
12 minute read
“Quem convidou os favelados?”
by L. Hansen
Marcel Martins Lacerda Diogo1, marceldiogo@yahoo.com.br www.lattes.cnpq.br/3247119857184112
RESUMO Recentes presenças “marginais” dentro de contextos artísticos oficiais podem representar ampliações da diversidade de elementos, sujeitos políticos e possibilidades de (re)existências de outras visões de mundo.
Advertisement
PALAVRAS-CHAVE Arte; Marginal; Contemporânea.
ABSTRACT Recent “marginal” presences within official artistic contexts may represent expansions of the diversity of elements, political subjects and possibilities of (re)existence of other worldviews.
KEY WORDS Art; Marginal; Contemporary.
A pergunta que compõe o título: “Quem convidou os favelados?”, enunciada no final dos anos 90 por uma jovem mulher universitária em uma festa na zona sul de Belo Horizonte, área rica da cidade, representa uma visão comum, estereotipada e violenta, sobre imagens que a classe média alta projeta sobre jovens periféricos em raras situações, não laborais, em que tais grupos distintos economicamente se encontram. Rememorar esse comentário agressivo do passado serve aqui para pensar indícios – imagéticos, discursivos, comportamentais – comumente associados às pessoas classificadas socialmente como “marginais”. Assim, possíveis “culturas periféricas”, estarão no “centro” das reflexões deste texto. Sobre construções subjetivas dicotômicas, onde um grupo representa o modelo ideal, enquanto projeta sobre os outros subjetividades subalternas, Suely Rolnik nos escreve:
Uma barreira imaginária separa os habitantes destes mundos, os quais tem sua consistência própria ignorada e encoberta por identidades-estigma, imagens fantasmagóricas por meio das quais são representados. Nestas imagens, a miséria material é confundida com miséria subjetiva e existencial, mais precisamente com uma miséria ontológica, a qual passa a definir a suposta essência destes seres. Isto faz com que lhes seja atribuído o lugar de subjetividades-lixo na hierarquia que rege a distribuição de categorias humanas nos mapas perversos deste regime – mapas geopolíticos e, mais do que isso, cartografias de cores de pele, estilos de vida, códigos de comportamento, classes de consumo, línguas, sotaques, faixas de freqüência cultural, etc. São fronteiras abstratas mas com poder de comandar concretamente o desejo e os processos de subjetivação e fazer com que os habitantes da terra capitalisticamente mundializada tendam a produzir-se a si mesmos e sua relação com o outro em função destas imagens. (ROLNIK, 2003, p. 1).
Diversas pessoas e produções artísticas consideradas “marginais” – dentro dos cenários institucionais das artes – sobrevivem estigmatizadas, estereotipadas, às “sombras”, isto é, subjugadas em categorias pré-estabelecidas e destituídas de reconhecimentos como potências culturais autônomas e diversas. As várias possibilidades de artes gestadas nas periferias, físicas e simbólicas, encontram-se intimamente conectadas com as vidas de quem as produzem, os locais onde habitam e todas as materialidades palpáveis ou não desses universos, assim, essas construções – quando observadas para além dos estereótipos – podem representar “quebras” dentro de homogêneas e dicotômicas estruturas conservadoras das artes contemporâneas. Nesse sentido, as manifestações artísticas “marginais”, “faveladas”, “periféricas”, “suburbanas”, entre outras não hegemônicas, além de romperam com paradigmas impositivamente instituídos, também se encontram conectadas com a pluriversalidade própria de cenários ditos “contemporâneos”. Pesquisas recentes e publicações de instituições de arte contemporânea demonstram que artistas habitantes de áreas periféricas dos grandes centros urbanos e que compõem as camadas mais pobres dessas sociedades obtiveram significativa visibilidade em espaços artísticos nos tempos atuais. Stuart Hall apresenta importantes reflexões a respeito dessa evidenciação contemporânea da periferia e ainda sinaliza uma possibilidade de observar esse interesse recente pela 319
