai aparecer nunca mais. É melhor esquecermos que pagamos cinco dólares para essa visita ao cu do carneiro e tentarmos achar a saída. - Vamos perguntar naquela loja – concordou Markus, querendo se afastar rápido daquele trem fantasma. Na lojinha ninguém se mostrava minimamente interessado no destino dos dois. Olhavam-nos como se fossem crianças perturbando a conversa dos pais. - Por favor – dizia Daniel em francês – onde é a saída?
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Continuavam todos a conversar entre si, sem ao menos dirigirem um olhar aos dois gringos. Sem outro jeito, então, decidiram tentar achar o caminho sozinhos e foram andando sem qualquer direção. AS ruas eram todas iguais e dava para ver que na certa não seria fácil encontrar um dos portões da medina. Estavam, mesmo, na maior roubada. Depois de umas quinze quadras Muhammed apareceu sorrindo: - Estão perdidos, meus amigos? Segui-os e noite que estão andando em círculos. - O que você acha? – perguntou Daniel muito puto, mas sabendo que se desse uma porrada na cara dele poderia acabar linchado. - Vocês não compraram nada. Meu tio é um homem muito ocupado. Perdeu muito tempo sentado com vocês. - Seu tio que se foda; você sabia que não íamos comprar nada. Porque nos levou lá? - Então está bem; podem ir. É fácil achar o caminho. Markus, que a cada hora ficava mais decidido, não esperou por mais nenhuma frase e foi andando sem olhar para a cara de Muhammed. Este, com um sorriso debochado, falou alto: - Se vocês pagarem por um guia posso levá-los para fora. - Vai à merda, cara – esquentou Daniel, seguindo Markus. Os dois andaram meia hora por aquelas ruazinhas e nada de encontrar um dos portões. Muhammed, de propósito, tinha-os levado para o centro da medina. Para surpresa deles, entretanto, num cruzamento qualquer, ele apareceu mais uma vez:
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- Estão perdidos, meus amigos? - Não, só estamos passeando – respondeu Markus, continuando a andar. - Não se preocupem, vou leva-los para fora, é só me seguir. Sem outra saída, seguiram o marroquino e depois de quinze minutos, aliviados, enxergaram um dos portões. - Fácil, não? – encarnou Muhammed. - É, para você e sua família – respondeu seco Markus. - Calma, meus amigos, em mim vocês podem confiar. Eu só estava brincando. Também por causa de vocês levei uma chamada de meu pai e de meu tio. - Brincadeira legal – Daniel cortou a conversa. - O que mais vocês querem? - Nada, obrigado, daqui sabemos o caminho do hotel – respondeu Markus. - Não querem nada mesmo? – perguntou olhando direto para Daniel. - Não, quero apenas o meu travesseiro que está me esperando. - Você não quer um pouco de haxixe? Daniel se surpreendeu com a pergunta tão direta mas, lembrando-se de que havia feito a brincadeira inicial, e porque estava fissurado, nem questionou: ainda deu uma acalmada geral. - É, pode ser – falou sério, mas agora olhando Muhammed com mais respeito. Markus, não gostando nada da conversa, disse na hora: - Eu vou voltar para o hotel.
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- Calma, Markus, vamos dar só uma fumada. Quanto é que é, Muhammed? - Eu ofereço a vocês, pra compensar o dinheiro que deram a meu tio. - Não; queremos comprar. Quanto é? - Tudo bem; o problema é que não tenho aqui; está tudo lá em casa. - Eu vou voltar para o hotel – insistiu Markus. - Ok, brother, a gente se vê mais tarde no hotel; vou lá rapidinho e volto. Markus não quis argumentar e tomou a primeira rua em direção à pensão. - Vamos pegar um táxi porque não é muito perto – disse Muhammed. - Está bem, vamos logo. É do bom? - O amigo vai gostar. Rodaram uns vinte minutos passando por dezenas de ruas estreitas onde crianças, bicicletas, jumentos, carros caindo aos pedaços e centenas de pessoas se amontoavam. O táxi, um Ford amarelo bem velho, ia engasgando e soltando fumaça. - É aqui; pode parar. A rua era como as outras. Casas brancas de dois pavimentos, de teto plano, com cor avermelhada pelo pó da terra. Entraram na casa: na sala, com poucos móveis, uma televisão preto e branco e uma mesinha com um telefone. Num canto, uma bandeja dourada com um aparelho de chá; almofadas com panos coloridos trançados com fios dourados; um grande espelho com a borda também dourada; poucos quadros, com paisagens de campo ou com
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motivos religiosos. A casa não era pequena, o que levava Daniel a concluir que o negócio de tapetes do pai não era dos piores. Enquanto estavam na sala passou uma criança nua, suja de terra, com uma chupeta na boca. Lá de cima, no outro andar, ouviuse uma voz forte, de mulher, perguntar qualquer coisa. Muhammed respondeu prontamente. Daniel concluiu que deveria ser sua mãe. - Vamos ali para o porão, que é o meu quarto. Desceram uma escada, no escuro, e entraram num quarto sem janelas. As roupas estavam amontoadas pelos cantos e o colchão colocado em cima de um tapete de palha; como na sala, uma mesinha, no canto, com um telefone. - Sinta-se em casa, que vou até a cozinha. Daniel sentou sem falar nada. Cinco minutos depois Muhammed voltou com uma bandeja com dois copinhos de chá. - Para o amigo. Brindemos! - Obrigado, Muhammed, mas assim que bebermos o chá gostaria de ir embora, pois o Markus está me esperando. Beberam o chá e fumaram dois ou três. Daniel ficou completamente desarvorado e om uma sensação que nunca tinha tido antes. Queria se levantar mas não conseguia. Os olhos pesavam e ele mal podia falar. Via tudo turvo e mesmo forçando não distinguia bem o que estava vendo. Muhammed saiu do quarto e fechou a porta. Daniel tentou se levantar e por três vezes caiu. Parecia que estava num grande porre, mas a sensação era a de quem tivesse tomado, em excesso, remédio para dormir. Se arrastou até a porta e viu que estava trancada. Voltou para a cama e dormiu. Acordou com o barulho da fechadura. Muhammed entrou com outra pessoa:
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- Parece que o meu amigo estava com sono; quero lhe apresentar um outro amigo. Seu nome é Rachid. Daniel estava com dor de cabeça e mal-humorado: - Escuta, por que você trancou a porta? Quero ir embora agora. - Eu não tranquei a porta – mentiu – você estava com sono e dormiu. Agora é melhor ficarmos os três aqui, porque é madrugada. - É melhor eu telefonar para o Markus. - O telefone está quebrado – disse Muhammed, logo após falando em árabe com Rachid. Este abriu um saquinho plástico e tirou uma pedra de haxixe. Por reflexo, Daniel passou a mão no bolso de trás e sentiu que estava sem o passaporte. O sangue subiu à cabeça e ele começou a falar alto: - Muhammed, onde está meu passaporte? - Fale baixo que meus pais estão dormindo. - Meu passaporte sumiu – Daniel falou um pouco mais piano. - O amigo deve ter deixado cair no táxi. - Muhammed – gritou Daniel se levantando – não deixei porra nenhuma. Quero meu passaporte. Rachid se levantou, também, ameaçador; a coisa parecia que iria enruçar para o lado de Daniel, quando alguém, lá da sala, gritou alguma coisa. Muhammed, assustado, pediu para que todos fizessem silencia, mas o brasileiro não parou. - Me dá meu passaporte! - Calma que vou ver se está lá fora – disse, enquanto abria a porta e saía com Rachid.
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Um desespero baixou em Daniel. Estranhamente, não estava com medo. Sabia que tinha de sair daquele lugar a qualquer custo. Suava frio e tremia, mas a raiva era maior do que a paúra. Pegou o telefone para ver se funcionava. Como dava linha, começou a revistar o quarto para tentar uma lista telefônica. Não encontrando, tentou abrir a porta mas, novamente, constatou que havia sido trancada. Começou, então, a revistar as roupas de Muhammed: dentro do bolso deu ma jaqueta encontrou um canivete automático. Por instinto, colocou-o no próprio bolso. Muhammed voltou pouco tempo depois. Estava sozinho. Com um sorriso cínico, propôs, calmamente: - Peguei seu passaporte para ter garantia de que você pagaria o haxixe que fumou. São cem dólares. - O quê? Nós fumamos só um pouco. Você tá maluco? - O preço é cem dólares porque é um artigo proibido. Custa muito caro – falou com a maior cara de pau. - Muhammed, me dá meu passaporte. Dentro tem dez dólares; pode ficar com eles. Já é mais do que suficiente. Parecendo que não era com ele, o marroquino insistiu: - Meu amigo me deve cem dólares; só devolvo o passaporte mediante o pagamento. Daniel sentiu que era agora ou nunca: tendo consciência completa do que estava fazendo, tirou o canivete do bolso e pressionou o botão; agarrou por trás o pescoço de Muhammed numa gravata e encostou o canivete na jugular. - Ou você me dá o passaporte, ou te mato agora. Daniel, que nunca havia feito coisa parecida, sentia que ia perdendo a força nas pernas, mas notou que o cara estava
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apavorado; com isto apertou o pescoço ainda mais. Muhammed tirou o passaporte do bolso e tentou entregá-lo: - Põe aqui no meu bolso – disse Daniel sem soltá-lo – agora telefone para um táxi. - A esta hora? – murmurou sufocado. Daniel sentiu uma vontade impulsiva de cortar o pescoço dele e pressionou levemente a lâmina. Muhammed engoliu o restinho de saliva. Daniel o foi empurrando até o telefone e o fez chamar um táxi. Esperaram quinze minutos naquela posição. Parecia que tudo era um pesadelo ou um filme de máfia: o brasileiro foi cutucando Muhammed até a porta. Subiu a escada sem soltar o pescoço dele. A casa estava escura, mas se ouvia passos de gente no andar de cima. Na rua o táxi estava esperando e Daniel entrou rápido. Na saída da casa havia finalmente soltado o pescoço do marroquino e se sentia vingado: Muhammed tinha se mijado todo. Daniel disse o nome da pensão ao motorista e perguntou as horas. Ficou mais aliviado quando soube que ainda eram onze da noite. Chegando no hotel, pediu ao táxi para ficar esperando, porque queria pegar suas coisas e sair rapidamente de lá, pois estava com medo de que Muhammed voltasse acompanhado de alguns amigos. Subiu a escada correndo e bateu na porta ofegante: - Abre a porta Markus, sou eu. Markus abriu a porta com uma cara transtornada: - Eu já não sabia o que fazer. Já estava pensando em chamar a polícia. - Calma, está tudo bem, arruma sua mochila e vamos embora já. No caminho eu te explico.
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Markus não falou nada, parecendo que sabia o que havia acontecido. Em poucos minutos já estavam pagando a conta e pegando o táxi em direção à estação de trem. No caminho, o alemão, antes que Daniel pudesse falar qualquer coisa, foi contando a situação por qual passou: - Você não imagina o que houve quando nos separamos lá na medina – falou Markus, abrindo o botão da camisa que deixava aparecer melhor o pescoço e os ombros. - O que é isto; que marcas são essas? - Quando eu estava voltando para o hotel um homem começou a me seguir. Mudei de lado da calçada e nada. O homem continuava atrás de mim. Para meu azar estávamos numa rua deserta: aquela do parque. Tentei sair correndo, mas ele me pegou. Me agarrou com suas unhas que pareciam umas garras. Uma merda. Tentei ainda conversar, mas ele nada. Queria meu dinheiro e o passaporte. O dinheiro até que eu dava, mas ficar sem passaporte aqui no Marrocos, nunca. Reagi e tentei dar um soco nele. Ele me deu um no meio da boca. - É mesmo, eu não tinha visto, está machucada! - Mas foi até bom porque ele teve que me soltar. Caí no chão, mas quando me levantei usei toda a minha força para correr. Só pensei em velocidade. Não sabia que podia correr tanto. - Pera aí, Markus, como era o cara? - Não deu para ver direito, só me lembro que usava um jaquetão vermelho. - Só pode ser o Rachid. - Quem?
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- Tenho certeza de que o Muhammed mandou o Rachid, um amigo dele, seguir você para te roubar. Que filho da puta! Mas desse cara estou vingado – disse, satisfeito, enquanto começava a contar o que tinha acontecido. - Que história, Daniel, mas termina de falar lá na estação, que estamos chegando. Vamos ver se damos sorte de pegar um trem agora à noite.
Como o trem noturno tinha saído às 7:30, os dois decidiram gastar um dinheiro a mais e ir para um hotel legal que tinham visto. Tinha até piscina. No outro dia resolveram pegar o trem da noite para poder aproveitar o sol. - Porra, Markus, já estou começando a gostar do Marrocos novamente. Esta piscina está demais. Aqui a gang do Muhammed não vai nos encontrar. Ele deve estar pensando ou que fomos embora ou que estamos num outro apart-bordel qualquer. Dá vontade de ligar para ele e convidá-lo para vir aqui. Dar uns caldos nele. - Aí você me empresta o canivete suíço e eu convido o amigo dele para um banho de sangue. - Ih, o alemão está enfezado! Tá até virando homem. - E você com este canivete suíço, vai fazer o que com ele? Me lembro daquela história que você me contou da prostituta que não queria dinheiro e só canivetes suíços, para quando ficasse velha fazer troca-troca com os escoteirinhos...
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- O tedesco bundão, agora está aprendendo a ficar engraçado. Vou lhe dar é uma porrada. - Calma brasileirinho; como é mesmo?... carioca esperto! - Ô Markus – falou Daniel para mudar de assunto – depois daqui vamos comer aqueles espetinhos de carneiro e beber chá até morrer, falou? Nisso um marroquino deu um salto, tipo mortal, na piscina, espalhando água para todo lado. Não contente, voltou e deu um outro bem próximo dos dois. Markus e Daniel nadaram para o outro lado da piscina. O marroquino viu e voltou a dar um salto perto deles de propósito. Rindo, disse qualquer coisa em árabe. O jovem de traços bem ocidentais, embora tivesse cara de não ser mais velho que Markus, era muito forte. Corpo de quem faz water-polo: - Porra, agora só faltava essa. Este Hulk encarnar na nossa. - Não vai xingar, que se ele ficar nervoso, vai bater em nós dois juntos. - Ele não tem cara de entender inglês. Quer ver? Ô seu boceta fodida, você vai se foder. O marroquino pareceu não ligar e deu um outro salto, agora do tipo trapalhão, jogando água na cara de Daniel. - Dar porrada nele eu não posso, mas xingar já me satisfaz – disfarçava Daniel dando umas risadas, enquanto dizia – você é um grande filho da puta. O marroquino encarou Daniel e, sem raiva, disse num ótimo inglês: - Você fala palavrão muito bem. É inglês? Daniel, completamente sem graça, sem saber o que falar, já com medo de apanhar, falou tentando parecer tranquilo:
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- Não, sou brasileiro. E você? O marroquino, na maior paz, riu e estendeu a mão: - Eu estudo business em Londres e estou aqui de férias, meu pai é um dos donos do hotel. Para agradável surpresa, Muhammed era super gente fina. Ficaram conversando por umas duas horas. Quando ele foi embora, Markus não deixou passar: - Você estava muito risonho, ficou com medo do Muhammed? - Não – Daniel mentiu – é que ele é o maior barato, Se não, mesmo ele sendo mais forte, eu dava umas bombas nele. Markus, como sempre educado, não insistiu na brincadeira. Preferiu propor irem logo embora. Pagaram a conta do hotel e foram andando a pé em direção a um restaurante, que não era longe da estação. O lugar era tranquilo e sombreado, já que tinha umas árvores na calçada. Os dois sentaram numa das mesinhas do lado de fora: - Vamos pedir logo o que quisermos, pois o trem parte às 7:30 – lembrou Markus – e ainda temos que comprar as passagens. Comeram um montão de carne e ficaram lembrando a borração de Muhammed. O final da tarde estava lindo. Era o melhor dos mundos.
Chegaram à estação em cima da hora. A fila estava enorme e, no sufoco, tiveram que dar uma grana ao condutor para que ele lhes vendesse passagens por fora. Saiu quase o dobro do preço.
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- Porra, esse trem está cheio demais. Acho que não vai dar pra sentar – reclamou Markus. - Também, não sei o que é pior: ficar em pé aqui ou sentar nesses bancos de madeira. Os outros dois trens que pegamos eram bem melhores. Mas não chia, que amanhã de manhã estaremos dentraço do ferry para a Espanha, Vamos a la playa! - Depois do hotel de ontem estou cada vez com menos dinheiro. Não sei se vai dar para chegar em Berlim – Markus deu o toque, sem preocupação. - A gente dá um jeito. Lá pela meia-noite, Markus cutucou Daniel. Os dois tinham arranjado um canto na passagem entre dois vagões e estavam sentados, encolhidos, com as pernas espremidas por outros corpos e pela parede do vagão, tentando dormir. - Estou morrendo de vontade de ir ao banheiro. - Vai cagar aqui no trem? - Não, acho que foi o excesso de chá que bebi no jantar. - Ô cara, tenta segurar. O banheiro é no outro lado do vagão. Você vai ter que perturbar todos que estão aí pelo chão. Tenta dormir e esquece. Meia hora depois, Markus insistiu: - Não dá para segurar. Vou até lá. - Então vai, que eu guardo o lugar pra você. Markus foi passando quase pisando na cabeça das pessoas, pedindo desculpas, ouvindo reclamações. Demorou cerca de dez minutos para cruzar o vagão. No outro lado, entre os vagões seguintes, estava bem melhor. Tinha só cinco homens malencarados e uma cadeira de ferro que ninguém estava usando.
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Como havia gente no banheiro, Markus resolveu sentar para esperar; na certa, o cara do banheiro devia estar passando mal, porque estava demorando demais. Markus sentia que ia arrebentar. O pior foi quando um dos cinco caras se aproximou falando num péssimo inglês: - Está bem na cadeira, meu amigo? Markus deveria ter respondido em alemão mas, como não pensou, falou: - É confortável. Um homem de aproximadamente quarenta anos, pesando mais de cem quilos, com bigode e barba resolveu encher seu saco: - Posso sentar no seu colo? Markus ficou vermelho: - O quê? - A cadeira está confortável para você, mas nós estamos em pé. Posso sentar no seu colo? – perguntou o homem, ao mesmo tempo em que ia sentando. Não entendendo nada, o alemão se levantou quase num salto: - Me desculpe, não sabia que a cadeira já estava ocupada pelo senhor. O homem falou alguma coisa em árabe e os outros quatro riram. Em seguida virou-se para Markus: - Voltei aqui, meu amigo, pode sentar; tem lugar para os dois. Para a sua sorte o cagão que estava no banheiro abriu a porta. O cheiro de merda era horrível. Markus respirou fundo e preferiu enfrentar a peste bubônica a ter que ficar naquela situação cavernosa. Aliviou-se completamente e jogou água no rosto
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pensando numa estratégia para sair do banheiro. Queria acreditar que, por milagre, os caras não estariam lá fora quando abrisse a porta. Quem sabe sairia correndo... abriu a porta devagar, mas os cinco continuavam conversando e fumando cigarro forte. O mesmo homem se virou para ele e, enquanto os outros riam, falou: - Então, meu amigo, o banheiro estava perfumado? Markus não sabia o que dizer. - Como você se chama, meu jovem? - Markus – respondeu intimidado. - De onde você vem? - Da Alemanha. - Como é a vida lá? - É boa – falou olhando para o chão, pensando no que dizer para poder se mandar dali. Mas o homem insistia: - E as garotas? - perguntou, fazendo com a mão um gesto que mostrava que gostava de mulheres com peitos grandes. Markus enrubesceu e, querendo parecer natural, disse: - As mulheres aqui também são muito bonitas. Os cinco continuavam a rir e o cara continuou: - Você é tão jovem, já fez sexo? Markus tentou abrir a porta para o vagão, mas um dos cinco botou o pé impedindo. - Ou você prefere se masturbar? – disse o cara, enquanto passava a mão no pau dele. Markus estava apavorado, principalmente porque não consegui entender nada do que falavam entre eles. A gargalhada rolava. - Pare com isto – disse sério, encarando o homem.
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- Por que; meu amigo não gosta? – falou, passando novamente a mão. - Deixe-me sair, insistiu, ainda tentando não entrar em pânico. Era como se falasse com crianças de sete anos. Todos ficavam rindo como abobados e o mais malandro continuou: - É assim que eles fazem? Markus, agora, implorava: - Por favor, me deixe sair daqui. O barulho do trem impedia que alguém o ouvisse caso gritasse. Markus não sabia o que fazer. O homem passou a mão na sua bunda. - Pare com isto, vou chamar a polícia. - Polícia? Ele vai chamar a polícia – falou o homem em inglês e depois mais uma frase em árabe para a felicidade da plateia. Markus tentou mais uma vez forçar a passagem. Usou toda a força do seu corpo para tentar se enfiar entre os caras e alcançar a maçaneta. A banha da barriga do homem, espremendo-o contra a parede, causava náusea; teve que passar por uma espécie de corredor polonês de esfregões. Os cinco se comprimiam perto da porta e encostavam em seu corpo. Markus fez força enojado e conseguiu finalmente passar, quase vomitando pela sensação do contato dos corpos, das mãos lhe alisando e das caras de barba malfeita contra seu rosto. Respirou aliviado quando fechou a porta e, quase chorando, foi passando pelas pessoas que dormiam sem ligar para as reclamações. Queria pisar, se tivesse coragem, em cada uma daquelas cabeças. Quando chegou perto de Daniel não resistiu e deu uma chorada.
