Guilherme Zarvos
ENSAIO DE POVO NOVO
1995
Apresentação
O presente texto foi extraído do livro homônimo, o terceiro da obra de Guilherme Zarvos, publicado no ano de 1995, pela tradicional e extinta Editora Francisco Alves, com capa de Claudia Zarvos, ilustrações de Pedro Pellegrino e revisão de Elisabete Lins Muniz. A preparação de originais ficou a cargo de Bia Zarvos.
Esta edição foi preparada para divulgação gratuita e online no ano de 2017, com vista a tornar disponível a obra de Guilherme Zarvos, em grande parte esgotada. O formato original do livro foi mantido, embora a fonte do texto e o tamanho das letras tenham sido rediagramados. A capa do livro e a ilustração foram digitalizadas a partir do original. A edição original continha dois outros textos – Prelúdio hospital inverno 94 e Cantata Constante – coro – que foram suprimidos aqui, por vontade do autor.
Composto majoritariamente em prosa poética, com excertos e poemas em verso, Ensaio de Povo Novo apresenta um olhar em tom fabuloso do Brasil e seus contrastes, de sua “fundação” aos dias atuais. Texto onírico e de vocação política, fundamental em nosso contexto hoje. Italo Diblasi
ENSAIO DE POVO NOVO
A Darcy Ribeiro
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Daqui de cima do Monte Pascoal viu. Neste bosque encantado, nesta floresta que é parque quando tudo era parque – correu morro: trinta quilômetros. Lá de cima havia enxergado. O coração desejava explodir, o pé precisava voar – ar pulmão ar – queria chegar na praia, em Corumbau e conferir: nunca vira Deus tão lindo. Correu por meio de ipê caixeta pinha cupuba gameleira pau-brasil sapucaia jacarandá oiti pequi e deixou marcas das solas ligeiros no manto tapete amarelo laranja vermelho marrom preto de folhas caídas na trilha que tantas vezes percorreu e nem sentiu o perfume doce da floresta que ontem chovera. Era manhã e orvalhava e ele não viu os pingos ainda agarrados nas folhas em todos os tons semitons verdes que dependem das mudanças das horas do dia e o do tempo e da Terra e das marcas dos raios de sol. E uma codorna passou mansinha e tentou lhe avisar que não se apressasse e outros bichos tentaram lhe pedir que não fosse, gritando estridentes, uivando, que parasse – ar ar pulmão eu lhe estouro mas quero chegar – e correu como nunca, em nome de todos os seus Deuses, de todas as suas mulheres, não muitas, na sua juventude. O corpo rijo acostumado à caça à derrubada ao sexo 3
às guerras aos jogos correspondia. Porém a Impaciência já havendo lhe tomado exigia mais: passou batido por borboletas brancas amarelas azuis que aspiravam por enfeitar acariciar seu braço guerreiro como só Bela sabia, mas não era a hora. Apenas a praia lhe interessava e num descuido uma raiz traiçoeira passou-lhe uma banda e o guerreiro caiu de boca no chão, no tapete de folhas de sêmen de óvulo de adubar terra, e um sapo o encarou: dez centímetros era a distância. Não cuspiu, não era disso. Tinha a cor das folhas. Caleidoscópio se protegia dos inimigos. O sapo não falou absolutamente nada já que não era um sapo falante mas o encarou preenchido – na completa imobilidade de sapo que encara – e Zinho, por alguns segundos, não pensou na areia que precisava alcançar e lembrou de seu avô, do olhar grava de tuxaua em momentos de decisão. De tomar rumo, de falar que o Tempo lhe ensinou. A cara do sapo esculpida por pai e mãe e pai e mãe e pai e mãe do sapo, dez centímetros de seus olhos, o hipnotizava e ele deitado de bruços, corpo todo no chão tapete de folhas, por um minuto permitiu que maus pressentimentos dominasse sua cabeça. O corpo do forte fraquejou. Foram apenas estes segundos e o corpo de forte já corria e Fantasia e Impaciência eram novamente suas donas e Zinho já avistava a praia e não era só ele ali: toda a aldeia, do mais velho à mais pequenininha se grudava perto da água dentro da água para ver: A FUNDAÇÃO DO BRASIL.
