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Anatomia da inquietação a estética do grotesco como forma de interação

Luisa Ferrari Capistrano de Mesquita, anatomiadainquietacao@gmail.com www.lattes.cnpq.br/7743043878544419

RESUMO Este trabalho visa expor e analisar o valor conceitual grotesco no desenvolvimento prático da performance intitulada Anatomia da Inquietação e os efeitos dos fluxos de interação internos e externos entre a obra e o espectador. A partir de pesquisas prévias de teóricos da estética grotesca e da abjeção, traço um caminho imaginário do que deveria ser a resposta do público à minha produção. E apenas quase dois anos após conceber a ideia de um vestível- performance, consigo obter tais respostas dentro da VIII Bienal da Escola de Belas Artes da UFRJ ao presenciar os fluxos relacionais de cada espectador.

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PALAVRAS-CHAVE Grotesco; Interação; Performance; Sensorial; Vestível.

ABSTRACT This work aims to expose and analyze the grotesque conceptual value in the practical development of the performance entitled Anatomy of Inquietude and the effects of internal and external flows of interaction between the work and the spectator. Based on previous research by theorists of grotesque and abjection aesthetics, I trace an imaginary path of what the public’s response to my production should be. And only almost 2 years after conceiving the idea of a wearable-performance, I manage to obtain such answers within the VIII Bienal da Escola de Belas Artes da UFRJ by witnessing the relational flows of each spectator.

KEY WORDS Grotesque; Interaction; Performance; Sensorial; Wearable.

Introdução

Desde 2018 procuro envolver-me mais a fundo na pesquisa acerca da estética grotesca com foco no figurino teatral. Quatro anos depois, posso dizer que o vestível seguiu caminhos inimagináveis 310

até o destino da presença relacional entre espectador, obra e ator-manipulador. Com um cenário pandêmico inesperado, passageiro e permanente ao mesmo tempo, vejo este como um momento oportuno para tratar de transições e principalmente, relacionamentos que se encontram distantes e próximos corporalmente. Ao oferecer o abraço além redes, vejo uma oportunidade de estabelecer relações entre três conceitos: o grotesco de Wolfgang Kayser (1957), a Arte Abjeta de Julia Kristeva (1980) e o Teatro da Crueldade de Antonin Artaud (1938). Além de outras camadas entre três categorias teatrais com o ator, figurino e o espectador e os meios relacionais interno e externo. A partir desses fluxos relacionais em constante comunicação, pude compreender como a estética grotesca em conjunto com a performance é capaz de reproduzir configurações individuais de interação.

Conceitos complementares: grotesco e abjeto

Segundo Kayser (1957), o efeito é o que define uma obra como grotesca. Apenas o público visitante de uma exposição, performance ou acontecimento poderá atribuir o caráter grotesco partindo de uma relação estabelecida com o objeto em questão. Desse modo, estudando Kayser, observo haver um grande poder desconhecido ao público que reage genuinamente à obra. Não há nenhum tipo de reação ensaiada, ela se inicia e se encerra na obra. Kristeva (1980) diria que tais reações são reflexos de vivências anteriores de cada indivíduo, dependendo do estado psicológico de cada um a reação nunca é a mesma. Tanto Kristeva (1980) quanto Kayser (1957) investigaram o fenômeno do grotesco: Kayser (1957) de modo mais abrangente, revisita a história da arte e literatura do Renascimento ao Dadaísmo traçando uma linha do tempo de manifestações do estranhamento dentro do risível, tenebroso, fantástico e monstruoso. Kristeva (1980), mais específica, é interessada no poder que a abjeção e o nojo possam vir a ter no indivíduo e sua capacidade de assimilar ou não o abjeto. Porém, apesar das particularidades de cada conceito, não podemos negar que tanto o Grotesco de Kayser (1957) e o Abjeto de Kristeva (1980) sejam complementares e veremos mais sobre a interação dos dois conceitos em breve. Debruço-me no Grotesco de Kayser dentro da pesquisa Estéticas da Crueldade e Estéticas da Compaixão desenvolvida no Laboratório de Objetos Performáticos de Teatro de Animação da 311

