O Duque #12

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Ano II - outubro / novembro - Nº 12 www.oduque.com.br

O jornal da cultura de Maringá e região

CENA RENOVADA COMO O CURSO DE ARTES CÊNICAS DA UEM ESTÁ REINVENTANDO O TEATRO MARINGAENSE

e mais

O BRUXO E O HERDEIRO DO MESTRE

No mesmo mês Maringá recebeu o "Bruxo" Hermeto Pascoal e Marcel Powell, filho do mestre da música instrumental, Baden Powell pág 07

O CHARME NÃO

ESTÁ NO PEDIGREE Elton Telles nos apresenta o Vira-Foto, projeto que fotografa cães de rua para arrecadar fundos

pág 08

TARDEI

Jornalista e escritor Wilame Prado estreia no #Sarau com poema inspirado em álbum de Rodrigo Amarante pág 15

outubro/novembro

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O jornal da cultura de Maringá e região 18.427.739/0001-40

CONSELHO EDITORIAL Edição nº 12 / Ano II DIRETOR Miguel Fernando

CHEFE DE REDAÇÃO Luana Bernardes

EDITOR Gustavo Hermsdorff Mtb 9966

REVISOR Zé Flauzino

COLABORADORES Elton Telles - #Confraria (páginas 08 e 09) Victor Simião - Resenha (páginas 11) Rodrigo Corrêa - Psicologia (página 12) Donizeti Pugin - Filosofia (página 13) Gilmar Leal Santos - Poesia (página 14) Wilame Prado - #Sarau (página 15)

DESIGN EDITORIAL E REPORTAGENS

Rogério Curiel Capa e colunas

FILIADO

As colocações expostas por convidados ou entrevistados é de responsabilidade exclusiva dos mesmos.

Impressão: Grafinorte Tiragem: 3.000 exemplares 16 Páginas / Tablóide Americano

Assine O Duque www.oduque.com.br/assine-o-duque/ Departamento Comercial 44 9959-8472 Fale com O Duque contato@oduque.com.br

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outubro/novembro

NOSSO

S

ARTISTA DO MÊS

facebook.com/jornaloduque

PARA CHAMAR DE abemos que para uma cidade como Maringá ter uma vida cultural ativa e pulsante é fundamental ter na base cursos de formação que preparem os envolvidos no meio artístico em suas mais variadas funções. Precisamos de técnicos, produtoeres, artistas e críticos para fazer funcionar o ecossistema cultural da região. Nesse contexto, o curso de Arte Cênicas, criado em 2010 e que agora forma sua primeira turma de alunos regulares, traz novo vigor para a cena teatral maringaense. Sobretudo, o que achamos mais interessante foi perceber como esses graduandos não esperaram certificados e diplomas para atuarem. Na faculdade mesmo reuniram-se em grupos com as mais diversificadas metodologias e já começam a levar aos palcos o aprendizado recebido em sala de aula. Esse fôlego artístico nos presenteia com novas abordagens da cena, novas metodologias ainda pouco exploradas e, claro, novos e talentosos artistas maringaenses. Para nos contar mais sobre esse movimento todo, ninguém melhor que a jornalista e produtora cultural Rachel Coelho, que foi investigar e traz para o leitor d'O Duque em primeira mão nas páginas a seguir. E para quem gosta de música instrumental, outubro foi um mês incrível. No mesmo mês a Cidade-Canção recebeu Marcel Powell, pelo Maringá Jazz Festival, e o bruxo da música instrumental brasileira, Hermeto Pascoal, através do Cottonet-Club. Ambos conversaram conosco e, entre um papo e outro, Powell contou como foi aprender tocar violão com o pai, o lendário Baden Powell e Hermeto sobre a vez

em que levou Miles Davis a nocaute. Leia essas entrevistas completas na página 7. Na coluna #Confraria, você vai conhecer o projeto “Vira-foto”, que fotografa cachorros de rua para arrecadar fundos que são revertidos em prol da causa dos animais abandonados. Direto de Londrina, os sócios Ricardo Bagge e Bruna Cassemiro nos contaram um pouco sobre o projeto que fazem transformando sketch books em obras de arte. E para falar sobre cinema, enviamos o nosso repórter e crítico Elton Telles para a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Lá, Telles teve contato com o que há de mais novo - e valioso - entre as produções nacionais e agora nos apresenta os destaques com foco naquele que foi eleito pela crítica o melhor filme na edição da Mostra em 2014, Casa Grande, de Fellipe Barbosa. E não paramos por aí, nosso time de colunistas vem com reflexões que vão de Sade à Sartre, da psicologia do humanismo à filoso fia do prazer, passando por uma conversa de bar que inspirou um comentário sobre a obra “As Coisa de João Flores”, do poeta paranaense Marco Cremasco. Finalizando nossa décima segunda edição, contamos com o jornalista e escritor, Wilame Prado que, inspirado no álbum “Cavalo” de Rodrigo Amarante, escreveu o poema “Tardei”, para a coluna #Sarau. Aproveite a Leitura! os editores

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Especial

CENA

RENOVADA

Como o curso de artes cênicas da UEM está reinventando o teatro maringaense A graduação em Artes Cênicas da Universidade Estadual de Maringá (UEM) forma sua primeira turma de alunos regulares ao final deste ano, mas já vem rendendo alguns promissores frutos: ao longo dos últimos quatro anos, pelo menos cinco novos grupos foram criados no ambiente universitário, o que pode vir a ser, em curto e médio prazo, uma renovação da cena teatral maringaense. O primeiro grupo formado por alunos e criado no âmbito da Universidade foi o ContaVento, que surgiu em 2011 e cujos integrantes são Alexandre Penha, Thaís Couto, Jaqueline Lira e Ana Carolina Santana. Eles pesquisavam a linguagem do clown no projeto de extensão “Grupo de pesquisa e experimentação cotidiana utilizando como paradigma a figura do clown”, ofertado pela própria UEM. E por afinidade acabaram se unindo. Em 2012 sentiram a necessidade de criar um espetáculo para transmitir os elementos investigados até então e assim, naquele mesmo ano, estreou a primeira montagem (e única até o momento): a peça “Catavento”, que já foi apresentada em Maringá e em outras cidades do Paraná,

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em teatros, escolas, praças públicas e onde for possível. “O grupo opta pela simplicidade em cena, desde história, figurino, elementos e sonoplastia, fazendo uso de alguns materiais recicláveis que se transformam em outros elementos durante a cena. O espetáculo foi desenvolvido através de improvisações, assim foi construída a dramaturgia da peça, sendo a mesma um processo coletivo. Além disso, o grupo trabalha com a linguagem do palhaço com interações em Sipat’s, empresas, palestras e etc”, explica Alexandre Penha.