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E Zinho correu sola sola na areia que ia esquentando. Passou por um, passou por dois, não deu a volta passou por três. Rios. Água salobra do mar em cheia perfurando água doce. Final da tarde areia esfriando e a vazante devolvendo água, enfeitando o Atlântico. Corpo molhado, salgado e doce, de homem livre. Índio. Luz própria. Tribo de Zinho – centenas de outras tribos e falas. Eram cinco milhões de gente em liberdade. Sem patrão. Habituados nas costas, nas praias, do Brasil oficialmente inexistente e agora com Bulas Papais e Tratado de Tordesilhas dividido entre dos reinos ibéricos: Dom Fernando e D. Isabel, por graça de Deus, Rei e Rainha de Castela, de Leão, de Aragão, da Sicília, de Granada, de Toledo, de Valência, da Galiza, da Maiorca, de Sevilha, da Sardenha, de Córdova, da Córsega, de Múrcis, de Jaém, do Algarve, de Algeciras, de Gibraltar, das ilhas de Canáricas, Conde e Condessa de Barcelona, Senhores de Biscaia e de Molina, Duques de Atenas e de Neopatria, Condes de Roussilhão, e da Sardenha, Marqueses de Oristán e de Gociano juntamente com o príncipe D. João, nosso mui caro e mui amado filho primogênito herdeiro de nossos ditos reinos e senhorios. Em fé do qual, por D. Henrique Henriques nosso mordomo-contador-mor e o doutor Rodrigo Maldonado, todos do nosso Conselho, foi tratado, assentado e aceito por nós e em nosso nome e em virtude do nosso poder, com o sereníssimo D. João, pela graça de Deus rei de Portugal e dos Algarves d’Aquém e d’Além-Mar, em África, Senhor da Guiné, nosso mui caro e mui amado irmão e com Rui de Souza, Senhor de Sagres e Beringel e D. João de Souza, seu filho, almotacel-mor do dito sereníssimo rei nosso irmão, e Arias de Almadana, corretor dos feitos civis de sua corte e de seu foro (juízo), todos do Conselho do dito sereníssimo rei nosso irmão, em seu nome e em virtude de seu poder, seus embaixadores que a nós vieram, sobre a demanda que a nós e ao dito sereníssimo rei nosso irmão
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pertence, do que até sete dias deste mês de junho, em que estamos, da assinatura desta escritura está por descobrir no mar Oceano, na qual o dito acordo dos nossos ditos procuradores, entre outras coisas, prometeram que dentro de certo prazo nela estabelecido nós outorgaríamos, confirmaríamos, juraríamos, ratificaríamos e aproveitaríamos a dita aceitação por nossas pessoas; e nós desejando cumprir e cumprindo tudo que assim em nosso nome foi assentado, e aceito, e outorgado acerca do supradito mandamos trazer diante de nós a dita escritura da dita convenção e assento para vê-la e examiná-la e o teor dela de verbo ad verbum é este que segue: “Em nome de Deus Todo Poderoso, Padre, Filho e Espírito Santo, três pessoas realente distintas e separadas, e uma só essência divina”. Manifesto e notório seja a todos quanto este público instrumento virem, dado na vila de Tordesillas, aos sete dias do mês de junho, ano do nascimento do Nosso Senhor Jesus Cristo de mil quatrocentos e noventa e quatro, em presença de nós os Secretários e Escrivas e Notários públicos dos abaixo-assinados, estando presentes os honrados D. Henrique Henriques, mordomo-mor dos mui altos e mui poderosos príncipes senhores D. Fernando e D. Isabel, por graça de Deus Rei e Rainha de Castela, de Leão, de Aragão, da Sicília, de Granada etc; e D. Gutierres de