UFRJ, cujo objetivo era encontrar uma estética artística que estivesse ligada ao conceito de Teatro da Crueldade. Criado pelo dramaturgo francês Artaud (1938) que entendia o teatro como um agente transformador das certezas mundanas, o Teatro da Crueldade era uma modalidade teatral focada na experiência do espectador e nos corpos presentes na ação. De maneira visceral e intensa, tocava no âmago do ser humano ao estimular intermitentemente todos os sentidos de atores e espectadores por meio da atuação e do corpo do ator levado a seu limite. Estabelecia um fluxo energético e comunicativo entre os presentes com o objetivo de expurgar catarticamente as angústias produzidas pela própria realidade da qual ele enxergava como uma das maiores crueldades ao ser humano. Se o indivíduo está preso ao cotidiano sem que possa interferir, condicionado a seu próprio destino pré estabelecido, as angústias virão e o Teatro da Crueldade terá uma passagem revolucionária na alma desse espectador que jamais esquecerá tal experiência. Desse modo, o Grotesco é uma extensão de Artaud (1938) por provocar o espectador por meio de extremos produzindo uma passagem marcante. O Grotesco é algo fora de qualquer domínio já conhecido pelo humano, está além de convenções naturais e causa um estranhamento proposital. Pode estar na ridicularização ou exagero de algo, beirando a caricatura e a distorção. Kayser em seu livro O Grotesco (KAISER, 2013) afirma que: “O Grotesco é o mundo alheado, (tornado estranho)”. Dessa forma tudo que desperta sensações ambíguas, contraria ordens pré-estabelecidas e causa desconforto e interferência no cotidiano do espectador que se relaciona com a obra. É importante ressaltar que tais sensações poderão ser ambíguas pelo Grotesco não estar em um lugar definitivo. Em trânsito, sem definição direta por se encontrar entre conhecido e o desconhecido, aquilo que não sabemos nomear por não se encaixar em uma única convenção. Há aqueles que dirão que algo grotesco é peculiarmente belo e outros que preferem a distância do que lhes é estranho. Sobre isso, Kristeva em seu livro Poderes do Horror- Ensaios Sobre a Abjeção (KRISTEVA,1980) faz uma análise filosófica e psicológica do efeito da abjeção no indivíduo. De início, façamos uma visita a definição de abjeção que se entende por tudo que não se encaixa em uma categoria, que perturba uma identidade, ou sistema estabelecido. Visto como impróprio ou rejeitado por determinada cultura que abomina sua existência ou sua aparição pública. Tais convenções societárias e culturais têm um efeito no indivíduo que procura expulsar de sua vivência qualquer 312

sinal de abjeto, pois este representa o confronto de uma ameaça iminente. O espectador o faz como um instinto natural protetivo e não se relaciona com a obra à medida que esta o provoca pelo medo que, vale ressaltar, é totalmente composto pelo abjeto. O abjeto não estabelece limites, penetra o indivíduo por gatilhos emocionais que permitem abrir um espaço maior ou menor nas singulares vivências que perpassam uma mesma obra. Em suma, as interações do público são ambíguas pois o abjeto é ambíguo em sua totalidade. Não há interesse de impor regras uma vez que sem regras, não há julgamentos. O Grotesco, a abjeção e o Teatro da Crueldade fizeram parte do desenvolvimento conceitual de Anatomia da Inquietação e se entrecruzam constantemente ao revisitarmos a performance. Visto que o objetivo da pesquisa era o de estabelecer uma relação estreita entre os elementos de cena trazendo o figurino para o centro da ação teatral, seguimos na compreensão do grotesco nas relações híbridas estabelecidas entre ator, personagem e figurino de Anatomia da Inquietação.

