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Ensaio sobre isolamento

Ana Clara Badia Guinle, anacguinle@gmail.com www.lattes.cnpq.br/9679559092180611

RESUMO O vídeo “Ensaio sobre isolamento” apresenta uma imagem que se fragmenta e desdobra em novas visualidades repletas de ruídos. As composições imagéticas se configuram atreladas à narração de um texto poético autoral, onde são apontadas reflexões existencialistas que desembocam na ilusão de um outro eu, um duplo, um reflexo no espelho. Nesse espelhamento, a própria imagem se revela como representação de uma companhia que protege, assim como a casa que abriga. Através de um processo de criação que funde diversas linguagens, o vídeo é um recorte íntimo e autobiográfico resultante da experiência do isolamento social vivenciado durante a quarentena adotada para prevenir a disseminação da pandemia provocada pelo coronavírus.

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PALAVRAS-CHAVE Corpo; Existencialismo; Poesia; Arte; Proteção.

ABSTRACT The video “Essay on isolation” presents an image that is fragmented and unfolds in new visualities full of noises. The imagery compositions are configured linked to the narration of an authorial poetic text, where existentialist reflections are pointed out which leads to the illusion of another self, a double, a reflection in the mirror. In this mirroring, the image itself is revealed as a representation of a company that protects, such as the house that gives us shelter. Through a creative process that merges different languages, the video is an intimate and autobiographical cut resulting from the experience of social isolation lived during the quarantine adopted to prevent the spread of the pandemic caused by coronavirus.

KEY WORDS Body; Existentialism; Poetry; Art; Protection.

Partindo do vídeo “Ensaio sobre isolamento’’, proposto pela artista Ana Clara Guinle como intervenção remota apresentada no Quebranaquina_2021 XXIII Encontro de Pesquisadores do PPGAV-EBA-UFRJ, faremos uma investigação acerca do processo de criação desse trabalho relacionando-o com questões ligadas à filosofia, psicologia e poesia. Iniciado no ano de 2020, o trabalho foi desenvolvido no contexto pandêmico, quando o isolamento social foi adotado como a principal medida de controle contra a disseminação do novo coronavírus. Nesse panorama, com a quarentena vigente, o desenrolar da produção de ‘’Ensaio sobre isolamento’’ carrega veracidade em seu caráter intimista. Anteriormente à elaboração do vídeo apresentado como intervenção, técnicas artísticas tradicionais foram utilizadas em seu processo. Imagens construídas através da fotografia, monotipia e desenho, tornaram-se camadas de uma colagem digital que resultou em uma única composição imagética, a qual posteriormente foi fragmentada, multiplicada e por fim transformada em frames altamente ruidosos. Em paralelo a criação dessas visualidades, um texto poético foi concebido, declamado e gravado na forma de áudio, o qual foi então inserido no vídeo, assim interpelando um profuso e intrincado diálogo com as imagens. Durante o decorrer dessa investigação voltaremos a explorar tais etapas do processo de criação, buscando assim um diálogo que abranja não apenas o trabalho finalizado, mas também os conceitos que se desdobram através da natureza das diversas linguagens utilizadas. É importante frisar que na etapa da fotografia, a artista se auto-representa utilizando a fotoperformance como recurso e criando um jogo de espelhos que duplica sua imagem. Podemos interpretar esse espelhamento como o surgimento de um duplo, um “outro eu”, sombra que emerge do inconsciente. Essa companhia que se manifesta na imagem, também se apresenta na fala, no texto poético recitado que reforça a presença de um “outro”. Portanto, esbarramos com uma questão identitária, uma persona que se desdobra problematizando a aparição de ‘’outro eu’’. A fim de descobrir a multiplicidade dos ‘’eus’’ que a habitam, a artista ao vivenciar o isolamento, se reinventa como sua própria companhia através de uma ficção de si mesma. Trazendo referências de poetas que pensam o ‘’eu’’ como um universo exploratório, podemos citar Fernando Pessoa e seus heterônimos, cujas personalidades díspares se aprofundam de tal maneira que a ficção se mistura com realidade. Já Rimbaud, 12

Figuras 1-2

Frames de “Ensaio Sobre Isolamento” vídeo 1’16’’, 2021, Ana Clara Guinle. Fonte: Canal de Ana Clara Guinle no Youtube https:// youtu.be/StLsZ0xQOqY (visitado em 07 de janeiro de 2022).

ao escrever “eu é um outro”, questiona a identidade enquanto verdade absoluta, projeta no “eu” um potencial desconhecido, onde um “outro’’ habita. O poeta abre um universo que se distancia da lógica e dilata a noção de uma identidade fixa, debruçando-se nas transformações e paradoxos existentes em um único indivíduo que explode em suas outras versões. No trecho de “ A carta do Vidente”, endereçada à Paul Démeny, Rimbaud elabora:

(...) Com efeito, EU é outro. Se o cobre acorda clarim, a culpa não é dele. Para mim, é evidente: assisto à eclosão do meu pensamento: fito-o, escuto-o: dou com o golpe de arco no violino: a sinfonia tem um estremecimento nas profundidades ou salta de súbito para a cena. (...) O Poeta faz-se vidente por um longo, imenso e ponderado desregulamento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; procura por si próprio, esgota em si próprio todos os venenos para só lhes guardar as quintessências. Inefável tortura em que precisa de toda a fé, de toda a força sobre-humana, em que se torna entre todos o grande doente, o grande criminoso, o grande maldito – e o supremo Sábio! – Com efeito, chega ao desconhecido! Visto ter cultivado a alma, já rica, mais que ninguém! Chega ao desconhecido; e quando, apavorado, acabasse por perder a inteligência das suas visões, tê-las-ia já visto! Que rebente no seu salto pelas coisas inauditas e inúmeras: outros virão, horríveis trabalhadores; começarão pelos horizontes em que o outro tombou!”. Trecho de Lettre du Voyant/ Carta do Vidente (Arthur Rimbaud à Paul Demeny, 15 de maio de 1871).

Nas imagens, temos representados de forma figurativa, através da técnica da monotipia, uma fechadura e dois botões. Ambos os elementos foram usados diretamente como matrizes no processo de impressão, acrescendo assim uma carga indiciária à imagem. Tais objetos “carimbados” neste trabalho pertenceram à família de Guinle, e são recorrentes em sua pesquisa. A fechadura tranca a casa e o botão adapta a roupa ao corpo protegendo-o ao vesti-lo. Tanto a presença desses dois elementos, quanto o desenho da casa representada de forma infantilizada na imagem, são elementos que simbolizam a proteção. Através dessa tríade que aponta para a crença de estar em segurança, a imagem de um “outro’’ que surge no espelho, pode reforçar a ideia de proteção quando interpretada como “um outro que acompanha”. 14

Figura 3

Detalhe de “Ensaio Sobre Isolamento” colagem digital 8268x5906px, 2020, Ana Clara Guinle. Fonte: Publicação revista Imago_EBA No.01 – Quarentena 2020, p. 12 https:// issuu.com/revistaimagoeba/docs/imago_ eba_no_01__issuu/12 (visitado em 07 de janeiro de 2022).

Figura 4

Frame de “Ensaio Sobre Isolamento” vídeo 1’16’’, 2021, Ana Clara Guinle. Fonte: Canal de Ana Clara Guinle no Youtube https:// youtu.be/StLsZ0xQOqY (visitado em 07 de janeiro de 2022).

Apesar de encontrarmos nas imagens elementos que representam a proteção, o texto recitado no vídeo revela uma carga de desesperança que se assume e contrasta com a imagem. Na fala, emergem sentimentos que confrontam com a ideia de estar em segurança e a melancolia vem sugerir uma ameaça à existência de um lugar seguro. Em “A poética do espaço”, Bachelard ao descrever a casa, faz dela um instrumento de análise psicológica. Apoiando-se na psicologia analítica, identifica os cômodos como camadas da psique humana, um interior onde nossa intimidade habita. Nossa alma é nossa morada, espaço que transpira segurança, onde guardamos nossos medos, inseguranças, felicidades e diversas memórias que podemos ou não acessar, porém estão protegidas dentro de nosso abrigo.

A casa é um corpo de imagens que dão ao homem razões ou ilusões de estabilidade. Incessantemente re-imaginamos a sua realidade: distinguir todas as imagens seria revelar a alma da casa; seria desenvolver uma verdadeira psicologia da casa. (BACHELARD, 1993, p. 36).

Sobre a escolha estética presente no vídeo, cujos quadros apresentam interferências digitais, os ruídos e a fragmentação das imagens faz alusão à memória, às lembranças que muitas vezes se misturam com sonhos, colocando a realidade em discussão. “Ensaio sobre isolamento’’ provoca sentimentos dúbios que se bifurcam construindo universos paradoxais e corporifica experiências. A companhia de um “outro’’, um indivíduo refletido no espelho, é visível e persiste se organizando no espaço. A presença da representação de um ‘’duplo’’ se materializa na fala e deixa clara a escolha de estar em companhia no ambiente íntimo onde se encontra um lugar paradoxal, onde existe a obrigação de estar em isolamento social, porém isso não impossibilita interações com outras personalidades. Nesse diálogo onde questões do inconsciente vem à tona recriam-se lembranças e as dúvidas pairam sobre os corpos. De repente a casa já não existe mais, provocando um vazio que causa medo e então passamos a acreditar que a proteção é uma grande ilusão.

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