O Café das meninas Outro exemplo é o grupo Café, que em setembro deste ano esteve no 12º FESQ – Festival de Esquetes de Cabo Frio, onde apresentou a cena “Frenesi”, responsável pelo surgimento do grupo. “A cena foi montada no final do ano passado na disciplina de Fundamentos da Direção I. A Claudiane [Fonseca], na época estudante do terceiro ano, convidou a Ana Carolina, eu e a Bianca [Leila] para atuar pra ela nessa cena, que seria a prova

Rachel Coelho

final dela. A Jaqueline [Lira] ajudou com a sonoplastia e a iluminação”, conta Flávia Kriki. Ela explica que a cena foi criada a partir do poema "Se eu fosse eu", de Clarice Lispector, do qual foi extraída a única frase dita ("metade das coisas que eu faria se eu fosse eu... eu não posso contar"). “Com a ideia principal do poema começamos a montar a cena juntas e a Clau foi dirigindo. O poema fala sobre o que somos, sem realmente nos mostrar. Tem uma parte que diz mais ou menos assim: "se eu realmente fosse eu, os amigos não me cumprimentariam na rua, porque até minha fisionomia teria mudado". E a peça é sobre isso. São três mulheres, que são ou não as mesmas, que chegam maquiadas e molhadas em casa e começam a pensar e agir como se elas fossem elas mesmas - no sentido do poema”, conta. Cumprido o compromisso universitário, para não deixar com que o trabalho morresse as meninas pensaram na estratégia de inscrevê-lo em festivais nacionais de esquetes. Por enquanto é o único trabalho do grupo, aceito no festival do Rio de Janeiro, para onde elas

Especial para O Duque

não conseguiram viabilizar a ida. Para ir a Cabo Frio fizeram uma “vaquinha” virtual, conseguiram apoio da UEM e fizeram uma substituição no elenco. “Estar lá pra gente foi uma honra. O festival começou na terça e chegamos na quinta, então conseguimos assistir poucas cenas, mas percebemos que o festival escolheu cenas de qualidade. O mais importante pra gente foi o retorno que tivemos dos jurados depois (era festival competitivo). Aqui em Maringá, nossos professores já nos conhecem, conhecem nossos trabalhos e o que podem esperar da gente. Pra gente, esse festival nos avaliou sem um olhar já pré-estabelecido e o retorno foi muito gratificante”, avalia. Elas não ganharam prêmios, mas foram indicadas em três categorias (melhor atriz – Carolina Santana, melhor figurino e melhor concepção cênica). Um dos jurados, o colunista Jiddu Saldanha, escreveu num blog: “O grupo de Maringá - PR, Café, apresentou a peça ‘Frenesi’, com uma respiração radical na proposta, levando o público a um estágio de concentração que vai além do espetáculo em si, é preciso um


Especial público crítico, pulsante e aberto e isto foi um grande ganho do Fesq nos últimos 12 anos: a formação de uma plateia treinada para ver espetáculos de todas as linguagens”.

O GECA

Foto: Paulo Araújo

O Grupo de Estudos sobre o Corpo do Ator – GECA foi criado em janeiro de 2013 com o intuito de apresentar uma cena para o dia mundial da Commedia Dell’Arte (25/2), mas após o evento eles perceberam que havia potencial para continuar. “Os atores perceberam no grupo valores e objetivos comuns, envolvendo o entendimento da importância da pesquisa corporal e teórica, o anseio por um estudo específico diferente dos contemplados pelo curso e a vontade de estar nos palcos apresentando seu trabalho”, conta Rodrigo Lanzoni Fracarolli, um dos integrantes. Segundo ele, o grupo desenvolveu uma metodologia baseada nas próprias

atividades práticas e também nas lições de teóricos como Antonio Fava, Roberto Inocentti, Dario Fo e Jaques Lecoq, buscando referências também em autores como Jerzy Grotowski, Eugênio Barba, Luís Otávio Burnier (fundador do grupo Lume Teatro, da Unicamp, também uma referência). Atualmente o grup é formado por Douglas Kodi, Kênia Bergo, Nayara Tamires Araujo, Pedro Henrique Daniel e Rodrigo Lanzoni Fracarolli. Na curta experiência até o momento, eles já se apresentaram no Festival de Maringá, no programa “ArteVindo ArteVendo” promovido pela Diretoria de Cultura da UEM (DCU), no I Festival Internacional do Ator-Cômico, em outros eventos e atividades internas do curso, além do Festival Estudantil de Sarandi e das cidades de Mandaguaçu e Atalaia. A cena “Entre Calçadas”, dirigida por Nayara Tamires Araujo, foi selecionada para o Festival das A.R.T.E.S. de Assis (SP) em agosto deste ano.

Grupo estreia em dezembro “Nosso grupo se chama “Entre Cadeiras”, que é uma expressão de Walter Benjamin que significa “não estar preso a uma única estética”. Criamos este grupo em janeiro deste ano com a proposta inicial de pesquisar o Teatro do Absurdo (que teve seu auge nos anos de 1950 na Europa) e qual sua relevância nos dias atuais e no Brasil, tendo como parâmetro teatral a peça de Eugène Ionesco chamada “A cantora careca”. É um teatro meio que abolido das pesquisas teatrais da região, por isso o primeiro interesse”, explica André Anelli, um dos integrantes do grupo. Com tanta tecnologia, tanta informação e tantas facilidades para a comunicação, o Entre Cadeiras está pesquisando justamente a incomunicabilidade. “Não queremos apenas apontar o problema nos dias atuais (pois todos sabemos muito bem que ele existe) mas queremos pôr na cara do público como, de fato, essa falta de comunicação acontece, pois muitas vezes sabemos que ela existe mas não percebemos onde”, diz. O objetivo do grupo, portanto, vai além de montar uma peça. Eles também pretendem discutir a própria viabilidade de se debruçar em uma diferente linha de pesquisa (Teatro do Absurdo) e, a partir dela, problematizar questões do dia-a-dia. E assim irão construir o espetáculo, que já está em processo de montagem. “Devemos estrear no início de dezembro com a peça “A cantora careca”, que vai marcar a estreia do grupo no âmbito prático”, anuncia.

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Foto: Bianca Leila

Segundo ele, o projeto surgiu da necessidade acadêmica de aliar teoria e prática. Fazem parte do grupo os estudantes de Artes Cênicas André Anelli; Luan Guimarães; Leandro Romão (4º ano); Jéssica Oliveira (3º ano); Tayene Elize e Estela Moreira (2º ano).

Maringá + Sarandi Em setembro do ano passado a sarandiense Elaine Teleken e a maringaense Raiane Caroline Souza, ambas estudantes do 4º ano de Artes Cênicas, criaram o grupo Cenatrupe, que atualmente também conta com a participação de Joyce Baptista (que não é do curso e mora em Sarandi, onde

estão se concentrando os ensaios). As estudantes criaram o espetáculo de teatro infantil “Contos da dona Onça”, adaptações dos contos populares “Bicho Folharal”, “A Onça e a Raposa”, “Dia da Ventania” e “A Onça e o Veado”, que narram as aventuras de uma raposa tentando se livrar das garras da faminta Dona Onça. “A decisão de pegar contos infantis sobre a onça foi minha, pois quando criança meus pais contavam histórias sobre. Minha infância foi repleta de contação de histórias à noite, por isso queremos trazer para as crianças o mundo lúdico dos contos populares que tanto está se perdendo”, conta Elaine. No ano passado foram convidadas a se apresentar no 1º Festival de Teatro

Estudantil de Sarandi e desde então resolveram continuar com o grupo. Este ano criaram a esquete "As Lavadeiras" (fragmento do texto Yerma de Federico Garcia Lorca), apresentada em Sarandi. Como precisavam de sala de ensaio, fecharam uma parceria com a Secretaria da Juventude Cultura Esporte e Lazer de Sarandi e propuseram o projeto Infogrup (Incentivo à Formação de Grupos), que consiste na cessão do Centro Cultural Irmã Antona para ensaio de qualquer grupo interessado. O objetivo é fomentar o surgimento de companhias. O Cenatrupe se reúne lá duas vezes por semana. “O projeto beneficia não só a nós, mas a comunidade em geral que queira formar um grupo de teatro”, diz Elaine.