O grotesco em anatomia da inquietação

Observando a performance como um microverso relacional no qual os elementos estão em constante comunicação, devo mencionar a motivação para o nascimento dessa pesquisa. Por entender que o figurino poderia ir além da função de vestimenta ou de um meio para o personagem, transformo-o em outra configuração ao cruzar os elementos ator, personagem e figurino. Sempre em trânsito de uma função para a outra por ser todas ao mesmo tempo, o vestível permite certa maleabilidade de entendimentos se visto de ângulos diferentes. É grotesco em sua essência ao possuir o hibridismo de relações funcionais internas, na ambiguidade das relações de aproximação e distância que o espectador irá estabelecer e para finalizar, a contrariedade entre a figura monstruosa e o movimento afetuoso do abraço. Levando em conta as relações, o movimento se atribui tanto a função de ator, uma vez que possui dimensão corpórea, quanto a de personagem por possuir um tempo de ação próprio vindo de sua estrutura. Pela ótica estética, há tanto o personagem de forma final monstruosa e figurino com tecidos e aviamentos de diferentes texturas. Este trabalho é totalmente composto sobre interação seja no universo micro, apenas entre os três elementos de 313

cena, ou no macro ao incluir também a interação com o espectador. Avançando em camadas de interação- a mais interna já falada no texto- chega-se a próxima que revela como cada elemento nasce partindo da comunicação entre eles próprios. Para que o personagem ocorra, é necessário o estabelecimento de uma relação mútua entre ator e figurino. Construindo uma vivência entre roupa e ator, este traduz um repertório corporal capaz de dar dimensão ao personagem partindo dos movimentos característicos necessários à dramaturgia. Esse aspecto é recorrente em muitas produções teatrais, mas observe que, apesar de o ator precisar vestir a roupa para dar vida a um personagem, ele é visto apenas como um facilitador do movimento do figurino. O foco é deslocado do corpo do ator diretamente para o figurino. Assim, chegamos a mais uma camada de interação no que diz respeito ao poder de atuação do próprio figurino. Partindo da manipulação do ator-facilitador nos mecanismos presentes na roupa, esta se torna ator e foco da cena, tornando o inanimado em organismo vivo, com presença e respiração. O processo de animar um objeto também pode ser considerado uma transição de estado. Percebo uma efervescência quando um objeto sem vida recebe certa interação de força externa capaz de lhe dar dimensão humanóide. É um estado transitório por ter início e meio, mas nunca ter um fim, uma vez que quando o objeto está imóvel após receber certo tipo de força, já é percebido com os olhos de animado, de outras possibilidades de funções que não somente a qual foi destinado para exercer. Desse modo, introduzo a análise entre obra e indivíduo no que tange a relação do ator, passando agora para outra camada de interação, entre vestível e espectador.

O grotesco na relação público X obra

Voltemos à afirmação feita por Kayser (1957) ao pensar no efeito como essencial para a definir uma obra como grotesca. Pensando no contexto pandêmico no qual estamos inseridos de 2020 até hoje, como o efeito surge uma vez que só será produzido pela interação presencial do público? Como aproximar-se das pessoas em um período em que não poderíamos sair de casa ou abraçar uns aos outros como Anatomia da Inquietação propõe aos espectadores? Fazer uma performance de contato em um cenário de contágio extremo, pode ser desafiador por haver a necessidade 314