Cárdenas, comendadormor dos ditos senhores Rei e Rainha, e o Doutor Rodrigo Maldonado, todos do conselho dos ditos Senhores Rei e Rainha de Castela, de Leão, de Aragão, da Sicília e de Granada etc; seus procuradores bastantes de uma parte, e os honrados Rui de Souza, Senhor de Sagres e Beringel, e D. João de Souza seu filho almocatel-mor do mui alto e mui excelente senhor D. João, pela graça de Deus Rei de Portugal e Algarves, d’Aquém e d’Além-mar, em África e senhor da Guiné; e Arias de Almadana, corregedor dos feitos cíveis em sua corte, e do seu Desembargo, todos do Conselho do dito Rei de Portugal e seus embaixadores e procuradores bastantes, como ambas as ditas partes o mostraram pelas cartas e poderes e procurações dos ditos Senhores seus constituintes, o teor das quais, do verbo ad verbum é este que se
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segue: Dom Fernando e D. Isabel, por graça de Deus, Rei e Rainha de Castela, de Leão, de Aragão, da Sicília, de Granada, de Toledo, de Valência, da Galiza, da Maiorca, de Sevilha, da Sardenha, de Córdova, da Córsega, de Múrcis, de Jaém, do Algarve, de Algeciras, de Gibraltar, das ilhas de Canáricas, Conde e Condessa de Barcelona, Senhores de Biscaia e de Molina, Duques de Atenas e de Neopatria, Condes de Roussilhão, e da Sardenha, Marqueses de Oristán e de Gociano etc. Em fé do que o sereníssimo Rei de Portugal, nosso mui caro e mui amado irmão, nos enviou como seus embaixadores e procuradores a Rui de Souza, do qual são as vilas de Sagrel e Beringel, e a D. João de Souza seu almotacel-mor, e Arias de Almadana seu corregedor dos feitos cíveis em sua Corte, e de seu Desembargo, todos do seu Conselho, para entabular e tornar assento e concórdia conosco ou com nossos embaixadores e procuradores, em nosso nome, sobre a divergência que entre nós o sereníssimo Rei de Portugal, nosso irmão, há sobre o que a nós e a ele pertence que até agora está por descobrir no mar Oceano.
E assim foi. Era assim que se fazia: poucos pontos vastíssimos nomes imensuráveis lisonjas. A ordem do Novo Mundo nas penas do Papa e nas botas de Espanha e Portugal. Tempo de Renascimento para a cultura europeia. Da Vinci, Michelangelo, Bosche, Dürer, Botticelli, quantos mais! Gil Vicente, Camões, logo Rabelais e Cervantes crispando línguas. Tempo de Lutero e Calvino – padrecos que fizeram a praça de São Pedro tremer. Roma das mil prostitutas e prostitutos autenticando a divisão do mundo, ampliando impérios e poentes. Mas disto Zinho não tinha a menor ideia. E corria. E araras vermelhas gritavam memória da Terra. Bola de cristal. Sobreviveram duzentas mil almas implorando por pedaço de terra. Reserva do que fora seu. Índio cometendo suicídio. Desespero. Embolado nas perdas e nas perdas de seus filhos e fala. E Zinho nos anos noventa da última década do século 7
chamado vinte talvez tivesse a sorte de estar vivo na alma de Doutor, filho do Cacique Tururu da aldeia Pataxó de Barra Velha. Vendendo artesanato. Alegre do mundo. Talvez pescador em Corumbau, sob o manto de estrelas que na lua nova oprime, de tão rica. Os grãos de areia soprados por Caos onde antes, apenas breu, de tão fáusticos, lembram um jorro de pérolas lento pois embriagado. E cada estrela absolutamente sedutora tem certeza de sua singularidade, embelezando a noite que pulsa, da cidade sem luz elétrica sem TV. Na qual criança desconhece quem é o