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Aqui, agora

Gabriel Costa Fampa, gabrielfampa@gmail.com www.lattes.cnpq.br/7987339604124881

RESUMO A partir da obra Aqui, agora (vídeo digital, 2020), enviada para compor as intervenções artísticas do Quebraquina – XXIII Encontro de Pesquiasdores do PPGAV-EBA-UFRJ, estabeleço considerações a respeito do modernismo brasileiro frente a seu consumo estético e simbólico manifesto no vídeo. Recorro ao Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, para colocar em tensão os ideais anticoloniais salientados pelo autor no modernismo brasileiro e a presença de uma réplica do quadro Abaporu, da artista modernista brasileira Tarsila do Amaral, em um apartamento de classe alta na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. A partir dessa tensão, procuro uma quina: a brecha na imagem se dá a partir do ângulo do corpo que observa, ela se sobressai como uma possibilidade de percepção crítica que deixa um rasgo momentâneo ou permanente no olhar.

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PALAVRAS-CHAVE Abaporu; Réplica; Modernismo; Antropofagia; Quina.

ABSTRACT In sight of the artwork Aqui, Agora (digital video, 2020), sent to compose the artistic interventions of Quebraquina – XXIII Encontro de Investigasdores do PPGAV-EBA-UFRJ, I establish considerations about Brazilian modernism in the face of its aesthetic and symbolic consumption manifest in the video. I turn to Oswald de Andrade’s Manifesto Antropófago to put in tension the anti-colonial ideals emphasized by him in the Brazilian modernism and the presence of a replica of the painting Abaporu, by Brazilian modernist artist Tarsila do Amaral, in an upper-class apartment in Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. From this tension, I look for a corner: the rift in the image occurs from the angle of the body that observes, it stands out as a possibility of critical perception that leaves a tear, momentary or permanent.

KEY WORDS Abaporu; Replica; Modernism; Anthropophagy; Corner.

Algo chama a atenção: uma quina no centro do olhar; um ponto de tensão no meio de uma imagem. Ao observar a vista da varanda, não me interesso exatamente pelos cantos, mas pela margem do interior. A quina, espacialmente falando, não parece sempre residir pelas bordas: ela se faz canto, ela dobra o olhar como quem acha uma curva (um atalho), ela reivindica a esquina onde quer que esteja. Então, talvez ela esteja em todo lugar, no encontro de qualquer plano com qualquer outro. Talvez a quina deva, afinal, ser achada. Talvez seja o posicionamento do olhar que faz a quina e, por consequência, está em destaque o ângulo do corpo que é sensível a tudo que está a sua frente, direita, esquerda, meio, cima, baixo, rente, frente, longínquo, embaixo do nariz, atrás dos olhos etc. (aliás, faz pensar: a quina da frente com o atrás). Não é tão simples escrever um texto como quina, então apelo a uma descrição detalhada: a obra que enviei para o XXIII Encontro de Pesquisadores do PPGAV-EBA-UFRJ, cujo tema é Quebraquina, chama-se Aqui, agora. O trabalho é um vídeo digital de 1 minuto e 36 segundos em plano sequência. Nele, uso a aproximação e o distanciamento da imagem por meio do uso da técnica do zoom in e zoom out. No momento inicial de Aqui, agora, vê-se a vista noturna de uma varanda residencial. O som é urbano e crepuscular: motos e carros zunem isoladamente. A imagem não é particularmente cristalina: ela carece de alta definição. Em meio à densidade escura do registro, identificam-se dois prédios em uma composição tipicamente condominial. A câmera está voltada para ampla vista da Barra da Tijuca, bairro de classe alta no Rio de Janeiro. Essa amplitude, porém, é cortada de forma oblíqua pela barra da grade da varanda de onde filmo (uma primeira quina?). Alguns segundos se passam do início de Aqui, agora e a cena começa a se ampliar por meio do zoom em direção à janela de um apartamento no prédio vizinho. Esse movimento conserva o corte da barra. Aos poucos, identifica-se um quadro na parede da sala de estar desse apartamento. Nota-se, ao final do movimento de zoom in, que esse quadro é uma réplica da pintura Abaporu, da artista modernista brasileira Tarsila do Amaral. Após alguns segundo em close nessa réplica, a imagem passa a distanciar-se até retornar a sua amplitude e posição original. Um fade ao preto marca o término do vídeo. Aqui, agora foi gravado durante a quarentena de 2020. Observar uma réplica de Abaporu em uma residência particular na Barra da Tijuca, em meio ao doloroso contexto pandêmico e atroz desmonte das políticas públicas pelo governo federal, faz pensar sobre as circunstâncias do movimento artístico modernista brasileiro. 29

Lembro-me do Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade diante da imagem dessa réplica: os ideais da digestão ativa e de ressignificação do legado cultural europeu salientados por Andrade parecem se inverter e escorrer exauridos aqui. Não posso deixar de sentir que é esse apartamento, em um andar alto em um condomínio fechado na Barra, protegido pelas grades e cercas elétricas, que degluti Tarsila do Amaral; ou melhor, que ingeri sua réplica, que consome (de forma privada) sua matéria e expõe seus restos como valor (privativo) de morte. O modernismo aqui se exibe orgulhosamente em sua face mais perversa: a inventividade serve a um imaginário idealista de colonização e progresso, anulação e historicismo, privatização e fetichização. Uma pergunta urgente se sobressai espontaneamente: “como nos (re)inventar coletivamente, artisticamente e politicamente frente a esse vazio que deseja engolir tudo?”. E, para além dessa difícil dúvida, há na cena o indício de um temível mundo decadente onde só nos restaram as réplicas (seria possível escrever alongadamente sobre esse mundo, cujo deleite estaria na estima ora orgulhosamente cruel, ora nostálgica da réplica como índice de um mundo deletado). Há, é certo, desânimo diante dessa imagem. Ainda assim, sinto algo difícil de nomear diante desse cenário flagrado; quiçá um tipo de prazer. Recusando o reducionismo simbólico da réplica no bairro da estátua da liberdade (outra réplica), as formas e cores de Abaporu se sobressaem como um achado (uma espécie de preciosidade) em meio à aridez noturna. Apesar dos reveses, Abaporu – ou melhor, sua réplica – insufla uma espécie de gozo irônico no centro da imagem; um ponto de tensão onde se encontram tantas coisas que é difícil enumerar: a brutalidade, o cafona, o oculto, a esterilidade, a colonialidade, a consumação, a privatização, o riso, a ironia… Ponto de tensão cuja articulação é um pé volumoso e um terreno árido de sol. Inclusive, penso agora nesse encontro perpendicular da mão com a pequena cabeça em um gesto sugestivamente contemplativo em Abaporu, que bela quina! Sou então tentado a me perguntar quem está realmente digerindo quem nessa relação entre apartamento e quadro. Apoio minha própria cabeça sobre a mão e observo as imagens. Caso seja mesmo esse apartamento que devora a pintura, sou lembrado (talvez pelo ângulo mesmo da quina) de que não se come sem incorporar o que se consome. Aliás, é justamente nesse ponto que gostaria de acreditar que topamos na quina. Com as percepções e sensações a partir de um ângulo (do corpo, da imagem etc.), a quina se descobre nas dúvidas e afirmações em um espaço (aqui com lá) e tempo (agora, acolá). 30

Mas, faz-se para além disso: ela se abre (aliás, quinas parecem se abrir e se fechar o tempo todo) em possibilidade de articulação obstinada, malcriada, imaginativa e irônica no centro do próprio olhar, onde fortuitamente permanecerá e se alastrará como um rasgo.

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