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Especial

Será que vai virar? Um projeto experimental, sem grupo constituído, ainda poderá gerar muita polêmica, debates e discussões na cidade. A partir de uma ideia e do interesse de abordar determinados temas, uma performance intitulada “Abrace” causou rebuliço no campus da UEM no mês de julho, durante a Ocupação Artística da UEM, que teve a participação de outros artistas e estudantes. Pensada originalmente para ser executada por uma pessoa (bonequeira, produtora cultural, estudante do 3º ano de Artes Cênicas e professora universitária Fabiana Carvalho). No processo, porém, a performance foi modificada com a entrada da atriz Danielle Maria, também acadêmica. “O Ato Abrace é uma intervenção junto à comunidade visando uma discussão, via atividade performática, a respeito das investidas tecnobiopolíticas sobre o corpo e sobre as violências de gênero praticadas contra mulheres. Seguindo alguns pressupostos teórico- metodológicos advindos das produções feministas e queers no campo da arte, a performance visa a discutir a violência simbólica, física e sexual sofrida por mulheres e renegociar, através de apropriações de significados culturais sobre esses temas, modos de subjetivação e práticas de resistências que podem mobilizar contestações políticas”, explica Fabiana. “Duas mulheres são expostas a situações de agressão, interagindo com elementos que simbolizam a

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opressão, os dispositivos discursivos, a imposição social dos papéis esperados, os apagamentos, a submissão, o machismo; e, por outro lado, ao se construir com o público a sensibilização pela dramaticidade, os momentos de resistência, de luta, de coletividade, de superação, de crítica e de sensibilização”, conta. Em agosto a performance foi apresentada no Festival de Artes de Assis (SP), onde teve uma recepção mais tranquila do que por aqui. “Em Maringá o público se dividiu entre repercussão positiva e estranhamento, esse último devido a outros atos performáticos, conjuntamente apresentados, onde corpos nus se colocavam politicamente contrários à ditadura da beleza, da perfeição, da magreza, da exploração, dos discursos dominantes. Entretanto, o Ato Abrace sensibiliza as pessoas para a questão da violência de gênero: há uma problematização bem clara, que envolve subjetividade e questões sociais atuais”, avalia. Agora a ideia é fazer mais apresentações e desdobrar a ideia em uma pesquisa sobre histórias de mulheres que tiveram enfrentamentos violentos em suas vidas.

Grupos renovados Até mesmo grupos que já existiam há algum tempo antes do curso ser criado foram afetados pela interação com os alunos. Um bom exemplo é o Pau de Fita, grupo de teatro de bonecos criado por Leonil Lara em 1980 e reativado por Sueli Lara após uma

longa pausa. O grupo tornou-se um projeto de pesquisa e extensão que tem como principal objetivo a manutenção da arte do mamulengo. Fazem parte da formação atual os acadêmicos: Aline de Freitas Castanho (Psicologia); Fabiana Carvalho; Valéria Cardozo; Jéssica Oliveira; Michel Marques; Paula Menon; Simone França e Weslley Borges, todos de Artes Cênicas. Já o grupo Meu Clown surgiu em São Paulo e veio para cá na bagagem do professor Marcelo Colavitto, que assumiu aulas no curso de Artes Cênicas. Entretanto, ele ressalta que o grupo é independente e o único requisito para participar é ter passado pelo processo

de iniciação clown que é oferecido no Projeto de Extensão na Universidade. “Quem gosta do trabalho realizado pelo Meu Clown pode se aproximar para assistir aos ensaios, às apresentações, participar dos eventos organizados pelo grupo e colaborar dando suporte em nossas atividades. Com o tempo e a dedicação, as funções vão sendo delegadas com maior responsabilidade, até que o colaborador passa a compor oficialmente o elenco das montagens que fazem parte do repertório do grupo. Não há necessidade do futuro integrante do grupo ser ou ter sido aluno de algum curso da UEM”, explica. Mas é fato que boa parte do elenco, hoje, possui vínculo universitário. “Para os alunos de cênicas, integrar um grupo pode ser uma experiência muito enriquecedora, pois é uma oportunidade de vivenciar na prática toda a teoria que é desenvolvida nas disciplinas. Além do conteúdo teórico, a prática de vivência em grupo e os processos colaborativos que o teatro demanda, são experienciados de maneira intensa durante a atividade teatral. As relações com o conhecimento e a prática ficam mais sólidas, pois desenvolve-se um campo onde a teoria pode se tornar práxis”, diz. Outros grupos, como o Teatro Universitário de Maringá – TUM e o Circo Teatro Sem Lona, ambos coordenados por Pedro Ochoa, professor do curso de Artes Cênicas, também agregaram alunos ao seu elenco. Cada grupo criado tem interesses específicos e uma linha própria de pesquisa. Todos parecem interessantes e com potencial para persistir. Resta desejar persistência e vida longa, pois há muito espaço para ser ocupado e todas as iniciativas neste sentido merecem aplausos.


Música //

Bulla Jr.

O HERDEIRO E O BRUXO Para quem aprecia a boa música instrumental, este mês foi um prato cheio. Em outubro, Maringá definitivamente esteve na trilha do jazz coma presença de grandes músicos nacional e internacional. Entre as atrações, houve show no Luzamor do grupo local Celebrate Jazz Combo; os curitibanos do Mano a Mano Trio embalaram o ritmo do projeto “A Música Instrumental Pede Passagem”, realizado pelo Cottonet-Clube em Maringá e outros três municípios da região; o

“O público brasileiro é o melhor do mundo” Marcel Powell Talvez seja uma pergunta que te persegue, Marcel, mas não tem como ignorá-la: as composições do seu pai, de algumas forma, tem influência na sua música? Totalmente. Eu não me considero muito compositor, sou mais instrumentista, pois não é um lado que exploro muito. Compor é um exercício diário de sentar e esperar a inspiração vir. Se não vem, eu não faço. Eu prefiro criar no arranjo de outros compositores, e meu pai tem muita influência na minha vida, sim, até porque acompanhei a vida dele e estudei violão com ele dos 10 aos 18. Então, ele se faz sempre muito presente. Como você avalia a recepção do público brasileiro com a música instrumental? No Brasil, existe o público que gosta. Não é muito se comparado à música cantada, mas o que é muito legal é que quem gosta consome de verdade. Eu também observo que é um gosto que passa por gerações, de pai pra filho, de avô pra neto. A música instrumental é algo que talvez não tenha alcance, mas tem durabilidade e fidelidade do público. O meu pai, por exemplo, me passou essa cultura. Lá em casa tinha uma discoteca bastante variada e desde criança eu ouvia Elizeth Cardoso, Raphael Rabello, Ivan Julian e música clássica, como Chopin. Então, eu acho que o lance com a música instrumental é uma fonte que pode não jorrar, mas ela está sempre pingando. Você que já fez turnês em vários países do exterior, qual a diferença entre o público