maior ídolo do programa de domingo. Sabe é pescar como seu pai seu avô seu bisavô. Molecada que brinca gostoso: Roda de quatro crianças A mais nova tem dos anos As mais velha de quatro a sete A mãe de longe incentiva “- Dança, neguinha - Não sei dançar - Uma chicotada leva - Neguinha vai dançar” Tudo no carinho. No jeito Na primeira vez a criança não entende A mãe de longe incentiva - Dança minha filha As mais velhas mostram o mexer Com as cadeira. O feitiço Da terra. Quem por perto, sorri “- Dança, neguinha - Não sei dançar - Uma chicotada leva 8
- Neguinha vai dançar” A pequenininha está feliz Risonha e rebola. Acelerada Ainda não domina a manha Mas já está aprendendo. Daí É só crescer. Mas não era hoje. Era 21 de abril de 1500, e a ira portuguesa, na mescla, no tempero sarraceno, santificada pelo dever de salvar almas aportaria, no dia seguinte, em Coroa Vermelha, Porto Seguro, de modo a parir, mesmo sem intenção, um Povo Novo que até hoje ensaia seu destino. E Zinho encontrou em Coroa Vermelha tribo amiga, fala irmã, e o retrato de Corumbau: povo grudado na areia, no mar, tontos diante de tão imponente gente, vinda de onde não se enxerga. E da embarcação gigante ouviu-se um estrondo de uma árvore, a maior delas, despencando na mata. O barulho do Trovão: Deus maior. E de dentro do-que-na-veja surgiu GenteDeus, ao encontro de Zinho, dos irmãos das tribos irmãs de Zinho, que prostrados na areia reverenciaram tamanha beleza. E se fosse hoje os portugueses não usariam botas. Nos pés, sandálias de couro de sola de pneu. Coroa Vermelha é um rendezvous. Uma cruz sela solo pátrio. FOI AQUI TERRA DESCOBERTA. Se é de madeira ou de cimento pouco importa, apenas chamam atenção barraqueiros cachaça mulatas libidinosos ao som do rebola: da lima-da-pérsia do limão do maracujá da acerola do caju da uva do guaraná da jaca da melancia de qualquer fruta (!) salve a aguardente: “rebola, rebola, rebola sim, pode falar, pode rir de mim” e Zinho suado, sem camisa, barrigudo, mulato, sorrindo, 9
cantando agarrado com Bela – fim de semana, Semana Santa, Coroa Vermelha, Porto Seguro. Sim, e se fosse ontem ou hoje Zinho haveria de ter outras moradas e ofícios e de Raízes do Brasil colhi nomes de tendas de ruas de praças e de trabalho: botoeiro esteireiro sapateiro guitarreiro espadeiro ferreiro taberneiro manteiro luveiro e oleiro sem esquecer do barbeiro carpinteiro cozinheiro pedreiro e coveiro. Sempre a serviço do banqueiro e, claro, do eterno fazendeiro. Sim, Zinho nasceu num cacaueiro. Era agosto de 1972. Tempo impiedoso do ditador, general Garrastazu Médici, e Zinho tem agora dezoito anos, não sabe quem foi o presidente da tortura e não entrou no exército por excesso de contingente, por ter se alimentado mal quando guri, virado nanico, mas muito forte nos músculos de carregar arroba. De cacau. Zinho vive em Anori. Terra Bahia Cacau. A mata encobre a planta. Cacau quer sombra e água fresca. Cacau malandro. Cacau quer seu pé limpo. Tem de haver empregado para limpar pé de cacau. Nem samambaia cacau quer. É praga. O rendado verde de samambaia que envolve os pés de cacau é praga. Cacau quer ter seu pé limpo. Sem vassoura-debruxa. O neto lava pé do avô senhorial. Madalena lava pé de Cristo. O cardeal lava pé do preso. O moleque Zinho mal pago nanico risonho limpa pé de cacau. Anori é tão pequena, cercada de mata que cerca cacau. Casas de pau-a-pique. Pobreza. Quem limpa pé de cacau sempre foi pobre. Dono de cacau não. Já foi barão. Já esbanjou dinheiro na capital. Salvador. No Café das Meninas. Ao lado da câmara dos vereadores. Terno branco de linho 120. Carro do ano. Importado. Hoje dono de cacau não tem tanto. Quem limpa pé de cacau então! Mas Anori comemora a Festa do Cacau. Cacau dá mel dá licor dá uma alegria uma vontade 10
