Minotauro 3 - JOGOS

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jogos

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minotauro

Sob muitos aspectos, Borges e Cortázar podem funcionar como os pais contemporâneos do Minotauro, gerado em suas barrigas argentinas e labirínticas, saído das tripas, da lama, do sangue. Cortázar e Borges trabalharam, exaustivamente, dentro do Labirinto sem a angústia de encontrar a saída. Cortazar deixou-se levar para todos os cantos e sua tônica era o jogo. O tema dessa edição, em homenagem aos 100 do autor argentino que fugiu para Paris e nunca mais retornou ao berço (porque, muitas vezes, o berço é aquele lugar claustrofóbico, uma pequena jaula), é o jogo, todos os jogos, a amarelinha, o labirinto, o boxe, a desconstrução, o corte e a colagem.




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meu assassino

alice sant’anna

hoje encontrei meu assassino. dispersa, olhei para a plateia e ele estava lá
 os olhos fixos em mim.
 soube na mesma hora 
 de quem se tratava tentei disfarçar a chuva 
 que deixou a franja bagunçada 
 na frente dos olhos mas o assassino
 me olhava mas eu revidava
 muito dura: era um jogo.
 sabia que a qualquer respiração
 se eu desconcentrasse ou tropeçasse 
 ele não perdoaria nunca (isso já aconteceu antes).
 lembro bem quando 
 o meu assassino me atirou 
 pela primeira vez 
 a diferença é que agora sei 
 como se chama sei o formato do maxilar
 e como ele me olha com esses olhos
 de assassino.
 pensei em chamar a polícia, os jornais 
 pensei sobretudo
 em mudar de cidade
 e não contar para ninguém, assim 
 o meu assassino me procuraria
 nos mesmos lugares de sempre
 mas frustrado voltaria para casa
 e me escreveria longas cartas
 dizendo fique avisada, seus dias estão no fim. contudo meu assassino jamais seria
 capaz de me encontrar
e por isso as longas cartas
 que ele levaria ao correio muito bem
 dobradas em envelopes com cheiro
 de canetinhas coloridas
 as cartas não chegariam em parte alguma
 pois não constaria o meu nome
 em nenhuma página amarela
 ou conta de luz.
 meu assassino bateria na porta
 da minha antiga casa
 no que eu o convidaria para entrar
 ofereceria um café e diria
 que pena! que desencontro! que perda!
 ela não mora mais aqui.


o efêmero anônimo

joão filho

À memória do professor Antônio Barbosa, que me contou esta história. A cidade, a rua e o quarto são pobres e, os paramentos católicos para um fim minimamente digno, também. No cômodo apenas os dois, pois a velha Tia dispensou a presença da irmã e das sobrinhas, permitiu somente que ali ficasse o seu sobrinho. O moleque mestiço, magro e cabeçudo, não só olhos, mas o corpo todo arregalado, mira sem entender aquela resignação que, no início da velhice, preparou o seu próprio funeral. Pobre e perdida pelo interior sem fim do país, a cidade não possui iluminação pública, a rua está deserta e é sem calçamento. É noite alta, de uma secura quente, ventania sem véspera de tempestade, comum a esta região de planícies largas e estios longos. No quarto quase sem mobília, com o leito a um canto, bruxuleia uma vela sobre o tamborete que serve de cômoda. A velha Tia é ossuda, empertigada, e não saberia dizer se rememora sua vida ou apenas se resigna. Talvez rememore. Com o olhar estupidificado de quem se atenta impotente para o drama da morte e quase inconscientemente se dá conta disso, o moleque está imóvel; no silêncio do quarto as paredes sujas parecem escutar seu coraçãozinho. Um barulho — o vento no telhado? Um rato? — muda sua atenção sem desviar seu olhar do corpo estendido, e ele repassa de cor o chão de terra batida, a cama de vara, sobe até o sebo derretido da vela, vai pelas paredes de taipa, não demora no teto e desce brusco para um bafejo mais forte da velha Tia. Nela, novamente, se concentra. Sua palidez de mestiça moribunda agora é mais densa. Ela contrai o corpo como se numa câimbra completa, o ricto é mais duro, parece ser o último respiro e... Sem alívio se afrouxa inteira e resmunga: — Não foi dessa vez. O moleque sai da imobilidade, se achega mais ao leito e escuta a velha Tia balbuciar talvez delirando sua meninice profunda. — Água no embornal de couro, no lombo do burrinho...


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Entre uma frase e outra um mosquito zumbe. — O rio... 89 foi ano de enchente. Água muita e muita fome. É intermitente o frêmito de morte que roça a velha Tia e a faz se esticar nessa espera resignada. Respira... Relaxa... E deixa escapar dos lábios murchos: — Não foi dessa vez. A atenção do moleque já não gira pelo quarto e se fixa na velha Tia. Sua memória vai-se vincando profundamente por essa estranha coragem diante do fim. Sua mãe e as duas irmãzinhas, em silêncio aflito no cômodo ao lado, persignam-se quando escutam um suspiro mais forte, mas não alcançam o: — Não foi dessa vez. O tempo se agiganta. O espaço encolhe. O vento traz atenuados latidos, pios, sibilos, estalos, rumores indistintos... A velha Tia parece serenar-se enquanto monologa: — Depois da noite chuvosa, manhãzinha, mamãe foi pro eito, coei fedegoso e fiquei cuidando de Orozino naquele dia. O bichinho ‘tava com fraqueza, devia de ser de fome. Papai não aparecia desde que Orozino tinha nascido. O moleque formulou, mas não disse “— quem, Tia?” Desconhecia os nomes murmurados. Apesar da fragilidade magrela, da janta rala de muitas horas antes, da lembrança de fome sussurrada pela Tia, o moleque é pavor concentrado. Súbito, ela, num esforço último, lhe agarra a mão, num instante suspenso em que os dois se travam: — Não foi dessa vez. Sua mãe e as duas irmãs saem do mutismo angustiante e circulam pelo cômodo vizinho, arrastam sandálias, cochicham. A irmã mais alta vai até o fogão de lenha, mexe e remexe atrás de qualquer raspa comível, derruba utensílios. Barulhos que agora chamam a atenção do moleque e ele sente no corpo a tensão das horas de expectativa fúnebre, a penúria de sua infância, e quer se largar num choro convulso sem peias. Levanta-se! Põe a mão na tramela da porta do quarto, mas volta para pegar a vela, se aproxima do corpo quieto demais e se dá conta de que sua velha Tia morreu.



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manuscrito encontrado na serra (manuscrito em 17 de abril de 1996)

geraldo iensen

Falar. Falar pra que? Fazer... Nada entre o ir e vir. Um vazio, uma esponja, um eco. As multidões são invisíveis como ausência de calos; um arco; uma poça seca. E no meio disso tudo: nós, todos nós, qualquer um, uma extensão de minha sombra: Schatten-döppelganger; índices efêmeros desgarrados. Agora é assim! então por que falar? Antes era menos, era um pouco assim, mas era menos. Eu tava lá no mesmo lugar, mais pobre, mais jovem, mas assim, sem ver muito. Ia lá e vendia, ou só entregava as coisas e voltava. Uma vez por mês, sem falhar nunca. Até que tudo perdeu o ardor que tinha, a vertigem, o prazer, quase o sentido. Era só pegar o dinheiro dos outros e guardar, só isso. Entregar as coisas e pronto: acabou. Nada mais. Sempre. Com ninguém. Nas viagens eram sempre as mesmas pessoas, todas iguais, sempre, talvez os mesmo nomes, não importa qual. As mesmas, ainda que diferentes. E eu lá... Indo... Ou vindo... Sempre. Falar pra que? É isso. Estavam todos lá, mas não havia mais ninguém no mundo (o trem) a não ser o cotidiano, absurdamente cotidiano. Então foi assim (apesar de nada diferente), foi assim mesmo: Eu precisava pegar o trem. Ele teria que ir ou ter ido até Carajás. Ela teria que ser morena. Ela teria que ser humilde. Ela teria que estar na quarta poltrona. Ela teria que estar na janela. Teria que chover... De São Luís a Parauapebas (onde toda noite de primavera um cavalo visita as varandas) horas e horas de um som de ferro com ferro, um monjolo com um insone: espelho dos meus sonhos, dos meus pesadelos, ou meu Buriti bom. Todo mês, na segunda semana. Eu pegava o trem. Ele sempre ardente de miséria e esperança: de movimento! Todos buscando, ou abandonando... E eu sempre no vagão D! Era lá que eu teria que encontrá-la, que conhecê-la, que merecê-la. Onde mais?! Se o trem se afogava nas juquiras maranhenses, resfolegava na floresta amazônica ironizando tudo de verde que um dia se esparramou por aqui e por ali; se o trem ria de mim no seu apito de escárnio; se o trem tremia sobre os trilhos, sobre as terras Guajá; se o trem era um inferno móvel; se o trem era o próprio Aqueronte; Se o trem! O trem era o mundo! E era no mundo, o mundo todo, onde ela deveria estar; ela, que seria morena.


Quantas viagens eu havia feito? Não sei... Muitas, muitas. Toda segunda semana lá estava; ia, vendia as coisas em Parauapebas e voltava; nem indo; nem vindo; ou não era morena; ou não estava na quarta poltrona; ou não chovia. Eu nunca escolhi se era indo ou vindo, então tanto fazia; nem nunca escolhi a hora ou o local. Escolhi pouco, simples, como eu: um quase nada. Era tempo de chuva a metade do ano, então era tempo de possibilidades. Eu saí do Pará cedinho, sentei na quarta poltrona do lado esquerdo, cansado, isolado, num dia feio e tenso; eram dias que haviam matado muita gente no Pará, um lugar onde se mata muita gente, se mata freira, se mata homem bom, se mata de tudo, até gente. Era de lá que eu vinha, carregado de coisas, de Eldorado de Carajás que nada tinham de eldorado... Era antes um inferno de morte; e os futuros passageiros de Caronte ficaram vivos, talvez não houvesse vala tão perto do demônio pra eles até então; e nisso nada havia de risível, nenhuma comédia, nem demoníaca, nem divina, apenas homens mortos espalhados pela carroceria de caminhões... Foi nesse dia que eu dormi como um tolo bom, que eu dormi como homem, como um homem honesto e são dentro de suas roupas; foi nesse dia que eu dormi muito e sem acordar; e sabe-se lá o que ocorreu em tantas paradas enquanto eu dormia... Um sol ardido como excesso de sexo causava estampidos na flora suja e ferrosa de Açailândia. Um sol bom como o sol que saúda Noé. Um cheiro de comida infestava o vagão D. Meus olhos turvos, ineptos de sono sequer entendiam onde e quando; apenas o cheiro de comida impregnado nas cortinas feias; mas já era Maranhão. Eu era um homem só na fileira de cadeiras do lado esquerdo de quem segue em frente. Aos poucos a luz e o gole d’água heróico me atenuavam a ignorância e então eu já sabia que estava num trem e que havia um sol e que havia esperança e que havia um mundo e era ali. Ainda cambaleante ganhei o corredor rumo ao banheiro, enquanto o trem estava parado e eu podia mijar em paz. No corredor esbarrei na moça que vinha puxando uma mala enorme, ajudei a acomodar a mala e fui ao banheiro. Fedia como um aterro sanitário. Mijei e fiquei no espaço entre um vagão e outro pegando um vento; queria esquecer; queria me livrar daquele cheiro de covil de hienas com diarréia. Passei um bom tempo ali; o Pindaré se desenhava de vez em quando na margem esquerda (...the charted Thames does flow...). Eu tomava uma água comprada no carrinho assaltante que vagava pelos corredores. Estava tão concentrado no rio escriturado que aparecia e sumia que nem notei a moça ao meu lado, encostada na parede também observando a vegetação maltratada. Era magrinha, usava um shortinho surradinho, devia ter uns vinte anos. Acho que demorei muito olhando pra ela; ela mudou de lado. Voltei-me novamente em busca do rio; ela também, o outro lado não era tão belo. - Alguém vomitou no vagão. – ela disse. Depois passou um agente de limpeza com um carrinho, balde, vassoura e panos e materiais de limpeza. Voltou em poucos minutos resmungando. A moça me olhou e sorriu meio tímida. - Acho que já limparam. – Disse.