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brasileiro e dos demais países? Lá fora tem um pouco mais de reconhecimento, mas em se tratando de público brasileiro, pra mim, é o melhor do mundo. Se não é o melhor, é um dos. O público japonês é bastante aberto e recebe muito bem o ritmo brasileiro. Eu gosto muito de tocar no Brasil. Pode não ser o público mais vasto, mas no sentido de calor humano, que é mais importante do que quantidade, é o melhor do mundo, sem dúvidas. Pra você, qual é a cara da atual música instrumental brasileira? Eu gosto muito. Em uma palavra: sensacional. Temos grandes músicos como Hamilton de Holanda, Nicolas Krassik, Yamandú Costa... são caras que, graças à geração passada que deu toda a estrada e foi abrindo caminho, pegaram o fio da meada e estão dando continuidade. Eles são ousados, renovam a música, dão uma cara nova, mas sempre respeitando a tradição. E sobre o Maringá Jazz Festival, o que você tem a dizer? Poxa, foi maravilhoso. O trabalho que o William Fischer realiza de levar a música instrumental para o interior é admirável. E o mais bacana é que é para o público em geral, não está selecionando. Quando você não coloca preço, permite que uma gama de pessoas que não tem acesso tenha a oportunidade de conhecer e tirar suas próprias conclusões. Vida longa ao festival e que inspire muitos outros a fazerem o mesmo.

show de abertura da banda maringaense Isaac Abeche & Os Encanadores do Blues para o norte-americano Lurrie Bell, considerado um dos maiores guitarristas do mundo; o Maringá Jazz Festival com as apresentações memoráveis do Três de Paus, Marcel Powell, Makimatrio e Cuca Teixeira Reunion. Para encerrar, o “bruxo da música” Hermeto Pascoal fazendo história em Maringá mais uma vez com o seu terceiro show na Cidade Canção. Elton Telles.

“Uso qualquer objeto para fazer som, inclusive o meu corpo” Hermeto Pascoal Hermeto, o senhor começou a tocar aos 8 anos de idade. Onde e como eram essas apresentações? O meu pai tinha uma bodega e eu junto do meu falecido irmão sentávamos no balcão. A gente era conhecido como a dupla Sinhô e Zé Neto. Dessas apresentações, nós éramos convidados para se apresentar em outros lugares, como bailes de forró, casamentos e aniversários, sempre acompanhados de papai, que tinha uma ‘vergonha da peste’ e era quem recebia o nosso cachê, que era simbólico, de 300 a 500 cruzeiros. E como se deu a sua descoberta pela música? Bom, essa é uma história que eu gosto muito. Papai trabalhava na roça, era um agricultor ferrenho. Quando ele saía pra trabalhar, eu e Zé Neto pegávamos a sanfoninha dele e começávamos a tocar. A gente fazia isso escondido porque não sabia se ele ia deixar. Um dia, a mamãe nos escutou tocar e pensou que fosse papai, ela até achou estranho que ele não estava cortando a cana. Quando ela viu que era a gente, não disse nada. Um dia falou para papai chegar ao meio-dia porque tinha uma surpresa para ele. Papai ficou escutando a gente tocar pela fresta da porta e então, ele entrou no quarto e a gente ficou ‘cagando de medo’, mas ele ficou muito orgulhoso e disse ‘vou vender a minha melhor vaca para comprar uma sanfona para vocês’. E assim meu irmão e eu começamos a nossa carreira. Dentre os vários músicos consagrados com quem o senhor conheceu, como foi o trabalho e a convivência com o lendário Miles Davis? Foi um encontro divino, inesquecível! Foi algo que não tem explicação. Aconteceu no início da década de 1970, e eu fui convidado pelo Airto [Moreira] pra ir

aos Estados Unidos para assisti-lo tocar percussão no grupo de um tal de Miles Davis, que eu não fazia ideia quem era. E foi engraçado porque, antes de começar o concerto, veio pra perto de mim aquele crioulo bem vestido com aquela voz rouca, falando perto da minha orelha. Eu não entendia o que ele falava porque eu não falo inglês até hoje eu até achei que ele fosse bicha (risos). Aí então, o Airto me disse que ele era o maestro. A gente teve muita afinidade e eu acredito que tenha sido algo bastante espiritual, porque fui poucas vezes à casa dele, mas parecia que a gente era amigo de infância. Uma vez, ele me viu tocando e me convidou para fazer parte do grupo dele. Mas antes, me alertou ‘eu não ia mais convidar branco pra tocar no meu grupo, mas vou abrir uma exceção pra você’. Eu nunca quis morar nos EUA. Gosto de lá, mas para viver eu prefiro ficar no Brasil. Agora, a gente só vai se ver no céu mesmo. E é verdade que vocês lutaram boxe? Sim. E ele perdeu pra mim (risos). Tinha um ringue na casa dele. Um dia, eu fui pra lá e ele me recepcionou vestido a caráter, com luva e tudo. Eu achei estranho, mas não tinha como negar. Na verdade, fui tudo na brincadeira. Mas aí, eu dei um murro na cara dele. Ele caiu, acabou a luta, eu ganhei, mas a minha mão precisou ficar uns três dias mergulhada na água morna (risos). Pra finalizar, falamos do Miles Davis, mas vamos falar de outra lenda viva, assim como o senhor, da música brasileira. Como foi dividir o palco com Airto Moreira? Vixe... especial demais. Toquei com o Airto um bom tempo no Quarteto Novo e foi a causa de tudo o que aconteceu com a minha música. Foi nessa época que comecei a me descobrir mesmo como arranjador, compositor e instrumentista.

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#Confraria

Foto: Alessandra Rossi

O charme não está no pedigree

Quadrinhos impossíveis no Catarse

Toda a simpatia, espontaneidade e carisma habitual dos vira-latas, que, de acordo com estudos não-oficiais, detêm o título da espécie mais fotogênica e irresistível do planeta, é o que fareja as lentes da analista de marketing e fotógrafa Alessandra Rossi, 32, idealizadora do projeto Vira-Foto. “A gente que gosta de bicho vive tentando ajudar de alguma forma”, comenta ela, que do hobby de sair para fotografar cães e gatos que vivem na rua ou estão disponíveis para adoção, criou uma bela iniciativa que mescla arte e solidariedade. O Vira-Foto foi criado no mês passado e tem como objetivo arrecadar fundos em prol dos bichos acolhidos por ONGs da cidade e grupos independentes de proteção aos animais. Na fanpage do Vira-Foto, no Facebook, são realizados leilões individuais de quadros devidamente emoldurados com as fotografias dos bichinhos-modelos. O maior lance, naturalmente, arremata o quadro e, de quebra, o comprador ajuda

Está aberto via catase.me o projeto de captação de recursos para a produção do primeiro volume do Quadrinhos Impossíveis, série de tiras criadas por Tiago Silva, cartunista e designer que mora em Campo Mourão. Tiago, que também empresta seus traços para o jornal curitibano Rascunho, conversou com a equipe do Duque sobre o projeto, explicando todos os motivos que o levaram ao financiamento coletivo e como essa estratégia pode ser uma boa alternativa para o artista que deseja publicar seu trabalho sem investir grana do próprio bolso. A conversa completa, bem como o lnk para contribuir com o financiamento, você encontra a partir do dia 5 de novembro no portal oduque. Para quem ficou interessado, existem várias cotas de apoio e cada uma rende, além de um exemplar do livro, um brinde especial, personalizado, e até o direito de receber em casa o rascunho original da obra.

no cuidado e tratamento de outros amigos de quatro patas, já que todo o dinheiro arrecadado pelo projeto é direcionado para as entidades. Nesta primeira série de fotos/ quadros, os beneficiados são a SOCPAM (Sociedade Protetora dos Animais de Maringá) e os Protetores Independentes de Maringá. O Vira-Foto é um projeto colaborativo e aberto para todas as pessoas que têm interesse de ajudar com a causa, o que inclui os artistas e fotógrafos que estiverem dispostos a compartilhar suas criações. “As pessoas receberam bem o projeto. Confesso que fiquei surpresa! Queremos que o Vira-Foto faça parte do dia a dia das pessoas, que elas ‘sintam’ a pulsação do projeto quando se depararem com um quadro na parede”, diz Alessandra. Além dos quadros, em breve o Vira-Foto fará o lançamento de outros "produtos" ligados à arte, decoração e moda, sendo todos, de alguma forma, atrelados à fotografia e aos animais.