produção dita “marginal” como característica daquilo que talvez seja possível chamar de pós-modernidade, ou seja, fora dos “domínios” tradicionais, essas produções “marginais” talvez ainda deflagrem aspectos de possíveis contemporaneidades, decolonialidades, anticolonialidades, ou quaisquer outras movimentações coletivas capazes de ressignificarem ou até mesmo romperem com as estruturas vigentes. Sobre as possibilidades de transformações que essas “vozes das margens” suscitam no cenário atual, Stuart Hall escreve:
Dentro da cultura, a marginalidade, embora permaneça periférica em relação ao mainstream, nunca foi um espaço tão produtivo quanto é agora, e isso não é simplesmente uma abertura, dentro dos espaços dominantes, à ocupação dos de fora. É também o resultado de políticas culturais da diferença, de lutas em torno da diferença, da produção de novas identidades e do aparecimento de novos sujeitos no cenário político e cultural. Isso vale não somente para raça, mas, também para outras etnicidades marginalizadas, assim como o feminismo e as políticas sexuais no movimento de gays e lésbicas, como resultado de um novo tipo de política cultural. (HALL, 2003, p. 376)
Como nos sugere o autor, a presença “marginal” tornou-se um tanto mais significativa no atual cenário das artes contemporâneas e esse fenômeno, além de talvez corresponder a “um novo tipo de política cultural” como Hall propõe, notadamente apresenta outros atores, materialidades e epistemologias para o campo artístico. Boris Groys também aponta esse interesse atual pela periferia e indica, similarmente as ideias de Hall, que essa visibilidade recente ocorre mediante lutas e reivindicações de sujeitos que outrora estiveram às margens:
E, de fato, se a democracia absoluta e perfeita não só não foi realizada, mas também é irrealizável, o caminho que leva a ela é infinito – e não faz sentido forçar a homogeneidade e universalidade desse futuro infinito na heterogeneidade das identidades culturais do aqui e agora. Em vez disso, é melhor apreciar a diversidade e a diferença, tornar-se mais interessado em de onde vem o sujeito do que para onde ele ou ela vai. Então podemos dizer que o presente interesse em diversidade e diferença é ditado, em primeiro lugar, por certas 320
considerações morais e políticas – a saber, pela defesa das ditas culturas subdesenvolvidas contra sua marginalização e supressão por Estados modernos dominantes em nome do progresso. (GROYS, 2008, p. 188)
Produções de artistas “marginais”, tendo em vista noções de marginalidade acerca principalmente de concepções geopolíticas e simbólicas, podem carregar características dos territórios e condições de vidas dessas pessoas e esse contexto recente – onde vozes periféricas ressoam dentro de cenários das artes visuais tradicionalmente restritos – pode apresentar manifestações capazes de quebrar paradigmas hegemônicos e anunciar outras possibilidades de ser e fazer artísticos. Assim como nos anos 90 uma jovem universitária de classe média alta me classifica junto com meus amigos, sobretudo a partir da aparência, como “favelados” que adentravam a sua festa em seu condomínio na zona sul – área nobre de Belo Horizonte – várias outras pessoas e instituições, inclusive os sistemas das artes, projetam sobre grupos minorizados seus discursos classificadores e, geralmente, opressores. Nesse sentido, ao mesmo tempo que a polícia ou um segurança de um supermercado me veem como “ameaça”, devido a minha “imagem”, o “mercado de arte” me enxerga como uma “promessa”, ou mais especificamente um artista cuja obra possa render lucros futuros. Algo comum entre essas rotulações é que ambas classificações me são impostas.