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E entrou. Começou uma chuva forte que me afastou da janela; e me afastou mais e me obrigou a entrar ou me molharia todo. Joguei-me na poltrona com o tédio dos insatisfeitos, queria o rio, as árvores... e queria a chuva, queria poder ficar lá, sem correr o risco de ser chamado de louco da chuva, ou louco do trem, ou só de louco... Pouco me importava me molhar. Olhava meus pés molhados, tão brancos dentro das chinelas havaianas tão azuis, meus pés peludos e brancos e largos como palmatórias de aquarela. Aí olhei de lado. Na quarta poltrona. Ela estava lá. Era morena. Eu tava no trem, fui e vim de Carajás, ela estava na janela, chovia... Ela tinha entrado com a mala enorme; ela tinha agradecido a ajuda olhando pra baixo; ela tinha dito “alguém vomitou” e “acho que já limparam”; ela não se despediu ao entrar no vagão D. Ela queria ver a chuva e o Pindaré; ela ficou ao meu lado alguns minutos. Eu era o homem solitário que havia encontrado a mulher que queria, a mulher que projetava, a mulher que criara dentro de um círculo hermético de tolices; dentro de um quadro ou de um conto idiota mostrando o cotidiano parisiense em 1896; dentro de uma dor sem fundamento, cuja justificativa está na infâmia ou no relativismo fin-du-siècle... 17 de abril de 1996; e isso aqui seria cem anos depois; seriam 1500 e seriam dezenove a menos nesse dia. Não haveria metrô em São Luís, ou em Eldorado dos Carajás, ou em Belém... Haveria apenas o trem de Caronte, pra lá e pra cá... O aço do inferno! Eu carregava minha cabeçacaravaggio-de-batista pra lá e pra cá... Os filetes de sangue que dela escorriam eram a cachoeira de Pandora, donde emanam todas as águas; meu sangue: meu sangue! Não era auto-retrato: era eu, era eu... O produto que viria para aniquilar o mofo da espera; dali eu veria que aquele não era o último trem da Amazônia, e sim, o primeiro; quem pediu minha cabeça, não a teria: o trem, o mundo, o cotidiano: eu venci! Mas nunca é uma coisa só, nada é só; Depois, ela não era humilde. Falar. Falar pra que? Fazer... Nada entre o ir e vir. Um vazio, uma esponja, um eco. As multidões são invisíveis como ausência de calos; um arco; uma poça seca. E no meio disso tudo: nós, todos nós, qualquer um, uma extensão de minha sombra: Schatten-döppelganger; índices efêmeros desgarrados. Agora é assim! então por que falar?




plano original

maíra matthes

Conto : “A Morte de seus genes a alguns kilometros longe de você” Esse texto visa desenvolver os seguintes temas: (i) o abandono, (ii) a dor e (iii) a finitude. Ele pretende explorar essa temática a partir do uso do eu lírico (mundo interior) de modo a evidenciar que por mais universais que esses temas possam parecer ser, eles se mostram singulares a cada vez que são vividos por um indivíduo de carne e osso. O autor pretende desenvolver isso trazendo elementos contextuais que mostrarão que aquilo que ele está sentindo, apesar de universalmente reconhecível (mundo interior e mundo exterior), apenas se aplica a sua experiência singular. Para tanto recorrerá a expressões como: “o caderno que você não me deu quando eu tinha 5 anos mas que eu gostaria que você tivesse me dado”, “o dia em que eu recebi um processo judicial na porta da minha casa eu estava usando uma calça de lycra que eu nunca mais usei e que me fazia me sentir mais magra” “eu fico feliz por saber que aquela colcha branca de lã ainda existe.” Na primeira parte será evocado o cenário da comemoração de um feriado bíblico em alguma cidade histórica de Minas Gerais. O leitor encontrará páginas e páginas de descrições sobre o brilho cinza e azulado das pedras sobre as quais caem carvalhos coloridos. Frases como a seguinte serão o mote-modelo descritivo para numerosas páginas: “Era fim de tarde e mulheres, sobretudo mulheres, andavam com rostos lavados e bocas rápidas segurando taças, lenços e velas em suas mãos.” A narrativa conduzirá o leitor ao ápice narrativo que acontecerá na sextafeira santa da Paixão. O texto pretende fazer o leitor sentir em sua carne (mundo interior, mundo exterior) reverberações justapostas de diferentes níveis a partir da frase: “O pai, por que me abandonaste?” Ele poderá pensar na (i) “Solidariedade dos Abalados” (ii) em nada (ii) em um pato coberto de formigas (iii) em algo que escapa à intencionalidade do autor. O pathos final será dado pela condução do leitor a uma desoladora experiência de vitimização ou compaixão auto-referencial (mundo interior). Ele se sentirá vítima de uma vontade terrivelmente mais forte que a sua. Ele se sentirá pequeno: um passarinho esmagado. Trata-se de fazer crescer no leitor uma compaixão transbordante para consigo mesmo através do uso retórico-literário das penúrias e misérias presentes na imagem do ‘o seu mundo interior é um passarinho esmagado.’1 Na segunda parte pretende-se deslocar a experiência do abandono 1

Ver: “golfos do estreito de Magalhães.”


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vivenciada pela encenação teatral do sacrifício (mundo exterior) para a experiência da dor de um sujeito empírico qualquer, no caso eu ou você. No caso, Marília, a personagem principal. Marília vai sentir dor de um jeito que nenhum outro ser vivo sentiu. E o leitor perceberá isso, o leitor sentirá isso. Os mais sensíveis poderão perceber que por mais que já conheçam todas as palavras escritas na folha de papel que leem é a primeira vez que as entendem daquele modo. A palavra “dor” passará a ter um significado específico, tão específico que não poderá ser traduzida por nenhuma outra palavra que também possa ter algum sentido universal. Será preciso que cada leitor reinvente uma nova palavra para traduzir o significado da palavra “dor” nessa parte do texto. Na terceira parte o título será justificado. A palavra “morte” não será mencionada, mas o leitor sensível poderá sentir seu cheiro em todos os cantos do papel. Marília contará uma estória. Trata-se de uma narrativa dentro da narrativa. Na estória que Marília contar tudo soará muito “muito interior.” Mas ao mesmo tempo, ela será descrita contando essa estória pelo autor de um modo que tem a clara pretensão de fazer desse momento o mais “terceira pessoa/ mundo exterior” de toda a estória. O autor espera que os críticos falem que o texto atinge, nesse momento, a própria essência da ficção. Espera que eles digam coisas como: “o conto alcança os ápices da exigência ficcional ao cortar os meandros entre realidade e ficção e evocar a realidade como uma referência pálida no mar vertiginoso da ficção.”2 Todos os elementos que aparecem na estória até o momento passarão a fazer parte de uma estória paralela: a que a personagem central, Marília, conta. Os leitores terão a experiência de sentir simultaneamente o literalmente biográfico e o literalmente ficcional. E vai ser como se eles nunca tivessem vivido isso antes. Em um discurso quase indireto livre encontraremos passagens como: “tudo aquilo que em meus genes está ligado a você se encontra num grave e denso luto. Meus cabelos crescendo, meu rosto arredondado, os traços materiais do meu sobrenome, toda a gordura escondida no meu corpo que tenta abater esses meus pequenos, agudíssimos ossos. Eu sei, eu sei (Marília provavelmente sorri nesse momento/ mundo interior e mundo exterior) que a minha dívida genética não será nunca paga plenamente, como pagar pelo dom da própria vida? Como retribuir em palavras se aquilo que me foi dado parece ser sempre maior e, portanto, sem preço? Quando eu vejo esses genes que sobrevivem em meus cabelos e dentes agora morrendo em você, sim, eu sinto alguma coisa que eu certamente nunca poderei escrever, é por isso que no dia 11 de agosto de 2013 simplesmente não se havia nada a dizer.” O conto não tem conclusão. Duração média do conto: 2 minutos.

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A expressão “mar vertiginoso” pode ser substituída por termos correlatos empregados por críticos literários: “abismo sem fim”/“infinito impalpável”/ Ver: “O autor visa denunciar um mundo onde o sentido do humano se perdeu” etc, etc, etc.


o armário tomado

susan blum

Começou com um. Um só. Um apenas.... não é assim que muitas coisas começam? Estava passando pelo centro e resolveu entrar em uma loja quando um homem o ofereceu. Quando o viu, (o achou bonito e) não resistiu à curiosidade... Sabia que os pais não queriam isso em casa, mas a paixão já o dominava. Comprou. Sofregamente o abraçou, sentindo-o quase que a vibrar em seus braços, mas podia ser a sua própria vibração refletindo nele. Chegou em casa, com ele escondido dentro do casaco, pois seus pais – que ele considerava antiquados – achavam que isso trazia doenças e dependências, podendo até levar à loucura. Entrando rapidamente no quarto logo trancou a porta. Colocou-o em cima da cama e ficou observando-o e acariciando-o por um tempo. Depois procurou um local adequado onde pudesse guardá-lo. O armário! Sabia que a mãe nunca mexia em seu armário, pois ela tinha o hábito de deixar a roupa lavada e passada em cima de sua cama para ele mesmo guardá-la. Disciplina, dizia ela. Ajeitou uma prateleira e lá o colocou, com cuidado. Sentia um carinho estranho por ele. Sempre que estava a sós no quarto, com a porta bem trancada para prevenir surpresas, o pegava docemente. Quando o apartamento estava vazio, pois seus pais saíam muito ou até viajavam, o levava para a varanda, ou para o sofá da sala, e até mesmo dormia com ele em sua cama. Sempre retornava à loja em que o homem lhe oferecera. E o homem continuava a oferecer outros, sempre recusados, com medo de “ofender” ou “magoar” ao primeiro (como se fosse possível a ele compreender algo tão complexo!). Porém um dia o homem lhe mostrou outro que fez a paixão transbordar de novo. Não conseguiu resistir. Comprou. O segundo fazia companhia ao primeiro no armário. Chamava a um de Allan e ao outro de Julio. “Hoje vou dormir com o Julio” e deixava o Allan em sua prateleira. Às vezes os dois iam juntos lhe fazer companhia no leito. O problema – não é de praxe aparecer problemas? – é que ele descobriu que era de se apaixonar facilmente, pois um terceiro, um quarto e um quinto foram se seguindo na fila. Até que um dia percebeu que o armário estava

Il dépend de celui qui passe Que je sois tombe ou trésor Que je parle ou me taise Ceci ne tient qu’à toi Ami n’entre pas sans désir*

lotado, com as gavetas e prateleiras entupidas deles, amontoados uns em cima dos outros. A mãe estranhava ele se desfazer de tanta roupa ainda boa, doando aos pobres. Era uma tentativa de arranjar mais espaço para eles. Um dia, trazendo o quingentésimo nonagésimo nono, viu que não caberia mais no armário. Chamou a irmã para seu quarto, trancou a porta e mostrou a ela o armário entupido deles. Ela imediatamente se apaixonou por alguns e disse que cederia parte de seu armário para eles. Os armários de ambos foram sendo tomados por esses seres incríveis. Como os coelhinhos vomitados daquele conto de Cortázar que eles tinham lido várias e várias vezes. E, tal qual esses animais, eles foram se proliferando. Isso de tal forma que todos os armários possíveis da casa ficaram tomados. Para que não acabassem por expulsar os donos, ele acabou comprando o apartamento do lado, junto com a irmã, para instalá-los. Dessa vez, como o imóvel era deles, eles ficavam esparramados pelos móveis, amontoados pelos cantos, jogados uns sobre outros, empilhados nas mesas e poltronas, até soltos pelo chão. Porém eles continuaram se multiplicando e agora ameaçam sair do apartamento e tomar o prédio.