Garatuja de gente grande

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Ricardo Bagge, 37, tem formação em Publicidade e Propaganda, pós-graduação em Comunicação Comunitária, já foi chargista em alguns jornais impressos no interior paulistano, trabalhou com arte gráfica e como diretor e ator do grupo Teatro Kaos, de Londrina, onde reside desde o ano passado e também onde decidiu abrir o seu primeiro “negócio”. Em aspas porque, segundo o artista plástico, a ideia do “empreendimento” não é ganhar dinheiro com as vendas, mas principalmente, circular o trampo que ele faz junto com a atriz e sócia, Bruna Cassemiro. Como se sabe, garatuja é o nome dado aos primeiros rabiscos de uma criança

em processo de cognição. Essa definição foi apropriada para batizar os cadernos de rabiscos, próprios para anotações ou desenhos, que a dupla customiza há cinco meses. Desde a confecção artesanal dos cadernos, costura e formatação até os trabalhos de colagem digital e ilustração feita a mão, toda a manufatura dos Garatuja sketch books é produzida por eles. “É um processo lento e por isso não somos movidos por uma ânsia de vender. O que vale é o exercício da criatividade, porque o dinheiro vem como consequência do esforço”, comenta Bagge. Os cadernos medem 11 cm X 15 cm, podendo ser facilmente transportados no bolso, e nas 48 páginas internas,

encontramos ilustrações minimalistas e trechos de poemas fragmentados. A primeira série foi em homenagem à poetisa brasileira Gilka Machado e ao escritor português Fernando Pessoa. A unidade custa a bagatela de $ 10,00 + postagem no correio para quem não reside em Londrina. Para entrar em contato e conferir os modelos, basta acessar a página “Caderno de Rabisco – Garatuja” no Facebook e no Instagram.


Cinema //

Para a senzala,

BRASIL À MOSTRA

SIGA EM FRENTE Elton Telles

CÁSSIA

O emocionante documentário retrata a breve, porém crucial passagem da icônica cantora nos anos 90. De encher os olhos, literalmente.

ELA VOLTA NA QUINTA

O diretor estreante em longas André Novais Moreira apropria de uma linguagem próxima ao documentário nesta bela e cativante história.

BRANCO SAI PRETO FICA

Com tons de ‘Blade Runner’, o filme recorre ao futuro para solucionar uma tragédia verídica ocorrida nos anos 80 na periferia de Brasília.

outubro/novembro

Político e humanista, ‘Casa Grande’ exibe discurso engajado (e preciso) ao relatar a miscigenação nos dias atuais Há uma passagem talvez imperceptível e bastante emblemática no nacional “Casa Grande”. Em certo momento da trama, um pai dá carona em seu carro de última linha para quatro adolescentes – entre eles, o próprio filho – que estavam retornando de um baile. Para os garotos, diversão era uma consequência, pois a real intenção deles na festa era “pegar umas meninas”. Somente um deles é bem sucedido na tarefa, mas, ainda assim, é cornetado no caminho de volta pelos amigos, que não poupam esforços em classificar a tal conquista como “feia” e “horrorosa”. É aí que o garoto, na tentativa de se defender, lança com relativa ingenuidade “ah, vocês só estão falando isso porque ela era negra”. Ao ouvirem o contra-ataque, um silêncio de constrangimento domina o ambiente, como se todos os personagens tivessem um insight momentâneo para avaliar as suas reais convicções com relação às pessoas de cor. Esse é apenas uma pequena amostra da análise social que o jovem cineasta Fellipe Barbosa propõe no elogiado “Casa Grande”, que levou o prêmio de Melhor Filme segundo a crítica na 38ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. O principal cenário onde transcorre a história é na mansão de uma família rica residente da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. À beira de um colapso financeiro, os pais lutam para esconder a iminente falência e, para controlar as dívidas, recorrem para as inevitáveis demissões dos empregados da tal casa grande, pessoas com quem seus filhos nutrem bastante carinho, sobretudo Jean, o protagonista. No

meio disso tudo, o jovem tenta escapar da superproteção dos pais e engata um romance com uma garota negra e moradora da favela. A referência com a seminal obra literária “Casa-Grande & Senzala”, publicada nos anos 30 pelo sociólogo Gilberto Freyre, começa pelo título. No entanto, em vez de chafurdar nas relações entre branco e negro como formação do indivíduo, o filme permeia por vários elementos que caracterizam o livro, desde a soberania da classe dominante e a relação patrão/empregado até a miscigenação, tudo debatido à luz de preceitos contemporâneos e sob a perspectiva juvenil. O mais marcante, entretanto, é o filme retratar, sem ignorar a sátira, o lifestyle e o pensamento de uma classe que, hipócrita, cruza os braços e perpetua a injustiça social. Nesse balaio da decadência moral, racismo e conformismo se encontram em um roteiro muitíssimo bem amarrado. Não devo deixar de comentar outra cena muito interessante que se passa em um churrasco de família em que o assunto em voga é as cotas raciais nas universidades. Sem se preocupar em levantar bandeira e, felizmente, nunca soando panfletário, “Casa Grande” toma partido e é assumidamente parcial –às vezes, sendo mais explícito do que deveria. Mas essas passagens “mastigadas” entram em equilíbrio com outras moldadas com admirável respeito e sensibilidade pelo seu diretor, que admite ser esta uma história autobiográfica. A cena final, particularmente, é desde já uma das mais comoventes do cinema nacional nos últimos anos. Passada a temporada de festivais, “Casa Grande” ganha espaço no circuito comercial e estreia nos cinemas em dezembro. Esperamos que Maringá entre na rota de exibições.

A HISTÓRIA DA ETERNIDADE

O onipresente Irandhir Santos protagoniza essa história de amor e desejo ambientada no sertão nordestino; Melhor Filme segundo o público da Mostra.

SINFONIA DA NECRÓPOLE

Juliana Rojas dirige uma comédia musical com elementos de terror sobre a escassez de túmulos vagos em uma cidade. Reflexivo, bizarro e imperdível.

VENTOS DE AGOSTO

Premiado em Locarno (Suíça), o cineasta pernambucano Gabriel Mascaro, imbuído de muito humor, narra um romance cheio de descobertas.

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#Nascente

Compulsão

Nascente

Paulo Henrique Mai Cabisbaixo. Calçada azulejada. Luana Bernardes

Aqui estarão os poemas daqueles que sempre quiseram se expressar de forma poética mas nunca tiveram seu devido espaço. Especialmente aos novatos nessa arte, que ainda receiam colocar os pés no rio desses versos e estrofes, talvez por serem águas profundas demais. Convido-os para que venham para a sua nascente, e que assim o lirismo flua de forma tão natural que o mergulho nessas águas se torne doce e constante.

Inspiração

Teus olhos

Aline Luz

Danilo Figueiredo

Ah se eu me conhece-se como conheço as cordas do meu violão Talvez, quiçá entende-se Em que tom se afina a inspiração

Ai destes olhos! Destes olhos que dardejam, inflamam a carne, e inebriam o coração. Olhos sedutores de esplendor vivaz. Atiçam a flecha da paixão, a mira invencível que a tudo conquista. Doce melodia que encanta, consome o corpo e alma em acordes Graciosos.

