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Viver poesia: um lugar para esperar as folhas caírem

Viver poesia: um lugar para esperar as folhas caírem

Gabriel de França Caetano, gabrieldfranca07@gmail.com www.lattes.cnpq.br/2693639836614969

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RESUMO Neste texto, apresento o trabalho autoral um lugar para esperar as folhas caírem, realizado em 2021, enquanto reflito sobre o exercício crítico e poético da linguagem como meio de autoconhecimento e transformação. Para isso, me apoio nas indagações de autores como bell hooks e Severino Antônio, pensando o fazer artístico como uma ferramenta capaz de nos devolver a possibilidade de uma existência criativa e em sintonia com nosso próprio tempo e caminho. Onde “viver poesia” diz sobre praticarmos o absurdo que enriquece as palavras, encharcando os nossos fazeres com as contradições e a imprevisibilidade que são tão próprias da vida.

PALAVRAS-CHAVE Arte contemporânea; Poesia; Arte e vida.

ABSTRACT In this text, I introduce the personal work a place to wait for the leaves to fall (um lugar para esperar as folhas caírem), performed in 2021, while I ponder about the critical and poetical exercise of language as a means of self-knowledge and transformation. As a support for this, I use works proposed by authors such as bell hooks and Severino Antônio, considering the artistic work as a tool capable of giving back to us the possibility of a creative existence in unison with our own time and path. Where “to live poetry” is about practicing the absurd that enhances the words, soaking our activities with the contradiction and unpredictability typical of life itself.

KEY WORDS Contemporary Art; Poetry; Art and life.

Um lugar para esperar as folhas caírem (2021) trata de um projeto que tem início no deslocamento de uma cadeira amarela encontrada na estrada próxima à minha casa, em Santíssimo (Zona Oeste do Rio de Janeiro – RJ), até a árvore do topo do morro que vejo 32

pela janela do meu quarto. O percurso, captado em vídeo, faz a transição de sons e imagens associados ao espaço urbano para os associados ao espaço rural. Aos poucos, estradas são substituídas por terra e grama, sacos de lixo por árvores, carros por pássaros, pessoas por vacas. Já no topo do morro, a cadeira é posta na sombra da árvore, permitindo meu retorno para casa, de onde posso vê-la como um ponto amarelo no centro da paisagem pavimentada. No vídeo, a cadeira aparece como uma âncora na qual podemos nos projetar, talvez pela ausência de um corpo que a sente, talvez por uma semelhança entre nós e ela. Reescrita pelo gesto, trajeto e paisagem, a cadeira se torna um discurso que corta o ambiente da periferia para se alocar no verde ainda restante. Diferente de uma bandeira, fincada no pico de uma montanha como uma mensagem de “eu estive aqui”, lê-se o objeto como “eu ainda estou aqui”. Eu ainda estou aqui, esperando pela queda das velhas folhas e pelo nascer das novas. Eu ainda estou aqui, aprendendo “a ficar submerso/ por algum tempo, a persistir, a não desistir,/ a não achar que o pulmão vai estourar”, como sugere o poeta Alberto Pucheu (2020, E-book). É certo que passamos por um longo processo de esquecimento. Mecanismos opressivos são responsáveis por garantir o controle de nossas subjetividades, através da manutenção da violência física e simbólica sobre nossos corpos e culturas. Práticas de silenciamento e censura buscam romper o elo entre o sujeito e sua história, tornando-o mais suscetível à exploração. Para a teórica feminista bell hooks (2019), mudanças nesse contexto só são possíveis quando entendemos e estudamos nossa marginalidade, e então nos esforçamos para inventar novos hábitos e alternativas de ser. Nesse caminho, o exercício crítico e poético da linguagem aparece como uma ferramenta essencial de transformação, pelo qual podemos expressar pensamentos, sentimentos e ideias que muitas vezes desconhecemos, ou que mantivemos em segredo de nós mesmos. Por ele, confrontamos nossos próprios demônios, revelamos nossos silêncios, como também os silenciamentos promovidos pela história contada até aqui. Ao descobrirmos nossas palavras, podemos enfim nos ler, conhecer e libertar. Em Uma nova escuta poética da educação e do conhecimento (2009), o educador Severino Antônio explica que a analogia, a comparação, a metáfora é uma das formas de conhecer o mundo, os outros e a nós mesmos, ao identificar o semelhante no diferente – característica também associada a ideia de amor e empatia. Segundo ele, 33

a linguagem evidencia semelhanças que muitas vezes não são percebidas conscientemente, sendo a poesia a linguagem mais condensada de símbolos e concentrada de sentido, capaz de reeducar a inteligência, a sensibilidade e a imaginação, apontando para a inseparabilidade entre o intelecto e o afetivo, o perceber e o imaginar. Antônio, pensando numa possibilidade de escuta sensível da natureza, propõe a ideia da existência como poema: uma unidade complexa e indissolúvel a ser lida, interpretada nas linhas e entrelinhas, e primordialmente a ser escrita e reescrita por todos, de modo a elaborar e fazer nascer outras formas de vida, conhecimento e história. Um viver poético que traz para o cotidiano, as horas comuns, os pequenos gestos, a história de cada dia “[a] experiência de redescobrir a alegria de pensar, a alegria das palavras próprias, a alegria dos diálogos em que nos constituímos e nos reconhecemos a nós mesmos, e uns aos outros, e uns nos outros” (2009, p. 130). Conforme o educador, o poema “é um pensar por imagens, que são sentimentos e ritmos. Ao mesmo tempo, é um sentir por imagens e ritmos, que são ideias” (2009, p. 128). Suas dimensões não são apenas interligadas, elas se convertem umas nas outras. Nada é insignificante em um poema, de maneira que toda palavra, letra e vírgula, ou mesmo a falta delas, se mostra fundamental imagética e ritmicamente. Entender a vida como poema significa admitir que cada elemento no mundo, visível ou invisível, atua na estruturação do todo e estabelece, em menor ou maior grau, o compasso em que dançamos. Quando criança, não gostava de poesia. E acho que admitir isso me liberta de alguma forma. Hoje, chega a ser engraçado o fato de não conseguir desvincular meu olhar, pensar, falar e fazer daquilo que aprendo com ela. Vos digo: a linguagem, além de comunicação, pode ser uma paixão, um prazer, algo para além do entendimento. As palavras existem, são vivas, têm força, corpo e personalidade. Na poesia, escreve-se “com língua de chamas, com vagas de oceano, com areias do deserto, com qualquer coisa, mas não com palavras”, como lembra a poeta Marina Tsvetáeva (2017, E-book). um lugar para esperar as folhas caírem não é um discurso de negação à cidade, na nostalgia de espaços-tempos não-humanos, mas uma tentativa de restituir espaços-tempos de refúgio. Um poema escrito com cadeira, gente, cimento, planta, bicho e vento, que busca responder na delicadeza possível às brutalidades que circundam o viver nessa cidade. É uma homenagem para todos que enfrentam as dificuldades da espera e da permanência. Para nós que, depois do fim, ainda estaremos aqui.

ANTÔNIO, Severino. Uma nova escuta poética da educação e do conhecimento: Diálogos com Prigogine, Morin e outras vozes. São Paulo: Paulus, 2009. HOOKS, bell. Erguer a voz. São Paulo: Editora Elefante, 2019. PUCHEU, Alberto. É preciso aprender a ficar submerso In Antologia poética #2: Quando a delicadeza é uma afronta. Revista Cult, 2020. TSVETÁEVA, Marina. O poeta e o tempo. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2017.

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