*Depende daqueles que entram/ Que eu me torne tumba ou tesouro/Que fale ou fique em silêncio./Você sozinho deve decidir./ Amigo, não entre senão cheio de desejo. Paul Valéry, fachada do Musée de l’Homme, em Paris.


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uma história de cronópios e de famas

braulio tavares (d’après Julio Cortázar)

Acontece que no Natal alguém deixa um belo pacote no degrau de uma casa onde moram vários famas e vários cronópios. Aberto o pacote, verifica-se entre exclamações de surpresa (enquanto um fama dobra o papel de presente e vai guardá-lo, juntamente com a fita colorida) que é uma câmara de filmar em 16 mm., acompanhada por dez rolos do correspondente filme. Hurras e comemorações por parte de todos; os famas logo se sentam à grande mesa de jantar e passam a rascunhar o argumento do filme, o roteiro, o organograma da equipe técnica, o pedido de financiamento ao Instituto estatal, os mapas das locações, o orçamento geral, o plano de filmagem, os contratos de publicidade e de distribuição; enquanto isto os cronópios descem a escada na ponta dos pés e levam a câmara para a rua. Lá eles se filmam exaustivamente uns aos outros, pintam-se de cores berrantes, fazem acrobacias, encenam o Grito da Independência, brincam carnaval, interrompem o trânsito e registram o descabelamento dos motoristas, fazem entrevistas na língua do P com os espantados transeuntes, gravam tudo nos aparentemente inesgotáveis metros e metros de celulóide. Quando estão se atarefando em desatarraxar a tampa de um bueiro da calçada para filmar em “contre-plongée” as pernas das moças que passam, chegam os famas, arquejantes e furiosos, lamentando em altas vozes o filme que não vai mais ser feito. Enquanto os cronópios, coitados, estão a ponto de chorar porque lhes arrebataram a câmara, um fama mais esperto repara que a tampa que fecha a objetiva não tinha sido retirada, graças à proverbial distração cronopiana, e que portanto os mil e duzentos pés de película continuam virgens e filmáveis. Retiram-se os famas, carrancudos mas aliviados, com a câmara carregada a oito mãos, enquanto os cronópios, novamente felizes, sentam-se no degrau e comentam pelo resto da noite as peripécias da filmagem.



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estáticofrancisco slade O resto é escuro. Só a faixa amarela no meio da pista, sincopada pela ação do tempo, e o desenho mais ou menos regular dos fachos dos faróis a engolindo constantemente. O refulgido metálico do asfalto sumindo rápido, empurrado pelo ronco do motor, obediente e monocórdio. O resto é escuro. Vez por outra, um raio longínquo, que, por menos de um segundo e sem nunca ribombar, revela num clarão o emaranhado de nuvens carregadas, árvores e montes, conferindo profundidade, perspectiva àquilo que, de outra forma, não passa de piche e silêncio. Sem horizonte, sem estrelas, sem lua. Só escuro. E um raro par de outros faróis, que brotam do caminho e passam pelo homem, como se nada houvesse por trás deles, pra lembrá-lo de que ele tá em movimento, e não em suspensão, como seus olhos lhe sugerem. A estrada tá estranhamente vazia. Mesmo considerando que é sábado de madrugada, e com um tempo ruim desses, não é normal, pensa o homem. Melhor assim. Em quarenta minutos, passo por Orleans. Se a chuva rebentar finalmente, fico por lá até amanhã de manhã. Se não, sigo até Fontainebleau. O homem sente-se cansado, mas não tem sono, e prefere seguir viagem à noite, como quem foge. E talvez seja mesmo o caso. Algumas horas antes, fim de tarde em Vierzon, o homem vagava pela margem norte do Cher e tomava coragem pra levar a cabo o que tinha decidido fazer. Andava com o ânimo de quem caminha pra forca, fumando um cigarro atrás do outro, debaixo do braço o pequeno pacote que tinha ido buscar naquela cidade que lhe causava um tédio profundo. Lugarzinho sem graça, enfadonho. Bela ironia que seja exatamente no centro do país, pensou. Vierzon resumia bem o que ele sentia hoje em praticamente toda a França. Quase achava graça ao lembrar-se de que já tinha sido um entusiasta do modo de vida francês. Agora, tudo que queria era sair, ir pra outros lugares. A vida inteira aqui já foi tempo demais, concluiu. Mais esse serviço, quem sabe, mais esse serviço, e talvez eu tenha dinheiro pra me mandar. Um pacote aqui, outro em Fontainebleau, e acabou, volto pra Paris, passo o carro e me mando. Esse pensamento lhe deu algum alento. O homem até acelerou o passo. Mas o problema era ela. A ponta solta. Seu andar de novo arrefeceu. De volta ao mesmo ponto. Como a chuva não decide cair, passa ao largo de Orleans. Em mais uma hora e meia, Fontainebleau. Pra acabar com isso amanhã cedo, diz a si mesmo, enquanto pisa no acelerador. Mais uma noite num hotelzinho barato com cheiro de mofo. Só mais uma. Ao menos aqui, a trabalho. Ficam pra trás as luzes da cidade, a bolha incerta de luz amarela recortada no negrume do céu. Outra vez a noite se fecha sobre ele. Seus faróis, dois rasgos de concretude numa massa espessa de absurdo. Uma vida inteira de estrada e ele nunca viu noite assim. Apenas por curiosidade, o homem para no acostamento, desliga os faróis e sai do carro. Não enxerga nada. Rigorosamente nada. É quase como se não houvesse carro, estrada. É quase como se ele não tivesse ali. – Eu teria sido uma boa mulher pra você – ela disse. – Eu sei.


– Essa sua dificuldade de ficar no mesmo lugar. De parar. Esses eternos planos de viajar, sair daqui. Até esses seus trabalhos, pulando de cidade em cidade, esperando sabe-se lá o quê, eu poderia lidar muito bem com isso. Eu poderia te acompanhar. Sair do país contigo. Eu poderia também esperar, vez por outra, quando fosse o caso. Pra ser sincera, apesar de lidar com isso de forma diferente da sua, era o que eu procurava. Também queria essa liberdade. Seria perfeito. Eu realmente pensei que poderíamos ficar juntos. – Eu... – E parou. O homem não tinha a mais ligeira ideia do que dizer. Com a voz doce e controlada, no mesmo ritmo lento e claro, contido, ela continuou: – Depois de mais de dois anos, você sempre indo me ver em Marselha, depois de você me chamar pra ir contigo pra Paris, eu tinha uma expectativa, é claro. Mais ainda no último mês, depois de você ter feito a proposta. Demorei a me decidir. Depois, começou a fazer sentido. Comecei a imaginar, a ter planos. É natural. Mas quatro dias atrás, quando você chegou, vi que tava diferente. Mais distante aqui do que em todo aquele tempo na estrada. Desde então, a cada minuto, foi como se me faltasse o chão – e enquanto ela seguia, ele sentia-se ausente. O homem via os lábios dela se mexendo, no meio sorriso que sua boca sempre parecia insinuar quando ela falava, e pensava que, uma hora antes, escurecia, e ele se torturava à margem do rio, imaginando como dizer a ela. Mas o céu logo se fechou com nuvens muito carregadas, ele resolveu voltar ao hotel. Andou umas dez quadras até chegar ao hotelzinho ordinário; ao chegar, guardou o pacote no Caravelle, debaixo do banco do passageiro. Subiu as escadas tenso, mas resoluto. Já arrependido, mas resoluto. Tinha aberto a porta do quarto e, ao ver a mulher, tomado fôlego pra começar – Yvette, olha... Mas, antes que ele pudesse prosseguir, ela disse: – Eu vou te deixar. Desde então, o homem tenta escutar. Reajustar o curso. Entender o que fazer, o que dizer. Nunca esperou isso dela. – As noites foram um inferno. Não dormi – ela disse. – Não sabia se era besteira, uma suposição sem cabimento, ou se fazia sentido. Fiquei em suspenso, desde a hora em que você chegou lá em casa. E mais ainda desde ontem de manhã, quando deixamos Marselha. Os dados rolando a cada guinada do volante. Trouxe minha vida em duas malas e uma bolsa, disposta a tudo. Mas, a cada curva, a cada saída, a cada placa anunciando a próxima cidadezinha, ficaram pra trás minhas certezas. Minhas expectativas. E eu segui uma vontade surda de estar errada, ao acaso, como um pedaço de fita amarrada à antena do carro, chacoalhando ao vento. Se eu afrouxasse as mãos, me desprenderia, seria levada pelo vento, até pousar no asfalto, ficar na estrada. Mas fomos sempre adiante, os dois. Juntos, mas cada um pra um lugar. – Até que hoje, quando você saiu, notei que alguma coisa tinha mudado – ela continuou, depois de uma pausa que ao homem pareceu longa, muito longa. – Em você, mas também em mim. Vi que era hoje que você ia me dizer. Entendi que você não pode ficar parado em lugar algum, nem em mim. Você não consegue. E pensei que parte da liberdade que eu queria era poder ir embora. Antes que você me deixe, te deixo eu. Prefiro assim. Mais simples. E você se poupa de se sentir culpado – disse com um risinho, olhando meio pro lado, meio pra baixo, na única vez em que ele a viu sorrir depois que deixaram Marselha.


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Ele deita a cabeça, a cama ainda forrada, e sente um troço sob o travesseiro. Mete a mão ali e puxa o livro. Um autor argentino, pelo que entende na orelha do volume em espanhol. Alguém deve ter esquecido no quarto. Vê-se que a limpeza aqui não é grandes coisas, conclui, mal-humorado. Folheia o livro ao acaso por um instante, antes de colocá-lo sobre a mesinha de cabeceira. Senta-se e tira os sapatos. Antes de apagar a luz, repara que o ruído que escuta desde que entrou no quarto vem de um canto próximo à cama, onde uma mariposa tenta voar e se choca à parede, volta ao chão, tenta de novo. Olha pra aquilo um instante. Aí, apaga a luz. Deitado de costas na cama, encara o teto. O escuro foge do quarto pelas frestas da persiana e por baixo dela, deixando em seu lugar um reflexo azulado, que se espalha sobre tudo e dá silhueta ao quarto. As batidas da mariposa contra a parede continuam estalando baixinho. O homem pensa que a noite na estrada era muito mais escura e demora a dormir. Na manhã seguinte, o homem deixa o hotel bem cedo. Céu aberto, com a noite foram-se as nuvens. Ao sair do quarto, repara que a mariposa continua se esborrachando na parede. Ele para num café, onde come um troço. Enquanto espera a garçonete trazer o troco, confere em seu caderninho o endereço aonde precisa ir pra pegar o outro pacote que deve levar pra Paris ainda hoje. Sai, acha um telefone público e liga pro número anotado no caderninho. A voz do outro lado da linha diz que só é possível buscar a encomenda depois do almoço, que precisa de tempo, a despeito da insistência do homem, cujo plano era resolver tudo ainda pela manhã e partir pra Paris o mais cedo possível. Ele teme que o trânsito de volta à capital num domingo possa transformar uma hora de estrada em duas ou até três horas em meio a modorrentos motoristas de fim de semana. Que cronograma idiota, pensa, só poder buscar o diabo do pacote hoje e ter de entregar tudo hoje, se todo mundo sabe como podem ficar as estradas num domingo. O homem anda sem rumo e calcula como matar o tempo até a hora combinada. – Sabe, eu tinha pensado em aprender a costurar. Penso nisso há um tempo. Sem maiores planos, só pra costurar coisas pra mim. E pra você, quem sabe. E era algo que eu poderia fazer em qualquer lugar. Onde fôssemos morar. Agora voltamos às nossas vidas, eu e você. Eu de volta ao escritório, a secretária, você de volta às suas viagens constantes e seus pacotes. Me diz, você ao menos sabe o que tem dentro deles? – Depende. – E é ilegal? – Geralmente. Ficaram em silêncio, e o homem se sentiu incomodado. Ele achou que devia dizer algo.