As palavras me fogem E até acham graça Minha mente igual um pião Gira na mão de um menino Preso na palma da mão Gira e não segue seu destino Marcar seus riscos no chão Rabisco sem um caminho Palavras soltas em carvão Sigo procurando os signos que façam a tradução Do que eu sei que sinto Mas não consigo trazer à razão E há tempos era tão fácil Extravasar minha intenção Camuflada em versos ambíguos Esperando uma interpretação Mas agora me fogem os símbolos Os sons que em conexão Dão voz e fazem sentido No aguardo guardo o violão

Vinde Graciosa! Vinde Urania com flores coroada! Envolta de véus primaveris, em teu carro celeste por alvos cisnes guiado. Vinde Aphrodite! Coração radiante ao meu apelo acode. E que o néctar da paixão sature estas duas vidas. Que pela força do amor, dois corpos se unam em sagrada união.

Gabriel Dominato

Tanto Damien Campos Tanto é tantra, Tanto é tema da minha vida. Tanto é santo, tanto é tudo. Tudo é tanto, que nem tento tanto, explicar o quanto tenho em meu coração: o som, o som... tanto, tanto, tanto

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De repente veio este repetente numa só vertente dentro da minha mente e era realmente: Venâncio vinha vendo vendo a viúva sua vizinha velha voltando da venda com vinte verdura verde vatapá e duas violetas. e veio a viúva voltando vexada e valida da verdade vinha verme na verdura vinte vintém não dá em árvore.

Não posso pisar nas linhas! Não posso pisar nas linhas! Não posso pisar nas linhas!

Será mesmo? C O N F E R I N D O ... .... ..... OK.

Abrindo a porta... trancando a porta... Não posso perder a chave. Guardada!

Piso azulejado. Não posso pisar nas linhas! Não posso pisar nas linhas! Não posso pisar nas linhas!

Será que eu tranquei a porta? Conferindo. ... ... Trancada! .... ..... Será que quadrei a chave? Conferindo. ... ...... ....... Guardada!

Envie seu poema: A cada edição vamos escolher de 5 a 10 novos poetas para integrar a coluna #Nascente. Se interessou? Envie sua produção para luanabernardes@oduque.com.br


Resenha

Com poucas páginas, livro póstumo e incompleto de Saramago retorna às alegorias Victor Simião

Colunista

José Saramago morreu em junho de 2010, mas a obra dele não. Literalmente. Em 2009, após lançar “Caim”, o português começou a escrever um livro que acaba de ser lançado. Batizado de “Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas”, a obra póstuma, publicada pela Companhia das Letras no Brasil, tem três capítulos. O terceiro, inclusive, incompleto. Entretanto, em pouco mais de 50 páginas, o estilo inconfundível do autor fica claro e o objetivo dele, também: o de desassossegar o leitor. No livro, cujo título foi retirado da tragicomédia "Exortação da guerra” de Gil Vicente, o Prêmio Nobel de Literatura de 1998 apresenta a história de Artur Paz Semedo, um apaixonado por armas, apesar de nunca ter dado um tiro ou ter segurado uma espingarda ou algo relativo. Semedo é contabilista da empresa de material bélico Belona S.A. Ele sabe que, economicamente falando, a empresa onde trabalha é importante, pois as vendas de armamento e munições não param, e as guerras nunca acabam. E ele gosta disso. A mulher dele, de nome Felícia, é uma pacifista convicta. Os dois estão separados (não oficialmente), mas ainda conversam entre si. Numa dessas conversas, Artur diz a ela que, após ler “L'Espoir” (Esperança, em tradução livre), livro do francês André Malraux que aborda a Guerra Civil da Espanha (1936-1939), descobre que, certa vez, operários sabotaram um obus em Milão. E morreram por isso. Semedo relata à mulher que, quando leu o trecho referente à façanha dos operários, enfureceuse. Como funcionário de uma empresa de material bélico, ele não gostou de imaginar que alguns outubro/novembro

funcionários sabotaram uma arma e, por isso, ficou feliz ao ler sobre a morte deles. Felícia, sutilmente, ouve e dá uma sugestão: que ele investigue a história da empresa onde trabalha para descobrir o que ela fez durante a Guerra Civil Espanhola. Convencido pela mulher, cujo objetivo, aparentemente, era apenas conhecer a história da própria empresa, acompanhamos os primeiros passos de Artur Paz Semedo em busca do passado da Belona S.A. E é durante esse resgate histórico que a história termina, sem ponto final ou vírgulas. Acaba-se poucas páginas depois de o contabilista descobrir que, em 1933, a empresa cogitou fabricar materiais agrícolas. Com esse final inesperado por conta da morte do autor, ficamos livres para nos questionarmos sobre os rumos que o romance iria tomar. O que será que Felícia queria com a história da empresa? O que Artur Paz Semedo iria descobrir? Isso não sabemos e nunca vamos saber. Mas em relação ao que já está escrito, podemos tirar algumas conclusões. Saramago, a partir de Artur Paz Semedo, Felícia e Belona S.A., volta às alegorias iniciadas em “Ensaio sobre a cegueira” (1995), e isso é ótimo. Apesar de “Caim” e “A viagem do elefante” (2008) serem bons livros, as poucas páginas de “Alabardas...” já os superam. Nesse livro, o autor português mostra o quão ignorante e doente está a sociedade em relação às guerras e às armas. Nós, assim como Artur, somos (da) Paz. Mas, igual

a ele, muitos de nós não se importam com notícias ou situações em que a morte, as armas e a destruição imperam e que, muitas vezes, os mais fracos são eliminados. Sem reflexão e sem a compreensão de que as armas são criadas para ceifar a vida e, por outro lado, dar mais vida ao capital. Felícia, por sua vez, é a consciência que cada um de nós deveria ter. Mesmo que não fiquemos juntos o tempo todo, relacionar-se com ela é fundamental. Essa mulher/consciência, assim como Blimunda, em “Memorial do Convento” (1982), é forte. Assim como a mulher do médico, em “Ensaio sobre cegueira” (1995), é o contraponto moral à insanidade que toma conta da contemporaneidade. Belona S.A. é o nosso mundo. Nós criamos a nossa própria destruição, muitas vezes sem nos darmos conta disso. Por isso, devemos descobrir a história dele para mudá-lo e mudarmos a nós mesmos também. Além da história de Semedo, “Alabardas...” conta com ilustrações de Günter Grass e com três textos extras. Um do ensaísta espanhol Fernando Gómez Aguilera; outro do escritor italiano Roberto Saviano; outro do antropólogo brasileiro Luiz Eduardo Soares. E tem mais. Nove notas escritas por Saramago em relação à produção da obra estão presentes. Numa delas, descobrimos que o autor iria terminar o livro com Felícia pronunciando a seguinte frase: “Vai à merda”. Como se sabe, o autor não terminou a obra com essa frase. Mas isso não importa. O que importa é que Saramago, a partir da própria obra, vive. E viverá para sempre.