de beijar no mato no meio dos pés de cacau. No rendado das samambaias. Zinho gosta do gosto da Bela. Zinho gosta do rio que corta Anori. Gosta de nadar nu. Ele e Ela. Os moleques que sabem de tudo já viram. Zinho e Bela nadando pelados! Zinho e Bela deitados no mato! No rendado verde claro das samambaias que envolvem pé de cacau. Os moleques que sabem de tudo fizeram igual com a vaca mansinha. Com cabrita mansinha. Com galinha não pode não. Ela morre! Com os amiguinhos não pode. Contar. Mas os moleques que sabem de tudo já viram. Não contaram. E as crianças de Anori, barrigudas de verme, descalças na lama, são tão felizes, brincam de jogar papel para cima. E correr atrás de papel. São tão felizes! Seus pais não. Já limparam muito pé de cacau. Não ganharam nem uma quadra. Para eles só casa de barro. AS crianças os moleques não ligam. Ficam tristes às vezes porque gostariam de ter um brinquedo: já que não tem, esquece. Brincam de jogar papel de correr atrás do vento que leva papel, de pular no rio, brincam principalmente de saber tudo. E Zinho tem 18 anos e sabe muito e já não é moleque. Não está triste. Tem esperança. Está um tiquinho triste. Vai deixar Bela. Por pouco tempo. Ele tem esperança. Ele vai pegar ônibus para Salvador. Arrumar emprego bom. Aí casar com ela. Bela espera. Zinho está só pouco triste. Bela está com seu melhor vestido. O ônibus da São Geraldo estaciona. A mãe e o pai de Zinho sobem com ele até a cadeira 17. Na janela. Zinho colocou uma mala pequena no bagageiro. Na mão tem água biscoito e licor de mel de cacau. É para tia que mora em Salvador. Ele está com sua melhor camisa sua melhor calça seu melhor sapato. A meia tem um furo. Escapou dos olhos da mãe. Bela tenta não chorar. Chora. Chora ela chora a irmã de Zinho chora a avó. O irmão não. Nem está ali. Está em São Paulo. É 11
pedreiro e dorme na obra. Manda carta todo mês. Traz presentes uma vez por ano. Para todos. Promete que tudo vai melhorar. Aí ele vai casar. Diz e volta para São Paulo: construir prédio dormir na obra ser chamado de paraíba. O São Geraldo vai sair. Pontual. O pai e mãe de Zinho não choram. Dentro do ônibus, têm dignidade. O pai de Zinho tira um dinheiro do bolso. Zinho diz que não aceita. Não pode. Não é direito. Aceita. Já não quer ir embora. Quer pai mãe Bela! O ônibus roda. O pai a mãe a irmã a avó e Bela, principalmente ela, vão ficando pequenininhos. As mãos acenando vão dando tchauzinhos, tchauzinhos, tchauzinhos... Zinho esconde o rosto na cortina do São Geraldo e chora. Zinho tem 18 anos. Nunca saiu de Anori. Sempre limpou pé de cacau. Zinha está indo embora de tudo. Para onde.
Conversas de ônibus
- Mas é você, que surpresa! Luis perguntou por você. Eu disse que você tinha ido para Belém. - Não fui não. Foi o Guaraci. - Você tem rodado! Luis está na roça Para os lados de Monte Alegre. - É, tenho andado (!) na canseira. Faz oito anos que não vejo minha família. - De onde que ela é? A gente se conhece tanto e eu não... - Sou do Ceará. Já foi nestas bandas?