– Vou parar com isso. Logo. – É sua vida. E, na verdade, eu já imaginava. Só te peço um favor, não seja preso. Nem morto. – Não vai acontecer. Eu já disse, vou parar com isso. Outra vez, ela sorriu. Ele a achou muito bonita. – Acho que eu não vou costurar e você não vai correr o mundo – ela disse, ainda sorrindo. Ele pensou em dizer a ela o que tinha planejado, a pura verdade, que era louco por ela, mas que tinha de ir embora. Que ele não sabia bem por que, mas precisava ir embora. Depois, desistiu. Percebeu que era melhor deixar as coisas assim e que ela tava mais feliz com seu arranjo, o que lhe cabia era aceitar. Enquanto ele refletia, ela se aproximou. Eles se beijaram e se jogaram na cama. – Uma última vez – ela disse. E por saberem que não haveria outra, foi como se descobrissem um ao outro de novo, talvez de uma maneira diferente. Continuaram até não conseguirem mais. Aí, o homem sentiu-se tolo e triste. Dormiram. Quando o homem acordou, de madrugada, ela não tava mais lá. Ele se sentou na cama por um tempo, olhando o carpete encardido entre seus pés. Depois, se vestiu e pegou a estrada. Duas da tarde. Em frente à porta, espera que lhe atendam. Como nada acontece, toca de novo. A demora o impacienta e ele decide tocar uma terceira vez, mas, antes que possa apertar a campainha, um sujeito abre uma fresta na porta e, com um sotaque carregado – de algum lugar do leste europeu, calcula –, pergunta o que ele quer ali. – Sou o courrier. Liguei essa manhã. O sujeito lá dentro abre a fresta na porta um pouco mais, pra observar o homem de cima a baixo. O homem repara que o outro lá é enorme, calvo, veste um terno escuro e largo e tem o maxilar feito um tijolo. Sem dizer nada, o estrangeiro fecha a porta, deixando o homem sem saber se toca de novo a campainha. Ele decide esperar. A casa de dois andares é estoica e fica numa área isolada da cidade. Todas as janelas estão fechadas. A casa mais próxima tá a uns trezentos metros. Não há muito pra ver ali. O calor de agosto incomoda o homem, que afrouxa a gola da camisa e coça o pescoço. A porta se abre numa fresta novamente, mas, dessa vez, é outro homem, mirrado e grisalho, de camisa desabotoada e suspensórios, que o atende. – Sou o courrier. Liguei essa manhã. – Eu sei, foi comigo que você falou. Reconheço sua voz. Tá aqui o que você tem de levar – e estende ao homem um pacote pequeno, como dois tabletes


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de manteiga empilhados – tome cuidado. São frascos de vidro. Dentro, tem um líquido extremamente venenoso. Se um dos frascos quebrar, não mexa nele, se puder evitar. Melhor usar luvas, em todo caso. Se você tiver contato com o líquido, procure se lavar o quanto antes e em hipótese alguma toque suas mucosas. Percebe? Assim que o homem pega o pacote, o outro desaparece, fechando a porta atrás de si. O homem anda até seu Caravelle e coloca o novo pacote escondido sob o banco, com o primeiro. Resolve, no entanto, acomodá-lo melhor sobre um lenço dobrado. Senta-se ao volante, as duas mãos cravadas na direção e, olhando pra frente, assim permanece por longos instantes. Parece tomar fôlego. Aí, finalmente, o homem dá a partida e vai embora. De volta à estrada, o homem sente-se cansado. E melancólico. Ele pensa na mulher, e isso dói. Ele decide pensar em outra coisa e se conforta lembrando que logo mais vai chegar a Paris, entregar os pacotes e ficar livre. Vendo o carro amanhã mesmo e vou embora, deixo tudo pra trás. Pro bem e pro mal, vaticina. Adiante, pouco depois da saída de Fontainebleau, o trânsito fica muito lento. Logo, ele se encontra num grande engarrafamento, exatamente como temia. Ele bufa e lamenta. Outra vez, consola-se ao pensar que, ainda esta noite, ficará livre. Parado em seu Renault Caravelle, espremido entre um Peugeot 404 e um velho Skoda, o homem, irônico, imagina o que aconteceria se, como num pesadelo, aquele engarrafamento não terminasse mais e ele ficasse ali. Parado. Sem nunca sair do lugar.


axolotl: um manuscrito

alberto lins caldas

No começo de 1984, precisamente 10 de fevereiro segundo o carimbo francês, recebi de Cortázar uma carta carinhosa onde entre outras coisas ele descreve com nitidez a morte de Carol (quantas risadas boas nós três demos em Paris onde e quando nos conhecemos), a úlcera de 1981, sua volta conturbada e feliz para a Argentina com nosso reencontro final, uma gostosa infinidade de fraternidades, mas, principalmente um texto que acompanhou a carta como um presente, sequer nominado na carta. Como se ele tivesse, depois daquela despedida, jogado esse manuscrito como “palavras dentro de uma garrafa”. Desde que li a primeira vez fiquei com a impressão de estar diante não de uma reescritura de um conto já escrito e publicado, mas de uma virada estética, de outra mirada narrativa que ele não teve tempo de desenvolver plenamente, como aquele pequeno texto onde Pierre Menard transgride tudo, criando assim outra história. É um poema (não no sentido do verso ou da poesia, mas no sentido de campo de criação e adensamento além dos gêneros), mas não apenas isto. Continua um “conto”, continua sendo o “Axolotl” de 1956, que permanece intocável. Outra posição diante da língua, da própria sequência de escritores que haviam contribuído com ele para que escrevesse da maneira como escrevia: arquiteta outros predecessores, outra temporalidade narrativa, outra concisão, uma precisão sem descritividade, sem localismos, deixando apenas a essência. Mas não gostaria de desenvolver nenhuma teoria sobre isto. Deixo ao encargo do leitor esta última escrita corporal do grande mirador, do grande axolotl que é Julio Cortázar:


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yo pensaba mucho en los axolotl. me quedaba horas mirándolos. me ponía a mirarlos. desde el primer momento comprendí que estábamos vinculados. me había bastado detenerme ante el cristal donde los axolotl se amontonaban. vi un cuerpecito rosado y como translúcido semejante a un pequeño lagarto. descubrí sus ojos. el tiempo se siente menos si nos estamos quietos. fue su quietud lo que me hizo inclinarme la primera vez. los ojos de los axolotl me decían de la presencia de una vida diferente, de otra manera de mirar. pegando mi cara al vidrio buscaba ver mejor esa entrada al mundo infinitamente lento y remoto. su mirada ciega, terriblemente lúcido, me penetraba como un mensaje. en ese instante yo sentía como un dolor sordo. ningún animal había encontrado una relación tan profunda conmigo. había una pureza tan espantosa en esos ojos transparentes. eran ellos los que me devoraban lentamente por los ojos. llegué a ir todos los días y de noche los imaginaba inmóviles en la oscuridad. cada mañana el reconocimiento era mayor. cada fibra de mi cuerpo alcanzaba ese sufrimiento amordazado. el mundo había sido de los axolotl. mi cara estaba pegada al vidrio del acuario. veía de muy cerca la cara de un axolotl junto al vidrio. sin transición vi mi cara contra el vidrio, la vi fuera del acuario, la vi del otro lado del vidrio. entonces mi cara se apartó y yo comprendí. mi cara volvía a acercarse al vidrio. yo era un axolotl y sabía instantáneamente que ninguna comprensión era posible. él estaba fuera del acuario, su pensamiento era un pensamiento fuera del acuario. conociéndolo, siendo él mismo, yo era un axolotl y estaba en mi mundo. vi a un axolotl junto a mí que me miraba, y supe que también él sabía, sin comunicación posible pero tan claramente. o yo estaba también en él, o todos nosotros pensábamos como un hombre, incapaces de expresión, limitados al resplandor de nuestros ojos que miraban la cara del hombre pegada al acuario. él volvió muchas veces, pero viene menos ahora. pasa semanas sin asomarse. ahora soy definitivamente un axolotl y si pienso como un hombre es sólo porque todo axolotl piensa como un hombre dentro de su imagen de piedra.


por fatalidade caí no jogo

livia garcia roza

Por acaso te vi Por sorte estavas ali Por fatalidade caí No jogo. É o céu.


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cortázar e o gato

patricia laura figueiredo

tocante na fotografia feito o gato que me comove vitória do silencio feito das mesmas esquinas todos os retalhos sonâmbulo e trágico feito areia moída sonho e fobia o silêncio é uma vitória (esse que a gente comemora) afago com os dedos como se num café com Kafka belo como uma doença invisível eterno em nossas vidas




dauphine

I

juliana amato

eu vou encontrar você dia a dia parada na mesma ponte no mesmo quarto na mesma casa na mesma estrada (vento nos cabelos) segurando uma carcaça II entre meus dedos você, a estrada e o vento a sua mão (toca a minha, rapidamente e se afasta) a sua mão um mapa ao contrário uma história ao contrário uma perda, uma pedra III o perfil cansado a curva dos seus lábios: não ao movimento ou uma borboleta muito branca muito breve eu vou procurar você todas as horas mesmo que o veneno mesmo que linhas a lápis num caderno


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brooklyn, 2014

diego pale

Isso aqui não é Paris, querida. Isso aqui é uma cozinha engordurada no canto feio das sereias e todas essas ilhas jamais sustentariam suas águas O novelo gira velocíssimo Ariadne aguarda no cinema enquanto o Touro é servido aos homens que não, jamais comem os homens apenas devoram o perfume que roubam Isso aqui, querida, barely resembles Paris. Estávamos nós afundados em navios esqueléticos e mais nada essa terra úmida engole nossos pés e nem todos os sorvetes do mundo nos salvariam agora – aqui, querida, o vômito é simbólico e o mal-estar constante.


nome francesca angiolillo Teu nome se escreve pedra, meu nome se escreve água, meu nome não tem um m, nenhum m nessa casa, seu nome se escreve águia, seu nome se escreve gaia, meu nome não tem um v, meu nome não tem h, meu nome tem só um a, seu nome se escreve guerra, meu nome se escreve teu nome, seu nome se escreve mar, meu nome se escreve mágoa, teu nome com o meu se escava, meu nome no seu se grava, seu nome no meu se lava, teu nome me nega, três vezes teu nome, meu nome se escreve, meu nome se esquece, meu nome no teu.