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Roberta Stubs

Psicologia //

A consciência de Sartre Colunista

“O homem é o ser pelo qual o nada vem ao mundo”. Assim disse Sartre em uma passagem que aqui foi posta como prelúdio de uma pretensão. O título é só um chamariz dúbio, não pretendemos tratar propriamente a consciência de Sartre, nosso intuito é antes conceitual do que biográfico. Se após o primeiro parágrafo você continua acompanhando essas linhas, com o jornal em mãos ou diante do computador com os dedos sobre o teclado, podemos dizer que agora, leitor, você é consciência desse texto, ou ainda, que sua consciência se volta a esse texto. Porém, se desviar os olhos e voltar sua atenção a um livro sobre a estante, por exemplo, será consciência desse livro. Falamos em formas de consciência, mas e se tentarmos pensar a consciência em si mesma, separada do objeto ao qual ela se volta? O que lhe resta? A consciência é nada, responde Sartre. Assumimos que há certa estranheza nessa frase, pois o verbo ser, comumente, é utilizado para conferir ao sujeito as características que definem a essência do predicado, nesse caso, afirmar que a consciência é o nada resulta em um problema semântico, já que o que define o nada é precisamente não ser. Isso não implica, porém, em

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negar a existência da consciência, mas em definila por sua indefinição. Então, para que soe menos distante, é melhor pensarmos a consciência como uma intencionalidade inteiramente transparente a si mesma. Em todo caso, podemos descomplicar as dobras desse paradoxo dizendo que a consciência é sempre consciência de alguma coisa. Isso significa que, fora da relação em que a consciência se direciona a um objeto, ela não existe. Ou ainda que o uso da palavra consciência e sua própria existência só fazem sentido em relação ao objeto ao qual ela se direciona. Pois bem, saiamos desse campo conceitual imbricado e vejamos como o entendimento do que seja a consciência pode nos ajudar a pensar o cotidiano. Se você continua aqui, a acompanhar essas ideias, dizemos que é consciência dessas ideias. Essa é a forma mais frequente de consciência, que chamamos de consciência irrefletida, pois, enquanto se lança a essas palavras, não se percebe enquanto interioridade que se movimenta em direção a esse texto. É apenas consciência desse texto. Porém, se, enquanto lê, se percebe como

Rodrigo Corrêa

um ser que se dedica nesse momento à leitura, passa a ser consciência de estar lendo. Torna-se a consciência refletida diante de si. Quando isso acontece, encontramo-nos. Esse encontro, porém, é muito pouco exercitado. Lançamo-nos no mundo, agimos sobre ele e temos consciência dessas ações, mas, vemonos implicados enquanto agimos? Conhecemos as razões que servem de motivação às nossas condutas? No voto, por exemplo, depositamos a questionável esperança de eleger um representante que nos pareça confiável ao propósito. Conhecemos a figura a quem confiamos o voto, mas conhecemos, de fato, as razões pelas quais o escolhemos? Se respondermos somente que seu projeto para o país era melhor que o dos demais, estaremos assumindo que o valor de nossa escolha estava contido nas propostas desse candidato e, assim, não estaremos implicados em nossa própria decisão. Uma resposta mais autêntica exigiria que a consciência que escolhe se desdobrasse em um novo ato e se capturasse no momento em que escolhe para questionar-se das razões de sua escolha. Voltando-se para si encontraria os valores que supunha estarem contidos no outro.


Filosofia //

Por uma filosofia do prazer Colunista

Nada melhor que, aproximando-se o final do ano, sejamos confrontados com a realidade da morte. O feriado de Finados relembra a todos que, a despeito da correria no trabalho e na escola, dos planos de férias e dos projetos para o ano seguinte, a morte existe e nos espera. A verdade da morte nos conduz ao medo ou à reflexão sobre a vida. Na Grécia antiga surgiram algumas escolas filosóficas que buscavam um modelo para o bem-viver, um caminho que conduzisse o homem à ataraxia, isto é, a tranquilidade da alma necessária para a plena realização de seu ser. Uma delas, a escola epicurista, apresentava uma alternativa para superar esse medo da morte: o prazer. Desfrutar cada momento como se fosse único era, para esses filósofos, essencial para que o homem atingisse essa tranquilidade da alma que tanto buscavam. O poeta latino Horácio resumirá esse ideal filosófico com seu célebre ‘Carpe Diem’. Se é necessário que morramos um dia, multipliquemos sem descanso nossas experiências e encontros. O prazer pode não vencer a morte, mas só ele pode deixar-lhe uma vantagem mínima de maneira que, quando ela se manifestar, leve apenas um cadáver com as possibilidades vitais corroídas até a medula e não poupadas à espera de dias melhores. Dias melhores podem não vir, por isso devemos aproveitar o momento para não darmos essa vantagem à morte. Essa ideia é do filósofo francês contemporâneo Michel Onfray.

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Após um infarto na juventude, Onfray passou a se interessar pela vida enquanto fuga da morte e desenvolveu uma espécie de filosofia do prazer ou filosofia libertária. O hedonismo torna-se, para ele, a arte do desprezo para com a morte. Diante da morte, quando ela chegar, tal pessoa não se frustrará por ter vivido em vão ou à espera de algo que não veio (a formatura, o grande amor, a aposentadoria etc.), mas estará pronto para descansar de todas as suas loucuras vividas. Enquanto aproveita ao máximo o que seus relacionamentos podem lhe oferecer, o adepto à filosofia do prazer acaba por possibilitar aos parceiros de aventura, a oportunidade de usufruir de tal realização. Entretanto, Onfray menciona um perigo para aqueles que buscam tal vida de prazeres e realizações: tornar-se um novo Marquês de Sade, o escritor libertino francês do séc. XVIII. Muitos que leem seus contos e romances encontram-se apenas com o pervertido Marquês, deixando de perceber, por detrás de seus relatos devassos - que chegam a provocar a repugnância de leitores mais pudicos - um quase esboço de filosofia. Sua obra “A filosofia na alcova”, publicada clandestinamente em 1795, considerada pelos críticos uma antologia da libertinagem, narra a educação sexual da jovem Eugênia por uma senhora, seu irmão, um amigo homossexual e um escravo bem dotado. Em um prazo de 48 horas,

Donizete Pugin

trancados num pequeno quarto, introduzem Eugênia à vida sexual, de todos os modos possíveis. Um leitor desavisado poderia encontrar nesse romance apenas elementos que lhe despertem a imaginação, mas um leitor de filosofia não pode deixar de perceber, para além do erotismo, uma série de pressupostos filosóficos. Em resumo, em meio a relatos picantes, encontramos nesse romance uma série de posições ideológicas que discute os ideais republicanos e as submissões de uma maneira geral. Reduzir Sade a um doente sexual é pouco e desmerece uma possível intenção por detrás de tanta libertinagem: há aqui um filósofo, que encara a morte iminente (ele conheceu como ninguém a França do séc. XVIII) por meio de um novo epicurismo. A busca pelo prazer sem reservas é a metáfora de uma nova França que luta contra a submissão do Antigo Regime e as sombras da superstição. No mês em que recordamos a realidade da morte, sugiro que façamos a experiência de uma filosofia do prazer - ao estilo de Sade ou de Onfray, tanto faz - e tentemos aproveitar esse restinho de ano como se fosse o último. Quem sabe a frustração que assola a tantos na última semana de dezembro não nos domine se aproveitarmos estes últimos meses na intensidade que merecem? Saiam do facebook, desliguem seus celulares e Carpe Diem, moçada!