Em seu livro intitulado “Cultura e representação”, no capítulo “O espetáculo do ‘outro’” Stuart Hall indaga: “Como representamos as pessoas e os lugares que são significativamente diferentes de nós?” (HALL, 2016, p. 139) A palavra “representação” importa aqui, não apenas pelo seu caráter ilustrativo, mas também porque é o termo utilizado para esboçar as relações econômicas entre artistas e galerias de arte. Nessa publicação o autor ainda acrescenta que:
“Na Idade Média, a imagem que a Europa tinha da África era ambígua – um lugar misterioso, mas muitas vezes visto de modo positivo: afinal, a Igreja Copta era uma das mais antigas comunidades cristãs “ultruamarinas”[...] Gradualmente, no entanto, essa imagem mudou. Os africanos foram 321
chamados de descendentes do personagem bíblico Cam, amaldiçoados, tal como o filho deste, Canaã, a ser perpetuamente “servo dos servos a seus irmãos”. Identificados com a natureza, simbolizavam o “primitivo em contraste com o “mundo civilizado”. (HALL, 2016, p. 161 -162)
Sobre essa economia colonial baseada na subjugação e exploração sistemática de outros povos Stuart Hall ainda acrescenta:
“A exploração e a colonização da África produziram uma exploração de representações populares (MACKENZIE, 1986). [...] O progresso dos grandes exploradores e aventureiros brancos, bem como os encontros com o exótico negro africano, foram cartografados, registrados e descritos em mapas e desenhos, em gravuras e (especialmente) por meio da nova fotografia, em ilustrações e histórias jornalísticas, diários, livros de viagens, tratados eruditos, relatórios oficiais e romances de aventura próprios para rapazes. (HALL, 2016, p. 162)
Evoco os escritos do autor para refletir, tendo em vista o campo das artes visuais, sobre variadas instituições e sujeitos, como por exemplo a igreja e povos europeus, que construíram ao longo dos tempos “estereotipagens” sobre outros grupos sociais e suas culturas. Essas construções clichês possibilitaram lucros, para quem as fomentou, até os dias atuais inclusive, com imaginários superestimados sobre si e depreciativos sobre diversos povos mundo afora. Coabitamos sistemas imagéticos desiguais que infelizmente ainda vigoram e alimentam representações dentro e fora dos espaços de arte. Nesse sentido cabe perguntar: quem lucra com marginalizações físicas e simbólicas de determinados grupos sociais? Stuart Hall nos aponta, por exemplo, que imagens negativas sobre o continente africano foram construídas por exploradores, muitos destes relacionados a empresas coloniais, escravistas, extrativistas, saqueadoras, amparados por seus discursos religiosos impostos sobre outros povos. Assim, companhias particulares aliadas às igrejas europeias dominaram violentamente as representações e por conseguinte os corpos, terras e recursos de outras populações. Dentro desse cenário, povos e territórios foram, e ainda são subalternizados, para serem explorados economicamente. Aníbal Quijano nos aponta que a invasão europeia:
[...]produziu na América identidades sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços, e redefiniu outras. Assim, termos como espanhol e português, e mais tarde europeu, que até então indicavam apenas procedência geográfica ou país de origem, desde então adquiriram também, em relação às novas identidades, uma conotação racial. E na medida em que as relações sociais que se estavam configurando eram relações de dominação, tais identidades foram associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais correspondentes, com constitutivas delas, e, consequentemente, ao padrão de dominação que se impunha. Em outras palavras, raça e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificação social básica da população. (QUIJANO, 2005, p. 117)
Assim como os escritos de Stuart Hall, as reflexões de Aníbal Quijano deflagram sistemas coloniais de classificações hierárquicas das populações mundiais e que infelizmente ainda vigoram em sociedades outrora oficialmente colonizadas. O conceito de “colonialidade”, cunhado pelo autor peruano, salienta a perpetuação do modus operandi colonial que abrange os campos do saber, ser e poder. Quijano nos alerta que as estruturas de funcionamento, pensamentos e poder coloniais se mantiveram mesmo após o “fim oficial” desses sistemas. Elites locais, herdeiras e, portanto, detentoras de condições privilegiadas, se identificam e exaltam as imagens e culturas dos colonizadores, perpetuando assim, desigualdades instauradas há séculos. Em seu livro “Memórias da Plantação” Grada Kilomba escreve:
bell hooks usa estes dois conceitos de “sujeito” e “objeto” argumentando que sujeitos são aqueles que “têm o direito de definir suas próprias realidades, estabelecer suas próprias identidades, de nomear suas histórias” (hooks, 1989, p. 42). Como objetos, no entanto, nossa realidade é definida por outros, nossas identidades são criadas por outros, e nossa “história designada somente de maneiras que definem (nossa) relação com aqueles que são sujeitos.”(hooks, 1989, p. 42). Essa passagem de objeto a sujeito é o que marca a escrita como um ato político. Além disso, escrever é um ato de descolonização no qual quem escreve se opõe a posições coloniais tornando-se a/o escritora/escritor “validada/o” e “legitimada/o” e, ao reinventar a si mesma/o, nomeia uma realidade que fora nomeada erroneamente ou sequer fora nomeada. (KILOMBA, 2019, p. 28). 323