de derrubar não só a barreira digital, mas a da sensorialidade a distância. O vídeo foi a solução provisória (e simultaneamente, por tempo indeterminado) para mim e para outros tantos artistas e performers ansiando produzir e entrar em contato com o público. Mas ainda assim, a interação do espectador com o ciberespaço mantém uma distância segura, já que a única coisa que separa aquele que não estiver disposto a presenciar algo que o incomode é um simples clique em “fechar página”. A interação com o grotesco existe no meio digital, espectadores existem e interagem, porém é uma relação mais volátil e ainda mais incerta. Desse modo, observo que o grotesco cabe no audiovisual se essa for a proposta. Porém, nas artes cênicas, o presencial é de extrema importância para o grotesco. Há uma diferença de relação entre indivíduo e obra por esta provocar os sentidos com mais intensidade. Em todas as obras, o espectador se insere, respira, interage com o olhar e investiga os detalhes mais próximos, sente o cheiro e a textura e sai com uma transformação mais profunda do que haveria virtualmente. Se tratando de Anatomia da Inquietação, vai-se além da proximidade e sensorialidade do espectador ao oferecer um abraço. Estamos agora em outro cenário pandêmico, um tanto mais amigável com a vacinação, mas ainda incerto. Ainda não é segura a aproximação tão intensa com o outro e os abraços estão guardados, esperando o dia de sua entrega. Porém, Anatomia da Inquietação teve sua forma presencial- ainda que não idealmente- na VIII Bienal da Escola de Belas Artes da UFRJ, onde tive a oportunidade de perceber o efeito do grotesco nos visitantes que se inseriram no espaço, respiraram e interagiram com o vestível.

Bienal da EBA

Apesar das reações de todos contarem para a pesquisa, me concentro agora nos visitantes da Bienal que não tiveram contato com meu trabalho previamente. Neles, pude perceber inúmeras relações estabelecidas entre espectador e obra. Principalmente se levarmos em consideração o contexto do vestível que ora estava acompanhado de vídeo-performance, ora estava ocupando o espaço expositivo individualmente. Vale ressaltar o valor de interesse que o espectador possuía na obra quando esta era colocada em contexto com a vídeo-performance ao lado. Havia uma clareza maior sobre o que de fato seria o vestível, a surpresa do movimento e o que este representava quando o espectador assistia ao vídeo. Desse modo, o próximo impulso era o de investigar 315

os detalhes por uma segunda vez, passar mais tempo em contato e sentir o cheiro de lavanda aproximando o rosto. Já quando o visitante não possuía a experiência audiovisual, o efeito era diferente porque o contexto era outro. O vestível não possuía uma espécie de material de apoio que sensibilizariam o espectador a ponto deste saber que haveria um cheiro ou um movimento reproduzido pelo vestível. Para o visitante deste momento distinto, era apenas uma criatura indefinida, monstruosa e inanimada. Dessa maneira, outras possibilidades de interação foram observadas, como o registro de selfies e um tempo menor de exploração visual. Vale ressaltar, dentro da situação de não-contexto também havia a não-relação. A escolha do espectador, sobretudo crianças, em não chegar perto por medo de seu tamanho imponente e aspecto monstruoso aconteceu inúmeras vezes. Ao receber o relato de uma das mediadoras do evento, ela revelou que avisava as famílias acompanhadas de crianças que havia uma obra que poderia causar medo, dando a elas a escolha prévia de se relacionar ou não com a obra. Mesmo que houvesse tal interferência externa que prepara o espectador em alerta para a situação (o que não deve ocorrer no grotesco), penso nessa como mais uma forma de interação dentro de tantas outras configurações relacionais.

Conclusão

As relações de visitantes que acompanharam todo o processo de confecção do vestível são particulares assim como as relações de visitantes que nunca entraram em contato com Anatomia da Inquietação. Todos possuem suas vivências individuais e reproduzem reações diferentes sobre um mesmo objeto que também possui inúmeras possibilidades relacionais entre seus elementos internos e externos e entre ator e espectador. Dessa forma, entendo que o objetivo final da pesquisa foi alcançado não só ao colocar o figurino em protagonismo da cena, mas também ao provar a teoria de Kayser e Kristeva sobre o efeito do grotesco no indivíduo. Tais experiências com o público em meio virtual e presencial me trazem repertório suficiente para dar seguimento a outro lugar investigativo da pesquisa com o desejo de explorar a fundo os fluxos relacionais e suas influências entre o campo interno e externo da obra com foco no espectador. Aos poucos, me encontro reconfigurando a performance de modo a percebê-la de um ângulo em meio a tantos igualmente interessantes. 316

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