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- O que é isso, cara? – acordou assustado Daniel – Tá tendo alguma transa? Markus não queria falar. A humilhação havia sido grande demais. Sabia que tinha que ficar em silêncio por uns minutos para não chorar novamente. Se sentia um fraco. Queria matar os filhos da puta. - Fala alguma coisa: nunca te vi assim. O que foi? - Deixa para lá, Daniel. É que quase tive que brigar. Uns homens grandes me provocaram. - Se quiser vou lá com você agora. - Não seja maluco, vamos dormir. Nisso Markus falou baixo, meio fatalista: - Só faltava essa. - O que foi, Markus? - Os filhos da puta roubaram minha carteira. - O quê! E o passaporte? - Não, o passaporte está aqui – mostrou por dentro da calça. - Vamos lá, isto não vai ficar assim. Vou aprontar o maior esporro. Vamos chamar a polícia agora mesmo. Markus ainda tentou, desanimado, se levantar; pensou melhor e disse: - Não vamos, não. É gente muito ruim, Pode ficar pior. É a palavra deles contra a nossa. Além disso, não falamos nem francês. Ninguém vai nos entender. Vai ser a mesma situação que passamos em Sevilha, só que agora os idiotas vamos ser nós. - Mas a gente explica – ainda tentou argumentar Daniel. As pessoas ao lado pediam silêncio e Markus falou bem baixo:
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- Deixa pra lá, só tinha um resto de dinheiro daqui e minha carteira de estudante, logo vamos estar longe deste inferno – disse, encostando-se contra as coisas de Daniel para ter um apoio e tentar dormir com um pouco mais de conforto. Pela manhã, já tendo ouvido a história verdadeira do que acontecera com Markus, quando acabaram de cruzar para Espanha, no ferry-boat, ainda sonado pela noite mal dormida, Daniel de uma de papa: ajoelhou-se e beijou o chão espanhol. - Não acredito que voltamos. Doce Espanha. Vou exorcizar nossas roupas para não carregar maus fluídos. Markus, sempre ingênuo, parecia não ter passado por qualquer sufoco: - Mas dizem que no interior é melhor. Que as pessoas são muito boas. Além disso, não vimos os tuarengues, a região dos Atlas, o deserto e os oásis...Eu queria andar de camelo. - Você não queria andar de camelo. Você é um camelo. Quer voltar lá agora? Legal. Fico aqui fumando uns e você vai lá com os beduínos. - Só estava pensando alto – falou Markus contemplativo – E agora, como vamos voltar para Berlim? - Primeiro vou comprar uma pedra e acender um dos grandes em homenagem aos deuses. Depois pensamos. Viva a Espanha! Muita marcha! Viva os Bascos livres e o puto do Gonzáles! – delirou Daniel. Depois de três horas na sombra, comendo pêssegos, melão e fumando vários, os dois começaram a traçar a estratégia da volta: - Somando o meu e o teu dá cento e setenta dólares – calculou Daniel.
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- É, não sabia que só tinha mais cinquenta. - Vamos tentar voltar de carona. - Mas aqui na Espanha não é fácil; ainda mais que somos dois. Daniel, torto, começou a inventar: - Lembra daquele cara que pedia dinheiro na saída do metrô de Gorlitzer, dizendo que era soro positivo? Acho que é a solução. Entramos num trem e cada um vai para um lado abrindo as cabines e, depois de pedir desculpas a gente fala que é soro positivo, que tá no fim da vida, que estamos na nossa última viagem, coisa e tal. Todo mundo vai ficar com pena, ou com medo de ser tocado por nossos dedos aidéticos, e dá o dinheiro. - Deixa de brincadeira, Daniel, que você está falando de um assunto que não entende. Agora vai brincar com a desgraça dos outros? Aquele cara na Gorlitzer podia mesmo ser soro positivo; você sabe que tem muitos junkies que se picam por lá, além do mais, com essa cara de saúde, ninguém vai acreditar. - Ih, o Lutero acordou! Está se lembrando da missa de domingo... Então tá bem, eu me arranjo pra arrumar dinheiro pra nós dois. Você não vai virar pecador. Não sei por que você leva a aids tão a sério. Não há o menor risco para você. - Todo mundo corre o risco. - Você não, porque está seguindo na íntegra as ordens do papa: abstenção até o casamento. Markus, já acostumado com a conversa de Daniel, desta vez achou graça: - O carioca esperto está cada vez mais talentoso... acho que tenho uma ideia melhor do que a sua.
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- Então manda lá, que eu quero saber das malandragens do gringuinho. - Eu já fiz isto uma vez para voltar de Veneza. A gente vai indo e compra um bilhete para a cidade mais próxima. Depois pegamos o trem na direção contrária, ou seja, sempre compramos de um que vai para o sul e apanhamos um que esteja indo para o norte. Os bilheteiros ficam meio desconfiados, mas nós falamos em alemão e gesticulamos. Fazemos cara de surpresa; dizemos que tínhamos certeza de que a direção era aquela. Na maioria das vezes dá até para convencer e sair na próxima estação, com gestos de solidariedade pelo azar de termos errado o caminho. Além disso, muitas vezes demora duas, três ou mais horas para aparecer um bilheteiro. Quando eles não acreditam ficam putos da vida mas não podem fazer nada porque, afinal, compramos o bilhete. Em dois ou três dias estamos em Berlim.
A volta do trem ia indo bem. Na Espanha descidas mais rápidas, quase sempre com xingamentos. Agora, na França, tudo ia melhor. Perto de Nice um senhor e cinco jovens tentaram entrar na cabine dos dois. Não dava. De qualquer maneira, sentaram-se três deles e o líder do grupo. Os outros dois se acomodaram nos banquinhos do corredor. Daniel e Markus, apesar de perderem o conforto, não ficaram chateadas, porque o grupo parecia legal. Como qualquer italiano, começaram a fazer o maior esporro. Um pegava a revista de futebol do outro... o outro gritava... o senhor tentava intervir e levava uma porrada na cabeça com a revista em
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forma de bastão – todos riam. A maioria de cabelo comprido, um deles parecendo um punk: calça rasgada e todos os alfinete a que tinha direito. Eles mexiam com as meninas que passavam pelo corredor; abriam e fechavam a porta da cabine, brincando infantilmente. O senhor, paciente, apenas olhava e sorria. Já na Itália, faltando vinte minutos para Gênova, o senhor virou-se para Daniel e falou em italiano: - Você compreende a nossa língua? - Entendo sim. - Gostaríamos de nos apresentar – falou o senhor enquanto tirava um papel do bolso. Somos um grupo da juventude cristã e estamos indo para Gênova. Antes de chegar, se não incomodarmos os dois, desejaríamos fazer uma leitura. Daniel concordou por reflexo, mesmo antes de perguntar a Markus. Não tinha a menor ideia do que seria a leitura. Os jovens continuaram a fazer algum barulho, mas pareciam meio sem graça; ou talvez fosse esta a impressão causada a Daniel pela súbita mudança de atitude. - Você é cristão? - Sou sim – respondeu Daniel, ainda por reflexo, um pouco intimidado por esta pergunta fora do habitual. O senhor entregou-lhe então, um papel que acabara de tirar do bolso e pediu que lesse com atenção: - Sou padre e companheiro de viagem do grupo. Estamos voltando para a escola. Pertencemos à Opus Dei. A imagem que lhe dei é a do nosso fundador. Tem nos dado muita sorte e nos ajudado a realizar a empreitada da vida. É realmente um poder milagroso.
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Tivemos diversas oportunidades de constatar a capacidade deste santo homem, de nos beneficiar com seus milagres. Daniel ouvia espantado o padre. Como ele estava vestido normalmente, nunca poderia imaginar que não fosse o pai de algum deles. Parecia inclusive ser um pai superliberal, pois as brincadeiras com ele era a toda hora. Talvez, mais do que um pai, ele lembrasse um professor que acompanhava o grupo. Como era forte, provavelmente um professor de Educação Física. Daniel segurava o santinho totalmente sem jeito, mas o olho do padre era de total convicção. Era evidente que acreditava em milagres: - Nossa congregação visa a caridade e a luta pelos direitos do homem neste mundo materialista. Unidos venceremos os perigos que assolam a juventude; principalmente as drogas e o socialismo ateu – falou mais empolgado o padre. O brasileiro concordou imediatamente para não contrariar o reverendo, temendo que ele desse de pastou Jim Jones e propusesse um suicídio coletivo. Apenas notou que ele estava entrando em transe. Havia colocado uma mão na testa e a outra sobre o livro da verdade: do fundador da ordem, naturalmente. Um dos jovens lia uma página de um livro similar que cada um carregava. O silêncio do resto do grupo era total. Markus fazia cara de impressionado e parecia rezar baixinho: deve estar pensando no seu tempo de amarração com os padrecos – imaginava Daniel – espero que ele não comece a acreditar neste papo bravo, ou vai ficar insuportável; afinal já tem quase tudo para entrar no caminho da santidade; quem sabe ele pode vir a ser o santinho de Kreuzberg?
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Por quinze minutos o jovem lia e, depois de cada parágrafo, pedia dois minutos para meditação; o padre, ainda em transe, soltava sons incompreensíveis: deve estar falando direto com o santo – pensava o brasileiro corta onda. Daniel tentava entrar na corrente e fechava os olhos; não dava, a curiosidade era maior e ele os abria ver a cara dos outros. Bem embalados na meditação; achava graça, principalmente, na concentração de Markus. Mesmo querendo ser gozador, depois de dez minutos daquele real, Daniel começou a entrar, de leve, na roda. A verdade é que todos estavam muito concentrados e serenos. Um dos mais crédulo era o punk à italiana: um broche com o símbolo anarquista e no pescoço uma corrente com um crucifixo. O trem parou em Gênova. O padre tinha, poucos segundos antes, saído do transe. A despedida, como não poderia deixar de ser, foi de muito amor cristão; não, é claro, sem uma boa dose de sacanagem; afinal estavam em território italiano. O padre saiu com quatro dos estudantes. O último deles, no entanto, ficou na cabine: era magro e parecia mais jovem que Markus. Muito moreno, com o cabelo liso bem preto. Dava para ver que estava com vontade de conversar. Daniel, notando, perguntou seu nome: - Sou Mauro, estou indo para minha terra. - De onde você vem? - Eu moro em Gênova, na escola dos padres. Meu pai trabalho numa fábrica em Torino. Mas minha família é de Agrigento, na Sicília. É a cidade em que mora minha avó. Vou passar o resto das férias lá. Tenho muitos primos e amigos. Mauro falava animado e Daniel, curioso, tentava entender o seu jeito tão particular. A cada frase que soltava sobre sua terra os
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olhos brilhavam mais. Ele não parava de falar. Saltava de um assunto para outro, como num sonho. Quase ao mesmo tempo falava dos frutos do mar que sua avó prepararia no almoço da chegada, dos figos e das azeitonas que ele iria colher na montanha, da cama do quadro dando para o jardim interno, das ruínas gregas e romanas de sua cidade, de uma amiga que havia namorado nas últimas férias. Falava que só iria se casar com uma mulher virgem. Daniel, não entendendo o porque de tantos assuntos diferentes apenas ouvia; e Mauro, agora, movimentando a mão direita como se ela fosse uma navalha, passava a contar a última vez em que seu tio havia brigado para defender a família, pois não havia pago a proteção dos mafiosos sobre seu negócio; que tinha apanhado, mas que juntara seus outros irmãos e botara para correr os mafiosos; que todos os seus tios eram inscritos no partido comunista e que não entendia por que os padres tanto implicavam com o comunismo; que morava em Gênova, mas queria voltar para o sul; que havia morado em Verona, mas que fora maltratado na escola por ser siciliano. Falava como que confessando, desabafando, sonhando com as férias na sua terra. Descarregando a repressão do colégio dos padres e o silêncio de ser parte de uma minoria vivendo distante de seu lugar de origem. Daniel não podia entender que a religião era natural na vida dele e que, por isso, aceitasse a escola sem contestar; que viver em Torino era uma necessidade para os pais dele, que haviam saído do sul para tentar um trabalho mais bem pago. Não podia entender que agora, sozinho no trem, ele começasse a sonhar com a comida, com o cheiro, com a paisagem, com a gente de sua terra. A cada minuto era Agrigento mais
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próxima e, enquanto não chegava, o sonho ajudava a acalmar o sangue. Enquanto Mauro, agitado, continuava a pensar na sua Sicília, outro bilheteiro acabava de aparecer para pedir as passagens aos dois, que, como sempre, fazendo cara de surpresos, mais uma vez se viram obrigados a parar na cidade seguinte. Dessa vez foi Pisa. - Ótimo que paramos em Pisa – falou Daniel – um dos sonhos da minha vida era ver a Torre; além disso, a cidade fica perto do mar e eu estou a fim de aprimorar o meu bronzeado antes de chegar em Berlim. Era final da tarde e a dupla foi andando em direção à Torre. Antes de chegar lá entraram num mercado e, enquanto Markus comprava pão e presunto, Daniel se abastecia - O que é isto? – perguntou Markus, admirado. - Atum em lata e queijo gorgonzola, para melhorar o nível do rango – mostrou o brasileiro tirando as coisas do bolso da jaqueta – Deus ajuda quem rouba dos ricos para dar aos pobres, não é gringuinho? Não foi assim que falou aquele padre do trem que quase te levou para o convento? - Daniel, você sabe que não gosto dos seus roubos. - Agora já é tarde; vamos tratar de comer num lugar maneiríssimo. Só deixa eu comprar umas cervejas. Prometo desta vez não roubar; afinal, todos são filhos do Senhor e o governo italiano precisa arrecadar mais impostos. Na praça, depois de comerem, a tradicional surpresa com a inclinação e, em seguida, a subida na torre: ambos de boca completamente escancarada diante da beleza do conjunto arquitetônico.
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- Dá até tontura subir neste caracol e ficar tão inclinado. Se fosse grandaço – pirava Daniel – assim bem largo, eu ia descer de skate radicalizando. Esta turistada ia virar baliza de boliche. - Calma, Daniel, presta atenção naquele muro ali; daqui de cima dá para ver como era o antigo contorno da cidade; ou será que era só para proteger esta parte? - Sei lá, o que sei é que deveriam proibir tanto turista de subir aqui. Um dia esta porra cai. - É, todo dia sobem milhares de pessoas e vai ser agora que vai cair... - De qualquer maneira, eu li que ela vem inclinando cada vez mais; mais ou menos como era a corcunda da minha bisavó...sabe de uma coisa, olhando este gramado e a muralha eu tive uma ideia demais. - Qual foi? - Tedesquinho, hoje nós vamos dormir num castelo. - Já vem o brasileiro com suas maluquices... com que dinheiro? - Que dinheiro, que nada. Vamos dormir com os nossos sleepings aí neste gramado. Hoje, esse entardecer promete uma noite coberta de estrelas; o muro é a parede do nosso castelo; não é meu Conde? Esperaram escurecer; Markus continuava um pouco grilado com a possibilidade da polícia aparecer e não achar graça da folga. Daniel, nem se tocando, se estirou todo, bebeu tudo a que tinha direito e dormiu com os anjos. Sonhou que comia a Luma de Oliveira.
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De manhã acordaram pouco antes do nascer do sol. A luz do início do dia, ainda sob uma neblina bem leve, fazia o roxo do amanhecer se misturar com os prédios cada vez mais brancos. Nenhum dos dois queria abrir os olhos completamente, para poder permanecer neste estado onírico. Alguns pássaros cantando, o dia ficando cada vez mais azul e os prédios cada vez mais brancos. Era a hora de levantar e arrumar as coisas: a turistada não deveria tardar.
Chegando na marina da Pisa, Daniel, acostumado com as praias no Brasil, sentiu uma decepção. Fora a rua principal, com uma praia fraquinha, os clubes com barracas e mesinhas quase até a água. Na rua os italianos se mostrando com os seus carros e roupas da moda. Daniel prestava atenção nas italianas, que não lhe davam muita bola. A concorrência era forte. Markus olhava para todo o movimento, parecendo gostar. - Essas italianas fingem que não nos vêem; mas se você olhar rapidinho, dá para ver que elas olham na boa. De corpo, as brasileiras dão de dez. É só fazer o teste da areia. Mas aqui elas se produzem de montão; de qualquer maneira, pensando bem, acho que não estou fazendo muito sucesso. Esta minha sunga não está suficientemente pequena. Ouvi falar que as mulheres daqui gostar de ver a nossa bunda – Daniel pensava em voz alta, arregaçando a sunga. Markus achava aquela conversa imbecil e continuava a olhar distraído as mulheres que passavam...
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- Porra, se eu não arrumar uma mulher hoje vou ficar doente. Já está me dando até dor de barriga; e olha que eu bati uma punheta ontem – viajava Daniel. Markus continuava distraído. - Ô Tedesco, você com este corpo de menininha até que é passável; vai ver que foi por isso que os árabes te agarraram. Vê se deixa crescer o bigode ou, se não der, põe um postiço. Parar mudar de assunto, Markus propôs que fossem tomar umas cervejas. Sabia que Daniel não resistiria: - Ainda temos dinheiro pra umas cervejas? - Claro, brother, agora mesmo; vamos andando até a cidade. Li, no balcão de informações turísticas, que no final da tarde começa uma feira lá no centro. A feira não tinha nada demais e os dois, já cansados de ir e vir, sentaram para tomar as últimas cervejas daquelas que tinham comprado no mercadinho. Por acaso o lugar que escolheram ficava ao lado de um trailer que vendia cerveja. Depois de cada um beber cinco latinhas, a mulher do trailer gritou: - Ei, rapazes, é melhor eu convidar vocês para uma, porque estou com medo da concorrência. Se pegar esta moda de comprar cerveja quente e sentar no gramado do lado do meu negócio, estou falida. Os dois se aproximaram e a mulher abriu duas latas: - Muito bem, de onde vocês são? - Eu sou meio brasileiro, meio italiano, e este é meu amigo tedesco. - Você fala bem italiano; onde é que aprendeu? - Na casa da minha avó.
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- Como é que você se chama? - Daniel, e a senhora? - Senhora? Eu lhe pareço uma senhora? – falou Natalia se apresentando, enquanto apertava a cintura com as mãos para dar forma. Natalia tinha passado dos quarenta e era bem gorda; quase felliniana. Sobre os lábios pintados com um batom forte, um buço firme. - Então, os rapazes estão gostando daqui? – perguntou olhando cada um do pé até a cabeça, deixando o foco dar uma parada para imaginar o tamanho do pau: pareceu gostar mais do latino. - Você está crescido, deve ter muitas namoradas. Daniel, lavado por Baco, curtiu: - É, umas por aí. Nisso apareceu uma mulher linda e tanto Markus quanto Daniel desviaram o olhar. Natalia, entendendo, apresentou-a, se divertindo: - Gostaram? É minha filha. Mas tirem os olhos dela, que a minha menina só tem quatorze anos. - Quatorze anos? Já está na idade – brincou Daniel – olhando aquela menina da sua altura, com o corpo de mulher de mais de vinte anos. Natalia e Grazia, sua filha, riram enquanto mais cervejas eram abertas. - Esta nós pagamos; se não, o prejuízo vai ser grande – falou Daniel.
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- Onde os rapazes estão dormindo? – perguntou Natalia, ao prestar atenção nos sacos de dormir que os dois carregavam. Daniel, já pensando em estreitar contato com Grazia, se apressou: - Não temos onde dormir. A situação é calamitosa. - Vocês podem dormir lá em casa. O brasileiro já foi aceitando, todo animado, e traduzindo rápido para Markus: - Fomos convidados para dormir na casa da senhora; quero dizer, da Natalia. Markus balançou a cabeça de modo a agradecer. - Então está bem; vou fechar o negócio daqui a uma hora e vamos para lá – riu maliciosa a italiana. Daniel nem prestou atenção, de tão ligado que estava na Grazia. Ela, seguindo os passos da mãe, já nesta idade era uma exímia sedutora. Jogava com os dois amigos de maneira perfeita; para Markus dizia que queria aprender alemão e que queria um professor como ele. Falava isto risonha, pedindo a Daniel para traduzir. Puto da vida, ele traduzia rápido e monocórdico, enquanto ela o encarava passando a ponta da língua entre os dentes, com a boca um pouquinho aberta, movimentando o corpo com perfeição. Os dois estavam babando. Na hora de fechar o trailer, Daniel fez o máximo para ajudar, procurando ficar mais íntimo. Natalia se virou para a filha e disse: - Então você pode ir para a casa da Ada dormir lá. Os rapazes me ajudam a fechar o negócio. Daniel quase se despencou quando ouviu Natalia: tanto trabalho por nada – pensou. Mas agora que não dava mais para
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uma retirada, era melhor curtir o resto da noite. Natalia pegou uns pães, um garrafão de vinho tinto e salame. Parecia que a festa ia ser das grandes.
A casa não era longe da feira e no caminho ela falava o tempo inteiro; contava quem morava em cada casa, quem transava com o marido de quem, em qual das casas alguma filha tinha se casado grávida. Sabia da vida de todos e gostava de contar, enquanto andava balançando a bunda enorme bem apertada dentro do vestido estampado. Ria alto e satisfeita. Chegaram em casa, sentaram na cozinha e Natalia foi cortando o salame, abrindo o vinho e servindo as canecas. - A senhora parece que está a fim de mim – falou em inglês Daniel, enquanto Natalia foi até o quarto. - Vai ter que comprovar a fama; afinal, você é latino – Markus respondeu rindo. - Você tá é maluco. A italiana voltou logo, com um cravo fincado no decote do vestido, e começou a cantarolar a música romântica que havia posto na vitrola. O vinho corria solto. Daniel pensava o tempo todo na Grazia e, para falar qualquer coisa, disse: - Markus me contou que gostou tanto de sua filha que queria casar com ela. Natalia soltou uma gargalhada e falou:
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- Ele é mocinho e está mesmo pronto para a minha filha. Só que tem que noivar primeiro. Diz isto a ele. Daniel traduziu enquanto Markus prestava atenção sem entender porra nenhuma. - Você, por outro lado – Natalia olhou sacana – me parece que é mais homem e gosta de mulher mais experiente. Não é, rapaz? Mesmo com a ajuda do vinho, o brasileiro ficou vermelho. Deu uma tossida de susto e se esquivou: - Acho que Grazia vai ser a maior gata. Natalia, parecendo não ouvir, propôs: - Bem, rapazes, acho que já é hora de dormir. Você fala para seu amigo que ele pode ficar no quarto da Grazia, porque ela foi dormir fora. Você dorme no meu quarto, pois a cama é muito grande. Daniel engoliu seco: - Não, não quero dar trabalho. Durmo aqui mesmo; tenho um saco de dormir. - De jeito nenhum. Você é um viajante; tem de dormir, pelo menos um dia, de maneira confortável.
De manha Natalia parecia apressada. Pediu que Daniel e Markus andassem rápido, pois ela tinha que trabalhar: sentados m pouco mais tarde na frente de um mercado, onde haviam comprado pão e queijo para o café, deixavam o sol, ainda fraco, bater no corpo e fazer bem para o espírito. - Como é que foi a noite? Fodeu com a Natalia?