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carta a rocamadour

marina della valle

Menino Rocamadour, meu menino, Rocamadour Não sei te escrever sem chorar, as lágrimas borrando toda a tinta e logo não se lê nada. Mas essas cartas são só pra você, e eu sei que entende tudo, cada borrão azul, melhor que eu. Hoje é seu aniversário, 12 anos, um homenzinho, e as palavras escritas, ah, Rocamadour, é como se elas fossem ditas. Meu menino, meu tesouro, hoje chove fininho, o dia acordou zangado. A água do Alzou deve estar barrenta, sem a transparência dos seus olhos, como eu procuro teus olhos – e por um segundo eu os encontro no brilho da água em movimento, nos olhos dos gatos, que conhecem todos os segredos. Meu menino, meu favo de mel, 12 anos é primeira comunhão, é bar-mitzvah, é quando as crianças de despedem da infância. Você erá sempre meu menino, olhos que são duas janelas intocadas pela feiura do mundo, ah, Rocamadour, quanta feiura o mundo abriga, como eu queria que o fundo de seus olhos fosse preenchido apenas com a beleza e o assombro da vida. Mas para que pensar nisso agora, logo você será homem feito, perambulando atrás de uma ideia que se esvai. Os homens, meu menino, vagam numa busca que se basta, mudam de objetivo cada vez que precisam complicar o caminho. E como complicam, Rocamadour, bifurcam linhas retas, inventam pontes e montanhas, muros maiores que os Andes. Eu também padeço dessa alma de andarilha, meu filho, dessa necessidade de andar a esmo, sem combinar nada com o mundo, sem pensar em caminhos, traçando teias de aranha assimétricas, orgânicas. As simetrias eu deixo para quem sabe, para os flocos de neve, os trevos, as folhas de plátano. Os andarilhos vagam por que estão condenados a vagar. Jamais contam esquinas, atravessam as ruas ao sabor das vitrines, logo você também será um errante, meu tesouro, meu menininho. Rocamadour, são tantas as coisas que nos desviam de qualquer linha traçada. Quando Paris ficou para trás, saí vagando pela chuva, perdi um sapatos, e a polícia por fim me recolheu no acostamento de uma estrada. Coisa medonha que é uma cela, Rocamadour, é como se o ar não tivesse mais oxigênio suficiente, como se aquelas barras pudessem sufocar. Mas quando fui solta me ofereceram uma passagem de trem para sair de Paris, e meu traçado de fuga deu outra guinada. Meu amor, meu príncipe, você ainda não sabe o que é se rasgar de alguém, que Deus te proteja das dores confusas. Horácio é um errante e nossas bússolas tinham uma sincronia amaldiçoada; 15 minutos andando por Paris e logo divisava sua silhueta atravessando a rua ou inclinado sobre a mureta de uma ponte, ficando cada vez mais nítida conforme eu me aproximava. Eu precisei ir embora. Não


que eu achasse que Horácio fosse me procurar. Ele entendeu tudo no mesmo minuto, Rocamadour, percebeu no ato que eu virei outra pessoa, uma Lucia sem você, agora grávida da sua morte. Horácio deixou uma mulher que nunca conheceu. E aqui estamos, meu menino, no penhasco que causa tanta vertigem quanto uma visão sua, onde os caminhos não se cruzam. É isso que Horácio nunca compreendeu, essa troca, essa vertigem, você vive dentro de mim por que as mães jamais desistem, sua ausência é tão imensa que te torna quase palpável, é através dos meus que seus olhos enxergam o mundo. Já faz tanto tempo, Rocamadour, que aceitei um bilhete de trem e vim parar nesse lugar onde as placas e os letreiros estampam teu nome, onde os turistas são peregrinos, sujos de esforço. As terras cruzadas pelos romeiros aprendem a amá-los, a respeitar quem segue buscando um milagre. Meu doce, meu Rocamadour, eu já te escrevi sobre o tempo, lembra? O bicho que anda e anda. Mas naquela época você era muito pequeno para entender que o tempo pode caminhar em passos diferentes. Há o tempo do relógio, das estações, para todos os seres vivos, mas cada um aprende um passo diferente, o passo próprio. Dentro desse passo próprio há um terceiro, o mais perigoso, Rocamadour; o ritmo da lembrança, alucinante, que desmancha o próprio tempo, quando dou por mim passei dois pontos de ônibus, entre uma esquina e outra toda sua vida, desfilam memórias inventadas, como se os sonhos tivessem sido fotografados. Meu passo é um quando tento escapar da chuva fria, pulando poças, atenta para não pisar em falso e quebrar o tornozelo. Mas quando o sol se põe num dia limpo, eu caminho alargando o tempo, embebida na lembrança dos teus pezinhos de bebê, eu sinto seu cheiro. Ou se topo um gato. É nos olhos dos gatos que estão seus olhos, Rocamadour; no olhar que atravessa, sobrenatural. Ou quando a luz amarelada bate nas cristas breves da água encrespada do Alzou, e eu caminho pela margem perdida em tanto brilho. Os nossos passos se misturaram, sua imagem surge de repente no dia a dia como uma foto esquecida em um livro. Mas hoje chove, uma chuva fininha e afiada, feita para fustigar os sentidos. Então escrevo e escrevo esta carta borrada no escuro, a janelinha solitária castigada pelas árvores, ela mesma cinza. Aqui dentro esse mofo que parece ter tomado a França, apodrecido toda a tapeçaria, os carpetes imundos. Mas até o cheiro de mofo te traz de volta, o mesmo odor da madeira podre sob os tapetes infectos do nosso quarto em Paris, que se misturava ao seu perfume de bebê, ao cheiro de talco do seu berço. Eu ainda compro o talco com o rótulo de coelhinho, meu amor, meu bebê. O perfume jamais seria o mesmo sem o contato com a tua cabecinha quente – mas eu finjo, eu finjo que posso beijar seu cabelo fininho. É preciso de uma certa estoicidade com a realidade para ser mãe, meu anjo, isso os homens não conseguem


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entender, meu Rocamadour. Até a mãe de Jesus precisou ser moída por dentro, mãe de Deus ou não; Nossa Senhora, Rocamadour, consola as mães que sofrem pelos filhos, esses mesmos homens que seguem por aí procurando algo, quebrando corações durante o processo. Meu menino, meu filho, agora que você é um homenzinho, precisa saber que cada homem nasce com uma lista de corações a serem quebrados, e o primeiro é sempre o da mãe, bem aquele que bateu ao lado de seus próprios corações. Pois Maria, Rocamadour, é a mãe de todas as mães, santa do mistério da gravidez, dos medos do parto, Maria sabia o que nem Jesus não podia saber, Rocamadour, nem mesmo ele, Maria entende a natureza do amor materno. Isso nem Ossip nem Horácio poderão entender, nem eles, tão inteligentes, com debates e teorias sobre tudo, podem saber o que qualquer mãe sabe sem que uma palavra seja dita. Dia sim, dia não, entro na fila de turistas atrás da Virgem Negra, a santa magra e sofrida. Por que, meu amor, Deus castigou tanto a mãe de seu filho? Rocamadour, hoje tenho tanto medo dos sonhos. Nessa noite sonhei que podia respirar debaixo d´água no mar tropical, dividindo o espaço com peixes berrantes, águas-vivas e uma floresta de anêmonas fluorescentes. Milhares de filamentos suculentos e transparentes, ondulando num balé tão delicado. Só quando cheguei perto percebi que havia um olho humano na ponta de cada filamento, e que aquele era o seu olho, milhares de cópias pequeninas do seu olho me fitando de vários ângulos. Que pavor senti o ver seu olhar límpido replicado aos milhares sob a água clara, atentos a mim, acordei sufocada de dor, meu anjo, nesse ar mofado e velho. O médico pensou que fosse tuberculose, ele não pode entender as apneias de mãe, o horror profundo dos pesadelos maternos. Sonho com banheiros coletivos imundos, com as catacumbas cheias de ossos sob Paris, aquela cidade engole vidas, meu amor, se alimenta dos humanos que correm por suas ruas feito formigas, século após século. Horácio, Ossip, eles debatiam tanto o horror das mortes em massa, a peste negra, o banho se sangue da Revolução Francesa, mas jamais falavam da carcaça ocasional, das vidinhas comidas por Paris aqui e ali, os seus, os meus ossos, Rocamadour, reforçando alicerces em algum canto. Os passos do tempo, meu menino, são como o ditado japonês que Ossip me contou numa noite de inverno. Dizem os japoneses que cada homem tem três corações. Um deles é o que mostra à sociedade. O segundo é o que revela a quem ama. Mas o terceiro coração, Rocamadour, só o dono e seu deus podem ver. Pois os passos do tempo seguem o ritmo desses três corações: um é constante, para a sociedade. Outro é mais acelerado, quando estamos com nossos amores e logo é hora de voltar para o trabalho, esse passo que esgota o tempo tão rápido. E há o passo do terceiro coração, quando a mente mergulha no que é mais sagrado e o tempo simplesmente deixa de existir até que o barulho da sineta do ônibus ou da turba que adentra o vagão do metrô me arraste de volta ao tempo corriqueiro que alimenta os relógios. É nele que você vive e viceja, cresce. No terceiro coração, Rocamadour, cabem minha vida em Montevidéu, sua chegada imaculada depois de tanta lama, minha flor-de-lótus, a pétala limpa que brotou de tanta sujeira. Cabem todos os seus sorrisos banguelas, todas as vezes que enfiou os pés na boca, cabe a aura perfumada de tua cabecinha no meu peito, naqueles momentos eu me senti a própria Virgem Maria, esse foi meu erro, Rocamadour, tomar para mim o arroubo de uma mãe que veria seu filho morrer diante dos olhos. Rocamadour, Rocamadour, meu pombinho, meu menino, meu bebê na manjedoura.


a nova inquilina

leonardo marona

Dela só sei dos objetos, uma foto com chapéu, alguns livros de pintura, muito Julio Cortázar e, até certo ponto – e temo que isso venha a se tornar um passatempo um tanto contumaz –, me satisfaz saber que ela existe, em calcinhas para lavar e pontas de cigarro, nada mais, até aqui. Não saber de sua pele me dá a chance de navegar por suposições agradáveis. Será que ela inclina levemente a cabeça para a direita quando sorve o café – adoçado ou puro? Poderíamos, fico imaginando, nos comunicar perfeitamente em códigos ausentes, diagnose do sentido, feixe de imagem improvisada? Confesso: gostaria muito que ela deixasse as calcinhas penduradas na torneira do chuveiro, depois de lavá-las. Não exatamente por fetiche, mas por segurança. Talvez haja algo de maternal nessa vontade: é provável. As coisas foram se acumulando pela sala, como um corpo desaparecido que habita os confins de uma intimidade violada mesmo antes de se estabelecer. É tudo muito confuso. Ela anda, bebe líquidos, acumula pequenos bibelôs, tem jeito de quem gosta de ter carinhos sutis com objetos pequenos. Mas, preciso dizer mais diretamente sobre o caso, estou desfalecendo por causa desse impasse cortaziano: o saber que se está no que não se pode ainda ver, rodar esquisito em volta do tema sem tocá-lo, no entanto, em fogo, aí está a doença do descobrimento forjado e aí está o prazer máximo dos cheiros, da invenção dos sons. Dirá ela bom dia como qualquer um? Por exemplo: olhará ela para os olhos ao brindar com aguardente? Talvez o fato de não saber de nada seja o único fato que permita perguntar a esmo, delicadamente. Cansado. Cansadíssimo. Ontem mesmo, não consegui entrar na casa. Incomodava muito o fato de que a fantasia poderia ser estraçalhada a qualquer minuto, então seria tomar um café,


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enrolar um cigarro em papel propício, falar sobre influências, desejos de amor e paz. Girar em espiral pode se tornar extremamente perigoso a partir do momento em que não se reconhece mais nenhuma outra estrutura mais objetiva entre dois seres humanos. Estarei eu prestes a me tornar um personagem de Cortázar, que gira em torno da fera conforme os quartos vão se apequenando? Terá se tornado um vício fazer perguntas sem desejar qualquer resposta, ou pior, sabendo que no fundo qualquer resposta limitaria imediatamente o interesse por qualquer pergunta? Dormi ontem, enfim, no hall de entrada, não consegui dar o passo, quebrar a espiral. Estou a pele e osso, mal consigo raciocinar. Funciono pelos cheiros, pelos objetos, pelas escolhas do espaço ocupado. Que modo terá ela de ajeitar o cabelo no topo da cabeça, enquanto morde a língua e se concentra para, por exemplo, manusear um estilete? Olharei pela fresta antes de entrar. Melhor que isso: dormirei para sempre no corredor. Não posso vê-la, seria um suicídio, estabeleci regras morais iminentes, que me arrancam dos pés o movimento fulminante. Ver demais seria um crime premeditado, preciso ser um detetive honesto. O bom detetive não vai pelo caminho mais fácil, vai pelo caminho mais amplo. Repito para mim mesmo a frase vinte e cinco vezes. Há um espelho no corredor e, para minha surpresa, já não sou mais eu mesmo diante do espelho. Reparo que ganhei certa espessura na barba, os olhos se descoraram em cinza, cresci muitos centímetros. Os ossos estalam por dentro da pele e sinto ganas de tomar um chimarrão. De repente falo belga, francês, ouço jazz, brinco com soldados de chumbo num pátio imaginário. Vou virando, em suma, bem mais Julio Cortázar do que eu mesmo. “E que surpresa ela não terá”, penso, “quando olhar para mim e souber que escrevi seus mais ternos sonhos, quando reparar que o nosso não-encontro violou minhas antigas feições, que sou o mestre samurai, o anti-herói tímido da literatura castelhana?”. Sinto que um desfecho seria pôr, demasiadamente cedo, tudo a perder. Preciso funcionar dentro dessa nova moral inaugurada, o que significa, acima de tudo, não vê-la jamais, para poder pensar nela e, conseqüentemente, em mim. Precisamos, afinal, agir de acordo com a angústia de não ser possível saber. Mas saberei dela pela água nas plantas, saberei dela por uma máquina de escrever, saberei dela pela janela entreaberta, saberei um cacto, os livros de arte, saberei os objetos. Transformar tudo numa busca material sem precedentes, e tudo ficará tranqüilo por um instante, e poderei dormir como se, não a conhecendo, pudesse me colocar em estado de igualdade com ela, já que não conheço também a mim, nem muito menos a Julio Cortázar.