A autora reflete, a partir de bell hooks, que as subalternizações que historicamente nos foram e ainda são impostas, por instituições e indivíduos externos as nossas existências, nos mantêm sob condições desumanizadas, porém, afirma que podemos nos tornar “sujeitos” quando assumimos posições de protagonismo, nesse sentido, políticas públicas de inclusão social, como a lei de cotas universitárias, por exemplo, que promovem acesso a espaços antes negados para alguns grupos minorizados, tornam-se mecanismos importantes para combater desigualdades historicamente instituídas, além de ampliar repertórios culturais dentro de cenários geralmente bastante homogêneos como no caso das universidades e do campo das artes visuais. Todo histórico de objetificação imposto a grupos minorizados e os desdobramentos atuais desses sistemas de exclusões, como as ausências de subjetividades não-hegemônicas em instituições e lugares de poder, ou existências sob classificações tidas como “exóticas”, revelam a extrema importância de escutarmos, vermos, conversarmos, trabalharmos cada vez mais com grupos diversos, pois, se de fato desejamos universidades, sociedades, museus entre outros espaços, mais democráticos e passíveis de aprendizados múltiplos, torna-se imprescindível que a diversidade dos povos e suas inúmeras manifestações culturais possam existir em todo e qualquer lugar, sobretudo em instituições consagradas. Sujeitos outrora marginalizados atualmente começam a povoar instituições artísticas renomadas. Essas presenças “divergentes” dos padrões, corpóreos e epistemológicos, evocam outras materialidades, saberes, repertórios, além de denunciarem e construírem reflexões sobre violências históricas, e ainda presentes, no campo social, artístico, educacional etc. Assim, manifestações outras, podem representar “quebras” dentro de homogêneas estruturas conservadoras e tais “rompimentos” poderão felizmente ampliar nossas possibilidades de aprendizados e repertórios. O trabalho de Dayane Tropicaos intitulado “Filha da empregada” reflete sobre a subalternização de determinados grupos sociais. O ato de vestir uma camiseta com os dizeres “FILHA DE EMPREGADA” possibilita que ela “incorpore” o trabalho e, desse modo “assuma” ironicamente uma condição que lhe fora imposta, assim, por meio desse ato de “vestir” um estereótipo, escancara violências históricas naturalizadas cotidianamente. A existência enquanto “obra” e ação artística da “filha da empregada”, representando a si mesma, dentro do circuito de arte, denota violências históricas e a presença de uma outra subjetividade, antes invisibilizada e/ou subalternizada em espaços geralmente exclusivos a determinados grupos sociais. A fala, em 2020 do 324
Figura 1
Filha da empregada, Dayane tropicaos, 2017. Fonte: <https:// www.dayanetropicaos. com/>.
Figura 2
Filha da empregada, Dayane tropicaos, 2017. Fonte: <https:// www.dayanetropicaos. com/>.

ministro da economia do governo brasileiro, revela a intolerância das classes abastadas com certa mobilidade social de pessoas outrora subalternizadas: “Empregada doméstica indo pra Disneylândia, uma festa danada. Mas espera aí? Espera aí.”2 Assim, observo no atual cenário de arte contemporânea, obras de arte “contra-hegemônicas” como o trabalho de Dayane Tropicaos, enquanto exemplos de “marginalidades” que não somente ocupam cenários antes restritos, como também ampliam estruturas engessadas. Nesse caminho investigativo, interessa sobretudo obras artísticas de pessoas negras, construções essas que alimentam um caminho de pesquisa que denomino Negradoria, uma proposta de estudos curatoriais, que como o próprio nome indica, busca analisar dentro do campo das artes contemporâneas saberes e fazeres negrodescendentes, anticoloniais, em diálogo com conhecimentos índigenas, amareles, favelados entre outros historicamente subalternizados. Almejo, portanto, acionar caminhos e caminhares capazes de incorporar epistemologias e fazeres outros, isto é, contra hegemônicos, a fim de “curar” e combater monopólios artísticos e desigualdades tradicionalmente instauradas.
2 Declaração pública de Paulo Guedes, atual Ministro da Economia, durante o seminário “Abertura do Ano Legislativo”, em Brasília, 12 de Fevereiro de 2020. 326
GROYS, Boris. Arte, poder. Belo Horizonte. Editora UFMG, 2015. HALL, Stuart. Cultura e representação. Rio de Janeiro. Ed. PUC-Rio. 2016. KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2019. QUÍJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. En: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas Buenos Aires. Clacso, 2005. ROLNIK, Suely. In: Posiblemente hablemos de lo mismo, catálogo da exposição da obra de Mauricio Dias e Walter Riedweg. Barcelona: MacBa, Museu d’Art Contemporani de Barcelona, 2003. TROPICAOS, Dayane. dayanetropicaos.com, 2017. Disponível em: https://www. dayanetropicaos.com/trabalhos. Acesso em: 22/02/2021.