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Daniel, rindo, contou a história: - Quando ela me falou pra dormir na sua cama não acreditei. Mas era sério. Era quase uma ordem. Tomei rápido duas canecas de vinho para anestesiar e fui direto pra forca. Chegando no quarto, ela foi meio que tirando o vestido, meio que sei lá. Só tive o tempo de deitar na cama, de roupa e tudo, botar o travesseiro entre minhas pernas, me virar e dormir na hora. Ainda deu tempo para ver ela chegando nua com aqueles peitões e falar sussurrando... me da um beijinho.
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– III – ESTA ILHA CHAMADA BERLIM
- Não vou aguentar mais este serviço militar – Daniel reclamava para três garotas espanholas que sentaram ao seu lado no café da manhã – esse Albergue da Juventude é uma bosta – falava enquanto pensava que a única vantagem de estar ali era poder conhecer gente do mundo inteiro. Só ontem, no seu quarto, dormiram um malasiano, um japonês, dois suecos, e um americano – já estou há três dias acordando às oito e meia, correndo para o café da manhã, sendo expulso por causa da limpeza, voltando a tendo de dormir à meia-noite, para não ficar do lado de fora. Quem inventou este horário de funcionamento deve ter sido um general ou uma freira. - Também achamos uma merda – disse Carla. - Logo em Berlim – resmungava Daniel – vim para cá estudar, mas também quero saber da noite. Este hotel deveria ser para menores de treza anos. - O pior é que nós estamos sem dinheiro. Vamos ter de ir embora esta manhã – falou Cristina, enquanto pegava todo o pão, manteiga e geleia que estava na mesa, ia enrolando em guardanapos de papel e os colocava na bolsa. – É para mais tarde; a fome vai ser grande. Daniel achou graça no jeito das três e puxou conversa: - Mas vocês vão dormir aonde? - Por aí – Carla respondeu segura.
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- Por aí? - É, a gente se vira. - Quando é que vão embora de Berlim? - Amanhã de manhã. - Eu também estou a fim de me mandar desta merda de hotel. Posso ir com vocês? Quando forem embora de Berlim, arrumo outro lugar pra ficar. Carla olhou para as duas amigas e sorriu: - Vai bem, um homem para nos proteger é sempre bemvindo. Os quatro deixaram as mochilas na estação ferroviária central, nos boxes de guardar volumes, e saíram para dar umas voltas pela cidade. No final da tarde entraram num supermercado, e enquanto Daniel comprava dois garrafões de vinho, as garotas enchiam os bolsos com uma naturalidade que o impressionou: - Acho que minha rapaziada não faria melhor. Vocês são umas ladras da maior responsabilidade. As três acharam engraçado e Cristina explicou: - Não é nosso costume, mas a situação está nos obrigando. O pior foi ontem de tarde: estávamos sem dinheiro para o jantar e entramos num supermercado lá perto do Albergue. Quando estávamos saindo um segurança se aproximou e disse que queria olhar nossos bolsos. Foi o maior vexame. Queijo para todo lado. Nos levaram para uma saleta e falaram que iam chamar a polícia. Esta aí – disse Cristina virando-se para Isabel – começou a chorar e disse que seu pai a mataria se soubesse de uma coisa dessas. Acho que de início gostaram de nos pôr em pânico, já que aumentaram o terrorismo. Logo pensei na coisa mais triste que me vinha à cabeça,
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na morte do meu cachorrinho, e também comecei a chorar. Não sei como consegui, mas as lágrimas escorriam que nem uma cascata; quase ao mesmo tempo a safada da Carla entrou numa crise nervosa pedindo clemência; como num tribunal do Santo Ofício. Acho que o teatro foi tão dramático que surtiu efeito. Os dois alemães bobões ficaram todos moles. Carla imitava o sotaque do segurança: - Mas vocês não saber que era proibido? Papai não vai gostar nada, nada. - E nós começamos a dizer que não tínhamos dinheiro para comer – Cristina voltou a contar a história – e que o trem só iria sair no outro dia; que iríamos passar fome. Não é que o próprio segurança pegou uma parte das coisas que havíamos apanhado, levou até o caixa e, com seu próprio dinheiro, pagou e nos trouxe embrulhadas num saquinho! Então o homem, que nessa hora eu já estava achando a cara do Papai Noel, ou, pensando melhor, do Marlon Brando, falou que não deveríamos nunca mais repetir esse ato tão feio. É claro que fizemos a cara das três Madalenas mais perfeitas; só não dei um beijo na boca dele para não empolgar o velho.
Os quatro, cheios de boa energia, comeram sentados numa praça e foram andando sem pressa, em direção á Kreuzberg: - Soube que é lá que é mais agitado – falou Isabel.
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- É, eu também; mas até agora não fui lá por causa desta maldita hora de voltar para o hotel; me deram o nome de um tal de Madona na rua Weiner. Vamos até lá? Foi a primeira noite de Daniel com os alternativos. Estava deslumbrado. Aquele ambiente meio punk, mais alternativo do que punk, a possibilidade de se misturar com os caras mais velhos, parecendo ter anos de estrada, o excitava. Queria aparentar naturalidade mas ficava olhando para todos os lados. Tudo bem, ninguém prestava atenção no que ele fazia. As garotas também pareciam estar gostando: - É assim que eu imaginava Berlim – ele disse- não aquele footing desesperado na praça da igreja. - Mas lá tem uns cara doidões – interveio Carla. - É, mas parecem que estão fantasiados; só fazendo gênero; ou então, os junkies e a turma do porre lá da estação. Mas aí, pra mim é muita barra pesada. Aqui me sinto à vontade. Em casa... - Que garrafa de cerveja bonita aquela ali – apontou Carla. - Vou comprar uma cerveja para nós – Daniel se levantou cavalheiro. - Dezesseis marcos – disse em alemão o barman. - Quanto? – não entendeu o brasileiro. - Dezesseis marcos – repetiu agora em inglês o barman, com seu rabo-de-cavalo, camiseta de apoio à Nicarágua e corpo bem trabalhado pela malhação; desleixado mas aparentando saúde e cabeça limpa. Para fazer tipo, ou por tédio mesmo, mal olhava para a cara de Daniel. O brasileiro, surpreso, mas não querendo parecer turista, pagou levando sua primeira lição de Berlim: os bares dos
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alternativos vendem cerveja tão ou mais cara quanto os dos normais. Dezesseis marcos – pensou admirado Daniel – onde estes caras com cara de pouco trabalho arranjam dinheiro para beber por este preço? Quatro marcos por cerveja! É um roubo. Esses alternativos no Brasil estariam comendo pizza e bebendo caipirinha, sentados na melhor pizzaria. Acho que iam engordar de tanto se matar de comer no Degrau ou no Real Astória. Ou então não é problema de preço e sim de moda, estes caras e estas mulheres tão magros... até que é maneiro... agora, pagar tudo isto por uma cerveja não vai dar; acho que vou ter de virar um alternativo abstêmio. Enquanto pensava achando graça, mas um pouco chateado por ter jogado oito dólares nas cervejas, chega Carla, supersimpática, querendo dar uma força. - Deixe que te ajudo a levar – tocou no seu ombro. Daniel na hora se sentiu o cara mais feliz do mundo e esqueceu qualquer problema. Percebeu que tinha futuro. Tomaram a primeira cerveja e as três já queriam a segunda: - Olhem, gatas, não é por nada não, mas a cerveja aqui é além do normal; custa quatro marcos cada uma. - É, aqui em Berlim é mais ou menos este preço – falou Cristina, - mas nós pagamos a próxima, ainda temos algum dinheiro. Daniel, lembrando os fins de semana em Saquarema, propôs tomarem primeiro o vinho que havia comprado do lado de fora, para depois voltarem para matar a cerveja: - Está um pouco frio, mas este vinho tinto vai esquentar a gente.
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Saíram do Madona e se sentaram na escada da entrada de um edifício no outro quarteirão. O vinho descia como néctar. Os corpos se aproximavam para ganhar calor. Daniel aproveitou o momento para se encostar em Carla. Disfarçava para que ela não notasse que estava morrendo de tesão. Ela parecia gostar e ele aumentava o fingimento de estar de porre para poder deitar a cabeça no ombro dela. Risadas soltas e vida abençoada. - Até que enfim um lugar legal em Berlim – falou Cristina. - É, só faltava uma lua cheia – Daniel respondeu com voz romântica. - Lua não sei se tem, mas apesar do frio dá para ver centenas de estrelas – falou Carla, sentindo que Daniel estava a fim dela. Aconchegou-se um pouco mais no corpo dele. Daniel, não querendo baixar a bola da conversa, concordou na hora com Carla enquanto botava o braço no seu ombro: - É mesmo, não imaginava que em março, aqui na Alemanha, pudesse ter uma noite como esta. Se estivesse um pouco mais quente, eu jurava que estava no Farol de Santa Maria, que fica no Estado de Santa Catarina, no sul do Brasil. Claro que tinha que ser no inverno – riu para si mesmo Daniel. - Faz frio no Brasil? – Carla perguntou com uma voz calminha, incentivando o brasileiro. - Porra, lá no sul é foda! No inverno, com vento, é de matar! – ele exagerou um pouco para poder aumentar a pressão do braço no ombro dela. - O que será aquela porta, que tanto entra gente? – indagou Cristina interrompendo a conversa. – Vamos ver o que é? – disse se levantando e sendo seguida por Isabel. Como as duas foram
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andando, Carla também se levantou e Daniel, bem contrariado, teve que sair daquele conforto e segui-las. Abriram a porta do Bronx, com um urubu desenhado na parede de fora, e viram que era uma discoteca. A melhor surpresa foi descobrir que não precisavam pagar nada para ficar lá dentro. A música era razoável e a cerveja o mesmo preço que no Madona. Dançaram até quase de manhã. Daniel se esforçava para fazer Carla gostar. Quase saiu o primeiro beijo. - Acho que estou canada; vamos dormir? – Isabel deu uma cortada de onda. - Vamos – concordaram as outras duas. Na saída, a primeira mistura de luz mostrando que o dia ia nascer daqui um tempo. A chuva fininha deixava Daniel desanimado: - Tinha estrela do montão, agora esta água; vai ser mala sorte dormir no parque com essa garoa. Mesmo com o sleeping vamos ficar molhados. As meninas não falaram nada e continuaram a andar. Depois de tentar abrir a porta de três prédios, no próximo, Carla viu que a portaria não estava trancada: - Vamos por aqui – disse segura. As duas outras a seguiram no mesmo minuto, mas Daniel falou um pouco alto: - Onde é que vocês estão indo? Conhecem alguém aqui? Carla pediu que ele fizesse silêncio e que fosse com elas. Subiram a escada de madeira do prédio antigo, que gemia a cada passada, sem acender qualquer luz e na maior concentração. Foram
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até o quinto andar e pararam no hall em frente às duas únicas portas do andar: - É aqui o nosso hotel – Carla riu baixinho – vamos estender nossos sleepings aqui. Daniel entendeu a malandragem das garotas e achou demais: coisa de mulher – pensou – seres iluminados. Se fosse com meus amigos iríamos para um parque ou para a estação de trem. Como a gente não teria com o que se preocupar dormiria pessimamente, mas com tranquilidade. Estas gatinhas têm muito que temer. Gavião de montão. Então, escolheram esse lugar super na moita. Não passam frio nem correm perigo. Gênio completo. O brasileiro esticou seu saco de dormir ao lado da Carla para ter uma noite com ótima companhia. Tentou dormir, mas não dava mesmo. Aquela respiração maravilhosa perto do seu ouvido o deixava maluco. O pior é que ela estava encravada dentro do saco de dormir; não dava nem para encostar sua perna na dela. Os sonhos noturnos foram pesados; ele não sabia direito se estava dormindo ou acordado; a toda hora aparecia Carla que se misturava com seus planos de entrar no sleeping e se embolar com ela. No outro dia tiveram um despertador inesperado. Um homem, de quem nem chegaram a ver a cara, passou entre eles e, enquanto totalmente sem graça, cobriam os rostos com as bordas dos sleepings para que ele pensasse que estavam dormindo, já esperando o maior esporro, o homem para surpresa deles não disse nada. Vendo aqueles quatro corpos dentro dos sacos coloridos, em frente à sua porta, apenas caiu na gargalhada e disse em inglês: - Estejam a vontade. Desculpem perturbá-los. Só estou passando porque tenho que ir para o trabalho.
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Era Kreuzberg acordando. Saíram, depois de dobrarem os sacos de dormir, em direção à Estação Central do Zooligischer Garten: pegaram um metrô, sem pagar, e em trinta e cinco minutos já estavam na porta do trem. Daniel, um pouco triste pela oportunidade perdida, segurava a cintura de Carla e dizia: - Pelo menos tenho seu endereço. Juro que nas férias vou a Barcelona te procurar. Ganhou um beijinho de despedida na boca, o que foi o mínimo para compensar ter batalhado tanto: O verão chega logo – pensou Daniel, enquanto o trem partia. E agora o que eu faço? Acho melhor voltar para Kreuzberg. Tem de pintar alguma coisa hoje. Mas antes, é melhor eu tomar um banho aqui na estação para estar preparado para qualquer putaria. Depois de botar mais uma moeda no guarda-malas para deixar guardadas suas coisas por mais um dia, Daniel foi tomar banho no banheiro público, que o fazia lembrar, por ser velho e apesar de bastante limpo cheirar a desinfetante, a um asilo de caridade. Terminada a limpeza, bem cheiroso, pagou a mulher de bochechas vermelhas e vestido branco, parecida com uma enfermeira ou com uma inspetora sanitária, e rumou para Kreuzberg. Na estação de Gorlitzer, quando saía do vagão, sentiu que um controlador de bilhetes, vestido de civil, magrinho, começou a encará-lo. Tentou não olhar e seguir em frente, mas o cara foi direto na sua. Devia estar escrito na testa: - Seu bilhete, por favor. - O quê? – fingiu de desentendido, falando em português.
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- Seu bilhete – o homem falou de novo, agora com ajuda de mímica e mostrando um bilhete novo. Daniel tremeu na base, porque sabia que o mínimo que aconteceria seria ter de pagar cinquenta marcos de multa; isso se não cismassem, por ser estrangeiro, de complicar sua vida. - Desculpe-me, mas cheguei há poucos dias e ainda não sei bem como comprar bilhetes – tentou argumentar, agora falando em inglês. - Seu passaporte, por favor – exigiu o senhor, neste momento já ajudado por um policial de radinho e revólver. - Ah, italiano! Você sabe qual é a lei da Alemanha Federal para o seu caso? Daniel ia tentar, encagaçado, responder que não, quando uma mulher de cerca de quarenta anos, cabelo pintado de azul-rei, calça de couro preta, três ou quatro camisetas de mangas compridas sobrepostas e uma jaqueta de brim, com pelo de carneiro por dentro, completamente surrada, começou a gritar: - Não fale com estes caras. Eles não podem fazer nada com você. Não pague nada. Eles vão ter de mandar a multa pra sua casa. É a lei. Fora com a polícia de Kreuzberg! O grito de alarme surtiu efeito; a partir daí começaram a surgir vários outros alternativos, seguidos de punks e seus inseparáveis cães; o murmúrio da rapaziada ia aumentando e a mulher elevava o tom do discurso: - Policiais, fora! Basta de exploração! Vermes capitalistas! As primeiras palmas começaram a ecoar. Daniel não sabia como se comportar sendo visto por todo mundo. O policial fazia cara de mau e botava a mão no revólver. O controlador magrinho
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parecia terrivelmente incomodado e tremia com o passaporte na mão: - Fora de Kreuzberg! Liberdade e ação! Não pague nada! – gritava a mulher, enquanto o controlador falava baixinho com Daniel devolvendo-lhe o passaporte: - Pague o preço do bilhete e vá embora. Daniel achou a proposta uma ótima e foi tirando o dinheiro enquanto a mulher continuava a gritar: - Não pague nada, eles vão ter de mandar uma carta para a sua casa... O brasileiro entregou o dinheiro para o homem se sentindo, um pouco, traidor da causa radical-alternativa; afinal, negociara com a autoridade. Saiu apressado, temendo os olhares de reprovação da comunidade. Era Kreuzberg protestando. De noite, com o saco de dormir debaixo do braço, entrou no Madona na total, pois já tinha bebido na rua várias das cervejas que comprara no supermercado por apenas um marco por cada lata de meio litro. Se achando íntimo do lugar, comprou uma Beck’s e foi se sentar numa mesa lá no fundo. Um cara se sentou logo depois e enrolou um baseado: - Você quer? – ofereceu em alemão. - Desculpe, mas só falo inglês. - Você quer? – falou agora em inglês. - Claro, mas é permitido fumar aqui dentro? - Os porcos normalmente não entram aqui. No máximo acenam da porta pedindo permissão para entrar. Sabem que de outra forma vão ter que quebrar o pau. A não ser em dia de
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manifestação, respeitam nossos lugares. Além disso eu já trabalhei aqui de barman; sabe como é, precisava de grana. Conheço bem os caras. Daniel se sentia legal conversando com um autêntico berliner: - Cara, como é seu nome? - Me chamo Holli, e você? - Eu me chamo Daniel. - Você é italiano? - Não, sou brasileiro; estou a fim de passar um tempo aqui e ver se estudo alguma coisa. Você é de Berlim? - Não, sou de Dortmund; vim para aqui com dezessete anos para não ter de servir o exército. Desde então vou vivendo – disse Holli com segurança. Conversaram algum tempo e Daniel ficou sabendo que Holli era guitarrista e cantor. Que tinha uma banda com uma baixista italiana linda. Que estava matriculado na Universidade Livre de Berlim em jornalismo, mas que há três semestres quase não punha os pés lá; principalmente no último, quando os estudantes fizeram greve durante todo o semestre. Que era brigado com o pai porque havia se separado da sua mãe e casado, de novo, com uma mulher quase da sua idade, que não se dava bem com ele. Apesar de quase não ver o pai, recebia dinheiro dele para se sustentar durante os estudos: - Na verdade aceito o dinheiro. Até eu ter vinte e quatro ou vinte e cinco anos, não sei bem, ele tem de pagar pra mim; até completar meus estudos. Eu estou cagando pra ele e pra Universidade, mas se meu pai é rico tem de gastar de alguma forma seu dinheiro. Para minha mãe ele não manda merda nenhuma; ela
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também não precisa, porque quando ele a abandonou, ela saiu de Dortmund e foi para Hamburgo; arrumou trabalho e tem sua vida completamente independente. É uma mulher muito forte. - É, acho que é a coisa mais importante nesta vida; ir à luta – filosofou Daniel – muitas mulheres ficam em casa aguentando o maior mal trato por terem medo de enfrentar a vida. É foda. Meu pai tem o sangue quente e às vezes dá a maior agredida na minha mãe; sem nenhuma razão. Um dia dei um toque para ela mas ela me disse que gostava dele demais e que eram felizes daquele jeito. Acho que realmente são... E tua universidade, vai abandonar? Tu quer ser cantor profissional? - Ô cara, querer não é suficiente. Você vai ver quantos milhares de artistas desempregados rondam estes bares. Cada um com seu sonho. Mas, na realidade, formar uma banda competitiva é foda. Toco porque gosto. Se der certo, deu. Além disso, desde que voltei de Goa, há dois meses, mudei minha cabeça. Acho que vou ser professor de ioga. Iria, minha namorada, está a fim também. Vamos ver. - Ioga, legal de montão! Já fiz umas aulas na universidade da minha cidade, Rio de Janeiro; ainda não entrei para a universidade mas ela não fica longe da minha casa e tem uma professora maneiríssima. Realmente dava a maior calma. Saía da aula purificado. Até pegava umas ondas melhores... onde é Goa? - Goa é na Índia; se você fosse lá ia gostar. É uma ex-colônia de Portugal; vai ver que você vai encontrar gente para falar na sua língua. Você esbarra com todo tipo de gente por lá. É uma grande festa; mas não fiquei só em Goa, fui um pouco para o sul, para Kerala; subi as montanhas e convivi com os homens santos. Cheguei
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a fazer um jejum de quatro dias. Quase morri, mas foi muito bom; curou minha desinteria. - É muito caro ir até a Índia? - Depende do tempo que você vai ficar. A passagem é que custa mais; viver lá não é problema. Com menos de trezentos dólares por mês você se vira. - E quando é um tempo legal de ir pra lá? - No inverno daqui é um bom período. Ainda não está muito quente. Se você quiser dou meu telefone, você passa um dia desses no meu apartamento e eu te mostro umas fotos; mas agora tenho que ir porque a Iris está me esperando. Anote aí meu telefone. Onde é que você está morando? - Na real estou num sufoco. Não conheço muito bem as transas por aqui. Estava numa roubada num Albergue da Juventude; agora não sei... - Você conhece alguém em Berlim? - Não, até agora só conheci um cara, o Markus, mas conversei muito pouco com ele. Holli deu uma pensada e perguntou: - Você já ouviu falar em Mitwohnzentrale? - Mito o quê? - Achar um apartamento aqui em Berlim é difícil. Só se puder pagar muito. É um dos motivos porque a gente está em greve. Por isso só tem duas soluções, ou você procura num anúncio de jornal ou vai num Mitwohnzentrale, que é um destes escritórios onde pessoas que vão viajar e querem alugar seu apartamento por um tempo, ou um quarto vago. Se você der sorte acho que é uma boa
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solução, apesar de provisória. Depois que você se entender melhor na cidade arruma um lugar definitivo. - Legal. Já tinha ouvido falar em Mitfahenzentrale, peguei até uma carona lá quando vim de Colônia. Agora Mitwohn... valeu pela força! - É, procure na lista telefônica. Tente achar um escritório aqui mesmo em Kreuzberg porque fica mais fácil arranjar um lugar para você por aqi mesmo; você sabe, existe Kreuzberg trinta e seis e sessenta e um. Nós estamos no trinte e seis, onde a Iris mora; eu moro no sessenta e um. - O que é isso? - São os distritos da cidade. Converse com os caras do escritório que eles vão te explicar melhor. Vou ter de ir embora agora. Me ligue se tiver algum problema.