a invasão

claudia nina

A casa não era grande, pelo contrário. O caminho até o escritório era feito de alguns passos apenas. Fácil tomarem o pouco espaço e abocanharem o que existia com fome de traças. Ele não percebia porque estava bêbado. E quanto mais bebia, mas elas avançavam loucas. Entravam por todos os vãos possíveis, afunilavam-se na máquina de escrever, contorciam-se lá dentro como minhocas. Faziam um som pequeno e confuso, eram vermes em agonia. Ele bebia o vinho bom. Não tinha mais ninguém naquela casa que parecia um quarto. O homem tomava mal conta de seu mundo minúsculo e pensava que nada estava acontecendo. Mas estava. Aos poucos, elas entravam nos livros, enchendo-os de perturbação. Se tivesse alguém ao lado, uma irmã mais velha que o ajudasse a ver o que ele não via, ainda que silenciosa em seu canto fazendo tricô, talvez ele pudesse perceber o tamanho do horror que avançava e tomava conta da casa, mas não. Ele estava só ao lado da garrafa de vinho. Enquanto isso, elas surgiam em nuvens como marimbondos e pareciam cegas; guiavam-se por uma espécie de faro ou antena - eram bichos que avançavam? Queriam tomar conta de tudo o que estava escrito e, especialmente, do que ele, embriagado e feliz, tentava escrever. Ele deixava porque não percebia e - quanto estrago! - o que suas mãos produziam eram um reflexo do horror: elas deixavam manchas, rastros imundos por onde passavam e invadiam. Que falta fazia a irmã que ele não tinha, aquela que tricotava, e com quem poderia dividir a suspeita de que alguma coisa muito estranha o acometeria de repente, tomando de assalto seu pequeno mundo guardado. Irmã que tricota faz falta, e a noite tomada não alcançaria a madrugada sem ela. Mas ele não sentia falta dela porque não tinha irmã, muito menos uma irmã que tricotava. A noite avançava. Quem o visse por trás não acreditaria na cena: o escritório infestado, a máquina de escrever completamente tomada. Nas estantes não tinha mais espaço para nada: estavam repletas de negras colmeias nojentas. As megeras famintas entravam em todos os livros e não se podia mais tocar em nenhum deles sem sentir o asco de também tocá-las. O pior, porém, não era isso. Em qualquer palavra que ele colocasse no papel, elas grudavam. Não havia frase que não estivesse manchada por duplos de palavras que não foram escritas por ele – eram sombras malditas. E o pior era que ele não via nada. Sua casa, as estantes, a máquina de escrever, a vida das palavras, tudo estava sendo tomado silenciosamente sem que ele percebesse. Foi então que pensou ter finalizado o conto. Este ele guardaria em uma gaveta como tudo o que havia escrito antes - não mostrava nada do que escrevia para ninguém. A gaveta onde ele guardou o conto estava igualmente tomada por elas. Saíam pela fresta como se pusessem a língua pra fora. Eram bestas. Ele não viu nada. E depositou o novo conto junto aos demais. Não achou nada de estranho. Sequer releu o conto antes de tirar da máquina – quem sabe ele veria as intrusas ali, manchando sem dó tudo o que ele escrevera? Não releu, não viu, não suspeitou. Deitou mais um conto na gaveta que foi imediatamente tomado ainda mais pelas outras tantas de tocaia. E assim, sem perceber que fora tomado no mais íntimo de seu mundo, ele apagou as luzes do escritório. Deixou a garrafa de vinho vazia – realmente vazia por que esta elas não quiseram o vidro nem a bebida. Saiu na direção do quarto – eram alguns passos. Não sem antes fechar a porta do escritório e trancar ali um mundo cheio de horror e excessos. Quem as mataria? Ninguém poderia enfrentar aquele exército de lesmas invasivas se não pudesse antes enxergá-las. Ah, onde estaria a irmã que tricotava, mas que não existia porque o homem não tinha irmã? Muito menos uma irmã que tricotava. Pobre homem. Não tinha uma irmã que tricotava.



uma grande metáfora

dodô azevedo

Paris, maio de 2013 No fundo Paris é uma grande metáfora. – diz um dos personagens de meu livro favorito, que começa com esse parágrafo. Encontraria a Maga? Tantas vezes, bastara-me chegar, vindo pela rue de Seine, ao arco que dá para o Quai de Conti, e mal a luz cinza e esverdeada que flutua sobre o rio deixava-me entrever as formas, já sua delgada silhueta se inscrevia no Pont des Arts, por vezes andando de um lado para o outro da ponte, outras vezes imóvel, debruçada sobre o parapeito de ferro, olhando a água. E, então, era muito natural atravessar a rua, subir as escadas da ponte, dar mais alguns passos e aproximar-me da Maga, que sorria sempre, sem surpresa, convencida, como eu também o estava, de que um encontro casual era o menos casual em nossas vidas e de que as pessoas que marcam encontros exatos são as mesmas que precisam de papel com linhas para escrever ou aquelas que começam a apertar pela parte de baixo o tubo de pasta de dente. Não adianta. Leio isso, leio aquilo, autor japonês, autor nigeriano, prêmio pulitzer, o que me indicarem. Não consigo me livrar de O Jogo da Amarelinha (Rayuela, no original) e deste seu parágrafo de abertura: para mim, as pessoas se dividem sim nos dois tipos citados acima. O Jogo da Amarelinha, escrito pelo argentino Julio Cortázar, auto-exilado na França em 1964, conta, em sua primeira parte, a história de estudantes, moças e moços, estrangeiros na Paris dos anos 60. Sem grana, resolvem criar um clube em um pequeno apartamento no Quartier Latin. As atividades do Clube da Serpente resumiam-se a ouvir jazz à luz de velas, e conversar sobre filosofia, arte, política e amor bebendo vinho barato. Horácio, um argentino, se apaixona por Lucia, uma uruguaia. O apelido de Lucia é Maga. Lucia é uma moça distraidíssima, quase dois centímetros do chão. Os dois resolvem criar este jogo: sair andando cada um para um lado de Paris só para ver se o destino os fará cruzar um com o outro horas depois. No sebo onde comprei, nos anos 80, O Jogo da Amarelinha, o dono Maurício Nascentes, até hoje meu personal trainer de literatura, cerveja e gastronomia de alto impacto, avisou: - Nunca deixe uma mulher comprar este livro. Mulheres merecem ganhar este livro de homens. Fique sempre atento às que parecerem merecê-lo. Cortázar escreve cenas de sexo para serem lidas por homens, destes que já sofreram muito por causa de uma mulher, que tem no coração as cicatrizes de inúmeras guerras travadas com elas. Não tem nada que acenda mais a libido de uma mulher do que o coração cheio de cicatrizes.


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Hora de parar de ler o texto e procurar no Google por “O Jogo da Amarelinha – Capítulo 7”. É um capítulo curto, pra se decorar. Depois volta aqui. Voltando. Foi por causa de O Jogo da Amarelinha que descobri mais cedo que há uma última experiência de auto-conhecimento que só nós podemos dar a elas: sexo oral seguido de beijo na boca – fazê-las sentir o paladar delas próprias. Ou que as mulheres mais interessantes são as que fazem amor esperando nossa morte, ou algo nelas que não é o que elas são quando estão despertas, e sim uma obscura forma reclamando autoaniquilação, a lenta facada que rompe as estrelas da noite e devolve o céu às perguntas e aos terrores. Também foi por causa de O Jogo da Amarelinha que vim a Paris pela primeira vez, muitos anos atrás. A primeira metade do livro, chamada “Do lado de lá”, é ambientada na capital francesa. Mesmo entre os franceses, esta primeira metade é considerada o livro mais parisiense da história da literatura. E olha que estamos falando da obra de um argentino em um contexto que conta com nomes como Flaubert, Camus, Rimbaud e De Laclos, só pra citar meus franceses do coração. Sem dinheiro, seus personagens vivem perambulando pelas ruas. Cortázar não só as descreve com minúcia cartográfica, como atribui uma personalidade para cada uma das ruas, quarteirões, motéis baratos e pontes de Paris. De tanto reler o livro, principalmente à noite, para ninar namoradas, quando eu cheguei à cidade pela primeira vez, eu já a conhecia com a palma da mão. Sempre que estou na cidade revisito ao vivo os lugares que os personagens de O Jogo da Amarelinha viveram. Como Paris se mantém intacta no tempo (até para trocar uma janela você precisa cumprir as exigências do Estado de que seja o mesmo modelo e o mesmo design de dois séculos atrás), é o meu Meia-Noite em Paris. Eu mantinha inclusive um roteiro na gaveta que contava a história de um sujeito tão fã de O Jogo da Amarelinha que acabava, numa das visitas aos endereços citados no livro, encontrando com os personagens. Depois do filme de Woody Allen, a ideia teve que ir para o lixo. Em 2009, o blogueiro B.J. Turner teve a ideia de catalogar cada um dos endereços de Paris citados no livro e marcá-los no Google Maps, facilitando a visita. Em dois dias, percorre-se todos os lugares citados no livro. Dou dois minutos para você encontrar o blog dele. Vai lá. Voltamos. Foi do blog de Turner que recuperei a frase “No fundo Paris é uma grande metáfora”. A frase não seria tão vertiginosa, do ponto de vista linguístico, se o personagem não observasse que no fundo, Paris é… – pois no fundo é em si uma metáfora. Quer dizer que Paris não é uma metáfora, a não ser que você enxergue no fundo o que Paris é. A não ser que você enxergue uma verdade escondida.