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- Não. Sou aqui de perto. De Itabela...Você não tem contato com a família? - Não tenho não. Nem por carta. Vem silêncio. O sem jeito de um, o olhar perdido do outro. Família: – a mesa está posta – carinho de mãe... A conversa toma rumo de trabalho, onde tem, o que dá para juntar: Os dois são parecidos. Olhares sonhadores. De parir veredas. Tão moços e tanto caminho (!) os sotaques os sonhos os jeans as camisas de botão (de cores fortes) os tênis brancos bem lavados. Vão apeando cerca que é tempo. São incontáveis nos ônibus! O céu está limpo, ilumina o vasto: já ouviu tanto, tantas frases como estas: como estas: - Como vai sua família. A gente não tem se visto! - Pois... - Esta é de criação. Me acompanha. A outra já é crescida...Esta achei em Itamaraju, debaixo de um eucalipto. (O senhor constrangido pigarreia) - Não, não se avexe (!) já conversei com ela. A gente passa perto do eucalipto e ela diz “mãe, estou passando mal”. (A menina tenta se esconder com os olhos na ponta do sapato. Sua mãe de criação gorda e alegre continua tagarela num imenso que não estanca) - E o seu irmão? (O senhor não tem tempo de responder. Ele já entra em outro assunto) - Sabe o Seu Neco. Meu compadre. Vendeu a terra. Tinha dívidas. Já não presta para roça. Modo de ver do novo dono. Teve de sair. Vive agora de matar bode para um açougue. Mas a cidade é muito 13
cara. Um dos filhos manda uma ajuda. Ele acertou com um restaurante. Lá em São Paulo. Seu Neco está necessitado... (Ela interrompe a conversa baixa o encosto da poltrona aconchega a filha sobre seu peito. Ela veste rosa e lança um auto-elogio) - Como é bom ter mãe!
Itamaraju Da cidade que fui tem gerente de banco – ele é importante – usa gravata com carteira assinada – tem caixa de banco – ele é importante – usa gravata na carreira a gerente – tem bigodudo volumoso – com cara de importante – tem fila vagarosa cheia de morenos magrinhos – ordeiros cabisbaixos – tem vários policiais militares – na ordem da arrogância – tem um índio Pataxó – disse: melhor turista ir para Caraíva. Em Corumbau tem muito índio. Os turistas não gostam de misturar – perguntei – respondeu: é que é uma nação diferente – vestia calção e camisa – parecia um moreno da fila – havia diferença – altivo no olhar – carregava artesanato – muitas cores – sim, da cidade que fui começa aparecer turista – com gingado sou da área – cabelo longo solto ou rabo – roupas da moda desleixadas – não vão ao Corumbau – Pataxó está certo – não sobem o Monte Pascoal – preferem um Porto Seguro.
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Na fila do banco da cidade que fui um moreno baixinho arretado andança de lado pra lado matar ou morrer afronta o baixa importante que olha assustado ameaça o gerente importante que chama a polícia que lá tem demais. O baixinho esbraveja mandou dinheiro economias para a mulher faz três vezes telefonou não recebeu veio ao banco o gerente explicou para o guarda que o baixinho arretado realmente mandou o dinheiro mas errou o código e o dinheiro suado do baixinho que não entende de números foi parar não sei que lá e que então foi a Brasília e a ordem de pagamento não retornou faz quinze dias é verdade estou tentando no entanto o elemento perturba a ordem da fila e do banco e vou tentar mais uma vez localizar o documento e o policial algema o baixinho com chapéu de couro redondo como sua cabeça e baixinho arretado grita que isso não é direito quem devia de chamar polícia era ele que o dinheiro era dele e os outros baixinhos de chapéu de couro concordam porém ordeiros não ousam manifestar e o policial usa força e leva o moreno pequeno para jeito de sossegar. De humor. De modo de trato. Para não tumultuar. Mais tarde retorna o baixinho à praça central sorrindo olhos tristes camisa branca amarfanhada chapéu de couro nas mãos bailando leve cheirando cana um passarinho. 15
Da cidade que fui as mulheres olham muito – belas morenas – curiosas com risos e soslaios – tem homem alegre sóbrio desconfiado carrancudo – as mulheres se reúnem em volta da costura – os homens nos bares – alguns senhores sorriem – a maioria não – tal da dignidade. Da cidade que fui a chuva de janeiro cai rápida – dá só uma esfriadinha – não incomoda – o tempo espera – na prefeitura no correio na Telebahia na rua asfaltada na rua de pedras na cidade alta na cidade baixa no INSS no mercado velho na peixaria. Da cidade que fui já não tem TV preto e branco no centro, no encontro, da praça – o bar de alto-falante estridente permanece – tem prédio de andares – sinal de progresso – da cidade que foi saudade.