De manhã, depois de dormir novamente num hall qualquer, Daniel pegou na lista telefônica o endereço do escritório: - Dá para me arranjar um apartamento de um quarto em Kreuzberg? O cara que trabalhava no escritório tinha vinte e poucos anos, usava um só brinco com uma pena, feito por índios da Guatemala, e tinha o cabelo bem transado: mais um alternativo. Olhou a lista dos apartamentos e mostrou a Daniel que naquele momento seria impossível arranjar o que ele estava procurando, mas que
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aconselhava a ele ficar, por enquanto, num apartamento com alguém que quisesse alugar quartos por dia. - Mas a última coisa que quero é ir morar numa casa de família. - Não, eu conheço o Peter; é um cara legal. Você vai ter toda a liberdade. Veja aqui o endereço. - Posso ver no mapa?... Mas não é Kreuzberg, é Shoneberg! - Mas por que tem de ser especificamente em Kreuzberg? - É que me falaram que é o lugar mais legal da cidade. - Shoneberg é legal também; vai lá e experimenta. Se não gostar eu lhe arrumo outro lugar. Daniel pegou o metrô, desta vez pagando, e foi bater na casa do Peter. Chegando, a primeira impressão foi na boa. Peter, um cara de quarenta e dois anos, com um jeito engraçado, um bigode ruivo enorme e pontudo, usava uma boina colorida desenhada com várias entrelinhas, e foi de primeira perguntando se ele queria fumar um. Carburado o haxixe, no entanto, o brasileiro começou a notar que várias dificuldades ainda tinham que ser superadas. Peter, logo depois de fumarem, começou a olhar a televisão com cara de imbecil. Ficava vendo um programa tipo Silvio Santos sem desgrudar o olho. Na verdade, parecia que não estava realmente entendendo o que acontecia no programa; Daniel, olhando bem, notou que Peter queria mesmo era olhar qualquer coisa e não ter que gastar ideia. Que cara alternativo esquisito – pensou Daniel – já está há uma hora vendo esta merda de programa e não diz uma palavra. Esse caô tá com a maior cara de burro. Acho que vou é pro meu quarto:
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- Desculpe, onde é o meu quarto? - Ah – Peter entrou novamente no espaço terrestre – é por ali; vamos até lá. Só que tem um pequeno problema: quando vocês me ligaram eu tinha esquecido que minha filha está voltando de férias e, você sabe como é, ela precisa do seu próprio espaço. Então, se você não se incomodar, aqui no meu quarto tem duas camas e você dorme numa. Daniel ficou meio escamado pois o cara do escritório tinha dito que alugaria um quarto só para ele. Mas como o preço era o mesmo do Albergue da Juventude e não tinha aquela de voltar antes da sessão coruja, tudo bem. Começou a ficar um pouco mais puto quando Peter entrou numa que ele era índio, pelo jeito que explicava como se cortava um pão ou como se fechava a geladeira: Acho que vai ser foda – pensou. No final da tarde a filha voltou e quando o viu fechou a cara. Era uma garota de doze anos, na fase em que se começa a pregar retratos dos rock-stars na parede mas ainda conserva umas bonecas espalhadas pelos cantos do quarto. O humor neste tempo nunca é fácil. Por um lado dou toda a razão pra ela – pensou Daniel – imagine se eu voltasse de férias e encontrasse um cara estranho, que não fala minha língua, neste apartamento pequeno. Mas, por outro, o que eu tenho a ver com isto? Até para ir cagar no banheiro vou ficar sem graça, pensando que vou incomodar a garota. Vou ficar com prisão de ventre. Por que será que o Peter aluga o quarto? Ele falou que a loja de pipoca e sorvete que ele tem na esquina dá a maior grana! Apesar que passei por lá e aquele negócio cheirando a auge do hipismo, só com uma portinha aberta, onde não entrou
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ninguém em mais de meia hora que fiquei ouvindo a alugação do Peter, não me pareceu muito próspero. No final da tarde um amigo do Peter, esquelético, quase verde, todo vestido de couro preto, de botas gastas, com um bico que afinava com a boca de uma chaleira, chegou com um cachorro, que cada vez que o brasileiro se movia na cadeira rosnava, e entrou numa de dar uma aula, um pouco esnobe, sobre Shoneberg; isto porque Daniel se atreveu a dizer que tinham lhe falado que Kreuzberg era o melhor da cidade. O efeito foi bom porque apesar de ter de ficar escutando uma aula que não havia pedido, anotou o nome de alguns lugares e saiu para a noite. O cara disse que trabalhava no Ex and Pop; vou até esse lugar pra ver qual é – Daniel decidiu depois ter passado em outros bares. No bar, mais uma lição da noite: o Ex and Pop era um lugar anternativo-dark; talvez bem mais para dark. Mas com muito pouco tempo na cidade ainda ficava difícil para ele entender a sutil diferença entre os movimentos; afinal, todos usavam preto. O que dava para notar, naquele bar estranho, com paredes completamente lisas e com a pintura descascada, cadeiras e poltronas de segunda mão, sem nenhuma combinação, jogadas pelos cantos, um balcão de madeira pintado de preto, é que as pessoas eram diferentes do Madona. O bar não tinha realmente nada; era completamente sem atração. Mas quem ia ali sabia que estava no lugar certo. E por isto tinham um ar próprio: cabelos penteados com corte, mesmo que bem extravagantes, deixavam claro o emblema do cabelereiro. A grande maioria usava roupa de couro, porém diferente das dos motoqueiros, dos punks, dos alternativos, dos porteiros da noite. Tudo com muito estilo: dark-
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yuppie. As conversas em tom baixo, risos levemente afetados e alguns solitários de cara fechada largados nas poltronas. A música alta e de ótima qualidade. A cerveja nos mesmos quatro marcos. Daniel voltou para casa achando que o toque do amigo do Peter até que fora legal; afinal, o lugar era realmente diferente. De manhã o mau humor da menina não passava. Peter roncara toda a noite, enlouquecendo o brasileiro. Estava começando a achar que o apartamento era pior que o albergue. Decidiu, para esfriar a cabeça, sair andando sem direção, só para gastar energia. Andou o dia inteiro pelo centro da cidade e depois foi parar numas periferias de que não sabia nem o nome. Entrou em lojas de disco para ouvir os sons novos; principalmente queria saber das bandas de Berlim. Ansioso, não aguentava mais esperar até o final da tarde, porque tinha resolvido ligar para o Holli para pedir um help.
- Alô, Holli está? - É ele mesmo. - Holli, aqui é o brasileiro que você encontrou no Madona. - Ah, sim – respondeu sem muito entusiasmo. Daniel engasgou porque não sentiu uma voz convidativa mas, mesmo assim, foi levando em frente: - Holli, é que fui no Mitwohnzentrale, arrumei um quarto, mas acho que dei azar – falou Daniel resumindo seus sofrimentos. Para sua surpresa, Holli propôs:
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- Olhe, se você quiser, pode passar uns dias aqui em casa, até achar um lugar melhor. Tem uma caneta? Anote o endereço... rua Hagelberger, número dezessete; fica perto da estação de Mehringdamm. Veja se chega depois das de e meia da noite, pois tenho que ensaiar fora, com meu grupo, até esta hora. Daniel respirou aliviado e feliz pela força recebida, e foi andando à pé em direção ao edifício de Peter. Na rua Goltz, perto da casa, parou na Razzo para olhar as roupas de segunda mão; comprou um capote preto até o joelho, dos decorados por botões dourados do tipo de capitão de navio; tinha visto Holli vestido com um parecido; estava se achando o próprio berliner. Quando saiu da loja, orgulhoso, sentindo-se mais do que local, ouviu uma ótima música vindo do café ao lado. Entrou, cada vez se achando mais integrado na massa, sentou para folhear umas revistas, algumas em inglês, que estavam em cima das mesas e numa prateleira embaixo da janela dos fundos que dava para um jardim de inverno chocante. Pediu um chocolate com creme e a surpresa foi total: era demais. O creme forte, quando misturado na caneca de chocolate também superforte, dava uma produção alquímica quase tão poderosa quanto a descoberta da pedra filosofal. O brasileirinho se sentia como uma criança no dia da Páscoa; como não podia deixar passar, pediu mais um para conferir. A produção era realmente de primeira. Não muito mais tarde, chegando na casa do Peter a sala estava na maior bagunça; entrou na cozinha e ele, com mais quatro amigos, já bem tortos, conversavam entre tons altos e sussurros. Parecia que cada um falava sozinho; que ninguém prestava atenção na conversa do outro. Talvez todos já estivessem cansados de tanto
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se conhecer – pensou Daniel e, sem muitos cumprimentos, foi para se quarto arrumar sua mochila, pois além de não estar no mesmo giro atômico da cabeça dos outros, eles haviam comido as coisas que no dia anterior haviam comprado; logo, o melhor era ir rápido para a casa do Holli e lhe pedir um sanduíche. Uma mulher, cambaleante, seguiu-o até o quarto e enquanto ele tentava arrumar suas coisas, ela falava com a língua enrolada: - Você é o brasileiro que o Peter falou. - É, sou eu mesmo. - Pois eu não gosto dos homens machistas do seu país. Daniel não respondeu coisa alguma. A mulher tinha a maquiagem borrada e a alça da saia caída. Se apoiava, talvez para não desabar, com o braço direito na parede e continuava com a fala mole e devagar: - Estes argentinos são uns merdas; uns machões. Só querem foder e é só. Pensam que nós somos umas vacas. Ele ainda tentou explicar que Brasil e Argentina eram dois países diferentes mas a mulher continuava o monólogo: - Agora estou num momento ruim – ela falava abrindo uma caixinha e engolindo, no seco, uma pílula – você quer uma? - O que é isto? - Valium. - Não, obrigado – respondeu Daniel voltando a arrumar sua mochila. - Vocês são todos uns machões – voltava ela para sua frase mais convicta, mas desta vez segurando um ombro do Daniel, que estava agachado, com força.
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Ele, por reflexo, olhou para a cara dela e sentiu pena. A maquiagem borrada era o choro de antes que agora recomeçava. Na real tentou ser solidário, mas o estado dela já estava para além das palavras; era ir para a cama ou deixa-la falando sozinha. Na certa – pensava ele – não vai ter problema porque o bando do Peter, com seus amigos melancólicos, vai segurar sua onda. Além disso, ele não tinha mais tempo a perder. Eram dez horas.
Chegando no Holli o ambiente era completamente diferente. Também estava havendo uma pequena festa. Um jantar de boasvindas. Fora Holli, estavam seus três vizinhos do andar de baixo que trabalhavam numa companhia de teatro experimental. Holli, que na Índia havia aprendido a cozinhar e se convertera ao vegetarianismo, fizera um prato mais do que gostoso; estava cheiroso de tantas especiarias que pusera. O jeito de comer e de preparar o prato era de quem estava de bem com a vida. Havia generosidade por todo aquele apartamento zoneado. A mesa era uma porta velha, apoiada em dois cavaletes, coberta por uma toalha branca bem manchada de vinho tinto. No canto, o que um dia fora uma lixeira de plástico branca, agora com uma li forte dentro, transformou-se num ótimo abajur. Nem luz a mais, nem a menos. - Desculpe a casa neste estado; é que estou pintando para ficar mais transada. Olhe aqui como vai ficar meu quarto.
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Holli havia feito em volta das janelas, da porta e em alguns pedaços da parede, alto-relevos de argamassa que lembravam cobertura de suspiro de bolo de festa. - E o banheiro, o que você achou? - Chocante!- exclamou Daniel admirando a pintura azulmarinho misturada com purpurina, que dava um ar espacial ao local, principalmente com as duas dezenas de pequenas luzes, dessas de árvore de Natal, que sem ordem, estavam grudadas numa parede. – deve ser ótimo aqui tomar banho com a namorada. - É isto, irmão; mas agora venha comer senão esfria. A comida natural, apesar de cheirosa, estava meio sem gosto, mas o molho de soja resolvia o problema. O melhor era ver que fora cozinhada com carinho. Que estava sendo bem ofertada. Holli bebia uma pá de cerveja e os convidados seguiam o ritmo. Daniel estava feliz pela acolhida e por estar na casa de seu amigo berliner. - Bem, amanhã de manhã olhamos o jornal e você telefona para saber das vagas – Holli falou paternal. No outro dia levantaram cedo e Holli comprou o jornal. Tinha só quatro ou cinco anúncios de quartos vagos. - Bom, vai olhando estes aqui e depois a gente se fala. Tenho que passar no curso de aprender a costurar e depois vou até a casa da Iris. A gente se encontra lá pelas nove para jantarmos. - Você costura? – Daniel perguntou surpreso. - É, não estou a fim de jogar meu dinheiro na mão das lojas. Quero fazer minhas próprias roupas. Está vendo esta calça? Fui eu que fiz, com a ajuda da mulher que ensina, é claro. Ontem ganhei este pano aqui, da Iris, e vou fazer uma camisa – falou, contente, mostrando um pano estampado com formas abstratas em branco e
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cinza. – vai dar legal com a calça – falou Holli, com naturalidade, curtindo a calça preta bem larga, um pouco como do tipo usado pelos sultões. – Este brinco também fui eu que diz; imitando um que vi na Índia. Daniel achou graça imaginando que aquele cara bem alto, com cabelo louro, puxando para o ruivo, preso por um rabo de cavalo, com calça bufante e a camisa pós-hippie, ia ficar bastante estranho andando em qualquer um dos baixos do Rio. Acho que ele vai agradar – observou. A cada tempo de convivência com Holli aprendia alguma coisa e isto lhe fazia bem. Tomavam conhecimento que um bom alternativo, dos que já não merecem mais qualquer rotulação, sabe utilizar as mãos para as mais diferentes habilidades: assim já vira que Holli tocava guitarra, fazia artesanato, cozinhava legal, costurava, ornamentava e pintava a própria casa. Na cabeça duas línguas bem faladas e um pouco de francês, a faculdade mal levada e o estudo das artes orientais. Por natureza era um cara generoso, tinha uma namorada de quem gostava demais e vários amigos. Realmente, Daniel estava orgulhoso do seu guru. Já se imaginava fazendo ioga com o Holli e tendo um rabo-de-cavalo maneiríssimo.
De noite, no entanto, o brasileiro voltava meio desanimado. Tinha tentado todos os telefones e nada. Holli, para animá-lo, dizia que no outro dia ia ser muito mais fácil, mas que de qualquer maneira, se não desse certo novamente, o melhor seria passar no Mitwohnzentrale.
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- Amanhã passo aqui e lhe ajudo; vou ter de sair agora, que vou dormir na casa da Iris. De manhã Daniel correu para comprar o jornal e com a ajuda de Holli separou os que interessava,: - Outra coisa que você pode fazer é colocar num outro jornal, que sai uma vez por semana com anúncios grátis, alguma coisa sobre você, que chame atenção, do tipo: estudante brasileiro de dezenove anos querendo descobrir Berlim precisa de um quarto. Daniel riu, mas achou que ia demorar demais, além de não estar com vontade de ser escolhido nos anúncios de oferece-se. Holli ainda tentou explicar que em Berlim esse tipo de anúncio era normal. Que não ia dar em sacanagem: - Ô cara, não vai ter nenhum problema; tem anúncio para todos os gostos. Eu mesmo formei parte da minha banda olhando gente que se oferecia no jornal; tem gente que quer viajar nas férias, não quer ir sozinho e põe anúncio no jornal. O brasileiro, ainda desconfiado, preferiu concentrar esforços nos meios mais tradicionais: - Hoje vai marra – bradou confiante. - Ok, agora vou chegar porque tenho que trabalhar na pintura de uma casa; vão me pagar bem. A Iris vai me ajudar. Com o dinheiro vamos alugar um carro e dar volta pela região de Provence, no sul da França, fazer um tour romântico. À noite, depois do ensaio com a banda, vou lhe mostrar um lugar, aqui perto, que eu gosto muito. Daniel fez novamente as ligações e as notícias não foram positivas; a cada ligação alguém já tinha passado antes. De tarde, embora sem muito convicção, passou no Mitwohnzentrale que
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tinha descoberto a uns trezentos metros do prédio do Holli. Era bem mais organizado do que o primeiro; tinha até computador. - Para hoje não temos, mas tem um anúncio que oferece, nesta mesma rua, um quarto por vinte dias. Toma o telefone. Daniel pagou dois marcos pela informação e correu para telefonar. Para seu azar o número estava errado; caía na casa de outra pessoa. Resolveu, então, já que era perto, ir pessoalmente ver qual era. Atendeu a porta uma mulher linda que o deixou gago. Ela disse que sabia do anúncio, mas que não era ela que resolvia. Daniel pediu o telefone correto já pensando que, pelo contrário, por causa da confusão do número errado, talvez menos pessoas tivessem conseguido falar com a dona da casa. Uma hora depois telefonou e Bettina e Muriel, as donas da casa, marcaram um encontro para as seis horas. Chegando lá, o brasileiro, procurando ser o mais galante e educado, começou a ser questionado sobre suas intenções; parecia a primeira conversa com a mãe de uma nova namorada. - Sabe – dizia Bettina, uma alemã ruiva, magra, de óculos – temos tido problemas com homens aqui porque muitas vezes não querem dividir o trabalho da casa com igualdade. Você já viveu em alguma comunidade? - Não – respondeu sendo honesto – mas quero aprender tudo – concluiu humilde. A sinceridade pareceu agradar às mulheres que depois da segunda xícara de chá, com risinhos cúmplices, ofereceram-lhe uma cerveja. Ele bebeu a cerveja com calma e não aceitou a segunda; queria se mostrar moderado. No final da tarde já se cogitava estender o prazo de experiência para o entrosamento comunitário
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de vinte dias para três meses. Definitivamente, o charme latinoamericano conquistara os corações das europeias. Na saída o brasileirinho, inquietado, não se conteve e perguntou pela terceira moradora. Muriel, uma francesa baixinha e simpática, respondeu que Sabine, que falar com ele mais cedo, estava indo embora de Berlim e que era no quarto dela que ele iria morar. Daniel tentou demonstrar naturalidade, mas a decepção apareceu no seu rosto, pois já estava imaginando as longas conversas que teria com a gata, regadas a chá com mel: - Então, até daqui há cinco dias. Vou deixar o telefone de onde estou para qualquer problema. Saiu rapidinho para a casa do Holli, pois já passara dez minutos da hora combinada: - Cara, consegui, vamos ser vizinhos! - E como é o local? - Fica na rua Kreuzberg, há uns oitocentos metros daqui. A maior sorte. O quarto é pequeno mas supergostoso. Moram duas mulheres, uma de trinta anos e a outra de vinte e cinco, que parecem legais. Vou formar um harém! - Legal; elas são bonitas? - Não, a chocante foi embora. Cedeu seu lugar pra mim. Na primeira noite que dormir lá vou ficar cheirando sua cama. Na certa vou acordar esporrado. - Cara, vamos lá no Café Anfall; é o pub que eu gosto mais e não é longe daqui. Saíram do apartamento depois de umas cervejas e foram andando, curtindo mais uma noite de primavera. O Anfall, com sua parede lilás cintilante, estava lotado. Holli era abraçado por todo
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mundo. O barman e discotecário, um travesti de cabeça raspada, trabalhava aprontando altas loucuras, como se estivesse num cabaré dos anos vinte. Lá pelas três horas, ainda no pub, cabeça completa, a hora das verdades: - Porra, Holli, você foi um grande brother. A casa do tal do Peter estava me deixando zuado. - É assim; nas viagens que fiz, principalmente na Índia e no SriLanka, muitas vezes estava numa péssima e aparecia alguém para me dar força. Agora é a minha vez. É a volta ao ponto. O eterno retorno – filosofava Holli. A conversa aprofundava: - O mundo pode ser uma grande merda. Mas você está aqui para cumprir o seu karma. Que pode ser melhorado ainda nesta vida. Eu não tenho certeza de muita coisa e passei um certo sufoco no início da adolescência. Meu pai e minha mãe brigando, essas coisas todas. Mas eu tenho certeza que fui desejado e isto me dá muita força. Minha mãe me contou que teve muita dificuldade para engravidar. Que fez vários tratamentos. Já estavam pensando em adotar um filho quando resolveram tentar mais um médico. Seguiram direito todas as ordens e, num dia e num momento qualquer, notaram que era a hora. Meu pai resolveu tirar quinze dias de férias, coisa incomum para a porra de executivo fanático que ele é, e foram pra Amsterdam. Minha mãe me disse que escolheram um hotel numa rua que dava para um canal cheio de árvores e pássaros. Um lugar supercalmo pois quase ninguém passava na frente. Era meados da primavera e a natureza estava acordando. Num sábado completamente azul, durante a manhã, ela
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sentiu que seria o dia. Passeou calmamente durante a tarde pelos canais. Tomou chá, com meu pai, num café elegante e depois jantaram leve no melhor restaurante da cidade. Tomaram uma garrafa de campagne e foram para o hotel. Fizeram amor com todo desejo e ela me disse que na hora que meu pai gozou sentiu como um raio batendo dentro de seu ventre. Era alguma coisa que iluminava. Que dava luz. Ela jura que sentiu quando o espermatozoide do meu pai encontrou seu óvulo. Era eu que nascia, cara. Lá em Amsterdam – contava Holli bem emocionado. - Porra, que demais – Daniel disse convicto. As verdades continuavam: - Até dois meses atrás eu estava mal; tinha chegado da Índia, doente, tanto pela desinteria que peguei quanto pela fraqueza dos excessos com droga pesada. Mas cheguei cheio de boa energia. A meditação em Kerala me ensinou muito. Um dia estava passando na universidade para ver a minha situação e, de repente, não consegui tirar os olhos de uma mulher que estava sentada no jardim do campus. Tive que inventar uma desculpa, pegar um livro, e sair correndo na sua direção. Sentei no parque, num banco perto dela, meio de lado, de modo que dava para fingir que eu estava lendo mas que ao mesmo tempo me permitia ficar olhando para seus olhos que abriam e fechavam levemente, como se ela estivesse acabando de sair de um sono de final de tarde. Não deu três minutos e ela começou a olhar para mim; de início disfarçava, porém logo estávamos com os olhos completamente fixados. A gente não se falava nem se mexia. Ficamos mais de meia hora nos olhando, nos filmando num plano só. Cada vez mais. Eu tinha certeza que era ela. A mulher da minha vida. Iris me falou depois
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que também teve a mesma certeza. Quando me levantei para ir a seu encontro, ainda sem palavra nenhuma, sem saber o seu nome, nos beijamos como se já transássemos há muito tempo. - Que coisa incrível! - É, mas a coisa é mais complicada. Eu lhe falei que moro com um cara que não está no apartamento agora porque está de férias, o Klaus. Com ele foi a mesma coisa. É o meu karma. Eu estava de férias na Grécia, em Ios, andando pela praia; de repente, um cara veio na minha direção. Era o Klaus, que naquele tempo tinha um cabelo bem preto. Ele vinha com um violão e uma sacola. Eu olhei para ele e ele para mim. Foi uma sensação confusa. Mais um menos nos estranhamos, porém algo mais forte fazia com que nos aproximássemos. Ele ofereceu um e sentamos numa pedra alta para fumar. Ficamos assistindo àquele mar azul. Eu tinha a certeza de que conhecia ele e que alguma coisa me trazia desconforto na situação. Ficamos uma semana juntos, conversando cada vez mais, até que decidimos que quando cada um voltasse para Berlim nós procuraríamos um apartamento para morarmos juntos. Eu não entendia porque, mas sabia que era necessário. Eu nunca tinha tido assim uma amizade tão forte. Nós andávamos sempre juntos; vimos vários shows excelentes e tocávamos guitarra aos montes. Foi um tempo ótimo, mas alguma coisa não estava explicada: eu trabalhava pintando casas, para juntar com a grana do meu pai, e Klaus vendia haxixe e speed; tudo bem, eu não tinha a ver com isso; além de que ele estava sempre apresentando algum. Mas, no fundo, eu sentia que era tudo meio compulsivo, que ele queria eu cheirasse mais e mais. Comecei, então, a ter uns sonhos de morte e aparecia sempre Klaus querendo me matar; ou me matando. Nos sonhos, algumas
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vezes eu queria reagir; outras eu deixava que ele me matasse. Depois de acordar, minhas costas estavam sempre doendo... me sentia bem para baixo. Uma noite ele me apresentou umas linhas enormes. Eu estava bêbado e no começo não senti. Não sabia que era tão forte. Meu coração disparou e eu não sabia o que fazer. Pedi ajuda para ele, sei la, que me arranjasse um calmante e ele parecia paralisado. Era como se quisesse me ajudar mas ao mesmo tempo estivesse tentando me matar. Juro que estava certo de que iria morrer. Meu maxilar estava completamente trincado e o coração cada vez mais acelerado. Eu suava frio. Só me lembro nitidamente daquela expressão esquisita dos olhos de Klaus nos segundos antes de eu desmaiar. Acordei péssimo, com uma dor de cabeça de estourar. Ele passou todo o dia me ajudando mas, na semana seguinte, já vinha me dando força para cheirar, como que desejando me envenenar. Nesta época, lá no Flohmarkt... lembra? Aquele mercado de que lhe falei? Conheci uma figura maravilhosa. É uma mulher de mais de cinquenta anos, que parece ter trinta e poucos, que morou vinte anos na Índia. Ela vive de vender cremes para a pele, que prepara com as ervas que aprendeu convivendo com os mestres indianos. Acho que ela é uma mulher que está alcançando os níveis energéticos das pessoas santas. Um dia desses vou lhe apresentar a ela... Não sei por que comecei a conversar, a falar da minha vida e ela me perguntou se eu estava com algum problema. Disse que não, que minha vida estava em alto astral. Ela olhou meus olhos com uma força incrível. Eu senti que ela olhava o centro do meu cérebro. Acho que ela me induziu a entrar em estado de concentração e a figura do Klaus surgiu forte. Ele aparecia com uma roupa estranha. Como se viesse de um outro planeta. Não
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entendi direito e por isto não falei para ela o que tinha se passado comigo. Ela falou que ensinava meditação para quem quisesse se conhecer. Elevar o nível de consciência. Até lá, em agosto do ano passado, eu nunca tinha pensado em nada disto mas começou a me dar uma vontade enorme de fazer umas aulas. Nas três primeiras sessões, quando a meditação estava no mais profundo, aparecia a figura do Klaus. Eu tentava pensar no vazio e não dava. Ele estava lá me olhando com uma expressão de espanto; algumas vezes de ódio. Não consegui me concentrar depois da terceira aula. Falei com ela e então comecei a entender a situação: ela me explicou o que era karma, o que era reencarnação e me disse que provavelmente eu conhecera Klaus em outra vida, no passado, e que tinha alguma coisa a ser explicada ou vivida nesta vida. Nesta encarnação. Me disse que eu teria que meditar, trabalhar a consciência, para entender o que estava acontecendo. Ainda fui lá umas aulas e numa ela me falou que muitas vezes estiveram num ashram, que é um lugar de ensinamento e meditação; no caso era ao norte de Goa, já mais perto de Bombaim, próximo de onde os seguidores Rajneesch se instalaram em Poona. Lá ela teve a enorme sorte de ouvir e meditar com Said-Baba, que é um guru, um homem santo. Não sei, mas saí daquela aula certo que tinha de ir para a Índia procurar Said-Baba; entender o que estava acontecendo comigo. Comprei uma passagem em setembro do ano passado e fiquei lá seis meses. Após todo o tempo pensando, andando, conhecendo gente incrível, a começar por Said-Baba, que não cheguei a ver muito bem, mas que ainda vi saindo num dos seus carros, lá no ashram, e que, mesmo longe emitia uma energia fora do normal... cara, uma paz interior, que dava para sentir de longe, sobrenatural... cheguei à
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conclusão de que conhecera Klaus no passado e que ele fora meu melhor amigo. Mas que alguma coisa eu havia feito contra ele. E que por isso ele queria, agora, me matar. Voltei para Berlim com medo, mas eu tinha a certeza da obrigação de viver meu karma e que, portanto, tinha que continuar perto de Klaus. Mas só entendi toda a história direito quando conheci Iris. Depois daquele beijo na Universidade ela me deu seu telefone. Durante os quatro primeiros dias queria lhe telefonar a todo custo. Não conseguia. Era uma mistura de desejo e de medo. De noite sonhava com ela, com Klaus, com a morte. Resolvi jejuar e meditar. Passei quarenta e oito horas seguidas pensando. De noite, depois desses dois dias de meditação me lembro bem, entendi finalmente todo o problema: foi uma barra pesada, apareceram todos os lances como num filme expressionista. Irmão – disse Holli olhando Daniel com uma cara encarnada – vou lhe contar uma coisa que só comentei com a Iris, com Klaus e sua namorada e com o grupo da meditação: eu, Klaus e Iris vivemos, numa outra encarnação, no Egito antigo. Klaus era um homem muito importante e era casado com Iris. Eu trabalhava para ele. Uma espécie de servo, mas ao mesmo tempo a pessoa de sua maior confiança. Iris se apaixonou por mim e eu por ela. Tivemos um caso. Nós estávamos enlouquecidos de paixão e não sabíamos o que fazer. Ela me propôs que matássemos o Klaus e que depois nos casássemos. Me deu veneno para botar na comida dele... e, naquela mesma noite, eu, mesmo com o coração doendo por trair meu melhor amigo, fui lá e o matei... cara... eu o matei... Holli disse, encarando Daniel com os olhos encharcados. O brasileiro não sabia o que dizer, mas queria confortá-lo: - É cara, uma barra pesada... O que você vai fazer agora?