Então penso em João do Rio em em sua crônica Rua, do livro A alma encantadora das ruas, de 1908. Assim como o homem, a rua tem alma. Algumas dão para malandras, outras para austeras; umas são pretensiosas, outras riem aos transeuntes, e o destino nos conduz como conduz o homem, misteriosamente, fazendo-as nascer sob uma estrela ou sob um signo mal [...] Oh! Sim, as ruas têm alma! Há ruas honestas, ruas ambíguas, ruas nobres, delicadas, trágicas, depravadas, puras, infames, ruas sem histórias, ruas tão velhas que bastam para contar a evolução de uma cidade inteira, ruas guerreiras, revoltosas, medrosas, “spleenéticas”, snobs, ruas aristocráticas, ruas amorosas, ruas covardes, que ficam sem um pingo de sangue. [...] Para compreender a psicologia das ruas não basta gozar as delícias como se goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs, e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível, é preciso aquele que chamamos flâneur e praticar o mais interessante dos esportes – a arte de flanar. [...] Resolvi, algum tempo atrás, me matar de trabalhar para uma vez por ano passar dez dias em Paris, essa grande metáfora, fazendo… nada. Um apartamento de um quarto em Paris, a três quilômetros da sorveteria Berthillon, Île Saint-Louis, uma ilhazinha no centro da cidade, o bairro cereja do bolo da cidade, está por 150 mil euros. Uns 400 mil reais. No bairro do Rio de Janeiro onde moro (contarei qual em alguma coluna futura), um apê do mesmo tipo não sai por menos de 500 mil. Há a mesma proporção também para os alugueis. Na prática, é mais barato viver em Paris. Mas, na teoria, estar longe de casa é, para usar uma metáfora, no fundo, a lenta facada que rompe as estrelas da noite e devolve o céu às perguntas e aos terrores. É, no fundo, chegar até o céu, riscado de giz no chão de uma calçada num jogo da amarelinha, virar de costas, atirar a pedrinha para tentar virar proprietário de uma das casas e não acertar. Por isso, começo a pensar na possibilidade de voltar para o Rio de Janeiro, essa cidade que é o próprio Jogo da Amarelinha, prefeito, como o senhor pode confundir a cidade com Banco Imobiliário? É o Jogo da Amarelinha, ele mesmo, ele próprio, sem tirar nem pôr. Entre o Céu e o Inferno, a Amarelinha. Texto publicado no Blog do Dodô (http://g1.globo.com/blog-do-dodo/platb/). Disponível em: http://g1.globo.com/blog-do-dodo/platb/2013/06/05/uma-grande-metafora/


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o perseguidor para um desesperado

löis lancaster

Dédée pediu um cigarro e depois esqueceu de chamar o carro que a levaria até Johnny. Tinham chamado, havia algum problema. Todos reclamam que quando a situação vem, não há tempo de reconhecer e executar aquilo a que foram treinados. E assim a falha permanece. Estão sempre querendo alguma coisa. Só precisam do evento nos respectivos aniversários, então ninguém vai azedar o clima por causa disso. Comem a maionese inchada, parasitas começam a infestar os coitados. Um deles, qarmanita, a única coisa que tem nas mãos são notas pra pagar um pedreiro e fechar todos os buracos. Amanheceu na árida tampa esquerda do motor ingênuo, ou o mais próximo dessas palavras que podemos imaginar, pois cometiam todos sandices. Parece que aquele ali podia ser seu neto, e ficou doidaço com MACONHA, minha senhora. Como dizem, nunca é demais salientar num merchandising do dinheiro público as benesses do marketing colorido, atraente, envolvente e estimulante. Portanto, antes de ir à cama sossegando com seu calmo gesto o furor atrás de si, sim, todos os pensamentos, traumas e abusos de sistemas. Eu sei, começo assim direito com a onda errada, mas confirmo ser de ministro o pé que encontrei caído na estrada que liga a linha do horizonte à cidade. Começo cedo a ouvir uma música em meu olvido. Ela tem uma batida fumegante, sinto ter ouvido o que perdoarei de mim quando parar de sentir. Mas sentir cheiro, as varandas a que remete, o chocalho gentil de mil cachos rococós, a donzela mangá revirou o olhar. Todo o bafo de remeter a idéias a sentimentos começou a rolar. A descer forte gosma pela perna, joelhos e tornozelos foram parar nos cotovelos de tão infames. É uma pulsação de verde sorridente, o tempo todo tão artificial, vai nas turmas, conta vantagens com seus faroleiros, descreve seus roteiros, palestra seus discursos. Da maçã, faleceu-lhe a fatia. Amanhã ouvirão, ainda na calada da noite, na zona limítrofe entre um e outro trabalho, o fogo consumido em milhares de chamas de ensaio. Soou antes de tudo um reveillon solidário. Acostumado que era à boa vida, aos jogos sexuais e à doce boemia de uma vida que não era azul como a sua, foi se metendo nas artes de extrair da névoa uma relação que seja possível vestir pra ir trabalhar, ganhar seu pecúlio, que seja, que gaste em viagens, uma banda pra anunciar quando ele volta com presentes para todos. Desde que você se convença, se situe, seu malandro, que não faça mais rodeios, não peça o que vai devolver em pedaços, sem espaço


no envelope pros selos. Desde que reconheça ser culpa sua o zelo da infidelidade de suas mil comadres. Esposas, que sejam - mas com a honra necessária pra exigir o que nasceu com cada uma, ninguém deu pra todos. Não deu mas ficava na sacada espiando cada centímetro do sujeito que a cauda da galinha tinha no ventre, redimiam porque sabiam que não iam voltar. Se chamava Michele, dizia pra todos que alguém tinha morrido de tanto injetar, cheirar e beber MACONHA! Vejamos que surge novamente o motivo do canal, e até retornarmos a nossa programação normal tem que sempre aparecer uma cartela com frases repetidas por rapidez e mecanismo, gastando em espaço de mídia o dinheiro do contribuinte, que em lugar disso poderia bem estar servindo de mais-valia no mundo esquadrinhado do capital especulativo. Ganha cada escada pra subir nos ombros dos que se enganam em cada etapa. Você ganha, parente distante. Os primos próximos é que ficam fora da vista. O balear quando chega a migração pro inverno sempre traz doces ventos. Estamos num iate, cruzeiro de vinho, barão naufragando seus bigodes em um Rio branco. As paredes nos tangem, palmeiras numa península de ruínas, esses tempos difíceis são sua própria chance de não mais retornarem. Beduínos chegam a uma grande parede negra, no meio de sua peregrinação. Quem gritava com os olhos vendados e teimava em não se reconhecer era Babette, toda supimpa ao erguer meia dúzia de vontade e sumir numa motocicleta. Na verdade era uma lambreta, e na verdade ela nem sumiu tanto, apenas foi contratada pra fingir que era a mãe de um gay em seu enterro. Enquanto você está lendo eu já cumpri minha tarefa e estou no mar esperando alguma comida salgada, hum, que delícia! Mas emquanto EU estou escrevendo, aonde vejo o você que ainda não existe? Para onde me ausentarei do Teu Espírito? Para onde fugirei da Tua face? Que tal umas revelações? Se subo aos céus, lá estás; se faço a minha cama no mais profundo abismo, lá estás também; se tomo as asas da alvorada e me detenho nos confins dos mares: ainda lá me haverá de guiar a Tua mão e a Tua destra me susterá. Somos um bando de egoístas. Certos privilégios rondam Babette. ela ajuda a outra a guardar um segredo, mas quem aguenta esperar no dia do grito a revelação? Escondem quem na parede? A guimba de cigarro no prato do restaurante, quando vinham os repórteres culinários? A alcaparra que na verdade era salsaparrilha? Quem começou a ter delírios delusionais por estar completamente mergulhado na MACONHA? Eu não, nem nenhum dos meus amigos. Crianças, prestem atenção no que estou fazendo e NÃO se deve fazer. Não tente fazer isso em casa. Você pode se machucar. Esconda a mão que sofreu o acidente até ela passar a decidir onde seu cérebro fica ou não. Cuidado com os enxames de geléia, efésios pros exames. Não consigo deixar jogarem fora nenhuma parte de meus órgãos, que se espremem uns contra os outros quando sentem a minha falta. Desculpe, mas realmente eu sou o que pareço: um solo de saxofone de um maluco MACONHEIRO, que apenas por acaso apresenta o que deixou no texto, um rastro do recado que foi ouvido. Transformando compaixão em pestilência, podemos reverter o que ignoramos como reflexo de um pedaço de vidro, e todos são afogados no instante mais pesado, um pouco abaixo do solo, o vapor de água com viscosidade da gelatina. O frio avança sobre o calor, quando condensado. Abarca e faz massa de manobra, estratégias nunca antes vistas quando postas em prática. Então, Babette sabia toda a verdade sobre Michele, Madame Freyssinet. Sim, aquela do Betão Pré-Esforçado! Eugênio, seu malandro! Não te nego um trago. Nem te levo comigo. Nesse ponto precisamos convocar uma discussão sobre os andamentos. Falemos todos ao


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mesmo tempo, ordeiros e heróicos num ambiente perfeitamente climatizado. Cada trecho do discurso refletirá uma sílaba, um tom e um assunto abordado. Sorte minha que antes dos outros, chegamos primeiro, por conseguinte, à Arquitetura. A arquitetura, ou ciência dos deuses... enfim, existe isso, amor? Você precisa ver o que eu estou viajando aqui. Construir uma nova etapa do alambrado, gritar com a minha patroa, ler bastante Nelson Rodrigues... existe? Me preparei com ouro e pérolas, o quintal estava cravejado, uma visão constante do luxo que dependeria de todos e para todos returnaria. Como diria a Michele, mesmo após fingir que estava morta, combatia as fusões de sala com antessala de um jeito cristalizado oficial: emitindo as crisálidas, restos que silvavam como frescos fatos, se sitiavam na ponta da caixa, coitada, abriu e dentro só viu - sem ouvir - palavras. De uma delas a sombra revelou um baque à porta da granja. Nuvens não circulam por aqui, a navegação como religião, quando aérea, não permite. Um som apenas era ouvido - o bater das janelas no vento. Parece que estou vendo - mesmo na hora não via nada, mergulhado no frenesi da iminente ação, como se algo ainda fosse possível. Não, precisamos interromper o fluxo. Parem esse relato como um trem! Na verdade ela fingiu ser assassinada para estar morta. Ninguém interpela no vento uma viva alma. É o miolo da noite. Enquanto estamos nela não há nada. Mas quando um quadro pega a cena e a retrata, no relevo da luz sobre a tinta é a minha experiência com pintura que se projeta. Um sol branco microfacetado, como um bronze decorado em destaque sobre preto. Toda essa tranquilidade foi embora quando eu comecei a usar (atenção) MACONHA! Fujam disso! A maconha destrói a vida de uma pessoa! Você olha aquelas fotos de maço de cigarro? Aqueles zumbis retratados vão ganhar vida e te perseguir à noite se você parar de fumar! De repente a adrenalina transforma a cena: onde se hospedavam nenúfares, surgiam repórteres famintos pela próxima notícia. Gaviões semelhantes a túrgidos abutres, eles retiravam a vida do couro escuro da palmeira, como se uma grande berinjela se dividisse em sua cor, projetando-a na íris da abóbada a luz de sua cor em tudo que é cor de berinjela. Agora o calor está voltando, encapsula o frio numa massa desigual. Se fosse um cérebro, só pensaria besteira. Contou até dez? Volte, olhe o texto. Mesmo se esfregassem na sua cara você, sem ter se barbeado, olharia no espelho, não entenderia por que olhou em primeiro lugar, agora viu e se projetou. Olhou de novo? Pois é, né? Agora que você faz o que eu mando, diga por que não seguiu esperando pra mostrar seu texto a outro amiguinho? Quando eu estiver falando com todo o mundo, meus personagens saltarão sobre seus ombros nos sonhos, como uma épica teoria da conspiração. Sei, conspiração contra quem já sabe de tudo. A pessoa volta, quer me ver achando que sua crítica num jornal de jazz vai levantar defunto, reerguer cachorro morto, fazer sua última brilhante gravação. Hoje em dia tá tudo no youtube pra quem quiser ver. O que você não está entendendo é facilmente explicável: esse texto é o contrário do mundo real. Ele foi produzido por um trocentalhão de pessoas, transmitido oralmente por várias centúrias, inventando os maiores despautérios, sempre com a preocupação de não alterar uma vírgula. A vírgula, meu amigo, ficou aqui: , pois o resto, sabe como é, ninguém ganhou pra fazer esse trabalho. Quero aqui agradecer às esposas pressurosas, oferecem uma surra como se fosse um mar de rosas. Nesse momentinho que cabe a mim, posso ousar um sentimento, decorar o cheiro por apenas