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Poesia // Roberta Stubs

Hipertexto e ” s e r o l F o ã o J “As coisas de

ris -í o rc a o n ia c n â rt o p im (Ou da bão) a s e d a lh o b a m u m e o d aprisiona Colunista

Dia desses, recebi um convite muito bacana para tomar uma cerveja com o Ademir Demarchi e o Zé Flauzino. Já conhecia Flauzino; Demarchi, só pelos textos e poemas. Maringá, noite curitibana e eu, besta, só de camiseta. Tudo certo, se não estivéssemos numa mesa à calçada! A cerveja gelada, as risadas e a aula meio que peripatética de Demarchi valiam a pena do frio. Lá pelas tantas, ganhei de Demarchi seu “Pirão de SerEia”, editado pela Realejo em 2012 e que traz toda a poesia (até 2010) desse maringaense que resolveu ficar mais perto do mar. Com a dedicatória, então, a noite já estava ganha e a prosa quente com a cerveja gelada mudaram seus status para fringe benefits. Deixando de ser ditirâmbico, pois uma palavra a mais e no lugar errado pode virar puxa-saquismo, naquela noite um dos assuntos que girava volta e meia e meia-volta era sobre Marco Cremasco e sobre Mauro Faccioni. São eles dois engenheiros e poetas que, por motivos de profissão, se mudaram de Maringá. Depois de mostrar minha ignorância sobre a obra desses poetas, Flauzino, prontamente e desconsiderando o pensamento machista que diz: “Livro, mulher e violão não se emprestam...”, emprestou-me “As coisas de João Flores”, último livro de poemas lançado por Cremasco. Flauzino é igual a mim e só empresta livros para pessoas que gostam, mas que gostam muito de livros. Fiquei feliz em dobro: pelo livro e pela confiança de Flauzino em saber que eu não iria rabiscar nas páginas d’As coisas de João Flores (apesar de que a vontade foi enorme) e que, evidentemente, irei devolvê-lo um dia, se bem que esse dia está às calendas. Marco Cremasco é de Guaraci, no setentrião do Paraná. Sempre gostei da palavra setentrião, mesmo quando não sabia do seu significado. De início, para mim, setentrião significara algo muito velho, antigo. Na minha cabeça, um homem setentrião era quase um Matusalém. Depois, ainda com a

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preguiça de ir ao dicionário, matutei que setentrião significaria grotão ou qualquer lugar escondido do interior. Que desastre! A verdade é que eu tenho muito dessas incomodações com as palavras. Voltando ao Cremasco, seu “As coisas de João Flores” foi editado pela Patuá agora mesmo em 2014. Segundo o livro, João Flores, um alter ego de Cremasco, trazia a vida em um saco de coisas. A primeira pergunta que me veio à cabeça quando me deparei com o título do livro foi: “Que coisas serão essas?”. Cremasco não nos dá a chance de adivinhar, já entra de sola e antes mesmo do prefácio do Demarchi, nos apresenta João Flores num pequeno texto sem título. Assim, fico à vontade e não me preocupo em fazer spoiler. “João Flores nasceu catando cavacos.” Desta maneira, os poemas do livro dizem respeito às lembranças inventadas dessa personagem (parodiando o título do maravilhoso livro do Manoel de Barros), um amálgama do matuto com o urbano que é João Flores. Na primeira folheada que dei – sabe aquela olhadela que a maioria das pessoas normais dá ao ter um novo livro novo nas mãos? – após ler alguns poemas, imediatamente remeti-me ao livro “LA VIE EN CLOSE” do Paulo Leminski, de 1991. Penso que minha associação mental entre os dois autores aconteceu porque muitos poemas de Cremasco parecem haicais. Não me refiro àquele haicai tradicional de dezessete sílabas espalhadas em três versos, mas do haicai como conceito de poesia curta, densa, com jogo de palavras e de conteúdo. Leminski era perito nesse tipo de poesia e é muito interessante notar que Cremasco, nesse estilo, conseguiu desenvolver seu próprio caminho. É um belo livro e é uma ótima sugestão de leitura, assim como o livro do Leminski. Fica sugerida, também, uma nova rodada de cerveja com o Demarchi e o com o Zé, álibi para uma boa prosa. Desta vez, levarei um moletom.

Gilamar Leal Santos

JORNADA (Marco Cremasco, in As coisas de João Flores, Patuá, 2014)

existe um deserto para atravessar um deserto sem fim este deserto dentro de mim

SUTIL (Marco Cremasco, in As coisas de João Flores, Patuá, 2014)

nas entrelinhas escrevia palavrões com palavrinhas

METRÓPOLE (Marco Cremasco, in As coisas de João Flores, Patuá, 2014)

somos viajantes do tempo gravado nas esquinas de nossas avenidas indiferentes ao concreto armado nos lábios trêmulos dos homicidas passamos simplesmente do passado ao presente ignorando as feridas abertas por um futuro exumado da esperança tardia dos suicidas a vida não é vítima ou o bandido nas garras da metrópole, vai além do que existe entre o gatilho e o estampido e sabe muito bem o que convém ao destino do assassino perdido na solidão de ser no outro, ninguém


#Sarau //

TARDEI

Wilame Prado

Tardei, no lado oeste da cidade de pequeno porte o sol caía o moleque recolhia o par de chinelo-trave o shortinho curto da moça tapava o paraíso a senhora terminava de varrer a sujeira do mundo e eu, enquanto deixava a máquina automobilística me levar para mais próximo das nuvens, tardei Tardei porque não queria te ouvir, ver ou sentir Tardei porque são desesperadoras as tardes de domingo Assim como são desesperadoras qualquer tarde, de qualquer dia Tardei para evitar a fadiga Apaziguar os ânimos Esfriar a cabeça Amenizar a situação Tardei para ver se, longe de mim, a casa ficasse em ordem Lembro-me bem Estava, sentido aos céus, no lado oeste da cidade de pequeno porte, Quando tardei E lá fui deixando a máquina me levar, Marcha macia, brisa na cara, paraíso escondido, brincadeira acabada, sujeira varrida No tardar, subi Vi poeira leve e inofensiva pelo retrovisor E estava mais determinado que nunca: o mundo ficou para trás Cenário e gente serviam de retardatários Tardei enquanto o sol caía, enquanto a tarde caía e tardava também Subi em linha reta e notei que havia chegado a hora de parar Dois pontos, uma linha, ponto de partida, ponto de chegada Uma cerca, afinal, impedia-me de seguir adiante Tardei mais um pouco por ali Era voltar para trás ou tardar Era encarar a sobrevivência ou me perder de vez Em pensamentos, em frases soltas, em parágrafos imaginários, Em sonhos daquilo que já foi e não foi e nunca será Tardei e deixei, aos poucos, não as obrigações As saudades sim Levarem-me para trás Regredir nem sempre é sinônimo de fraqueza Pode ser sintoma de experiência, pode ser fortificação E hoje continuo tardando Mais sereno Sem tanto sacolejar as pernas Olhando até mesmo as tardes de domingo passar Azulejos refrescantes do alpendre da casa grande Cadeiras de área, na área Em outros pontos cardeais da cidade de pequeno porte E sem me esquecer jamais do dia em que deixei o carro me levar até o ponto final Tendo na memória o chinelo-trave, o shortinho e a vassoura, e as pessoas Os caminhos, as pessoas e os cenários nunca são iguais, retardatários De vez em quando, retomo os trajetos de outrora, sempre mudados Em tardes de domingo, feriados, dias atípicos de semana No lado oeste da cidade de pequeno porte, Onde tardei E continuarei tardando O sol caindo e tudo Mas eu voltando Texto inspirado no álbum "Cavalo", de Rodrigo Amarante. Tanto o álbum quanto a análise de Wilame Prado você pode conferir no portal oduque.com.br outubro/novembro

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