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- Não sei, tenho conversado muito com Iris sobre isto. Eu tinha dito a você que o Klaus está viajando, mas não é correto. A verdade é que ele está preso em Munique porque foi denunciado que estava vendendo heroína. Eu não acredito que ele esteja metido com droga pesada. Algum speed eu já vi ele passar, mas na maioria das vezes ele sempre vendeu haxixe. Se é verdade que ele passou heroína eu vou ficar muito puto com ele. De qualquer maneira eu e Anne, sua namorada, contratamos um advogado para cuidar do caso. A maior grana. A Iris, que detesta droga, principalmente porque sua mãe esteve doze anos dependente de bola e de álcool, não quer ver a cara dele. Quando ficar resolvido todo este problema do julgamento, que ele vai ter de passar, no máximo em dois meses, vou pensar no assunto. O importante é que Iris resolveu entrar comigo no grupo de meditação e na ioga e que logo vamos entrar num outro grupo, de budismo, para trabalharmos nossas vidas. Daniel, no outro dia de tarde, ainda tonto pela noite anterior, saiu para batalhar um curso de alemão. Holli tinha lhe falado das Volkshochshule, escolas do governo que ensinam alemão para estrangeiros e onde não se paga quase nada. O brasileiro pegou uma lista e foi telefonando; porém, em todas a mesma resposta: as aulas já tinha começado e agora só no período após as férias de verão. Resolveu então olhar as escolas particulares e a que achou com melhor preço foi a Hartnackshule, na praça Nollendor. Foi na mesma hora até lá para se matricular, porque as aulas iriam começar no dia seguinte. Depois da inscrição parou no bar Swing, na esquina da praça, para ouvir música e iniciar o diálogo com o divino: bebeu duas cervejas, equilibrando a consciência, e relaxou
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no sofá confortável do fundo do pub. Quando pensava em sair, para ir para a casa do Holli, viu Markus entrando. Estava sem seus cachorros. Daniel deu um tempo para ver se Markus o enxergava. Ele, no entanto, sentou com uma Beck’s e ficou olhando para uma pintura, metida a surrealista, que estava pendurada na parede do lado esquerdo. Daniel, vendo que o alemão ia ficar sentado daquele jeito, sem olhar para nenhum lado durante um tempaço, resolveu, mesmo tímido, chegar perto dele. Não tinha certeza de ser reconhecido: - Oi, Markus, eu sou o Daniel – falou em inglês. - Ei, você! Que boa coincidência – Markus respondeu receptivo. – O que está fazendo por aqui? - Vim me inscrever num curso de alemão. Logo ali – apontou Daniel. E você? - Eu moro perto daqui, na rua Welser. Daniel se sentou e contou tudo o que estava passando. Se empolgou mais com as aventuras de Holli. Markus, com seu raciocínio lógico, questionou> - Mas você acredita nesta história de reencarnação? - Sei lá, mas acredito no Holli. É um cara legal. Quem sabe eu descubro que sou a reencarnação do Jim Morrison e refaço o The Doors! Conversaram um tempo e Daniel convidou Markus para dar uma andada: - Vamos tomar um chocolate num lugar que conheci perto da casa do tal do Peter. Estou viciado em chocolate com creme. - Está certo, mas não posso demorar muito por causa dos cachorros. Eles devem estar impacientes e quero receber o dinheiro
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da semana hoje. Uma das donas, uma velhinha solteirona, sempre adia o pagamento; além disso, me pede para lavar o pastor porque já não tem mais força. Tudo bem, pois adoro a minha cachorrada. Deixe-me lhe dar o meu telefone que a gente pode se encontrar amanhã de noite para ir a um lugar qualquer.
Depois de Markus sair, um cara começou a fixar o brasileiro até que chegou mais perto. Falou qualquer coisa para puxar conversa. Ficaram uns quarenta minutos tomando mais um chocolate até que o cara convidou Daniel para ir até o apartamento dele beber uma cerveja e ouvir uma banda de Berlim que iria dar um show no mês seguinte. Chegando lá, a casa era uma desarrumação total. Um colchão de casal num canto, roupas, papéis, jornais antigos e livros pelo chão, uma mesa grande que parecia que servia para desenhar; quadros supertransados pelas paredes. - Você é pintor? - Não, faço isto porque gosto. É para relaxar. Eu sou cozinheiro. - Daniel levou um susto. Não imaginava um cozinheiro pintor. - Você trabalhava aonde? - Trabalho três dias por semana num restaurante húngaro. Com o dinheiro que me pagam posso levar a vida e fazer o que gosto. - Você aprendeu onde?
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- Eu fiz um curso de três anos. - Três anos para aprender a cozinhar? - É, se você quiser pode fazer Universidade em cozinha, e depois vira chef num restaurante de luxo. Mas não é esta a minha. Quero trabalhar o mínimo e ter tempo livre para mim. Daniel aprendia mais sinais de Berlim. Curtia o cozinheiro pintor que ouvia música punk e morava naquela bagunça. - Hoje vou numa festa. Você quer vir? – convidou Jan. - Claro, onde é? - No bandejão da Universidade Tecnológica. - Na Universidade? Deve ser uma boa. Vou ligar para a casa em que estou dormindo para avisar que vou chegar tarde. Jan se vestiu e saíram a pé. A festa estava animada na porta e combinava com o estado da cabeça de Daniel. Entraram e ele gostou de ver a quantidade de balões rosas e brancos e a música afro rolando. Mas deu uma trancada quando viu num canto dois caras se beijando: - Ei Jan, o que é aquilo? Tem dois caras se beijando ali. - Qual o problema? - Nada, mas é um pouco estranho. - É que hoje estão fazendo esta festa aqui na Universidade contra a discriminação sexual. É uma festa gay. Daniel olhou para Jan espantado, enquanto via que não era só aquele casal que se beijava. Misturados com casais de homens com mulheres, vários pares de mulheres com mulheres e homens com homens dançavam, se abraçavam e davam seus malhos. A grande maioria era da garotada, provavelmente da própria universidade:
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natural na ilha germânica, mas o brasileiro não gostou nada da situação: - Tu é maluco? Me trouxe numa festa gay. - Tem algum problema? – falou calmamente Jan – se quiser vai embora. Daniel ficou sem graça por ter estourado pois viu que Jan devia ser gay; estava usando uma camisa que ele achara engraçada mas que nas circunstâncias dava a certa: dois policiais se beijando. - Você é gay? - Som sim, mas fique tranquilo que não vou lhe agarrar. Aqui é meio a meio. Se quiser pode encontrar uma mulher. O brasileiro ficou mais tranquilo e acabou até gostando. Realmente, a festa estava ótima e a bebida era mais barata que nos pubs. Dançaram até quatro horas e Daniel já nem se lembrava que estava numa festa gay. Dançava com mulheres e sozinho. Quando sozinho em geral se aproximava um cara para dançar com ele. Não diretamente... como que cercando. Ele estava achando tudo aquilo engraçado e às vezes dava até uma certa corda para os caras. O que lhe surpreendia mais era ver tanta gente da sua idade, ou um pouco mais velhos, com jeito de quem vai sempre às festas dos DCE’s das universidades, curtindo seus pares homo. Jan, que ficara todo o tempo com outros amigos, chegou perto e falou que estava indo embora. Daniel disse que não sabia bem como voltar para casa e Jan lhe falou, então, que mostraria a direção para Kreuzberg. No caminho, o grupo de gente bem alegre ia saltitando. Daniel para lá de torto, nem notava. Ia só seguindo. O grupo entrou num parque e Daniel achou que eles estavam indo naquela direção
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para cortar caminho: o mais engraçado, pensava, era ver às quatro e meia da manhã todas aquelas pessoas passeando pelo parque. Achando que era loucura de alemão, que acordava aquela hora para fazer cooper, começou a brincar com cada um que passava: - Bom dia; já dormiu hoje? Então vê se dá uma boa andada pra rebater – falava se esporrando de rir. O que mais lhe chamava atenção era que todos eram solícitos. Que sempre paravam para comentar alguma coisa. Que respondiam às brincadeiras rindo: - Realmente são simpáticos esses alemães. Devem ter acabado de acordar e estão com este bom humor todo – pensava o brasileiro. Depois de uns vinte minutos, já de saco cheio de ficar andando no parque, Daniel começou a perguntar pela saída. O grupo alegre parecia não estar nem um pouco a fim de sair de lá e ele, mais ou menos por brincadeira, também porque realmente queria se chegar, começou a parar os passantes: - Ei, por favor, quero dormir e não sei o caminho de casa. As pessoas paravam; riam e falavam sempre com ele. Daniel, não entendendo, mal respondia: - Por favor, eu quero dormir – falava rindo enquanto cambaleando seguia em frente. Finalmente avistou uma avenida larga que cortava uma das partes do parque e foi na sua direção. Num acesso de cansaço e de loucura, se postou na frente de uma moto que passava, quase sendo atropelado, e pediu uma carona: - Por favor, me leve para qualquer lugar, quero dormir.
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O cara da moto, supersimpático, disse que o levaria para onde quisesse. Daniel pôde falar, então, que queria ir para Kreuzberg. Montou na garupa e foram embora. No caminho o cara insistiu para que eles parassem em algum lugar ou fossem para a casa dele beber uma cerveja. Daniel disse que não ia dar porque estava morrendo de cansaço. No outro dia Jan telefonou perguntando se estava tudo em ordem. Daniel lhe contou da carona de moto e como o cara fora gente fina. Jan rindo explicou então o que na verdade acontecera: - Você não notou mas o parque em que estivemos, o Tiergarten, naquela parte, é uma área para encontros gays. Provavelmente o cara da moto pensou que você queria ir para a cama com ele. Cada vez que você dizia que estava com vontade de ir dormir, todos os gays pensavam que você queria ir dormir com eles. Eu e meus amigos estávamos nos divertindo vendo a confusão que você estava aprontando. - Cara, isso é completamente louco. Eu pensei que eram alemães bem comportados fazendo cooper antes do trabalho. E não tem problema? Não pinta sujeira? - Ao contrário, a polícia vigia o parque para proteger os gays. Daniel conversou um pouco mais e disse que procuraria Jan qualquer dia, depois que estivesse instalado na sua nova casa. De noite, quando contou a Markus o que acontecera, ele disse que nunca tinha ouvido falar sobre essa parte do parque: o brasileiro havia se enturmado no undergay de Berlim.
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O primeiro mês na olha já tinha passado e Daniel agora entendia um pouco mais os fantasmas da cidade. Um monte de noites viradas, conversas longas com Markus, visitas semanais ao Holli e três horas diárias na Hartnack. A escola era um universo à parte. Todos os estudantes com cara de que podiam estar num curso como este em Londres, Paris ou Munique. A mesma mistura de raças do Albergue da Juventude, porém a convivência obrigatória das três horas que delimitava a persona e o papel de cada um. Os pequenos subgrupos se formavam e se antagonizavam. O professor, sem muito paciência de dar aula, sabendo que para o resto da vida teria que ficar corrigindo aqueles acentos estranhos, levava as lições no grito. Daniel de início tinha ido com a cara de Heinz, com sua calça de couro preta, o cinto cheio de tachinhas metaleiras, o cabelo liso, ralo, penteado para frente para disfarçar os estragos do tempo e o brinco na orelha esquerda; mas passado um mês, se irritava pelo jeito pretensioso e o excesso de gritos saídos de sua boca margeada por um bigode louro. Já enturmado com Zefa – uma mexicana muito louca que tinha vindo para Berlim para ser OP na casa de uma família que desde o primeiro dia ela odiava – nas aulas, quando sem saco, ele preferia se sentar nas cadeiras do fundo e ficar aprendendo espanhol, fixado no batom vermelho dos lábios dela. Em casa ia conhecendo melhor Bettina e Muriel. A alemã, professoral, ingenuamente orgulhosa, imprimia seus hábitos: Daniel, desejando ser bem-educado, ouvia com paciência suas aulas de como utilizar corretamente a mantegueira ou como lavar pratos economizando água... aquelas louças ordenadamente empilhadas
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esperando três ou quatro dias para serem metodicamente lavadas perturbavam a sua razão. Tudo bem – pensava – quando estou com a rapaziada não lavamos os pratos e garfos por muito tempo, mas não tem essa de empilhar com compostura todo esse excesso de xícaras de chá e os pratos dos lanchinhos que elas têm a mania de fazer. Por que tantos pratos o tempo inteiro? Eu uso por mais de uma vez meu copo numa ótima, mas esta caga-regra da Bettina, cada vez que toma café ou chá, suja mais uma merda; depois, pra limpar dá um trabalho filho da puta. Preferia que ela, ao invés de me ensinar a lavar os pratos, me pedisse para ajuda-la a lavar suas coxas; que banhos misteriosos ela toma de madrugada?- Daniel imaginava, curioso. De noite, sentado no Milch Bar, na rua Mariannen, ainda irritado, continuava reclamando para Markus: - Outro dia cheguei em casa às duas e pouco da manhã, morrendo de sono e com vontade de cagar. A Bettina estava trancada no banheiro e só dava pra ouvir o barulho da água na banheira. Na boa, eu já bati umas punhetas na água morna, mas acho que a alemã está pra lá de necessitada. Ficou trancada até depois das três. Devia estar acalmando sua fúria. Se ela implorasse eu dava uma ajudada pra ela. Mas acho que ela não gosta de homem. No banheiro tem um pôster de um cara de costas, com a bunda bem no meio da foto. Languidamente, ele segura um colar de pérolas que vai caindo pelo seu back-side. Brinquei com ela dizendo que preferia uma bunda de mulher e ela ficou brava. Disse que tinha posto a foto no banheiro pra mostrar que se os homens podiam usar o corpo das mulheres para explorar e vender objetos,
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as mulheres podiam fazer o mesmo. Eu notei que ela não gostava do cu do cara e que apenas estava fazendo política feminista. Acho que o que ela realmente queria era ser a rainha das amazonas. O negócio é começar a trancar meu quarto de noite se não ela entra um dia lá e corta o meu saco fora. Markus tentava explicar: - Estas mulheres superintelectualizadas, aqui na Alemanha, têm este comportamento; acho que elas têm razão. Estão lutando pela igualdade. - Igualdade tudo bem, mas não precisa me dar aula de como me comportar comunitariamente todos os dias; já estou me esquentando. Parece até o primeiro dia na casa do Peter. Deve ser algum tipo de esporte nacional. Com a Muriel é outro lance; com ela posso conversar. Ela me contou que na nossa idade pegava pesado. Tinha uma moto, na sua cidade natal, e que era da turma dos casacos de couro. Pra lá de malvista. Tipo Hell’s Angels. Não ligava pra nada. A mãe e o pai completamente certinhos. Um trabalhando o dia inteiro no escritório e a outra na cozinha. - Minha mãe também está sempre na cozinha – interveio Markus. - É, a minha está sempre preparando alguma coisa também, mas isto deixa a Muriel transtornada. Ela falou que o pai todo dia na hora do jantar reclamava da comida. E olha que ela me disse que a mãe fazia sempre o maior rangaço. Comida francesa de prima. Então ela via a mãe ralar o dia inteiro e o pai chegar e resmungar de tudo; desde o cinzeiro fora do lugar, passando pelo excesso de gastos e terminando na falta de tempero da comida. Com dezessete anos foi ficando cada vez mais revoltada. A cidadezinha dela, com
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vinte e poucos mil habitantes, a entediava. Não tinha perspectiva de espécie alguma. Era ir pra escola, ver a mãe trabalhar e o pai reclamar. Foi dando uns arrepios nela. Não conseguia mais olhar a cara do pai nem da mãe. Começou a beber. Depois de dois anos a situação foi ficando ruça. Só queria beber o dia todo e andar de moto. Todo mundo comentava. Ela cagava e andava. Começou a namorar um cara que se aplicava; ela não, mas cada vez bebia mais. Um dia o pai, na hora do jantar, disse que não aguentava mais o jeito dela; que não iria admitir nem mais um dia o seu comportamento. Que lugar de puta era na rua. A Muriel não teve dúvida, olhou bem pra cara dele e mandou a maior escarrada: ela me falou que foi daquelas verdes e que ficou toda grudada perto da boca dele. O pai tentou bater nela e ela ameaçou se matar; na mesma noite ela arrumou suas coisas e foi morar com uma amiga; foi sem nenhuma grana e começou a trabalhar. - E a mãe? - Ficou do lado do marido. Muriel me disse que na hora em que cuspiu no pai, na mesa do jantar, olhou desafiando sua mãe, como se dissesse que havia feito o que ela deveria ter feito há muito tempo. Os olhos da mãe eram de horror, mas ela notou que lá no fundo tinha alguma coisa de admiração... então ela foi trabalhar numa fábrica. Uma deprê completa. Todo dia acordava às 7 horas, depois de ter bebido até as quatro. Misturava cerveja, vodka, gin, licor; chegava tremendo na fábrica. Tinha emagrecido completamente. Estava virando uma alcoólatra. O gerente da fábrica, apesar de legal, já não queria aceitar suas faltas, os atrasos e a baixa produção. Mas ela já não conseguia raciocinar direito; só bebia. Um dia, no meio do trabalho, ela desmaiou. Foi carregada
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pro hospital. Por uns meses ficou na paz, depois aos poucos recomeçou tudo. O namorado que estava numa pior do que a dela não segurava a barra. E isso foi indo até que ela sentiu que ia acabar se matando; não sei, mas acho que ela tentou cometer suicídio. Aí resolveu abandonar tudo e vir pra Berlim. Mudar de vida. Conhecer outras pessoas. Os pais dela deram uma força legal e ela passou dois ou três meses na casa deles fazendo tratamento médico para dar um tempo no álcool. Depois se inscreveu num curso de alemão aqui em Berlim. Isso faz mais de três anos. Agora ela está estudando para trabalhar com crianças. - E ainda bebe? - Às vezes sim. Mas o tempo todo ela se vigia. Diz que talvez um dia volte para a França. Mas não para sua cidade; lá ela sujou geral. Além disso, não quer repetir a vida dos pais nem viver sob controle dos vizinhos. Você sabe, essa coisa de cidade mínima. Acho que ela vai querer ir morar em Paris; ter uma vida alternativa. É realmente uma mulher maneira. - E a Bettina? - Sei lá, não dá pra entender direito. Acho que ela não tem nada pra fazer. Todo dia às dez da manhã liga o rádio e fica com uma cara superior. Pega um pedaço de pão, uma xícara de café e fica lá ouvindo a porra. Dá umas gargalhadas histéricas durante o programa. Eu perguntei sobre o que era o programa e ela me disse que a rádio tinha esse horário para uma programação feminista; uma pá de mulheres vão lá contar os seus casos. Eu ainda não consigo entender, mas na certa deve ter altas sacanagens.