Testemunho Lego léguas inspirado na garantia apalpável, mais do que sonho: a beleza de ser brasileiro. História, como as demais, da maioria injustiçada: quantos foram os tocados pelo destino e não sofreram? Este naco de chão habitado pelos únicos que compreendem minhas palavras – arderia em prazer se pudesse supor traduzível: mas é daqui por quem estudei e sofro que aspiro passagem: com a absoluta convicção de que é muito fácil uma sociedade solidária em terreno tão fecundo. Brasil é meu curso. Sou mais um. Desejante. E das milhares de caras que filmei, das piscadelas que todos os olhos piscam, notei uma toada que no 16
meio da avenida num quinto do mundo deste universo cheio de contos é serventia. Apontei e nem sabia por quê: – este cara é brasileiro. É um jeito de gingar os ombros, a cadência que entremeia a cor, um eterno sorriso de menino parido com gosto por detrás do susto de cruzar o planeta que não dá em outra: este cara é brasileiro. E não importa o sofrimento individual, já padeci por centenas, vai além, nem o pequerrucho sabe, é o ombreamento de iguais, da formação a chibatadas que mesclou um Povo Novo. Garotos – eu vi um país nascer. VI a primeira luz do poste elétrico, ouvi a primeira transmissão de rádio, assustei vendo a tela do cinema eu vi TV. Garotos – não sou velho centenário e assisti a tudo. A Escravidão está na minha alma. A lei da liberdade vai ter de ser esculpida.
Verão: 90 e muitos – o balé das gaivotas E quando gaivotas às centenas nadavam e peixes, antes submersos, cardume, agora voavam e os pássaros pretos de Van Gogh de Hitchcock ora na calma no alvoroço, e o vento afastava os grasnados – já que batia da terra ao mar – e a força desaprumada das asas enfrentando o sopro que é do céu e o cardume amotinado voando para os bicos, ímãs, das gaivotas, todos levados pelo vento, em bocas de imprecisão voraz, permitindo aos peixes de escamas prateadas douradas que o sol provoca cobiçando olhos, retornarem ao mar – espumante de centenas de outros peixes do cardume amotinado, como rio a cima em tempo de desova – e Zinho no encanto de Bela e era Rio de Janeiro, 17
Ipanema, Posto 9, gaiteava esquecido dos 90 e muitos que foram gastos como carvão para que embolados no bronze de sua pele da pele de Bela, se deitassem no pano de colorido africano amassado em despreocupados abraços. Zinho e Bela em 90 e muitos que verão: o tempo na turbulência de constante vento. E a mistura de pássaros peixes e gente circulando ar areia e água no posto 9 de 90 e muitos não atenta o casal que brinca como golfinhos: eles se amam. E se os pássaros (?) os peixes o vento que antes bailavam enfeitando a tarde da praia, enlouquecidos, voltassem sua natureza, eternamente animal, contra o par de amantes: como Bela e Zinho travariam sua ingênua arrogância de jovens bem nutridos? Pois a praia inteira viraria pássaros e peixes e gente numa balbúrdia que levantaria pânico, e das ondas do mar e do cento não obteriam indulgência. Verão: o pânico dos falsos ingênuos, casais bem nutridos, ungidos de sol – que até hoje têm assistido plácidos o arder do inferno em milhões de corpos... Mas não era a hora, a cidade insana abençoa Zinho e Bela na praia de Ipanema de 90 e muitos, protegidos, herdeiros de 500 anos de ENSAIO DE POVO NOVO.
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