esse momento. Imaginem que vocês estão na sala de estar em Sunnysdale, cidade do distrito de Orelhas de Lebrel. Imitei esse nome pra ver se guardava a melodia que lembrei pensando em outra coisa. Estamos trabalhando pra tirar seu sono e tornar seu trabalho mais fácil que seu descanso. Fique tranquilo. A turma da Pouso Manso vai intermediar, por preço módico e a prestação, a sua queda. Moram todos os facínoras em casas refletindo suas posses. Cada um de acordo com as mesmas, sempre elas, pula no rio. Mas calcula mal o ângulo e se esborracha. Um carro passa por cima e ele morre. Nada disso, nenhuma dessa desgraça teria acontecido se ele não estivesse completamente intoxicado de MACONHA!! Acabou o momentinho de sentimento? Pois agora vem a dura e reveladora verdade: maconha dá prisão de ventre. Maconha fede. Maconha é uma palavra feia de se falar. Maconha faz mal à saúde. Maconha é subjetiva demais para um trabalho acadêmico. Maconha é o caroço da celulose quando você só come fibras, mas elas estavam fora do prazo de validade. Você é alérgico a maconha. Maconha e corpinho do verão não combinam. Não há noção filosófica comum possível que conjugue a essência da maconha com uma necessidade de ontologia a nível ético. Maconha é o bicho papão. A maconha fez a mágica do natal não ser mais como antigamente. A Maconha é a única responsável pela morte humana. De quinze cientistas, os dez que foram injetados com maconha não têm nem a envergadura de um estado precário pra ostentar. O que a lombriga é para o intestino a maconha é para o pulmão. Imagine quando pára o coração? E para o vibrião? Imagine quando o Ziraldo fizer um cartaz? Imagine um spam no seu e-mail e fique REVOLTADÍSSIMO! Aí o reveillon sensual que você viu lá atrás mas esqueceu, e agora que lembrou pensou no Djavan, se degenerou, recrudesceu e promulgou sua derrocada. As pessoas que sobraram do pesadelo art-déco não eram mais espertas que formigas num labirinto barato de linhas retas. Todos verdes e pretos esperavam a esquina transcendental, todos os elementos da geometría euclidiana, os da tabela periódica e as onze membranas. Pois é, todos eles. Combinamos um assovio, afinal o dia ainda não havia raiado e queríamos nos confundir com os bichos em suas tocas. Esse momento de esperança que a alvorada traz, todos de nós sempre ouviram falar. Às vezes era necessária uma tarefa que vocês da Terra não conhecem, que é trocar o gânglio redutor da bateria filoneuronal. Às vezes acordávamos, como se tudo tivesse sido um sonho. Às vezes nós nunca viemos à Terra e vocês são todos vergonhosamente imaginários, produto de uma necessidade de sequência que abandona qualquer forma de recurso lógico. Vocês parecem uma aberração abominável. Como esse pedaço do texto parecia ter mais de quinhentos mil anos, cabe um comentário do escriba aqui. Copiei isso de um pedaço de goma laca com mais de 1500 anos, não tenho a mínima ideia do que quer dizer mas, como eu sei que daqui a pouco a companhia das Índias Ocidentais vai se refazer pro mundo à ideia do que seja o oriente, cabe um pequeno anúncio da tinturaria al-Aziz, produzindo sua própria tinta e vendendo por conchas suficientes no valor comercial. Temos tradição de bem negociar, troco na troca, não entre em filas, não fume MACONHA e em cinco minutos você será atendido. Como? Um verme? Não, meu senhor, tire da mesa esse embrulho onde fez cocô - aqui é um consultório de caligrafia, não uma gastroentreologista que vai resumir sua doença a um diagnóstico. Também não se jogue no meio do Metrô. Nós podemos fazer o drama progredir, criar uma pessoa que nunca padeceu com nenhum de seus dilemas. Você será o outro numa vida que ele nunca teve. E você sabe que pode, sabe o quanto ele lhe deve. Que o destino sobre os dois seja leve, que não se arrependam de terem tratado dos sintomas o quanto antes. Um consultório de caligrafia. Isso mesmo, você consulta a caligrafia e ela


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escreve seu futuro. O único problema é que ela não escreve como se lê. Fique aí esperando enquanto cuidamos do novo paciente, com problemas diferentes. É um novo mundo que se descortina; aí, estou falando tudo isso pro coroinha da igreja, que parece um bicho, torto de jeito, desenhado em uma folhinha do Sagrado Coração de Maria. Todos estão meio toscos hoje, como se dormissem um bom pedaço, sonho ante sonho, desviado das verbas de seus recursos e de cargos jamais imaginados, pescoços que puxam suas vistas para o alto, sempre ambulantes, os gaviões que protegem os que contratam seus serviços. Quando essa parte da história virar filme, quero um nexo de cinza aquarelado num laranja pro amarelo bem cuidado, como se a trilha visual da história narrada pudesse referir às pinceladas antes que ao passado formal. Que na verdade foi produzido, posso dizer. Eu e duas assistentes fizemos um edital e recebemos a verba para transformar o Estádio de São João numa jóia que todos vão querer levar pra casa. Infelizmente, esse filme só gera 7 empregos. Temos o dono da casa, que trabalha antes do tempo pra poder financiar a mulher, Dulce Terracota. Fui apaixonado por ela desde a mocidade. Mandava flores, comprei pro seu pai um emissor de telex, sustentei seu mórbido vício que a reduzia a névoas, essa praga anunciada livremente na revista Careta, Fon Fon, Tesouro da Juventude, sempre com raparigas possantes a defender o mundo com o ardente hálito de seus beijos - a intrépida e lancinante MACONHA! Não, minha senhora, não era lança-perfume. O indigitado saxofonista não preencheu o B.O. nem fez exame de corpo de delito. Todo mundo já sabia como isso ia terminar: os fora-da-lei caçados nunca são entregues. Vivem num mundo à parte, achando que foram presos, mas na verdade dormiram e nunca mais despertaram. É isso - malgrado um talento natural de escritor, esse final está se escrevendo sozinho. Pouco mais que um sonho, a música já tomou forma em minha cabeça e canta com coros angelicais, o teclado vai começar a flutuar daqui a pouco. A antigravidade nos permite chegar ao nosso criador! Escolha o seu, eles vêm em número de vários! O vingativo é mais caro, nem vale a pena mostrar. Sempre fez sucesso é o criador indiferente, toca sua flauta e tange suas cabras. De onde vem essa história de ‘pastor’, hein? Sei não... Sei não. As pessoas não respeitam Lioflora. A cauda de seu vestido todos pisam pela rua. Seu mundo é multifacetado, mas num tom desbotado, parece um berloque arruinado. A velhice contamina a memória das coisas; só penso em tetos rugosos, escultores magníficos, a excelência da madrinha das artes! Seu namorado a abandonou entre a cruz e a caldeirinha. Ela, não satisfeita, tropeçou na porra da caldeirinha. Aplicamos o devido gelo. Lioflora perdeu a paz de espírito. Na vida dela, nada dá certo. Como se não bastasse o arrimo que era, de uma família imensa! Bocas entupidas de fofoca para alimentar! Neurônios pra queimar? (os senhores já estão vendo onde isso vai dar...) Então, quando ela amargava o NADIR DO DESESPERO... cai na sua cabeça um caixotão tipo exportação, cheio em latas da mais pura MACONHA! Mas aí já é outra história. Deixa o moço seguinte sentar na cadeira, pegar seu boneco e vir entreter vocês. Fiz mil ressalvas ainda, e uma reserva, mas como estava escrevendo, não falando, deu tempo de voltar, acrescentar e corrigir. Já falei da tinturaria Al-Aziz?


diário de um poema (fragmentos)

ramon nunes mello

30 de jullho

ouço tambores no meu sangue. descobri que os poetas são como os magos, anunciam-se para cantar o mistério. uma fatalidade!

25 de julho

dia fora do tempo encontrei você / o tamanho dos meus / sonhos

26 de julho

sou invadido por uma espécie de comichão de poemas, raridade. o que não é suficiente, falta-me a disciplina para escrever. começo a viagem para região Serrana do Rio de Janeiro - Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo – e só penso em você é linguagem

27 de julho

enxergo flores e cachoeiras, lembro do Sertão D’água, no Vale das Videiras. canto para Oxum: oro mi ma oro mi maió oro mi maió iya abado aie ie o

28 de julho

observo a alegria infantil dos cachorros, enquanto passeio pela arquitetura decadente da Casa do Sol. ainda assim, não tenho um poema.

29 de julho silêncio.

31 de julho

há mensagens que são garrafas ao mar recebeu?

01 de agosto

escrevo porque você se comunicou comigo sob minha máscara de ator/autor. os livros que desejo ler se amontoam na beirada da cama. autobiografia de um Yogue. autobiografia do Gandhi. poemas de Rumi. paciência, a eterna busca de paz.

02 de agosto

paralisador de tempo, meu invento mais caro: fotografo labaredas e aprisiono a Fênix.

03 de agosto

meditação diária ver as coisas como quem é visto por elas. (a perfeição maníaca do detalhe)





ce n’est pas une nouvelle cassiano viana Estavam todos ali: Doggu Van, Remi, Ariadne, os dois irmãos, o tigre, Torito e o pibe, o moço que vomitava coelhinhos, braços dados com Andrée, Calac e Polanco, Bruno, Johnny Carter e Dédée, acompanhados por Bix e pela colombiana, la Joda e todo o Clube da Serpente, Etienne, Gregorovius, Ronald e Babs, Berthe Trepat, madame Leonie, Traveler, Morelli, Horácio Oliveira e, obviamente, a Maga. Alguns não haviam chegado, presos em algum engarrafamento (o que me faz lembrar uma anedota recorrente em Silvalandia): tia Clélia, Glenda, Irene, Sonia e Roland, Lucas, seus atrasos. Outros restarão perdidos em alguma passagem secreta na rue de Seine, da Galerie Vivienne ou no Jardim des Plants; ou perderão a hora e o caminho brincando os jogos de sempre no metrô– cronópios serão sempre cronópios, sabe-se. Mas naquela tarde, estavam todos ali: Paco, que gostava de seus contos, Julio José, María Herminia, Ofelia, os companheiros da escola Mariano Acosta, os professores de Chivilcoy e Bolivar, Sara e Alicia, Paul Blackburn, Mario Muchnik, Gladis e Saul Yurkievich, Osvaldo Soriano, Luís Tomasello, Julio Silva, segurando Flanelle em seu colo, Alejandra, Ugné, Aurora. No corredor, Alberto Moravia, Octavio Paz, Susan Sontag, Gabo, Carlos Fuentes, Vargas Llosa, Roberto Fernandez Retamar, Lezama Lima, Haroldo de Campos conversam sobre literatura. Em um canto do quarto, Louis emite uma sonora gargalhada ao ouvir a piada contada por Che Guevara. Em um outro, Verne, Jean Cocteau, Artaud e Stravinsky têm uma ideia extraordinária. Borges, a cara um pouco mais preocupada, se aproxima e diz: – Precisas descansar. – Cuba foi um fracasso retumbante? Quisera ter mais tempo para a Nicaragua... – Fizeste o possível. Outras revoluções virão. Ele olha o pátio, pensa em árvores e em um belo bife alto. – Não tenha medo. Finalmente chegam os cronópios, “sempre tão espalhafatosos”, ele pensa e sorri por dentro, satisfeito. – Já é hora – avisa Borges, e, em um instante, estão todos ali, inequivocamente estão todos ali, diante do arco da Quai de Conti. Do lado de lá, vê-se Carol, que lhe estende a mão com um sorriso. – Fafner te aguarda. Estamos ansiosos. Vamos? E, de repente, tudo faz sentido.



capa e quarta-capa diego pale (bestiário e os reis) ¿encontraría a la maga? sergio werner todos os fogos o fogo carol miag meu assassino alice sant’anna o efêmero anônimo joão filho cortázar juliana dias manuscrito encontrado na serra geraldo iensen jardim julia valle plano original maíra matthes o gato é o telefone isabel gervitz axolotl: um manuscrito alberto lins caldas o armário tomado susan blum uma história de cronópios e de famas braulio tavares por fatalidade caí no jogo livia garcia roza cortázar e o gato patricia laura figueiredo estático francisco slade a casa assombrada ana luiza fay dauphine juliana amato brooklyn, 2014 diego pale nome francesca angiolillo carta a rocamadour marina della valle a nova inquilina leonardo marona a invasão claudia nina axolote ricardo cunha lima uma grande metáfora dodô azevedo o perseguidor para um desesperado löis lancaster diário de um poema (fragmentos) ramon nunes mello sem título biel carpenter ce n’est pas une nouvelle cassiano viana octázaredro guilherme kato




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