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Abril ia se despedindo e Markus e Daniel estavam cada vez mais ligados. Gastavam muito tempo conversando e bebendo suas Beck’s; trocando experiências. Neste momento da vida deles tudo era novidade. Holli acabar de iniciar as aulas de ioga, junto com Iris, e a cada semana descolava novas ervas para seus jantares sagrados. Markus ensinara a cantar um dos cachorros que levava para passear e, quando pedia, o bicho soltava uns sons que pareciam um uivo de dor, mas que na verdade eram acordes hardcore. Os trabalhos, para descolar o mínimo possível para viver, iam pintando e ambos navegavam pela cidade, cada qual em seu estilo, esquecendo o muro burro. No último dia de abril, para comemorar, compraram um garrafão de vinho e resolver toma-lo no Grunewald. Daniel foi todo feliz porque queria conhecer a floresta: - Os galhos das árvores aqui na Europa são diferentes dos do Brasil: são meio fantasmagóricos. E o contraste das folhas novas renascendo depois do inverno com esta camada de folhas caídas é demais. Daniel ia caminhando mato adentro sem se preocupar com perigo; afinal, a floresta, apesar de grande, também estava cercada pelo muro. Era gostosa a sensação de andar sem encontrar ninguém, como se estivessem longe da cidade. O brasileiro delirava trazendo lá do fundo as imagens dos livros de criança com os duendes e os cavaleiros atrás de suas princesas. Markus não entendia direito tanta satisfação pois apesar de adorar a floresta, desde criança estava habituado com ela; o onírico, para ele, era a
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floresta amazônica, com as cobras de vinte metros, o verde alucinante e os índios canibais. - Que venham os dragões e os feiticeiros, que acabo com eles num só golpe – gritava Daniel brincando que nem um garoto. Corria, deitava no chão, jogava folha podre na cara de Markus. O alemão, vendo seu amigo naquela alegria, dava toda a força e o vinho descia tão rápido quanto a noite: - É melhor voltarmos porque vamos ter que andar ainda um bom tempo. - Que nada, tedesquinho, vou dormir por aqui mesmo; vou achar uma princesa prisioneira em um castelo cercado de árvores venenosas. Vai ser o maior sabor. Como um bom brother, enquanto eu encanto minha princesa você dá um tempo protegendo a estrada contra as investidas do barão usurpador. Daniel, sentado no chão, bebia o resto do vinho. Acabado o garrafão, a realidade se impunha e o frio aumentava; achar o caminho de volta era necessário. Markus, lógico, se guiava pelas primeiras estrelas: - É por ali, estou certo. - Aí, meu rei, vai em frente que eu te sigo na boa. Confio em sua matemática. Mal começaram a andar, de repente, cortando o caminho, uns vultos saltaram a trilha que eles vinham seguindo. Daniel não percebeu nada pois ainda curtia suas fantasias. Markus, entretanto, preocupado, falou rápido: - Olha Daniel, eu tinha esquecido de lhe dizer, mas aqui na floresta, mesmo sendo dentro da cidade, tem javali. Eles só são
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perigosos quando acompanhados de filhotes, aí podem atacar. Se não, se eles chegarem perto, nós fazemos barulho e eles vão correr. O carioca, que só conhecia javali pelas histórias do Asterix achou a maior graça e, falando que era o rei da selva, disse que ia comer javali assado no jantar. Soltou um grito, imitando o Tarzã, o mais alto que podia; porém; porém os javalis – que não devem ter achado a menor graça – ao invés de correrem foram se aproximando ainda mais. Quando Daniel viu a menos de trinta metros aquela fila vindo em sua direção, sem poder distinguir os detalhes, pois já estava bem escuro, mas notando que o chefe do bando, que vinha na frente, tinha fácil o tamanho de um bezerro gordo, tremeu barbaridade: - O que é isto, Markus? Que bichos são esses? Os javalis vinham andando na direção dos dois soltando uns sons nada amigáveis; por sorte não vinham correndo; vinham, pelo contrário, bem devagar, mas pagando a maior decisão. - Agora não fale mais nada, vamos sair para o lado sem demonstrar medo. Não podemos assustar ainda mais os animais. Este seu grito foi uma grande merda, se eles nos atacarem estamos perdidos. O pior é que não tem nenhuma árvore para subir. Daniel, apavorado, segurou o ombro de Markus e o foi seguindo com a preocupação de não fazer barulho nem com os pés amassando as plantas do chão. Sua benção é que o cheiro do medo que estava sentindo não deve ter sido exalado com toda a força, pois o bando de mais de doze javalis absolutamente não desviou sua rota. Estavam plenamente convictos de que eram os verdadeiros reis da floresta.
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Mais tarde, conversando com os amigos com quem iria começar a trabalhar na reforma do prédio comunitário, Markus contava fascinado a sorte que havia sido encontrar os javalis. Todos já tinham ouvido falar dos javalis do Grunewald, mas nenhum havia visto. O carioca, ainda escaldado pela sensação parecida com a de cruzar com doze cações, dos grandes, numa manhã de surf tranquila, preferia que a conversa se encaminhasse para os planos do encontro do dia seguinte.
O dia tinha tudo para explodir... a noite anterior já havia sido a maior zona. Daniel, depois de se despedir de Markus, ainda pensando no sufoco do encontro com os javalis, estava passando pela rua Oranien, às duas da manhã, quando deu de cara com as luzes alvoroçadas dos camburões. Era um comboio entrando Oranien adentro. A rapaziada corria ou se encostava nas paredes dos edifícios. As pedras voavam de todos os cantos. Vindo de trás, um caminhão lança-água ia causando estrago; encharcando a rapaziada. As luzes dos carros, dos postes e das lojas se refletiam nas poças que se formavam no chão. Um ou outro cara se espatifava no asfalto. Era apenas o primeiro sinal... Hoje, Primeiro de Maio, Kreuzberg não ia deixar passar em branco; tinha sido assim nos últimos dois anosa: ao meio-dia a passeata começava a se formar na rua Wiener. O dia estava azul. Os grupos iam chegando; de início uma bandinha e cartazes anarquistas. Para espanto de Daniel, a bandinha tocava músicas brasileiras – tentando dar o clima que os músicas pensavam ser o do Carnaval. Ele se aproximou por
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solidariedade; deu uma sambada para se exibir, mas ninguém prestou a menor atenção. A passeata saiu e ia crescendo. A rapaziada do Markus ainda não tinha chegado. Nas janelas aparecia muita gente; situação nada comum mesmo para Kreuzberg. Grupos com bandeiras libertárias ou grandes famílias turcas sobressaíam, dependendo de qual apartamento, acenando para incentivar a marcha. A manifestação ia em direção a Neukolln, já agora ideologicamente mais definida: atrás, os anarquistas com sua bandinha e bandeiras negras; no meio, os comunistas com suas bandeiras vermelhas; na frente, o bloco negro, formando a tropa de choque, com quase todos usando máscaras pretas cobrindo a cabeça e o rosto, só deixando dois buracos para os olhos. A polícia começava a aparecer enfileirada com seus escudos protetores transparentes. Daniel, acompanhado de Zefa, andava de grupo em grupo, muito agitado. Tentava encontrar o pessoal do Markus, como haviam planejado. Estava achando tudo visual. Uma ótima festa. Começou a estranhar, porém, quando o bloco negro iniciou um ziguezague acelerado; como uma cobra fugindo. Os policiais também começaram a andar mais rápido. As primeiras pedras contra os vidros da loja estouraram. Daniel, se assustando, pensou em correr, mas viu que eram barulhos esporádicos. Parecia existir um acordo tácito: a polícia apenas cercava o bloc negro, formando um corredor polonês, tentando impedir que destruíssem vidraças, mas não dispensava a manifestação...os comunistas continuavam no meio e os anarquistas atrás. O brasileiro, olhando a cara de raiva contida dos policiais, achou mais prudente ficar perto da bandinha.
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Um clima tenso começou a dominar a manifestação. Zefa, assustada, segurava o braço dele. A bandinha anarquista continuava em linha, mas já não tocava. O que dava a Daniel uma certa tranquilidade, entretanto, era que no bloco em que estava havia pais com criancinhas nos ombros caminhando naturalmente. Os policiais demonstravam preocupação apenas com os cara-cobertas. Só uma vez ou outra um manifestante da parte comunista ou da anarquista destruía uma vidraça mas era logo repreendido, sem muito entusiasmo, por outro membro do seu grupo. Era como se dessem um toque para que quem desejasse atirar pedras fosse para o bloco da frente: tudo muito organizado. A andança já durava quase duas horas. Percorreram a rua Wiener e entraram na Glogauer para cruzar o canal na direção da Avenidade Sonnen; dali foram até a altura da rua Herzberg de onde dobraram para pegar a rua Karl Marx; os pés ainda não estavam doendo, mas depois de andarem praticamente toda a Bruschkrug, virarem à direita, na Avenida Blaschko, para iniciarem o retorno pela rua BRitzer, a canseira já agitava. Até agora, durante todo o caminho, fora as pedras estourando vidraças, só se ouvira algumas palavras de ordem, o que decepcionava Daniel, que desejava escutar muito mais refrões revolucionários. Depois de caminharem de volta toda a rua Hermann, no final, na praça, a manifestação parou, como uma manada cansada na beira de um lago. Depois de quinze minutos esperando, Daniel comentou com Zefa que estava estranhando que nem ao menos um comício relâmpago houvesse acontecido. Os grupos sentados conversavam animadamente enquanto os policiais cercavam a praça. Daniel temeu que fosse pra prender alguém mas logo sentiu que não era nada disso; numa
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parte da praça o bloco negro, em outras os comunistas e ao lado os anarquistas completamente relaxados pareciam estar dando um tempo para esperar o início de um show de rock. Depois do descanso a passeata recomeçou com a mesma formação inicial. A quebra das vidraças já estava ficando monótona: nenhuma pancadaria ou intervenção policial. Era apenas o caminho de volta. Zefa dizia que já não aguentava mais, pois afinal já estavam andando há praticamente três horas. O estado de espírito não era só dela, pois as poucas palavras de ordem contra o fascismo e a repressão policial já não encontravam muitas vozes. Pela aparência, o Primeiro de Maio tão esperando seria só aquilo mesmo. A passeata se aproximava da Oranien e os grupos começavam a se dispersar. Daniel reclamava que gostaria de ter visto alguma coisa diferente enquanto Zefa comprava duas cervejas num trailer de vender salsichas. - É, realmente o jeito é beber e dar um rolé por aí. Essa manifestação não está com nada. O Markus devia estar doidão por ter botado tanta pilha – reclamava Daniel no momento em que se ouviu um barulho de corre-corre. Zefa e Daniel foram na hora em direção à confusão que se formava dentro da rua Oranien. De cima dos prédios apareceram muitos membros do bloco negro e começaram a atirar ovos e sacos de água nos camburões. Os ovos, injetados de tinta anelina de várias cores, espatifavam-se formando figuras abstratas. Revolução e arte. Na esquina de Oranien com a Mariannen, um grupo de vinte ou trinta membros do bloco fechou a rua e iniciou o arremesso de montes de pedras contra os policiais. Os fardados entraram nos
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camburões para se proteger, ligaram os motores e tentaram avançar contra os manifestantes para furar o bloqueio. Não conseguiram, pois agora somavam-se ao grupo moradores locais, formando uma barreira de mais de cem pessoas. Teriam que atropelá-los. Seria uma Praça Celestial; massacre completo. Os camburões, no entanto, para espanto de Daniel e Zefa, acostumados com a selvageria da repressão no Brasil e México, de marcha a ré, ordenadamente, foram batendo retirada da rua Oranien. De cima dos prédio e em toda a rua, punks, alternativos e turcos, gritavam pela vitória. Kreuzberg havia botado os porcos para correr. Daniel, eufórico, abraçava Zefa como no gol final de uma Copa do Mundo; na certa associava os porcos fardados à camarilha dos javalis. Não passaram dez minutos e o reforço policial apareceu. Agora eram mais de quarenta camburões, com suas luzes verdes, além de dois caminhões lança-água e um derruba-barricada: um misto de caminhão e trator de terraplanagem. A rapaziada, que se juntara ao pessoal do bloco, cobria seus rostos com lenços coloridos, do nariz para baixo, para não serem reconhecidos pelas fotos tiradas pelos policiais, e ajudava a erguer as barricadas. Caçambas de coleta de lixo semanal eram incendiadas, formando grandes nuvens negras. Um clima de Beirute pintava no ar. Daniel e Zefa corriam juntos com a plateia. Dava para se posicionar atrás do bloco de choque ou atrás dos policiais. Cada lado avançava, ou perdia terreno. O vai e vem das posições. O mais seguro era ficar na retaguarda dos porcos; os pais com crianças se alojavam por lá. Do outro lado era mais emocionante. Volta e meia a correria começava. A dupla latina, é claro, se meteu ali com a galera. Afinal,
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se era para ter emoção, ela tinha que ser completa. Os policiais, quando conseguiam romper uma barricada, investiam como uns loucos. O bloco de choque inicialmente perdia terreno mas, logo depois, reagia atirando pedras, pedaços de pau e latas de cerveja. Novas barricadas eram erguidas: sendo que agora, para dificultar a ação dos porcos, usava-se os carros estacionados na rua. O patrimônio privado, no seu maior sonho de consumo, estava sendo ultrajado. Deve ser isto que irritava, além do normal, o sentimento burguês dos policiais germânicos bem nutridos que reagiam com enorme violência. Toda a redondeza começou a ser cercada. Dois ou três helicópteros sobrevoavam o conflito. Devia haver na região mais de cinco mil policiais. O metrô parou de funcionar. Grande quantidade de paralelepípedos era arrancada das calçadas e atirada. Os manifestantes estavam agora acuados pelos dois lados. O gás lacrimogênio fazia escorrer lágrimas. A turma do grupo de choque, depois de levar muita porrada, conseguiu romper uma das barreiras policiais e se refugiar na rua Manteuffel, mas a perseguição a eles era cada vez mais violenta; vários já estavam sangrando. Daniel e Zefa corriam preocupados. Ambulâncias chagavam para socorrer os feridos. Zefa deu seu lenço a um carinha que levou uma cacetada e que tinha um corte feio na cabeça. Dizia que não podia ir para o hospital porque os porcos estavam lá para prender quem saísse após ser medicado. Pouco tempo depois os policiais afinal conseguiram dissolver a manifestação. Tinha-se a impressão que a batalha havia sido irremediavelmente perdida. Zefa, arrasada, chorava no ombro de Daniel. A raiva dos dois, entretanto, contrastava com a aparente calma da maioria. Garotinhos turcos, lembrando pivetes,
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começavam a aparecer e a brincar de guerra. Pais com crianças continuavam por lá. Os policiais, apesar da vitória, pareciam insatisfeitos. Faziam cara de quem queria brigar. Um mais doidão chutou a própria lataria do camburão. Só podia estar se achando uma vaca fardada: entrou em seguida no camburão e não dando para entender, devia porque estava querendo se mostrar, foi mexer no material usado na repressão e deixou estourar, lá dentro, uma bomba de gás lacrimogênio. O camburão, uma espécie de microônibus, estava cheio e uns sete porquinhos fardados tiveram que pular fora da caçamba. Dos bares em volta, a rapaziada encarnava. O Vaca Fardada ficou mais puto ainda e ameaçou avançar contra quem ria. O deixa-disso dos outros policiais o acalmou. Começava a escurecer e Zefa, deprimida, disse que queria sair dali. Daniel respondeu que estava difícil porque tinham parado o metrô. Decidiram, então, ir para a praça Lausitzer. Quem sabe dar uma passada no Pantera Rosa. Chegaram lá e viram que a punkaria estava toda reunida; metade já pra lá de bêbada. Os cachorros abanando os rabos demonstravam felicidade. Não se sabe por que um dos punks se levantou e gritou: - Vamos acabar com os fascistas! Aclamados, uns cinquenta se ergueram e saíram do Pantera Rosa como uma horda. Talvez, para acalmar a sede antes do combate, foram direto para uma loja de bebidas fechada por causa do feriado, arrebentaram a vitrine e começaram o saque. Em seguida, a distribuição do tesouro: vinho, gin, cerveja, espumante, cada qual levava o que queria. Tinha para todo gosto. Daniel e Zefa, sofisticados, pegaram cada um duas garrafas de Moêt e Chandon.
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Na certa, a luta ia ser boa. O esquisito é que os punks, logo depois dessa primeira ação brilhantemente sucedida, refrearam a fúria revolucionária e resolveram voltar para o bunker; la no Pantera Rosa. Agora o porre estava geral; mais de cento e cinquenta se esparramavam pelas calçadas, saboreando o produto do trabalho. O som dos Elements of Crime rolava alto reforçando a energia. Zefa e Daniel estouraram o champagne e botaram na roda. Se abraçavam e se beijavam maneiro, pois afinal, não dá para se fazer revolução sem amor. Ainda longe, o barulho da sirene dos camburões surgia. Só podia ter sido um cagoete filho da puta querendo estragar a festa. Mas isto não ia ficar sem resposta. Ali era território dos punks. Barricadas foram prontamente erguidas nas ruas de acesso à praça. Os que já não conseguiam se levantar, confirmavam o apoio mas continuavam bebendo deitados no chão. A tomada da loja já requerera energia demais. Zefa e Daniel sentiram que a porrada ia recomeçar. Pelo menos tinha dado para beber os champagnes. Ainda rolava muita bebida; a loja era das bem abastecidas. O som dos camburões se aproximava. A punkaria se agitava. Os cintos eram enrolados nas mãos; as correntes, liberadas. Os cachorros estavam prontos para ajudar a rapaziada. O que não deu para entender foi que quando o som dos carros estava bem perto mudou completamente de rumo. O comboio suíno dos Republicanos não parecia interessado no território dos punks. Daniel e Zefa respiraram aliviados; a dispensa, pelo contrário, enfureceu a punkaria. Os gritos de guerra aos fascistas chegou ao auge, mas eles já longe não podiam ouvir. De
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raiva, um ou dois dos mais radicais botaram fogo num bem privado: uma Mercedez mais ou menos nova; afinal, haviam se preparado para a porrada. Mesmo assim os camburões não voltaram. Realmente, não estavam interessados no Comitê Central dos Punks. Daniel e Zefa decidiram, já bem cambaleantes, voltar para casa. Ele já tinha ideias sacanas na cabeça. Fazer um pecado safado. Ele também. Foram andando em direção à rua principal, para pegarem o caminho de volta. Depois de umas duas ruas viram que a situação continuava confusa. Não havia nenhuma manifestação, mas muitas lojas estavam destruídas e milhares de policiais cercavam as saídas de Kreuzberg. Em várias esquinas, ambulâncias atendiam aos feridos. - A merda deve ter continuado grande enquanto a gente bebia – Daniel dizia baixinho dando um beijo na orelha de Zefa. A mexicana, bem safada, se arrepiou toda. Continuaram andando, sem rumo, abraçados. Era tarde e a grande maioria das pessoas já havia ido para casa. As ruas em volta da Oranien estavam bem destruídas, deixando expostas as marcas finais da batalha, Zefa pediu um cigarro a um casal que passava e a mulher, surpresa, perguntou: - Vocês são estrangeiros; o que estão fazendo aqui? - Viemos a uma festa – Zefa respondeu rindo. Daniel, percebendo que a brincadeira não agradou nem um pouco ao casal, se imbuiu de consciência política: - A Zefa, minha amiga, está falando besteira. É que já bebemos de monte. Nós viemos dar uma força pra manifestação.
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- Mas é muito perigoso – falou, responsável, Helga, que vestida de calça e casaco de couro pretos, parecia gêmea de Karl: tanto na roupa, como no corte de cabelo bem curto e no lenço vermelho ao pescoço. – Se pegam vocês aqui, sendo estrangeiros, podem até ser extraditados. - Mas é que tá meio difícil sair daqui – Daniel falou displicente. Helga, muito séria, olhou para Karl, como que tendo um contato telepático. Olhos nos olhos, leves sinais com as sombrancelhas: - Ok – falou a seguir – vocês devem vir com a gente. É mais seguro. Daniel não entendeu o que estava acontecendo; realmente passar pelos guardas não era tarefa agradável, mas não acreditava mesmo que pudesse ser detido; afinal muita gente já tinha conseguido ir embora. Achava que o casal estava levando tudo aquilo a sério demais; parecia que era um filme do 007 ou outro que tinha visto, em preto e branco, sobre a atuação dos Maquis na resistência. De qualquer maneira achou maneiro seguir o casal de contra-espiões pela noite sem metrô. Zefa, doidaça, ria alto e isto irritava Daniel, pois atrapalhava todo o clima: - Ô Zefa, se toca – falou em portunhol – para de rir; vamos seguir eles na boa pra ver o que acontece. O casal começou então a traçar planos para alcançar o final de Kreuzberg. Discutiam em alemão e Daniel, entrando na onda, imaginava que elaboravam importantes estratégias militares. A expressão deles era de total compenetração... Explicaram, então, em inglês, que por medida de segurança trilhariam um caminho especial.
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Daniel achou tudo bem, mas estranhou pegarem uma rua escura, ao longo de um canal, que ele sabia que seguia em direção contrária à da sua casa: - Mas nós queremos ir para Kreuzberg 61 e estamos indo para Neukolin – falou estranhando. - É para despistar os policiais civis... veja aquele carro branco estacionado... os homens dentro, tenho certeza, são civis – disse Karl com uma voz grave e com a total concordância de Helga. Andaram uns vinte minutos até que Karl falou que ainda tinham de passar por um lugar para dizer que estava tudo em ordem Daniel achou despropositado, pois afinal já tinham andado para bem longe da zona do tumulto. Cutucou Zefa que, ainda ainda de porre, não prestava atenção a nada e só reclamava de dor no pé. Helga, numa de o que é isto companheira, reprovou, marcialmente, a pouca fibra de Zefa. Em frente de uma farmácia homeopática, Karl, misterioso, parou e deu umas pancadas de leve na porta, que pareciam código. Depois da segunda sequência de batidas, um cara barbudo semi-abriu a porta. Karl falou alguma coisa rápida em alemão e o outro respondeu baixo e com poucas palavras; a seguir ele fechou a porta. - Tudo bem, está tudo seguro, podemos finalmente relaxar. A missão está cumprida – Karl falou com uma voz de quem acabar de salvar o planeta de uma invasão. Helga deu um beijo apaixonado nele, e Daniel, aproveitando a cena, se emborcou com Zefa, pois todos os heróis, é claro, têm de merecer um final feliz. Se despediram, então, depois de Karl explicar didaticamente, por mais de meia hora, todos os motivos da manifestação. Daniel e
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Zefa ouviram, compenetrados, toda a explicação e, após, abraçados e aliviados, com o fim de tanta conversa, seguiram rumo a seu apartamento. Enquanto andavam, a mão direita de Daniel acariciava a bunda de Zefa e a mão esquerda de Zefa, a bunda de Daniel. O jovem casal revolucionário, com completa igualdade entre sexos, caminhava satisfeito para a cama. No outro dia, contando vantagem a Holli sobre tudo que tinha passado, já tendo comprado orgulhoso os principais jornais que abriam as manchetes chamando o movimento de terrorismo, já pensando em recortar e mandar as fotos para o Brasil, teve que baixar a bola quando Holli, com um ar de tédio, falou quase sem prestar atenção: - É, participei das manifestações nos últimos dois anos. Quem sabe no próximo a informação turística da Prefeitura possa oferecer um tour completo por Kreuzberg, no Primeiro de Maio, com direito a emoções fortes.
Maio ia passando e tudo corria tranquilo. Lá pelo meio do mês bateu uma semana de calor; não dava para se concentrar nas aulas. O professor, ainda com menos saco, gritava cada vez mais. Aquela atmosfera de jardim de infância atordoava Daniel. Só Zefa segurava a sua onda na escola. O bar da esquina começou a ser mais frequentado do que a sala: se não se aprendia alemão, ao menos se ouvia boa música. Numa quinta-feira absolutamente azul, Markus convidou Daniel para ir a uma piscina pública e fazer uma sauna. O tempo era
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convidativo. Daniel não perguntou por que ele tinha escolhido Schoneberg, pois sabia que ele queria encontra-se com Sabine, que haviam conhecido no Trash, num fim de noite, há duas semanas e que estava trabalhando no Razzo. Quando chegaram na loja ela ainda não podia sair e eles ficaram dando um tempo no café ao lado, que tanto fazia a cabeça do brasileiro. Rolou, como sempre, uma caneca de chocolate com creme e a olhada nas revistas sobre música. Sabine, uma alemã grande e bonita, entrou no café com uma amiga que era o maior tesão. Daniel olhou tudo aquilo sem acreditar. Então, vamos para a sauna? – perguntou Markus. No caminho as conversas de sempre sobre o ultimo show ou sobre uma ida até o outro lado da Alemanha. No vestuário, Daniel foi colocando sua sunga e, vendo que Markus apenas se enrolava numa toalha, perguntou se ele não ia botar o calção. Markus disse um não sem qualquer alteração de voz. Daniel o foi seguindo até a sauna a vapor, já pensando na ótima que seria gastar um pouco do veneno acumulado por todas as noitadas. A surpresa foi completa, no entanto, quando ele, entrando na sauna, logo de cara notou que era o único vestindo calção. Todo mundo, mais de quarenta pessoas entre homens e mulheres, estava nu. Daniel, no mesmo instante, pensando na situação ridícula de ser o único vestido, foi tirando su sunga para se sentir mais normal. Na verdade estava meio constrangido de estar pela primeira vez pelado numa sauna mista. A coisa foi ficando mais complicada quando Markus fez sinal para eles se sentarem junto com Sabine e sua amiga tesuda. O frio no estômago e nas pernas bateu forte. Tentou parecer natural e iniciar alguma conversa. Não dava, estava ficando engasgado. Markus e
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Sabine se sentaram na bancada de cima e ficaram conversando animados. Na sua frente, Monika, a amiga de Sabine, deitou-se com a cabeça apoiada na parede e na maior recolheu as pernas deixando quase dentro da cara do brasileiro a boceta abertaça. Ele não sabia o que fazer; um calor começou a tomar seu corpo; tentou falar olhando para a cara da alemã mas uma vontade louca o fazia olhar para os pentelhos louros dela. Daniel entrou em pânico, pensando que iria ter de se matar de tanta vergonha quando sentiu que seu pau começava a querer engrossar. Suas ideias se embaralhavam. Nos primeiros segundos desviou os olhos para o outro lado, enquanto os ouvidos já não distinguiam o que Monika lhe perguntava. Sentia-se cada vez pior, vendo que o pau continuava a ganhar energia. Procurou pensar na prova de alemão que iria ter de fazer na outra semana, olhar para o teto, mas seus olhos, completamente ingratos ao seu comando, voltavam a encarar o corpo perfeito de Monika; os pelos macios, o umbigo e os peitos grandes e duros. A situação era crítica e parecia não haver saída: Autoflagelo?... Pegar a toalha e me enrolar?... Virar de costas?... Deus me ajude! – tudo passava por sua cabeça, enquanto que todo o corpo ia esquentando. Daniel não teve alternativa; levantou-se, no meio de mais uma frase dirigida a ele pela gata, pegou seu calção e a toalha, sem dar tempo nem para se enrolar, e saiu correndo em direção à porta, pois tinha visto, antes de entrar, que do lado de fora havia a salvadora ducha fria. Embaixo do jato d’água, puto consigo mesmo e com aquela alemanzada broxa, se martirizava esperando que o tesão diminuísse, enquanto seu cérebro, desavergonhado, continuava a atrapalhar tudo repassando com grandes flash-backs a visão de sua ninfa.
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Após se trocar esperou ainda uns quarenta e cinco minutos, na cafeteria no andar de baixo, pensando no que iria dizer quando encontrasse os três: claro, vou falar que a sauna a vapor me deixou tonto e que quase desmaiei; então tive que correr – imaginava enquanto bebia um chá quente, ao invés de uma cerveja, como punição por mau comportamento. Nisso apareceram os três conversando alegres e, antes que ele pudesse falar qualquer coisa, Markus perguntou: - E aí Daniel, procuramos você por toda parte lá na sauna; me esqueci de lhe dizer que tinha uma porta que dava direto para a piscina. Daniel, ainda envergonhado, começou olhando para os pés dos três e lentamente, enquanto ouvia a frase de Markus, foi subindo a vista, tendo como foco o trajeto que levava aos olhos de Monika. Ele se acalmou quando, encarando os seus olhos azuis, viu que ela lhe dirigia um olhar tão simpático e doce quanto antes. Ficou claro, na cabeça de Daniel, que naquela inocência alemã, nem ao menos a gata tinha notado um pouco da vontade de seus pecados. Quando se separaram das duas, depois que combinaram programa para o fim de semana, Daniel contou para Markus o sufoco que havia passado: - Vocês são uns doidos. Como é que podem ficar na frente de uma gata com a perna aberta, a meio metro da cara e aguentar? Acho que vocês são todos uns viados. Markus, espantado, não entendia o que o brasileiro falava: - Você nunca foi a uma sauna mista?
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- Cara, só uma vez na casa de um amigo meu lá perto da minha cidade; mas era pra fazer sacanagem com uma amiga. Somente eu e ela e não este bando todo; se fosse lá no Brasil, na certa, ia virar a maior orgia. Markus achou graça e disse que, se fizesse bom tempo, no outro dia, eles iriam tomar sol no Parque Viktoria, pois tinha certeza de que Daniel iria curtir o passeio. - Eu sei onde é o Parque Viktoria; fica bem perto da minha casa. Mas da próxima vez que a gente voltar a esta sauna, mesmo que eu caia no maior ridículo, vou ficar enrolado numa toalha filmando legal todas aquelas gatinhas. Por sorte, coisa não muito normal para maio, no outro dia o sol batia ainda mais forte. Markus telefonou de manhã e passou na casa de Daniel. Chegando no parque a cena era ainda mais surrealista: no meio do Viktoria, é claro que numa parte do parque um pouco mais na moita, mas mesmo assim completamente aberta, de cem a duzentas pessoas tomavam sol aglomeradas como se estivessem numa praia. O que ameaçou afligir Daniel, no entanto, é que a grande maioria estava nua. Famílias ou casais nus jogavam peteca, cartas ou liam; tudo na maior paz, como num piquenique. Depois do susto inicial, o brasileiro se concentrou um pouco e foi se acalmando; não é que deixasse de dar suas olhadas, mas começava a se acostumar com o nudismo berlinense. Só na hora em que eles saíam do parque em direção a sua casa, é que pintou um lance que barbarizou um pouco: quando estavam atravessando a rua, já do lado de fora do Viktoria, um alemão, totalmente tranquilo, ia andando em direção ao parque, no meio da rua, completamente nu. Daniel apontou para Markus se esporrando
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de rir enquanto seu amigo, depois de uma olhada rápida, comentou: - Na certa ele mora num dos prédios daqui em frente.
Junho começou chovendo, depois de quinze dias de sol. A deprê foi pegando Daniel: não era só a falta de sol, mas também a saudade de casa, o saco cheio do curso de alemão, e o cansaço dos trabalhos pesados que vinha fazendo para juntar uma grana. A gota d’água foi uma briga com Bettina: ele tinha chegado com Markus e outro amigo às cinco e meia da manhã, completamente bêbados, e começaram a ouvir música no quarto. Tudo bem, não estava assim tão alto. Quando bateu a vontade de ir ao banheiro, Daniel se esqueceu de fechar a porta do quarto eo som acordou a fera. Bettina, com um creme branco recheando a cara, estabacada dentro de um pijama de flanela estampado, com os cabelos ruivos crespos arreganhados, saiu nervoso do quarto e, sem dar tempo para qualquer desculpa, iniciou a pegação: - Você é mesmo um sul-americano incivilizado – disparou gringamente – não sei por que lhe aceito aqui. Aposto que se fosse uma mulher teria mais consideração com a individualidade dos outros; seria mais solidária. As palavras penetraram o cérebro de Daniel que já estava bem transtornado por efeito dos deuses, e o sangue subiu. O brasileirinho ficou macho e, já que não podia dar uma porrada nela, começou a gritar:
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- Sua feminista de merda, tu nunca levou um pau nesta boceta. Você tá é com tesão. Se nunca consegue dormir, vai para o banho quente e bate uma siririca. A tedesca ficou entre mais branca e mais vermelha; parecia que as cores se alternavam. Não sabia se avançava unhando Daniel ou se corria de tanta vergonha. Com uma expressão enfurecida disparou: - Garoto machista! Há muito tempo eu já não aguentava sua cara. Pegue suas coisas e saia desta casa. A turma do deixa disto, espantadíssima com a fúria da discussão, chegou para tentar apartar: Muriel, completamente sonada, saiu do quarto com o namorado. Markus ainda deu uma esticada com a cabeça para fora do quarto mas achou mais prudente ficar na dele. Daniel, completamente irado, disse que só iria embora se quisesse, baixou a calça e mostrou a bunda a Bettina: - Bota uma joiazinha aqui, sua mocoronga! Bettina mal pôde ver e deu um grito histérico; entrou no seu quarto, aos prantos. Muriel segui-a para tentar acalmá-la. O namorado de Muriel falou para Daniel se tocar. Não é que houvesse tomado partido de Bettina. Parecia que estava a fim de rir de montão. Mas a cena que o brasileiro bêbado aprontara, tinha ultrapassado qualquer possibilidade de diálogo. - Não vou embora daqui – Daniel gritou entrando no quarto. - O que aconteceu? – Markus perguntou fingindo não ter notado.
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- É essa piranha com a boceta entupida querendo mandar em mim. Acho que vou me mandar mesmo; e não vou pagar estes quinze dias do mês. Vou ligar para o Holli e dar um tempo lá. - Não, pode deixar, meu tio está viajando por duas semanas; você pode ficar em nossa casa. Daniel arrumou suas coisas e bateu a porta ainda cheio de razão. Depois de poucos dias se arrependeu, mas já era tarde; além do mais, a ideia da viagem à Espanha já tinha pintado. Quando voltasse pensaria novamente na vida.
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– IV – TEMPO CAVERNOSO
Na volta da viagem à Espanha, Markus e Daniel resolveram morar juntos, já que Daniel não podia voltar para a casa de Bettina e Markus estava de saco cheio de ficar na casa do tio. No Mitwohnzentrale encontraram o apartamento do sonho dos dois, pois ele ficava localizado bem no meio da rua Oranien... assim, finalmente Kreuzberg se escancarava para eles e os transformava em autênticos berliners. Quem sabe até se ligariam aos grandes mestres da desobediência civil... O apartamento, dando para um beco, era úmido e escuro. Porém, como no caso do apartamento de Bettina, tinha três quartos. Fora o som, a geladeira e o fogão, apenas uma cama e um armário em cada quarto, dois sofás de veludo preto já rasgados e uma mesa com duas cadeiras na sala, compunham os móveis da casa. - Sabem, no último inverno tinha outras quatro cadeiras, mas num fim de semana eu estava completamente duro e tive que transformá-las em energia – Martin explicava falando pausado, com má vontade pelo esforço de ter de falar. – É assim quando não se tem calefação a gás. Prédio podre é este que vocês escolheram. Tão podre quanto esta cidade de merda.
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Markus e Daniel ouviam com simpatia o terceiro morador do apartamento: alcoólatra, radical, cabelo raspado, Martin estava trilhando o caminho do desespero. Seu ritmo já era agonizante. Com vinte e dois anos já havia sido internado algumas vezes para desintoxicação. Só que não tinha adiantado nada. Era sair e recomeçava a beber: - É que quando estou com a cabeça limpa não consigo entender meus amigos. Todos eles bebem e eu fico me sentindo sozinho. Não existe nexo nas frases dele... como esta cidade de merda – repetia – ou esta bosta de apartamento; sempre escuro e cheirando a podre. Desde os dezesseis anos, quando abandonou o secundário e saiu de casa, ele se virou de emprego em emprego e nos intervalos, esticando ao máximo o que a lei permitia, viveu sempre do seguro desemprego. Agora, no estado em que estava, já não conseguindo trabalhar regularmente, depois de cada intervenção voltava para casa e recebia dinheiro do Auxílio Social, mas era obrigado, sob pena de não obter mais nada, de seguir um tratamento psicológico que incluía a indicação de um trabalho. Desta vez a prefeitura designou para ele uma piscina pública, a menos de um quilômetro de seu apartamento, na qual tinha que ir cinco dias por semana e trabalhar como ajudante de faxineiro. Eram poucas horas por dia e ele ia cambaleando, depois de tomar cinco litros de cerveja pela manhã; voltava depois de seis horas, com muito mais álcool no sangue, para se deitar no chão da sala e ficar ouvindo Black Flag ou outra banda qualquer. Sem força e sem saco para se levantar, geralmente vomitava aonde estivesse deitado, e a cena grotesca já nem incomodava a Markus e a Daniel. Quando Sigrid, sua
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namorada, não lhe visitava, era Markus, com sua paciência infinita, que lavava o chão e botava Martin na cama. Seu pai, um ex-tenente que sofria de depressão como consequência da guerra, nunca conseguiu parar num emprego ou em uma cidade. Martin morou até os dezesseis anos em sete diferentes lugares do norte ao sul da Alemanha. Desde os quatorze, quando o pai soube, através de policiais que o levaram em casa, que havia sido pego numa loja roubando um jeans, sua vida virou um inferno. Por qualquer motivo lhe dava surras enormes, de deixar as feridas nas costas abertas por uma semana. No fundo Martin sabia da injustiça de tudo aquilo; que estava servindo para desabafo das frustrações de seu pai. Cada cintada ardia mas, por outro, criava calo na alma. Ele aguentava calado, sem denunciar o pai ao juizado de menores, porque sua mãe lhe implorava que não o fizesse, temendo a reação de seu marido. Aos poucos ele começou a odiar o pai. Na escola foi caindo de nível e acabou mandado para uma sala de alunos inferiores. Na rua, os primeiros porres com a rapaziada. Só ali podia ser entendido. Quando saiu de casa, já tinha se picado e bebia todas as noites. Saiu com coragem, achando que ia acertar na vida. Não deu certo. Aos dezoito anos escreveu uma petição radical dizendo porque não queria servir ao exército. Usava a palavra nazista com maestria: foi convocado, respondeu que não iria: ameaçado de ser preso, apresentou-se em Frankfurt. Foi mandado para o norte, na fronteira com a Alemanha Oriental, aonde serviu, inicialmente, como motorista de ambulância.
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Esse primeiro tempo no exército até que não foi mal. Como a vila próxima da base era mínima, a ambulância servia, na realidade, como um Serviço Social. Martin viu de tudo, transportando doentes, ajudando em qualquer emergência. A experiência positiva que mais o tocou aconteceu num dia de inverno em que a tempestade de neve impedia que se enxergasse a poucos metros: a ambulância foi chamada com urgência pois uma mãe estava para ter um filho e o carro do casal havia quebrado. Foi a maior dificuldade para chegar na casa que ficava localizada no campo. Quando ele e seu colega chegaram não havia tempo para mais nada. A mulher já estava adiantada no trabalho de parto. O marido, desatinado, quase se jogou aos pés dos dois quando entraram: - Me ajudem, pelo amor de Deus, meu filho não pode nascer aqui. Os dois, com seus dezoito anos recém-completados, não sabiam o que fazer. A mulher gemia e implorava: - Por favor, um médico; meu filho vai morrer. O marido, em pânico, não tomava qualquer decisão. Martin não soube como, mas sentindo uma enorme pena do casal começou a gritar: - Muito bem, tragam panos e uma tigela de água quente. O marido, estatelado num sofá, com a boca aberta, dava a impressão de que não tinha nada a ver com o que estava acontecendo. Hans, seu companheiro, se encarregou, então, de bancar o auxiliar. Martin ia fazendo gestos e demandando ação da mesma forma que havia visto num filme na televisão, pois nunca tinha feito um curso sobre parto; era alguma coisa muito forte, de dentro dele, que o levava adiante; como se aquele bebê
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representasse um renascimento para ele mesmo. Da barriga daquela mãe sairia um ser novo que viveria numa família tranquila de um vilarejo; sem fantasmas das bombas de qualquer guerra. Aquela futura criança, ajudada a nascer por suas mãos, não precisaria mudar de cidade em cidade; seria amada por seu pai e nunca teria suas costas abertas por alguma brutalidade. Aquele bebê iria nascer saudável e ter uma vida feliz; não tomaria um pico aos quinze anos, nem seria expelido de casa aos dezesseis. Hans trouxe rapidamente a água quente, toalhas e uma tesoura, e ambos, tímidos mas carinhosos, procuravam acalmar a mulher. Martin queria chorar e vomitar; não sabia o que fazer primeiro, mas foi em frente: - Faz força, senhora, ele está vindo! Assim que cortou o cordão umbilical e, já tendo visto que era um menino, pegou o guri pelas pernas, - quando logo depois da palmada o moleque começou a chorar – ele não se conteve: enquanto botava a criança sobre a barriga da mãe, deixava escorrer sobre o corpo da senhora seu choro tão forte quanto o do bebê. Na sala, sem poder agradecer de tão assustado, o pai estava mais roxo do que seu filho. Por aquele tempo Martin conseguiu parar completamente de beber: ter feito o parto mexeu no fundo; chegou a pensar em frequentar a igreja do vilarejo, estava integrado no trabalho e no exército. Um azar, porém, o fez mudar de caminho... Hans e ele estavam voltando no fim de tarde para a base, depois de algum trabalho de ajuda comunitária, quando, em um segundo, só deu para ver, no sentido contrário da pista, uma garotinha andando pela estrada de bicicleta e um carro
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desgovernado se chocar contra ela. Logo a seguir, seu corpo lançado para o alto. Martin, desesperado, parou a ambulância sem se importar com o carro batido numa árvore. Tinha enxergado, no meio do asfalto, a cabeça da menina separada do corpo. Martin correu para o carro. Queria matar o filho da puta que havia provocado aquilo. Hanz correu atrás dele. Martin abriu a porta e o homem estava agonizando. Fazia movimentos com a cabeça pois não conseguia respirar. Como estava bêbado, com a batida na árvore ele havia vomitado. O vômito estava interrompendo sua respiração pois ele caíra numa posição em que não podia se mexer. Martin gostaria de ter uma faca para matar o animal. Seu cérebro, nessa fração de tempo, só via a cabeça da garotinha espatifada na estrada; olhava para o homem desejando sua morte. Hans, no entanto, gritou: - Vamos, Martin, bote o dedo na garganta dele e desobstrua o vômito. Martin ainda permaneceu parado, com um olhar frio, desejando ser o carrasco do monstro. Um tapa na cara, dado por Hans, o trouxe à realidade. Saiu do transe e enfiou seu dedo, limpando aquela garganta nojenta. O homem chorava e pedia que o deixassem morrer, pois da porta aberta do carro já havia visto o corpo dilacerado da menina. Martin ainda ajudou Hans a transportar o homem e o corpo da garota para a base, mas depois desse dia não conseguia mais olhar para a ambulância: ter coberto com plástico as partes separadas da menina havia sido demais para ele. À noite os pesadelos o atormentavam. Tanto ele quanto Hans pediram imediatamente para ser transferidos. Martin voltara a beber escondido.
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O tempo ia passando e para Daniel Berlim perdia seus mistérios. A vida em Kreuzberg era ótima, mas já não apresentava novidades: festas, noitadas e algumas gatas; nada de muito constante. Ele conseguiu, ajudando a reforçar o seu ego, ganhar a Monika e estava passando bons momentos com ela. A tedesca era cheia de fogo e gostava de aquecer a cama. Daniel na verdade curtia ser ganho pelas alemãs a fim de uma pele morena, mas já estava cansado de atuar: de abrir garrafas de cerveja com os dentes, de estar sempre pronto para transar a fim de não negar a fama latina. Na real, batia forte a saudade da família, da rapaziada do surf, da Martinha, sua última namorada, que não deixava de lhe mandar cartas decoradas com Snoopies ou com desenhos de flores e corações... O inverno ia chegando em Berlim enquanto novembro agitava a rapaziada no Rio. Mas esfriando a cabeça ele sentia que não era a hora de voltar; que muitos lances ainda teriam de ser vividos. Na verdade só queria dar um tempo para a deprê do apartamento, para os vômitos de Martin, para a falta de dinheiro e principalmente para tirar a Zefa da cabeça. É claro que estar com a Monika lhe dava a maior força, mas eles se curtiam sem nenhum compromisso; às vezes não se viam por mais de uma semana. Monika era decidida e independente. Tinha seu trabalho na Razzo. Estava horas nos fins de semana porque queria entrar para uma universidade dificílima. Para ela Daniel era muito mais um amigo do que um amor.
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Ele se orgulhava de desfilar com uma mulher como Monika. Sabia que quando entravam nos bares muita gente olhava. Formavam um casal bonito, mas ele ainda estava marcado pelo que achou ser uma dispensa...
Mas então qual é? – se perguntava Daniel deitado, tendo a cabeça de Zefa sobre seu ombro. A transada foi perfeita, nós gozamos juntos, eu sei que ela tem tesão por mim. Por que ela não esperou até amanhã pra falar? Zefa apertava seus peitos pequenos contra as costelas de Daniel, aninhando-se como se aproveitasse de um calor que sabia que iria perder; mas não tinha jeito, já havia tomado a decisão. Mas precisava sair de lá assim? Sem ao menos discutir com a família? Eles te pagaram a última semana? - Quero que vá para o inferno o dinheiro daqueles fominhas. Eu não aguentava mais olhar para aquelas duas pestinhas com cara de minicaveiras. Acho que eles sempre estavam com fome. Você já cuidou de criança na sua vida? É um inferno!... o pai sempre controlando a comida, dizendo que eles iriam engordar se eu continuasse a lhes dar chocolate... No dia que o Carlos me ligou de Londres, dizendo que estava fazendo um vídeo e que tinha lugar pra mim na produção, nem deu para pensar. Foi assim, o que você queria que eu fizesse? A pergunta de Zefa soava como um desafio a Daniel. Os olhos dela o provocaram para uma decisão: mas a verdade era que ele estava apenas ferido, que queria continuar com Zefa na situação
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cômoda de cada um vivendo no seu próprio apartamento. Ele estava sofrendo porque não esperava ouvir que ela iria deixar Berlim. Queria que ela estivesse perto, para os momentos de festa ou de solidão. Não para toda hora. E Zefa já sentira isto desde junho, no dia em que ele comunicou, na maior calma, que iria para a Espanha com Markus. É claro que ela sabia que não poderia deixar a casa da família em que estava trabalhando pra viajar, pois não tinha dinheiro; mas acabou que foi fácil demais para Daniel sair de férias sabendo que ela o estaria esperando. Agora era a sua oportunidade. Ele que fosse atrás e a encontrasse em Londres... No fundo, é certo, queria era que ele suplicasse para que ficassem juntos, se aquecendo, esperando o inverno passar... ao invés disto Daniel apenas a beijou fundo; como nunca. Pouco depois de ouvir que ela iria partir, ainda disparou algumas frases, mas depois ficou mudo e, enquanto Zefa acariciava seu corpo, esperando qualquer palavra, ele apenas deixou que o tesão voltasse, que seu pau demonstrasse que tinha desejo e a colocou sobre sua cintura. Meteu olhando direto para os olhos dela. Zefa tentava deitar sobre seu corpo mas ele não permitia. Queria ver ela gozando, implorando que ele metesse mais e mais. Segurava-a com força fazendo-a cavalgar e quando sentia que ela estava quase gozando parava, dando um tempo, para só então recomeçar. Ela sabia que ele não a estava amando e sim castigando, mas queria aproveitar esta última vez e por isto entrava no jogo, arranhando seu pescoço, fincando as unhas no seu peito. Daniel soltava gemidos de prazer e dor e a apertava ainda mais, metendo com mais força; só que agora qualquer tentativa de controle perdia
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seu motivo. Ele também sabia que era a última vez e seu corpo só queria viver completamente aqueles últimos minutos. Quando acordaram, como em uma cerimônia, fizeram um café da manhã enorme, estendido sobre uma colcha na beira da lareira. Os dois, nus, somente se olhavam, não conseguindo acertar uma conversa. Zefa ainda tentou brincar mas Daniel a encarava distante. Estava triste, não dava para disfarçar, mas era a tristeza de quem perdeu uma coisa que lhe pertencia; talvez o brinquedo preferido. Mal Zefa saiu, ele começou a beber. Não queria pensar nela, mas seu rosto insistia em aparecer; principalmente quando olhava para a neve fina que começava a cobrir a capota dos carros estacionados em frente do prédio. À dez da noite foi para o Mitte bar. Sentou sozinho no canto do balcão e ficou olhando, sem pensar, para uma mulher mais velha, que usava um batom roxo, na outra ponta do balcão. Ela servia, principalmente o roxo dos lábios, apenas de ponto de referência para sua visão. Era um marco fixo que permitia que ele não perdesse a capacidade de se isolar no vazio. A mulher, de mais de quarenta anos, se aproximou e lhe ofereceu uma vodka. A cada pergunta ele respondia sem pensar, se deixando levar, continuando a fixá-la com os olhos parados. Ela se aproximou e o beijou. Ele deixou, sem nenhuma reação. Ela pagou a conta dos dois, segurouo pela mão e ajudou-o a se levantar. Ele a seguiu, agora fixando-se em seu cabelo preso, deixando aparecer a nuca branca... Em pouco tempo estavam deitados na cama macia de um apartamento que ele nunca chegou a lembrar aonde era e, enquanto ele fodia, tentando não pensar em Zefa, a mulher, gemendo alto, se ardia:
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- Isso, meu bebê... isso, meu bebê ... mete com força, meu garotinho.
No final de novembro a situação piora. Martin vai visitar um amigo em Berlim Oriental e toma mais dos seus inumeráveis porres. Só que desta vez decide dar uma de herói: à noite, quase na hora de ter que retornar para o lado Ocidental, resolve, junto com seu amigo, traçar um plano de fuga completamente estúpido. Simplesmente dá seu passaporte para o outro: - Vai Helmut, vai ser muito fácil; você é a minha cara – dizia, mal conseguindo enxergar a fotografia do passaporte – depois eu digo para os guardinhas da fronteira que o perdi na rua. Helmut, tão bêbado quanto ele, apanhou o passaporte e partiu decidido, tendo antes, é claro, brindado o irmão de resistência com mais meia dúzia de Steinhager. Duas horas depois, os dois já se encontravam presos. Não adiantou Helmut dizer que havia achado o passaporte no chão, tentando inocentar Martin; a polícia da fronteira achou a desculpa primária e mandou ambos diretamente à Polícia Especial. Após três dias do desaparecimento de Martin, Sigrid depois de procurá-lo por todos os lugares acabou informada que ele estava preso, que seria julgado, e que na certa pegaria um ano de prisão. Desesperada, telefonou para os pais de Martin que secamente disseram achar a punição muito boa para servir de exemplo para ele, além de que provavelmente se curaria do alcoolismo.
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Daniel ficou enojado pela frieza deles, e a depressão que sentia nas noites cada vez mais longas e os dias cada vez mais cinzas aumentou ainda mais; andar agora pelo apartamento, vendo o quarto vazio de Martin, sabendo que ele estava sofrendo numa prisão na DDR por causa de um porre e de uma irresponsabilidade inocente lhe doía. Saber que Martin só teria sua pena revista se o governo ocidental resolvesse interceder pagando pela diminuição do tempo de prisão o revoltava. Começou, então, a pensar realmente em dar um tempo de Berlim. Nessas horas em que se sentia perdido Daniel procurava conversar com Holli pois, mesmo gostando demais de Markus, talvez por terem a mesma idade, não se sentia seguro o bastante para pedir uns toques. Markus era ainda menos vivido do que ele. Holli, cada vez mais ligado no Oriente, dizia que ele deveria entrar para uma meditação ou se mandar para a Índia; reciclar as suas prioridades e sua vontade de consumo. - Eu concordo com você; quero ver coisas novas e aprender a pensar de um modo diferente, mas com estas merdas de trabalho que arranjo não vou conseguir juntar dinheiro pra passagem; vai tudo na bebida e no haxi. Com a grana que meu pai me manda, ficar lá não seria o problema... não sei não, acho que vou ter mesmo é que passar o inverno naquele apartamento sem calefação... quem sabe nesse ano as duas cadeiras e a mesa vão aquecer um fim de semana em que Markus e eu estivermos duros. - Você tem de pensar com calma, irmão; oportunidade é que não falta.
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As palavras de Holli pareceram profecia. De noite, no Milch Bar, alugando uma outra figura sobre seus problemas, ouviu uma proposta radical: - Daniel, eu não estou podendo fazer isso porque minha cara é conhecida; já sabem o vinho que eu represento. Mas você não tem nada a perder. Ninguém sabe quem é você. É só irmos com um caminhão até a região do Mosel e pegar o vinho. Aí a gente troca a embalagem e diz que é vinho natural, completamente sem química. Os otários vão pagar o dobro e ainda achar que estão numa muito melhor que a nossa. Protegidos eternamente contra o câncer e a menopausa. Nós vamos ganhar um monte de dinheiro no mole e você poderá passar o inverno aonde quiser. Durante a noite Daniel não dormiu; queria ganhar o dinheiro fácil e se mandar para o Oriente; com tanto dinheiro poderia convidar o Markus para ir com ele... Sri-Lanka, Índia, Nepal, Birmânia, Tailândia, Austrália, Tibete, Bali, o mundo inteiro estava gritando por ele; atiçando sua gula. O brasileiro estava realmente inquieto; tinha vontade de descarregar suas neuroses nos naturais; chegar lá no Centro Liberdade Espiritual e vender dezenas de caixas de vinho para que eles repassassem a todas as filiais do movimento; saber que eles iriam beber o vinho falsificado e continuar a dar duas festinhas com a mesma felicidade: Quem sabe dou uma mijada dentro? Vai ficar ainda mais natural – imaginava Daniel. Mas na manhça seguinte, pensando no Markus e no Holli, na seriedade com que levavam a ideia de se ter uma comida menos contaminada com agrotóxicos, ele chegou à conclusão de que seria
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impossível dar um malho nas lojas e restaurantes naturais. Tudo bem que continuasse a não se importar com os cheeseburgers do Mc Donald’s misturados com papel de jornal e cuspe, e ficar bebendo vinho de garrafão do mais barato, contanto que respeitasse as pirações de seus Brothers. Se era para dar uma de esperto, o melhor seria apelar para a família. No mesmo dia de tarde ele escreveu uma carta para seu pai desejando, antecipadamente, Feliz Natal e dizendo que neste ano dispensaria qualquer presente que quisessem lhe mandar porque aprontara uma grande. Pediu, então, que os avós e ele se cotizassem e lhe enviassem mil e quatrocentos dólares para que pudesse pagar o prejuízo que causara com a batida que dera com o carro do Holli, pois não tinha mais cara de olhar para seu amigo que tanto o havia ajudado quando chegou a Berlim. Escreveu, para dar mais realidade, que se fosse necessário retornaria ao Brasil para trabalhar e repor o total de dinheiro que estava pedindo. A carta foi escrita com inspiração; realmente dramática, pois o pai nem discutiu e mandou um telegrama para que ele telefonasse para Herr Steinmann, em Colônia, que ele lhe adiantaria o dinheiro.
Eis que naqueles dias de começo de dezembro, Deus finalmente iluminou a vida de Markus, pois ele conheceu Catarina, numa festa antiapartheid e imediatamente começou a namorar. Foi alguma coisa inexplicável; deve ter sido a posição dos astros. O show já rolava há umas duas horas e Markus, como sempre na dele,
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sentado no finalzinho da arquibancada, bebia sua Beck’s ouvindo o som afro, só saindo do seu autismo na hora dos discursos. Aplaudia solidário para logo depois, sem olhar para o lado, voltar a sentar e embarcar no seu próprio tempo. Nem ao menos notou que do seu lado, uma garota de quinze anos, magra, corada, com o cabelo liso escorrido e comprido, acompanhava seu ritmo: com os mesmos impulsos tímidos, aplaudindo nas horas certas, porém parando logo a seguir com vergonha de que alguém lhe notasse um excesso de empolgação. Numa dessas levantadas para aplaudir, Markus entusiasmando-se um pouco mais, deu uma atrapalhada e derrubou sua cerveja no colo de Catarina, a garota vizinha. Quando viu o que tinha feito ficou completamente sem graça, olhando sem conseguir reagir. Ela, também atônita, não se preocupou com o banho, mas ficou encabulada por estar sendo o centro da cena inesperada. - Eu tenho um lenço aqui – desengascou Markus. - Não, não se preocupe, não foi nada... Markus, com o lenço na mão, olhava para o rosto de Catarina, sem conseguir prestar muita atenção, por ainda estar ligado no que tinha acontecido, mas a voz suave dela era sentida como um perfume. Movido pelo astral, ele se agachou e começou a enxugar a calça de Catarina. Ela, sem saber o que fazer, deixava que Markus, desajeitado, passasse o lenço, até que um impulso a levou a tocar no braço dele, como que desejando dividir o trabalho. Quando se deram conta do ridículo da situação caíram, ao mesmo tempo, numa risada de alívio.
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Entretanto, como era o destino que os comandava, cada ato exagerado era a peça absolutamente correta na formação do enredo. Por poucos segundos, apesar de já não estar limpando a calça, Markus continuou com a mão pousada na perna de Catarina, e ela com a mão no braço dele. A cena foi o início da conversa que ganhou um ritmo perfeito. Quando ela falava era como se as palavras dele tivessem pulado fora dos dentes para entrar e sair pelos dela. E as palavras que então ela soltava voltavam para os ouvidos de Markus, percorrendo e tomando todo seu corpo até sair novamente pela boca num fluxo contínuo. Não importava o que falavam e sim o vaivém de sons encantados. Uma energia crescente impulsionava a mão de Markus a tocar em Catarina. A mesma força a fazia pegar no braço dele. Realmente, quando os deuses querem mostrar seu poder e guiar o destino humano não há descaminho. Cada vez, com mais naturalidade, as mãos se entrelaçavam, a conversa fluía, as confissões mais íntimas apareciam. Fazia frio e Catarina não queria esperar até as quatro e meia para o metrô recomeçar. Markus convidou-a para dormir na sua casa. Entrando na rua Oranien já vinham abraçados, beijando-se timidamente. Entraram no apartamento tentando não fazer barulho para não acordar Daniel. Markus agia delicado, mas com absoluta precisão: acendeu o fogo na lareira do quarto, abriu uma garrafa de vinho tinto colocou John Coltrane no gravador e se deitou numa almofadas. Catarina foi para junto dele e suas mãos tímidas começaram a alisar o rosto, o lábio, o pescoço, iniciando o mapeamento do corpo de seu homem.
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Markus, ainda não tendo bebido o segundo copo, foi abrindo com calma os botões da camisa dela, se barbarizando com a beleza dos peitos iluminados pela luz da fogueira. Beijou-a carinho e excitado. Ele sabia que Catarina era virgem e também já tinha falado para ela que já fazia quase dois anos que não transava. Estava nervoso mas o tesão e o ordenamento cósmico engolia qualquer reação negativa. Foi tirando sua roupa e ajudando Catarina a tirar a dela. Ela queria muito dormir com ele, mas não sabia como devia agir; apenas se deixava levar como se estivesse num sonho. Markus beijou-a no ventre, nas coxas e passou de leve seus dedos no sexo dela. Catarina segurou o pau dele desajeitada, como quem carrega um bebê prematuro, e, ao senti-lo cheio de força, soltou rápido se sentindo culpada. Markus, carinhoso, se deitou sobre ela e foi colocando devagar. Mesmo estando confuso tinha muito mais controle sobre a situação e chegou a achar graça quando rompendo o sexo virgem olhou para os olhos fechados de Catarina que piscavam forte a cada aumento da penetração, ao mesmo tempo que a face contraía e da garganta um pequeno gemido demonstrava, apesar da tentativa de se controlar, que sentia dor. Ele meteu com todo o carinho mas estava excitado demais. Era ela, só dele, a mulher mais amada. Não importava que a falta de experiência fizesse Catarina manter-se quase imóvel, suspirando baixinho, com vergonha de mostrar seu amor. O que importava era que, finalmente, os deuses ouviram suas preces mudas e contínuas e lhe designaram o prazer supremo.
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Markus tentou segurar o maior tempo que pôde para não goar, mas a vontade era muito maior do que o controle. Gozou inteiro, jorrando todo o tempo de espera, enquanto as coxas e a cintura de Catarina tremiam involuntariamente pelo primeiro esforço do amor escancarado. Desde aquele dia os dois não se largaram mais. Catarina escreveu para seus paiz dizendo que estava morando com uma outra amiga da escola e passava os dias inteiros com seu homem. Com isto, o tesão represado do Markus podia desaguar com a mais completa liberdade. Dez dias depois, solene, ele perguntou a Daniel se teria algum problema ela passar a morar com eles. - Claro que não tem, tedesquinho; pelo menos agora você vai parar de bater punheta – disse Daniel abraçando-o, sabendo da importância que uma mulher, que a tanto tempo ele procurava, iria ter na vida de seu amigo. Enquanto bebiam um vinho para comemorar a notícia, Daniel olhou para Markus e, feliz, pôde notar que olhos de cachorro pedinte que sempre fazia quando falavam em mulher, tinham agora se transformado, ganhando uma energia confiante que os faziam brilhar bonito.
A noite de vinte e quatro estava perfeita para uma ceia de natal; como nos cartões postais, nevava forte e a casa de Holli
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estava iluminada por duas dezenas de velas. O cheiro das especiarias e o gosto do vinho juntavam-se aos abraços dos amigos. Em setembro, quando Klaus saiu da prisão, sob fiança, porque apenas conseguiram provar que ele havia passado haxixe, Holli e Iris decidiram morar juntos. Assim, Klaus se mudou para o apartamento de Iris e passo a viver lá com Anne, e Iris trocou para o de Holli, A amizade entre eles esfriou mas, apesar disso, ainda se viam de vez em quando. O karma parecia congelado por algum tempo... A decoração do apartamento, agora, misturava os estilos: o banheiro ainda era espacial, mas a sala ganhara um ar sério e elegante, até mesmo levemente frio. A presença bem comportada de Iris começava a se impor. Holli prometera a Iris parar de fumar haxixe, pois esta era a única forma de se elevar ao nível de consciência cósmica, mas logo que Daniel chegou, chamou-o para um canto e propôs que passassem no vizinho de baixo para fumar um. - E a Iris, cara? Ela vai ficar chateada. - Ela não vai saber... Apesar de morarmos juntos sempre apronto alguma. Tem de ser assim para que quando ela me beijar, mesmo que não saiba, esteja me perdoando por qualquer maldade. Logo depois de fumarem subiram todos para a festa, Markus estava em estado de graça com Catarina; um não soltava a mão do outro, conversando em sussurros, bebendo vinho no mesmo copo. O sorriso permanente dos dois era o maior astral. O barman do Anfall Café, com um vestido preto justo, imitava Marlene Dietrich no Anjo Azul. Klaus, agora de cabelo pintado de
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amarelo-ouro, deu uma passada rápida com Anne. Iris os cumprimentou mas fez questão de mostrar distância. Às duas da manhã, Daniel rindo à toa, mesmo estando sozinho, pois Monika fora passar o Natal na casa dos pais em Munique, pedi um minuto de silêncio e, olhando especialmente para Holli, falou: - Quero anunciar que o caminho da santidade me chama; parto daqui há quatro dias para Goa. Ao Holli só posso dizer que, depois de aproveitar todas as loucuras que apareceram por lá, vou me curar visitando Said-Baba ou quem mais ele me aconselhe – disse, puxando a passagem de avião do bolso da calça. - Você está louco, Daniel, e seus estudos? – perguntou Markus. - Meus estudos, que vão à merda. Sol, rapaziada, é do que eu preciso agora. Depois, se um dia eu voltar , o diabo me ajuda. No dia 28 de dezembro Daniel embarcou num avião rumo à Goa, com escala em Bombaim. Ali a odisseia continuaria.
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